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Universidade Federal do Rio de Janeiro

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

~RICARDO BENZAQUEN DE ARAÚJO

Os g~riios da pe10ta

Um estudo do futebol como profissão

,
Rio de Janeiro '1' .zyxwvutsrqponmlkjihgfe
J,
/
1980zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHG
G~NIOS DA PELOTA
OS zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Um estudo do futebol corno profissão


RICARDO BENZAQUEN DE ARAÚJO

OS GÊNIOS DA PELOTA

Um estudo do futebol como profissão

Dissertação de mestrado apresen-


tada ao Programa de Pós-Gradua -
ção em Antropologia Social do Mu
seu Nacional da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro.

Rio de JaneirozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPO
1980
Aqradecim entos
Esta dissertação resulta de uma antiga relação, marcada

pelo interesse e pelo afeto, que venho mantendo com a antropo-

logia. Esta relação teve seu início na PUC - RJ , no começo

dos anos 70, através, principalmente, de dois professores,Luiz

Costa Lima e Ligia Sigaud, que souberam me ensinar antropo

logia com rigor e paixão. ~ a eles, em primeiro lugar, que

gostaria de agradecer.

Ainda ria PUC, quero agradecer a atenção e o incentivo que

sempre recebi dos membros do seu Departamento de História e

Geografia. Primeiro como aluno, e depois como professor; pude

gozar do apoio dos seus diretores, especialmente dos professo-

res Fábio Macedo Soares Guimarães e Arltonio Edmilson ~artins

Rodrigues, mais amigos do que diretores, e da amizade de cole-

gas como rImar Rohloff de Mattos, Francisco José Calazans Fal-

con, c~oves uottor1,e Margar1da de Souza Neves.

Tenho trabalhado, nos últimos três anos, no Centro dePes

quisa e Documentação em História Contempor~nea da Fundação Ge-

túlio Vargas. Durante esse tempo, que coincidiu com o da ela

boração desta dissertação, sempre fui tratado com o maior ca-

rinho e consideração pelos meus colegas e pela direção do Cen-

tro. Entre os primeiros, gostaria de agradecer especificamen-

te a Lucia Lippi de Ol1veira, Al.zira Alves de Abreu, Vera Cal

lichio, Eduardo Ribeiro Gomes, Renato Lessa, e Maria Cecilia

Velazco e Cruz, inclusive por terem me ajudadO, generosa e pa-

cientemente, a enfrentar um "mundo" intelectual, o da teoria e

da história política, que tão pouco conheco.

Quanto a direção do Centro, devo-lhe, certamente, um agra


decimento especial. Na verdade, sem a amizade e o respeitoac~

dêmico que sempre recebi das suas duas diretoras, Celina Ama -

ral Peixoto Moreira Franco, e Aspâsia Alcãntara de Camargo, es

ta dissertação, simplesmente, não poderia ter sido escrita

Acredito que só isso jâ dá uma idéia bem clara da natureza dos

meus sentimentos, e do tamanho da minha gratidã~.

Fui também bolsista do Centro de Aperfeiçoamento de Pes

soal de Ensino Superior durante dois anos e meio, o que me pe~

mitiu seguir os cursos da pós-graduação com muito mais aten-zyxwvut


- e liberdade.
çao

Esta dissertação, e a minha própria ligação com a antro-

pologia, muito deve ao Programa de Pôs-Graduação em Antropolo-

gia Social dO Museu Nacional. O estimulante clima de debate

intelectual que ali vigora, ã competênc-ia e seriedade


aliadozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONML

dos seus professores é,de certa forma,responsável pela antropolo-

gia que, mal ou bem, tento fazer. Gostaria assim, de agrade -

cer aos meus colegas e professores, em especial a dois destes,

Anthony Seeger e Roberto Da Ma t.t.a , cujo afeto e criatividade foi

uma das melhores coisas que conheci nos -últimos anos. Quero

acrescentar que f1atta, por trabalhar numa: área mais próxima a

dos meus interesses, tem sido uma fonte permanente (e as vezes

transbordante) de ensino e inspiração.

Gilberto Velho foi meu orientador, de curso e de disser-

tação, durante todo o tempo em que estive no Museu. Como orien

tador, e eu nem sei se ele sabe disso, influiu poderosamente na

visão que hoje tenho da antropologia, ampliando minha ârea de

interesses, e enfatizando, dentro dela, algumas questões que


tento desenvolver nesta dissertaçao e em outros trabalhos. Co-

mo amigo, soube não apenas me incentivar, mas também me criti-

car, em alguns momentos decisivos, desarmando certas armadi-

lhas nas quais costumo entrar, apontando-me caminhos, mas tam-

bém limites. Sou-~he, por isso, duplamente grato.

Quero também agradecer o apoio e o carinho que recebi dos

meus amigos, em especial de Theo Santiago, Sérvulo Figueira ,

Arnaldo ~1ice~i, Armando e Ilana Strozenberg, Ovidio de Abreu

Filho e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, José Regi -

naldo e Marcia Gonçalves, Eduardo Schnoor, Henrique e Myriam

Lins e Barros.

Harisa Colnago datilografou com talento e paciência os

meus originais.

Os jogadores que entrevistei foram extremamente genero -

sos e solicitos, permitindo que ocupasse boa parte do seu tem-

po de folga, para eles tão restrito. Sem poder citá-Ios pes -

soalmente, quero agradecer a todos a enorme pacidência que ti-

veram comigo e com minhas perguntas.

Agradeço também a Hedyl Válle Jr. e Oldemário Touguinhó,

dois amigos jornalistas ,que colocaram sua sabedoria e experiên

cia profissional a minha disposição, e tornaram possivel que eu

entrasse em contato com os jogadores.

Silvana Mice~i de Arafijo, minha mulher, conviveu comigo,

e com a dissertação, nos filtimos anos, dividindo os problemas

sem nunca me negar seu amor. Foi provavelmente por isso que

consegui superar a minha dispersão e obsessividade, e,mesmoaos

tropeções, chegar ao fim da dissertação. Por isso, pelo seu

amor, dedico-lhe este trabalho, com um beijo.


RESUMO

Esta dissertação analisà as representações que um grupo

específico de jogadores de futebol possui sobre a sua profis -

sao. Estuda, em primeiro lugar, as razoes que levaram estes

jogadores a optar pelo futebol como profissão, qestacando prin

cipalmente, a chance de enriquecimento e de auto-realização que

ele parece trazer. Depois, foram levan~adas as categorias b~-

sicas para se ter sucesso nesta profissão, especificamente o

talento, e uma certa personalidade, baseada na idéia de auto-

controle. Finalmente, foram analisadas as relações dos jogadQ

res com os dirigentes dos clubes, relações que dificultam par-

ticularmente a concretização daquele projeto de enriquecimento,

pois estão baseadas num esquema extremamente pat.ern azyxwvutsrqponmlkjihg


Lí.s t a e

hierarquico, o qual, segundo os entrevistados, só pOderá ser

eliminado pela atividade sindical dos jogadores.


SUMÁRIO

...............................................
INTRODUÇÃOzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
1 zyxwv

CAPíTULO I
Cálculo e prazer ............................... zyxwvutsrqponmlkjihgfedcba
.......... 4 zyxwvu

CAPÍTULO 11
Arte e ofIcio . . . . . .. . . . .... . . . . . . . . . . . . . . . .. . . .. . .. . . . . 27

CAPÍTULO 111
O lado escuro . . . .. . . .................................. 66

CONCLUSÃO . . . .. . . . .................................. 83

BIBLIOGRAFIA .......... ..................................... 88


Introdução
2 . zyxwvuts

Meu interesse em fazer esta dissertação foi provocado pe-

la percepção da enorme importância que o "mundo" do esporte, e,

especificamente, o do futebol, parece possuir na nossa socieda-

de. O mundo do esporte parece se reconhecer, e ser reconheci-

à parte, dotado de uma organização social e


do, como um dominiozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

de um universo simbólico próprios. Existem, portanto, carrei-

ras profissionais e instituições ligadas ao esporte, assim como

uma série de regras particulares, como, por exemplo, sua separa

çao da politica, que marcam decisivamente sua separação de ou-

tras esferas da sociedade.

Dentro do esporte, o futebol parece ocupar' um papel de e-

vidente importância em relação à sociedade brasileira. É dota-

do de extraordinário poder de mobilização, reunindo em torno de

si, semanalmente, parte significativa, pelo menos, da população

urbana.

Meu interesse especifico pelo futebol, entretanto, cen-

trou-se desde o inicio n~ extrema heterogeneidade que parecia

caracterizâ-lo. Podia ser pensado como um ritual, mas tinha

também um mercado de trabalho extremamente específico, criava

"estrelas" no seu meio, figuras nacionais, muito conhecidas, e,

ao mesmo tempo, empregava um número enorme de jogadores que en-

travam e saiam da carreira sem que ninguém tomasse conhecimento

deles.

Resolvi, então, entrar em contato com a literatura de

Ciências Sociais que já existia sobre o futebol. E, logo, dep~

rei-me com um paradoxo. Esta literatura, além de pequena (cf.


3 . zyxwvut

:;"..1edes:
1977, Vogel: 1977, Soares: 1979, Lever: 1969 e 1975,Ba~

-=a Neves: 1977), era muito pouco volumosa. Trata-se basicamen-

~e de trabalhos, que contudo, estudam o futebol de um ponto de

~ista extremamente genêrico, com a possIvel exceçáo de Guedes


(1977) .

Diante desta avaliação, optei por estudar ,um segmento ex-

.tremamente especIfico dentro do universo de jogadores. Portan-

to, todas as minhas reflexões e hipóteses tem limites claros.


Acredito, no entanto, que dentro da tradição antropológica do

estudo de grupos, casos e situações particulares, seja pos~Ivel

abrir uma nova frente de pesquisa, mais concretamente orienta _

da. Quer dizer, há necessidade de prosseguir com novas pesqui-

sas sobre as diferentes dimensões do mundo do futebol, e mesmo

realizar trabalhos com outros grupos de jogadores queapresen-zyxwvutsrqp

L.cU ll L:ctrac-cerlStlcasdistintas das que aqui serão discutidas.


.C apítulo I zyxwvutsrqponmlk
C álcu lo e P razer
5 . zyxwvut

Minha preocupaçao básica, neste primeiro capítulo, sera a

de tentar entender as razoes que levaram os jogadores estudados

a escolher o futebol como profissão. Pretendo tambémzyxwvutsrqpo


através
I

da análise destas razões, discutir a concepção que eles possuem

de sua carreira, a forma pela qual esta deve ser encarada, e os

resultados que pode trazer.

Para explicar sua relação com o futebol, todos os entre -

vistados voltaram no tempo, falando da infância e da adolescên-

cia; quando a prática do futebol se constituia no seu "brinque-

do predileto", sua mais constante e apreciada diversão. Todos

"adoravam jogar bola", alguns em peladas mais ou menos improvi-

sadas no meio da rua, outros nos ambientes mais fechados e pro-

tegldos das quadras de tutebol de salao, detinindo-se,. tanto

num caso como noutro, uma primeira, intensa, e, de certa forma

inesquecível ligação com o futebol.

EntretantozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ
l embora evidentemente desempenhasse um papel

importante na vida destes futuros jogadores, o futebol -


nao era

considerado, por quase nenhum deles, como uma possível opçao

profissional. Nos oito casos que estão sendo aqui estudados

mais de perto, apenas um afirmava que "queria ser jogador de fu

tebol desde pequeno", e, mesmo assim, junto com outra profissão,

pois pretendia também diplomar~se em educação física. Nos ou-

tros sete casos, o futebol era encarado basicamente como uma di

versão, identificado com o lazer, e não com o trabalho. Dois

pretendiam estudar engenharia, um formou-se em mecânico ajusta-


6. zyxwvuts

dor, outro queria estudar direito, o sexto ia entrar na marinha

de guerra, e os dois 6ltimos iam seguir as profiss~es de paren-

tes próximos, um alfaiate, e o outro marceneiro.

Há, portanto, um certo afastamento em relação a profissão

de jogador, e, nestas condições, nao é de se estranhar que to-

dos afirmem terem sido levados até os clubes por "olheiros",ex-

jogadores, e até por membros de sua própria família envolvidos

com o futebol(l) . Nenhum deles se apresentou espontaneamente ,

nem mesmo o que sempre pretendeu ser jogador profissional, e um

outro chegou a afirmar que "só foi jogar porque o pai obrigou,

já que preferia seguir outra carreira ". Nos clubes, depois de

alguns treinos, - convidados


sao a participar do 'time juvenil, e

é neste momento que se coloca, pela primeira vez, a alternativa

de se jogar futebol profissionalmente.

Note-se que esta escolha, e a duvida que ela provoca, pa-

rece apontar para um momento de passagem, dramático e crucial ,

na vida desses jogadores. Eles sabiam que, mesmo nos juvenis

seria muito difícil conciliar os planos anteriormente elabora-

dos com a carreira de jogador, o que, logicamente, dava um cará

ter radical a sua decisão. Era preciso optar entre o futebol e

as outras carreiras, sem meio termo.

Escolheu-se o futebol, pois, afinal, "€i a profissão maiszyxwvuts

(1) Nos 01' to casos es tud ad os, C1nco d os palS eram favorave1S
-. a que seus f 1- í

lhos jogassem futebol, dois eram contra, e um foi classificado como "in-
diferente". Registre-se ainda que, dos cinco primeiros, três praticamen-
te "empurraram" seus filhos para o futebol profissional, pois eram torc~
dores "fanáticos", adoravam futebol. Num desses casos, inclusive, o fi-
lho não queria de forma nenhuma tornar-se profissional, pretendia ser e~
e depois de ter
genheiro, só aceitando depois de muita pressão, em casa,zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZY
percebido as "vantagens" financeiras que o futebol poderia lhe trazer.
7. zyxwvut

rendosa que existe". Como disse um dos entrevistados:

"mesmozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
form ado em engenharia eletrônica, nesse +em po que eu
parei para jogar futebol, que foi de 69 até hoje (79), nunca
teria ganho o dinheiro que ganhei. Em 69 ainda não havia en-
trado na faculdade, só ia entrar em 70, o curso dura seis
anos, nao e, teria de esperar esse teIDfX)
todo para começar a
ganhar..."

É importante observar que todos os jogadores se definiram como

originários de·familias "médias", "remediadas", nem pobres nem

ricas, e, nesta situaçáo, o futebol parecia apresentar uma chan

ce tão grande de enriquecimento e ascenção social que se torna-

va uma opção profissional praticamente irresistível.

A concretização desses objetivos, contudo, não é muito fá

cil. A carreira do jogador é muito pequena, dura em média de

nrnf'i
~
c: c: r.p c: rO lO
~
f'nr;:,m ;:,h;:,nrln

nadas para segui-Ia, nas quais,"embora não fosse ganhar esse di

nheiro, em compensação ia ganhar dinheiro até sessenta anos"

Além disso, a curta duração da carreira pode ser drasticamente

diminui da pelas contusões,. um verdadeiro "fantasma" para os jo-

gadores. Casos antigos, como os de Carlos Albêrto do Flamengo,

Alan e Luisinho do Vasco(2) , foram repetidamente enfatizados

Apostando em si mesmo, no seu talehto e no seu corpo, para acu-

mular e subir na vida, o jogador arrisca, cada vez que entra em

campo, todas as suas esperanças de riqueza. Po de+s e di zer que,

se a opção pelo futebol como profissão foi feita através de mui

(2)Todo;:,
~ tr-es Jogavam
.. na pon t a d ri r e ri t a, e, se r i. am ent e m ac 1rue a d os quan d o es-
tavam no auge da sua "form a",foram obrigados a abandonar a profissão.
8 . zyxwvutsr

ta reflexão e cálculo, este cálculo não deixa de aceitar uma e-

Dorme margem de risco.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o que se pode fazer, então, para superar tantos "peri-

gos"? Além de contar com a sorte e com a malandragem dentro de

campo, tentando nao "ficar inutilizado" para o futebol, o joga-

dor deve ter, como preocupaçao básica, a utilização do dinheiro

que ganhou de maneira bastante precisa: colocando-o para "ren -

der", investindo o seu capital em letras de cârr.bio,açoes, apa~

t~mentos para alugar, etc. ~ difícil exagerar a importânciaque

esse tema assume no discurso dos jogadores. Todos afirmam ter

o máximo cuidado em "aplicar" o que ganham, calculando minucio-

samente onde, quando, e quanto investir:

"Graçasa Deus fiz una boa eoonomia. Hoje tenho investimen-

c~ei sempre, dentro da minha.carreira,nunca me iludir, mi-


sem pre foi pensar no futuro, sempre pensei
nha preocupaçãozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
enquanto estiver no futebol tenho que econc:inizar,
depois sim,
viver um pouco daquela renda que eu ganhei... faço o dinheiro
render, tiro uma parte pra caderneta,um terço pra gastar, um
terço pra investir em letras, açoes, etc."

É a partir desse quadro, inclusive, que se deve compreen-

der o fascínio que as propostas da Europa e dos Estados Unidos

parecem exercer sobre os jogadores. Jogar no exterior permite

que se ganhezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

"em três anos o que não ia ganhar em dez"..."pois meu salário,


se a gente oomparar cem o q1.Eganham os jogadores europeus e -
una miséria, não vale nada".

Observe-se que, mais uma vez, o desejo de acumular em po~


9. zyxwvuts

co tempo articula-se com o cálculo eminentemente econômico (o

meu salário X o salário do jogador europeu), autônomo, e separ~

do de qualquer outra preocupaçao de ordem social.

Trata-se, em suma, de um uso "racional", consciente e cal

culado, do dinheiro, o qual deve semple ser usado corno mercado-

ria, capaz de se reproduzir e aumentar através da sua própria

movimentaçao (cf. Polanyi: 1944, cap.6). Firmes nesta posição,

meus entrevistados vão condenar tanto aqueles jogadores que es-

banjam o dinheiro que ganham, dissipando-o em roupas, carros no

vos, etc. quanto aqueles que se preocupam apenas em guardar o

que ganharam, fazendo o seu "pé de meia"~ Muitos destes são co

nhecidos como avarentos e "pão-duros", mas acabam se contentan-

do em comprar "um apartamentozinho"zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA


r no fim da carreira, UII1 imó

vel qualquer, que não compensa os sacrificios que a profissão e

xige, nem garante o futuro de ninguém.

Estes dois tipos, o "esbanjador" e o "avarento", cuja si-

metria foi demonstrada por Simmel (1971, capozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXW


12), unem-se na

mesma aversao ao uso produtivo do dinheiro. O primeiro "quei -

ma" as suas próprias riquezas em investimentos -


"afetivos",zyxwvutsrqponm
nao

calculadOS, sem qualquer retorno econômico, enquanto o segundo

imobiliza as suas, bloqueia qualquer possibilidade delas se ex-

pandirem, numa õtica cujo o único resultado só poderia se cris-

talizar num bem imóvel, num "apartamentozinho".

Já os jogadores estudados sugerem justamente o contrário,

o privilégio dos bens móveis, da riqueza sob a forma de mercado

ria (cf. Polanyi: 1944 e Dumont: 1977) ~ o que dá um colorido ex

tremamente individualista e moderno ao seu pensamento. ~ como


1 0 . zyxwvuts

se eles reencontrassem, no livre jogo do mercado, o risco e a

'mobilidade cotidianamente experimentados nos campos de futebol.

Se o jogador tiver sucesso neste "jogo" extra"':campo pode-

ra, ao encerrar sua carreira, dispor de uma situação financeira

bastante razoavel. Eles sabem, contudo, que mesmo que isso a-

conteça não poderão manter o mesmo padrão de vida de que dispu-

nham enquanto estavam jogando:

a gente vivezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK
"geralrrente m m ritmo de vida da classe quase ri

ca... mas depois de largar a bola geralrrenteeste ritmo cai .


Então já estou preparado para isso, sei antecipadamente que
devo cair, mas, para tanto, estou brigando para que isso nao
aconteça, ou aconteça o mínimo possível".

Na verdade, nenhum dos jogadores entrevistados acreditava

que fosse ficar milionário, que pudesse parar inteiramente de

trabalhar depois do futebol. O que todos, sem exceção, parecem

é simplesmente
pretender,zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o que chamam de independência finan -

ceira, ou seja, a possibilidade de não precisarem mais traba

lhar sob as ordens de ninguém. Como diz Falcão (O Globo,lljllj

79)zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r

11 quanao chegar ao fim quero parar em condições de não tra


balhar mais. Quando digo trabalhar,quero dizer não depender
de emprego para sobreviver".

Há, como se ve, uma ciara pretensão de autonomia, de con-

trole privado das pr6prias aç~es, livres de qualquer ingerên-

eia "externa" (cf. Lukes: 1973, capo 8), especialmente da inge-

rência dos patr~es. É interessante notar que aiguns dos entre-

vistados levantam a possibilidaae de se tornarem empresários,cQ


1 1 . zyxwvut

mo

"zé Carlos e Dirceu Lopes que tem umaszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSR


.í.ndiis trLas e estão mui
to bem".

Salienta-se mesmo que

"se deve botar um negócio enquanto está jogando ... pois


se tiver algum prcjufzo há uma condição, uma maneira de se
ressarcir, de se recuperar".

o futebo~, portanto, parece permitir um máximo de ascenção so-

cial, fazendo com que empregados extremamente submetidos (como

veremos mais adiante) possam transformar-se em indivíduos autô-

nomos, independentes, e, até mesmo, em possiveis patrões.

Acredito que já esteja bastante claro que ao escolher o

futebol como profissão, em função das possibilidades de (relatizyxwvu

VO) enrlqueclmento que ele parece trazer, os jogadores defini-

ram também uma conduta econômica altamente "racional", baseada

numa perseguição sistemática da maximização dos lucros, para g~

rantir a concretização dos seus objetivos .. Mas essa não e a

única providência que se deve tomar para assegurar o futuro dos

jogadores. :t: indispensável também que eles estudem, preparand9.

se para poder exercer uma outra atividade quando tiverem de dei

xar o futebol.

Entretanto, não é muito fácil conciliar o estudo com a

profissao, pois, mesmo quando os clubes permitem que o jogador

estude, o que nem sempre acontece, o tempo que ele dispõe para

isso é muito pequeno. Apesar dessa dificuldade, quase todos os

entrevistados seguem alguma faculdade, pois é essencial que se


1 2 . zyxwvut

tenha uma outra profissao ao deixar o futebol, qualquer que se-

ja o grau de acumulaçào em que se abandone a carreira. Alémdis

so, nao devemos esquecer os riscos que eles diariamente enfren-

tam: uma simples contusão.pode, a qualquer momento, "cortar" pe-

10 meio uma carreira até então muito bem sucedida, reduzindo r~

dicalmente as chances de enriquecimento que o futebol oferece .

A própria utilizaçào "lu~rativa" do dinheiro oferece também mui

to riscos, pois implica também num certo'''jogo'', no qual até

mesmo grandes empresas estão sujeitas ã falência.


a perder,zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYX
Co

mentou-se muito comigo o caso de Pelé, pois, até ele, exemplo

máximo de todos os jogadores, sofreu um "baque" em seus negó

cios, senão obrigado a emigrar para recuperar a sua fortuna.

Note-se que dos oito jogadores analisados, nenhum chegou

a seguir os cursos ou prófiss6es pelos quais havia anteriormen-

te se interessado. Um dos que ia fazer engenharia, mais o que

ia adotar a profis~ão de marceneiro, estudam educação fisica, e

pretendem tornar-se técnicos, para que possam utilizar toda azyxwvuts


.~
experlencia e a rede de relações que acumu.íar am durante a sua

carreira. O que ia ser alfaiate deseja também seguir o mesmo


-
.~

caminho. O .jogador . havia


que Ja se diplomado em torneiro-mecâ-

nico(e que gostava muito desta profissão), mais o outro que qu~

ria ser engenheiro, optaram pela a administração de empresas

sem revelar, contudo, muito entusiasmo pela nova carreira. Na

verdade, ambos afirmam que também pretendem tornar-se técnicos,

no futuro (3). O que ia estudar direito Já está cursando a ta -

(3)Os dois foram os que mais chamaram a atenção para a necessidade de uma
utilização mais "produtiva" do dinheiro, procurando maximizar seus lu -
cros de todas as maneiras. Ambos, inclusive, pretendiam tornar-s~ empre
sãrios, "l;otaralgum negócio", o que, logic~ente, pode ter relaçao com
sua decisao de seguir o curso de administraçao de empresas.
1 3 . zyxwvut

culdade de comunicações e o que ia para a marinha de guerra pre

tende segui-Ia, todos dois interessados em seguir o curso de

jornalismo, do qual tomaram conhecimento através do futebol. Fi

nalmente, o que afirmava querer ser jogador profissional desde

pequeno, pretendendo também estudar educaçao física, terminou

formado em administração de empresas. Com a carreira j& encer-

rada, trabalha hoje num dos orgaos que presta assistência aos

jogadores, o que talvez possa explicar o fato de que esteja fa-

zendo também o curso de direito. Houve, evidentemente, uma e-

norme transformação em relação aos planos iniciais de cada jog~

dor.

Parece-me, agora, que é necess~~io fazer uma pequena pau-

sa na an~lise do discurso dos jogadores, e, resumindo rapidamen

te o que j& foi feito, levantar algumas questões mais ·amplas. O

ponto de partida deste capItulo era a necessidade de se com-zyxwvu


-
preender de que forma, e a partir de que razoes, os jogadores

entrevistados haviam escolhido o futebol como profissão. Acre-

dito que tenha ficado bastante c~aro que esta escolha foi feit~

antes de mais nada, em função da extraordin~ria chance de inde-

pendência financeira e de ascenção social que o futebol parece

possibilitar. Esta chance, contudo, para poder se concretizar,

exige a adoção de uma conduta estritamente racional e calculis-

ta em relação a "administração" do dinheiro que o jogador ganha,

utilizando-o sempre para gerar mais dinheiro. Ela também re-

quer, num outro plano, que o jogador se prepare, aprendendo ou-

tra profissão, para o dram~tico momento em que sua carreira ir&

se encerrar.
1 4 . zyxwvuts

Por tudo isso, parece-me razoãvel sugerir que a decis~o

de se jogar profissionalmente o futebol foi tomada a partir de

um determinado ~etor na medida mesmo em que, segundo Schutz

(1962), um projeto implica sempre na pré-concepç~o, na pré-defl

niç~o, de objetivos específicos, no caso, o de acumular capital

e conseguir uma independênciaeconânica. Note-se que urna série de

categorias implícitas na noção de projeto também est~o presen -

tes no discursó dos jogadores. Assim, a idéia de que a noçao

de projeto pressupõe urna alternativa a si mesma, ou seja, a po~

sibilidade dos indivíduos escolherem entre diferentes projetos,

estã presente no fato dos jogadores preferirem inicialmente ou-

tràs profis~ões ao futebol. A existência de alternativas, e a

necessidade de um processo de escolha, faz com que o projeto se

ja urna atividade eminentemente consciente, implicando em cãlcu-

los, questionamentos e dúvidas, taTflbémpresentes no pensamento

dos jogadores. Todo projeto esta, ainda, ligado a outros, con-

temporâneos ou futuros, que podem sucede-Io ou transformá-lo

dando a este "mundo" um carater "essencialmente dinâmico" (cf.

Velho, 1979}e mesmo provisório, cuja perfeita ilustração tal-

vez possa ser a relação entre o futebol e o estudo, a riqueza e

o saber, tal como apresentada pelos entrevistados.

Esclarecer que os jogadores definem-se profissionalmente

dentro de um determinado é extremamente importante, mas


projetozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK

n~o resOlve todas as questões. É necessário, também, indagar -

mos sobre o significado dos objetivos ao projeto, sobre a natu-

reza do seu conteúdo. Ora, pelo que foi visto, o projeto dos

jogadores pretendia concretizar seu enriquecimento e possibili-


1 5 . zyxwvuts

tar mobilidade social. Nele, a riqueza aparecia com um sentido

basicamente moderno e individualista, dotada de uma "mobilida -

de" que permitia, através do cálculo e do "jogo", a sua contí -

nua maximizaç~o. A riqueza mobiliária define-se, portanto, co-

mo o valor mais importante no projeto que estamos estudando

pois, será através dela que os jogadores ir~o cdnseguir a sua

t~o desejada independência.

Note-se que esta independência é financeira, ela pretende

realizar-se basicamente no mundo impessoal e individualista dos

neg6cios, ao qual os jogadores, se bem sucedido o seu projeto

de acumulaç~o, terao condição de pertencer. Neste mundo, valo-

riza-se mais o capital que o prestígio, a riqueza mobiliári~con

quistada pelos jogadores) do que os bens de raiz, e sera neste

contexto de mercado, dominado pelas leis an3nimas da oferta e

da prpcura, que a autonomia e a liberdade rec~m alcançadas de~-

tes jogadores, que o seu individualismo enfim,irá se exercer

(cf. Matta, 1~79).zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Temos, portanto, - profissional


uma opçao resolvida dentro

de um projeto que encara o dinheiro, seu uso calculado e racio-

nal, como a única maneira de se garantir uma futura liberdade

econ3mica. Entretanto, é cálculo e raz~o nos projetos.


nem tudozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONML

Eles lidam também com as emoções, veiculando sentimentos dife -

rentemente valorizados através de suas propostas. No caso do

projeto dos jogadores, coloca-se muita ênfase na paixão e nopra

zer com que e exercida a profissão, o que, logicmnente, guarda

certa relaç~o com o fato do futebol ter sido primeiramente enca

rado por eles como um brinquedo, um "hobbyll, objeto de "devo


1 5 . zyxwvuts

tar mobilidade social. Nele, a riqueza aparecia com um sentido

basicamente moderno e individualista, dotada de uma "mobilida

de" que permitia, através do cálculo e do "jogo", a sua contí -

nua maximizaç~o. A riqueza mobiliária define-se, portanto, co-

mo o valor mais importante no projeto que estamos estudandozyxwvutsrqponmlk


r

pois, será "através dela que os jogadores ir~o conseguir a sua

t~o desejada independência.

Note-se que esta independência é financeira, ela pretende

realizar-se basicamente no mundo impessoal e individualista dos

neg6cios, ao qual os jogadores, se bem sucedido o seu projeto

de acurnulaç~o, terao condiç~o de pertencer. Neste mundo, valo-

riza-se mais o capital que o prestígio, a riqueza mobiliári~con

quistada pelos jogadores) do que os bens de raizzyxwvutsrqponmlk


i e sera neste

contexto de mercado, dominado pelas leis anônimas da oferta e

da prpcura, que a autonomia e a liberdade recém alcançadas def-

tes jogadores, que o seu individualismo enfim,irá se exercer

(cf. Matta, 1~79).

Temos, portanto, -
uma opçao profissional resolvida dentro

de um projeto que encara o dinheiro, seu uso calculado e racio-

nal, como a única maneira de se garantir uma futura liberdade

econômica. Entretanto, é cálculo e raz~o nos projetos.


nem tudozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONML

Eles lidam também com as emoções, veiculando sentimentos dife -

rentemente valorizados através de suas propostas. No caso do

projeto dos jogadores, coloca-se muita ênfase na paixão e nopra

zer com que é exercida a profissão, o que, logicamente, guarda

certa relaç~o com o fato do futebol ter sido primeiramente enca

rado por eles como um brinquedo, um "hobby", objeto de "devo


1 6 . zyxwvuts

ção" e não de "obrigação".

Praticando o futebol também por gosto, os jogadores temem

profundamente a hora ,do encerramento da carreira:

" não pensei ainda em largar porque, te falei, adoro jogar


futebol... não pensei nessa tristeza que seria largar o fute-
bol, pois me realizo na minha profissão"..zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWV

o futebol, portanto, além de proporcionar aos jogadores

uma chance de independência econômica, e de entrada no mundo

das finanças, torna posslvel também a concretização -


dazyxwvutsrqponmlkjihg
noçao,

tipicamente romântica, de auto-realização.

Dessa maneira, os jogadores tem a possibilidade, dentro

do campo, de desenvolver e aperfeiçoar certas potencialidades

singulares, finicas e intransferIveis, cuja realização, evident~


m ,,;.f-r \
_
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
1 ..; rr zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCB
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4 _

.Jv'::JU .I!.LU!:-'ULC.l.Ulld. •
\.....I

te prazer de jogar bola, idealmente partilhado com todos os bra

sileiros, irá entao se combinar com a satisfação exclusiva, pro

pria, que um jogador particular experimenta ao realizar um ta-

lento que é especificamente seu, absolutamente singular, e que

vai distingui-Io de todos os outros praticantes do futebol. AI

guns jogadores chegam, inclusive', a se comparar com artistas

marcando dessa maneira sua incomparabilidade em relação aos jo-

gadores "comuns", que em filtima instância, são todos os brasi -

leiros:

"Com o futebol eu boto as coisas prâ fora. Se não fosse ele,


talvez eu fosse miis.í.co,
Como Caetano, Jorge Ben, João Gal-
vão, \1oraes,Cí.ro !:v1onteiro,
poderiam ser jogadores de futebol.
A gente sabe que e quase tudo a mesma coisa. É só botar pra
1 7 . zyxwvutsr

fora com pincel, caneta ou bola" (Afonsinho,Folha de são Pau


10, 4/4/1977).

A bola, semelhante a um pincel, transforma-se na extensão

"natural" do talento do jogador, o que faz com que este estabe-

leça com ela urna ligaçãozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVU


orgânica" e extremamente pessoaliza -
lI

da:

"a maioria das coisas que me dão tranquilidade, realização


plena, estão ligadas à bola. Tenho paixão por ela, que e
realmente uma coisa maravilhosa". (Ldem ) • zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZY

Este conjunto -
de emoçoes que marca de uma forma muito pe-

culiar o projeto dos jogadores, parece misturar o prazer que a

auto-realização proporciona com um marcante sentimento de dife-

renciação e singularidade., o que vem adicionar: uma outra dimen-

racterizado.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCB

t preciso um esclarecimento: até agora, quando falei em

individualismo, referia-me ao individualismo quantitativo (cf.

Simmel, 1950, parte 1, capo 4) elaborado fundamentalmente no

séc. XVIII, que se baseia nas idéias de ~iberdade e igualdade,

e privilegia a economia corno o mais importante dos domlnios so-

ciais. Já o individualismo que começamos a mencionar na análi-

se da dimensão emocional do projeto, é de um tipo bastante dife

rente: pode ser chamado de individualismo qualitativo, por opo-

sição ao outro. Nele, basicamente desenvolvido no século XIX ,

a liberdade deixa de ser identificada com a autonomia, com a in

dependéncia, e

"restringe-seao sentido purarrenteinterno do tenno" (idem),


1 8 . zyxwvuts

referindo-se as potencialidades singulares e originais de cada

indivíduo. Em consequência disso, a igualdade vai perdendozyxwvutsrqpon


im-

portãncia, substi t.uida por umazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONM


erif a se na singularidade e na di-

ferenciação dos indivíduos entre si. Resumindo, temos uma nova

idéia de liberdade, e uma ênfase na desigualdade.

Sem pretender, evidentemente, desenvolvei aqui a relação

entre essas duas vertentes da ideologia moderna, que podem in-

clusive, em cada caso concreto, separar-se e reunir-se das ma-

neiras as mais diferentes, gostaria, entretanto, de frisar que

o projeto dos jogadores parece encerrar essas duas modalidades.

A maneira pela qual elas se relacionam no interior do mesmo prQ

jeto, o peso especifico de cada uma, e a própria possibilidade

da dominância de. uma sobre a outra, são q ue st.oes em aberto, cu-

jas respostas tentarei esboçar, pelo menos em parte, nos oróxi-

mos capitulos.

A análise da dimensão emocional do projeto dos jogadores

precisa ser ainda ampliada, senão vejamos: antes de me referir

ao individualismo qualitativo, chamava a atenção para o fato de

que o grande prazer que o futebol parece provocar entre os joga

dores está articulado a "realização" do talento particular de

cada um deles. Esta auto-realização, embora se concretize um

pouco a cada jogo, só será realmente completada se o jogador

atingir à seleção brasileira.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC

liA seleção é o auge, todo mundo sonha em participar dela" ou,


Ire realizar, ter chegado à copa do mundo",
"só faltou, prá euzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC

sao dois de muitos trechos de entrevistas que enfatizam que a

seleção é o grande objetivo de todo jogador, e que sua realiza-


1 9 . zyxwvut

çao só será realmente completa se ele chegar até ela, de prefe-

rência numa copa do mundo. Neste primeiro nível de indagação ,

podemos apenas perceber que a visao que os jogadores tem de sua

participaçao na seleção parece corresponder a imagem que "geral:.

mentelJ se faz dela, ou seja, eles se colocam como representan -

tes da torcida brasileira e do próprio Brasil, 'elos decisivos

de uma gigantesca corrente moral na qual circulam os valores

componentes do nosso carater nacional (cf. Guedes, 1977 e Vo-

gel, 1977).zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o papel totalizante e contaminador que a seleção parece

desempenhar, especialmente em épocas de copa do mundo, quando

a nação é periodicamente reconstruida a partir 'de um modelo or-

gânico e hierarquizado, já foi bastante discutido nos trabalhos

anteriores, o ponto mais interessante a


acima citados.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
expIo

rar aqui, nos limites desta dissertação" talvez seja tentar en-

tender como jogadores que apresentam um projeto tão individua -

lista, enfatizando a independência financeira e a singulariza-

ção do prazer, podem se encaixar de forma tão perfeita na englo

bante visão de mundo que preside as atividades da seleção.

Poderiamos imaginar que este "individualismo" é apenas um

ligeiro disfarce, incapaz de resistir, especialmente na epoca

dramática de uma copa do mundo, a enorme pressão social, e por-

• tanto moral, que se abateria sobre os jogadores. Sem descartar

inteiramente esta solução, parece-me, contudo, que devemos pro-

curar a resposta a esta questão numa hipótese um pouco mais com

plexa, que encontre uma mediação entre este projeto individua -

lista, cotidianamente explicitado pelos jogadores, e as exigên-


20. zyxwvutsrqp

cias excepcionais e totalizantes da seleç~o brasileira.

Ora, esta mediação parece poder ser executada exatamente

pela noção de auto-realização, categoria central da dimensão e-

mocional do projeto. Definida em relação ao que é interno e

singular, ela tanto pode se restringir aos indivíduos, quanto

se expandir até englobar a naç~o como um todo. 'Neste caso, que

me parece ser o nosso caso, ela vai enfatizar a unidade interna,

a conjunção de todas as forças da nação para garantir a "reali-

zação" de suas singulares características nacionais. O indivi-

dualismo desaparece no plano doméstico, e e transferido para o

internacional, com a nação, transformada em lIindivíduo coleti-

vo" (cf. Dumont, 1971), competindo ferozmente com suas congene-


res.

A auto-realizacão carece funcionar como o mediador perfei

to. Ela transforma o talento específico de cada jogador num ti

po particular de futebol, o futebol-arte, concretizado apenas

no Brasil. Ao mesmo tempo, transmuta o prazer singular que ca-

da jogador experimenta, ao concretizar seu talento, numa explo-zyxwvutsrqp


- de euforia nacionalista, unindo numa linguagem comum contex
sao

tos tão diferentes quanto o do craque festejado e o do anônimo

torcedor, o do clube e o da seleção. Propondo um nítido compr2

misso entre o individualismo e a hierarquia, ela proporciona ao

jogador, na seleção, sensações muito parecidas com as que ele

experimenta cotidianamente, só que agora partilhadas por um sem

número de torcedores, expandidas até os limites da nação. A au

to-realização, neste contexto, em vez de separar e diferenciar

o jogador de seus pares, o transforma em representante destes


2 1 . zyxwvutsr

mesmos pares e das categorias que, agora, - zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWV


sao comuns a todos.

Voltemos. Antes dessa longa digressão sobre a seleção

estava discutindo o projeto dos jogadores, e sugerindo que ele

se dividia em duas dimens~es. A primeira, orientada em função

do cálculo e da riqueza, parecia-me mais ligada a um individua-

lismo quantitativo(4), enquanto a segunda, lidando mais com se~

timentos e emoç~es, aproximava-se de um individualismo de tipo

qualitativo, baseado nas idéias de singularidade e auto-realizazyxwvutsrqponm


--
çao.

Note-se que estas duas dimensões não devem nunca se mistu

raro Assim, as emoções devem predominar dentro do campo, onde

a paixão pelo time e o desejo da vitória devem ter prioridade

sobre qualquer outra coisa:



"Não w né::o sózyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFE
pm ninho;Y""

existe isso" (Nelinho,Placar, n9 496).

Da mesma forma, fora do campo, cuidando de sua carreira ,

"os jc:gadorestem que ver seu lado profissional... ver o fute


bol. cc:moprofissão... não tem problema nenhum de paixão, eu
acho que o jc:gadordeve encarar dessa fonna".

o lado profissional, portanto, opõe-se a paixão, que deve

dominar dentro do campo, onde o dinheiro precisa ser esquecido.

Se as fronteiras entre estas duas dimensões se romperem ,

as consequências serão extremamente perigosas. De um lado,o jQ

gador entrará em campo preocupado, "de cabeça quente", e nunca


(4)..Note-se que os Jogadores acred~tam
. i -.. econom~ca,
que a d ~mensao -... zyxwvutsrqponmlkjih
Ut1'1 '1ta -
rista, do seu projeto seja universalmente compartilhada. "... o dinheiro
ê a mola que movezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
tudo .•• ", e, como tal, igualmente desejado por todas
as pessoas. O que vai diferenciar os jogadores das outras pessoas e,exa
tamente, a possibilidade singular de enriquecimento que o futebol pareCe
oferecer.
22. zyxwvutsr

poderá render de forma apropriada, arriscando-se, inclusive, a

.receber a pecha de "mercenário", acusação mui to comum nestes ca

De outro, o jogador diminuirá radicalmente suas chances


sos.
de riqueza, tornando-se mais um de um grande grupo de jogadores,

que nada conseguiu ganhar com o futebol.

Essa segunda possibilidade, de acordo com· todos os entre-

vistados, engloba a grande maioria dos jogadores de futebol do

país ("mais de 80%"). Estes, normalmente, começam a jogar "ilu

didos" com a possibilidade de jogar num grande clube, ao lado

dos ídolos mais conhecidos. "Atraídos" pelo futebol, eles come

çam a jogar sem qualquer objetivo, sem projeto, sem considerar

nenhuma outra alternativa, como se meramente tr·ansferissem "sua

peladinha" para dentro do clube.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

"Tem muitos aue -iooampor -i


00zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVU
ar , não Levam o futebol como pro
fissão". Eles "esqueceude estudar, esquecem do futuro, so
pensam no :manento,no presente, e começam a gastar tudo o que
ganham, canprando o carro do ano, milhares de roupas, coisas
assim".

Esse jogador corresponde a figura do "esbanjador" de que

falava no início, consumindo por consumir, sem se preocupar mui

to com o que está comprando:

"acaba se endividando,passa a carreira aí nas mãos de agio -


tas, gerente de banco e, o que é pior, acaba tornandodinheiro
anprestado de dirigente, ccmo esse Vicente Mateus".

Quando a carreira chega ao fim, termina-se sem ter conse-

guido juntar nenhum capital, e, por nao ter estudado, inteira -

mente despreparado para a vida futura.


2 3 . zyxwvutsr

- zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTS
"Hoje em dia quem nao tan diplana nao tem nada".

Acaba praticamente como um indigente, dependendo do favor

dos orgaos de assistência, ou então

"entra naquela fase do jogador pedindo pelo amor de Deus, por


ai... precisando pedir dinheiro as pessoas, esses jogos beD2-
ficentes,que eu acho a ooisa mais ridÍcula do mundo...".

Esse tipo de jogador vai representar o oposto de tudo o

que os meus entrevistados parecem valorizar. Entram na carrei-

ra inconscientemente, sem projeto e, consequentemente, não a

tratam como profissão, não pensam no futuro, não estudam nem

"aplicam" o que ganham, muito pelo contrário. A profissão de

jogador, para ele, ê uma fantasia de fama e fortuna ilimitadas

(cf. Schutz, 1962), sem que seja necessário dispender muito es-

forço para consegui-Ia.

Enquanto os jogadores que estudei mais de perto preocupa-

vam-se em investir ao máximo o dinheiro que ganhavam, pretende~

do conquistar sua independência financeira com o futebol, os"es

banjadores" entravam no futebol atraídos pelo seu aspecto" ca-

rismático" (os ídolos, os grandes clubes, etc.), atravessavam a

carreira endividados, e iam acabar dependendo da caridade pUbli

ca ou privada, seguindo uma trajetória que, em vez de perseguir

a independência, apenas reafirmava uma hierarquização iniciaX5).

(5)..- .
Estes Jogadores estao sempre englobados por uma outra flgura: entram no
futebol "vidrados" nos seus grandes Idolos e clubes, sem se colocar qual
quer outra alternativa, sem escolha, sem projeto. Pretendiam apenas jo-
gar ao lado de "fulano" ou "sicrano", ou "defender as cores" dedetermi-
nado clube. Dominados por essa ilusão, acreditando piamente que iam con
seguir o mesmo sucesso dos grandes jogadores, eles esbanjam tudo o que
ganham e passam às mãos dos agiotas, endividam-se, ate que, ao terminar
a carreira, são praticamente transferidos para os "cuidados" paternalis-
ta1 dos órgãos ele assistência. Como se ve, nunca houve escolha, cons
e uma carreira feita ã sobra da hierarquia.
ciencia, ou autonomia -zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
24. zyxwvutsrq

Como se explica que a grande maioria dos jogadores esteja

mais perto desta figura do que da apresentada pelos meus entre-

vistados? Para estes, a resposta a esta pergunta mobiliza três

explicaç~es diferentes, embora combinadas. Em primeiro lugar ,

acentuam a extrema ignorância da maior parte dos jogadores,que,

vindos das camadas mais baixas da sociedade, nao tiveram chance

de estudar. Sem estudo, eles não adquirem consciência, não "a-

brem os olhos", e nao conseguem se libertar da ilusão inicial

que os levou ao futebol.

Al~m disso, ~ necess&rio que se leve em conta a idade na

qual a maioria dos jogadores exerce a sua profissão:

"todas as carreiras do mundo, você entra no auge quando vocezyxwvuts


adquí.re urnamaturidade, a partir dos trinta anos, quando vo-
cê já sabe o que fazer, j& conhece a vida... em qualquer em -zyxwvuts
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK
'-..L '--.L J . •....'- - I zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTS
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
.L . .,_ . ," _ -,

J.ltc...L...L':::> zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPO
'V"'o,~"""-' ••. ...-_.:::::..::::. •••.•.. _--.~ L_
r------' -- '-"'-"'::;J "--~Lt u c::: W -..L J.l!......ct C U IU ;::l ••• lld IlOSSd

profí.ssao, futebol, você tem que ter urnamaturidade na epoca


em que você não ~ maduro, dos dezoito aos vinte e oito anos
.... em todas as outras profissões,você com vinte e cinco a-
nos, faz as maiores besteiras e não te prejudica pro futuro ,
voce nem saiu de casa, muitas \lezes,e no futebol com vinte
e cinco anos você faz as suas besteiras te prejudica pro futu
ro, pois você não vai guardar dinheiro, etc.".

Os jogadores, portanto, são submetidos a um amadurecimen-

to forçado, obrigados a se tornarem adultos "responsáveis", que

conhecem a vida e seus mist~rios, numa idade .em que deveriam e~

tar em casa, protegidos e englobados pelas famílias. Mesmo que

estivessem empregados, a sua relação com o mundo da rua deveria

se pautar por uma certa inconsequência (as "besteiras" ... ), pri

vilegiando mais a festa que o trabalho. (cf. Matta, 1979). ~


25.

exatamente porque muitos jogadores agem dessa maneira, repelin-

do aquele amadurecimento precoce, que a idade dos jogadores e

um fator tao importante para explicar o seu comportamento pouco

"racional".

Finalmente, e preciso observar que essa imaturidade e

agravada pelo fato de que grande parte dos jogadores origina-se

do interior, tendo sido criados em cidades pequenas, acostuma-

dos com o ritmo calmo e simples de sua vida. Mudando-se para

os jogadores são colhidos de surpresa


as grandes· cidadeszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ
I pelo

seu ritmo extremamente rápido, suas grandes e contínuas trans -

formações, e pelo estilo altamente sofisticado da vida urbana

(cf. Simmel, 1973). Muitos não sabem enfrentar esta súbitatrans

formação e ficam "deslumbrados", diminuindo consideravelmente

suas chances de aproveitar a profissão de jogador, corno Picolé,

do Palmeiras (Placar, n9 482):

"Eu erazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFE
im cara ingênuo, recém-chegadode uma cidadezinha do

interior para a grande são Paulo. Não conhecia nada de nada.


caí fime na gandaia. Toda noite estava nas buates. No dia
segUinte, não tinha a menor condição de treinar".

Se juntarmos a essa ingenuidade os "efeitos combinados da

ignorância e da imaturidade, teremos urna explicaçao, segundo a

ótica dos entrevistados, para o grande número de jogadores que

parece estar extremamente distante do projeto individualistapor

eles apresentado.

Este projeto, inversamente, vai privilegiar, no seu lado

mais utilitarista e menos emocional, o estudo, a maturidade e

um certo cosmopolitismo, qualidades necessárias a quem pretende


26. zyxwvuts

"enfrentar" â cata de riqueza.


o mundo,zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Note-se, para finali -

zar, que apesar de toda ênfase com que este lado racional e cal

culista me foi apresentado, esta ênfase não foi capaz de enco -

brir a dimensão emocional; que tamb~m participa, embora de for-

ma diferente, deste mesmo projeto. De certa forma, por mais

que se falasse no útil, ele aparecia sempre junto com o agradá-

vel, por mais que se privilegiasse o cálculo, ele sempre se mis

turava um pouco com o prazer.


Capítulo 11
Arte e O fício
2 8 . zyxwvuts

~1inha maior preocupaçao, no capitulo anterior, foi a de

tentar definir e isolar, no discurso dos jogadores, o que procE

rei caracterizar como sendo um projeto individualista. Este

projetor que parece incluir tanto a vertente"quantitativa"quan-

to a "qualitativa" do individualismo, vai dar conta das razoes

que levaram meus entrevistados a escolher o futebol como profi.§.zyxwv


-
sao. Ele fazr inclusive, com que estes se diferenciem dos ou-

tros jogadores, que são acusados de terem entrado "cegamente"no

futebolzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r sem qualquer cálculo das vantagens que a carreira pode

ria trazer, sem qualquer projeto.

Discutidas as razões que levarem os entrevistados a sua

opção profissional, meu interesse básicor neste segundo capitu-


-
.LO,
.. -
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
. . ..•

L e l!L -c t.L
,.

COIl:::5.L:::5L-..L.Ld e lll zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ


" -.1 U C lJ -> = :> 0 .'::>
U t::;::;::'I"...:U J ....}L ..L .L
.-:1 _ ~ " ti , .! _ ., _

'-:1U U ..L .J....~ \....l> ...A '--o.J

um jogador deverá possuir para que tenha condições de alcançar

o "sucesso" na sua carreira.

Ao perguntar sobre essas "qualidades", recebi uma série

enorme e muito variada de respostas. Parece-mezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONM


r contudo que

elas podem ser inicialmente resumidas na. categórica afirmação

de um dos entrevistados, que garantia que o futebol

"é 50% talento e 50% personalidade".

Note-se que ele não estava se referindo apenas a si próprio, ex

primindo uma "receita" pessoal de sucesso. Ao contrário, esta

fórmula parece apontar para um quadro de representações que a-

tinge a todos os jogadores, definindo caracteristicas indispen-

sáveis para o êxito na profissão.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTS


t , de certa maneira, do apro
29. zyxwvuts

fundamento e da especificação destas categorias de que trata es

te capítulo.

Vamos ver primeiro o talento. Ele se refere, numa aproxi

mação inicial, a uma habilidade específica, um talento espe-

cial, o de se jogar futebol. Esta habilidade, como foi visto

no primeiro capítulo, vai estabelecer uma primeira diferencia -

ção entre aqueles que sabem jogar futebol a nível profissional

e os que não sabem. Assim, todo jogador de futebol tem algum

talento, ou não estaria atuando profissionalmente. Entretanto,

num segundo momento, o talento vai introduzir uma diferenciação


.•. .
entre estes mesmos jogadores, pois, se todos possuem umzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPO
mlnlmo

de criatividade, existem aqueles que parecem dispor de um tale~

to especial para o futebol; os grandes craques; as "estrelas".

Estas estrelas, segundo meus entrevistados, devem ser ab-

So~ut~1ente distinguidas dos outros jogadores, que, por oposi-

ção, são classificados como "coadjuvantes":

"sempre que eu falo em jogador de futebol, falo, raciocinando


em termos de jogador de time médio, a rrédiados jogadores,
qualquer assunto de futebol, se eu falar pensando no Zico não
vou falar a realidade, não vou fazér nada real, porque Zico
é fora de série, Zico, Rivelino, Marinho etc".

Eles ganham muito mais dinheiro que os outros jogadores,

tornam-se famosos, extremamente conhecidos, até reverenciados,

são tratados com muito mais consideração pela torcida, pelaim-

prensa, pelos dirigentes (I) , chegando até a estabelecer rela-zyxwvutsr

ê
(l)Um dos meus entrevistados foi comprado por grande clube do Rio na mesmazyxwvutsrqpon
poca em que uma das maiores estrelas do nosso futebol também se transfe -=
ria para lã, e mostrou-se extremamente impressionado pelo fato de ter si-
do tratado com a mesma consideração que foi dispensada ao craque.
30. zyxwvutsr

çoes com personalidades altamente situadas fora do mundo do fute

boI ("até o presidente da República ... "). Levam, enfim, uma vi

da inteiramente diferente da "média" dos jogadores, dos "coadju-

vantes",pouco conhecidos e mal pagos, que enfrentam a dura "rea-

lidade" da vida do futebol, seus perigos e seus sacrifícios, re-

cebendo muito pouco em troca.

Dessa forma, o talento funciona como uma espécie de "elas

sificador social" de primeira grandeza no mundo do futebol, divJ:.

dindo os jogadores em grupos distintos e quase opostos, orienta-

dos por categorias muito diferentes. ~ preciso, portanto,' que

alcancemos uma compreensão mais complexa e matizada do talento ,

levantando, através dos depoimentos dos jogadores, algumas das

suas "propriedades" mais importantes.

Ao tentar descobrir essas propriedades, ·nas entrevistas

que realizava, a primeira resposta que invariavelmente recebia

era a de que o talento é um dom, um dom natural, cuja causa, na

verdade, ninguem pode precisar muito bem. Quatró dos entrevista

dos afirmaram inclusive que ele era um dom divino,

"Deus deu o dcxna eles de ser fora de série, pelo talento que
.elestem dentro de campo...",

o que confere, evidentemente, um tom místico a categoria, masnao

elabora muito a explicação das suas origens. Na verdade, o que

se pode afirmar com certeza e que o talento é um dom inato '. que

nasce com o jogador, "ou se tem ou nao se tem", podendo, portan-

to, ser aperfeiçoado, mas nunca ensinado.

Como disse um dos entrevistados:


31.

"o grande jogador já nasce com aquele negócio, porque se nao


nascesse, eu te dou um exerrploe pronto, mata a charada, se
não fosse isso, esse dom natural, todo mundo ia querer ser jQ
gador de futebol, há tanta gente aí tentando e não consegue,
porque, o que que eu tenho de diferente que eles não possam
ir lá dentro do campo e fazer o que eu faço. Então, o cara
já nasceu com aquele negócio, e vai aprimorando a parte flsi-
ca ...".

Esta citação, um pouco extensa,zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK


tem a vantagem de deixar

bastante claro o caráter congênito, inato, e extremamente raro

de que o talento parece se revestir. Nascendo com o craque,ele

já pode ser percebido quando é uma criança:


este aindazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ

por exemplo, eu vejo que não vai dar, so o


"os meus garotoszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJI
f

menorzinho, os dois primeiros, pra chutar uma bola se escoram


pra não cair, o último chuta com os dois pés can a maior natuzyxwvutsrqponmlkji
,......,.....-l-::: __ .•.......... ......:... --- - - -- --'zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZY
•..•........,............... _ •......•.•.C L ••...•.•.L l \--U .J .\...,.I '-- zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ
.1ltr...:..:....L .V I yue

os dois juntos, já nasceu com aquilo".

Um dom raro, inato, e constante, o talento nao pode ser

ensinado, como também não pode ser recebido ou transmitido,isto

e,

"náo precisa ser filho de peixe pra jogar bem futebol, é inde
é hereditário de forma nenhuma
pendente, nãozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA li •

Em consequência disso, é totalmente imposslvel a formação

de uma nobreza no mundo do futebol, o que fatalmente acontece -

ria se o talento pudesse ser transmitido, inalterado, de uma ge

ração de craques para outra (cf. Simmel, 1971, capo 14). Exis-

tem, naturalmente, excessões à essa regra, como por exemplo a

1
3 2 . zyxwvutsr

"dinastia" dos Da Guia, mas elas parecem apenas confirm~-la,sen

do explicadas pelo acaso, e nunca pela necessidade.

Uma outra característica importante do talento, e a sua

extrema singularidade. Assim, se todas as estrelas diferenciam

se em bloco dos coadjuvantes, cada uma delas vai possuir um ta-

lento específico, uma habilidade singular, inteiramente distin-

ta da dos outros. Essa incomparabilidade dos craques, constan-

temente enfatizada nas entrevistas que dão a imprensa, foi rela

cionada pelos meus entrevistados com o próprio sal~rio que é pa

go no futebol, pois é igualmente singularizado.


estezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCB
"Ê uma

escadinha", cada um recebe um ordenado diferente, variando de

acordo com o seu talento(2) .

Note-se que nao e apenas o salário que vai exprimir o ca-

jogador de futebol também está articulado com essa característi

ca. Em geral, cada jogador tem o que poderíamos chamar de um

nome "artístico", que tanto pode ser seu pré-nome ou sobrenome,

quanto um apelido qualquer. Em todos esses casos, o nome artís

tico será sempre específico, exclusivo, diferenciando seus por-

tadores dos outros jogadores. Se ~ois deles tiverem o mesmo no

me no mesmo time, um deles será imediatamente modificado, troca

do por um diminutivo, por um aumentativo, recebendo o acréscimo

de um número, de outro nome ou apelido, para manter a sua parti

cularidade. Dois jogadores com nomes iguais em times diferen -

(2)
O "b1Cho
. " ~
, entao, -
e uma modalidade de pagamento complementar -
a do salã-
rio, pois funciona como uma remuneraçao coletiva.
3 3 . zyxwvutsr

tes, tem sua distinção sublinhada, por sua vez, pelo nome dos

clubes a que pertencem, que passa a seguir seu nome artísticoco

mo se fosse um sobrenome.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o talento, portanto, ª um dom singular, com o qual alguns

poucos jogadores nascem, indo mantê-lo atª o fim das suas vi-

das. É uma "qualidade" particular de cada craque, diferencian-

do-o inteiramente de qualquer outro jogador. Isso faz com que

me pareça possível afirmar que reencontramos, ao discutir as es

trelas e sua habilidade, o mesmo individualismo qualitativo que

constituía uma das dimensões constitutivas do projeto dos joga-

dores.

Efetivamente, o universo das estrelas parece estar basea-zyxwvutsr

do nffi mesmas idéias de singularidade e diferenciaçao que cons-

tituem o fundamento desse individualismo. A nrónr;;:J r1pfinir-;;;"


,
zyxwv

do talento como um dom natural, raro e inato, impossível de ser

transferido, pelo ensino ou por herança, a qualquer outra pes -

soa, combina-se muito bem com a ênfase numa personalidade extre

mamente original e particular que esse individualismo parece

promover (cf. Simmel, 1950, parte 1, capo 4).

I.~
I
o talento, assim, seria a "qualidade"
lar de cada craque,. e sua livre "realização"
exclusiva e singu -

teria como únicore

sultado o aprofundamento das diferenças entre eles. A liberda-

t de aqui leva à diferenciação e à desigualdade, nunca ao iguali-

talismo.

Não e a toa, portanto, que seja exatamente nesse contexto,

discutindo as estrelas e sua habilidade, que possamos encontrar,

utilizada corriqueiramente por todos,a categoria individualismo.


34. zyxwvuts

Ela vai sublinhar, aqui, o caráter original e exclusivo do ta -

lento de cada craque, revestindo-se, consequentemente de um sen

tido altamente positivo. Ao invés de ser identificada com a

"vaidade" e a "falta de princIpios" (ou de"escrúpulos") , como

usualmente acontece em outras esferas da nossa sociedade (cf.

.MattazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
1 1979, p. 179), o individualismo será articulado com a habi

lidade "fora-de-série" dos nossos maiores estilistas, verdadei-

ros artistas, "genios criadores" que estão destinados ã fama e

a fortuna.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

O talento dessas estrelas, contudo, - e o mesmo


nao em to-

das as partes do campo, não se exprime indiferentemente na defe

sa, no meio do campo, ou no ataque, pois

"o craque é um especialista,se tu colocares um Zico na late -


ral direita, ele vai saber jCXJar,mas nunca tão ben quanto
o cara especialistanaquela função, nem vai fazer as grandes
jogadas que ele faz lá na frente...",

Dessa forma, a definição do talento como uma qualidade sin

gular, diferenciada e diferenciadora, vai fazer com que meus e~

trevistados representem o time de futebol como uma unidade es-

sencialmente "orgânica", onde "todo jogador tem que ter uma fun

ção especIfica para desempenhar", funções basicamente diferen -

tes, embora complementares. Cada jogador, entao, vai se espe-

cializar no desempenho de certas funções, especIficas da posi -


I~

ção, da faixa de terreno em que atua,unico lugar em que sua cria

tividade poderá se "realizar" de forma absoluta. Se for deslo-

cado para outra posição, obrigado ao desempenho de funções fora

da sua especialidade, ele corre o risco de ver seu talento min-

g~ar, reduzindo-o a posição de um mero coadjuvante, um jogador


3 5 . zyxwvut

comum, incapaz de fazer grandes jogadas, de exibir algum talen-

·to invulgar.

Um time implica, portanto, na combinação de talentos mui-

to variados, cada um especializado no desempenho de funções es-

pecíficas. Consequentemente, o "conjunto do time", a associa-

ção das suas diversas individualidades, dos seus v~rios especia

listas, nunca se d~ de forma autom~tica. Exige tempo e muito

treinamento para que os jogadores se conheçam, "harmonizem"suas

singularidadeszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIH
e possam jogar "por música". Mesmo assim, nes-
f

sa visão que estou analisando, por maior que seja a solidarieda

de do time, ela nunca pretenderá "sufocar" o talento originalde

cada jogador. Acontece que esta solidariedade est~ baseada na

divisão do trabalho, na complementariedade de diferentes fun-

ções, tendo protanto, como fundamento e limite, a própria ideia

da eSEecialização do talento. Como dizia, sintéticamente, um

dos entrevistados:

"cadaum na sua, formao conjunto".

Parece-me que é possível encerrar, com estas últimas con-

siderações, o estudo das propriedades constitutivas do talento.

A sua an~lise nos revelou que ele está basicamente referido a

um grupo específico de jogadores, as estrelas, que são seus po~

suidores. Este grupo vai se distinguir nitidamente dos outros

jogadores, os coadjuvantes, que não possuem nenhuma habilidade

especial, e, ao mesmo tempo, vai revelar uma profunda diferen -

ciação interna, já que cada craque concretiza seu talento de

é particular, como se fosse um artista. As estre -


forma únicazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC
, zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
36.

las podem ser classificadas, então, sob o sígno da liberdade e

da diferenciação, do individualismo qualitativo, cuja importân-

cia para os jogadores já foi revelada quando da discussão do

seu projeto, no primeiro capítulo.

Note-se apenas, para finalizar esta discussão, que o indi

vidualismo qualitativo era incluído no projeto dos jogadores a-

través da sua dimensão mais "emocional" , enfatizando a "auto -

realização" e o "prazer" que o jogo de futebol podia proporcio-·

nar. Inversamente, sua utilização para dar conta do talento dos

craques vai lançar mão dos aspectos mais "cognitivos" desse

individualismo, acentuando a singularidade, a diferenciação e

até mesmo a divisão do trabalho. É como se, para usar explici-

tamente as categorias .de Geertz (1978; capo 5), a dimensão emo-

cional, o "et~9s" do individualismo. qualitativo, predominanteno

projeto, fosse compzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA


Lem errt ada por uma ênfase na sua "visão demun

do", mais desenvolvida, pelos meus entrevistados, na explicação

do talento.

Se o talento é discutido a partir da diferença, a person~

lidade, a outra qualidade necessária para o sucesso do jogador,

vai privilegiar exatamente o contrário, a similaridade e o i-

gualitarismo. Assim, pelo menos em tese, todos os jogadores de

verão se encaixar nas características que compoem a personalid~

• de. Tanto Pelé, quanto o mais humilde dos jogadores de um time

pequeno qualquer, deverão obedecer aos preceitos formadores da

personalidade, sob pena de verem seu desempenho prejudicado, e

sua carreira, consequentemente, em perigo.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Has, como poderemos isolar e definir as características


37. zyxwvutsr

que constituem a personalidade "ideallt do jogador? Ao contrá -

rio da discuss~o do talento, quando meus entrevistados respon -

diám de forma categ6rica e extremamente precisa, as questões

que procuravam detalhar a personalidade recebiam respostas mui-

to vagas. Embora tenha discutido bastante com meus entrevista-

dos sobre a personalidade, durante bastante tempo, a única coi-

sa de que tive certeza foi que nossas conversas diziam respei -

to, em primeiro lugar, a um certo número de sentimentos, emzyxwvu


0-

ções como o medo, a coragem e a humildade, que todo jogador de-

veria, ou não, possuir. Algumas eram consideradas absolutamen

te indispensáveis para uma carreira. bem sucedida enquanto a me-

ra presença de outras podia acarretar o fracasso.

Decidi, então, isolar um desses sentimentos, o "abatimen-

to", sobre o qual havia recebido grande número de informações,

e estudar a forma pela qual era empregado, suas causas e conse-

quências, tentando descobrir com que outras emoçoes ele estava

ligado. É exatamente isso o que faremos a seguir.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYX

o abatimento é uma das sensações mais perigosas que um jo

gador pode experimentar. Ele limita e aprisiona o talentoiPois

um jogador nem disposiç~o, nunca terá condições


semzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
ânimo zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r de

exprimir toda a sua criatividade. Assimr

"tem muita gente que jc:gapra caramba, chega dentro de campo,


fica aquele medo de fazer, de arriscar a grande jc:gada, medo
de levar uma vaia, se preocupa se a imprensa vai falar mal,e~
t.áo jc:gauma bola federal mas se abate, náo tem aqueLe deslan
che, aquele Lanpejo",

o abatimento, como se pode verrestá ligado a natureza es-


38. zyxwvuts

sencialmente pública do futebol profissional, que faz com que o

jogador atue sempre levando em conta as esperanças e expectati-

vas de uma platéia sempre exigente, e, às vezes, extremamente

hostil.

Note-se que essa exigência torna-se muito maior quando se

trata de jogar num clube grande, que entra nas disputas "pra g.§.

nhar". Sua torcida geralmente é enorme, e está relativamente

acostumada com a vitória, o que aumenta em muito a "pressão"sQ

bre o jogador. Ele sabe que qualquer falha, mesmo pequena, se-

rã observada com ansiedade por milhares de pessoas. Nesse cli-

ma, urna sequência de mãs atuações, ou urna derrota importante,pQ

de significar sua "crucificação" pela torcida. Ao contrário

nos times pequenos e médios, este perigo parece menor, pois a

torcida, em princípio, parece estar mais acostumada cOm os re

sultados adversos, enfrenta a derrota com mais resignação. Ela

tem "a esperança, mas não a expectativa da vitória", como diz

Gluckman (1959)zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGF
f o que permite mais tranquilidade e menos poss!

bilidade de crítica e abatimento para o jogador. Este torcedor

pode, e verdade, ã uma derrota com certo sarcasmo, util!


reagirzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

zando o cinismo e a ironia para expressar sua insatisfação, mas

raramente chegando ao limite da perseguição pessoal e da violên


i
II cia, como fazem as torcidas dos grandes times.

É provavelmente por isso que

"às vezes, pinça um jogador do são Cristóvão, pequeno clube ,


traz pro Flamengo, o cara sabe que pode se tornar um craque
lá, mas só pelo simples fato de botar a camisa do Flamengo,e~
frentar a torcida diariamente,a imprensa, e coisa e tall ozyxwvuts

l
38. zyxwvuts

sencialmente pfiblica do futebol profissional, que faz com que o

jogador atue sempre levando em conta as esperanças e expectati-

vas de uma platéia sempre exigente, e, as vezes, extremamente

hostil.

Note-se que essa exigência torna-se muito maior quando se

trata de jogar num clube grande, que entra nas disputas "pra g~

nhar" . Sua torcida geralmente é enorme, e est~ relativamente

acostumada com a vitória, o que aumenta em muito a "pressão"sQ

bre o jogador. Ele sabe que qualquer falha, mesmo pequena, se-

ra observada com ansiedade por milhares de pessoas. Nesse cli-

ma, urna sequência de mas atuações, ou urna derrota importante,pQ

de significar sua "crucificação" pela torcida. Ao contr~rio

nos times pequenos e médios, este perigo parece menor, pois a

torcida, em princIpio, parece estar mais acostumada com os re

sultados adversos, enfrenta a derrota com mais resignação. Ela

tem liaesperança, mas não a expectativa da vitória", corno diz

Gluckman (1959)zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r O que permite mais tranquilidade e menos possi

bilidade de crItica e abatimento para o jogador. Este torcedor

pode, e verdade, ã urna derrota com certo sarcasmo, utili


reagirzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

zando o cinismo e a ironia para expressar sua insatisfação, mas

raramente chegando ao limite da perseguição pessoal e da violên

cia, corno fazem as torcidas dos grandes times.

É provavelmente por isso quezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGF

"às vezes, pinça um jogador do são Cristóvão, pequeno clube ,


traz pro Flamengo, o cara sabe que pode se tornar um craque
Lâ, mas só pelo simples fato de botar a camisa do Flamengo,e~
frentar a torcida diariamente,a imprensa, e coisa e tal, o
39.

- zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
cara se apaga, nao e o mesmo jogador, e o que eu lhe disse
falta de personalidade".

Gostaria de salientar que pude observar, durante a reali-

zação da pesquisa, a grande tensão emocional que marca a rela -

ção da torcida com os jogadores. Assisti, na epoca, a vários

treinos do Flamengo, muitos deles antes de jogos decisivosfqua~

do o time disputava o bicampeonato estadual (segundo semestredezyxwvutsrqp

1978) . Havia um certo clima de festa durante os treinamentos ,

muitas brincadeiras, dirigentes do clube apareciam vestidos de

I' "macacão", fingindo que iam entrar em campo com os jogadores e

, : um numero enorme de crianças gritava e corria pedindo autógra -

fos.

Entretanto, ao lado disso, era possível se perceber uma

alguns jogadores marcados pela torcida, eram vaiados sempre que

faziam qualquer jogada errada, e um deles era apupado assim que

encostava o pé na bola. Dois dos preparadores físicos do clube,

quando isso acontecia, dirigiam-se à torcida pedindo calma,"coQ

peração", mas sem muito sucesso. Depois de mais ou menos meia

hora de treino, esse jogador especialmente marcado pela torcida

deixou o campo, e veio conversar com um dos preparadores físi -

cos e com o médico, perto do alambrado. Nesse momento, um se-

nhor e dois garotos desceram da arquibancada, encostaram-se no


I

alambrado, e começaram a gritar:


I.
,

"tira esse crioulo"zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWV


"tira esse viado" "não joga nada", fItá
I I

bichado", "vai nos enterrar".

li
!~
I zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

1 zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
1
1
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA 40.

o zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
preparador e o médico imediatamente afastaram o jogador dali,

ao mesmo tempo que respondiam aos torcedores, gritando que esta

vam trabalhando, que o que faziam era coisa séria, etc. O jog~

dor, por sua vez, retirou~se lentamente de volta ao campo, sem

esboçar a menor reação aos ataques recebidos. Apenas olhouAuas

ou três vezes, na direção dos torcedores, e foi ,embora, sem di-

zer nada e de cabeça baixa (símbolo do abatimento).

Por outro lado, assisti também aos treinamentos do Améri-

ca onde pude observar emoções muito diferentes. O América, úni

co time carioca a ser classificado como "médio" pelos meus en

trevistados, não ganha um título de importância desde 1960, e

sua torcida, pelo menos na epoca em que estive lá, parecia es-

tar relativamente acostumada com essa situação.

Num dos treinos que' observei 1 sentei-me 'ao lado de um gru

po de torcedores do clube, que conversavam sobre o time ao mes-

mo tempo em que assistiillu aos exercícios técnicos e táticos que

os jogadores realizavam no campo. Suas reações eram o exemplo

perfeito daquela mistura de resignação, por um lado, e cinismo


~:
e ironia, por outro, que, segundo Gluckman (1959), vai caracte-

rizar os mais desesperançados torcedores. Cada vez que um joga

dor dava um belo chute, ou evidenciava bom controle de bola, aI

guns dos torcedores comentavam:

"Esse a í, logo Loqo, vai sair do .América,jOJador bom, aqui


nunca fica muito tempo, lembra do Ivo? Agora tá abafando no
Palmeiras",

ou então,
41.

CO nD é ban aquele garotofzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZ


"olha sozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
vai pra seleção juvenil, é
muito rre Ihor'que aquela besta do , mas aqui não vai ser es-
calado nunca, vai acabar vendido é, isso aqui não tem mais
jeito não",

observações que eram acompanhadas por comentários sarcásticos e

risadas meio desanimadas. Como se vê, nesse ambiente, o abati-

mento parece deixar de assombrar os jogadores, transferindo -se

inteiramente para a torcida.

Mas não é simplesmente em função da sua relação com ator

cida que o jogador poderá abater-se, entregar-se ao desânimo, e

prejudicar seu futebol. A interação com a imprensa também é ex

tremamente complexa e delicada, constituindo-se €m fonte de in-

timidação e abatimento para o jogador. o primeiro problema re-

side no fato de que

"o futebol, infelizmente,ele depende muito promocionalmente,


depende do qJe determinados jornalistasque{ muitas vezes,nao
conhecem futebol, falam. Por exemplo:un jogador acaba cem

o jogo, joga pra caramba, e un canentaristadiz que ele nao


jogou nada, então, o sucesso está muito ligado ca~ pessoas ex
tra-campo".

A imprensa, dessa forma aparece como uma figura profunda-

mente ambígua e perigosa, já que, de certa forma, ela desafia e

até mesmo apaga algumas das fronteiras do mundo do futebol. Si

tuada nos seus limites, ao mesmo tempo dentro e fora dele, a im

prensa tem a capacidade de "reinventar" um jogo ou um desempe-

nho individual, destruindo uma performance brilhante, ou produ-

zindo um craque do nada, maculando, assim,a "pureza" do mundo


42. zyxwvutsr

do futebol e de suas regras (cf. Douglas, 1976). Ela se consti

tui, portanto, numa entidade extremamente poderosa, pois essa

sua capacidade de "recriação"'possui uma força praticamente in-

controlável, já que sua origem está situada "extra-campo", fora

do futebol.

Não é a toa, então, que vários dos entrevistados afirma-

ram que tentavam manter boas relações com a imprensa:

"Afinal, tem muito ban jogador que teve sua carreira prejudi-
cada porque, as vezes, nao se entendia direito com os repor+e
resr eu não, eu não rre importo muito com eles não, mas trato
bem';
.

é que muitos se importam.


Ora, o problemazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Lidando com u-

ma figura tão poderosa quanto a imprensa; que media sua relação

com o público com uma força raramente controlável, fica muitodi

fícil, para o jogador, não se interessar, nem se abater com as

críticas que recebe da imprensa. Assim,

"o jogador leva essas críticas para dentro de campo, se -


nao
tiver una -personalidade
marcante, caneça a ficar "encucado" ,
vai ter una enorme dificuldade,vai passar a semana . inteira
."cabrero",vai sofrer uma série de·coisas".

Dois dos meus entrevistados, inclusive, salientaram o ca-

so de um jogador da seleção brasileira, que mantém um álbum de

recortes com todas as críticas negativas que recebe. Extrema -

mente sensível, toda vez que recebe um ataque mais forte fica

profundamente abatido, e chega a anunciar, às vezes, que vai

abandonar o futebol.

O abatimento, portanto, constitui-se numa emoção extrema-

i zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
,
I zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
43. zyxwvutsr

mente destrutiva e poderosa. Corno, então, deve ser enfrentado?

Segundo os depoimentos que recolhi, a única maneira dele sercon

trolado e através de urna categoria bastante específica, a auto-

crítica. Dessa forma, o jogador deve "estar preparado" para re

ceber as críticas atráves da sua

"auto-crítica,uma auto-análise,pra ele mesmo se julgar e


saber se j~ou mal ou bem, não se deixando influenciarpelo o
que os outros dizem, e sim por aquilo que acha que pode e de-
ve produzir dentro de carrpo".

A auto-crí tica, urna categoria que se refere ã análise con.§.

ciente e racional das próprias é, portanto, a u-


possibilidadeszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ

nica forma de se controlar o abatimento e os males que ele pode

trazer. Tanto as pressões da torcida, quanto as críticas da im

prensa, podem ser superadas, desde que o jogador confie basica-

mente no seu próprio juízo. Este juízo vai estabelecer llinaes-

pécie de "barreira" entre as entidades extra-campo e os jogado-

res, impedindo o desenvolvimento de sentimentos perigosos, como

o abatimento.

Entretanto, e preciso notar que este privilégio da razão,

no discurso dos meus entrevistados, - vai se opor,


nao de forma

absoluta, às emoções. Se, por um lado, a auto-crítica, a análi

se equilibrada e consciente do próprio desempenho deve ser usa-

da para combater e afastar o abatimento, por outro, existem se!!

timentos opostos, como a confiança, altamente valorizado por tQ

dos com quem conversei. A auto-confiança é o contrário do aba-

timento, faz com que se tenha coragem de arriscar, de tentar fa

zer uma jogada mais ousada, permite "aquele deslanche" , necessa


44. zyxwvutsrq

rio para o "desabrochar" do talento. Ao invés de limitar, ele

abre caminho para a livre realização da criatividade, tornando-

se uma emoção altamente positiva e praticamente indispensávelao

jogador.

Até aqui, nesta tentativa de ordenar as informações sobre

a personalidade do jogador, pudemos levantar do"is sentimentos

conflitantes, o abatimento e a confiança, e uma categoria, a au

to-critica, capaz de controlar o primeiro e possibilitar o se -

gundo.

Esta tentativa, contudo, precisa ser mais estendida, pois

a confiança, embora ocupando um lugar praticamente insubstituí-

vel na personalidade ideal dos jogadores, pode se tornar uma e-

moção extremamente perigosa. Isso acontece porque o excesso de

auto-confiança, a crença exagerada nas próprias possih;lirl~rlo~,

vai, fatalmentezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r levar o jogador a se mascarar. A máscara, porzyxwvuts
-
tanto, vai esconder,no seu interior, emoçoes cujo ponto de par-

tida está situado na auto-confiança, emoçoes tão destrutivas e

perigosas quanto o abatimento.

o jogador mascarado é

"um convencido, um esnobe, que gosta de se gabar daquilo que


ele tem no momento, posição, manchete nos jornais, acha que é
o tal, que superou em tudo os outros".

Este jogador, no qual a auto-crítica e o auto-controle d~

sapareceram, e a confiança degenerou em "convencimento", terá'

sua carreira seriamente ameaçada pelas atitudes que termina por

adotar, sendo prejudicado por sua máscara em contextos e situa


45. zyxwvutsrqpon

~ zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
çoes bastante diferentes.

Em primeiro lugar, sua relação com os seus próprios comp~

nheiros de time, será, logicamente, muito abalada. Querendd' ser

o tal", achando que "superou em tudo os outros",'o mascarado a-

fasta-se decisivamente dos outros jogadores ao procurar enfati-

zar a sua pretensa superioridade. É evidente, pelo que foi di-

to durante a discussão do talento, que existe pelo menos uma

grande diferença plenamente assumida e aceita pelos jogadores ,

a que separa as estrelas dos coadjuvantes. Entretanto, parecezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZ


-,
ser uma "regra de ouro" do mundo do futebol o fato de que esta

diferenciação não pode, de maneira nenhuma, ser explicitada ou

concretizada entre os próprios jogadores. Assim, nos momentos

em que estão reunidos, nos treinamentos, na concentração, e du-

rante o jogo, nenhuma estrela tem direito a qualquer regalia, a

qualquer tratamento especial em relação a seus companheiros.

É isso, provavelmente, que explica o ambiente de extrema

descontração e alegria que parece predominar na interação dos

jogadores. Durante toda a pesquisa ouvi dizer, e algumas ve-

zes pude observar, que o relacionamento entre os jogadores era

marcado pela "brincadeira", pela "sacanagem", todos brincando

igualmente com todos durante a maior parte do tempo que passam

junto. Como no carnaval, utiliza-se a brincadeira, o "joking",

para diminuir as distâncias e reunir o que está separado, promQ


,
vendo-se a aproximação e a "camaradagem" entre jogadores que

podem estar situados em posiç6es muito diferentes (cf. Matta,

1979, p . 63). Esta "regra dezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA


ouro", ~ a primeira que o mascara

do vai quebrar.
46. zyxwvutsrqp

Na verdade, em função do seu convencimento e da sua pre -zyxwvutsrq


-
sunçao, o mascarado vai desafiar esta igualdade contextual em
~ zyxwvutsrq
situações e lugares muito diferentes, entre os quais, no pro-

prio preparo flsico. Assim, ele normalmente vai "relaxar" na

sua preparação, acreditando ingenuamente, segundo meus entrevis

tados, que seu talento ~ tão grande que ele pode se preocupar

menos em cuidar do corpo. Ledo engano, pois ele rapidamentepe~

derá sua forma e seu futebol irá render muito menos.

o seu procedimento durante o jogo será praticamente o

mesmo, mas, aqui, os "equI vocos li de um jogador dominado pela más

cara terão uma repercussão muito maior, pois poderao prejudicar

o time como um todo. Dentro de campo, o mascarado pretente "jQ

gar sozinho", fazer jogadas de efeito, que deixem absolutamente

claro aos olhos de todos, especialmente aos da plat~ia a sua ab

soluta singularidade e superioridade em relação aos outros jog~

dores (cf. Vogel, 1977, e Soares, 1979).

"Exibindo-se", enfatizando sua relação com a torcida, o

mascarado vai incorrer num duplo esquecimento: deixa de lado

seus companheiros de time e, o que pode ser mais grave, seus

pr6prios adversários.

Esquecendo-se de seus companheiros, o mascarado vai "abu-

sar do individualismo", insistindo em realizar, sozinho, joga -

das que normalmente exigem a colaboração dos outros jogadores,e


,
chegando até mesmo a "invadir" posições que nao são suas, "embQ

lando" o time, e prejudicando sensivelmente o seu rendimento

Sua "avid~", portanto, desconhece os limites que a especializ~

çao e a diviião do trabalho impõem aos jogadores dentro de cam-


47. zyxwvutsrq

po, subvertendo inteiramente o princípio da complementariedade

das funções, tão caro aos meus entrevistados. "Jogando sozi-

nho", ele se torna uma "peça nula", pois não consegue realizarzyxwvutsrqpon

as tarefas - especificamente
que lhe sao exigidas, e acaba tornag

do mais difícil a concretização das funções dos outros jogado

res.

Os problemas que o mascarado provoca, entretanto, podem

ser ainda maiores, pois ele chega a deixar de lado, a desconsi-

derarzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r a existência efetiva dos seus próprios adversários. Fa-

zendo isso, ele desrespeita um princípio básico do futebol, pr2

fissional ou não, que é o fato dele, por ser mesmo um jogo, im-

plicar fundamentalmente na idéia de competição, de "concurso en

tre iguais", como diz Matta (1979, p. 115); pelo m e no s , entre

iguais em potencial. Note-se que esta competição é ainda mais

acentuada pelo fato do futebol enfatizar o confronto direto en-

tre os oponentes.

Como toda a competição, o futebol baseia-se na "performan

ce", no "desempenho" dos atletas, uma entidade raramente contro

lável, e praticamente imprevisível. Por causa disso, a realiz~


- do talento
çao de todo jogador, mesmo dos maiores craques, deve

vir sempre acompanhada de uma certa contençaor de um certo con-

trole. A criatividade individual não deve nunca esquecer que


~
o objetivo principal e a vitória na competição e, para isso, e

essencial que não se perca de vista a imprevisibilidade do de-

sempenho do adversário, pois nunca se pode ter certeza do que

ele tem condições de fazer. Dessa forma, o talento deve ser

usado com o máximo de controle, de disciplina, não se deve nun-


48. zyxwvutsr

ca tentar dar um drible a mais, um "toque" desnecessário, ou

arriscar uma jogada mais difícil quando se pode conseguir o mes

mo resultado com uma mais fâcil. O futebol ent~o, deve sempre

ser jogado de maneira ~imples e râpida (cf. Gluckman, 1959, p.zyxwvutsrq

3) I j2i quezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
riao se deve "facilitar" í .o .
nunca com o adve r s â.r Es-

te precisa ser tratado sempre como um igual, pois, no futebol I

tentar demonstrar superioridade pode ser uma forma ingênua de

oferecer vantagem ao oponente.

~ exatamente esta vantagem que o mascarado oferece. "FIo

reando" as jogadas, procurando sempre resolver os lances da fo.!:.

ma mais requintada e difícil, ele procura demonstrar e enfati -

zar sua superioridade sobre o adversário exatamente atrav~s das

vantagens que oferece. ~ como se ele pudesse controlar, de for

ma absoluta, o seu desempenho e o do seu adversârio, e, sabendo

que a sua "categoria" irâ sempre se impor, pudesse, então, tran

quilamente exibir o seu talento, a sua posiçao de estrela, de

"cobra", enfim, de um verdadeiro "medalhão" do futebol, algu~m

que jâ "transcendeu as regras que constrangem as pessoas co-

muns dessa esfera social" (cf. Matta, 1979, p. 159), e que pro-

voca sempre respeito e temor nos seus adversários.

É interessante notar que, em outras esferas da nossa so -

ciedade, a mâscara ~ usada precisamente para condenar o proced~

mento das pessoas que, sem terem poder ou condições para tanto,

resolvem se comportar como se fossem' "medalhões" (cf. Ma tta

1979, p. 147). são aqueles que perdem o sentido da sua origem,

e da sua posição social e, ocupando o lugar de "pessoas de pre.§.

tígio", chegam at~ a utili zar o ritual do "você sabe com que es
49. zyxwvutsrq

tá falando?", mas, de forma vazia e potencialmente arriscada

pois n~o tem como confirm~-lo. Ora, no futebol, ~ém tem

condições de utilizar o "você sabe com que está falando?",pois,

dentro do campo, é o desempenho, e n~o a posição social dos jo-

gadores, que vai determinar o resultado do seu confronto. Nãozyxwvutsrqp


~
e por acaso, portanto, que o jogador que adota -este tipo de ati
~
tude, exagerando irrefletidamente a sua auto-confiança, sera

classificado como esnobe, pernóstico, em uma palavra, mascarado.

De que forma, então, é possivel impedir esta degenera -

çao da confiança?

Atraves, precisamente, da enfatizaç~o daquele controle,da

quela contenção que o uso da máscara implica em desafiar. Lem-

bre-mo-nos que, para controlar o abatimento e promover a confia.!:!:

ça, os jogadores devem lançar mao de um recurso de carater cog-

nitivo, a auto-critica. Da mesma maneira, para conter a con-

fiança em limites aceitáveis, e impedir o aparecimento da masca

ra, deve-se empregar uma outra categoria, a auto-disciplina.zyxwvutsrqponmlkjih

o jogador precisa,entao, fortalecer de todas as maneiras

o seu auto-controle, ter o m~ximo de confiança em si mesmo, mas

tomando todo o cuidado para evitar que esta auto-confiança o l~

ve a pretender humilhar seus advers~rios, assumindo uma postura

hier~rquica num contexto em que ela não é permetida. Na verda-

de, se a auto-disciplina tiver sucesso em controlar a confiança,

a personalidade ideal do jogador será marcada por um quarto se.!:!:

timento, a humildade. Esta vai, exatamente, implicar no privi-

légio de todos os valores negados pela máscara, constituindo

juntamentezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
cbm a auto-confiança, uma dupla de sentimentos alta-
50. zyxwvutsr

mente valorizada pelos jogadores. Em função da humildade, por

mais auto-confiança que tenha em seu talento, o jogador irá sem

pre tratar seus companheiros e adversários como iguais, respei-

tando as variações e a imprevisibilidade, as surpresas que o de

sempenho pode encerrar.

A personalidade do jogador, pelo menos no que diz respei-

to as suas emoçoes, já está, de certa forma, esboçada: temos

quatro sentimentos, o abatimento, a humildade, a confiança e a

mascara. O primeiro coloca o jogador excessivamente "por bai-

xo", enquanto que o último o deixa excessivamente "por cima"

Ambos precisam ser controlados e corrigidos por duas categorias

estreitamente relacionadas, baseadas na id6ia de contenção, de

controle, a auto-crítica e a auto-disciplina. Os dois sentimen

tos do meio, a humildade e a confiança, são, por sua vez, extre

mamente valorlzados, constituindo parte indispensavel da perso-

nalidade de todo jogador.

~ evidente que nem todos os jogadores possuem a mesma

"quantidadezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
de humildade e de confiança.
11 Existem jogadores que
.-
sao muito mais confiantes que humildes,e vice-versa. Entretan-

to, mesmo o mais confiante dos jogadores irá enfrentar situa

ções onde um mínimo de humildade 6 exigido, bem como jogadores

muito humildes terão sempre que dispor, em alguns contextos, de

uma certa quantidade de confiança. ~ exatamente para manter as

emoções no interior destes limites, evitando o seu "exagero"

que a auto-disciplina e auto-critica são tão importantes.

Note-se, para finalizar este desenvolvimento, que a persQ

nalidade ideal do jogador não é simplesmente a "média" resul -


5 1 . zyxwvutsr

tante da combinação, em partes desiguais, da confiança e dazyxwvutsrqpon


hu-

mildade. é apenas uma situação de fato, que, entretanto,


EstazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

precisa ser aperfeiçoada, pois, segundo meus entrevistados, o

desempenho de todo jogador melhorará de forma acentuada quando

ele puder experimentar, ao mesmo tempo, o máximo de confiançaem

si próprio e o máximo de humildade. É lógico, que esta exigên-

cia só faz aumentar a importância do auto-controle em relação

a este "sistema de emoções" que acabamos de apresentar, pois,se

ela se concretizar, o risco dos sentimentos positivos degenera-

rem em negativos, será, evidentemente, muito maior.

Esta categoria, o auto-controle, parece efetivamente de-

sempenhar um papel extremamente importante na construção da per

sonalidade do jogador. Ela pode, inclusive, ser empregada para

nos ajudar a compreender ·um outro conjunto de·sentimentos, que

tambem faz parte dos depoimentos que colhi, embora de forma mui

to menos enfática.

Este segundo conjunto pode ser montado a partir da categQ

ria raça. Ela parece ser tão importante quanto a confiança e a

humildade, pois remete a cota de "paixão" que todo jogador tem

que ter para perseguir a vitória num jogá tão competitivo quan-

to o futebol. Note-se, contudo, que esta paixão não se confun-

de com o "amor à camisa", com a "devoção" pelo clube, que pare-

ce caracterizar os dirigentes e a torcida. A raça implica numa

visão mais ampla da paixão, pois à disposição que to-


se referezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPO

do jogador precisa ter para lutar o máximo possível pela vitó -

ria das suas "cores", quaisquer que elas sejam.

O jogador "raçudo", portanto, é aquele que se destaca pe-


52. zyxwvutsrq

Ia extrema dedicação com que se entrega ao cumprimento de suas

funçoes, atingindo, algumas vezes, o limite é o ca


do heroismo:zyxwvutsrqponmlkjihgfed

so, por exemplo, de jogadore~ que continuam em campo, quando ne

cessário, mesmo estando seriamente contundidos, arriscando sua

"forma" e, ocasionalmente, até mesmo sua carreira, para garan -

tir um bom resultado ao seu time. Mais cotidianamente, a raça

está ligada também a coragem necessária para se enfrentar as

disputas corporais com os adversários, de entrar "nas bolas di-

vididas", correndo o risco de se quebrar a perna, mas sem "fu-

gir da raia".zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

É exatamente a partir deste ponto que a raça corre o ris-

co de se tornar uma emoção perigosa, pois pode se transformar

em viol~ncia. Segundo meus entrevistados, a viol~ncia e os sen-

timentos a ela associados, como a raiva e o desesperozyxwvutsrqponm


podem ser
I

eXLremamente âestrutivos em relação a carreira de um jogador.Do

minado por essas emoções, ele pode pretender agredir outros jo-

gadores, dirigentes, e até o juiz, prejudicando o seu futuro

profissional e desfalcando o seu time. Existem casos, sem dúvi

da, nos quais a viol~ncia é permitida e até mesmo aplaudida

quando ela é acionada em resposta a uma agressao anterior, mos-

trando que os jogadores do time atacado mantem a sua raça, -


nao

se intimidando com a ameaça de utilização da força fisica. Além

disso, a violência parece poder também ser usada contra um ad -

versário mascarado, trazendo-o dolorosamente de volta a realida

de do jogo, exigindo, de forma radical, que passe a respeitar

seus oponentes.

Note-se que o inverso também e verdadeiro: a mascara par~


( zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA 5 3 . zyxwvutsrqpon

ce ser admitida quando se trata de sancionar o comportamento de

um jogador, cuja a violência não está sendo controlada pelo ár-

bitro. Ele deve, então, ser humilhado, com uma sucessão de drizyxwvutsrqponml
~!
bles, por exemplo (3)zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPO
para perceber que está disputando um jogo
I

Ir
I1
de futebol, no qual se privilegia o talento e nao a força físi-
;1
~I,I.:.I,.
I
, ca. Note-se, contudo, que, nos dois casos, tanto a violência
1,11
'lI
quanto a máscara deixam de conduzir paix6es dominadoras, que e~
I'

polgam os jogadores e fazem com que incorram em procedimentos

irrefletidos e perigosos. Neste contexto específico, a máscara

e a violência se combinam com um elemento consciente e racional,

u.rn mínimo de cálculo, que diminui o seu perigo, e possibilita o

seu uso.

No seu emprego cotidiano, entretanto, a violência pode ser

tã.o destrutiva quanto a máscara, o que exige, mais uma vez, a

lntervençao do auto-controle para fazer com que a raça do joga-

dor seja mantida dentro de seus limites.

Da mesma forma que no sistema de emoç6es anteriormente es

tudado, o auto-controle, se bem sucedido, será acompanhado de

um outro sentimento, oposto à raça, mas igualmente valorizado,a

frieza. Ela parece ser o complemento perfeito da raça, ocupando

se, exatamente, das s t uaçóe s dramáticas


í que não podem serresolvi-

das pela paixão, que exigem um jogador "sem nervos", absoluta -

mente controlado: é o penalty que pode decidir um campeonato, o

"toque de bola" necessário para "segurar" um adversário, a capa

(3)Ta1 como, segundo o depoimento de um dos entrevistados, Paulo Cêsar Lima


fez como o capitão do time da Escócia, na Copa do Mundo de 1974.
54. zyxwvutsrqpo

cidade à provocação dos adversários,


de resistirzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
enfim, lances

e circunstâncias diretamente derivados da natureza extremamente

competitiva do futebol, mas que precisam ser enfrentados mais

com a cabeça do que com o coraçao.

A frieza, contudo, também pode ser destrutivamente exage-

rada, pois um jogador demasiadamente frio, "cerebral", corre o

risco de se transformar num "12ipogueiro", em alguém que não di.§.

puta as bolas divididas, que teme se arriscar em qualquer joga-

da fisicamente mais perigosa. Dominado pelo medo, o "pipoquei-

ro" pode rapidamente se transformar numa peça inútil para a e-

quipe, pois, mesmo que seja um grande craque, seu talento fica-

rá bloqueado pela sua falta de coragem em utiliz~~lo. A frieza,

portanto, tambémprecis2 ser disciplinada para nao causar pro -

Como se ve, repete-se, em linhas gerais, o mesmo esquema

anteriormente elabo~ado: quatro emoçoes, o medo, a frieza, a r~

ça e a violência, dispostas num sistema, no qual as duas do cen

tro, embora opostas, complementam-se, e são consideradas extre-

mamente positivas, enquanto as duas da ponta são pensadas como

destrutivas, e, até mesmo, estigmatizadoras. o que se teme,por


tanto, não é a oposiçao, o conflito de sentimentos diferentes ,

mas sim o exagero de cada um deles, o que faz com que a auto~s

ciplina, o auto-controle -
(uso as duas expressoes. como equivalen

tes) se transforme no traço invariante e, de certa forma, deci-

sivo deste sistema de emoções, o que também acontecia no outro.

Dessa maneira, a an~lise dos sentimentos que, segundo

meus entrevistados, definem.de forma mais decisiva a personali-


55. zyxwvutsrqponm

dade do jogador, vai nos revelar um sistema extremamente preoc~

pado com o exagero e a sua contenção, dando, por isso mesmo, um

à idéia de auto-disciplina.
valor especialzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Entretanto, o exame dessas emoç6es não chega a esgotar o

estudo da personalidade dos jogadores. Esta parece implicar t~

bém numa outra dimensão, mais voltada para o corpo do que parazyxwvutsrqponm
-
as emoçoes.

Efetivamente, um jogador de personalidade flforte", preci-

sa nao apenas disciplinar suas paixoes como também tomar o máxi

mo de cuidado possível com o seu corpo, pois,

" se não tiver condição física pode tratar de outro assun-


to, porque futebol não vai dar".

Controlar a forma física, consequentemente, e tão impor -

~ u..lJ.~ C : O jo g a d o r
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
y u c U IL U C L J Il"C e r a s e m o ç o e s . d ev e lev a r um a v id a

extremamente "regrada", pacata e caseira, evitar o álcool, os

tóxicos e até mesmo o cigarro, além de exercer WTI rígido contro

le sobre sua atividade sexual. Esta deve ser muito "dosadafl

para restringir o desgaste, sendo inclusive aconselhável, segu~

do alguns dos entrevistados, que o jogador se abstenha de

"ter relações um ou dois dias antes dos jogos".

Nestas condiçoes, nao é de se estranhar que em todos os

.depoimentos que recolhi haja uma enorme preocupaçao- com duas en

tidades, perigosas e difíceis de controlar: as mulheres e a noi

te. As primeiras parecem sentir uma atraçao especial pelas es-

trelas, figuras pGblicas e poderosas, que sofrem um verdadeiro


, zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
56. zyxwvutsrqpo

~
"cerco" :zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
sao esperados no fim do treinamento, recebem presentes,

são "tentados", enfim, com as mais variadas formas de sedução.

Este tipo de mulher que, nas representaç6es dos meus entrevista

dos, associa-se evidentemente ã idéia da "mulher da vida", aque

Ia que controla a sua sexualidade, e que pode portanto, " sugar

as energias masculinas" (Matta, 1979), vai encontrar na noite,

com seus segredos e mistérios, um campo ideal de atuação. Além

disso, é na noite que o jogador pode frequentar "inferninhos" e

buates, consumir tóxicos e bebidas, cultivando assim os vIcios

dos quais, em função mesma da sua forma fIsica e da sua carrei-

ra, deveria sumariamente se afastar. Da mesma forma como no

sistema das suas emoç6es, será somente através de uma ênfase na

auto-disciplina, que o jogador terá condiç6es de se manter afa~

tado dessas tentaç6es, e manter seu corpo fisicamente preparado

para atender as exigências da sua profissão.

Como se vê, a auto-disciplina vai desempenhar também um

papel fundamental nesta outra dimensão da personalidade do jog~

dor. Ela vai orientar, aqui, uma espécie de lIética corporal"

que, de um lado, regula e proIbe uma série de atividades, e, de

outro, vai enfatizar sobremaneira .a necessidade do treinamento 1

da educação fIsica, para a construção e o aprimoramento da for-

ma atlética do jogador. Visto aqui menos como m n estilista e

mais como um atleta, o jogador deve dedicar-se integralmente a

este treinamento, encarado muitas vezes como penoso e difIcil ,

mas, absolutamente necessário. o jogador deve empregar ao máxi

mo a sua disciplina para realizar todos os exercIcios até o

fim, num trabalho reconhecidamente duro, rotineiro e previsIvel,


57. zyxwvutsrqp

essencialmente anônimo, mas fundamental para que o corpo de jo-

gador, combinado com as suas emoções, tenha condições de reali-

zar as "maravilhaszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ
que o talento determina.
ll

A personalidade do jogador, portanto, ser~ construIda ba-

sicamente em duas dimensões: a primeira cuida de organizar as

suas emoções dentro de um padrão bastante definido, no qual sen

timentos opostos se completam, e os seus excessos são reprimi -

dos. J~ a segunda trata do corpo do jogador, transformando ~ o

em um instrwnento muito bem "afinado", através de uma ênfase no

trabalho duro e anônimo que se realiza no treinamento fIsico, e

da proibição de todos os vícios e prazeres que poderiam prejud~

car a forma atlética do jogador. Estas duas dimensões diferen-

tes são orientadas e definidas por uma mesma categoria, a auto-

discipliLa, que faz a mediaçáo entre elas e acentua a sua com-

plementariedade.

Note-se que a personalidade não é inata, como o talento .

Meus entrevistados chamaram bastante a atenção para o fato de

que a maior parte dos jogadores inicia-se no futebol sem qual-

quer auto-disciplina, incorrendo sistematicamente nos v~rios ex

cessos e vIcios que ela procura evitar: são mascarados e violen -

tos, consomem tóxicos, envolvem-se em aventuras amorosas, e não

tem a menor disposição para o treinamento fIsico. A personali-

dade, portanto, est~ muito longe de ser uma entidade que a pes-

soa recebe quando nasce, sem saber muito porque, e conserva, co

mo o talento, até o fim da vida. Ela precisa ser ensinada, a-

través de wu processo lento e gradual de socialização, no qual

foram destacadas duas figuras extremamente importantes: o técni


fzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
I; 5 8 . zyxwvutsrqp
I' zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

co e a esposa .

.0 técnico funciona como uma espécie de "segundozyxwvutsrqponmlkjihgfed


pai", es-

pecialmente o técnico dos juvenis. g ele que introduz o joga -

dor, de forma mais sistemática, no mundo do futebol, e, pelo pr§

prio poder que detém sobre o seu destino neste mundo, já que e

ele quem o escala ou deixa de escalar, transforma-se numa figu-

ra extremamente importante, cujos os conselhos devem ser escuta

dos para que se tenha algwl1 futuro no mundo do futebol.

A figura da esposa, por sua vez, vai remeter diretamente

para a importância de que o casamento parece se revestir na vi-

da profissional do jogador. De imediator o casamento regulari-

za a vida sexual do jogador, inclusive porque a esposa vai re-

presentar exatamente o inverso da "mulher da vida"; tomando to-

dos os cuidados para controlar a sua sexualidade e im~edi-la de

atrapalhar o trabalho do jogador:

"às vezes, eu quero ter relação, mas ela me lerrbraque eu vou


ter um jogo dois aias depois, e aí então nós evitamos 11 •

Além disso, a vida de casado vai influir positivamente no

"equilíbrio emocional" do jogador, pois as novas responsabilid~

des que ela traz, especialmente depois da chegada dos filhos, o

brigam-no a se preocupar mais com a carreira e seu futuro, le

vando-o a adotar uma atitude mais contida e madura, bem mais

aproximada ao modelo de personalidade ideal de que vimos falan-

do.

Assim, tal como visto da casa, o mundo da rua aparece fun

damentalmente dividido em dois contextos principais, o dos


cios, do prazer perigoso e destrutivo, e o do trabalho,que llipll
fzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
I'

5 9 . zyxwvutsrq

ca num prazer saudãvel, como vimos no primeiro capItulo,orie~

tado por um conjunto de representações que parece enfatizar um

ideal, até certo ponto ascético, de dedicação e auto-disciplina.

o mundo da casa rejeita e afasta-se do primeiro e, no ca-

so especIfico das representações que estou estudando, aproxima-

se estrei tamente do segundo, chegando a haverzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZ


'inclusive,
f uma

certa continuidade entre os dois. A casa do jogador não é ape-

nas, com em outras esferas da nossa sociedade, um local de refü

gio e descanso, marcado pela hierarquia e pelo afeto, e relati-

vamente fechado para o mundo "dificil" e impessoal que fica do

lado de fora. No nosso caso, o mundo da casa vai se abrir para

o do trabalho, elaborando categorias e sentimentos extremamente

importantes para a vida profissional do jogador. Ele funciona

como uma espécie de Il mola" que impulsiona o jogador no seu tra-

balho, pois, é simplesmente um castigo, já que P2


como este nãozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFED

de implicar em prazer e em muito dinheiro, - vai apar~


a casa nao

cer simplesn1ente como uma recompensa f uma retribuição ao esfor-

ço e ao sofrimento que seu "cabeça" despende na dura vida da

rua (cf. Matta, 1979).

A personalidade, portanto, nao e, de forma nenhuma, uma

qualidade inata e intransferlvel, que necessariamente singulari '

za os seus possuidores. Muito ao contrário, ela vai sendo con~

trulda, ensinada, aos poucos, sob a influência de fatores dife-

rentes, aos quais todos os jogadores podem ter acesso, como,

no exemplo que acabamos de discutir, o casamento e o mundo da

casa.

Na verdade, a possibilidade de se comparar a personalida-


60. zyxwvutsrq

de com o talento, pode ser ainda muito mais desenvolvida, permi:.

tindo-nos, inclusive, levantar algumas considerações sobre o si.9:

nificado da personalidade e a forma pela qual ela se articula

com outras categorias constitutivas do mundo do futebol.

Ora, o que mais chamava a atenç~o na discuss~o do talento,

era seu caráter ext remame n+e original e singular. Ao "liberar-

se", de dentro para fora, ele implicava imediatamente numa enor

me diferenciação, separando seus possuidores entre si, e, cole-

tivamente, dos outros jogadores que não tinham nascido com esta

habilidade especial. Uma liberdade "interna"; a liberdade de

"realizaç~o" do talento, vai resultar numa extrema desigualdade,

dando origem a um mundo de "estrelas", de "cobras", de pessoas

conhecidas e poderosas.

cialorientado por regras bastante diferentes, baseadas na idéia

de auto-disciplina, e aplicadas com extrema igualdade a todos

os jogadores. é demais repetir que, segundo meus entre -


NuncazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

vistados, todos os jogadores devem seguir igualmente os precei-

tos que definem a personalidade, sob pena de verem seu desempe-

nho diminuido e sua carreira prejudicada.

Assim, enquanto o talento serve para diferenciar os joga-

dores,a personalidade os identifica, definindo regras cuja mod~

ficaç~o está acima da capacidade de qualquer


, estrela. Na verdazyxwvutsrqponmlkjih

de, se o talento pode ser articulado com o individualismo qua1i:.

tativo, a personalidade, ao enfatizar exatamente o que é comum

a todos os jogadores, parece estar diretamente referida a dimen


- quantitativa
sao do individualismo. O que, entretanto, e que
6 1 . zyxwvutsrqp

vai ser definido como comum a todos os jogadores? A auto-disci

plina, a dedicação ao trabalho, a rejeição dos vícios e praze -

res f~ceis e o cuidado com o corpo, categorias que,se aproxi-


i I

mam de um ideal ascético que vai precisamente caracterizarzyxwvutsrqponmlkjih


a

ética protestante, uma das ideologias mais comprometidas com

esta forma de .i nd.í vf.dua Lí srno (cf . Weber, 1967) (4).

Com efeito, se combinarmos as características definidoras

da personalidade com aquelas que orientavam a dimensão racional

e calculista do projeto dos jogadores, teremos um quadro de ca-

tegorias que inclui alguns dos elementos formadores do indivi -

dualismo quanti-tativo, e do "ethos" puritano e "yankee" que a

ele esteve ligado. Assim, a preocupação em acumular riquezas

através de um processo sistem~tico e calculado de maximização

dos lucros, que constitui, de certa forma, o aspecto mais cogn.:h

tivo e racional do individualismo quantitativo, vai ser comple-

mentada pela adoção de um código de emoções e de uma ética do

corpo baseados na idéia de auto-disciplina, e no reconhecimento

do valor do trabalho "duro" e anonimo, único capaz de assegurar

, I
a forma física e a carreira profissional do jogador.

Temos então reproduzida, com novos elementos e num outro

contexto, a mesma dualidade de individualismos que caracteriza-

va o projeto dos jogadores. Precisamos então, para finalizar,

estudar a maneira pela qual esses dois diferentes individualis-

i' mos aqui se relacionam. Na discussão do projeto, os dois se


,
I'
'

i (4)
,I zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Note-se que o comportamento dos nossos jogadores protestantes, como Bal-
thazar, do Grêmio, João Leite, do Atlético e Tita,do Flamengo, um compor-
tamento ex t remame n t e as ce t i co , com í.;nfaseespecial na d cd i.caçao e no tra-
balho "duro", vem sendo constantemente elogiado por treinadores e pela
cr~nica esportiva (cf. PLACAR, n9 473).
62. zyxwvutsrqpon

completavam perfeitamente, pois um estava orientado para dentro

.do campo, buscando o prazer que o jogo podia proporcionar, en-

quanto o outro preocupava-se basicamente com questões extra-ca~

po, envolvido com as fórmulas de multiplicar o dinheiro que o

futebol possibilitava.

Ieste relacionamento se dá de maneira diferente,pois


AquizyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONML

como os dois individualismos estão orientados para o jogo, para

dentro de campo, definindo as qualidades necessárias para que

o jogador nele tenha sucesso, pode-se perceber um certo confli-

to entre os dois, que resulta na formação de dois grupos dife -

rentes de jogadores, as estrelas e os coadjuvantes.

Ora, como a diferenciação e a singularidade saoexatamen-

te as caracterIsticas definidoras do talento, não ~ de se es-

tranhar que tenha partido exatamente dele a iniciativa em dis -

tinguir os dois grupos. As estrelas então, são os jogadores que

nasceram com o talento, uma entidade rara e exclusiva, e que

não pode ser dividida com mais ningu~m. "Premiados" com esse

dom, os craques transformam-se em verdadeiros artistas, "genios

criadores", merecedores de fama e fortuna, que devem ser trata-

dos com o máximo de consideração nos mais diferentes contextos

de nossa vida social. Parecem ser o que Matta (1979) chama de

'pes~;' nossos medalhões, aqueles "que não precisam mais ser a

presentados e com quem se deve primeiro falar".zyxwvutsrqponmlkjihgf


l

Opondo-se a essas estrelas, e definidos por característi-

cas inteiramente diferentes, vamos ter os coadjuvantes, aque-

les que não possuem nenhum talento especial para o futebol. são

jogadores simples, com um talento comum, "mediano", tão iguais


, zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
63. zyxwvutsr

entre si que se tornam praticamente Lnt.e r-c amb í.âve í.s , tanto faz

comprar um coadjuvante quanto outro, não faz diferença. Procu-

ram, ent~of aprimorar exatamente o lado da personalidade, capri

chando na forma físicat ou desenvolvendo algumas -


daszyxwvutsrqponmlkjihgfe
emoçoes
.-
que chegamos a discutir. Para eles, o futebol ~ um oficio nao

~ uma arte, um oficio praticamente an5nimo, pois, encerrada a

carreira, dificilmente seus nomes ser~o lembrados.

Note-se, entretanto, que no relacionamento entre os joga-

dores, a "superioridade" das estrelas e a "inferioridade" dos

coadjuvantes jamais vai ser experimentada de forma t~o nítida

e explicita. Isso acontece porque a personalidade, e o indivi-

dualismo quantitativo que a caracteriza, deve ser adotada tam -

bém pelas estrelas. N~o existe, assim, nenhum craque acima

da lei, que possa garantir o seu lugar no time mesmo - es


que nao
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCB
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJ
.L . .•..•.. ..! ~ ~__ 1 _ r l" ·
.L _ _ .. ..,
'-" - J o..A .. "-l.l~ .L \J .J ..J .llC l.. j!J ..,tJ u y U C J ...L V r vu
J ..- .L .b ..L \" " '- ( ....l1 O \.: ,.....J U U .lll J .l(U .':> \......-U ...L U .u .v , U l.lL

qualquer outra coisa assim. É evidente, e meus entrevistados

tem bastante consciência disto, que existem craques que conse -

guem manter a sua posiç~o sem ter a personalidade necessária p~

ra isso, valendo-se apenas do talento. Contudo, - acre-


eles nao

ditam que essa possa ser a tendência dominante, pois tem sido

exaus tivamente comprovado, a t~ mesmo pela "per f o rrnanoo " das nos-

sas seleções nas duas últimas copas do mundo, segundo meus en-

trevistados,que o talento só pode se realizar se combinado com

a personalidade.

Consequentemente, toda estrela precisa tornar-se tamb~m

um coadjuvante, todo "tocador de piano" precisa aprender a car-

regá-lo, para que possa sobreviver à violenta competiç~o que


64. zyxwvutsrqponm

existe pelas posiç~es de um time de futebol. Como qualquer um

que esteja jogando mal pode perder o lugar, como todo dia po-

dem aparecer novos craques, a ~strela precisa cuidar que seu d~

sempenho n~o seja prejudicado pela falta de controle emocional,

ou de preparo flsico, já que só o talento não basta para garan-

tir uma boa performance.

As estrelas transformam-se, então, em "pessoas" muito cu-

riosas, possuindo uma dupla personalidade. são grandes cra-

ques, famosos e festejados fora do campo, mas obrigados a "dar

duro" como qualquer coadjuvante, forçados, como todos, a con-

ter suas paix6es dentro dos limites socialmente aceitos, tendo

que encarar o futebol não só como arte, mas também como oficio,

um oficio anônimo, rotineiro, e pouco criativo. são classifica

dos como "medalh~es" noutras esferas da nossa sociedade, com

sua superioridade nitidamente reconhecida, e transito livre nas

mais altas rodas, mas, se quizerem "bancar" o "medalhão" no fu-

tebol, enfatizando a posição e esquecendo o desempenho, passa -

rao rapidamente a posição de mascarados.

Este singular arranjo entre a diferença e a identidade/e~

tre a hierarquia e o individualismo, torna nossos craques muito

parecidos com os "super-herois" norte-americanos, como o "Bat -

man" e o "Super-Homem", também portadores de dupla personalida-

de, obrigados a ser um "tipo comum", um "regular guy", que tem

uma vida anônima e rotineira, paralelamente a suas outras espe-

taculares identidades de super-herois (cf. Matta, 1979, p . 198).

Mais do que uma "tirada", esta observação permite-me ela-

borar um pouco mais a análise das estrelas do nosso futebol


1 65. zyxwvutsr

pois acredito que elas estao mais próximas das "pessoas" norte-

t
.
.

, zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
americanas, figuras hierárquicas num universo individualista/do

que das suas congeneres brasileiras. Da mesma forma que o "~


cesso" é algo inato, que se tem, mas que nao
nos EUA, o talent~zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC

se recebe nem se pode transmitir, o que impede a formaç~o de

uma nobreza e singulariza ao máximo a desigualdade. Assim, no


nosso futebol as estrelas n~o s~o muitas, pois o talento ê algo

que todos pretendem ter, mas que apenas uns poucos possuem, e,

estes poucos, tal como os "Vips" nos EUA, esperimentam a sua di

ferenciaçao no meio de um universo extremamente individualizado,

baseado na competição, na igualdade, e no desempenho (idem) .

o que estou tentando dizer, para ser o mais claro possí _

vel, e que, pelo menos na vis~o de meus entrevistados, o fute _

boi é um contexto eminentemente individualista no interior da

HU::;::;d ~OCleQaQe, e, assim, as diferenças e hierarquias que ele

comporta devem chegar a um acordo, mInimo que seja, com este in


dividualismo.
Capítulo 111
O Lado Escuro

,
67. zyxwvutsrq

Até este momento, estudamos basicamente o projeto dos jo-

gadores, suas duas dimensões, e as "qualidades" que estes devem

possuir para que ele possa realizar-se. Precisamos, de agora

em diante, tentar compreender como os jogadores que entrevistei

enCarillTI
a sua carreira e as condições em que ela se desenvolve,

sua vzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK
i sao dos clubes e dos dirigentes, para que possamos enten-

der, de forma mais completa, a maneira pela qual eles percebem

a sua profissão.

o primeiro ponto a ser enfatizado, quando discutia com os

jogadores o cotidiano da carreira, era sempre o seu relaciona

mento com os dirigentes dos clubes, não apenas pelo indiscutí -

vel poder que estes parecem possuir, mas também, e principalmeQzyxwvutsrq


- ..
e uo papel aos

jogadores dent.ro deleszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA


inteiramente diferente da que vem sendo
F

aqui apresentada.

Isso, evidentemente, vai fazer com que a interaçao entre

meus entrevistados e os dirigentes, usualmente chamados de "car

tolas", fosse experimentada de forma extremamente conflituosa ,zyxwvutsr

e, as vezes, até mesmo dram~tica. Os jogadores chegaram, incl~

sive, a afirmar que os dirigentes eram os principais respons~ -

veis pelos problemas que enfrentavam na realização dos seus prQ

jetos.
~ . ~
Isso acontece porque, salvo rarlSSlmas exceçoes, os diri-

gentes são completamente amadores, quer dizer, dedicam-se "de

corpo e alma" aos clubes, sem receber um tostão por isso. Cons

tituem, em geral, os "grandes nomes" do clube, profundamente


68. zyxwvutsrq

comprometidos, desde muito tempo, com a sua polItica interna,

sempre presentes nas disputas de poder. Entretanto, o que vai

defini-los, segundo meus entrevistados, ~ o fato de que encaram

o futebol de maneira inteiramente anti-profissional, já que suas

relações com o clube são marcadas, fundamentalmente, pela pai-zyxwvutsrq


-
xao. Em função dela, os dirigentes chegam, inclusive, a arris-

car a fortuna, a safide, e a pr6pria vida, enfrentando, as ve-

zes, trágicas consequências.

Note-se, por exemplo, um caso que me foi contado por dois

entrevistados, com um misto de respeito e desaprovação. Ele se

refere a um antigo dirigente de um grande clube do Rio, que se~

viu de avalista de um vultoso empr~stimo feito-pelo clube para

comprar um grande jogador. Como o clube não teve condições de

pagar a dIvida, ele foi obrigado a vender suas propriedades pa-

ra saldá-Ia, terminando por se suicidar.

Como se pode ver, então, a figura do dirigente ~ extrema-

mente marcada pela paixão, uma "devoção" pelo clube que, prati-

camente, não conhece limites. Ora, e exatamente por causa des-

ta falta de limites que o relacionamento dos dirigentes com os

jogadores vai ser, numa primeira aproximação, tão problemático.

Os dirigentes, de acordo com os depoimentos que recolhi, costu-

mam exigir que os jogadores tenham com os clubes uma relação

tão marcada pelo amadorismo, pelo "amor à camisa", quanto a sua.

Assim, e muito comum que os jogadores sejam solicitados ,

por exemplo, a entrar nOO1 jogo com o seu contrato vencido, ou

mesmo contudidos, pela "honra da casa", como se não tivessem ne

nhum interesse profissional em causa. Este tipo de situação


69. zyxwvutsrqpo

também é muito frequente em épocas de renovação de contrato, ou

em qualquer outra circunst~ncia que envolva uma discussão por

dinheiro. A proposta do clube vem sempre acompanhada de uma

argumentação de caráter afetivo, lembrando aos jogadores que o

é a sua "casa", uma verdadeira


clube tambémzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
"família", com os

dirigentes como "pais". Isso deveria fazê-Ios ,aceitar uma ofer

ta financeiramente menos vantajosa, inclusive porque, num am-

biente tão "doméstico", existem muitas outras formas de se con-

seguir uma recompensa pela "lealdade" e pela "dedicação", recom

pensas concretizadas em "presentes" e "favores" que os dirigen-

tes estão sempre dispostos a propiciar.

Para os jogadores que entrevistei, este tipo de procedi -

mento, "ainda hoje muito comum", implica, evidentemente, no to-

tal esvaziamento do projeto de acumulação que'discutimos no prizyxwvutsrqpo

weiro capltulo. Segundo eles, inclusive, este tipo de proposta

está muito ligada a uma certa maneira de ver a prõpria ativida-

de dos jogadores de futebol, muito comum entre os dirigentes

que não a reconhece como um trabalho.

Assim, p~ra os cartolas, o futebol ainda seria uma ativi-

dade semi-profissional, algo que "todo múndo faz", e faz como

lazer, não merecendo, portanto, nenhuma retribuição financeira

maior. É como se o jogador estivesse no futebol apenas por"pr~

guiça", ou por falta de interesse em conseguir um emprego "de

verdade", como se fossem "malandros" que resolveram "industria-

lizar" o seu lazer, a "pelada", fazendo com que ela rendesse

algum "dinheirinho", e lhes permitisse ganhar a vida sem muito

esforço. Ernconsequência desta visão, os dirigentes tem muita


I zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
fizyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

70. zyxwvutsrqp

dificuldade em encarar o jogador como um verdadeiro profissio -

nal, com quem se deve discutir um salário, e nunca oferecer um

presente, uma televisâo a cores, uma semana de f~rias pagas, ou

coisa parecida.

o que acontece, segundo os jogadores que entrevistei, e

que os dirigentes sao figuras muito "tradicionais", com uma vi-

são muito "antiga" da natureza do futebol. Alguns deles, inclu

sive, chegaram a jogar pelos clubes que hoje dirigem, na epoca

do amadorismo, mantendo at~ hoje a mesma percepçao que se tinha

naquele período sobre a natureza do jogo.

Ora, nessazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
~pocaf e mesmo algrun tempo depois, no iníciodo

profissionalismo, havia realmente muito pouca diferença entre o

futebol de "campo" e as peladas. O primeiro era jogado com o

mesmo "descaso" que caracteriza o segundo, ninguém se dedicava

integralmente ao futebolr nem o levava muito a s~rio. Hoje em

dia, entretanto, a relação do jogador com o futebol mudou muito,

ele o encara como um ofício, como vimos no capítulo anterior.

Assim, como diz um dos entrevistados, temos hoje um fute-

bo L "obrigado":

" o Jh a só, mudou sim, e claro que é trabaJho, a gente gos-


ta, mas +em que fazer tudo controlado... olha só o ... treinan
do, tá assim há duas horas, pode ser que ele queira parar,mas
não pode... tarrit.:Bn
tem hora que a gente quer jogar, fazer um
bate-bola, e o Seu... nao deixa, uafi que fazer física, trei -
nanento, ficar um tempão dando duro debaixo deste sol. É co-
mo eu disse, mudou muito, ~ obrigado, ninguÉm escolhe a hora
de começar ou de parar de jogar, não é pelada não".

Invalidando assim a visão dos dirigentes, meus entrevista


7 1 . zyxwvutsrqp

dos enfatizam a diferença entre o futebol moderno e o de "anti-

gamente", entre o trabalho e a pelada, salientando o seu cara -

ter "obrigatório" para definI-Io como wn trabalho. Um dos jo-

gadores chegou a comentar é exatamente pOr causa desta


quezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC
no-

ção tradicional do futebol, visto quase como uma diversão, que

os dirigentes reclamam tanto da participação dos jogadores nas

peladas realizadas durante as férias, acreditando que elas -


vao

fazer com que eles voltem aos clubes ainda "intoxicados" de bo-

Ia:

" po, não tem nada a ver, é diferente de jCXJarprofissio -


nalmente, não divide bola, não corre, mozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQP
+em desgaste em ocí.o

nal, você jCXJabrincando, se quiser parar; você sai e entra


outro, prá nós é tão divertido corro prá qualquer pessoa".

Os jogadores entrevistados, portanto, tem uma noção do fu

tebol e do seu papel dentro dele muito diferente da dos dirigeQ

tes, que, orientados por uma "visão de mundo" tradicional, nao

conseguem entender que o futebol, hoje em di~, é um trabalho

constituindo-se numa profissão. Isso faz com que os jogadores,

que se dedicam integralmente ao seu ofício, devam ser tratados

como profissionais, interessados em acumular e em investir, e

não como "agregados", "dependente" desta grande "família" que e

o clube, a quem se dá um presente ou se faz um favor em troca

de cooperaçao.

Há, evidentemente, uma grande diferença entre esta postu-

ra paternalista e hierarquizante, adotada pelos cartolas, e a

visão de mundo individualista e racional que tem caracterizado


72. zyxwvutsrq

os jogadores que entrevistei.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA


Esta, entretanto, não e a única

raz~o dos conflitos que surgem entre o grande proble-


os dois.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ

ma e que os cartolas n~o tem apenas este lado tradicional,orie~

tado por urna 6tica afetiva e pessoal, que pensa o clube corno

uma grande casa, pela qual todos os seus ocupantes devem sentir

a mesma paix~o.

o que acontece é que os dirigentes possuem tillnbémum ou-

tro lado, calculista e manipulador, que pretende se utilizar do

clube para atingir outros objetivos. Assim,

" tem mui. to dirigente qU2 quer ser deputado, vive distri
com o dí.nhea.ro
buindo saco de cimento por aIzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSR
f do clube".

o pr6prio prestIgio do clube, transformando seus dirigen-

tes em 11 figuras nacionais 1(, é extremarnente úti 1 para qualquer

carreira polltica.

Note-se, ainda, que não é apenas por interesse polItico ,

buscando notoriedade, que o cartola pode querer manipular em

seu benefIcio as funções o pr6prio interesse econ6-


que ocupa.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHG

mico pode estar também presente. Assim, três dos entrevistados

chamaram minha atenç~o para as "negociatas"_ do mundo do futebol,

manobras "escusas", muito comuns nas compras e vendas de "pas-

ses" dos jogadores, nas quais os dirigentes podem ganhar gran-

des fortunas: por exemplo,zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

"o jogador é vendido por dez milhões, mas so vai seis pro cl~
be, os outros quatro sao divididos entre o pessoal da transa-
çáo, e depois o contador lá dá um jeito".

Saliente-se - e apenas
que nao o clube que o dirigente pre-
73. zyxwvutsr

tende manipular, trocando a paixão pelo interesse pessoal. As

pr6prias relaç6es de amizade estabeleci das com os jogadores tam

bém podem ser utilizadas por ele para se promover, especialmen-

te se o jogador for um grande craque. Naturalmente, se o cra -

que, por uma razão ou por outra, entrar em declInio, o dirigen-

te imediatamente se afastar~, deixando-o entregue a sua pr6pria

o caso de Garrincha, especificamente,


sorte.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
foi citado v~rias

vezes como prova da "falsidade" dos cartolas, que se aproximam

do jogador quando ele está "por cima", apenas para "exibi-Io"

deixando-o de lado assim que o seu futebol começa a decair, exa

tamente quando ele teria maior necessidade desses "falsos ami -

gos" .

A falsidade e ainda comprovada pelo


dos dirigenteszyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
fato

de que no pr6prio relacionamento profissional com os jogadores,

eles tamb~m procuram enganâ-Io. Assim, os clubes jamais pagam

o sal~rio em dia, e dificultam ao m~ximo a inscriçao do jogador


- pelo Fundo
no PIS e a sua opçao de Garantia .. Em muitos casos ,

inclusive, o jogador consegue fazer -


a sua opçao, e o clube re-

colhe mensalmente sua contribuição, mas não a entrega ao Fundo,

utilizando-a em beneficio pr6prio.

Assim como desse caso, fui informado de uma série enorme

de outros, que fazem com que o jogador tenha, inclusive, umacer

ta dificuldade em compreender o comportamento do dirigente. Af.!.

nal de contas, por um lado, ele é o representante mâximo da"tra

dição" no futebol, criticando "aristocraticamente" todos oszyxwvutsrqponm


jo-

gadores que querem lucrar com a sua carreira, acusando-os de

"mercen~rios" e coisas do genero. Por outro, ele aparece como


74. zyxwvutsrqp

uma figura extremamente utilitarista, fria e calculista, capaz

de manipular a todos, clubes e jogadores, para-realizar os seus

interesses econômicos e políticos.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCB

o dirigente torna-se então, na visao dos jogadores, uma

figura profundamente ambigua e perigosa, pois até mesmo suas

declarações de amor ao clube, e as exigências de lealdade, de-

vem ser postas em dGvida:zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

" eles querem que você tenha amor a camisa quando você vai
pedir pro clube, agora, na hora deles exigirem, eles querem
que vore seja profissional...".

Como resultado dessa "dupla-face"zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA


r o cartola torna-se,sem

dGvida, a figura mais criticada em todos os depoimentos que re-

colhi. Apresentando-sezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
com uma fachada extremamente aristocrá-

:"'-La"::;~L-~V!lct:;",e lllctlli.tJu:idIlOO ao mâxlmo por detras dela, o

dirigente vai se tornar, _para o jogadorzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONM


r o símbolo da "deson-es-

tidade", transformando-se numa figura altamentedestrutiva para

o mundo do futebol. Com efeito, a Gnica salda seria a elimina-

ção do cartola, do dirigente amador, e a sua substituição por

umlldirigente profissional", "muito bem pago, que olhe todos os

lados do clube, pense no clube em termos de empresa".

Este dirigente, ao contrário do cartola, não teria nenhu-

ma ligação com a tradição do futebol, nao veria o clube como

uma casa, wna família, mas sim como uma empresa. Além disso ,
ele não estaria interessado em usar o clube e o jogador para se

promover, para conseguir sucesso numa outra esfera de ativida

aes, pelo simples fato de que, exatamente como os jogadores, o

futebol seria a sua profiss~of o que o obrigaria, para garantir


7 5 . zyxwvutsrqpo

o seu sucesso dentro dele, a se comportar da maneira mais c6rre

ta possível.

Este, contudo, ~ apenas um plano para o futuro. No momen

to, a carreira do jogador ~ feita basicamente ~ sombra dos car-

tolas e dos mecanismos criados por eles, que vão definir o "qu~

dro institucional" da profissão. Destes mecanismos, sem dúvida,

o mais importante e o Easse.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

O passe implica, fundamentalmente, numa "carta" que asse

q ur a ao clube direitos absolutos sobre a transferência do joga-

dor. Este do cum e rrt o , o "Certificado de Transferência", vincula

inteiramente o jogador ao clube, que tem a propriedade do seu

passe. Consequentemente, para mudar de clube, de emprego, o jQ

gador terá que ser vendido ou trocado, em nas quais,

embora consultado, nunca póssui a palavra final.

Note-se que o passe é um mecanismo legal, tendo sido" sa

cramentado" pela Lei n9 6 ..354, de 2/9/76, que regulamenta a prQ

fissao de jogador de futebol. Assim, segundo meus entrevista -

dos, o jogador ~ o único profissional do país legalmente impedi

do de procurar livremente o emprego que melhor o remunere,o que

estaria, inclusive, em total desacordo com a Consolidação das

Leis do Trabalho.

Incapaz, portanto, de cuidar dos seus pr6prios interesses

profissionais, o jogador vai ver no passe o maior obstáculo pa-

ra a realização daquele projeto de acumulação que haviamos estu

dado no primeiro capítulo. incl usi ve, porque o 'Pa~


I sso se dázyxwvutsrqponmlkjihgfedcba
I

se e administrado" pelos clubes de forma inteiramente amadoris

ta, o que traz grandes prej~izos para os jogadores.


7 6 . zyxwvutsrqp

Assim, todos os entrevistados chamaram a atenç~o para o

fato de que os clubes frequentemente recusam-se a negociar op~

se de um jogador por razões a"bsolutamente anti-econômicaszyxwvutsrqpon


fa-
1

zendo com que este perca uma boa soma em dinheiro. Além disso,

na pr6xima renovaç~o do contrato do jogador que ia ser vendido,

o clube oferece mui to menos do que ele ganharia' se a transferên

cia se concretizasse, atrapalhando, nitidamente, seu projeto de

acumulaç~o. Aqui, a falta de mobilidade horizontal torna efeti

vamente mais difícil a concretizaçao da mobilidade vertical.

o grande problema, então, reside no fato de que o clube

não faz nenhum cálculo "racional", pesando os pr6s e os contras,

levando em consideração o "mercado", para resolver se vende ou


-
nao um jogador. Esta decisão é tomada, na maior parte das ve -

zes[ a partir de critérios puramente emocionais, aue aCnhnm ~nr

prejudicar a pr6pria possibilidade de independência financeira

do jogador.

Assim, algumas vezes, decide-se não vender um jogador ap~

nas porque ele já deu muitas vit6rias ao time, marcou o gol de-

cisivo para a conquista de algum campeonato importante, ·ou qual:.

quer coisa assim. O jogador transforma-se, dessa forma, num"p5::

trimõnio"do clube! num bem im6vel, e mesmo que ele esteja na r~

serva, ganhando pouco e n~o sendo muito útil ao clube, não será

negociado. Noutras vezes, deixa-se de vender um jogador sim

plesmente para puní-lo, porque algum dirigente está irritado

com ele. Num caso como noutro! sao as emoçoes que dominam so-

bre o cálculo.

O passe impede, portanto! qualquer decisão autônoma do


77. zyxwvutsr

jogador sobre seu destino, impedimento agravado pela absoluta

"falta de critério" com que os dirigentes u+I IzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXW


í.z am o mecanismo,

e o poder, que tem nas mãos.

Os jogadores que entrevistei, então, advogavam a extinção

do passe, inclusive porque, para eles, isso seria tambêm extre-

mamente benéfico para os próprios clubes. Em primeiro lugar,

os clubes gastariam menos se pudessem negociar diretamente com

os jogadores, num mercado livre e aberto, nitidamente regulado

pelas leis. impessoais da oferta e da procura. Além disso, com

o fim do passe, eles se livrariam de um investimento altamente

arriscado, pois, no futebol, deve-se sempre levar em conta a

possibilidade de que uma contusão force o jogador a abandonar a

carreira. Os clubes também teriam a vantagem de não ter mais

que enfrentar situações difíceis, as vezes dramáticas, que en-

volvem um jogador que "cria caso" para sair do clube, tornando

a sua presença difícil de ser suportada. Segundo meus entrevis

tados, isso acontece com bastante frequência, contribuindo pod~

rosamente para "envenenar" o ambiente durante as concentrações

e os treinamentos.

Na verdade, a extinção do passe trària muitas vantagens ,

tanto para os dirigentes quanto para os jogadores, e, inclusive,

tornaria a competição entre os jogadores, a preocupação com a

forma e com o desempenho, bem mais acentuada. Isso acontece po~

que, de certa forma, o passe e efetivamente uma instituição de

tipo paternalista, ele concede alguma segurança ao jogador,

" porque voce ve, tem um jogador vinculado ao clube, faz


cheqa no final, o clube pediu qua-
um contrato de dois anostzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGF
78. zyxwvutsrq

tro miD1Õ2S, ninguém vai querer canprar, e o clube nao vai


querer perder o patrimônio, então ele se desinteressa,tá ga-
rantido...1I

Ora, se o passe for extinto, essa IIgarantiall logicamente

desaparecerá, e entao,

" sabendo que o passe é dele, sabendo que vai acabar o con
ele vai dar o máximo, e, dando o máximo, vai aparecer
tratozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQP
I

interessado,a vantagem é dele, e do espetáculo. Quem esti -


ver meThor vai fazer o meThor contrato".

O passe, portanto, dá ao jogador um mínimo de segurança,

ao mesmo tempo que atrapalha o seu processo de acumulaç~o. Se

f6sse eliminado, as características "individualistas" do fute -

bo I seriam acentuadas! pois os jogadores teriam que se mover num

mercado auto-reguláve1 (cf. Polanyi, 1944), e, oon seq ue rrt.em e n t.e ,

pre~cupar-se ainda mais em aperfeiçoar a sua performance. De

certa forma, o jogador ganharia em autonomia, mas perderia em

segurança. Para os meus entrevistados, sempre preocupados em

garantir a sua independência financeira, uma espécie de autono-

mia pós-futebol, a extinç~o do passe representaria a possibili-

dade de controlar desde já, num mercado livre, auto-reguláve1 ,

sua carreira e suas chances de fortuna.

Note-se, entretanto, que nao e so o mercado de trabalho

dos jogadores que é "preso", controlado por um mecanismo de po-

der, o Certificado de Transferência, que congela e impede o li-

vre jogo da pferta e da procura. O próprio tempo do jogador de

futebol também é inteiramente controlado pelo clube, constituin

do-se num outro mecanismo constrangedor da liberdade, junto com


8 0 . zyxwvut

bes combinarem este controle do tempo com um rlgido controlezyxwvutsrqp


mQ

ral da vida do jogador. Acreditando ter o jogador sob suas or-

dens as 24 horas do dia, o clube pretende, em muitos casos, di-

rigir também a sua vida privada, definindo as roupas que ele de

ve vestir e o tipo de cabelo que deve usar, apontando as diver-

soes compatíveis com o futebol, e, até mesmo, estabelecendo o

seu hor~rio de dormir:

"No Sao Paulo, o ... correrrtava


isso, todo dia às 10 horas ia
um diretor na casa do jogador pra ele assinar o ponto da noi-
te, ver se ele estava em casa naquele horário... numa noite ,
ele foizyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
nim a buate, e um dos porteiros, Sãopaulino doente,te-
lefonou pra dizer que ele estavazyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQ
L a , e o diretor já havia p~

sado na casa dele às 10 horas, foi a maior confusão...".

Este e, evidentemente, um exemplo extremo. Entretanto, s~

gundo o depoimento dos meus entrevistados, esse tipo de contro-

le, embora de forma menos direta, continua a existir na maioria

dos nossos clubes, limitando ainda mais a autonomia, e invadin-

do a vida privada dos jogadores.

Efetivamente, a autonomia e a privacidade, dois dos ele -

mentos constitutivos da liberdade (cf. Lukes, 1973), são quase

que inteiramente constrangidas pelo quadro institucional que

tendo nos cartolas o seu ponto de partida, vai condicionar acar

reira, e, ate certo ponto, a própria vida cotidiana do jogador.

Não é de se estranhar, portanto, que um grupo que valoriza tan-

to a auto-realização, outro componente da liberdade (idem), e

mesmo a igualdade, como vimos na discussão da personalidade,re~

ja tào vivamente contra 6 passe e o controle do tempo. Parece-


Hl. zyxwvuts

me, e, neste ponto, esta e apenas urna hipótese, que os dois,eli

minando praticamente a autonomia, e diminuindo a privacidade,i~

pedem que os jogadores tenham condiç6es de experimentar, ~ um

nível ainda maior, o individualismo que parece caracterizar as

suas representaç6es.

Note-se, entretanto, que os jogadores que entrevistei nao

pretendem aceitar passivamente que esta situação, há muito in-

corporada a vida profissional do jogador, tenha condiçoes de

continuar. - Na verdade, estudei um grupo de jogadores estrei ta-

mente relacionado, e que tinha exatamente corno um dos seus mais

fortes traços de união o interesse em fundar o sindicato dos

jogadores profissionais do Rio de Janeiro.

Ora, a proposta desse grupozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGF


é precisamente a de tentaruma

profunda t.ransf ormacâo no rnnnr+o +-orrn;,..... zyxwvutsrqponmlk


zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUT
-f1 l1 -d ,n l Y \r lr '\.
(1 0 - -- ._ --------~ -

passe, regularizando o tempo, e substi t.u .í ndo o cartola pelo -di-

ri gente profissional. Neste projeto, inclusive, o sindicato co

loca-se como uma alternativa às instituiçoes de assistência ao

jogador, que já existem, pois estas se limitam a ajudar "al-

guns poucos", não tendo condiç6es de resolver os problemas dos

jogadores, basicamente articulados, segundo meus entrevistados,

a estrutura "tradicional" do futebol brasileiro.

Ernbora con-te com aliados poderosos, incl uindo- se alguns

ministérios e agências estatais, esse grupo que entrevistei não

é muito otimista em relação as suas possibilidades de transfor-

mar o futebol. Isso acontece porque eles se sentem extremamen-

te afastados dos "outros" jogadores, da "massa", "menos esclare

cida", que,
~2.zyx

li
entusiasmadoscan a possibilidadede atuar num time gré'~
de, de ser profissional de futebol, aceitam qualquer coisa
que os dirigentes queiram, assinam até contrato em branco".

Esses jogadores, que constituem a grande maioria, -


sao os

mesmos que os meus entrevistados classificavam como "esbanjado-

res", no primeiro capítulo, jogadores sem projeto, que entram

"cegamente" no futebol, sonhando em conseguir o mesmo sucesso

dos seus ídolos, e que acabam por se constituir num grande pon-

to de apoio para a proposta hierarquizante dos dirigentes:

" nossa classezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJI


é muito ignorante, a maior parte nao está
preparada para o sindicato, nao conseguem entender que, o que
a gente faz, eles é que vão ser os benefic~ários,por isso e
- exploradospelos dir.i.qerrtr-s ...
que sao li •

Este relativo isolamento, numa posiçao de vanguarda, ten-

tando-se criar um sindicato para beneficiar os "outros li jogado-

res, que, inclusive, não levam ã sério esta tentativa, parece

deixar bastante clara a especificidade do grupo que estudei, e~

pecificidade quer por sinal, é bastante assumida. Eles se colo

cam como diferentes dos outros jogadores, como pessoas altamen-

te racionais, que valorizam o estudo e o trabalho, com projetos

muito bem definidos, entre os quais se inclui a pr6pria criação

do sindicato. Este, de certa forma, representa a tentativa des

ta elite específica de fazer com que o seu projeto, extremamen-

te individualista, possa ser estendi~o ~ massa dos jogadores

Para isso{ entretanto, e preciso que personagens como os carto-

las, e mecanismos como o passe e o controle do tempo { o outro

lado, o lado difícil da carreira do jogador{ sejam eliminados.


C onclusão
8 4 . zyxwvut

-Minha preocupação básica, ao escrever esta dissertação

foi a de tentar entender corno um grupo bastante específico de

jogadores representava a sua profissão, quais os planos e as e-

moções que estavru~ ligados a ela, o que era necessário para se

fazer um bom jogador de futebol, e, finalmente, quais as maio -

res dificuldades que estes jogadores encontravam nas suas car -

reiras.

Para responder a estas questões, tentei demonstrar, no

primeiro capítulo, que a opção que meus entrevistados tinham fei:.

to pelo futebol havia sido definida em relação azyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZY


w n projeto ba.§.

tante especifico, que via no futebol a chance de urna acumulação

suficiente para proplclar aos jogadores, encerrada a carreira, a


~.; zyxwvutsrqponml
r " zyxwvutsrqponmlkjih
possibilidade de uma indeDendênci~ Is l;;rn r-\.
finrlnr~irrlzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK
--~ ~-
r-«
~ r

futebol era também urna atividade pela qual todos eles, desde p~

quenos, demonstravam um grande interesse, o que abria a rara

chance de se ganhar muito dinheiro fazendo-se exatamente o que

mais se gostava, juntando-se, então, a auto-realização indivi

dual com a independência financeira.

No segundo capItulo, tendo já definido o que pretendiam

os meus entrevistados do futebol, passei a analisar as qualida-

des necessárias para que o seu projeto pudesse ser concretizado,

detendo-me especialmente em duas categorias, o talento e a per-

sonalidade.zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o primeiro, original e singular, termina por dife-

renciar os jogadores, pois apenas um pequeno número deles e

"premiado" com o talento, o que leva â formação de dois grupos

distintos de jogadores, "as .estrelas" e "os~<2adjuvantes", res-


8 5 . zyxwvutsrqpo

pectivamente, os que tem e os que n~o tem talento. J~ a persQ

nalidade parece definir um contexto de extrema igualdade no in-

terior do futebol, pois, ao contrário do talento, os elementos

que a compõem, especialmente o auto-controle, devem ser aprendi

dos e obedecidos por todos os jogadores, at~ mesmo, ou melhor,

principalmente, pelas maiores estrelas.

Com os dois primeiros capItulos, consegui um quadro, que

me pareceu razoável, das representações que os jogadores tinham

sobre o futebol, dentro e fora de ca~po. ~ lógico que há uma

infinidade de outras questões que não foram sequer mencionadas

pelos meus entrevistados, mas a intençao da pesquisa, desde o

inIcio, era exatamente esta, a de estudar as categorias de um

grupo especIfico, levantando, assim, uma das visões que os jog~

dores devem ter sobre su~ profissao~

Passei então a analisar, no terceiro capítulo, as dificul

dades que meus entrevistados encontravam para concretizar os

seus planos, o que me levou a esboçar, rapidamente, o estudo de

uma personagem básica, o cartola, e de duas instituiçoes que

eram associadas a ela pelos jogadores que entrevistei:opasse e

o controle do tempo, dois mecanismos "externos" aos jogadores ,

que atrapalham o seu projeto de acumulação e dão um car~ter ex-

tremamente autoritário ao cotidiano do futebol.

Nestes três capItulos, especialmente nos dois primeiros,

embora tenha discutido uma s~rie de temas diferentes, terminei

por privilegiar, sem a menor dGvida, o estudo do individualismo

nas representações dos jogadores entrevistados, pois me parece

que este ~ o ponto dominante do seu pensamento.


86. zyxwvut

Isso me leva, evidentemente, a tentar a qualificar este

individualismo, ainda que de forma inicial, em relação ao con -

texto mais amplo da sociedade brasileira. Ora, nossa sociedade

tem sido tradicionalmente"definida como autoritária e hierárqu!

ca, recusando o individualismo, ou alocando-o em contextos da

mais profunda inversão, como no carnaval. Aqui~ o individualis

mo e claramente dominante, mas estritamente controlado: associa

do a festa, ao carnaval, tem quatro dias para explodir, no fim

dos quais a sociedade deverá voltar a sua rotina, a sua normali

dade, privilegiando a hierarquia e a sep ar aç ao , "o você sabe com

que está falando?" (cf. Matta, 1979).

Ora, o que me parece ser específico a este individualismo

dos jogadores, é que ele aparece precisaluente ligado ao cotidi~

no, nunca ao extraordinário, e, o que é mais importante, ao co-

tidiano de uma 2rofissãor a de jogador de futebol. Isso vai

lhe dar lL'11 sentido inteiramente diferentezyxwvutsrqponmlkjihgfe


fazendo com que o fu
I

tebol, pelo menos a partir da experiencia que tive durante a

pesquisa, apareça como um contexto de individualizacao (cf. Ve-

lho, 1979), onde qualquer um, independentemente do "berço", da

riqueza, ou do poder, pode ingressar. Assim, o futebol vai a-

brir uma possibilidade concreta de ascenção social, uma ascen -

ção que pode, inclusive, ser projetada, planejada com antecedên

cia, e realizada com alguma chance de sucesso.

Na verdadezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFE
r parece ser exatamente este o caso dos jogado-

res que entrevistei. Todos afirmaram que escolheram o futebol

como profissão pela possibilidade de enriquecimento, de indepe~

dência financeira, que ele parecia trazer.


Note-se que todos eles se auto-definiram como provenien -

tes da classe média, mas tive muita dificuldade, salvo em um ou

dois casos, em conseguir informações mais concretas sobre sua

origem social. Isso me fazzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONML


r inclusive, levantar a hipótese de

que sua origem talvez seja mais modesta do que tentaram fazer

crer, o que poderia ser articulado com a extraordin~ria ~nfase

com que procuraram se separar dos "outros" jogadores, "vindosde

famllias pobres e ignorantes".

De qualquer modo, o que me parece importante afirmar aqui

e a possibilidade de ascençao e mobilidade social que o futebol

parece representar para o grupo que estudei, e, talvez, para o~

tros jogadores. É evidente que podem haver experi~ncias muito

diferentes das que analisei no interior do mundo do futebol. Se

ria, logicamente, muito interessante um estudo de outros tipos

de jogadores, menos "racionais!! e "calculistas", menos preocup.§:.

dos com a ascenç~o social, bem como uma anâlise das representa-

ções que orientam os dirigentes, os cartolas. S~o possibilida-

des em aberto, cujo


~
ct estudo, logicamente, tornaria sociologica
-
mente mais inteligivel e familiar este heterogêneo mundo do fu-

tebol.
B zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTS
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