Sunteți pe pagina 1din 10

REGINA ZILBERMAN

Erico
Verissimo:
memória,
história e tempo
REGINA ZILBERMAN
é professora da PUC-RS. recuperado

S
omente na última página do

derradeiro volume de O Arqui-

pélago, parte final de O Tempo e

o Vento, revela-se que o narrador

de O Continente, marco inicial da

saga criada por Erico Verissimo,

não era anônimo. Não apenas

dispõe de uma identidade, mas

pertence à família que constitui a matéria principal do romance:

trata-se de Floriano Terra Cambará, descendente direto dos heróicos

Pedro Missioneiro e Rodrigo Cambará, tetraneto de Bibiana Terra

Cambará e sobrinho-neto de Maria Valéria, a única personagem

que atravessa a trilogia inteira.

O Arquipélago encerra com a frase que abre O Continente:

o narrador “sentou-se à máquina, ficou por alguns segundos a

olhar para o papel, como que hipnotizado, e depois escreveu dum


jato: “Era uma noite fria de lua cheia. As acreditam possuir, mas que ainda não teria

estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa desabrochado com plenitude.

Fé, que de tão quieta e deserta parecia um Para Jean-Yves Tadié (2000), a Recher-

cemitério abandonado” (Verissimo, 1962, che relata a história de uma vocação: o

t. 3, p. 1.014 – grifos do autor). narrador, que, em apenas dois fugazes mo-

Publicada com quase quinze anos de mentos, é designado como Marcel, busca,

diferença e ao final de uma trilogia que antes de tudo, o escritor que há nele, cuja

ela mesmo abrira (Verissimo, 1949, p. 3), obra talvez coincida com o romance que

a frase obriga o leitor a reiniciar a trilogia, estamos lendo. Erico Verissimo parece dar

porque, graças a esse artifício, a perspec- a resposta a essa questão: Floriano, roman-

tiva muda. Anônimo, o narrador parecia cista por profissão, mas até então insatisfeito

distante de seu objeto; caracterizado agora com o que publicara, não apenas confirma,

como um indivíduo histórico, dotado de no último parágrafo, seu pendor literário;

uma biografia profundamente vinculada à ele também deixa claro que O Tempo e o

família cuja trajetória está relatando, ele não Vento, ainda que narrado em terceira pessoa,

apenas se personaliza, mas também torna é o livro de sua vida, o texto que sempre

subjetivos e pessoais os julgamentos sobre desejara redigir.

as personagens do passado, a maioria das Sob esse aspecto, Erico Verissimo parece

quais conheceu de modo indireto. O Arqui- dever a Marcel Proust algumas idéias, dívida

pélago obriga à releitura de, pelo menos, antecipada pela apropriação da palavra-

O Continente e, provavelmente, de O Re- chave da Recherche – tempo – que migra

trato, conferindo circularidade à narrativa, do título do livro francês para o brasileiro

conforme um processo que compromete a e que se completa pelos tópicos realçados

linearidade do tempo – seja a da cronologia, até aqui:

seja a da própria leitura.

A estratégia utilizada na página de 1) Os narradores dos dois romances são

conclusão da trilogia assemelha-se à que escritores frustrados que somente ao final

Marcel Proust emprega no seu romance Em se revelam como responsáveis pela obra que

Busca do Tempo Perdido: a palavra final de estamos lendo; o mise-en-abyme de Proust é

O Tempo Redescoberto, último volume da antecipado pelo relato em primeira pessoa e

obra, é a mesma que abre No Caminho de pelas sucessivas reflexões e discussões sobre

Swan, narrativa que inaugura o grupo de a natureza da arte, da escrita e da leitura.

livros. A repetição da estratégia, por sua Verissimo é mais discreto: o escritor, Floria-

vez, deve-se a outra afinidade: ambas as no, aparece em O Retrato e desenvolve-se

personagens, o narrador da Recherche e em toda sua extensão tão-somente em O

Floriano, desejam afirmar-se como escri- Arquipélago, tomando conta dos episódios

tores e lutam para realizar a aptidão que finais do último volume da trilogia.
2) A revelação é deixada para o último pará- a rever seus juízos e a duvidar das idéias
grafo das respectivas obras, provocando um que até aqui formara. É igualmente moti-
efeito de surpresa e uma pergunta: coincide vado a mobilizar sua memória do tempo e
o projeto de livros desses dois escritores – o do passado, configurado pelo material de
narrador da Recherche e Floriano – ou eles que se apropriara até então, oferecido pelo
ainda terão de escrevê-lo? Nem sempre os narrador, mas, agora, passível de questio-
intérpretes de Proust coincidem na resposta namento e revisão.
a essa questão; mas Erico é taxativo: sim, Em todos esses casos, está em questão o
Floriano é o autor de O Tempo e o Vento, papel da memória diante da história:
personagem doravante responsável por • competiu à memória o armazenamento
tudo o que pode ser atribuído ao narrador dos dados de que se compõem as duas
– julgamentos, descrições, acertos e erros. narrativas, sendo que os dois romancistas
Delegam-se a autoria e a propriedade, per- viram-se obrigados a refletir sobre ela e
mitindo que o autor histórico esconda-se estabelecer os critérios para sua incorpo-
no anonimato. ração ao relato;
Sob esse aspecto, Verissimo parece não • competiu à memória o armazenamento
apenas responder à pergunta que os estudio- dos dados absorvidos durante a leitura,
sos lançam à obra de Marcel Proust; ele tam- sendo que o leitor das duas obras vê-se
bém inverte o procedimento do antecessor. perante a necessidade de se reposicionar
Porque, se, na Recherche, somos induzidos diante da história narrada, seja essa a his-
a identificar o narrador ao autor da obra, tória privada dos próprios narradores, seja
circunstância reforçada pelas duas situações a história coletiva que eles vivenciaram e
em que Albertine, em A Prisioneira, nomeia deram a conhecer.
seu amante, chamando-o de Marcel (1964), A memória é o outro dos elos a unificar as
em O Tempo e o Vento, Erico esconde-se duas obras, envolvendo o leitor e induzindo
sob a máscara da personagem e transfere a a uma reflexão sobre sua natureza, no modo
Floriano todos os méritos imputáveis à sua como os romances a representam.
criação artística.

3) Coincidem a abertura e a conclusão do


livro, por meio da repetição das palavras EM BUSCA DA MEMÓRIA
finais. Na obra de Proust, é a palavra tempo
que inaugura e fecha o conjunto de sete As últimas linhas de O Arquipélago, ao
volumes, além de se apresentar de modo revelarem para o leitor que a trilogia – ou,
direto ou indireto (graças ao emprego de ao menos, O Continente – foi redigida
advérbios e locuções adverbiais de tempo por Floriano Terra Cambará, indicam que
ou de conjunções temporais) no começo a obra resulta do trabalho de um escritor
dos romances intermediários. Na trilogia profissional. Assim, se a estratégia narrativa
de Erico Verissimo, como se observou, aproxima O Tempo e Vento e o romance de
Floriano enceta o romance projetado com Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido,
o período que lemos no princípio de “O uma sutil diferença se estabelece: Floriano
Sobrado”, capítulo primeiro de O Conti- já está inserido no sistema de produção
nente. O artifício determina a circularidade da literatura, é conhecido como autor de
da escrita, como se a obra continuamente sucesso, e sua ficção é avaliada pelos lei-
remetesse a si mesma, rejeitando a linea- tores, alguns mais rigorosos que outros,
ridade cronológica com que vinha se como sua cunhada, Sílvia Cambará, ou o
apresentando até então. amigo Roque Bandeira, o Tio Bicho, com
Esse último aspecto impõe um modo quem o filho de Rodrigo Cambará discute
particular de leitura, já que essa é obri- virtudes e defeitos artísticos. Floriano,
gada a recomeçar, sendo que, no retorno, contudo, está insatisfeito com o que criou
altera-se a posição do leitor. Ele é induzido até então. Se, ao contrário do narrador de

298 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006


Proust, já conta com um catálogo de livros trilogia, depois de percorrer os dois anterio-
publicados, tal como o antecessor, ainda res. Nas conversas com Roque Bandeira, por
não descobriu sua vocação particular, tema sua vez, ele discute que perspectiva adotar,
que Jean-Yves Tadié considera básico para elegendo a terceira pessoa do discurso, para
o entendimento da trajetória do protago- que o romance não se confunda com a au-
nista da Recherche. tobiografia do narrador.
Para chegar a essa descoberta, Floriano Até aqui, Floriano, vestindo as penas de
precisa retornar no tempo, por intermédio pavão que Erico Verissimo lhe empresta,
de um processo de regressão. Contudo, o joga com cartas marcadas. Se O Continente
percurso a perfazer não se restringe à sua foi escrito em terceira pessoa, é preciso ex-
biografia. Essa corresponde ao último elo de plicar, em O Arquipélago, por que essa op-
uma cadeia, cujo início poderia ser colocado ção foi feita, matéria de reflexão interior no
numa dessas pontas: ela teria começado confessional “Caderno de Pauta Simples”:
duzentos anos antes, com o nascimento do “O romance que estou projetando não pode,
fundador mítico da família; ou bem depois, não deve ser autobiográfico. Usar a terceira
com a ação de um antepassado que ele, pessoa, isso sim” (Verissimo, 1962, t. 3, p.
Floriano, tivera a oportunidade de conhecer 241 – grifos do autor). E se a ação se inicia
pessoalmente, tratando-se nesse caso de duzentos anos antes, com o nascimento de
Licurgo Cambará, seu avô. Pedro, pode-se inserir uma cena adicional,
Essas questões suscitam uma espécie relativa à geração de Pedro Missioneiro e
de busca – recherche – a que Floriano pre- ao acolhimento da índia grávida na missão
cisa se dispor. E determinam igualmente guarani, onde nascerá o ancestral mítico
a necessidade de articular os resultados da família:
da pesquisa ao produto já realizado,
pois, quando Floriano principia, ficticia- “1745. No topo duma coxilha, uma índia
mente, a escrever O Continente, o livro grávida, perdida no imenso deserto verde
propriamente dito não só está pronto, do Continente. O filho que traz no ventre
como foi publicado e conta com uma é dum aventureiro paulista que a preou,
recepção favorável consolidada. O final emprenhou e abandonou.
remete ao começo, mas é esse começo A criança nasce na redução jesuítica de São
que aparece no final. Isso significa uma Miguel, onde a bugra busca refúgio. A mãe
escrita que anda para trás, porque cada morre durante o parto, esvaída em sangue.
peça colocada à frente precisa mostrar A fonte… Porque esse bastardo, um menino,
coerência com o que foi exibido anteci- virá a ser um dos troncos da família que
padamente. Corresponde a uma operação vai ocupar o primeiro plano do romance, e
matemática invertida, como uma equação que bem poderá ser (ou parecer-se com) o
cuja incógnita é previamente revelada, clã dos Terra-Cambará” (Verissimo, 1962,
cabendo ajustá-la aos valores necessários, t. 3, p. 747 – grifos do autor).
porém, desconhecidos, para resolvê-la.
Qualquer falha durante o processo de Se o processo da escrita requer uma
solução compromete o resultado, por ex- regressão no tempo, não há como evitar
por contradições do enredo e evidenciar a interface entre o assunto histórico e a
inverossimilhanças. trajetória pessoal do escritor. Por isso, tal
O perigo é contornado pelas sucessivas como na Recherche de Proust, faz-se ne-
alusões, em O Arquipélago, a eventos apre- cessário o retorno à infância, introduzido,
sentados nos volumes anteriores. No “Cader- em O Arquipélago, pela cena de “Reunião
no de Pauta Simples”, Floriano expressa, para de Família I”, narrada em terceira pessoa,
si mesmo, o projeto de seu livro, anunciando em que Floriano visita a livraria Lanterna
passagens que, na sua perspectiva, farão de Diógenes e, sem se dar conta, compra,
parte da obra em gestação, mas que o leitor tal como fazia em criança, um caderno de
já conhece, se chegou ao último volume da pauta simples:

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006 299


Coleção Erico Verissimo. Arquivo do IEB-USP
Erico Verissimo
e a neta
Mariana, Porto
Alegre, 1967

“Floriano lembra-se de um dia assinalado – Que é que o senhor deseja?


de sua vida. Tinha nove anos e a professora […] Responde automaticamente:
D. Revocata Assunção lhe dissera em plena – Um caderno de pauta simples.
aula: ‘Seu Floriano, agora que o senhor ...................................................................
sabe escrever, pode comprar um caderno Floriano paga, apanha o pacote e sai, sor-
de pauta simples.’ Finalmente! Aquele rindo. A cena lhe parece tão extraordinária
era um de seus grandes sonhos: escrever que ele não quer comentá-la nem consigo
sobre linhas simples, como a professora, mesmo” (Verissimo, 1962, t. 3, p. 46).
como papai, como os grandes! Munido de
dinheiro, encaminhou-se para A Lanterna Logo a seguir, abre-se o primeiro seg-
de Diógenes, pisando duro, sentindo-se mento de “Caderno de Pauta Simples”.
homem, orgulhoso de fazer aquela compra Esse núcleo é, todo ele, grifado em itálico,
sozinho. apresentação gráfica similar à que é usada,
................................................................... em O Continente, para interpolar, após os
Floriano olha agora, distraído, para as velhas episódios que tratam da trajetória da família
prateleiras, quando ouve uma voz: Terra Cambará, os acontecimentos histó-

300 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006


ricos, comentar a reação popular suscitada a compreender “as ilhas do arquipélago a
por aqueles fatos e introduzir o percurso dos que pertenço” (Verissimo, 1962, t. 3, p. 237
Carés, representantes da camada popular, – grifos do autor), decide que deve fugir da
alheios, de certo modo, à história de que fa- autobiografia e “evitar a cilada que a sauda-
zem parte. Pode-se cogitar que, na passagem de nos arma, fazendo-nos cair no perigoso
de O Continente para O Arquipélago, Erico alçapão da infância” (Verissimo, 1962, t. 3,
Verissimo não apenas alterou o acidente ge- p. 241 – grifos do autor).
ográfico que dá nome aos volumes; mudou A regressão à infância tem teor catártico
também o registro coletivo próprio àqueles e, ainda que se prolongue pelo segundo
segmentos – que manifesta a, digamos, vox volume de O Arquipélago, visa a justifi-
populi – pelo registro pessoal que dá conta car o abandono da trilha autobiográfica e
do processo de criação de Floriano, por ex- memorialista a que o romance projetado
tensão, do romance que será elaborado ou poderia estar rumando. É como se o escritor
já foi lido. Narrado em primeira pessoa, a cortejasse a poética intimista empregada
frase inicial do “Caderno de Pauta Simples” por Proust e, depois, a desdenhasse, con-
explica o incidente da livraria: “Quem guiou forme outra modalidade de catarse, não a
meus passos para dentro da Lanterna de da personagem, mas a do criador que há
Diógenes foi o Menino que ainda habita em em Floriano.
mim” (Verissimo, 1962, t. 3, p. 59 – grifos Relegando as penas de pavão ao esqueci-
do autor). mento, Floriano assume inteiramente a pele
A essa declaração, seguem-se as recor- do escritor. O ato final desse processo consiste
dações da infância, expostas conforme uma na escolha, para ocupar o lugar de frase de
linguagem lírica, que mescla a percepção encerramento da trilogia, da frase de aber-
da criança à expressão sintética própria tura de O Continente. Essa eleição, embora
à poesia. Metamorfoseado no Menino, sugerida e antecipada por vários trechos do
imagem que o escritor faz de si mesmo “Caderno de Pauta Simples” e dos diálogos
nessa faixa etária, Floriano faz aos poucos com Roque Bandeira, é crucial, porque,
emergir seu projeto literário, concluindo o doravante, a lógica da narrativa original não
primeiro segmento com versos que apro- pode ser mais desmentida. Pelo contrário, ela
ximam a evocação do passado à abertura terá de ser confirmada, não pelo começo que
da Recherche de Proust: se transformou em final, mas pela forma que
dá conta do começo de tudo.
“Ó noites da infância! É que O Continente não se inicia por
quarto escuro uma frase, e sim por uma estrutura, marcada
fantasmas pela duplicidade dos passados. Um primeiro
sonhos passado é o que abre com a frase reproduzida
mistério” ao final de O Arquipélago, correspondendo
(Verissimo, 1962, t. 3, p. 63 – grifos do autor). ao primeiro segmento de “O Sobrado”, que
relata a resistência oferecida por Licurgo
O segundo segmento, pertencente tam- Cambará às forças federalistas, quando sua
bém ao primeiro volume de O Arquipélago, moradia está assediada pelo exército inimi-
não altera profundamente o tom, em que se go. Floriano narra, em sucessivos segmentos
misturam evocações da infância e linguagem que ocupam todo O Continente, a prova
lírica, como se, para tratar daquele período glorificante de seu avô, aquela que o colocou
da vida, fosse necessário mudar o registro na liderança política de Santa Fé, abrindo
lingüístico. Porém, Floriano parece dar-se caminho para as gerações subseqüentes, da
conta de que as penas do pavão, devidas qual faz parte, dominarem a vida da cidade
nesse caso a outro escritor, Marcel Proust, na condição de poder dirigente.
agora podem se mostrar inconvenientes. Por O primeiro segmento de “O Sobrado”,
isso, depois de afirmar, nos parágrafos ini- que toma vinte páginas, abre-se com a
ciais, que seu romance serviria para ajudá-lo frase mencionada, não encerra, mas é in-

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006 301


terrompido, quando os filhos de Licurgo, os desbaratados numa batalha campal, […]
meninos Toríbio e Rodrigo, conversam, e o – Pedro montou num cavalo baio e, levando
menor, no futuro o pai de Floriano, revela consigo apenas a roupa do corpo, a chirimia
ao irmão possuir uma arma preciosa, um e o punhal de prata, fugiu a todo o galope
punhal muito antigo: na direção do grande rio[…]” (Verissimo,
1949, p. 59).
“Toríbio procura a mão de Rodrigo por
baixo das cobertas e seus dedos tocam um A transmissão do punhal, objeto que si-
objeto frio. naliza permanentemente a ameaça de morte
– Que é isso? que acompanha as personagens masculinas
– O punhal. em O Continente, confere a Alonzo o papel
................................................................... de pai simbólico de Pedro Missioneiro. A
– […] Finco-lhe a ponta na garganta. Eu já associação de Alonzo ao sagrado, somada às
vi sangrar um boi. habilidades sobrenaturais manifestadas por
Ao imaginar essas coisas o coração de Pedro, desde a infância, outorgam ao índio
Rodrigo pulsa com mais força. Ele vê o propriedades de herói mítico. Como é de
sangue escorrendo da goela do maragato. sua relação com Ana Terra que nasce Pedro
E seus pequenos dedos apertam o cabo do Terra, pai de Bibiana e sogro de Rodrigo
punhal” (Verissimo, 1949, p. 21). Cambará, cabe-lhe igualmente a função de
ancestral totêmico da família, cuja trajetória
Um corte de tipo cinematográfico conduz Floriano virá a narrar.
o leitor à cena seguinte, protagonizada pelo Outro começo, mais primitivo, instala-
padre Alonso, jesuíta em Sete Povos das se, e um segundo passado apresenta-se,
Missões e proprietário do punhal que, páginas exigindo ser narrado. A passagem de um a
antes e 150 anos depois, está nas mãos de outro tempo – o da história política para o
Rodrigo Terra Cambará, o pai de Floriano, da origem mítica – é facultada pela reve-
o futuro escritor. Após espinhoso diálogo lação do punhal, que, na ordem do tempo,
com seu confessor, padre Antônio, Alonzo migrou, até chegar às mãos de Rodrigo Terra
relembra a sorte da arma: fora o instrumento Cambará, o último herói do clã a que Flo-
que, por pouco, não usara para matar, ainda riano pertence; e que, na ordem do discurso,
quando residia na Espanha, um adversário e permitiu à narrativa regredir aos primórdios
que trouxera para a América, na qualidade de da formação do grupo, ao início que não
penhor de um crime quase cometido. supõe nenhuma anterioridade. Assim, em O
O punhal constitui o primeiro de uma Tempo e o Vento, o punhal do padre Alonzo,
série de objetos que se transmitem de uma carregado por Pedro Missioneiro, exerce a
geração a outra de Cambarás. É, contudo, função da madeleine, na Recherche, pois
o único que atravessa o romance das pri- aciona a memória e possibilita o trânsito
meiras às últimas páginas. Pedro Missio- e o entrelaçamento das temporalidades,
neiro apropria-se dele ao fugir das missões sem o que a narrativa do passado não se
guaranis, em vias de serem ocupadas pelos faz possível.
soldados portugueses, após a derrocada Da madeleine o punhal carrega a pro-
da experiência catequética dos jesuítas. priedade de entrelaçar os tempos; traz
Pedro, o menino indígena que recebera também a marca da degradação que acom-
o nome do rival de Alonzo, como forma panha a trajetória dos Terra Cambará, após
de esse purgar sua culpa, é, agora adulto, a tomada do poder por Licurgo, ao final
igualmente o herdeiro do objeto mágico que de O Continente. Eis por que a referência
ligará passado e presente por se transmitir derradeira à arma ocorre nas páginas finais
de pai para filho: de O Arquipélago, quando Eduardo, o ir-
mão comunista de Floriano, está reunido
“Três meses depois, quando o exército dos com os companheiros na célula do Partido,
Sete Povos já haviam sido completamente em Santa Fé:

302 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006


“Na casa dum operário da firma Spielvogel nas mãos, acariciava-o, experimentava-lhe
& Filhos, na Rua das Missões, Eduardo a ponta, punha-o na cintura e imaginava-se
Cambará confabulava com um grupo de um guerreiro como o Corregedor, o alferes
camaradas, entre os quais se encontrava um real Tiaraju, que era o homem que ele mais
neto do Cel. Cacique Fagundes recém-ins- admirava na redução.
crito no Partido Comunista. Era um rapaz de Pedro ficava-se ali na cela a imaginar essas
tipo indiático, de pouco mais de vinte anos. coisas. Depois repunha o punhal sobre a
Aquela reunião, que tinha todo o ar duma mesa e retirava-se sem ruído, como uma
conspiração, deixava-o excitado. sombra” (Verissimo, 1949, pp. 45-6).
Fazia calor. A mulher do operário serviu
guaranás. Eduardo tirou o casaco, deixan- Pode-se supor que, pela imaginação do
do à mostra o punhal que, de hábito, trazia jovem Fagundes, de ascendência indígena,
preso à cinta. O jovem Fagundes pediu para também transitassem as fantasias que po-
ver a arma. Revolveu-a nas mãos, olhou o voam a mente de Pedro Missioneiro, ainda
lavor do cabo de prata, passou os dedos pela criança. A situação das personagens não
lâmina e por fim perguntou se aquele era o guarda apenas essas semelhanças; como
famoso punhal que, segundo rezava a tra- observa Eduardo, descendente, aliás, do
dição, estava com a família Terra-Cambará sonhador Pedro, o grupo de comunistas
havia quase duzentos anos. Eduardo deu-lhe está prestes a cair na clandestinidade, assim
uma resposta breve e distraída. Estava exa- como os guaranis de Sete Povos estavam, em
minando com interesse uma lista de nomes 1750, quando a ação narrada se passa, em
de pessoas da cidade e do municípío que vias de aniquilação por força dos exércitos
simpatizavam com a causa do comunismo combinados de Portugal e Espanha.
e que, dum modo ou de outro, poderiam Eis o outro lado da circularidade nar-
ajudá-la. Por fim, reclinando-se contra o rativa proposta em O Tempo e o Vento.
respaldo da cadeira, disse: Observe-se que a cena protagonizada por
– Bom, precisamos estar preparados para o Eduardo e o neto de Cacique Fagundes, não
que vem por aí. Estou convencido de que o nomeado, ocorre na noite de Ano Bom, logo,
novo governo vai pôr o Partido fora da lei. ao mesmo tempo em que Floriano, na man-
O neto de Cacique Fagundes, que tinha ainda sarda onde costuma se refugiar para refletir
na mão o punhal, escutava-o fascinado, com ou escrever, inicia a composição do livro.
uma expressão febril nos olhos oblíquos” Por intermédio desse recurso, retomam-se
(Verissimo, 1962, t. 3, pp. 1.009-10). os dois tempos com que a narrativa iniciara,
em O Continente:
A cena parece reproduzir outra, coloca- • a trajetória secular dos Terra Cambará,
da no primeiro episódio da cronologia de equivalente ao primeiro passado, encontra
O Continente, “A Fonte”, em que Pedro, seu redator, completando-se o ciclo iniciado
ainda menino e residente em Sete Povos por Licurgo, em “O Sobrado”, o espaço
das Missões, contempla, com fascínio si- representando aqui o lugar de início e termo
milar, o punhal de Alonzo, o mesmo que, da família;
no final do segmento, leva consigo ao fugir • a trajetória histórica, matéria do segundo
da redução em chamas: passado, desemboca, por sua vez, em nova
conspiração e desejo de mudança, de que
“O espírito de Pedro não se concentrava são portadores personagens de extração
no trabalho. Nem o espírito nem os olhos, popular e vinculados às etnias formadoras
pois estes estavam fitos, fascinados, no da região.
punhal de prata que se achava em cima da Os dois tempos apresentam, ambos,
mesa da cela. construção circular: Floriano remete ao
................................................................... começo da leitura, o punhal de Eduardo,
Sempre que podia, Pedro entrava furtiva- cobiçado pelo jovem Fagundes, ao começo
mente na cela do padre, tomava o punhal da história. Em ambos os casos, a memória

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006 303


é o elemento unificador, mas, na obra de Essa personagem aparece nas primeiras
Erico Verissimo, ela transcende o âmbito páginas de O Continente desempenhando
pessoal, até porque sua madeleine – trans- função vital em “O Sobrado”: é a mulher
figurada no punhal de prata – é objeto que lúcida e combativa, que desafia o poder de
circula entre homens, atravessando grupos Licurgo, embora nutra recolhida paixão
sociais e mudando de portador. Pode, por pelo cunhado. Essa caracterização inicial
isso, simbolizar a história que o livro quer sugere, desde já, que, se de um lado ela
igualmente retratar. reproduz as mulheres que a antecederam,
como Ana Terra e Bibiana Cambará, por
outro, antecipa o comportamento de Flo-
riano: também ele ousa afrontar o senhor
DA MEMÓRIA PARA A HISTÓRIA do Sobrado – seu pai, Rodrigo Terra
Cambará – como alimenta recolhido amor
Para poder redigir o livro que vai salvar pela cunhada, Sílvia, casada com Jango,
sua carreira de escritor e pacificá-lo interior- o irmão responsável pela manutenção do
mente (pois permitirá a reconciliação com Angico, a fazenda da família, e quase um
o pai, com o irmão Jango e com Sílvia, a duplo de Licurgo, seu avô.
mulher amada com quem não teve coragem Maria Valéria, ao lado de Licurgo e
de casar, atitude de que, agora, se arrepen- dos dois filhos desse, Toríbio e Rodrigo,
de), Floriano não pode confiar apenas em migra para O Retrato e, depois, para O
sua memória pessoal. Ele bem que tenta, Arquipélago. As três personagens mascu-
começando o “Caderno de Pauta Simples” linas morrem durante o transcurso dos três
por um esforço de regredir à infância e res- tomos do último volume de O Tempo e o
gatar suas impressões originais da família e Vento, mas não a velha senhora, cuja função
das outras pessoas com quem, em criança, esclarece-se nos capítulos de “Caderno de
se relacionava. Pauta Simples”.
O processo de regressão não se frustra No primeiro segmento, Floriano subli-
completamente porque mostra que, se per- nha a influência que exercera na sua for-
corresse essa via, daria com os costados mação, apresentando, de modo singelo, os
na mesma literatura intimista e desfibrada valores que regerão seu comportamento:
que vinha praticando até então. O fato de
conferir ao punhal o papel desempenhado “Mas para o Menino toda a sabedoria da
pela madeleine já é expressivo da mudan- vida concentrava-se em duas mulheres: a
ça, pois, enquanto o biscoito, no texto de Dinda e a Laurinda. Tinham a última pala-
Proust, desencadeia associações e sensações vra em matéria de Teologia, Cosmogonia,
percebíveis apenas pelo narrador, a arma Meteorologia, Astronomia e outros ‘ias’
pode evidenciar um sentido apreensível e enigmas” (Verissimo, 1962, t. 1, p. 62
pelo grupo, seja o familiar, seja o social. A – grifos do autor).
madeleine sofre o desgaste natural do tempo,
da situação especial em que aparece e de sua E reproduzindo seus ditados, entre os
condição perecível, enquanto o punhal, por quais se destaca o que regula o seu destino:
sua resistência e durabilidade, pode cruzar o
tempo, apontando para as relações existentes “Mas entre todos os ditados da Dinda, um
entre as várias etapas da história. havia que deixava o Menino pensativo.
A rejeição do intimismo, do relato em Cada qual enterra seu pai como pode” (Ve-
primeira pessoa e da autobiografia determina rissimo, 1962, t.1, p. 63 – grifos do autor).
a escolha de um outro modelo de gatilho para
a memória. Pela mesma razão, cabe encontrar Maria Valéria não sintetiza apenas a
outra fonte, para além do próprio eu, dada sabedoria e o bom senso; ela igualmente
a precariedade e limitação desse; define-se, responsabiliza-se pela conservação do
assim, o papel atribuído a Maria Valéria. passado, razão por que é a ela que Floria-

304 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006


no recorre quando deseja conhecer figuras como estava.) Todas essas coisas natural-
e enredos da família, como os que dizem mente me excitam a fantasia pelas suas
respeito a Bibiana e “seu marido, um certo possibilidades novelescas, mas concentro
Cap. Rodrigo, aventureiro, espadachim, a atenção principalmente nas cartas, nos
mulherengo, homem de coragem extraordi- recortes de jornais e nos daguerreótipos que
nária e apetites insaciáveis”, ou a “outros descubro dentro duma caixa de sândalo,
antepassados mais longínquos, como essa no fundo do baú” (Verissimo, 1962, t. 3,
quase lendária Ana Terra, minha pentavó, p. 748 – grifos do autor).
que a tradição aponta como um dos fun-
dadores de Santa Fé” (Verissimo, 1962, t. Não por outra razão Roque Bandeira,
3, p. 748 – grifos do autor). nas primeiras páginas de O Arquipélago,
Maria Valéria não retém apenas a memó- qualifica a tia-avó de Floriano de “vestal
ria dos fatos; ela preserva igualmente os ves- do Sobrado, que mantém acesa a chama
tígios do passado, corporificados nos objetos sagrada de sua vela… É uma espécie de
que sintetizam os sujeitos que os portaram. farol em cima dum rochedo, batido pelo
Esses objetos, verdadeira memorabilia da vento e pelo tempo…” (Verissimo, 1962,
família Terra Cambará, estão armazenados t. 1, p. 19). Assim definida, Maria Valéria
num baú, cuja chave só ela possui e a que aparece como o oposto de O Tempo e o Ven-
apenas Floriano tem acesso: to, símbolo da resistência à perecibilidade
a que estão submetidas pessoas e coisas.
“Depois de muitas hesitações e resmungos, Nada mais representativo da memória e da
a Dinda me confia a chave do baú de lata permanência, tarefas de que ela se incumbe
em que traz guardadas suas lembranças e sem fraquejar.
relíquias. Encontro nele, de mistura com Fonte da memória, ela se confunde
incontáveis bugigangas […], importantes com a matéria que preserva. Confunde-se
peças do museu da família, como o dól- também com o próprio Floriano, como
mã militar do Cap. Rodrigo, um xale que duplo da ação do sobrinho-neto, a quem se
pertenceu a D. Bibiana, e uma camisa de mescla, constituindo, pois, a unidade que
homem, de pano grosseiro e encardido. (É a garante a narrativa da história. Graças a essa
que meu bisavô Bolívar Cambará vestia no fusão, a memória vai em busca da história,
dia em que foi assassinado pelos capangas e a narrativa acontece. Sem a confluência
dos Amarais, e que sua mãe guardou, assim entre a memória e seu narrador, não emerge
esburacada de balas e manchada de sangue a história, nem se faz o livro.

BIBLIOGRAFIA

PROUST, Marcel. A Prisioneira. Trad. Lourdes Sousa de Alencar e Manuel Bandeira. 2a ed. Porto Alegre, Globo, 1964
(Em Busca do Tempo Perdido, 5).
TADIÉ, Jean-Yves. Proust et le Roman. Paris, Gallimard, 2000 (1971).
VERISSIMO, Erico. O Continente. Porto Alegre, Globo, 1949.
––––––. O Arquipélago. Porto Alegre, Globo, 1962.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 296-305, dezembro/fevereiro 2005-2006 305

S-ar putea să vă placă și