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Senzala
2 Podemos puxar, com as devidas ressalvas, a discussão de Walter Benjamin sobre o colecionador.
Para Benjamin, não há como pensar a coleção destituída do próprio sujeito que coleciona. O
colecionador, como modelo de uma postura particular diante dos objetos, é o sujeito responsável
por agenciar espacialidades e temporalidades distintas, todas, por meio do ato da coleção,
reunidas no próprio espaço do colecionador: É decisivo, na arte de colecionar que o objeto seja
desligado de todas as suas funções primitivas, a fim de travar a relação mais íntima que se pode
imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Esta relação é diametralmente oposta à utilidade e
situa-se sob a categoria singular da completude. O que é esta “completude” <?> É uma grandiosa
tentativa de superar o caráter totalmente irracional de sua mera existência através da integração
em um sistema histórico novo, criado especialmente para este fim: a coleção. E para o verdadeiro
colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopédia de toda a ciência da
época, da paisagem, da indústria, do proprietário do qual provém. (BENJAMIN, 2007, p. 239)
repetição idêntica do passado, bem como de uma ruptura radical com todos os
passados, são dois resultados simétricos de uma mesma concepção de tempo
(LATOUR, apud Kastrup, 2004, p. 86).
Ora pendendo para a eterna repetição (busca pela constante) ora
pendendo para o novo irrefreável (acontecimento como marco divisor) as disciplinas
científicas têm cada vez mais rechaçado a ideia de uma pureza ou de um isolamento
total do objeto de pesquisa. Isso não invabiliza os procedimentos de redução e
ampliação destacados por Latour. Contudo, instaura uma mediação necessária entre
o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível 3.
Neste sentido, as grandes coleções de bibliotecas e museus se
convertem nos próprios centros de cálculo dos analistas preocupados com objetos e
fenômenos históricos. Irei mencionar um caso específico, o de Gilberto Freyre em
Casa-Grande e Senzala, para aventar a ideia de que, ao encarar o problema da
colonização das terras brasileiras, Freyre comportou-se como uma espécie de
colecionador e reuniu inscrições diversas em prol de uma estrutura reticular capaz
de dar conta das especificidades da colonização brasileira, largamente hibridizada.
Com o termo hibridizado, retomo as considerações de Virgínia Kastrup
não apenas a respeito das mediações entre sujeito e objeto, mas em como o próprio
objeto de pesquisa vai se confirmando como realidade híbrida, condição de uma
maior complexidade e precisão analítica 4. Nestes dois sentidos, podemos ler a obra
de Gilberto Freyre. Primeiramente, destaco o trabalho arquivistíco do autor, relatado
no prefácio à primeira edição da obra. Neste relato, podemos perceber como Freye
estudou seu objeto recorrendo a “centros de cálculos” diversos, selecionando e
organizando as inscrições que melhor convinham a seu projeto, definindo os rumos
conforme as contingências lhe apareciam e concretizando em ensaio o resultado de
um longo processo. Vale ressaltar que, à época, produzir uma história de hábitos e
rotinas sociais era um campo em aberto. Num afã histórico pelo evento político que
marcaria a mudança, rotinizar a história, além de nos levar de volta à questão da
3 Incontáveis mediadores operam entre a inteligência do cientista e a natureza, entre o sujeito e o
objeto da investigação. Esses mediadores são: instrumentos disponíveis, artigos científicos e
outros documentos selecionados como pertinentes, competências tecno-científicas, mas também
administrativas, dos pesquisadores, recursos financeiros destinados ao projeto por instituições de
fomento ou indústrias, interlocutores científicos, parceiros comerciais, etc. Todos esses elementos
heterogêneos – reais, coletivos e discursivos – participam do processo de criação da ciência
(Callon, 1989). Entender a ciência dessa forma é fazer dela uma leitura pragmática, contra a
perspectiva epistemológica, que abstrai a ciência de seu fazer efetivo e faz dela um discurso
exclusivamente comprometido com a verdade. A visão purificada da ciência é uma das faces da
modernidade (KASTRUP, 2004, p. 85)
4 É até esguio querer separar as duas dimensões. Tomemos apenas para mensurar a ideia de que
é possível observar os dois aspectos na obra de Freyre. Notadamente, acredito que essa
hibridização possa constituir, na composição do objeto pelo sujeito, uma racionalidade reticular.
concepção moderna de tempo levantada por Kastrup e Latour, sinalizava um passo,
paradoxalmente, fora da rotina da profissão. Vale a pena mencionar, brevemente,
um trecho do relato de Freyre que nos mostra o trabalho de um colecionador
autêntico, se lembrarmos Walter Benjamin:
REFERÊNCIAS
MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. In: PARENTE, André (Org.). Tramas da rede:
novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Tradução de
Marcos Homrich Hickmann. Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 17-38.