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AMAZÔNIA,

um bioma mergulhado em conitos


Relatório Denúncia
Foto: Joka Madruga

anos

1 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


AMAZÔNIA,
um bioma mergulhado em conflitos
Relatório Denúncia

anos

Articulação das CPT’s da Amazônia


Expediente Diretoria da CPT:
D. Enemésio Ângelo Lazzaris - Presidente
Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Secretaria D. André De Witte - Vice-presidente
Nacional - Rua 19, nº 35, 1º andar – Centro
Caixa Postal 749.74001-970 Coordenação Executiva Nacional:
Goiânia-GO Jeane Bellini
Fone: (62) 4008-6466 Fax: (62) 4008-6405 Paulo César Moreira
E-mails: cpt@cptnacional.org.br Ruben Siqueira
articulacaoamazonia@cptnacional.org.br Thiago Valentim
Site: www.cptnacional.org.br
Equipe de redação:
Comissão Pastoral da Terra é um organismo Articulação das CPT’s da Amazônia
ligado à Comissão para o Serviço da Caridade, da CPT Acre
Justiça e da Paz, da CNBB. A CPT é membro da CPT Amapá
Pax Christi Internacional. CPT Araguaia/Mato Grosso
CPT Araguaia/Tocantins
A Articulação das CPT’s da Amazônia é um CPT Itaituba/Pará
projeto que reúne os nove regionais da Amazônia CPT Lábrea/Amazonas
Legal da Comissão Pastoral da Terra. CPT Maranhão
CPT Rondônia
Amazônia, fevereiro de 2016 CPT Roraima
CPT Santarém/Pará

Assessoria:
Elder Andrade de Paula

Edição e revisão:
Antônio Canuto
Elvis Marques
Jeane Bellini

Foto Capa:
Joka Madruga

Diagramação:
Vivaldo da Silva Souza

Impressão:
Gráfica e Editora América
Fone: (62) 3253-1307

Apoio:
Misereor
SUMÁRIO

Relatório-Denúncia mostra “fogo de monturo”..................................................................................................7


Amazônia, conflitos tiram o brilho do verde.......................................................................................................9

RELATÓRIO-DENÚNCIA DA AMAZÔNIA

Amapá
Boa Vista da Pedreira, justiça manipulada.........................................................................................................12

Acre
A luta dos seringueiros do Riozinho e os Planos de
Manejo Florestal....................................................................................................................................................23

Amazonas
A comunidade de Lusitânia, o fim de um império...........................................................................................30

Maranhão
Conflito no quilombo Charco, uma novela em
muitos capítulos.....................................................................................................................................................39

Mato Grosso
Assentamento na mira de quadrilha especializada
em grilagem de terras...........................................................................................................................................46

Pará
Conflito gerado por desmandos de funcionários do INCRA..........................................................................51

Rondônia
A difícil retomada das terras públicas na Amazônia:
O conflito dos assentamentos do Flor do Amazonas em Candeias do Jamari..............................................59

Roraima
Madeireira no caminho de comunidade camponesa.......................................................................................67

Tocantins
Comunidade Vitória: Terra Legal alimenta conflito.........................................................................................73
Relatório-Denúncia mostra
“fogo de monturo”
“O fogo vai se alastrando devagarinho por baixo e nem se
percebe a fumaça, por isso ninguém vê, quando aparece já quei-
mou tudo”. (Dercy Teles de Carvalho)

No momento em que finalizamos a leitura A “inovação” em relação ao ciclo expansio-


deste Relatório-Denúncia, lembramo-nos da ex- nista comandado pela ditadura militar pode ser
pressão “fogo de monturo” usado pela então pre- apontada nas políticas que favoreceram o avanço
sidente do Sindicato dos Trabalhadores e Traba- da mercantilização da natureza para além da apro-
lhadoras Rurais (STTR) de Xapuri, Dercy Teles. priação privada da terra. A lei 11284/2006, que
Ela a utilizou em uma conversa que mantivemos instituiu a concessão de florestas públicas para ex-
em 2013, para explicar os crescentes conflitos so- ploração madeireira, bem como outras desregula-
ciais na Reserva Extrativista (Resex) Chico Men- mentações que abriram as portas para exploração
des, no período recente. De acordo com Dercy, florestal madeireira em unidades de conservação
os ditos conflitos não surgiram repentinamente, como as Resex, ilustram exemplarmente essas ou-
estavam em curso há algum tempo, assim como tras formas de expropriação dos bens comuns.
“fogo de monturo”, por isso não eram vistos ou Os conflitos com as madeireiras aqui re-
percebidos externamente. portados mostram exemplarmente os efeitos per-
Não seria exagero afirmar que atualmen- versos dessa frente de expansão legitimada pela
te esse tipo de “fogo de monturo” se espraia por ideologia do “desenvolvimento sustentável”. Vale
toda Amazônia brasileira. Nesse sentido, devemos ressalvar que as madeireiras, como as citadas nos
ressalvar, inicialmente, a inestimável importân- casos do Riozinho (Acre) e Cujubim (Roraima),
cia dessa iniciativa da Comissão Pastoral da Terra atuam legalmente via “Planos de Manejo Florestal
(CPT) no sentido de construir este Relatório sobre Sustentável”. Cabe lembrar ainda que este tipo de
os conflitos por terra/território na região amazô- exploração tem sido amplamente defendido por
nica. Os casos escolhidos para ilustrar a natureza uma vasta rede de ONGs ambientalistas atuantes
dos conflitos em cada estado dão uma ideia desse em múltiplas escalas. Um dos argumentos utiliza-
novo ciclo de espoliação na virada do século XX dos por elas é o de que diminuiriam os conflitos e
para o XXI. conservariam as florestas... O pior de tudo é que
Entre as semelhanças com o ciclo anterior muita “gente boa” acreditou e segue acreditando
desencadeado pela ditadura militar (1964-1984) nessa quimera.
merece destaque a centralidade das transgressões Concorre ainda para a vitalidade desta pu-
da legislação como conduta padrão do capital. A blicação, tanto o fato de ter sido elaborado por
primeira transgressão se processa na grilagem da agentes da CPT que vivenciam cotidianamente o
terra para fins de negócio, e o passo seguinte é alte- drama das comunidades camponesas envolvidas
rar a lei para legitimar a transgressão anterior. En- nesses conflitos, quanto o de fazer ecoar as vozes
tre outros, o Programa Terra Legal tem se prestado desses sujeitos desde a Amazônia profunda. In-
a esse papel, conforme mostrado neste Relatório. sistimos nessa valoração porque nas duas últimas

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décadas essas vozes dos “de baixo” foram paulati- anas o sindicalismo rural foi o protagonista central
namente sufocadas ou silenciadas. das lutas de resistência pela terra/território entre as
Pior ainda, parte expressiva das represen- décadas de 1970-1990.
tações camponesas atuantes na Amazônia1 resig- Devemos chamar atenção, todavia, para o
nou-se com esse confisco da voz e o seu gradativo fato de que também nesses conflitos reportados
deslocamento da condição de sujeitos para a de neste Relatório aparecem indícios de busca de su-
objetos no decorrer desse processo. Ademais de peração dessas ausências. Eles aparecem com mais
assimilarem a ideologia do “desenvolvimento sus- nitidez nos conflitos de Charco (Maranhão) onde a
tentável” e as políticas de privatização e mercanti- luta quilombola procura desobstruir os caminhos
lização da natureza legitimadas sob dito arcabouço interditados, participando de novas iniciativas
ideológico, aceitaram que “outros” −, sobretudo como a da formação do Movimento Quilombola
grandes ONGs conservacionistas e suas interme- do Maranhão (MOQUIBOM). Aparecem também
diárias locais bem como diversos agentes institu- nos casos da Comunidade Vitória (Tocantins), via
cionais − passassem a falar em nome desse cam- Articulação Camponesa, e o Assentamento Flor do
pesinato. Amazonas (Rondônia) onde se constrói uma arti-
Também por essa razão, alteraram-se as culação com diversas organizações e movimentos
condições do enfrentamento, das lutas de resis- sociais urbanos.
tência em cada frente de expansão do capital. Em suma, como bem intuiu o IV Congres-
Neste Relatório-Denúncia foram apontadas três so Nacional da CPT, realizado em julho de 2015
frentes predominantes: exploração da madeireira, em Porto Velho, Rondônia, “Faz escuro, mas eu
pecuária e monocultivos. Enquanto os interesses canto”. Oxalá que no “fogo de monturo” espraia-
representados por essas frentes lograram o alar- do em múltiplos conflitos por terra/território em
gamento do seu poder e influência no aparato “Nuestra Amazonía”, a ousadia e imaginação cria-
estatal, a maioria das comunidades camponesas tiva dessas comunidades em luta sejam capazes de
em luta perderam seus lastros de apoio existentes fazer “cantar no escuro” e nesse canto de rebeldia
anteriormente por parte de suas representações reavivar as chamas da esperança. Por isso e muito
de caráter mais abrangente, como o sindicalismo mais, vale a pena uma leitura atenta de mais esta
rural. importante contribuição da CPT, tanto para os que
Dos nove conflitos reportados nesta pu- permanecem em luta pela Reforma Agrária quanto
blicação, os sindicatos de trabalhadores rurais só para os estudiosos do tema. Desejamos uma boa
aparecem como aliados em três casos. Aparente- leitura!
mente de forma tímida. Chama atenção, inclusive,
sua ausência no caso do conflito no Riozinho, caso Elder Andrade de Paula
do estado do Acre. Como sabemos, em terras acre- Rio Branco, novembro de 2015

1
Destacamos entre essas representações especialmente o Sindicalismo Rural e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).

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Amazônia, conflitos
tiram o brilho do verde
A Amazônia é o maior bioma do Brasil. Ge- Milhares de famílias sem terra foram alicia-
ograficamente é formada pelos estados da região das e estimuladas a irem para a Amazônia, esva-
Norte: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Roraima, ziando desta forma áreas onde a pressão por refor-
Rondônia e Tocantins. Mas o bioma avança para os ma agrária era maior, o Nordeste e o Centro-Sul.
estados do Mato Grosso e Maranhão. Por este mo- Mas a transferência de famílias sem terra
tivo e para fins administrativos e de planejamento para a Amazônia era um pequeno detalhe do pro-
econômico, a Lei N.º 1.806 de 1953, incorporou jeto colonial de ocupação da Amazônia. A gran-
parte dos territórios do Maranhão e do Mato Gros- de ocupação seria feita pelo capital. Para isso foi
so à Amazônia, criando assim o que se chamou de criada a Superintendência de Desenvolvimento da
Amazônia Legal. Este território tem uma área de Amazônia (SUDAM), que oferecia fartos e genero-
cerca de 5.217.423 km², 61% do território brasilei- sos incentivos fiscais para as empresas que se dis-
ro. pusessem a investir na Amazônia. Elas poderiam
O processo do chamado desenvolvimen- reter 50% do imposto de renda devido, desde que
to da Amazônia é um exemplo mais que claro de o investissem na região. Com isso, uma corrida gi-
como ele se deu como reprodução do sistema colo- gantesca se deu atrás destes incentivos, sobretudo
nialista que presidiu a formação do Brasil, a partir para o Norte de Mato Grosso, Norte de Goiás, hoje
da invasão portuguesa em 1500. Tocantins, e Sul do Pará. Assim se formaram imen-
Essa reprodução ficou escancarada, em sas fazendas, de centenas de milhares de hectares
1970, quando o presidente Médici, ao lançar a aber- de terra. Era o carro forte da nova colonização da
tura e construção da Transmazônica, afirmou que Amazônia.
a estrada tinha como objetivo “o de levar homens As populações locais pré-existentes passa-
sem terra, para uma terra sem homens”. As popu- ram a sofrer as mais diversas formas de pressão
lações locais, indígenas, posseiros, ribeirinhos, se- para abrir caminho para o ‘desenvolvimento e o
ringueiros e toda uma infinidade de comunidades progresso’ que chegava do Sul e do Sudeste para
pré-existentes, não existiam, não contavam para ‘redimir’ a Amazônia do ‘atraso’ em que vivia.
nada. E desde esse período até os dias de hoje ain- Estava instaurado um novo período colo-
da são consideradas um entrave e empecilho ao nial no Brasil, a Amazônia se tornava a mais nova
dito desenvolvimento e progresso. colônia do Brasil.
Neste mesmo ano, em 9 de julho de 1970, Esta política colonialista foi se solidifican-
pelo Decreto nº 1.110, o governo militar promoveu do em diversas frentes de expansão do capital. Em
a fusão do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária seu horizonte não estava o ‘desenvolvimento’ local,
(IBRA) com o Instituto Nacional de Desenvolvi- mas sim a extração das quase inesgotáveis riquezas
mento Agrário (INDA), criando o Instituto Nacio- que a natureza proporcionava - uma das caracterís-
nal de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). ticas mais marcantes do sistema colonial.
O governo tornava explícito que seu projeto para Assim foi apoiada e incentivada a explora-
o Brasil e, sobretudo para a Amazônia, não era a ção madeireira, inclusive com a criação dos proje-
reforma agrária, mas a ‘colonização’, que ficou es- tos de manejo florestal; a mineração que avançou a
tampada no nome do novo instituto. passos largos sobre territórios de comunidades tra-

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dicionais; a construção de hidrelétricas para forne- movimentos sociais e os assentamentos feitos pelo
cer energia para a exploração mineral eletrointen- INCRA.
siva e para o abastecimento do Centro-Sul do país. De 1987 a 2009, na Amazônia se deram 15%
Para garantir tudo isso, a abertura e o asfaltamento das ocupações de terra, enquanto 47 % ocorreram
de rodovias, a criação de hidrovias, etc. no Centro-Sul, e 38% no Nordeste. Porto-Gonçal-
Esta política é a fonte clara de onde surgi- ves cita:
ram os incontáveis conflitos por terra que levaram “O que soa mais contraditório, porém,
os bispos e prelados da Amazônia, em histórico é que mesmo a Amazônia apresentando
encontro há 40 anos, em Goiânia, Goiás, a propo- o menor índice de ocupações de terra,
rem a criação de uma pastoral que acompanhasse nela é que o governo assentou 70% das
homens e mulheres de comunidades inteiras que famílias, no período de 2003 a 2006,
sofriam as mais variadas formas de agressão aos como analisaram o professor Paulo Ro-
seus direitos e dignidade. Era criada a Comissão berto Alentejano e Tiago Lucas Alves da
Pastoral da Terra (CPT). Desde o início, diante Silva, da Universidade Estadual do Rio
da violência presente, a CPT se propôs a registrar de Janeiro (UERJ). Segundo os autores,
fatos e números da mesma para que se tornassem isso “configura um descompasso en-
instrumento de ação e resistência para as próprias tre as ações dos movimentos sociais na
comunidades. A partir de 1985, o relatório anual luta pela terra e a política levada a cabo
Conflitos no Campo Brasil passou a ser divulga- pelo governo”[...]“Evidencia-se, assim,
do para que a sociedade brasileira pudesse tomar que a política agrária do governo Lula
consciência do que acontecia em todo o Brasil, mas não só protege o latifúndio/agronegócio
de modo particular na Amazônia. onde este se encontra mais cristaliza-
Os conflitos e a violência contra os traba- do, o Centro-Sul, mas também apoia
lhadores e trabalhadoras do campo que aconte- sua expansão em direção à Amazônia”.
ciam e ainda acontecem em todo o Brasil se con- [...]“Apoia através da criação de assen-
centram de forma expressiva na Amazônia, para tamentos fantasmas, legalização da gri-
onde avança o capital, tanto nacional quanto in- lagem etc”.
ternacional. Dados dos últimos anos publicados em
O professor da Universidade Federal Flu- Conflitos no Campo Brasil reafirmam a concentra-
minense (UFF), Carlos Walter Porto-Gonçalves, ção da violência na Amazônia.
analisando os dados dos registros feitos pela CPT Na Amazônia, em 2013, foram registrados:
no período de 25 anos da publicação de Conflitos • 20 dos 34 assassinatos de trabalhadores e
no Campo Brasil, constatou o seguinte: trabalhadoras do campo;
De 1985 a 2009, a Amazônia concentrou • 174 das 241 pessoas ameaçadas de morte;
63% do total dos assassinatos no campo; 39% das • 63 dos 143 povos do campo presos;
famílias expulsas pelo poder privado; 52% do total • 129 das 243 pessoas agredidas;
dos camponeses presos no país. • 88 das 141 ocorrências de trabalho escravo.
E o acento dado à ‘Colonização’ em detri- E na Amazônia, em 2013, cerca 5.530.036
mento da reforma agrária fica claro na compara- hectares do total de 6.228.267 hectares de terra es-
ção feita entre as ações de ocupação de terra pelos tavam envolvidos em conflitos por terra.

2
Alentejano, Paulo; Alves da Silva, Tiago Lucas – Ocupações, acampamentos e assentamentos: o descompasso entre a luta pela terra e a política agrária do
governo Lula – in Conflitos no Campo Brasil 2008, pg 128-134,2009 - CPT.

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No ano de 2014 os números mostram situa- marem forças, para realizarem uma leitura mais
ção semelhante. Na Amazônia, se computaram: adequada da realidade da região, buscando cami-
• 24 dos 36 dos assassinatos registrados no nhos e instrumentos novos para enfrentar os de-
campo brasileiro; safios apresentados.
• 38 das 56 tentativas de assassinato; Esta publicação quer ser uma amostra dos
• 150 das 182 pessoas ameaçadas de morte; conflitos e suas causas que diariamente se vivem na
• 71 das 131 ocorrências de trabalho escra- Amazônia. Em cada estado foi escolhido um con-
vo; flito que, de certa forma, representa, ainda hoje o
• 7.178.743 hectares do total de 8.134.241 mundo dos conflitos e da violência em que estão
hectares de terra envolvidos em disputa. inseridas as comunidades do campo.
Em 2015 estes não só se confirmam, mas São conflitos que envolvem os quilombolas,
adquirem uma dimensão, pode-se dizer, espan- no Maranhão; conflitos em que a Justiça é manipu-
tosa. lada ao prazer de empresas para expulsão de famílias
• Dos 51 assassinatos registrados no Bra- de posseiros, no Amapá; conflitos em que se per-
sil, 48 foram na Amazônia, sendo 21 em petuam formas arcaicas de exploração do trabalho,
Rondônia, 19 no Pará, 6 no Maranhão, 1 no Amazonas; conflitos provocados no processo da
no Amazonas, e 1 em Mato Grosso. extração da madeira, em Roraima; conflitos provo-
Na Amazônia ocorreram também: cados pela regularização de terras pelo Programa
• 30 das 59 tentativas de assassinato; Terra Legal, no Tocantins; conflitos provocados por
• 93 das 144 pessoas que receberam amea- verdadeira quadrilha de negociação de terras, no
ças de morte; Mato Grosso; conflitos gerados pela corrupção de
• 66 dos 80 camponeses presos; funcionários de órgãos públicos, no Pará; conflitos
• E dos 21.374.544 hectares em conflito, nascidos da falta de empenho em recuperar terras
20.000.853 estão na Amazônia. públicas, em Rondônia; e conflitos inseridos em áre-
Dada importância que a Amazônia tem as de planos de manejo florestal, no Acre.
adquirido cada vez mais no cenário nacional e in- A Comissão Pastoral da Terra na Amazônia
ternacional e pelo fato de lá se concentrar grande quer que esta publicação seja um Relatório-De-
parte dos conflitos e da violência contra os ho- núncia para que as diferentes situações de conflito
mens e mulheres do campo, a CPT decidiu, em provoquem nas autoridades competentes medidas
2009, criar uma Articulação das CPT’s que atuam firmes e eficazes para sanar os males que estão à
nos nove estados da Amazônia, para, juntas, so- raiz dos mesmos.

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Amapá

Boa Vista da Pedreira,


justiça manipulada

Foto: CPT Amapá


A floresta Amazônica
no Amapá derrubada.
Imagem de uma área de
manejo florestal

As terras do Amapá são a bola da vez do ex- antigos “proprietários” estão querendo fazer uma
pansionismo ilegal, devastador e violento do cha- “negociação” vendendo as terras para os atores do
mado agronegócio. Aconteceu e está acontecendo agronegócio.
no resto do país, e o Amapá não podia ficar fora. Esta é uma das causas que torna mais difí-
A fome e a ganância do capital agrário e minerário cil, por exemplo, o reconhecimento e a criação de
são insaciáveis. Territórios Quilombolas: muitos filhos de quilom-
A Comissão Pastoral da Terra no Amapá bolas que já têm uma vida feita na cidade e não
(CPT-AP) vem denunciando o aumento de confli- pretendem voltar para o interior, não querem que
tos por terra no estado desde 1995 (expansão da os pais aceitem o Território, pois neste caso as ter-
monocultura do eucalipto), com um forte recru- ras não poderão mais ser vendidas, como gosta-
descimento a partir de 2004 (expansão do agrone- riam de fazer seus herdeiros.
gócio de grãos) e em 2006 (expansão da mineração De lá para cá os conflitos por terra e a de-
e do desmatamento). vastação ambiental aumentaram em proporção ge-
O aumento da violência atual é causado, ométrica e não há sinal de que possam diminuir.
também, pela supervalorização econômica das Pelo contrário, a cegueira, a incompetência e/ou a
terras agricultáveis do Amapá. Só como exemplo: conivência dos órgãos públicos, em nome de um
em 1995 a empresa Chamflora adquiriu 273.000 pretenso desenvolvimento do estado, continuam
hectares de terras pagando um valor médio de 100 favorecendo esta situação de grave ilegalidade.
reais por hectare. Não era bom negócio vender. O Amapá tem uma realidade fundiária
Hoje as terras estão sendo vendidas por 3.000 ou muito diferente dos demais estados da Amazônia
4.000 reais o hectare e até mais. Os herdeiros dos Legal: no Amapá não existem terras “devolutas”.

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No estado todas as terras já foram descriminadas e ação criminal sequer por ocupação ilegal de ter-
estão matriculadas em nome de particulares, pes- ras públicas. Também a Advocacia Geral da União
soas físicas ou jurídicas, ou em nome do poder pú- (AGU), responsável por defender o patrimônio
blico municipal, estadual ou federal. público, dificilmente aciona criminalmente os
As terras registradas em nome de pessoas ocupantes ilegais dessas terras. Quase sempre estes
físicas ou jurídicas somam cerca de dois milhões órgãos limitam-se a ações civis possessórias que se
de hectares (1.967.516,92). Os mais de 12 milhões prolongam por tempos intermináveis.
de hectares restantes (12.313,941,02) são matri-
culados em nome do poder público, sobretudo da Um caso emblemático
União (Ibama, Funai, Incra, Exército).
A ocupação de terras públicas, jurídica e O caso da localidade de Boa Vista da Pe-
geograficamente definidas, é crime que deve ser dreira, na rodovia AP-070, distante 50 km de Ma-
punido, conforme o art. 20 da lei n. 4947. Pelo art. capá, é um exemplo do avanço do agronegócio na
5 da lei 11.952, a ocupação das terras públicas é região e de como são tratadas as comunidades pe-
permitida só para quem delas precisar para seu las diferentes esferas do poder público, de modo
sustento e o de sua família. Terra pública é terra particular pelo Judiciário.
de trabalho e não terra de negócio. Só pode ser Em oficio dirigido ao presidente do Tribunal
posseiro quem não tem nenhum outro imóvel ru- de Justiça do Amapá (TJ-AP), padre Sisto Magro, da
ral em todo o território nacional. Quem já é dono CPT Amapá, faz uma síntese do que tem ocorrido
ou posseiro de um terreno no Brasil, seja lá onde no estado, pedindo providências. Vejamos:
for, vira criminoso ao ocupar terra pública e deve Em abril de 2013 a empresa Agrocerrado
ser punido, como manda a lei. Um posseiro não se instalou na localidade do Curicaca, município
pode vender sua posse. A compra e venda de terra de Itaubal do Piririm, e começou a pretender vá-
pública é proibida terminantemente por lei. É cri- rias áreas na AP-070, entrando em conflito com os
me: o vendedor e o comprador devem ser punidos posseiros residentes no local. Essas áreas totalizam
conforme a lei. 4.000 hectares que foram divididos em lotes de cer-
Por lei, o agronegócio extensivo e intensivo, ca de 700 hectares, cada um em nome de pessoas
como se entende normalmente, é proibido em ter- ligadas ao senhor Gilberto Laurindo e que nem
ras públicas. moram na região.
No entanto, no Amapá o agronegócio está Em nome de Henry Gabriel Fróes Laurindo
baseado na ocupação ilegal de terras públicas e/ou esta a fazenda São Gabriel; no de Anibal Manoel
na compra ilegal de posses, muitas vezes por meio Laurindo, a fazenda Iguaçu; no de Gregório Bala-
de pressões e ameaças. Sem esta grilagem não ha- rotti Laurindo, a fazenda Laurindo; no de Larissa
veria agronegócio extensivo no estado. Isso acon- Viana Laurindo, a fazenda Paraíso; no de Gilberto
tece porque as autoridades fecham os olhos diante Laurindo, a fazenda Campo limpo; no de Eliane
das irregularidades por identificarem no agrone- Bernardes dos Santos (esposa de Gilberto), a fa-
gócio um fator de progresso para o Estado, pela zenda Maravilha; e no de Gabriela Balarotti Lau-
omissão e conivência dos órgãos fundiários e pelo rindo, a Fazenda Água Limpa.
desconhecimento da legislação agrária por parte Entre abril e agosto, os moradores que já
dos operadores de Justiça. ocupavam há tempos essas terras tiveram suas ca-
Durante décadas a CPT denuncia estes sas queimadas mais de uma vez. Foram registrados
crimes ao Ministério Público Federal (MPF) e/ Boletins de Ocorrência sobre estes fatos que não
ou estadual e à Polícia Civil e/ou Federal. Não mereceram a mínima consideração das autorida-
há informações de que tenha sido ajuizada uma des policiais.

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Ao mesmo tempo, a Agrocerrado moveu teriam saído da São Gabriel e invadido as áreas
ação judicial de reintegração de posse na comarca próximas de propriedade de outros parentes do
de Ferreira Gomes, contra os antigos moradores, dono da São Gabriel.
já que Curicaca pertence ao município de Itaubal O juiz, doutor Kopes, que conhecia bem a
do Piririm e por isso a comarca competente é a de questão indeferiu a liminar. Assim, em dezembro
Ferreira Gomes. Na petição inicial se diz que as de 2014, finalmente os moradores foram reintegra-
pessoas invadiram a fazenda São Gabriel cuja lo- dos às suas antigas posses.
calização é ao lado direito da AP-070, à altura do Aproveitando-se das férias do doutor
km 64. Kopes, em janeiro de 2015, quando foi substituí-
A empresa conseguiu que o juiz de Ferreira do pelo doutor Heraldo Nascimento, cuja simpatia
Gomes, Dr. Kopes, fosse pessoalmente fazer ins- pelo agronegócio é conhecida por todos, a empresa
peção do local e o acompanhou nesta atividade. O voltou a atacar pedindo a conversão do interdito
juiz constatou que as construções eram novas (as proibitório em reintegração de posse. O juiz He-
antigas tinham sido queimadas!). E foi conduzido raldo, imediatamente, em 19 de janeiro de 2015,
dentro e fora dos limites da São Gabriel nos quilô- acatou a petição e marcou audiência de justificação
metros 64, 65, 66 ,67, 68 e 71, inclusive chegando para o dia 6 do mês seguinte.
a atravessar a AP-070. E em base a esta inspeção Já no dia seguinte, porém, a empresa peti-
deferiu liminar de reintegração de posse, contra 15 ciona para que a audiência seja convertida em ins-
famílias, que lá tinham suas posses. peção judicial no local de conflito com a máxima
Em outubro, a liminar foi cumprida. Trato- urgência por ter invasores recentes e pela época do
res destruíram as casas e devastaram as roças. Uma plantio estar próxima.
empresa de se segurança foi contratada para a vi- Com incrível rapidez, já no dia 2, a petição
gilância da área tendo como sócio-representante o foi deferida e foi marcada a data de 26 de janeiro
senhor Celso Carlos dos Santos Júnior. Alguns dos para inspeção judicial. Logo, em 2 de fevereiro, o
funcionários dessa empresa são conhecidos por Diário de Justiça do Estado (DJE) publicou o rela-
sua violência fora do comum. tório da vistoria.
Os posseiros expulsos recorreram a diver- O Padre Sisto esteve presente no ato da ins-
sas instâncias. O Ministério Público Federal aca- peção. E no ofício que enviou ao presidente do Tri-
bou determinando que o Ministério do Desen- bunal de Justiça do estado, ele destaca o que viu:
volvimento Agrário (MDA) realizasse inspeção
na área. O relatório do agrimensor, Wilson Mota “Pude notar bastante proximidade entre o
Figueiredo, constatou que na área da São Gabriel, juiz Heraldo, o senhor Celso Carlos quali-
objeto da ação judicial, só havia efetivamente dois ficado como posseiro da área, mas que eu
moradores. Os demais se localizavam fora da São nunca tinha visto naqueles lugares até en-
Gabriel. tão, os advogados da parte autora e o se-
Assim, de posse dessa informação do MDA, nhor Gilberto Laurindo que ainda disse
o juiz emitiu sentença de reintegração dos agricul- que a própria CPT já 10 anos atrás tinha
tores expulsos, às velhas posses deles e o senhor tomado consciência da presença dele no lo-
Celso Carlos à Fazenda São Gabriel. cal. Na verdade ele se esqueceu de dizer que
A empresa não se deu por vencida e, em a CPT tinha mencionado já 10 anos atrás a
setembro de 2014, entrou com ação de interdito presença dele como invasor de terras públi-
proibitório contra os mesmos agricultores afir- cas naquela área. Mas no relatório do juiz
mando que eles, quando houve reintegração em Heraldo só entrou a primeira parte”.
favor do Celso Carlos na fazenda São Gabriel,

14 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Depois ele analisa parte por parte do rela- qualquer maneira, a casa ainda em pé da dona Ma-
tório: ria Saraca da qual eu bati foto antes da destruição
Relatório: “A referida Maria Saraca mostrou está anexada ao processo”.
um local onde supostamente seria sua casa derruba- Relatório: Área ocupada por Mirian: “A se-
da; todavia perguntada pelo juiz se teria algum docu- nhora Mirian não estava”.
mento de energia ou mesmo se no local haveria poço, Padre Sisto: “Ela estava sim. Eu estava per-
a mesma respondeu negativamente. A referida senho- to dela. Lembro-me de ter apresentado a mesma
ra mostrou que na parte de trás seria uma plantação ao secretário do doutor Heraldo que estava ocupa-
de coqueiros, contudo foram avistados cerca de cinco do em bater foto da casa da Mirian com um sim-
pés. Segundo Maria Saraca, foi reintegrada nessa área ples celular. Ela chegou quase na mesma hora do
e a mesma teria 100 hectares. No local foi observado juiz em companhia do advogado dela, Marinilson
algumas tábuas e restos de telha brasilit”. Amoras Furtado”.
Padre Sisto: “Justamente eram os restos Relatório: “No local encontramos uma casa
da casa da dona Maria para a qual não era conve- que foi construída há pouco tempo sem nenhum mo-
niente ter poço em área arenosa, ainda mais que rador e outra em fase de início de construção. Não
atrás da casa dos filhos dela do outro lado da es- há poço nem sinais de plantações antigas”,
trada tem uma lagoa natural onde a água é mais Padre Sisto: “Se o pessoal foi reintegrado
limpa e garantida. E para dizer que ela tinha uma no mês de dezembro de 2014 que tipo de constru-
casa era preciso ter talão de energia? Os cinco pés ção antiga ou plantação antiga o dr. Heraldo espe-
de coqueiro foram os que sobraram da destruição rava encontrar em janeiro de 2015? E o velho poço,
da empresa que fazia questão a cada reintegração embora entupido pela empresa Agrocerrado, está
de destruir tudo para não deixar nada visível. De lá sim. Como também bem próximo ao lugar onde
Foto: CPT Amapá

Comunidade Boa Vista da Pedreira tendo que recosntruir casas após conflitos

15 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


foi erguida a casa nova se encontram restos de te- de Maria Saraca todos os outros ocupantes das ter-
lha brasilit e restos de madeira sinais da casa des- ras são parentes de dona Raimunda Morais, sendo
truída pela Agrocerrado em outubro de 2013 e um Sueli sua nora, Otávio seu sobrinho, Miriam tam-
cajueiro de grande porte que nem o ‘correntão’ da bém tem parentesco e quem está à frente das con-
empresa conseguiu derrubar e ainda hoje está lá”. versações é o senhor Rubens, que por várias vezes foi
Relatório: Área ocupada por Sueli: “Nesta repreendido pelo Juiz”.
área há uma edificação nova de dois pavimentos e Padre Sisto: “Isso é verdade em partes: do
foram avistados alguns animais domésticos. Não há lado direito da AP-070 encontramos sim só pes-
indicativo de que resida alguém na casa que por si- soas ligadas à dona Raimunda. De outro lado, a
nal é bem grande”. velha casa é mesmo bastante antiga e os filhos da
Padre Sisto: “Como é que pode residir al- mesma Raimunda uma vez adultos tem sim o di-
guém numa casa que ainda não está terminada? reito a requerer terra pública nas proximidades da
Como falado pelo próprio juiz Heraldo a casa é mãe. Inclusive cabe dizer que nem todos os filhos,
bem grande e mesmo sendo de madeira, de de- sobrinhos, e netos dela, presentes na área, têm
zembro de 2014 a janeiro de 2015 a casa ainda não requerimento de terra pública. Muitos moram e
pôde ser terminada. E ainda assim tem gente que já trabalham junto com os parentes que têm reque-
fica lá com medo de roubarem as galinhas: é o Alan rimento. No entanto, do lado esquerdo da AP-070
com a esposa e às vezes o Benedito com a família”. não há parentes dos Morais. A Miriam não tem
Relatório: Área ocupada por Raimunda parentesco algum com a família Morais, como é
Morais. “Nesta área há uma edificação nova, sem afirmado no relatório. Ou a Maria Lúcia, Maria
moradores, ainda em fase de construção. Não há Saraca ou algum outro ocupante do lado esquer-
plantações. A dona Raimunda mostrou uma edifi- do da AP 070”.
cação antiga, cerca de 3 km de distância como sendo É de se estranhar que no relatório final o
sua antiga morada. No entanto tal fato foi contesta- doutor Heraldo tenha feito essa consideração de
do por Gilberto Laurindo que acompanhava a ins- parentesco dos Morais como a sugerir que lá todo
peção, dizendo esse senhor que a referida edificação mundo é testa de ferro da dona Raimunda e não te-
era da antiga dona de quem comprou a área”. nha notado que a área pretendida por Celso Carlos
Padre Sisto: “Vale o mesmo que os outros; é declaradamente de mais de 4000 hectares divi-
se a dona Raimunda foi reintegrada em dezembro didos entre vários membros de uma única famí-
como é que a atual edificação pode ser velha em ja- lia: justamente a família Laurindo, cujo expoente
neiro? No entanto tem a edificação velha dela 3 km maior, Gilberto, estava presente durante inspeção
mais abaixo como o próprio juiz relata, casa que e tudo o que ele falou foi colocado à risca no rela-
abrigava ela e os filhos. Casa velha, de alvenaria e tório final.
madeira que não pôde ser destruída completamen- No relatório aparece que várias vezes um
te pela empresa. Por isso, desde a primeira inspe- membro da família Morais, Rubens, foi repreendi-
ção judicial realizada com o juiz Kopes, o Gilberto do pelo juiz por ter manifestado descontentamento
Laurindo afirma ter comprado de outra senhora. com a condução da inspeção. É de se estranhar a
Afirmação totalmente falsa, pois o mesmo Laurin- posição do Rubens visto o relatório final da inspe-
do não apresenta sequer recibo de compra e venda ção? É que desde cedo apareceu claro como teriam
da casa, recibo que por si só ainda seria insuficien- se encaminhado as coisas. E ainda Celso Carlos
te, pois teria que ter título definitivo da área ma- achou de “tirar uma onda” com a minha cara ba-
triculado em cartório para alegar compra legal do tendo no meu ombro e dizendo: “Eh padre, sinto
terreno e indenização da benfeitoria”. muito”.
Relatório: “Pelo que se observou à exceção Depois de tudo isso, a empresa, vendo que

16 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Imagem registrada pela CPT Amapá em 2014.

Após luta judicial, trabalhadores da comunidade Boa Vista da Pedreira são despejados

o juiz titular, Dr. Kopes, estava retomando seu pos- Comarca de Ferreira Gomes, em inspeção judicial,
to na comarca, após o recesso, apresentou docu- constatou a seguinte situação: “(...) 1. ÁREA OCU-
mentação mostrando que a área em litígio estava PADA POR MARIA SARACA:........”
no município de Macapá e solicitou a transferência A juíza, porém, não prestou a devida atenção
do processo para a capital. Pedido imediatamente ao relatório enviado pelo fórum de Ferreira Gomes
acolhido. O processo então passou para a quarta e anexado ao mesmo processo em data 4/2/2015,
vara cível de Macapá. Pelo menos a área ocupada pois nele consta que “em 9.12.2014 o autor Celso
por dona Maria Saraca está município de Itaubal. Carlos foi reintegrado na Fazenda São Gabriel e os
Chegado o processo à quarta vara cível, assentados Miriam Castro da Conceição, Otávio Ro-
foi julgado pela juíza substituta, Fabiana da Silva sário Lima Pereira, Raimunda Lima Morais e Maria
Oliveira. Baseando-se nas informações oferecidas Saraca dos Santos Souza retornaram para as áreas
pelo laudo do juiz Heraldo nos autos do processo por eles reivindicadas de onde teriam sido retirados
0000079-95.2014.8.03.0001 e mostrando total des- indevidamente quando do cumprimento da liminar
conhecimento da realidade dos fatos, em 27/5/2015 da Fazenda denominada São Gabriel”. Isso a teria
deferiu liminar de reintegração de posse em favor ajudado a tomar uma decisão mais correta.
de Celso Carlos. “(Celso Carlos) onde desenvolve No ofício enviado pela CPT, Padre Sisto
um projeto de agronegócio, com plantio mecanizado assim conclui: “teremos mais casas derrubadas,
de soja e milho, supostamente invadidas pelos réus roças destruídas, vigilantes violentos e armados
no dia 2/12/2014.......Pois bem. Quanto à prova da andando nas suas motos, matas derrubadas, iga-
posse dos imóveis, bem como do esbulho possessó- rapés aterrados. É o que mais me inquieta graças a
rio, tenho que está devidamente comprovada nos decisões judiciais equivocadas ou a atitudes no mí-
autos, sobretudo porque no dia 26/1/2015, o Juiz da nimo suspeitas de um juiz. Inquieta-me também o

17 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


fato que essas pessoas do Sul tenham tanta influ- foi declarada nula. Estas matrículas nulas, porém,
ência com o judiciário: passam com o processo de só podem ser canceladas através de uma ação judi-
uma comarca para outra com a maior facilidade; cial direta que, até agora, ninguém quis promover,
trocam uma ação de interdito para reintegração nem a própria Corregedoria. É assim que alguns
de um dia para outro, deferem liminares sem ao juízes, mesmo tendo sido informados da nulidade,
menos ouvir a outra parte, levam juízes para fazer consideram ainda válidas essas matrículas que não
inspeções judiciais quando querem. Para a senhora foram formalmente canceladas e mandam despe-
saber, faz um ano que tento convencer o juiz Kopes jar muitas famílias de agricultores e posseiros le-
de Ferreira Gomes sobre a importância de realizar gítimos, que há décadas vivem e trabalham nestas
uma visita a um local de conflito a 20 minutos de mesmas terras.
distância do fórum de Ferreira Gomes e ainda não Outras ilegalidades encontradas nos cartó-
consegui e não vou conseguir mesmo, pois o dou- rios de imóveis produzem o que a CPT chama de
tor Kopes já abriu espaço para as alegações finais “grilagem cartorial”, quando vários registros carto-
desconsiderando o pedido da CPT de vistoria ao riais, num passe de mágica, acabam aumentando e
local. Vale ressaltar que a CPT faz parte do comitê multiplicando a área dos imóveis e até mudam sua
de acompanhamento do TJAP de conflitos fundi- localização geográfica.
ários rurais e urbanos. No entanto o juiz Kopes se
deslocou até a localidade da Boa Vista da Pedreira O desconhecimento da legislação agrária, am-
município de Itaubal, em 2013, a pedido da em- biental e minerária
presa Agrocerrado onde realizou a inspeção con-
duzida por pessoas da mesma empresa que depois É evidente que, por trás destas situações,
resultou na liminar de despejo”. está o despreparo de muitos atores jurídicos: ad-
O caso acima relatado, por mais absurdo vogados, promotores, juízes e até desembargado-
que pareça ser, é possível por conta das deficiências res, que nunca aprofundaram a muito complexa
ou irregularidades administrativas e processuais. legislação fundiária, minerária e ambiental. O
desconhecimento desta legislação, sobretudo na
A “grilagem cartorial” Amazônia, é a razão de muitas ilegalidades que es-
tão sendo cometidas, muitas vezes, com o ampa-
Na origem de tudo está o sistema cartorial ro do próprio Judiciário. Os dados comprovados
brasileiro que privatizou o serviço de registros pela Pastoral de Terra mostram que as vítimas de
públicos, entregando-o nas mãos de pessoas, al- despejo judicial são muito mais do que as vítimas
gumas inescrupulosas. Foi assim que, em muitos de expulsão por parte de capangas ou seguranças a
casos, simples atos de registro de compra e venda mando de fazendeiros.
meramente declaratórios, ou concessões de terras A caneta do juiz, em certos casos, está subs-
públicas nunca legalizadas, se transformaram em tituindo, com mais eficácia, o revólver do capanga
matrículas de fé pública, base atual de muitas or- a serviço do capital agrário e minerário. O que cha-
dens judiciais de despejo de posseiros. ma ainda mais atenção é a defesa que, em geral, o
Provocada pelas denúncias oferecidas pela Judiciário oferece ao grileiro capitalista ao crimina-
Comissão Pastoral da Terra, a Corregedoria do TJ- lizar, sem dó nem piedade, o movimento popular
-AP, por exemplo, comprovou e declarou a nulida- quando são ocupadas terras ainda públicas ou que
de de pleno direito de muitas matrículas de imó- foram apossadas ilegalmente pelo agronegócio.
veis nos cartórios de registro de imóveis de Amapá, Conclui-se que não se trata apenas de im-
Calçoene, Tartarugalzinho e Ferreira Gomes. A punidade, mas de verdadeira legitimação do crime
matrícula do imóvel citado no exemplo, também, agrário e minerário.

18 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


O cadastro rural tos aumentou só 6,3%; a área ocupada, porém,
aumentou em 96,5%: quase dobrou! Devido ao
Há mais um fator que favorece a criminali- pequeno tamanho do estado do Amapá, a elabo-
dade agrária. Apesar dos esforços do poder públi- ração de um cadastro único estadual dos imóveis
co, apesar de tudo o que é disposto em lei, ainda rurais seria uma tarefa bastante simples e permi-
não existe um “cadastro rural” único e confiável. tiria, com facilidade, comprovar a legalidade das
Parece impossível juntar num único cadas- posses em terras públicas e combater a grilagem
tro que nos permita saber, através do CPF ou do criminosa.
CNPJ, a nome de quem é registrado o imóvel rural. É de se perguntar por que uma solução tão
No Amapá há muita discrepância, por exemplo, simples e tão eficaz para acabar com os grileiros
quando se confrontam os dados do Sistema Nacio- não está sendo encaminhada e cobrada pelo Mi-
nal de Cadastro Rural (SNCR) do INCRA, com os nistério Público, pelo menos do Amapá, onde to-
do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural das as terras públicas são regularmente registradas
(ITR) da Receita Federal, com os do IBGE, com nos cartórios.
os do IBAMA e os do Instituto do Meio Ambiente Isso vale não só para as autoridades do Exe-
e de Ordenamento Territorial do Amapá (IMAP) cutivo, responsáveis pela regularização fundiária,
e com a relação de imóveis registrados nos vários mas, também, para o Ministério Público Estadual
cartórios. e/ou Federal e para a Advocacia da União e/ou do
Estado que, diante das inúmeras denúncias, não
Números e áreas dos imóveis registrados: promovem as devidas ações criminais, únicas ca-
pazes de deter os grileiros.
ORGÃO PÚBLICO NÚMERO ÁREA (ha.)
As limitações dos órgãos fundiários
INCRA 10.127 3.792.853,10
ITR 4.925 2.762.663,30 Precisamos, agora, considerar outro fator
IBGE 3.560 1.375.424,00 que impede um combate eficaz da ocupação ile-
gal das terras públicas. Além dos ínfimos recur-
É difícil confiar na seriedade de dados tão sos destinados pelo orçamento federal e estadual
diferentes! Outra informação cadastral que confir- aos órgãos fundiários, é preciso considerar que a
ma o aumento da concentração fundiária e da gri- direção destes órgãos é indicada a partir dos in-
lagem em curso no Amapá vem do confronto entre teresses políticos de quem detém o poder naquele
o Censo agropecuário do IBGE de 1995-96 com os momento. A competência efetiva e a carreira no
do Censo de 2006. serviço não são quase nunca levadas em conside-
ração, sobretudo, no Amapá. Estas pessoas não
Tabela 05: comparação censo agropecuário de têm, como prioridade, alcançar os objetivos ine-
1995-96 e 2006 rentes ao exercício efetivo de seu cargo, mas sa-
ANO DO NÚMERO DE ÁREA DOS tisfazer os interesses das pessoas e ou do partido
CENSO ESTABELE- ESTABELE- que as indicou.
CIMENTOS CIMENTOS Além de serem conduzidas por interesses
partidários, estas instâncias são, quase sempre,
1995-96 3.349 700.047
“institutos”; é o que significa a letra “I” de instân-
2006 3.560 1.375.424 cias como INCRA, IBAMA, IBGE, INSS, IMAP,
IEF, ICMBio, etc.
Em 10 anos o número dos estabelecimen- Instituto é “autarquia”, quer dizer que se

19 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


governa por si mesmo. Nenhum instituto tem um superiores a 500 hectares, (muitos empreendimen-
instrumento através do qual a sociedade possa tos, no Amapá, vão, atualmente, além disso) até
exercer o controle, deliberar sobre suas decisões e hoje, nunca foi exigido um EIA para licenciar tra-
fiscalizar sua atuação. balhos de agropecuária.
Aí a grilagem imperou no Estado e, em vá- Em vários casos é concedida ao agronegó-
rios casos, com o favorecimento dos próprios insti- cio uma Licença Ambiental Única (LAU) que é um
tutos que perseguiram interesses eleitoreiros e dei- instrumento pensado para facilitar a vida dos pe-
xaram de levar a sério o bem comum da sociedade quenos agricultores. Quem vai responder por mais
e a defesa do patrimônio público. Típica foi a emis- este crime de responsabilidade ou de improbidade
são de quase uma centena de títulos definitivos, administrativa?
concedidos a toque de caixa pelo IMAP, sobre ter- O Termo de Ajuste de Conduta Ambiental
ras que pertenciam à União. Apesar da ilegalidade (TACA) é outro mecanismo que, no Amapá, acaba
cometida e já reconhecida pelo Ministério Público, favorecendo os desmandos e legitimando a devas-
vários destes títulos foram aceitos pelos cartórios tação e a grilagem.
e transformados em matrículas, consumando, as- Pela legislação estadual, o TACA é aplicado
sim, o fato. para substituir parte de uma multa que foi aplicada
por causa de algum dano ambiental provocado ou
O licenciamento ambiental de irregularidades ambientais cometidas. Compro-
metendo-se a algum tipo de reparação pelo dano
Há mais um crime de responsabilidade causado, o criminoso pode, através do TACA, re-
que vem sendo cometido nas terras do Amapá. duzir a multa que lhe foi aplicada.
Crime que se dá através de licenciamentos am-
bientais concedidos, ilegal ou pelo menos, irregu- O programa Terra Legal
larmente.
Terrenos hoje ocupados pelo agronegócio O programa Terra Legal foi, desde sua ori-
estão sendo licenciados com a maior facilidade. gem, denunciado como um programa que iria fa-
Os exemplos podem se multiplicar: o programa vorecer a grilagem. E é o que está acontecendo. E
“Terra Legal” já forneceu, irregularmente, dezenas não só no Amapá!
de “cartas de anuência”, confirmando a existência Para dar início a um processo, basta inserir
de um processo de regularização em curso. Esta no sistema do Terra Legal os dados georreferência-
prática, já condenada pela secretaria nacional em dos do imóvel cobiçado. Isso é feito diretamente
Brasília, serviu como justificativa para que o IMAP pelo requerente que não precisa de nenhuma au-
concedesse o licenciamento ambiental, autorizan- torização para fazê-lo. Fácil demais para quem tem
do o plantio em terras griladas. recursos para pagar o georreferenciamento.
Outra artimanha consiste em conceder o li- O pequeno posseiro legítimo que não tem
cenciamento ambiental para um terreno pequeno os recursos necessários, quando entra com seu
e efetivamente titulado. A placa colocada pelos fa- pedido junto ao Terra Legal, encontra o imóvel já
zendeiros, porém, não especifica nunca o tamanho “ocupado”. Até tudo ser esclarecido demora uma
e a localização da área licenciada. Esta placa é colo- eternidade. Enquanto isso, o primeiro obtém uma
cada no lugar que o fazendeiro quer e, assim, serve licença, começa os trabalhos e cria o fato consuma-
de “prova” que o trabalho que está sendo feito no do, expulsando o posseiro.
terreno que possui a relativa licença. Aí entra em vigor a lei mais importante
Apesar de a legislação exigir o Estudo de que reina nas terras do Estado: a lei do “já que”. Já
Impacto Ambiental (EIA) para plantio em áreas que foi feito, deixa feito; já que pagou imposto...

20 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


já que recebeu o financiamento... já que foi feito Tabela 07: Confronto entre a lista oferecida pelo
o plantio... já que houve devastação... e assim por MDA com a da internet
diante.
A ilegalidade vira fato consumado e acaba Município Nº Processo - Nº Processos
sendo reconhecida na prática e, como o verdadei- MDA no site
ro posseiro nem sempre tem condições de brigar Amapá 3
na justiça, acaba perdendo sua terra em favor do
Calçoene 1
grileiro.
A respeito do Terra Legal, no Amapá, pre- Cutias 37
cisam ser feitas outras considerações: trata-se de Ferreira Gomes 11
um programa que deveria ser conduzido com a Itaubal 7
máxima transparência. Não é o que está aconte- Macapá 230
cendo. Mazagão 290
A informação oficial que foi comunicada, Pedra Branca 128 48
em setembro de 2014, na Universidade Federal
Porto Grande 823 287
do Amapá (UNIFAP), pelo atual coordenador do
programa, dizia que estavam em curso 2.036 pro- Santana 237
cessos de regularização. Na internet, no site do Serra do Navio - 72
programa, aparece só um total de 407 processos. Tartarugalzinho 7
Diante da incongruência, a CPT, pela Lei de Aces- 1.774 407
so à Informação, solicitou a relação completa dos
processos em andamento. Precisou de uma ordem Como confiar em dados tão diferentes for-
judicial para que a resposta fosse dada. O Minis- necidos pelo mesmo órgão público? E tem mais,
tério do Desenvolvimento Agrário (MDA), então pela relação que o MDA encaminhou à Justiça Fe-
encaminhou uma lista com 1.774 processos. deral constam somente 97 pessoas, também na re-
lação do ITR de 2003: isso demonstra que em 2004
Tabela 06: Dados apresentados na palestra na a maioria sequer tinha uma posse e, por isso, os
UNIFAP processos deveriam ser indeferidos.
Aparecem na relação do MDA 105 pessoas
Gleba (município) Nº de Parcela que têm mais de um processo, algumas até quatro.
demarcadas Como isso acontece se só é possível possuir apenas
Matapi (Porto Grande 1.075 um imóvel?
– Pedra Branca – serra Uma parcela significativa de processos que
do navio estão em andamento e que são objeto de conflito
Matapi II (Macapá – 682 ou de denúncia sequer aparecem na relação enca-
Santana) minhada pelo MDA. Por que?
Mazagão 396
Além disso, nesta mesma relação constam:
Macacoari (Itaubal) 141
• Empresários do setor madeireiro;
Rio Pedreira (Macapá) 10
• Pessoas da mesma família e que nunca
Tartarugal Grande 02 foram agricultores, num clássico uso de
(Ferreira Gomes – testas-de-ferro;
Tartarugalzinho) • Advogados e outros profissionais liberais;
Total 2.306 • Pessoas que nunca moraram na área e que

21 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


ofereceram seu nome, para depois vende- ele não precisa apresentar título nenhum. Como ga-
rem o lote; rantia pelo empréstimo ele oferece ao banco as má-
• Pessoas com sobrenomes típicos do sul do quinas, as construções etc. E o banco aceita, mesmo
país e que compraram posses que não po- sabendo que, depois de cinco anos, em caso de ina-
diam ser vendidas; dimplência, ele poderá ficar só com a sucata.
• O mapa dos imóveis em processo que E “já que” houve o financiamento, “já que”
consta – ou, pelo menos, constava – no precisa pagar, o fazendeiro é autorizado a colher o
site mostra a demarcação feita em áre- que plantou ilegalmente em terras griladas. Já que...
as nunca habitadas e que fazem parte de Diga-se o mesmo das declarações feitas junto
Unidades de Conservação, como a Flores- à Receita Federal. Para a Receita não interessa saber
ta Estadual do Amapá. se o declarante é posseiro legítimo, é proprietário ou
Faltam respostas às perguntas que a CPT é grileiro, quase sempre reincidente. A Receita só
encaminhou ao Tribunal de Contas da União quer saber de receber o pagamento do ITR.
(TCU) e ao MPF: Quanto a firma recebeu para de- O comprovante do pagamento deste im-
marcar lotes em áreas desabitadas? Quem creden- posto é usado depois pelo grileiro na Justiça para
ciou suas atividades? Quem assinou e reconheceu comprovar direitos sobre o imóvel. A lei considera
o trabalho feito? tal atitude um crime punível com prisão ou multa
(Lei n. 4947, art. 19).
O financiamento público Apesar desta lei, os juízes costumam legi-
timar o grileiro, “já que” pagou o imposto. É por
Outra mazela legitimadora da grilagem é o isso que a relação dos imóveis da Receita Federal
financiamento que o agronegócio recebe dos ban- nunca combina com a relação do Sistema Nacional
cos públicos, através dos programas governativos. de Cadastro Rural.
É incompreensível que bancos públicos O sistema nacional, com efeito, rejeita au-
usem dois pesos e duas medidas para financiar tomaticamente o registro de terras públicas para
os trabalhos agropecuários. Quando o solicitante quem já tem um imóvel cadastrado. A Receita, pelo
é um pequeno agricultor, ele precisa apresentar o contrário, aceita tantos imóveis quanto o declaran-
título de domínio do imóvel, como garantia de se- te quiser, contanto que pague os impostos relativos
gurança para o banco, em caso de não pagamento. mesmo quando são sonegados. E isso acontece em
Trata-se evidentemente de algo inconstitucional, inúmeros casos.
uma vez que a nossa constituição (art. 5, XXVI) O irônico é que o próprio documento dado
proíbe que alguém possa perder seu imóvel se este pela receita reza que tal documento não serve
for o único que possui. como comprovante de propriedade. Mas os juízes,
Mas quando o requerente é um fazendeiro, já que...

22 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Acre

A luta dos seringueiros do Riozinho


e os Planos de Manejo Florestal
Do estado do Acre nos chega o relato de foi palco de lutas históricas contra a expansão
um conflito atingindo há anos comunidades tra- predatória do capital e pela defesa dos territó-
dicionais de seringueiros, provocado desta vez por rios ocupados por povos indígenas e populações
planos de manejo florestal, o mesmo que dizer camponesas da floresta. Lutas que inspiraram
extração legalizada e com selo verde da madeira. muitas outras no Brasil e no mundo. Converti-
A “Carta do Acre” assinada em 07 de outubro de do, porém, a partir do final da década de 1990,
2011 por diversos movimentos sociais, entre eles a em laboratório do BID [Banco Interamericano
Comissão Pastoral da Terra do Acre (CPT-AC), já de Desenvolvimento] e do Banco Mundial para
apresentava de forma crítica a situação do estado experimentos de mercantilização e privatização
que se apresenta como paradigma de sustentabili- da natureza, o Acre é hoje um estado ‘intoxica-
dade para Amazônia: do’ pelo discurso verde e vitimado pela prática
“Estamos num estado que, nos anos de 1970-80, do capitalismo verde”I.

Foto: CPT Acre

As aberturas na mata dão origem às picadas e ramais, por onde passam os


caminhões que serão carregados com madeiras

Carta do Acre. http://cptrondonia.blogspot.com.br/2011/10/carta-do-acre.html Acessado em 03/06/2015.


I

23 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Um documento do Conselho Indigenista dos trabalhadores recrutados para trabalhar na
Missionário (Cimi), elaborado em agosto de 2012 borracha vinha do nordeste. Alguns seringalistas
por motivo da Cúpula dos Povos de 2012, confir- do Riozinho eram proprietários da área com títu-
ma: lo definitivo. Um exemplo é a família dos Rola –
“O ‘esverdeamento da economia’ tem resultado seringalistas proprietários de áreas no Riozinho,
na multiplicação dos conflitos territoriais, no que depois foram vendendo para outros. Nos anos
aumento da degradação ambiental, da concen- 1980 e 90, o sistema de seringal faliu. O seringal
tração de rendas e na reprodução ampliada da Barro Alto, do seu Severino, parou as atividades há
pobreza. Observadas de perto as coisas, ver-se-á cerca de 25 anos. Contudo, os seringalistas foram
que o verde das propagandas é insuficiente para vendendo essas áreas. Quem mais comprava essas
ocultar o cinza da realidade”II. terras eram pessoas de fora do estado, os “paulis-
tas”, para derrubar as matas e transforma-las em
A propagada de sustentabilidade do Acre fazendas para criação de gado.
é desmentida por autores como o professor Elder São Bernardo e União foram vendidos
Andrade de PaulaIII. Ao mesmo tempo, a CPT do e chegaram a ser derrubados O seringal União
Acre confirma o avanço da pressão da fronteira teve cerca de 60% de sua área desmatada. Serin-
agrícola, o aumento de acampamentos de sem gal que nos anos 80 foi transformado na fazen-
terra e de conflitos agrários, especialmente nos da União e fazenda São José. Porém, o governo,
municípios mais próximos a Rondônia. E a pre- através do Instituto Brasileiro de Desenvolvi-
visão de construção da Ferrovia Transoceânica, mento Florestal (IBDF), impediu continuar as
atravessando o estado em direção ao Peru e ao derrubadas. Com isso, o fazendeiro foi obrigado
oceano Pacífico, somente deve acentuar os con- a deixar a floresta crescer novamente em uma
flitos na região. parte da área, onde hoje existe um Plano de Ma-
nejo de madeira.
Os seringueiros da região do Riozinho do Rola Já o seringal Barro Alto foi ocupado por sem
terra há aproximadamente 15 anos. E em 2008, nes-
O Riozinho do Rola deságua no Rio Acre, te local, foi criado o Projeto de Assentamento Barro
que nasce no Peru e corta a capital Rio Branco. O Alto. Várias famílias de sem terra e seringueiros que
trajeto entre a capital acreana até a boca do Rio- residiam no local foram assentados.
zinho é de cerca de 10 quilômetros, uma hora de
barco. Na região do Riozinho havia vários serin- Tentativa de criação da reserva
gais: Seringal Barro Alto, União, São Bernardo, Ca-
choeira, Macapá, Belo Horizonte, São Francisco do No ano 2001 houve uma tentativa de criar
Espalha, Humaitá e outros. uma Reserva Extrativista no Riozinho. Levan-
O seringalista – proprietário de seringal – tamento realizado na região contabilizou 1.420
Benedito Tavares era dono dos seringais União, São famílias de seringueiros. O processo foi iniciado
Bernardo, Macapá, Belo Horizonte e São Francisco no Ibama, Incra, Secretaria de Meio Ambiente
de Espalha. Em vários deles havia gerentes em con- de Rio Branco (Sema) e junto ao governo fede-
cessão do seringal, que colocavam homens para ti- ral. Porém, o processo ficou parado. Dizia-se que
rar a seringa em troca de mercadorias. A maioria os proprietários iriam ser indenizados, porém na

CIMI: “O Acre que os mercadores da natureza escondem”, p.05 . http://www.cimi.org.br/pub/Rio20/Dossie-ACRE.pdf: acessado em 03/06/2015.
II

PAULA, Elder Andrade de. (Des)Envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionários do progresso aos mercadores da natureza. Rio
III

Branco: Edufac, 2013. p.416

24 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


época já começaram os Planos de Manejo Flores- corrente onde anotavam o saldo. Se o trabalhador
tal. Segundo os seringueiros, nem município, es- devia, ele não podia sair do seringal até pagar tudo.
tado e nem governo federal os informaram sobre Em lugares como o seringal União, se o trabalha-
o porquê da não criação da reserva extrativista. dor não vendesse o produto para o seringalista, ele
Algumas pessoas da região apontam que, segun- apanhava. Nos anos 80 os regatões – vendedores
do o Instituto Chico Mendes de Conservação da que usam barcos para percorrer uma região – su-
Biodiversidade (ICMBio), seria difícil criar mais biam escondidos, trocando mercadorias por serin-
essa reserva, pois já haviam outras reservas fede- ga. Escondidos, eles desciam o rio com os barcos
rais e o estado do Acre alegava que estaria mais carregados de seringa.
monitorado pelo governo federal do que pelo Nos anos 1980 e 90, quando os seringais
próprio governo estadual. E o governo estadual faliram, os seringueiros ficaram abandonados.
ainda teria alegado que não havia recursos finan- E quando os seringais foram vendidos, prin-
ceiros para indenizar os proprietários. cipalmente aos paulistas, alguns seringueiros
No auge da exploração da seringa, o Acre receberam propostas de indenização. Depen-
chegou a responder por 1/3 do Produto Interno dendo da infraestrutura da colocação e a re-
Bruto (PIB) brasileiro. A maioria dos seringueiros sistência do seringueiro para sair. Muitos não
era de origem nordestina. Os seringueiros eram aceitaram. As famílias aumentaram e muitos
obrigados a vender toda a seringa que produziam dos filhos dos seringueiros ficaram morando
para o gerente do seringalista em troca de mer- na mesma área.
cadoria. Todos os seringueiros tinha uma conta Hoje a principal fonte de renda é extrativis-

Foto: CPT Acre

As madeireiras constroem estradas no meio das matas e


fazem diversas clareiras onde juntam as toras das árvores

25 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Foto: CPT Acre
Com o plano de manejo, segundo seringueiros, tiram-se até 33
tipos de madeira, como Jatobá, Gameleira e outras

ta: a castanha e a seringa. Alguns têm umas vaqui- dezembro até março na colheita da castanha. A
nhas leiteiras e uns bezerros. Também se fabrica área de Riozinho é toda de castanhal. De lá saí pelo
bastante farinha d’água e farinha branca. As roças, menos 70% da produção de castanha do município
de aproximadamente um hectare, são feitas com de Rio Branco. A falta de título da área impediu fa-
pequenas derrubadas, onde deixa roça por dois zer um plano de manejo de óleo de copaíba e hoje
ou três anos, depois abandona e a mata cresce de é uma das árvores que está sendo toda derrubada
novo. Deixa formar ‘capoeira’ - o mato crescer - pelos madeireiros.
por quatro ou cinco anos e depois pode voltar a
fazer o roçado de novo. Nas roças, as famílias plan- A rotina no seringal
tam mandiocal, banana, feijão de arranque, feijão O seringueiro costuma sair cedo de casa,
de praia, milho, arroz. Cria-se muito frango caipi- por volta de 4 horas da madrugada, com a poronga
ra, pato, porco, ovelha e outros. - espécie de lanterna usada na cabeça do seringuei-
Do Seringal São Bernardo saíram umas 15 ro. Saindo cedo, com tempo frio, a seringa produz
famílias. Muitas destas famílias agora se encontram um pouco mais, pois com o frio escorre mais serin-
sem teto, sem casa, sem trabalho, e em casas de pa- ga. Com vento e tempo quente, seca o traço da se-
rentes em Rio Branco. Umas sete ou oito famílias ringueira rapidamente. Levantando cedo dá tempo
compraram colocações dentro de uma reserva ex- para ir ao roçado pela tarde. Recolhe o cernambi,
trativista que foi demarcada, a Resex Chico Men- látex, conhecido por CBP. Para recolher, hoje se usa
des, no Xapuri. muito garrafas descartáveis cortadas ao meio ou ta-
O seringueiro de abril até final de agosto boca, para economizar a compra de utensílios de
tira a seringa. Em julho e agosto trabalha na roça plástico. E vende-se o produto em sacos de 50 Kg.
de mato. Setembro e outubro plantando a roça. De O CBP custa cerca de R$ 5,20 kg - com sub-

26 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


sídio estadual e federal. Sem subsídio, fica na faixa para deixar em grau de humidade máximo, de
de R$ 2,00. O subsídio estadual sempre tem, mas 12%, depois vai para água quente, quebra, e vai
o federal somente para certas quantidades de qui- para estufa e seca para empacotar em sacolas,
los. O recurso somente alcança uma parte da pro- embalada a vácuo. Em 2015 a cooperativa pagava
dução e costuma faltar no final da safra, porque já cerca de R$ 33,00 pela lata de castanha. Na mata
extrapolou a quantia do projeto. Cada seringueiro se vendia por R$ 26. Outros atravessadores paga-
pode fornecer somente até 800 kg com subsídio. Se vam a R$ 28,00.
produzir mais, tem que vender sem subsídio. Há
outras formas de tirar seringa que daria mais lu- Organização e entidades de apoio
cro. Como a Folha Defumada Líquida (FDL), por
exemplo, porém na região do Riozinho ainda não Os seringueiros do Riozinho fazem parte
se consegue produzir por dificuldades em encon- da Organização dos Seringueiros (OSR). E na lo-
trar pontos de recolhimento. calidade do Riozinho tem aproximadamente cinco
O seringueiro saí para a colheita da casta- associações de seringueiros e mais umas três as-
nha na mata de janeiro em diante. Antes de janei- sociações agrícolas no Barro Alto. Pois apesar de
ro é perigoso cair castanha na cabeça por conta não criada a reserva, os seringueiros continuaram
do vento e chuva fortes. A lata bruta de castanha trabalhando na extração de seringa e da castanha
costuma pesar 12 kg. Na cooperativa, a castanha por conta própria. As cooperativas de seringuei-
seca no galpão primeiro e ainda vai para secador ros passaram a comprar a seringa e a castanha dos

Foto: CPT Acre

Entre os problemas causados pelos planos de manejo estão o aterraramento dos igarapés. Na imagem, o Riozinho do Rola

27 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


produtores da região. Na região há três usinas de nas florestas saem as “picadas” e ramais, por ali
castanha (Brasileia, Xapuri e Rio Branco) e uma de passam os caminhões que serão carregados com
seringa. Em Xapuri, a fábrica de preservativos tam- madeiras e levadas às serrarias da cidade. Nessas
bém compra a produção de seringa. clareiras chegam a ter, por exemplo, 5000 m³ de
Conforme os seringueiros, a Comissão Pas- madeira, sendo que cada árvore pode gerar duas
toral da Terra (CPT) tem contribuído neste proces- ou três toras, de 14 ou até 20 m³.
so organizacional. Ajudando as associações a fazer Há várias madeireiras atuando na área, sen-
ofícios, encaminhar aos órgãos, a fazer reunião do uma delas é a Laminados Triunfo Ltda., esta-
nas comunidades, a ir para Brasília, para o INCRA belecida no Parque Industrial de Rio Branco. Ela
para reivindicar a desapropriação da área de serin- se apresenta com imagem de sustentabilidade am-
gal. Também tem denunciado os problemas com biental e social, porém os problemas denunciados
os planos de manejo, inclusive em Audiência Pú- no Seringal São BernardoIV, teriam levado a cance-
blica no Senado. lar o selo verde da empresa na lista certificadora da
FSCV e do ImafloraVI.
Planos de manejo
Problemas provocados pelo manejo
Antes do ano 2000 já havia retirada de ma-
deira pelos proprietários do seringal, pelo “madei- Os problemas gerados pelos planos de
reiro Mota” e outras empresas. Onde o seringueiro manejo florestal, segundo os seringueiros, são
não aceitava, não se tirava madeira. A estratégia do afugentar a caça, a obstrução dos varadouros (ca-
madeireiro então para liberar a retirada de madei- minhos de uso), das estradas (caminhos usados
ra era chamar os seringueiros para “impicar”. Eles para extração da seringa) e dos “piques” (cami-
ganhavam R$ 15 reais para permitir a retirada de nhos da castanha). Às vezes aterraram e barram
árvores e R$ 5 para “impicar”- procurar a árvore os igarapés, até pondo fim as mata onde a água
e fazer a “picada” (trilha) para o operador de mo- fica represada. Na localidade do Riozinho cerca
tosserra e trator chegar nela. Não existia plano de de um hectare de floresta foi destruída por conta
manejo na época, mas, segundo os trabalhadores, disso. Também a queda das árvores serradas têm
não causava tanta destruição como hoje. destruído muitas seringueiras e castanheiras. Os
Conforme os seringueiros, os planos de seringueiros não são consultados e nem levados
manejo começaram em 2000, mas aumentaram em conta na hora de se fazer os planos de ma-
mesmo no ano de 2005. Com isso, tira-se todo nejo florestal. “Quando percebe estão gritando na
tipo de madeira, até 33 qualidades, como Jato- mata e perguntando, dizem que é plano de ma-
bá, Jutaí, Copaíba, Garapeira, Violeta, Guaruba, nejo e que fulano mandou”. No Riozinho (Belo
Gameleira e outras. Os planos de manejo são Horizonte, Macapá, São Bernardo), isso continua
executados por empresas madeireiras. Os mo- acontecendo. No ano de 2014 foi retirada muita
radores do Riozinho contam que as madeireiras madeira da área, e a única coisa que embarga o
constroem estradas no meio da mata e fazem di- manejo é a época de chuvas.
versas clareiras onde juntam as toras das árvores Depois que começaram os problemas
de “skide” - tratores com cabos de aço para puxar com os planos de manejo florestal, os morado-
as árvores para puxar a madeira. Das aberturas res começaram a realizar algumas reuniões para

IV
http://www.altinomachado.com.br/2011/10/laminados-triunfo.html Acessado em 20/04/2015.
V
http://memberportal.fsc.org/ acessado em 20/04/2015.
VI
http://www.imaflora.org/empreendimentos-certificados.php

28 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


debaterem a situação. As Associações dos serin- Não dizem que é por causa de ter sido executado
gueiros produziram ofícios para órgãos como o de forma irregular, mas porque os seringueiros não
Ministério Público, IBAMA, e Instituto de Meio deixaram ser executado. Segundo a lei, se havia se-
Ambiente do Acre (IMAC) denunciando o que ringueiros na área, não poderia nem ter executado
estava acontecia na região por conta dos planos plano de manejo. Porém, agora consideram apenas
de manejo. como posse não toda a área onde o seringueiro tra-
Os planos de manejo florestal são autoriza- balha, mas apenas a pequena área de pasto (três ou
dos por vários órgãos, como Secretaria de Flores- quatro hectares) e de roçado de perto da casa. O
ta Municipal, e licenciados pelo IMAC, IBAMA, resto (castanhais, estradas de seringa, etc.) é con-
e outros. De acordo com os seringueiros, as ins- siderado como área livre para manejo de madeira.
tituições marcavam reunião ou retornavam ofício Onde os planos de manejo têm sido aprovados, os
simplesmente dizendo que era somente um ma- seringueiros são impedidos der fazer o roçado tra-
nejo madeireiro e que estava autorizado. Apesar dicional (pequenas roças de subsistência).
de acontecer destruição da floresta, de igarapés e Suspeita-se que a suspensão dos planos de
varadouros dos seringueiros, quebrando as serin- manejo do Riozinho teve relação com as ameaças
gueiras e castanheiras, continuava “legal”. que agentes da CPT sofreram e as várias invasões
Segundo moradores da área, os seringuei- na sede da Pastoral em 2014, que foram denuncia-
ros têm formado grupos e vão até a mata falar para das. A coordenadora regional da CPT chegou a ser
os madeireiros parar, como nos tempos das derru- processada por madeireiros por supostas calúnias.
badas. Eles param um ou dois dias. “Depois vem a No Seringal de São Bernardo têm ocorrido perse-
polícia buscar a gente, acusados de mandar parar guições a muitos seringueiros, e eles têm sido acu-
planos de manejo florestal”, afirma um seringueiro, sados injustamente de derrubar castanheiras, ven-
que conta ainda que por duas vezes a polícia foi até der madeira. Os seringueiros chegaram, inclusive,
a casa dele. “Chega um delegado e diz que a gente a serem intimados para depor.
está cometendo um crime, porque aquela área é de
fulano e você está interferindo na vida dos outros, Pedido de criação de Assentamento Extrativista
numa atividade legal dos proprietários”. A polícia
não prendeu ninguém, porém leva para a delegacia Em junho de 2013 houve o pedido de cria-
na viatura, para tomar declaração. Quando chega ção de um Projeto de Assentamento Extrativista
à delegacia, a polícia liga para o proprietário para (PAE) no Riozinho do Rola. Segundo os governos
discutir o que deve ser feito. estadual e federal, é mais fácil de criar um PAE do
Em alguns lugares os proprietários têm re- que uma Resex e existem menos critérios. É menos
gistrado as ameaças contra os seringueiros, apesar rígido e mais fácil de gerenciar, mantendo a mata
deles não estarem na área. Na área, a polícia chegou e o extrativismo. Em princípio, um território cole-
a entrar em uma casa e prender espingarda de caça tivo, pois cada um já sabe onde começa e termina
do seringueiro. Tentaram deter, porém ele voltou a área ou cada colocação. Atualmente os represen-
porque tinha autorização da arma para subsistên- tantes das associações não sabem como está o pro-
cia. Não tinha ameaçado ninguém, nem estava em cedimento de criação do Projeto de Assentamento.
casa (estava no roçado). O Riozinho contribuí, inclusive, para o abasteci-
No Seringal União 1, 2, 3, após ter ocor- mento de água da cidade de Rio Branco. Na região,
rido problema na primeira etapa, as outras eta- o assentamento extrativista, segundo os trabalha-
pas do plano de manejo foram interrompidas. O dores, além de manter o trabalho e produção atual,
plano de manejo parou em União. Em Cachoeira pode ajudar a manter o clima e o meio ambiente e
também não foi aprovado porque dava “trabalho”. as reservas de água da cidade.

29 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Amazonas

Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia


Rio Purus, na Resex Médio Purus, no Amazonas.

A comunidade de Lusitânia,
o fim de um império
Lábrea está situada no meio da floresta foi fruto de mais de dez anos de luta das comunida-
amazônica, na calha do Rio Purus, um dos gran- des ribeirinhas e ajudou os moradores do Purus a
des afluentes da margem direita do Rio Amazonas. conseguir mais autonomia e segurança territorial,
A quatro dias de barco (ou dez horas de voadeira) conseguindo ver seus direitos tradicionais de posse
subindo o Purus vive a comunidade ribeirinha de reconhecidos. Mesmo assim, alguns conflitos con-
Lusitânia, na foz do Rio Tumiã, dentro da Reserva tinuam acontecendo. Sendo agente da Comissão
Extrativista do Médio Purus. Está é uma das uni- Pastoral da Terra do regional Amazonas, Queops
dades de conservação do estado do Amazonas, que Silva de Melo descreveu, em setembro de 2014, as-
tem como objetivo garantir o território e a vida dos sim o cenário das Resex de Lábrea:
moradores tradicionais, mantendo de forma sus- “Dentro dos limites e no entorno destas áre-
tentável as florestas e a biodiversidade amazônica. as, os processos conflituosos são intensos e os
A criação da Reserva Extrativista (Resex) seus moradores não conseguem proteger-se

30 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


das ameaças provocadas pela exploração ir- abertura de fazendas de agropecuária. Outras uni-
regular dos recursos naturais: madeira, des- dades, como a vizinha Resex do Ituxi, sofrem com
matamento, grilagem de terras e garimpos. a pressão dos madeireiros, pistoleiros e grileiros
[...] Os problemas ambientais persistem, pois, que chegam de Vista Alegre do Abunã, vila situada
desde as suas criações, promessas que foram no município de Porto Velho, acirrando “os confli-
feitas não são cumpridas pelos governantes, e tos pelo uso de recursos naturais entre moradores
as UC’s [Unidades de Conservação] envolvem, dessas unidades e pessoas vindas de fora que usam
além de problemas ambientais, dificuldades de predatoriamente a pesca, a madeira e outros recur-
ordem econômica, social, e, principalmente, sos naturais”.III
política, o que em geral ocasiona graves con- Por causa de conflitos deste tipo, em 2013
flitos”.I foi assassinado Francisco Dias dos Santos, um ri-
Entre as causas dos conflitos, Queops apon- beirinho da Resex do Médio Purus, por se opor à
ta a não atenção às relações tradicionais das popu- retirada de madeira da área. Outro ribeirinho foi
lações com o meio ambiente e o fato destas reser- espancado e assassinado no Rio Ituxi. Uma lide-
vas ambientais ainda não estarem com sua situação rança do Ituxi teve que ser protegida durante anos
fundiária regularizada. Assim seus moradores em por escolta armada do Programa de Proteção aos
parte “convivem com os mesmos problemas fundi- Defensores dos Direitos Humanos e hoje ainda
ários de antes, que vão desde propriedades parti- continua recebendo graves ameaças e correndo
culares, que são várias, a unidades de conservação perigo de morte pelo seu trabalho em defesa das
federais criadas em terras do estado e vice versa. comunidades tradicionais e do meio ambiente.
Isso vem impedindo a implantação dessas unida- Um material criado conjuntamente pelo
des e, principalmente, dificultando as comunida- Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e CPT
des a saírem das mãos do patrão”, diz. de Lábrea descreve a realidade social, política e
Com a falta de regularização fundiária, per- econômica vivida pelos povos indígenas e ribeiri-
manece em algumas comunidades o antigo domí- nhos do Médio Purus, dentro do contexto maior
nio dos coroneis de barranco, persistindo formas da conjuntura nacional desenvolvimentista. Com
semifeudais de exploração dos seringais, inclusive financiamentos milionários ao agronegócio, hi-
com flagrantes de situações análogas ao de trabalho drelétricas e obras de infraestrutura:
escravo. Para José Maria Ferreiro de Oliveira, chefe “[O governo federal] Não demonstra ne-
de área do Instituto Chico Mendes de Conserva- nhum interesse em proteger os direitos territoriais
ção da Biodiversidade (ICMBio), a persistência do dos povos indígenas e outras populações tradicio-
coronelismo dominador e paternalista dentro da nais (quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricul-
reserva, com áreas que ainda devem ser desapro- tores) que se opõem ao avanço do agronegócio
priadas, é uma das questões mais complicadas da sobre suas terras porque eles supostamente não
atual gestão da Resex.II geram por sua vez riqueza para a nação em geral.
Por outro lado, a criação das reservas está [...] E “tenta enfrentar e silenciar os movimentos
claro que ajuda a preservar as comunidades tradi- daqueles que não ‘capitalizam’ a terra (mas sim-
cionais das invasões provocadas pela expansão da plesmente querem viver nela e auto sustentar-se
fronteira agrícola de Rondônia e a pressão coloni- dela) por meio de estratégias muito diversas”. [...]
zadora da extração de madeira, desmatamento e “Em decorrência da expansão do agronegócio,

I
SILVA DE MELO, QUEOPS, “Amazônia. O Triste abandono das Unidades de Conservação no Amazonas”, Pastoral da Terra, julho a setembro de 2014.
II
Entrevista em 15 de junho de 2015.
III
SILVA DE MELO, QUEOPS, “Amazônia. O Triste abandono das Unidades de Conservação no Amazonas”, Pastoral da Terra, julho a setembro de 2014.

31 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


apoiado pelo governo brasileiro, o município de mou ali é fruto, principalmente, da miscigenação
Lábrea tem se tornado um dos locais onde há mais de indígenas com estes nordestinos. Somente nos
desmatamento e invasão desordenada de terras últimos anos chegaram outras populações originá-
públicas por grileiros e fazendeiros. As comuni- rias do sul do Brasil.
dades ribeirinhas localizadas nesta região estão Enquanto povos indígenas da região con-
vivendo num clima de violência e ameaça, e, neste seguiam aos poucos ter seus territórios reconhe-
mesmo ano [2013], duas lideranças comunitárias cidos, os seringueiros e ribeirinhos continuavam
foram assassinadas e outras três estão sob ameaça submetidos a poderosos coroneis que se diziam
de morte”IV donos da região. Neste contexto é que se cria a Re-
Para os ribeirinhos e indígenas da floresta serva Extrativista do Médio Purus.
restam apenas propostas assistenciais, como o Bol- A história da criação desta reserva está re-
sa Família e Bolsa Verde. Também a ajuda para as colhida num excelente Memorial realizado em
famílias atingidas pelas alagações. 2011 pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e
a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas
Histórico da Resex do Médio Purus do Médio Purus (ATAMP).VII
“Há 30 anos, o Médio Purus era uma região
A região do Rio Purus é habitada desde sem assistência dos governos e sem acesso às polí-
tempos imemoriais por diversos povos indígenas ticas públicas mais básicas. As comunidades, dos
– Apurinã, Banawá, Paumari, Zuruahá, Jarawara, mais diversos tamanhos, se espalhavam ao longo do
Juma, Kaxinawá, Katurina Pano, Madiha Kulina, rio Purus e de seus afluentes, dentro dos municípios
Jamamadi, Deni e outros.V de Pauini e Lábrea. [...] Indígenas e não indígenas
Na segunda metade do século XIX foi ocu- alternavam uma convivência ora pacífica, ora con-
pada pela frente da borracha, para extração da flituosa. Desse contexto de comunidades isoladas e
seringa com mão de obra de origem nordestina. desassistidas, aproveitavam-se os poderosos. Parte
Segundo relatos, em 1869 chegou à região uma pri- dos produtos retirados da floresta deveria ser repas-
meira leva de cearenses chefiada por João Gabriel sada aos patrões pelas famílias, em troca do direito
de Carvalho e Melo. Entre os pioneiros também é de permanecer no local. Os valores variavam entre
citado o “Coronel Labre”, Antônio Rodrigues Pe- 30, 50 ou até 75% da produção”. (Memorial, p. 24)
reira Labre que, em dezembro de 1871, conduziu Diante desta situação, a Prelazia de Lábrea,
uma numerosa leva de maranhenses, instalando-se junto com a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
às margens do rio Purus, na terra firme de Amacia- incentivou a organização das comunidades, pro-
ri, que passou a denominar-se Lábrea.VI vocadas por uma reunião realizada em Tefé, em
Nos anos 1940, a eles se juntaram os “sol- 1997. No ano de 2000, em Pauini, as populações
dados da borracha”, recrutados principalmente tradicionais se mobilizaram para a criação de uma
do Nordeste, para fornecimento de borracha para Resex onde viviam. E esse movimento se espalhou.
os veículos das tropas aliadas na Segunda Guerra Depois de anos de luta, finalmente foi cria-
Mundial. Chegaram com a promessa que, ao fim da a Reserva Extrativista do Médio Purus (Resex
da guerra, voltariam aos locais de origem, o que do Médio Purus) por decreto do então presidente
não aconteceu. A população ribeirinha que se for- Luiz Inácio Lula da Silva, de 08 de maio de 2008,

IV
CPT e CIMI de Lábrea. “Fortalecendo a organização das comunidades ribeirinhas e indígenas no Médio Purus”, 30/9/2013.
V
http://www.portalamazonia.com.br/secao/amazoniadeaz/interna.php?id=470
VI
http://www.bv.am.gov.br/portal/conteudo/municipios/labrea.php
VII
http://www.iieb.org.br/index.php/publicacoes/livros/memorial-da-luta-pela-reserva-extrativista-do-medio-purus-em/

32 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


com área de 604.209,25 hectares, abrangendo áreas

Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia


dos municípios de Lábrea, Pauini e Tapauá.
Segundo o decreto de criação, a Reserva
Extrativista do Médio Purus tem por objetivo “pro-
teger os meios de vida e garantir a utilização e a
conservação dos recursos naturais renováveis tra-
dicionalmente utilizados pelas comunidades. [...]
E as principais atividades econômicas da Reserva
Extrativista do Médio Purus estão relacionadas ao
uso tradicional da castanha, copaíba, andiroba, se-
ringa, açaí, urucurí, bacaba e da pesca sustentável Castanha da Resex Médio Purus estocada em Luzitania
de várias espécies”.VIII
Sob responsabilidade do ICMBio, em 04 de
novembro de 2010 foi criado o Conselho Delibe- cuário e Florestal Sustentável do estado do Amazo-
rativo da Reserva “com a finalidade de contribuir nas – IDAM; e a Prefeitura de Lábrea.
com ações voltadas à efetiva implantação e imple- Entre os diversos projetos desenvolvidos na
mentação do Plano de Manejo dessa Unidade e ao área, continuam os acordos de pesca para preserva-
cumprimento dos objetivos de sua criação”.IX ção de lagos, firmados antes da criação da Reserva,
Conforme o Decreto de Criação, as institui- e houve crédito do INCRA. Com bastante visibili-
ções não governamentais que fazem parte Conselho dade, um projeto de captação de água de chuva foi
Deliberativo da Resex são: O Sindicato dos Traba- desenvolvido pelo governo do Amazonas. Houve
lhadores Rurais de Lábrea – STTR-L; a Associação construção de centros comunitários com apoio do
dos Produtores Agroextrativistas da Assembleia de IEB, e foi implantado com destaque um projeto de
Deus do Rio Ituxi – APAD R I T; Comissão Pastoral manejo de pirarucu implementado pela ATAMP e
da Terra – CPT; a Associação dos Produtores Agro- ICMBio. Uma cooperativa em Lábrea comercializa
extrativistas da Comunidade José Gonçalves – APA- a castanha e está projetando trabalhar com peixe.
CJG; o Conselho Nacional dos Povos Extrativistas
– CNS; a Colônia de Pescadores de Lábrea; o Grupo A Comunidade de Lusitânia: os últimos coroneis
de Trabalho Amazônico – GTA e a Associação dos de barranco
Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Purus –
ATAMP. Por parte do governo, fazem parte do Con- Apesar de estar situada dentro da área Re-
selho Deliberativo da Resex: o Instituto Chico Men- sex do Médio Purus, a comunidade de Lusitânia
des de Conservação da Biodiversidade – ICMBio; o não aparece citada no decreto de criação da reser-
Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recur- va. Segundo depoimentos recolhidosX, os mora-
sos Naturais Renováveis – IBAMA; o Instituto Na- dores de Lusitânia e comunidades vizinhas sempre
cional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA; foram orientados e impedidos de participar das
a Universidade Federal do Amazonas – UFAM; o reuniões de criação da Resex.
Banco do Brasil – BB; a Fundação Nacional do Índio De acordo com diversos relatos, esta comu-
– FUNAI; o Instituto de Desenvolvimento Agrope- nidade até recentemente estava submetida ao siste-

VIII
http://casa-civil.jusbrasil.com.br/noticias/2236/criada-a-reserva-extrativista-do-medio-purus
IX
http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/imgs-unidades-coservacao/portarias/RESEX%20%20Medio%20Purus%20VIAM%20Port%20112%20
de%2004%2011%2010.pdf E http://www.jusbrasil.com.br/diarios/21770249/pg-97-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-05-11-2010, acessado em
24/04/2015.
X
Conversa com José Maria Carneiro de Oliveira, presidente da ATAMP, dia 15/06/15.

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ma de aviamento tradicional: cada ribeirinho que pegou o saco e começou a carregar, mas ele não
ia quebrar castanha recebia do patrão mercadorias aguentou chegar até o final. É um trabalho muito
para ele e para deixar com a família. Depois era pesado e as crianças estavam submetidas ao siste-
obrigado a vender a castanha ao preço estipulado ma de exploração estabelecido”.
pelo patrão, bem abaixo do mercado. A castanha “Os facões, mais longos que o antebraço de
era medida numa caixa de madeira “condenada”. A alguns dos meninos, eram utilizados para abrir os
cada três caixas era contada uma medida. Segundo duros frutos da castanheira e extrair as sementes.
os moradores da região, cada medida correspondia Nenhum dos trabalhadores utilizava proteção e,
a cinco latas de castanha. Porém, conforme rela- segundo a fiscalização, um dos garotos de 11 anos
tos, cada três caixas correspondiam em realidade a estava com o dedo indicador cortado, ferimento
nove latas e não a cinco. O pessoal reclamava, po- decorrente de acidente enquanto exercia a ativida-
rém o patrão dizia que se não quisessem quebrar de. Tanto o “transporte, carga ou descarga manual
com ele, poderiam buscar outro lugar. O resultado de pesos”, acima de 20 kg para atividades raras ou
é que de mais de três meses de trabalho, não sobra- acima de 11 kg para atividades frequentes, quanto
va muito mais que uns quinhentos reais para cada a “utilização de instrumentos ou ferramentas per-
trabalhador. XI furo-cortantes, sem proteção adequada capaz de
Em 2014, com apoio do ICMBio, o Grupo controlar o risco” estão entre as piores formas de
Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do trabalho infantil, conforme estipulado pela lei nú-
Trabalho e Emprego (MTE) flagrou neste casta- mero 6.481/2008, com base na Convenção 182 da
nhal trabalho escravo. 21 pessoas foram liberta- Organização Internacional do Trabalho (OIT). À
das, entre elas crianças. Foi uma operação conjunta equipe de fiscalização, em depoimento, Oscar Ga-
do MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e delha confirmou o uso de trabalho infantil e defen-
Polícia Federal, realizada entre 16 a 28 de março.XII deu que o emprego de crianças e adolescentes na
atividade é “uma certa forma é até uma maneira de
Diz o relato da operação: educar”. (Repórter Brasil)XIII
“Exploração de 21 pessoas em condições O responsável pela exploração dos traba-
análogas à de escravos na produção de castanha- lhadores era um antigo seringalista da região: Os-
-do-pará em Lábrea, no Amazonas. Entre os res- car Gadelha. Ele é um dos últimos representantes
gatados estavam dois adolescentes e quatro crian- ativos dos “poderosos” do sistema tradicional de
ças, incluindo dois meninos de 11 anos que, assim aviamento, como é descrito no Memorial:
como os demais, carregavam sacos cheios de cas- “Entre os ‘poderosos’, figura o patrão, sujeito
tanhas em trilhas na mata e manuseavam facões de altas posições na sociedade, de grande influên-
longos, conhecidos como terçados, para abertura cia e poder político, capaz de controlar a produção
dos ouriços, os frutos da castanha”. e a circulação de produtos da floresta, até mesmo
“O que mais nos chamou a atenção foi a as peles de animais como onça, gato, caititu, quei-
questão das crianças. Vimos meninos carregando xada, lontra, veado, ariranha e jacaré. Ele, por se
sacos de 25 kg dentro da floresta, andando até qua- dizer dono dos castanhais e seringais, detentores
tro quilômetros, descalças”, conta o auditor André de terras e rios, obrigava a população ribeirinha
Roston, coordenador do Grupo Especial de Fisca- a pagar-lhe a renda”. “Nos barracões na beira dos
lização Móvel do MTE. “Para ajudar, um policial rios, o poder do patrão ficava mais evidente. Os

XI
Relatos recolhidos o dia 17/06/15.
XII
http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/ex-prefeito-de-labrea-e-responsabilizado-por-trabalho-escravo-infantil/
XIII
http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/ex-prefeito-de-labrea-e-responsabilizado-por-trabalho-escravo-infantil/

34 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


barracões, habitualmente situados na foz de um matar aquele intruso que entrara no seu castanhal
afluente a ser explorado, eram entrepostos contro- sem autorização. Outra vez teria encontrado um
lados e abastecidos por eles. Do barracão, os serin- castanheiro que vendera castanha para outro
gueiros retiravam as ferramentas de trabalho e as comprador. Para dar um castigo exemplar, teria
mercadorias de primeira necessidade para a sobre- batido nele e no filho e tomado a espingarda de-
vivência de suas famílias nas colocações. Como os les. Outro que vendia castanha para um terceiro
preços das mercadorias eram sempre muito altos, foi humilhado e espancado com um fio elétrico
a produção dos seringueiros era insuficiente para diante de todo o mundo.XV
pagar a dívida contraída. Criava-se assim um re- O autor deste texto, junto com integrantes
gime de escravidão por dívida que ficou também da CPT de Lábrea, esteve em Lusitânia onde se en-
conhecido como “sistema de aviamento”, que até contraram com o seringalista. Apesar de morar ha-
hoje submete moradores da região”. (Memorial, bitualmente em Lábrea, Oscar foi encontrado em
pg. 24-25) Lusitânia, sentado na área do antigo casarão de sua
Oscar Gadelha é bem relacionado com as família, situado em terra firme onde a alagação não
elites políticas do Amazonas. É sogro do ex-pre- alcança as casas, e onde a escola municipal tem o
feito de Lábrea, Gean Campos de Barros (PMDB), nome de seu pai, Leopoldo Gadelha. Mesmo sen-
e ,segundo o povo, este último tem por compadre do poucas as famílias que ali vivem, a comunidade
o atual ministro e ex-governador Eduardo Braga. está equipada com dois telefones públicos via sa-
Os antigos da região relatam que Oscar Ga- télite, alimentados por painéis solares, em frente à
delha é filho de uma indígena e de Leopoldo Ga- casa do seringalista.
delha, o seringalista que construiu o barracão em Ele acabava de chegar do mato com mais
Lusitânia, na boca do Rio Itumã. De acordo com dois trabalhadores, cansado, carregando castanhas
relatos indígenas, o pai de Oscar teria protagoniza- quebradas naquela manhã, em castanheiras próxi-
do um massacre de Apurinã na região, da qual es- mas de sua casa. No barracão dele se encontrava
caparam apenas alguns indivíduos. Anos mais tar- mais de trezentos e cinquenta sacos de castanha,
de, o filho, Oscar, acompanhado por um policial, cada um de quatro latas. Conforme trabalhadores,
teria intimidado e ameaçado os indígenas para não 1.500 sacas já tinham sido tiradas de barco e leva-
tirarem castanhas do antigo castanhal, que na rea- das para o Acre.XVI
lidade é Terra Indígena (TI). Porém, na época da Ele falou com ressentimento sobre o ICM-
demarcação da terra, a FUNAI seguiu orientações Bio, sobre a ação do Ministério do Trabalho e Po-
para demarcar apenas as terras situadas acima do lícia Federal em 2014 que constatou a exploração
castanhal, na atual T.I.Tumiã.XIV de trabalho escravo, inclusive de algumas crian-
Mesmo assim, parte dos títulos de terra ças. De acordo com Oscar, as crianças, naque-
da família Gadelha ficaram dentro da Terra Indí- le dia, tinham ido ao local apenas ‘brincar’ junto
gena. De Oscar nos contaram histórias que lem- com seus pais. Disse que, simplesmente, ele estava
bram as violências da época antiga do seringal. trabalhando no sistema de sempre e que se sentiu
Segundo contou um antigo trabalhador da área, muito constrangido e humilhado de ser tratado de
uma vez entrou um castanheiro para tirar casta- escravagista, mais ainda por ter sido acusado de ter
nha por conta própria. O seringalista teria ofere- submetido crianças ao trabalho escravo.
cido a um trabalhador uma caixa de cartuxos para Declarou ter pagado tudo o que lhe foi exi-

XIX
Relatos recolhidos pelo CIMI de Lábrea.
XV
Relato ouvido o dia 18/6/15.
XVI
Dia 17/06/15.

35 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Crédito Articulação das CPT’s da Amazônia

Castanhas colhidas na Resex do Médio


gido na operação e que não queria trabalhar mais Purus, no Amazonas
com o sistema antigo, mas de acordo com as leis
trabalhistas, como havia sido orientado. Por isso,
em 2015 trabalhou no castanhal apenas com pes- casa onde nasceu. Ele confirmou que o ano de 2015
soas contratadas com carteira assinada. foi de abundante produção e não tinha conseguido
O seringalista foi informado de que alguns tirar todas as castanhas da mata, faltando dois “pi-
castanheiros disseram ter ficado satisfeitos com a ques” para retirar.
mudança de sistema. Porém existiam reclamações, Constatamos que após a fiscalização do Mi-
pois alguns que coletavam castanhas há mais de nistério do Trabalho, Oscar passou a comprar a co-
vinte anos tinham sido excluídos do trabalho. Os- mida para os castanheiros por conta dele e organi-
car afirmou então que esses foram excluídos por- zou duas equipes, de sete e 12 trabalhadores, sendo
que já eram aposentados (na realidade, apenas al- que um dos trabalhadores da equipe se dedicava a
guns eram aposentados). Reclamou das críticas de pescar e caçar para os restantes. Fez um alojamento
alguns moradores da comunidade de Arudá. Ele para o pessoal nas proximidades do local de traba-
ainda mostrou equipamentos de segurança com- lho e contratou cada trabalhador com carteira assi-
prados para os trabalhadores em 2015: botas, ócu- nada por um salário mínimo mensal. Ao final dos
los de proteção, capacetes e terçados para cortar as três meses, pagou a rescisão de contrato, o propor-
castanhas. cional das férias e décimo terceiro. Ainda tinham
Segundo Oscar, a área tem título de pro- direito a receber o FGTS. Ao total, quem trabalhou
priedade e ele já teria apresentado os documentos três meses, teria recebido uns três mil reais.XVII
ao ICMBio. Afirmou ainda que o local tem mais Segundo um dos entrevistados, da comuni-
valor sentimental do que econômico para ele e sua dade de Santa Cruz, que é identificado como gerente
família, fazendo questão de mostrar o quarto da do seringalista, a situação era melhor antes da fis-

Relatos recolhidos o dia 17/06/15.


XVII

36 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


calização trabalhista, pois o pessoal era mais livre Segundo o atual gestor da Resex do Médio
para ir e trabalhar quando quisesse. Por outro lado, Purus, José Maria Ferreiro de Oliveira, as expro-
também há indícios de represálias após a operação priações costumam acontecer por interesse dos
do MTE. Um dos trabalhadores resgatados foi es- proprietários localizados dentro da reserva, e não
pancado por suas denúncias aos fiscais do trabalho, ao contrário. No caso dos títulos de Oscar Gadelha,
e, posteriormente, ele e sua família foram impedidos parece que ele não tem interesse.
de continuar trabalhando no castanhal. XVIII Conforme o presidente da ATAMP, o ICM-
Bio já pediu por três vezes a documentação da ter-
Por que a situação de Lusitânia não se resolve? ra de Oscar Gadelha e ele nunca a entregou, apesar
de ele ter afirmado ter entregue os títulos, depois
O Instituto Chico Mendes de Conservação de intimado. O gestor mostrou um mapa do ICM-
da Biodiversidade (ICMBio) é o organismo do Mi- Bio, em que as áreas tituladas que pertenceriam a
nistério de Meio Ambiente responsável pelas uni- Gadelha estariam situadas muito acima, longe do
dades de conservação no Brasil. A ele cabe “ad- castanhal e das comunidades de Lusitânia, Santa
ministrar a Reserva Extrativista do Médio Purus, Cruz, Independência e Arudá. O castanhal e estas
adotando as medidas necessárias para sua implan- comunidades não formam parte da área de terra
tação e controle, providenciando, no caso de terras titulada. Segundo o presidente da ATAMP, o cas-
da União, o contrato de cessão de uso gratuito com tanhal de Lusitânia é o melhor da Reserva Extrati-
a população tradicional extrativista, para efeito de vista do Médio Purus. A regularização da área fica
sua celebração pela Secretaria do Patrimônio da longe de estar esclarecida.XXI
União do Ministério do Planejamento, Orçamento Quando aconteceu o flagrante de trabalho
e Gestão, e acompanhar o cumprimento das condi- escravo, a ATAMP e a CPT encaminharam um re-
ções nele estipuladas, na forma da lei”.XIX querimento para o ICMBio desapropriar imediata-
Segundo o Decreto de Criação da reserva, mente Oscar Gadelha. O documento foi entregue
também cabe ao ICBMBio a desapropriação por pessoalmente ao presidente da autarquia, segundo
“interesse social” dos legítimos proprietários pri- o gestor da Resex. Inicialmente, houve demonstra-
vados identificados dentro da reserva. ção de interesse, porém o assunto não avançou em
“Art. 5º - Ficam declarados de interesse so- Brasília.
cial, para fins de desapropriação, na forma da Lei O assunto foi tratado também em reunião da
no 4.132, de 10 de setembro de 1962, os imóveis Comissão Nacional de Prevenção da Violência no
rurais de legítimo domínio privado e suas benfei- Campo, em Manaus, em agosto de 2014.XXII Porém
torias que vierem a ser identificadas nos limites da não se conhece nenhum resultado das providên-
Reserva Extrativista do Médio Purus. cias do Ouvidor Agrário Nacional, que se compro-
§ 1º O Instituto Chico Mendes fica autori- meteu a procurar informações e pedir agilidade na
zado a promover e executar as desapropriações de desapropriação. A regularização da área de Lusitâ-
que trata o caput deste artigo, podendo, para efeito nia colocaria fim a este conflito.XXII
de imissão de posse, alegar a urgência a que se refe-
re o art. 15 do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho
de 1941”. (Decreto de 08 de Maio de 2008).XX

XVIII
Relatado por José Maria Ferreiro de Oliveira, chefe da Resex do Meio Purus do ICMBIO.
XIX
http://casa-civil.jusbrasil.com.br/noticias/2236/criada-a-reserva-extrativista-do-medio-purus
XX
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Dnn/Dnn11577.htm
XXI
Entrevista com José Maria Carneiro de Oliveira em Lábrea, 15 de junho de 2015.
XXII
Ata da 693ª reunião da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, em Manaus, na sede do Incra, no dia 21 de agosto de 2014, às 15 horas.

37 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


A difícil autonomia dos povos tradicionais família de Oscar Gadelha. O suposto proprietário
sequer deixou realizar um mapeamento das casta-
Após oito anos de criação da Resex do Mé- nheiras existentes no local e continua ocupando e
dio Purus houve muitos avanços. Porém, de acor- usufruindo para seu próprio benefício do produto
do com os agentes da CPT de Lábrea, continuam extrativista do melhor castanhal da Resex.XXIII
muitos dos desafios registrados no início do Pla- A fiscalização do Ministério do Trabalho
no Gestor da Unidade de Conservação: invasão de pode até ter fortalecido a posse e o monopólio
madeireiros e pescadores, más condições de mora- do castanhal por parte de Gadelha, uma vez que
dia, saúde e educação, problemas na comercializa- foi tratado como proprietário. A reivindicação do
ção dos produtos agrícolas das culturas de várzea, castanhal como área tradicional da Terra Indígena
da pesca e dos produtos de extrativismo, como a Tumiã, sobreposta à Resex atual, também está pa-
castanha e a seringa. E permanecem os conflitos rada na FUNAI.XXIV
territoriais. Os ribeirinhos do Médio Purus foram con-
Estes conflitos preocupam, especialmente, templados com crédito do INCRA, bolsa verde,
por permitir a atuação dos remanescentes do co- ajuda para os alagados e está para ser implementa-
ronelismo, com exploração inclusive de trabalho do o Programa de Habitação Rural. Toda essa as-
escravo, dando a impressão de que tudo continua sistência, porém, pode provocar dependência das
igual ao passado. comunidades das ações do governo e da própria
A causa principal do conflito é que a desa- associação e não promover sua efetiva autonomia.
propriação da área por interesse social, contempla- O plano de manejo do pirarucu, após su-
da no decreto da criação da Reserva, não ter sido cesso na produção, esbarrou em problemas na co-
implementada. Mesmo tendo sido encaminhado mercialização gerando insegurança para a conti-
oficialmente um pedido neste sentido, passado nuidade do plano. Isto tem fragilizado a associação
mais de ano, não se tem notícia dos procedimen- e seus dirigentes, causando muito desconforto na
tos adotados e sequer se averiguou se o castanhal relação com parceiros e entre os próprios ribeiri-
situa-se efetivamente dentro das áreas tituladas da nhos.XXV

XXIII
Ao preço de mercado de $R 25,00 a lata, 1.850 sacas de castanha de 04 latas cada uma, podem oferecer um valor bruto de venda de $R 185.000,00, com
despesas trabalhistas aproximadas de $R 57.000,00,representa um bom lucro.
XXIV
IInformação de Hoadson Leonardo Silva e Ione Azevedo de Lima, do CIMI da Prelazia de Lábrea.
XXV
Cartas da CPT Lábrea ao ICMBIO e a ATAMP, de 09 e de 07 de abril de 2015.

38 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Maranhão

Conflito no quilombo Charco, uma


novela em muitos capítulos
A superfície do estado do Maranhão –
333.366 quilômetros quadrados – corresponde
a 3,9% do território brasileiro e 21,3% da região
Nordeste. O estado situa-se na faixa de transição
entre as regiões Norte e Nordeste, no oeste dessa
última.
A empresa colonizadora se instalou tar-
Flaviano Pinto, líder da
diamente no Maranhão. Apesar da presença de
comunidade do Charco,
africanos escravizados desde cedo, foi somente a foi morto em 2010.
partir do final do século XVIII, com a criação da
Companhia de Comércio do Grão Pará – Mara- no Maranhão havia poucas fazendas escravistas
nhão, que o tráfico para a província foi intensifi- sem quilombos à sua volta.
cado. Até 1755, calcula-se que entraram três mil Na segunda metade do século XIX, o re-
escravos no Maranhão. No período de existência crutamento forçado de homens para a guerra
da companhia, entre 1755 e 1777, este número contra o Paraguai reduziu o nível de repressão
saltou para 12 mil. O tráfico crescente de africa- pelas forças oficiais e a decadência das fazendas
nos alcançou seu apogeu entre 1812 e 1820, che- da região tornou ainda mais difícil a repressão à
gando a 41 mil pessoas, de modo que, no limiar fuga de negros e negras das fazendas para os qui-
da Independência, a população escravizada gira- lombos. De tal modo que no momento da aboli-
va em torno de 55% da população total, sendo a ção, no interior da província já havia se formado
mais alta de todo o Império1. um campesinato livre, porém sem o domínio das
Ela concentrava-se nas fazendas situadas na terras ocupadas.
baixada ocidental e nos vales dos Rios Itapecuru, As terras ocupadas por comunidades qui-
Mearim e Pindaré. Esses locais tinham uma grande lombolas têm origens diversas: ‘pagamento’ por
quantidade de matas, rios e riachos. A ocupação serviços domésticos e militares, terras abandona-
dos vales se, por um lado, facilitou a comunicação das pelos senhores após a crise econômica, terras
com a capital da província, por outro criou condi- pertencentes às ordens religiosas, sobras de terras,
ções para o surgimento de quilombos em cabecei- lugares de refúgio, etc. Todas, entretanto, com algo
ras de rios e locais mais distantes, nas florestas. De em comum – o fato de serem espaços de liberdade
tal modo que eles se tornaram um efeito endêmico e de confrontação ao regime escravocrata.
da sociedade escravista, mesmo que não seja possí- O fim legal da escravidão em 1888 cons-
vel precisar o número de quilombos que existiram tituiu-se apenas num ato jurídico formal sem ja-
desde esse período até a Abolição, afirma-se que mais ter alcançado o mundo real dos homens e das

1
http://professoralbertochaves.blogspot.com.br/2014/10/historia-do-maranhao-1.html

39 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


cia a essas ordens costumavam custar muito caro,

Foto: Joka Madruga


como com a própria vida. Entre 1985 – ano do iní-
cio da publicação da Comissão Pastoral da Terra
sobre conflitos no campo – e 2014 foram registra-
dos 143 assassinatos de camponeses e povos tra-
dicionais no estado do Maranhão. Desses, apenas
dois executores foram condenados, mas nenhum
mandante foi a julgamento.

O Avanço das commodities

A Soja - A produção de soja está avançando


para novas áreas do estado do Maranhão e deve se
A tradição e musicalidade dos quilombolas do expandir por meio de uma combinação de expan-
Moquibom, do Maranhão são de fronteira em regiões onde ainda há terras
disponíveis, ocupação de terras de pastagens e pela
mulheres escravizados por não assegurar qualquer substituição de lavouras onde não há terras dispo-
direito. Não garantia direitos sobre as terras ocupa- níveis para serem incorporadas. Abaixo o quadro
das, nem a qualquer forma de indenização. da expansão da soja no estado:
Passados 80 anos do fim legal da escravi- 2010 2011 2012
dão, os/as camponeses maranhenses que ocupa- Área plantada 495.756 531.100 556.178
vam terras até então consideradas abandonadas
(ha)
pelos antigos sesmeiros ou mesmo terras públicas
Produção 1.322.363 1.561.578 1.640.183
assistiram à chegada de empresários que se apre-
sentaram como proprietários portando registros (ton)
cartoriais fraudulentos, baseados na lei n°2.979 de Pecuária de corte - As projeções de carnes
1969, assinada pelo então governador José Sarney. para o Brasil mostram que esse setor deve apre-
Assim que o Maranhão, de forma tardia, sentar intenso crescimento nos próximos anos. O
experimentou sua modernização conservadora na Maranhão, em 2012, alcançou a 12ª posição entre
qual o domínio sobre a terra garantiu o controle e os estados com maior número de cabeças de gado
imobilização da força de trabalho. Os anos que se bovino, e a 4ª em número de búfalos.
seguiram foram marcados pela violência praticada Em 2013 o Maranhão foi incluído na zona
por agentes públicos e milícias privadas como ins- livre de Aftosa por conta da vacinação, o que causou
trumento de mediação e controle – a única lingua- grande euforia. Nas palavras de Cláudio Azevedo,
gem conhecida – do campesinato maranhense. O secretário Estadual de Agricultura e Pecuária:
progresso do Maranhão foi modelado pela violência.
As décadas que se seguiram viram o avan- • De imediato, já há interesse de grandes frigorífi-
ço das pastagens para criação de gado de corte, da cos e indústrias de laticínios em investirem no es-
soja, e mais recentemente do eucalipto sobre as tado. Ele citou o grupo JBS (frigorífico), que está
terras antes devolutas. É comum ouvir dos campo- se instalando em Açailândia, e o laticínio Betânia,
neses que em suas casas e comunidades chegavam que já adquire leite no Médio Mearim e planeja
“gente do Sul” com um papel nas mãos dizendo instalar uma indústria na região. “O Maranhão
que as terras por eles ocupadas agora lhes perten- vai despontar na atração de novos investimentos
ciam e que deveriam ser desocupadas. A resistên- na agroindústria”.

40 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


• Abertura do mercado maranhense de abate e de brando que o Maranhão possui área de transição
carne para o país, perspectiva de que o rebanho entre os biomas Cerrado e Amazônia.
dobre em cinco anos e chegue a 15 milhões de
cabeças, atração de frigoríficos e gado mais valo- A luta das comunidades quilombolas
rizado.
Em toda a Amazônia Legal assistimos a
Celulose e Papel uma inércia do poder público no cumprimento do
mandado constitucional, Art. 68, ADCT: “Aos re-
Os produtos florestais, no Brasil, repre- manescentes das comunidades dos quilombos que
sentam a quarta posição na classificação do valor estejam ocupando suas terras é reconhecida a pro-
das exportações do agronegócio nacional, abaixo priedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
do complexo de soja, carnes e sucroalcooleiro. No os títulos respectivos”.
Maranhão há um crescimento constante do plantio O quadro seguinte destaca os dados do
de eucaliptos tanto para a produção de carvão para reconhecimento dos territórios quilombolas na
o ferro-gusa quanto para a alimentação de indús- Amazônia, conforme informações do INCRA2.
tria da Suzano que se implanta em Imperatriz para Por este quadro, o Maranhão ocupa o pri-
a produção de papel e celulose. meiro lugar na Amazônia em número de comuni-
Recentemen-
te o governo federal Comunidades Processos abertos Territórios Área titulada Famílias
publicou o Decreto certificadas pela no INCRA titulados beneficiadas
8.447, de 06 de maio FCP3
de 2015, que dispõe MA 369 337 38 30.547,4286 2468
sobre o Plano de De- AP 33 23 0 14.426,43 153
senvolvimento Agro- PA 161 55 52 606.109,9952 5763
pecuário do Matopi-
TO 27 33 00 00 00
ba e a criação de seu
MT 66 69 01 11.722,4613 418
Comitê Gestor. O
RO 07 6 01 5.627,3058 12
Maranhão, junto com
Tocantins, Piauí e AM 7 4 00 00 00
Bahia são parte deste AC 00 00 00 00 00
plano “que tem por RR 00 00 00 00 00
finalidade promover Total 670 527 92 668.433,62 8.814
e coordenar políticas Amazônia
públicas voltadas ao BR 2.474 1.290
desenvolvimento eco-
nômico sustentável fundado nas atividades agrí- dades certificadas pela Fundação Palmares (369),
colas e pecuárias que resultem na melhoria da mas destas, 337 tem processos de reconhecimento
qualidade de vida da população”. O Matopiba vem abertos no INCRA, e somente 38 já têm seus ter-
solidificar o avanço do agronegócio sobre as áreas ritórios devidamente titulados, beneficiando 2.468
do Cerrado já em grande parte devastado. Lem- famílias.

2
http://www.incra.gov.br/tree/info/file/6849 . Acesso em 26 de setembro de 2015.
3
http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/crqs/quadro-geral-por-estado-ate-23-02-2015.pdf. Acesso 26 de setembro de 2015

41 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Foto: Cristiane Passos/Arquivo CPT
Entre os dias 4 e 7 de outubro, povos e comunidades tra-
dicionais se mobilizaram em Brasília contra a ofensiva do
Apesar de ser um grande avanço, após mais Judiciário e Legislativo
de 350 anos de opressão histórica contra a popu-
lação negra, rural e urbana, o século XXI assiste
a reedição de medidas sociopolíticas que patroci- • A Ação Direta de Inconstitucionali-
nam a destruição sistemática dos modos de vida dade (ADI) 3239/2004, proposta pelo
e pensamento de povos diferentes daqueles que DEM (antigo PFL), contra o Decreto
empreendem essa destruição, através de supressão 4887/2003;
física e opressão cultural. • A PEC nº 161, de 2007,4 apensada à PEC
As violências perpetradas pelo Estado bra- 2155, já aprovada na CCJ da Câmara;
sileiro contra as comunidades quilombolas assu- • E o cada vez mais escasso orçamento pú-
mem, na atual conjuntura, uma face verdadeira- blico destinado à titulação de terras de
mente hedionda. Trata-se não só de assassinatos, quilombo;
ameaças de morte, expulsões, mas também de des- • Em maio de 2013 deputados ruralistas
pejos violentos determinados pelo poder Judiciá- apresentaram pedido de abertura de CPI
rio e de ataques aos direitos adquiridos pelos qui- na Câmara dos Deputados para investi-
lombolas no âmbito do Congresso Nacional. gar a atuação da FUNAI e do INCRA na
Entre os ataques a esses direitos se desta- demarcação de Terras Indígenas e qui-
cam: lombolas;

4
PEC 161/2007 do deputado Celso Maldaner (PMDB/SC). Estabelece que a criação de espaços territoriais a serem especialmente protegidos, a demarcação
de Terras Indígenas e o reconhecimento das áreas remanescentes das comunidades dos quilombos deverão ser feitos por lei.
5
A PEC 215 inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a demarcação de terras indígenas e a ratificação das demarcações já homologa-
das, que atualmente são atribuições da União e também titulação de terras de quilombo.

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• Em abril de 2015, novo Requerimento e insegurança, como se pudessem a qualquer mo-
foi apresentado à Mesa Diretora da Câ- mento delas serem despejados, expulsos da terra.
mara Federal com pedido de CPI sobre o A partir do início da década de 1980, o pro-
mesmo objeto da de 2013. prietário das terras, Gentil Gomes, deu início à
expulsão das famílias quando decidiu transformar
De Collor de Melo, passando por FHC, Lula toda a área em pastagem para gado. Nos anos 2000,
da Silva até o atual governo de Dilma Rousseff, a passou a não mais aforar o mato para as famílias
política de Estado obedeceu cegamente às ordens fazerem suas roças, pois grande parte da área já ha-
advindas dos setores ultraconservadores do agrone- via sido transformada em pastagem.
gócio. A fim de garantir a governabilidade, os su- As consequências dessa proibição foram
cessivos governos Lula da Silva e agora Dilma Rou- drásticas para as famílias quilombolas que viram
sseff patrocinaram inúmeras violações aos direitos suas filhas mais jovens partirem para a capital
humanos das comunidades quilombolas brasileiras. do estado para serem empregadas em casas de
Nesse cenário o INCRA vem respondendo famílias e os filhos irem para lavouras de cana-
às pressões políticas instituindo rotinas administra- -de-açúcar, sobretudo, no interior dos estados de
tivas execessivas que tem o objetivo de protelação São Paulo e Goiás. Por outro lado, essa situação
dos processos uma vez que são ritos não exigidos na foi determinante para a insurgência política das
Instrução Normativa Nº 57/2009. Desde o início do comunidades.
ano, por determinação da presidencia do INCRA, Em 2005, a comunidade recorreu aos órgãos
os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimita- fundiários solicitando que o imóvel fosse vistoriado
ção (RTIDs) devem ser avalizados pela Presidência para fins de desapropriação e reforma agrária e que
e Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundi- as famílias fossem assentadas. O INCRA então orde-
ária/DF como pré-requisito para a sua publicação. nou a realização de vistoria, com a finalidade de de-
Também as superintendências regionais estão sendo sapropriação por interesse social para fins de refor-
obrigadas a informarem as “áreas efetivamente ocu- ma agrária, na área pretendida (“fazenda Juçaral”),
padas” pelas comunidades com processos abertos designando o perito agrário Celso Orlando Aranha
nas referidas superintendências. Qual o objetivo? Pinheiro para presidir os trabalhos, em agosto de
2006. Contudo, as expectativas dos moradores da
O conflito no quilombo Charco área foram frustradas de forma ilegítima pela equi-
pe do INCRA, que concluiu incorretamente pela
O território quilombola Charco-Juçaral, impossibilidade de desapropriação, ao asseverar:
formado por 137 famílias, está localizado no mu- “A desapropriação do imóvel torna-se in-
nicípio São Vicente Ferrer, às margens da rodovia viável. [...] O imóvel foi fracionado em campo e
estadual MA-014, Maranhão. As famílias das duas vendido a proprietários diversos. Três dessas áreas
comunidades são descendentes de negros e negras pertencem aos filhos e netos do proprietário, que
escravizados nas fazendas do município, no perío- nelas já foram implantados muitas benfeitorias a
do da escravidão, e ocupam as terras há pelo me- mais de 5 (cinco) anos principalmente pastagens,
nos sete gerações. cercas, currais, açudes etc. E ali criam gado bovi-
Mas elas nunca tiveram o domínio das ter- nos [sic], e os outros proprietários [sic], edifica-
ras que ocupavam. Eram obrigadas a pagar a quem ram[sic], casas, cercas e diversas culturas, perma-
se apresentava como proprietário das terras. O pa- nentes e temporárias.”
gamento devia ser feito em dinheiro ou em produ- A conclusão do INCRA, no entanto, aco-
tos. Suas casas, construídas de taipa e cobertas de bertara uma ilegalidade: o proprietário da fazen-
palha de babaçu, expressavam sua vulnerabilidade da Juçaral, Gentil Gomes, repartira o imóvel entre

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Nasilde Gomes Matos, Hugo Flávio Barros Matos e Afirmando ainda que o INCRA não adotara me-
ele próprio, no período de seis meses, no qual não didas satisfatórias para solucionar o conflito, bem
seria considerada a alteração no estado do bem, como não instaurou procedimento administrativo
por força do art.2º, §4º, da Lei nº 8.629/93. para investigar e apurar o desvio de conduta do ser-
Com efeito, o proprietário fora notificado vidor encarregado de realizar a vistoria do imóvel”.
da vistoria em 28 de agosto de 2006. A vistoria foi Ainda em 2009, a Fundação Cultural Pal-
realizada de 30/08 a 07/09/2006. Conforme o art. mares certificou que a Comunidade de Charco se
2º, §4º, da Lei nº 8.629/93, fica vedada a modifica- auto define como de remanescentes de quilombo
ção do estado do imóvel pelo período de seis me- na forma do art. 68 do ADCT da CF/88. E no mes-
ses, a contar da notificação da realização da visto- mo ano foi aberto o procedimento administrativo
ria. A divisão da área, porém, foi levada ao cartório nº 54230004050/2009-28 visando à regularização
da Comarca de São Vicente Ferrer, com base em fundiária quilombola.
doação, em novembro de 2006, fragmentando-a, e A inércia do INCRA foi decisiva para o acir-
assim permitindo a conclusão indevida do INCRA, ramento do conflito. Em 30 de outubro de 2010, às
que desconsiderou a redação do dispositivo legal. vésperas do segundo turno das eleições, Flaviano
Segundo certidão do Cartório de São Vi- Pinto Neto, líder da comunidade e presidente da
cente Ferrer, o imóvel denominado “Juçaral”, então Associação dos Pequenos Produtores Rurais do
pertencente a Gentil Gomes, com área aproximada Povoado do Charco, foi morto com sete tiros na
de 1.300 hectares (de acordo com título concedi- cabeça. O fato teve repercussão internacional, com
do pelo estado do Maranhão), foi transmitido a exigências de investigação por organismos como a
Nasilde Gomes Matos (em 30/11/2006, median- Anistia Internacional.
te doação), Manoel de Jesus Martins Gomes (em Ao término do inquérito, após as remessas
30/11/2006), Hugo Flávio Barros Gomes (em de praxe, o Ministério Público do Estado do Ma-
30/11/2006); e remanescendo a área não dividida a ranhão denunciou quatro pessoas: Manoel Gomes
Gentil Gomes. As alterações no imóvel foram leva- (um dos maiores empresários da região da Baixada
das a registro cartorial no dia1º/12/2006. Maranhense), seu irmão, Antônio Gomes (vice-
O conflito envolvendo os grileiros de terra -prefeito de Olinda Nova), Josué Saboia (ex-poli-
Antônio Gomes e Manoel de Jesus Martins Gomes, cial militar e pistoleiro) e Irismar Pereira, conheci-
de um lado, e os trabalhadores rurais quilombolas do pela prática de pistolagem.
do Charco, foram evidenciados a partir de 2009, Após o assassinato de Flaviano Pinto Neto o
quando as lideranças encaminharam uma série de INCRA acelerou procedimento administrativo que
denúncias ao Ministério Público Federal (MPF): “A resultou no Relatório Técnico de Identificação e
área ocupada há muitos anos por diversas famílias, Delimitação (RTID) do território quilombola, mas
no município de São Vicente Ferrer, estaria em situ- novamente o processo foi engavetado. Vale ressal-
ação de conflito possessório entre os seus integran- tar que a luta das comunidades do território do
tes e fazendeiros locais, tendo havido o despejo de quilombo Charco foi importantíssima no processo
algumas famílias, ordenado pela Justiça Estadual.6 de mobilização e articulação de comunidades qui-

6
Destaca-se do depoimento deles o seguinte: “existe uma área de 1.342 hectares ocupada por 96 famílias que ali residem há muitas gerações; há uma liminar
expedida em fevereiro de 2009 por Denise Pedrosa Torres, Juíza de Direito da Comarca de São Vicente Férrer/MA, para que os lavradores se retirassem da
referida área; a liminar foi suspensa por quatro vezes; na última suspensão, a Juíza de Direito deu um prazo de 10 dias, a contar de 26 de agosto de 2009,
para que a área de 1.342 hectares, objeto de litígio entre os remanescentes de quilombos e Hugo Flávio Barros Gomes, seja comprovada como pertencente
à comunidade quilombola; os declarantes procuraram o INCRA várias vezes, e o INCRA não tomou medidas para solucionar o problema; uma das justifi-
cativas para a não realização dos estudos pelo INCRA é a falta de antropólogo nos quadros do instituto.”

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lombolas do Maranhão, em especial das filiadas ao tembro de 2012. A Portaria de reconhecimento do
Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUI- território quilombola Charco, porém, só foi pu-
BOM) e, desde 2013, na construção da Articulação blicada em 20 de março de 2014. Finalmente no
Nacional de Quilombos, com apoio da CPT. dia 23 de junho de 2015, a presidenta Dilma Rou-
O Relatório Técnico de Identificação e De- sseff assinou Decreto que declara de interesse so-
limitação (RTID) do território foi concluído em cial, para fins de desapropriação, os imóveis rurais
maio de 2012. Dentre suas conclusões destacamos: incidentes sobre o território quilombola Charco,
localizado no município de São Vicente Ferrer, es-
1) Acerca das áreas e usos: tado do Maranhão. Esse é o padrão adotado pelo
Áreas de pastagem plantada 355,2304 INCRA: muitos processos abertos e pouquíssimos
Áreas de pastagem 171,3701 concluídos. Enquanto isso comunidades e lideran-
Áreas de capoeira mista com babaçu 288,33 ças ficam cada vez mais vulneráveis.
Áreas de mata com babaçu 315,5174
Sobre o assassinato de Flaviano
Áreas inundadas parte do ano 38,3403

Áreas com solo exposto 43,2306
Já se passaram mais de cinco anos do assas-
Áreas de preservação permanente 50,457 sinato de Flaviano Pinto Neto e os acusados por
Áreas de roça 75,9739 sua morte continuam sem serem julgados. Fugin-
Áreas inaproveitáveis 9,3042 do ao padrão, em março de 2011, o inquérito po-
2) Sobre as condições socioeconômicas: licial foi concluído e foram indiciados Manoel de
3) “O diagnostico evidência uma realida- Gentil, Antônio de Gentil, Josué Saboia e Irismar
de bastante difícil, em decorrência do fator terra Pereira. Depois de remetido ao Judiciário, o Minis-
que a população quilombola não possui. A falta de tério Público Estadual, em 1º de abril daquele ano,
produção agrícola e de excedente como fonte de apresentou denúncia contra os acusados.
renda, as irregularidades das chuvas, a deficiência Em outubro de 2012, o juiz da comarca de
educacional, o pouco estímulo às atividades de ge- São João Batista julgou-se incompetente para julgar
ração de emprego e renda sinaliza um forte grau a ação e remeteu o processo criminal para a Justi-
de pobreza; a falta de oportunidades para jovens e ça Federal porque, segundo ele, o crime acontece-
adultos”. ra numa disputa por terra envolvendo comunidade
Mas o relatório não foi pubiclado. Diante quilombola. Em função dessa decisão o processo
da paralisação do procedimento, as comunida- permaneceu parado por dois anos, voltando a tra-
des decidiram retomar o território em setembro mitar somente em setembro de 2014. O juízo da Co-
de 2012, passando a ter o controle sobre a área marca, em 14 de novembro de 2014, sentenciou que
reivindicada como território quilombola. A reto- os denunciados pelo Ministério Público Estadual,
mada foi necessária para que os fazendeiros não Manoel de Jesus Martins Gomes, Antônio Martins
destruíssem todos os recursos naturais indispen- Gomes (mandantes) e Josué Saboia (intermediário)
sáveis para a reprodução física e cultural das co- fossem levados a Júri Popular para serem julgados.
munidades. Essa decisão, entretanto, foi anulada pelo
Diante deste fato, o INCRA publicou o Tribunal de Justiça do Maranhão no dia 28 de se-
RTID no Diário Oficial da União no dia 27 de se- tembro de 2015.

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Mato Grosso

Assentamento na mira de quadrilha


especializada em grilagem de terras
Mato Grosso está localizado a Oeste da re- A produção de ouro começou a cair no iní-
gião Centro-Oeste. Limita-se com os estados do cio do século 19, levando a um processo de estag-
Amazonas e Pará, ao Norte; Tocantins e Goiás, ao nação do estado. No final do século XIX, início do
Leste; Mato Grosso do Sul, ao Sul; Rondônia e Bo- século XX, se dá início a um movimento separatis-
lívia, a Oeste. Sua capital é Cuiabá e sua economia ta, sufocado com intervenção do governo federal.
se baseia no agronegócio. A economia do estado começou a melhorar quan-
Mato Grosso já foi território espanhol pelo do foram implantadas estradas de ferro e telégra-
Tratado de Tordesilhas (7 de junho de 1494). Os fos. A partir daí, o estado retomou o desenvolvi-
jesuítas, a serviço dos espanhóis, criaram os pri- mento com a chegada de seringueiros, pessoas que
meiros núcleos habitacionais, de onde foram ex- cultivavam erva-mate e criadores de gado.
pulsos pelos bandeirantes paulistas em 1680. Em Os atuais estados de Mato Grosso e Mato
1718, a descoberta do ouro acelerou o povoamen- Grosso do Sul formavam uma única unidade fe-
to. Em 1748, para garantir a nova fronteira, Portu- derativa. O governo militar decretou a divisão do
gal criou a capitania de Mato Grosso e lá construiu estado em 1977, com a justificativa de promover o
um eficiente sistema de defesa. Com os Tratados de desenvolvimento econômico da região.
Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), Espanha e A economia do estadual está vinculada à
Portugal estabeleceram as novas fronteiras. agropecuária. O Mato Grosso é o maior produtor
Foto: CPT Mato Grosso

Moradores do Projeto de Assentamento Bridão Brasileiro ocupam a sede INCRA em Confresa.

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nacional de algodão. Mas o que domina a econo- que foram contratados para trabalhar na Destilaria
mia do estado é a pecuária e o cultivo da soja, res- Gameleira, uma usina de cana-de-açúcar flagrada
ponsáveis pelo desmatamento. O estado produz diversas vezes com casos de exploração de traba-
30% da soja brasileira. Cresce também a área para lho escravo. Após a desativação da Destilaria, estes
a produção de cana de açúcar. Com isso, somente trabalhadores se juntaram aos demais migrantes e
entre 2001 e 2004, conforme o Instituto Nacional buscaram terra para trabalhar e produzir para ali-
de Pesquisas Espaciais (INPE), foram desmatados mentar suas famílias. Desta forma, foram criados
38 mil quilômetros quadrados de floresta Amazô- no município 15 assentamentos com mais de cinco
nica mil famílias assentadas.
Segundo o Sistema de Estatísticas de Bridão Brasileiro era uma fazenda impro-
Comércio Exterior do Agronegócio Brasileiro dutiva, que tinha como “proprietário” Osvaldo
(AgroStat) do Ministério de Agricultura, Pecuá- Munhoz. Em 1995, 170 famílias sem terra ocupa-
ria e Abastecimento (MAPA), Mato Grosso foi o ram esta área tornando-a produtiva com uma pro-
segundo maior estado exportador de produtos do dução bem diversificada: arroz, milho, mandioca,
agronegócio em junho de 2015, perdendo apenas batata, cará, além de diversas fruteiras e criação de
para São Paulo. As vendas externas do estado so- pequenos animais. E em 2000, foi criada a Asso-
maram US$ 1,48 bilhão no mês. ciação de Pequenos Produtores Rurais da Gleba
A ocupação do campo pelo agronegócio Bridão Brasileiro para os ocupantes melhor se or-
está na raiz dos conflitos que são registrados e di- ganizarem e resolverem problemas comuns.
vulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) Depois de alguns anos de tranquilidade, em
em seu relatório anual Conflitos no Campo Bra- 1999, Osvaldo Munhoz entrou na Justiça com uma
sil. Um dos casos recentes de conflito e violência ação de reintegração de posse contra os que ocupa-
é o do Projeto de Assentamento Bridão Brasileiro. vam a área. Ele teve ganho de causa, mas o manda-
Confira abaixo: do de reintegração de posse foi suspenso, pois ele
concordou que a área poderia ser desapropriada
Bridão Brasileiro para fins da reforma agrária.
Mas como o processo de desapropriação
O Projeto de Assentamento Bridão brasi- não teve encaminhamento, ele voltou a acionar a
leiro está localizado nos municípios de Confresa Justiça, que, no início de 2002, emitiu novo man-
e Vila Rica, na região Norte Araguaia, em Mato dado de reintegração de posse, dando prazo para
Grosso. Tem uma área de 19.972 hectares de flo- a retirada dos ocupantes. Soube-se posteriormente
resta Amazônica e Cerrado. que área já tinha sido vendida a terceiros por pre-
Bridão Brasileiro era e continua sendo uma ços irrisórios, mas que a ação judicial continuava
terra fértil, onde tudo que se planta produz. Área em seu nome.
farta de recursos hídricos, cortado pelo Rio Pre- A decisão judicial ressaltava: “Em não sen-
to, que divide os dois munícipios de Confresa e do cumprida a determinação nesse prazo proceda-
Vila Rica. Em Confresa estão se instalando muitos -se à desocupação forçada sem destruir eventuais
órgãos públicos e grandes investimentos do setor plantações e barracos, com cautela e ponderação
privado, tornando-se assim um grande polo de devendo ser acompanhada pelo oficial de Justiça
desenvolvimento da região. Isso tem atraído um devendo o comandante da operação relatar cir-
grande número de migrantes em busca de terra e cunstanciadamente o ocorrido”.
de oportunidades de trabalho. As orientações inseridas no mandado de
Para Confresa, migraram maranhenses, pa- reintegração de posse sobre a forma de sua execu-
raenses, goianos e mineiros e muitos trabalhadores ção foram totalmente ignoradas. “Não deixaram as

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Foto: Arquivo AXA
No Mato Grosso, assentamentos na mira da grilagem
pessoas tirar seus pertences pessoais e nada de suas de terras
plantações. Espancaram pessoas, derrubaram qua-
se todas as casas”, conta Joel Francisco da Silva, 64
anos, que tem seu nome na relação de beneficiários mais rápido possível. Até criou uma vila onde essas
da reforma agrária, juntamente com seu filho, Ge- pessoas poderiam residir, mas não poderiam voltar
nivaldo da Silva, presidente da associação na época aos lotes que ocupavam antes de terem sido despe-
do despejo. jadas. Isso em cumprimento ao que determina a lei
A área era ocupada por 170 famílias, mas o nº 8.629/93, que em seu art. 2º, §6º, incorporou o
oficial de Justiça, Vanderlei Matte, assentou em sua estabelecido pela Medida Provisória nº 2.183/01,
certidão que existiam somente 12 casas. Todavia, impede que imóveis rurais esbulhados sejam ob-
segundo Joel Francisco, havia ao todo pelo menos jeto de vistoria, avaliação ou desapropriação para
60 barracos. fins de reforma agrária, nos dois anos seguintes à
Por causa da violência sofrida, a saúde de desocupação (ou em quatro anos, em caso de rein-
seu Valdomiro e Zezinho, dois posseiros espanca- cidência).
dos, nunca mais foi a mesma. Ficaram as sequelas O imóvel rural de domínio públi-
das pancadas que eles receberam na cabeça, dadas co ou particular objeto de esbulho
pela polícia, conforme relatou dona Aparecida, possessório ou invasão motivada
presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Tra- por conflito agrário ou fundiário
balhadoras Rurais de Confresa. de caráter coletivo não será visto-
Essas famílias despejadas acamparam às riado, avaliado ou desapropriado
margens da BR-158, onde permaneceram aproxi- nos dois anos seguintes à sua deso-
madamente um ano. Após esse período decidiram cupação, ou no dobro desse prazo,
acampar na beira da cerca da fazenda. Nesta oca- em caso de reincidência; e deverá
sião o INCRA prometeu desapropriar a fazenda o ser apurada a responsabilidade ci-

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vil e administrativa de quem con- uma quadrilha especializada em grilagem de ter-
corra com qualquer ato omissivo ras. Esta quadrilha desmontada em 2009 pela Polí-
ou comissivo que propicie o des- cia Federal tinha como grande líder e mentor Gil-
cumprimento dessas vedações. berto Luiz de Rezende, o Gilbertão. De acordo com
Em dezembro de 2006 o imóvel denomina- o inquérito da PF, Gilbertão estimulava a invasão
do fazenda Bridão Brasileiro, com área registrada de terras da União, inclusive em reservas indígenas
de 19.720,0000 ha (dezenove mil setecentos e vin- e privadas, por posseiros para depois expulsar os
te hectares) e área encontrada de 18.656,5771 ha ocupantes, comprando a posse ou fazendo uso de
(dezoito mil, seiscentos e cinquenta e seis hectares violência física e moral.
e cinquenta e sete ares e setenta e um hectares), lo- Em seguida ele providenciava a emissão de
calizado nos municípios de Confresa e Vila Rica, títulos de domínio falsos para a comercialização
no Mato Grosso, foi desapropriado para fins de re- dos lotes a médios e grandes fazendeiros e a gru-
forma agrária, pelo Decreto de 13 de Dezembro de pos empresariais. É justamente na expulsão desses
2006, que foi publicado no Diário Oficial da União, posseiros, muitas vezes enganados pelo próprio lí-
de 14/12/2006. O INCRA foi imitido na posse do der da quadrilha, que os policiais militares atuam.
mesmo em 31 de maio de 2007. A PF identificou a participação de seis policiais
Mas enquanto as famílias despejadas militares no esquema. Muitas vezes, coronéis utili-
que pertenciam à Associação Bridão Brasileiro zavam da estrutura da instituição para agir contra
aguardavam no acampamento a desapropriação o patrimônio. Então, a PF e o Ministério Público
prometida pelo INCRA, um grupo de famílias Federal (MPF) acusaram Gilbertão de comandar a
de Confresa e de municípios vizinhos, formada invasão e grilagem da fazenda Bridão Brasileiro. A
por comerciantes, políticos locais e oportunistas, forma truculenta do despejo lá realizado pela po-
ocupou a área. Alguns ocupavam até mais de três lícia, ignorando a determinação judicial, teria sido
lotes. Isso gerou insatisfação e revolta das famí- realmente comandada por Gilbertão, conforme es-
lias acampadas e uma disputa pela área. Depois creveu Alline Marques, em 05/07/2009, em Olhar
de ser imitido na posse da área da fazenda, 2007, Direto1.
o INCRA começou a regularização dos lotes sem O presidente da Associação do Bridão, no
averiguar se as famílias se enquadravam nos cri- inquérito da PF em 2009, além de denunciar os
térios para inclusão na Relação de Beneficiários abusos da polícia militar, denunciou também que
(RB). A RB original foi elaborada por alguns fun- jagunços chefiados por Gilbertão participaram
cionários do INCRA, mas na hora de assentar as da ação de despejo das famílias. Ele também se-
famílias foram outros os que conduziram o pro- ria o responsável pela ocupação da área, enquanto
cesso e modificaram a RB, acrescentando pessoas as famílias despejadas aguardavam a decisão do
da segunda ocupação e deixando fora pessoas da INCRA. Anos antes, em 2005, a Comissão Parla-
primeira, causando assim conflitos e acirrando mentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra, havia
uma interminável disputa interna. realizado uma audiência pública em Confresa. Na
ocasião, a presidente do Sindicato dos Trabalhado-
Ameaças e pistolagem res Rurais, Aparecida Barbosa da Silva, relatou que
“Gilbertão” estava por trás dos conflitos agrários
Por trás de todo este e muitos outros con- mais violentos da área, com fortes suspeitas de en-
flitos por terra na região do Araguaia se escondia volvimento em homicídios.

1
http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=35122, acessado em 15/02/2016.

49 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Conforme relatório da CPMI da Terra, Entidades de apoio
em 2004 foi morto um funcionário da empre- A luta do Bridão Brasileiro foi acompa-
sa Arroz Tio Jorge e ocasionou a prisão de sete nhada de forma firme e lúcida pelo Sindicato dos
trabalhadores. Segundo as famílias do assenta- Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais da Confre-
mento, o que possivelmente pode ter ocorrido sa, cuja presidente era dona Aparecida Barboza da
foi que um grupo querendo tirar proveito da si- Silva. Ela relata:
tuação matou um dos funcionários da empresa “Sempre militei no STTR [Sindicato dos
para incriminar as famílias do assentamento. A Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais]. A Minha
questão é que os sete agricultores foram soltos indignação é que fez com que eu lutasse para a re-
por ausência de provas. tomada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Confresa. Criamos um grupo de trabalhadores,
Situação atual das famílias voltado para cumprir verdadeiramente nossa mis-
são. Concorremos e ganhamos em 2003. Sempre
Famílias da primeira ocupação, cansadas de lutamos pela posse da terra. Não conto as audiên-
esperar pela regularização, foram para as periferias cias em Brasília e em Cuiabá e o INCRA patinando
de Confresa e arredores. Outros foram trabalhar e nunca que foi resolvido [...]”.
como peões de fazenda, ou nos mercados locais e Aparecida continua: “Tinha sempre uns
em trabalhos informais. candidatos ao STTR que eram financiados pelos
Em 2014, sete anos após o INCRA ter sido fazendeiros e eu sempre ganhava e, às vezes, ti-
imitido na posse do Bridão, os moradores do Pro- nha uma perseguição contra mim. Os fazendeiros
jeto de Assentamento Bridão Brasileiro, junto com sempre me odiaram porque conseguimos fazer um
as famílias que ainda não tinham sido assentadas, trabalho forte em relação ao trabalho escravo. Fui
ocuparam a sede INCRA em Confresa. Pressiona- ameaçada inúmeras vezes, perdi até as contas das
do, o executor do INCRA, em reunião, se compro- ameaças que recebi. Era perseguida de inúmeras
meteu a notificar as pessoas que ocupavam lotes formas. Por carros, telefonemas e bilhetes. Porque
de forma irregular, a promover a regularização dos sempre cumpri um papel em defesa dos trabalha-
assentados que estavam em situação irregular e a dores. Comecei essa luta aos 16 anos”.
analisar a situação das famílias relacionadas na Re- E ao lado do sindicato, a CPT acompanhou
lação de Beneficiários e que ainda não foram as- todo o conflito, como destaca dona Aparecida:
sentadas. “Desde o ano de 1980 sempre trabalhei jun-
to à CPT, que acompanhou desde o início a luta
Descaso do Estado da comunidade e as manifestações e reivindicações
por direitos. São sete anos desde a desapropriação
Se o INCRA tivesse cumprido seu papel, a da fazenda e, até agora, nada foi feito para regulari-
situação seria bem diferente. Mesmo com algumas zação das famílias. Infelizmente, a reforma agrária
famílias assentadas, não foi feita a infraestrutura ne- no país não é prioridade”. Atualmente a CPT têm
cessária para uma vida digna no campo. A situação contribuído no encaminhamento de denúncias so-
das pontes é precária, a escola funciona em barracos bre a situação das famílias, cobranças no INCRA e
improvisados... Um trator da prefeitura no assenta- pedido de intervenção do MPF no caso, para que a
mento beneficiava apenas pequenos grupos. situação seja solucionada.

50 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Pará

Conflito gerado por desmandos


de funcionários do INCRA
Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia
Cenário descrito pela equipe da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) da BR-163 e redigido em
agosto de 2014 destaca que “o processo de ocupa-
ção desta região (Oeste do Pará) não foge do con-
texto histórico geral do processo de ocupação da
região amazônica. No início dos anos 1970 esse
processo foi intensificado com os grandes projetos
de abertura das rodovias, BR-230 (Transamazôni-
ca) e BR-163 (Cuiabá-Santarém). Esse fator pro-
porcionou a vinda de uma grande quantidade de
imigrantes de diversas partes do Brasil para povoar
essa região”.
“Entretanto, na atualidade, vivemos outro
tipo de ocupação, proporcionado pelos mega pro-
jetos gananciosos do grande capital internacional
auxiliado pelo Estado brasileiro. Em nível de re-
gião amazônica, já são vários projetos em execução
em diversas partes do bioma. As usinas hidrelétri-
cas do Rio Madeira e a usina de Belo Monte são a
face real deste desenvolvimento que não é para as
populações tradicionais e não considera a existên-
cia destas populações, como sujeitos de direitos.
[...] O grande problema para a agricultura fami-
liar nesta região é o avanço do agronegócio com Associação da Comunidade
Menino Jesus, em Trairão
a monocultura da soja, do milho e da pecuária
extensiva, usando a BR-163 como corredor de ex-
portação. Este modelo desenvolvimentista agroex- de forma expressiva com a produção de alimentos
portador imposto na Amazônia expropria e expul- para o mercado local e regional. A luta dos traba-
sa os agricultores de suas terras, obrigando estes a lhadores e trabalhadoras contra a expropriação e
se mudarem para as periferias das cidades ou vilas pela permanência na terra em condições dignas, é
rurais, tornando a zona rural um espaço vazio de o que fundamenta o trabalho da CPT nesta região”.
pessoas, porém, ocupado por grandes plantações “No entanto, a realidade aqui tende a pio-
de soja, milho ou pastagens para o gado. Apesar rar. Após sete anos que o Ministério Público Fe-
da acumulação de terras e do processo de exclusão deral (MPF) embargou mais de cem projetos de
dos pequenos agricultores do acesso a políticas pú- assentamentos na Amazônia, deixando milhares
blicas, eles não desapareceram e vêm contribuindo de famílias sem-terra desabrigadas, sobrevivendo

51 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


uma das mais preservadas, com grande potencial

Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia


de florestas, sendo uma das últimas fronteiras de
floresta primária do estado do Pará, tendo como
seu maior ecossistema as florestas de terra firme,
que se distribuem ao longo das bacias dos Rios Ta-
pajós e Xingu (Riozinho do Anfrízio)”.
“Outra pressão sobre a região é o asfaltamen-
to da BR-163 que servirá para escoamento de pro-
dutos agropecuários do Mato Grosso para o porto
de Santarém e as hidrelétricas e hidrovias, ligando
o Rio Tapajós – Rio Teles Pires – Rio Juruena. (Pos-
Cerca em construção no Projeto de Assentamento teriormente surgiu a proposta de construção de um
Ipiranga, em Trairão porto graneleiro em Itaituba). Em relação ao com-
plexo hidrelétrico do Tapajós, o governo prioriza a
nas periferias das cidades em situação de miséria e construção da barragem de São Luiz do Tapajós com
de vulnerabilidade ao trabalho escravo. Estas áre- potência de 8.133 MW que irá inundar 784,82 km²,
as onde seriam assentadas as famílias, hoje estão onde os estudos já foram concluídos e apresentados.
todas ocupadas por grileiros, madeireiros e pecua- Além dos impactos diretos sobre as populações e
ristas. As famílias continuam na relação de benefi- unidades de conservação, os estudos realizados pela
ciárias da reforma agrária (RB), porém não sabem ANEEL ainda demonstram que é prevista a chegada
onde fica sua terra e o INCRA não tem um plano de 130 mil migrantes em busca de “oportunidades”
definido para resolver esta situação”. de trabalho. [...] Diante dessa realidade, a popula-
“A concentração de renda provocada pelas ção urbana e rural que habita nesses municípios não
políticas de incentivo por si só já são danosas para dispõe de serviços públicos eficientes de atenção à
esta região, visto que beneficiam somente os grandes saúde e educação ou de apoio à agricultura familiar
grupos econômicos nacionais e estrangeiros, porém e/ou de valorização das culturas das comunidades
o problema maior está relacionado à questão das tradicionais. Com infraestrutura precária, as pou-
lutas dos trabalhadores rurais pela posse e perma- cas estradas existentes são intrafegáveis durante o
nência na terra. Neste contexto, a região do Tapajós inverno, deixando comunidades isoladas. Para so-
também é alvo da cobiça e da ganância do capital. breviver, muitos camponeses reproduzem a prática
Hoje já são projetadas mais de 10 barragens para o da aliança com madeireiros e fazendeiros, comum
chamado complexo do Tapajós, acompanhadas de na região Amazônica, em função da ausência do Es-
hidrovias e portos para exportação de commoditties tado. São estes que abrem estradas e que, por terem
agrícolas, ferrovias e um entroncamento rodoviário. veículos, criam também dependência no transporte
Aumenta, assim, a pressão sobre a floresta e as po- da produção e das pessoas”1.
pulações que habitam esta região há séculos”.
“O capital internacional tem avançado nos Conflito dos posseiros da Vicinal 30 do Projeto
últimos anos e, de forma autoritária, o governo bra- de Assentamento Ipiranga
sileiro tem intensificado o processo de destruição
dessa região, principalmente com relação ao meio O Projeto de Assentamento (PA) Ipiranga
ambiente, uma vez que essa região é considerada foi criado em 1982 pelo Instituto Nacional de Co-

I
Projeto CPT BR163 aprovado por Misereor em 2015.

52 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


lonização e Reforma Agrária (INCRA) com 326 e memorial descritivo da área. Porém, o órgão não
lotes rurais para assentamento de agricultores fa- os regularizou como assentados.
miliares, distribuídos nas vicinais 20, 25 e 30, em Em 2010, um paranaense, Ivo Eduardo
área dos municípios de Trairão e Itaituba, no Pará. Welter, passou a reivindicar diversos lotes da Vi-
Mas o assentamento enfrentou problemas cinal 30, dizendo-se representante de parentes e
desde o início. Em 2004 chegaram madeireiros e vizinhos que constavam na lista de assentados nos
grileiros à região, tentando expulsar os posseiros. lotes em que nunca tinham morado lá e ocupado
Houve inclusive ameaças de morte. Assim, em 14 efetivamente. Segundo levantamentos posteriores,
de dezembro de 2004, Vanderlei de Oliveira, An- alguns dos beneficiários eram dentistas, atletas, e
dré da Silva Soares e Jairo Osório Ronaldo dos outros. Pessoas sem perfil para reforma agrária,
Santos denunciaram à Superintendência Estadual que moravam no Paraná e não trabalhavam nem
do INCRA em Belém que Erasmo Ribeiro Alves, ocupavam a terra do assentamento.
conhecido com Amaral, vinha há algum tempo O fazendeiro que reivindicava as terras
“causando terror psicológico junto aos agriculto- morava em Itaituba, onde seus filhos tinham uma
res do assentamento”. A denúncia pedia também firma de comercialização de madeira. Como pro-
uma auditoria na superintendência do INCRA em curador de pessoas que constam na lista oficial de
Itaituba.2 assentados, entrou na Justiça com ações de rein-
Os conflitos, porém, se avolumaram, so- tegração de posse contra vários dos posseiros que
bretudo a partir da segunda metade da década de moravam e trabalhavam no local. A justiça deu a
2000. Mas tiveram sua origem à época da criação ele ganho de causa e, em 2011, foram despejadas
do assentamento. Um antigo servidor do INCRA diversas famílias. Outras já tinham sido expulsas
colocou como beneficiários da reforma agrária pa- pela polícia ou pelo próprio fazendeiro, antes mes-
rentes e vizinhos de sua cidade de origem no Para- mo de conseguir ordens na Justiça. O próprio fa-
ná, que na realidade nunca foram morar na região. zendeiro reconheceu ter derrubado algumas casas,
Em nome deles foram titulados diversos lotes. que dizia ser de parentes, sem ordem da Justiça.
Em uma ação, o INCRA constatou a existên- Segundo os posseiros, o fazendeiro aproveitava os
cia de 44 lotes desocupados na localidade Vicinal momentos que os donos tinham saído, chegando
30, entre os anos 2000 e 2007. Os posseiros relatam armado. Com trator, passava enleirando as roças
que o INCRA de Rurópolis realizou reunião no lo- e plantando capim. Assim formou uma fazenda,
cal e incentivou a ocupação dos lotes abandonados concentrando diversos lotes de reforma agrária.
por pequenos agricultores, dizendo que a terra era Após denúncias, com Ivo E. Welter, em
do INCRA e está era para o trabalhador rural morar. 21/02/2011, foram apreendidas diversas armas. Ele
Em 2009, Franklin Batista, chefe do órgão em Ruró- ficou preso algumas semanas, respondeu a proces-
polis, durante reunião na área, dizia: “Vocês que es- so e foi condenado em 28 de maio de 2013 a dois
tão ocupando os lotes são os verdadeiros donos dos anos de prisão e multa, trocados por penas alterna-
lotes”. Famílias de agricultores passaram a ocupar tivas por ser réu primário3. Porém manteve a ocu-
as unidades familiares de 100 hectares na Vicinal pação das terras e dos lotes tomados por ele. Nestes
30 e desempenhando suas atividades de agricultura lotes foram colocadas numerosas placas indicando
familiar. Elas receberam documentação fornecida existir um plano de manejo florestal. Na realida-
pelo INCRA onde constava protocolo de ocupação de, após denúncias dos posseiros, foi comprovado

II
Denúncia dirigida ao “Presidente do INCRA/Estado do Pará” 14/12/2004 por Vanderlei de Oliveira e outros.
III
Processo de nº 0000871-69-2011-814-0024.

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Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia
Superintendência do Incra em Santarém,
pelo INCRA que não eram planos de manejo lega- no Pará
lizados. O IBAMA chegou a apreender na fazenda
uma serraria de pequeno porte e um trator de es- tatou que as mesmas estavam abandonadas pelos
teira, que continuou sendo usando na fazenda. beneficiários titulares. O relatório fez constar que
A Comissão em Defesa da Vida de Trairão, estes (os beneficiários) tinham residência no Para-
em 12 de março de 2012, enviou ofício ao Procu- ná e que desde os anos 2008 e 2009 a terra estava
rador da República Claudio Henrique Machado ocupada por outras pessoas. Com isso, o INCRA
Dias relatando as dificuldades e a impotência dos entendeu que as pessoas despejadas tinham direito a
posseiros: “O projeto Ipiranga tornou-se um dos voltar à terra. Porém, posteriores vistorias (contesta-
maiores conflitos e o Sindicato dos Trabalhadores das pelos posseiros como inverídicas) relatam a pre-
e Trabalhadores Rurais de Trairão não sabe mais sença de moradores inexistentes e ignoram alguns
a quem recorrer, pois o mesmo já esteve acom- dos mais antigos posseiros. Servidores do INCRA
panhando o INCRA em duas reuniões apoiando foram denunciados por atuar de má fé e rejeitados
a fixação dos agricultores naquela área nos anos pelos posseiros, pedindo novas vistorias. Desta for-
2009 a 2011. Os agricultores que tiveram o apoio ma, houve novo despejo das famílias em nova ação
do INCRA para se instalar naquela área estão sen- de reintegração de posse. Neste despejo três agricul-
do ameaçados diariamente por pessoas que dizem tores foram presos e acusados de opor resistência ao
donos, que apresentam documentos do INCRA mandado judicial: Edgar da Silva Moreira, Erandir
com grandes quantidades de terras. [...] Senhor Abreu de Souza, e Evangelista Rodrigues Cordeiro
Procurador da República, acreditamos no seu bom da Silva. O presidente da Associação Arco Iris preso
desempenho que interceda por estes agricultores por defender os trabalhadores.
diante do INCRA para que os agricultores não pa- A Associação Arco Iris, formada por famí-
guem os descasos do INCRA com a vida”4. lias do assentamento, enviou, no dia 5 de novem-
Em outubro de 2012, o INCRA fez vistoria5 bro de 2012, ofício ao Superintendente do INCRA
nas parcelas 46, 47, 48 e 49 do PA Ipiranga e cons- em Santarém, em que denuncia: “No PA Ipiranga

IV
Comissão em Defesa da Vida ao Procurador da República Claudio Henrique Machado Dias, em 12/3/12.
V
“Relatorio de vistorias em parcelas do PA Ipiranga (Município de Itaituba-PA) de Edson Valério Nunes, Edioni Gomes da Costa, Luiz Fernando de Araújo
e Thiago Braga Duarte.

54 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


encontra-se a maior concentração de módulos de am concentrando lotes e dificultando a regulariza-
cem hectares em posse de pecuaristas e madeirei- ção dos posseiros do assentamento que tem perfil
ros, inscritos em nome de laranjas”. O ofício elenca para serem assentados.
as irregularidades existentes: extração ilegal de ma-
deira e palmito, projetos de manejo florestal para Os posseiros da Vicinal 30 e as entidades de apoio
esquentamento de guias para transporte de madei-
ra, presença de homens armados para dar suporte Segundo moradores, na Vicinal 30 do PA
aos supostos “donos” dos lotes, desmatamento ile- Ipiranga a maioria das famílias são migrantes che-
gal para formação de pastagens em áreas de mane- gados do Maranhão e do Mato Grosso. Um deles
jo e comercialização de lotes. O ofício afirma ainda conta que morava na cidade de Trairão há uns 15
que “As famílias de agricultores perderam as contas anos e faz uns 10 que foi ao Vicinal 30, dentro do
das perdas causadas pela ausência do INCRA”. E município, em busca de terra para viver. Antes não
conclui: “Está demanda vem se arrastando há dez tinha estrada na Vicinal e o local começou a se de-
anos e resistimos, pois precisamos da terra para senvolver apenas de 2002 para cá. Na área não ti-
trabalhar e produzir agricultura familiar.”6 nha moradores.
Os problemas da região não somente acon- Os posseiros criaram a Associação de Mo-
tecem no PA Ipiranga. Não muito longe de lá, no radores Arco Iris em 2007, conseguindo registra-la
PA Areia, de Trairão, existe atuação intensiva de oficialmente em 2010, sendo Evangelista Rodri-
madeireiros, acobertados por pistoleiros. Quatro gues Cordeiro da Silva o presidente desde 2009.
posseiros foram ameaçados de morte. Segundo Atualmente a Associação Arco Iris conta com 35
técnicos o INCRA, uma terceira parte do assenta- associados da Vicinal 30. Apenas três estão assen-
mento está nas mãos de fazendeiros, que continu- tados oficialmente, os demais são posseiros. As

Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia

Porto de Soja em Itaituba, no Pará

VI
Ofício GSI/n. 020/2012 de 05 de Novembro de 2012, assinado por Evangelista R.C. da Silva da Associação dos Moradores Arco Iris CNPJ 12.428.358/0001-
07, dirigido ao Eng. Marcos Alexandre Kowarik, superintendente do Incra de Santarém.

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famílias de sete lotes que foram despejadas estão justiça de Itaituba, de madeireiros e polícia7. Em
morando na rua, no Trairão, trabalhando como geral, para os posseiros a maioria de instituições
podem, em serrarias e outros lugares. Continuam públicas está contra eles e o fazendeiro conta com
participando das reuniões da Associação, esperan- apoio das autoridades locais.
do a realização de uma vistoria nestes lotes. Os posseiros citam dificuldades na Delega-
Na época de maior conflito, as famílias ti- cia de Polícia Civil de Trairão, onde foram registra-
veram apoio da Comissão Verbita de Justiça e Paz, das muitas ocorrências sem que fossem tomadas
Paróquia São José Operário de Trairão, e da Co- providências. A partir de 30/04/2012, “a autorida-
missão Pastoral da Terra. Também foram apoiadas de policial civil desta cidade se recusava em fazer
pelos sindicatos, com os quais continua boa rela- boletins de ocorrência relativos a situações confli-
ção, apesar das reclamações de que, hoje, os mes- tuosas nesta área do PA Ipiranga”.8 Após interven-
mos não se envolvem muito na busca por resolu- ção da advogada da Terra de Direitos, ao falar so-
ções dos conflitos. Também contam com ajuda de bre entrar com representação judicial, a delegacia
outras associações em Trairão, como a Associação voltou a receber denúncias. Também por pressão
do Assentamento Menino Jesus. Segundo a comu- do Programa de Proteção aos Defensores dos Di-
nidade, a CPT tem ajudado a reunir as diversas reitos Humanos, houve diversas trocas de delegado
associações em espaços de formação, análise de local em Trairão. Um capitão da PM da região foi
conjuntura, e reivindicações, como o programa denunciado como dono de diversos lotes dentro
Luz para Todos para os assentados, e ao apoiar o do assentamento.
povo para que consigam pequenos projetos socio- Na Justiça Estadual de Itaituba, os possei-
ambientais. ros, como é habitual nas liminares de reintegra-
O grupo foi defendido juridicamente pelo ção de posse, foram despejados sem poder se de-
Padre José Boing, da Associação de Justiça e Paz fender das acusações, pois “nunca souberam que
e advogado da CPT. Hoje tem o apoio jurídico da havia uma ação contra eles antes de 1º de Agosto
organização Terra de Direitos, através do advoga- de 2011”9.Sofreram duas reintegrações de posse.
do Pedro Sergio Vieira, após, em 2012, a organi- Em 2011 e em 2012 nos mesmos lotes (46, 47, 48,
zação estabelecer escritório em Santarém. Terra de 49. Gleba 01G). O INCRA mandou voltar para as
Direitos junto com a CPT também acompanha a casas, porém foram expulsos novamente e tiveram
inclusão de ameaçados – um deles do conflito do as casas derrubadas com moto serra. No final de
PA Ipiranga – no Programa de Proteção aos Defen- 2014 houve um terceiro processo de reintegração
sores dos Direitos Humanos. de posse no Lote 42 da Gleba 01H de um posseiro
da Associação Arco Iris. Porém, a juíza, depois de
Atuação do poder público no conflito ouvir o posseiro, não deferiu o pedido de reinte-
gração.
Segundo as famílias de posseiros, o parana- Acusado de pistolagem, o fazendeiro che-
ense Ivo Eduardo mostrava “ódio aos agricultores gou a ficar preso por uns trinta dias por porte ilegal
remanescentes de comunidades tradicionais, de de arma de fogo e, posteriormente, foi condenado.
pele morena, nortistas e nordestinos”, e acreditam Alguns posseiros reclamam que foram chamados
que ainda hoje ele conta com apoio no INCRA, na para uma nova audiência como testemunhas, po-

VII
Relatório de 29/1/2012, protocolado no INCRA
VIII
Relatório dos Moradores dp PA Ypiranga de 29 de maio de 2012. Comissão Em Defesa da Vida.
IX
Dr. José Boeing, svd OAB/PA 10.427. 01/02/2012.

56 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


rém a mesma já foi remarcada por três vezes, e por manifestado também, declarando que as procu-
três vezes eles foram a Itaituba e a audiência não rações apresentadas pelo Ivo Eduardo Welter não
aconteceu. Somente os réus haviam sido avisados. tem validade para efeito de ocupação dos lotes,
Enquanto isso, no INCRA, o processo segue pois os assentados tem que explorar a terra de for-
um complicado itinerário, com vistorias e contra ma direta. Porém, ele parece ter sólidos defensores
vistorias. A primeira vistoria foi contestada pelos dentro do órgão.
posseiros como irregular e parcial, ignorando mo- O conflito da Vicinal 30 do Projeto de As-
radores do local e a associação que os representa. A sentamento Ipiranga tem sido tratado em diver-
partir de uma audiência com o MPF, conseguiram sas audiências públicas da Comissão Nacional de
que fosse ordenada uma segunda vistoria do IN- Combate à Violência Agrária, presidida pelo Ouvi-
CRA, após pedir a troca de um servidor do INCRA dor Agrário Nacional. Para os posseiros, fica claro
Santarém, acusado de realizar a vistoria “come- que o INCRA é o principal responsável pelos pro-
tendo várias irregularidades e agindo proposital- blemas que estão acontecendo, e tanto eles como
mente em favor dos fazendeiros e madeireiros que os seus apoiadores sempre têm reclamado da au-
promovem conflitos no assentamento10”. Foi-nos tarquia.
relatado que na vistoria do INCRA de 2013, ape- Em abril de 2012 eles concordaram com o
sar dos técnicos irem até a casa do presidente da INCRA para que os processos fossem transferi-
associação de posseiros, seu nome constou como dos da Justiça Estadual para a Justiça Federal. E
“desconhecido” na relação de posseiros. Os nomes que fosse feita nova vistoria da área, excluindo do
de pessoas que há cerca de 12 anos moram na área cadastro dos beneficiários da reforma agrária, os
também não apareceram. Apareceram nomes de “laranjas”11. Na redação destas linhas, eles aguarda-
pessoas do Paraná que jamais moraram lá. Poste- vam uma terceira vistoria. Também aguardavam a
riormente, o MPF pediu uma nova vistoria, que chegada de assistência técnica, de uma empresa de
estava por acontecer. Santarém, fato que também deve gerar uma docu-
Em 30 de abril de 2014 há uma recomen- mentação sobre a ocupação atual dos lotes.
dação da Procuradoria especializada do INCRA As denúncias apresentadas ao Ministério
pedindo a retomada administrativa dos “lotes ir- Público Federal têm ajudado a rever a atuação do
regulares”: 39, 40, 47, 48, 49 e 50 do Projeto de As- INCRA que, apesar de tudo, ainda é considerado
sentamento Ipiranga. um dos maiores aliados dos pequenos agriculto-
Assim, desde 2011 os posseiros vêm enfren- res. Mesmo assim, diversas pessoas concordam que
tando uma dura batalha para conseguir apoio das o que prejudica o trabalho do MPF é a troca com
instituições para sua causa. Após terem sido incen- frequência dos procuradores, que têm grande rota-
tivados por servidores do INCRA para ocupar os tividade. Existem ações em Itaituba sobre as irregu-
lotes abandonados do PA Ipiranga, em realidade laridades denunciadas no INCRA, que não parecem
não foram regularizados como assentados. Hoje a avançar, pois elas dependem dos procuradores.
maioria foi cadastrada – somente as sete famílias Junto com outras lideranças de Trairão e da
que foram despejadas ainda não constam no ca- região de Santarém, o Programa de Proteção aos
dastro de demandantes de reforma agrária. Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria
Segundo técnicos do INCRA de Santarém, de Direitos Humanos da Presidência da República,
a promotoria especializada da autarquia já tem se havia incluído uma liderança do Ipiranga na lista

X
Oficio n 009/2014 ao INCRA, de 28 de Março de 2014 e Ofício N. 11/2014 da CPT ao INCRA e MPF .
XI
Hugo Alan Moda Lima, superintendente regional interino, memória de reunião no Gabinete do Incra da SR-30 03 abril de 2012, CPT Santarém.

57 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


de proteção a ameaçados de morte. Porém, atual- nunciada pelos posseiros, outras vezes, a julgar pe-
mente o governo do Pará não renovou convênio las denúncias dos posseiros, as vistorias requeridas
com o programa federal, que por isso continua foram realizadas de forma irregular, apoiando a
funcionando com muitas limitações e sendo con- grilagem e concentração de terras, situação que o
siderado de pouca efetividade para proteção dos MPF ainda não apurou em profundidade como é
ameaçados. necessário.
Apesar de tudo, a violência na área parece ter
Intervenção pública a favor dos posseiros dura- reduzido depois que o conflito chegou ao conheci-
mente conquistada mento público. Além do sindicato, o grupo de traba-
lhadores ficou mais articulado, contando com apoio
O conflito da Vicinal 30 do Projeto de As- da CPT e de outras entidades e com assistência ju-
sentamento Ipiranga ocupa duas grandes pastas rídica. A situação também melhorou após a prisão
de documentos nos arquivos da Comissão Pasto- e condenação do fazendeiro, acusado de atuar de
ral da Terra, o que representa mais um conflito forma violenta na região. Não se tem notícia, hoje,
originado pelo próprio INCRA, primeiro por ter da presença de jagunços armados. Mesmo assim, o
assentado oficialmente agricultores que jamais povo continua em alerta. Contribuiu também para
chegaram a ocupar seus lotes e, segundo, sem a isso o fato de as tentativas de despejar mais possei-
sua destituição após constatar a irregularidade. ros pela Justiça não terem tido sucesso.
Por outro lado, os posseiros instalados oficiosa- Contudo, a situação está longe de ser re-
mente pelo próprio INCRA, inclusive com do- solvida. As sete famílias despejadas, em ações mo-
cumento de ocupação, não foram regularizados. vidas por procuração irregular de assentados que
Estas irregularidades permitiram que a Justiça nunca viveram na área, continuam sem a posse da
desse ouvidos ao grileiro que se apresentou como terra. Os lotes grilados continuam em poder do fa-
procurador de um grupo de assentados, sem que zendeiro e as sete famílias, sem terra. Também se
em realidade o INCRA fosse chamado para escla- falou em emancipar o assentamento, desta forma
recer a situação na Justiça. deixando como está a concentração de lotes e as
Ainda, quando o mesmo foi chamado, às irregularidades denunciadas.
vezes seus servidores confirmaram a situação de-

58 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Rondônia

A difícil retomada das terras públicas na


Amazônia: O conflito dos assentamentos do
Flor do Amazonas em Candeias do Jamari
Um cenário descrito, em 2014, pela Comis-

Foto: CPT Rondônia


são Pastoral da Terra (CPT) de Rondônia apresenta
assim a realidade do estado: A partir da colonização
iniciada nos anos 70, a maioria dos habitantes de
Rondônia são migrantes procedentes de outras regi-
ões brasileiras. A economia está baseada no predo-
mínio da pecuária. Mas o agronegócio avança para
terras que antes não interessavam, sobretudo, no
Cone Sul do estado. Expande-se o modelo agríco-
la e técnico voltado para a exportação, socialmente
excludente e não sustentável para o meio ambiente.
A ocupação desordenada da terra duran-
te décadas provocou inúmeros conflitos agrários,
muitos dos quais continuam. Outros estão relacio-
nados com o programa de regularização fundiária
Terra Legal. A reforma agrária está paralisada, famí-
Posseiros e grupos de sem terra estão en- lias ficam acampadas por anos a fio e se multi-
frentando uma nova onda de violência com o sur- plicam os despejos de posseiros e a expulsão de
gimento de novos conflitos agrários. A maioria das camponeses. Este quadro aumenta ainda mais a
mortes por assassinato e atos violentos continua na profunda desigualdade social e da distribuição da
impunidade. A repressão policial parece ser a úni- terra, avançando a fronteira agrícola para os esta-
ca medida adotada para acabar com os conflitos dos vizinhos e interior das reservas florestais. O
agrários. desmatamento, depois de alguns anos de redução,
Com Justiça morosa e parcial, os processos voltou a crescer em 2013, alcançando mais 933
judiciais de retomada da propriedade pública da km² em Rondônia.
terra se alastram sem serem resolvidos. Porém há População originária das comunidades
grande celeridade nas decisões de reintegração de tradicionais – indígenas, quilombolas e ribeiri-
posse contra camponeses, assim como muita efi- nhos – sobrevivem nas cidades, ou isoladas nas
cácia na prisão de lideranças. Camponeses e mo- margens dos rios (Madeira, Guaporé, Mamoré,
vimentos sociais são perseguidos por pistoleiros, Machado e afluentes). Como sempre esses são os
policiais e Justiça, enquanto continua a impunida- primeiros e mais atingidos pelos grandes projetos
de dos abusos e da violência contra os pequenos e empreendimentos, como o das usinas hidrelé-
agricultores. A mídia mascara a violência contra o tricas no Rio Madeira, Jirau e Santo Antônio. O
povo. mesmo deve acontecer nos novos projetos, como

59 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


as usinas de Tabajara, no Rio Machado, e os por- mara Federal, afirmando ‘que o Grupo De Zorzi
tos graneleiros. (um dos 200 maiores do País) vigia a gleba Urupá
Muitos desempregados das usinas agora – mais de 100 mil hectares – com um sistema de
tentam um pedaço de terra em novas ocupações. jaguncismo e alertou a Funai para o extermínio
Assim aumentaram os acampamentos de sem-ter- de índios na área Urupá-Itapirema [...] matando
ra, em grupos independentes. Os movimentos so- os índios localizados no sul da área’, (Porantim,
ciais organizados, Fetagro, Via Campesina – Movi- Manaus, 09.1981: 20)”. (Mauro Leonel. Etnodi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), céiaUruéu-au-au, pag. 98).I
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), A empresa, porém, não tinha qualquer do-
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) cumento legal sobre a área, que se situava no mu-
– e Liga dos Camponeses Pobres (LCP), bastante nicípio de Porto Velho e, depois, com o desmem-
desmobilizados, atuam com diferentes estratégias bramento e criação de novos municípios passou a
políticas. Enquanto isso, alguns conflitos se eter- pertencer ao município de Candeias do Jamari. E
nizam, inclusive dentro de áreas de assentamento, então buscou formas para se regularizar. Ela que
como no Flor do Amazonas. pretendia mais de 133.000 hectares, devido a mais
que precária documentação legal dos seringais e ao
Histórico do(s) assentamento(s) do Flor do conjunto de normas e legislação vigentes, se con-
Amazonas tentou em instruir um processo de regularização
de 33.000 ha. A legislação determinava que áreas
Não é fácil destrinchar no emaranhado de públicas, maiores do que 3.000 hectares, só pode-
informações do que aconteceu no imóvel que deu riam ser alienadas pelo poder público com apro-
origem aos atuais projetos de assentamento deno- vação do Senado Federal, que só poderia aprovar
minados Flor do Amazonas 1, 2, 3 e 4. Os conflitos tal transação se o processo viesse acompanhado de
do Flor do Amazonas, no município de Candeias um projeto de exploração da área pretendida. Em
do Jamari, em Rondônia, parecem ser um bom 1983, por meio da Resolução nº 320, o Senado au-
exemplo da confusão fundiária reinante em nossa torizou o Poder Executivo a alienar para a Empresa
Amazônia. Aqui se trata de uma área de 33.000 mil os 33.000 hectares para implantação de um projeto
hectares em disputa há mais de 15 anos. de bovinocultura. A aprovação tinha Cláusulas re-
Originalmente, em 1976, a empresa Agro- solutivas vinculadas ao fiel cumprimento do cro-
pecuária Industrial e Colonizadora Rio Candeias nograma físico financeiro da execução do projeto,
(AGRINCO) tentou se apossar de antigos seringais determinando o prazo de um ano para início da
com área equivalente a 133.608,7 hectares. A em- implantação do mesmo. Se estas cláusulas não fos-
presa era parte do grupo empresarial gaúcho De sem cumpridas, ou se o projeto fosse paralisado, o
Zorzi, que teve pretensões semelhantes sobre uma Poder público deveria ser reintegrado na posse da
área de 100.000 mil hectares na região central do área. Com esta aprovação, a AGRINCO implantou
estado, no município de Ji-Paraná. nesta área a Fazenda Urupá e a Madeireira Urupá.
Neste processo de ocupação, várias mortes Acontece que de fato a empresa implantou
foram registradas em decorrência desta disputa um forte esquema de extração de madeira e não
de áreas de terras. “O jornalista Montezuma Cruz implantou o projeto de bovinocultura. E mais ain-
relata denúncias feitas em 1980 pelo então Depu- da, depois de ter explorado toda madeira existen-
tado Federal Jerônimo Santana (PMDB), na Câ- te, passou a comercializar parcelas da área. Tudo

I
Documento interno cedido pelo Regional da CPT Rondônia.

60 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


ao arrepio da lei e sem o conhecimento formal do procuradoria, uma longa batalha jurídica com ob-
INCRA. Com isso muitos compraram parcelas da jetivo de retomar a área dos 33.000 ha por inadim-
área e se instalaram na mesma sem qualquer per- plência das cláusulas resolutivas. A Justiça garan-
missão legal. tiu ganho de causa ao INCRA em primeiro grau,
Em abril de 2000 a pedido do deputado Ser- estando o processo judicial em grau de recurso.
gio Carvalho, de Rondônia, foi criada na Câmara No entanto, é importante destacar que, embora a
Federal a Comissão Parlamentar de Inquérito Agropecuária perca a propriedade da área, ela será
(CPI) para investigar a ocupação de terras públicas indenizada pelo INCRA, a discussão do valor tam-
na Amazônia. Os trabalhos dessa CPI foram fina- bém se encontra em litígio judicial.
lizados em 29 de agosto de 2001. O relatório apon- Fontes dos assentados relataram o início
ta muitos casos de irregularidades, entre os quais da luta pelo assentamento num ato organizado
consta a ocupação irregular dos 33.000 hectares do pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR),
processo da AGRINCO em Candeias do Jamari. em 08 de abril de 2008 em um escrito denomina-
do “Histórico do Pré-assentamento Flor do Ama-
“Recomendamos, pois, que esta CPI determi- zonas”:
ne ao INCRA que proceda a um imediato le-
vantamento documental da ocupação da área “Em 2001, O deputado Sérgio Carvalho, reu-
para dirimir as contradições relatadas acima. niu um grupo de agricultores na linha 43, no
Que identifique quem são os ocupantes da área município de Candeias do Jamari, e informou
de 44.000 hectares ainda não regularizada e se que as terras dentro da área de l43 mil hecta-
certifique sobre a real extensão de área ocu- res pleiteada em ação judicial pela madeireira
pada e explorada pela empresa Rio Candeias Urupá seria destinada para a reforma agrária,
(seria superior aos 31.000 ha “oficialmente” inclusive os 33 mil hectares que foi conseguin-
sob sua posse?). Que identifique os licitantes do junto ao SENADO FEDERAL, estabelecido
inadimplentes e tome imediatamente as pro- na resolução de nº 320 que autorizava o IN-
vidências para reversão dessas terras ao patri- CRA a alienar 33 mil hectares, condicionado
mônio da União. Que represente ao Ministério ao cumprimento da cláusula resolutiva esta-
Público todos os crimes cometidos pelos atuais belecida no contrato que nunca fora cumprido
e ex-proprietários da Agropecuária e Coloni- pela mesma” (Histórico, 2008)
zadora Rio Candeias. Que instaure imediata-
mente inquérito administrativo para apurar os Porém, a luta pelo assentamento somen-
responsáveis pela omissão do INCRA quanto te toma impulso depois que, em 2002, oitenta
à ocupação e exploração ilegal perpetrada pela famílias do Movimento Camponês de Corum-
empresa. Que adote todas as providências para biara (MCC) montam um acampamento dentro
estancar o processo de transferência de posse a da área. Como a Agropecuária loteou e vendeu
terceiros perpetrado pela Rio Candeias. (CPI a área para vários fazendeiros, o conflito se acir-
da Grilagem de Terras na Amazônia, p. 477)II rou com terceiros que tinham documentos das
terras loteadas de forma fraudulenta. Os campo-
O INCRA, provocado pelo relatório da CPI neses ocuparam a área e plantaram uma grande
e pelo movimento social, iniciou, por meio da sua roça comunitária de mais de 20 alqueires. Porém,

II
Relatório Final da CPI sobre a Grilagem de Terras na Amazônia, pp. 472-478. https://arisp.files.wordpress.com/2009/10/33421741-relatorio-final-cpi-
-terras-amazonas-grilagem.pdf

61 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


em 02 de fevereiro de 2006, os acampados foram tos de personalidades, tais quais o arcebispo Dom
obrigados a recuar. Mas, em 12 de junho, interdi- Moacir Grechi, que visitou a área no dia 7 de julho,
taram a BR-364 por três dias. fazendo uma celebração campal exortando a fir-
Por sua vez, os fazendeiros da área se orga- meza nos propósitos dos pré-assentados e pedindo
nizaram numa associação conhecida pela sigla AS- que às autoridades do estado elucidassem o crime
PRURR, Associação de Produtores Rurais de Rio ocorrido na referida área e que houvesse a punição
Preto e Região. dos culpados”. (Histórico, 2008).
Problemas internos com a liderança do

Foto: CPT Rondônia


MCC, Adelino Ramos, conhecido como “Dinho”,
e com o advogado do movimento “Águia Azul”,
determinaram a saída dos acampados do movi-
mento, em setembro de 2006. Segundo os assen-
tados a intervenção jurídica do INCRA na reto-
mada não foi fácil:

“Dia 23 de maio de 2007, foi uma comissão de


pré-assentados juntamente com integrantes do
Comitê Popular de Lutas em Defesa do Socia-
lismo, junto ao INCRA, e em reunião com o
superintendente o Sr. Olavo e a Procuradora
Casa queimada duas vezes no Flor do
Aparecida, solicitamos a intervenção da pro- Amazonas, em Rondônia
curadoria do INCRA junto a Justiça Estadual
da comarca de Porto Velho. (...) A pedido do Apressada pela situação de violência, a jus-
Superintendente do INCRA, Olavo, foi enca- tiça federal finalmente decide pela criação do as-
minhado pela Procuradoria da União um re- sentamento:
querimento pedindo a suspensão do cumpri- “No dia 23 de agosto de 2007, foi julgado na 1ª
mento do mandado e o desaforamento do feito vara da Justiça Federal do Estado de Rondônia,
para a seção judiciária federal de Porto Velho. pelo Juiz substituto JOSE MAURO BARBOSA,
Algumas reintegrações foram suspensas, cau- decidiu a favor do INCRA contra a AGROPE-
sando indignação aos fazendeiros sócios da CUÁRIA INDUSTRIAL E COLONIZADORA
ASPRUR, que em seguida reuniram-se para RIO CANDEIAS, “para declarar a inexistência
de qualquer direito da Requerida sobre a área
fazer uma coleta de fundos para a organização
de 33.000 hectares objeto da Resolução nº 320,
de uma ação.“ (Histórico, 2008).
de 23/08/1983, do Senado Federal” (...) “Con-
siderando o pedido de antecipação da tutela
O Acampamento é atacado e queimado
feito pelo Autor, à conta dos informes de que
a Ré tem alienado diversos lotes a terceiros na
“No dia 29 de junho de 2007, de acor- área sob comento, bem ainda da ocorrência
do com testemunhas, aproximadamente às 3h da de violentos conflitos pela posse das terras da
madrugada, dois veículos, ambos de Porto Velho, região, o que reclama pronta atuação do Judi-
com vários homens encapuzados e fortemente ar- ciário, sem mais delongas, a fim de se restabe-
mados, entraram na linha e foram de barraco em lecer a paz social DEFIRO a antecipação da tu-
barraco, expulsando os acampados”. [...] “Após o tela requerida pelo INCRA, determinando sua
sinistro ocorrido com os camponeses, a imprensa imediata imissão na pose do imóvel discutido
fez uma vasta cobertura, despertando depoimen- nos autos”. (Histórico, 2008)

62 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Em 10 de setembro de 2007, após o IN- Gildézio Alves Borges, o “Neguinho”, atingido por
CRA ter recebido a certidão de imissão de pos- dois tiros.
se, o superintendente Carlino Lima solicita um Começa também outro tipo de problema:
prazo para a desocupação da área ocupada pelos contaminação por agrotóxicos, destruição am-
fazendeiros. Mas esta desocupação não chegou a biental e extração clandestina de madeira. Dra-
acontecer na maioria dos casos. Pelo contrário, a máticas são as experiências daqueles que viram
Justiça estadual concedeu novas reintegrações de queimar, em poucas horas, em incêndios crimi-
posse (09 de outubro de 2007) contra famílias de nosos, o fruto de seu trabalho, suas economias
assentados. A posse do INCRA somente foi regis- e seus sonhos. Em abril de 2012, doze famílias
trada em cartório em 08/02/2008, após os campo- dentro do assentamento denunciaram que um fa-
neses terem denunciado o fato ao MPF em 21 de zendeiro teria comprado a área e passado a matar
dezembro de 2007. grandes quantidades de babaçu, com agrotóxico.
Ao mesmo tempo, foi criada a Associação (CPT Rondônia, 2012)V.
de Produtores Agroextrativistas Flor da Amazô- Outro camponês relata que teve parte de
nia (ASPRAFAM), em 15 de janeiro de 2008. Para sua roça atingida pelo fogo em dezembro de 2012
pressionar pela implantação do assentamento, ins- e o restante do roçado, destruído na noite do dia
talaram um acampamento permanente no pátio do 08 de abril de 2013, pelo gado da fazenda vizinha.
INCRA de Porto Velho.III Em maio de 2013, Ronilson Nascimento
Finalmente o assentamento foi criado, po- Baptista, de 27 anos, filho de assentada no Flor do
rém o INCRA optou por dividir a área em quatro Amazonas foi assassinado com um tiro nas costas
assentamentos diferentes, dividindo também os as- na noite do dia 29 de maio, na cidade do Candeias
sentados em diferentes associações IV. Foram os Pro- do Jamari. A morte foi relacionada com tráfico de
jetos de Assentamento Flor do Amazonas I, II, III e madeira e com as constantes ameaças no assen-
IV. Em dezembro de 2008 as famílias começaram a tamento às famílias ligadas à Associação Escola
receber os primeiros documentos de assentados. Família Agrícola (AEFACAJ), que tiveram roças
Apesar disso, os problemas não acabaram: destruídas pelo gado dos fazendeiros. Em 15/7/13,
denúncias de irregularidades na topografia dos a Polícia Ambiental prendeu cinco suspeitos por
lotes provocou a parada dos trabalhos, de tal for- transporte ilegal de madeira na Linha Triunfo, em
ma que a divisão e georeferenciamento de cada Candeias do Jamari. A Secretaria Estadual de Meio
lote dos assentados não foi concluída até agora. Ambiente (SEDAM) confirmou desmatamento e
Estradas muito mal conservadas dificultam o extração clandestina de madeira. (CPT Rondônia,
transporte dos alunos para as escolas e o escoa- 2013)VI.
mento dos produtos.
Mesmo após o assentamento das famílias, Continuam as reintegrações de posse e os despe-
ainda numerosas fazendas continuam no local e jos de assentados
continuam as ações de reintegração de posse con-
tra os assentados, as ameaças e a violência. Muitos Mesmo sendo a área desapropriada, conti-
assentados atribuem ao conflito agrário na área a nuaram a emissão de mandados de reintegração de
morte violenta, em 29 de dezembro de 2009, de posse contra os assentados pelos fazendeiros, ocu-

III
http://www.resistenciacamponesa.com/jornal-resistencia-camponesa/edicao-n-16/53-luta-pela-terra
IV
http://www.rondoniadinamica.com/arquivo/familias-do-flor-do-amazonas-conquistam-documento-da-terra,1381.shtml
V
http://cptrondonia.blogspot.com.br/2012/04/agua-envenenada-por-agrotoxico-desagua.html
VI
http://cptrondonia.blogspot.com.br/2014/12/assentados-devem-participar-do-programa.html

63 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Foto: CPT Rondônia
Manifestação dos assentados do Flor do
Amazonas no STJ de Porto Velho, Rondônia

pantes ilegais da área. Por isso os assentados reali- tanto, esses casos se repetem, apesar das reiteradas
zaram, em 08/12/2010, uma manifestação, apoia- denúncias públicas.
da pela CPT, no Tribunal de Justiça de Rondônia, Em maio de 2015 a Comissão de Combate à
contra tais reintegrações de posse. Ainda hoje vá- Violência no Campo debateu a suspensão de várias
rios processos continuam ameaçando famílias do reintegrações de posse contra assentados do Flor
Flor do Amazonas. Oito deles são acompanhados do AmazonasVII.
pela assessora jurídica da CPT. Após denúncias na ouvidoria de envolvi-
No Judiciário em Rondônia, como em pra- mento de servidores do INCRA em irregularidades,
ticamente todo o Brasil, ações de reintegração de um casal de lideranças sofreu ameaças e teve que se
posse impetradas por fazendeiros são rapidamente refugiar fora do assentamento. Sua casa foi queima-
julgadas, e, estranhamente, os juízes locais não têm da duas vezes e o lote invadido por terceiros.
se importado em conceder despejo contra pessoas
legalmente assentadas pelo INCRA, que possuem Famílias da cidade que voltaram para a roça
um Contrato de Concessão de Uso. Também não é
raro ações contra áreas de assentamento serem jul- No Flor do Amazonas muitas famílias são pro-
gadas por juízes estaduais, que, por continuarem venientes do êxodo rural e sem perspectivas na
sendo área pública federal, constitucionalmente cidade, tentaram voltar para roça. É o caso, por
deveriam ser julgadas pela Justiça Federal. No en- exemplo, de Amado Pedro da Silva, que chegou ao

VII
http://www.incra.gov.br/noticias/comissao-de-combate-violencia-no-campo-realiza-rodada-de-negociacoes-em-porto-velhoro

64 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Flor do Amazonas em março de 2008. Nasceu em à luta dos trabalhadores e trabalhadoras são o Co-
Mantena, no Espírito Santo, e com 14 anos foi mo- mitê Popular de Lutas em Defesa do Socialismo, o
rar em Jaciara, Mato Grosso, onde trabalhava de Movimento Camponês Socialista, Movimento Es-
meeiro. De Jaciara foi para a Linha 78 no projeto tudantil Popular Revolucionário, Diretório Central
Riachuelo, próximo do local onde foi morto padre dos Estudantes, SINDSPREV e a Comissão Pasto-
Ezequiel Ramin, entre Ji-Paraná e Cacoal. Foi de- ral da Terra (CPT).
pois para Ji-Paraná nos anos 70 e continuou tra- Consta também a existência de quatro as-
balhando em terras dos outros por uns dez anos. sociações reconhecidas pelo INCRA, uma em cada
No Flor do Amazonas ficou acampado na Linha 13 assentamento. E o sindicato de trabalhadores ru-
por cerca de quatro anos, depois da época que o rais de Candeias do Jamari.
acampamento foi queimado.
Também o vizinho José Francisco Pereira, Instituições envolvidas
natural de Viana, no Maranhão, começou a prestar
serviços no sindicato de trabalhadores rurais em A principal instituição envolvida no confli-
1988 e, em 1992, assumiu a secretaria do Sindicato to é o INCRA, responsável legal pelos Assentamen-
de Bom Jardim do Maranhão, onde ficou até 2010, tos. A Procuradoria do INCRA enfrentou a batalha
quando foi para Rondônia, trabalhando em um pela retomada das terras, que teve que correr em
pouco de tudo. Em 2013, depois de muito procurar diversas instâncias judiciais. Após denúncias de
um pedaço de terra, entrou num lote no Flor do servidores da autarquia na Ouvidoria Agrária Na-
Amazonas. cional, algumas lideranças acreditam existir amea-
ças e retaliações contra os mesmos.
Organizações representativas e entidades de • Tem acompanhado o conflito há anos a
apoio Ouvidoria Agrária Nacional. Consta que
os conflitos do Flor do Amazonas tem
As organizações e entidades que participaram sido tratados em inúmeras audiências pú-
da luta do Flor do Amazonas são: blicas presididas pelo Ouvidor Agrário
• O Movimento Camponês de Corumbiara Nacional, desembargador Gercino José da
(MCC) foi um movimento de sem terra Silva.
de Rondônia dissidente do MST. Foi lide- • Ministério Público Federal: A intervenção
rado por um sobrevivente do Massacre de do MPF tem ajudado em diversas situa-
Corumbiara, Adelino Ramos, conhecido ções, denunciando a passividade ou omis-
como Buritis ou Dinho. O movimento pra- são do INCRA. Ou então determinando a
ticamente desapareceu depois de sua mor- abertura de porteira que impedia o trânsi-
te, em maio de 2011. to dos acampados. Por outro lado, alguns
• A Associação de Produtores Agroextrati- acampados reclamaram do tratamento
vistas Flor da Amazônia (ASPRAFAM), recebido de representantes do MPF, logo
criada em 2007. após o acampamento terem sido atacados,
• Associação Escola Família Agrícola / AE- “Quem quiser mordomias, vá para a cida-
FACAJ - “Gildésio Alves Brandão” (AEFA- de!”, teriam dito.
CAJ), que tinha como objetivo construir • SEDAM e Polícia Florestal: Na época do
uma Escola Família Agrícola. Um local foi acampamento são citadas diversas inter-
reservado para a mesma dentro do assen- venções repressivas e de criminalização da
tamento. Polícia Florestal. Em fevereiro de 2008, um
Outras organizações que têm dado suporte dos acampados foi preso por porte armas

65 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


e por ter matado uma cotia, tendo ficado a autarquia faça a defesa das mesmas. Treze famí-
no presídio Urso Branco, apesar de tratar- lias de acampados continuam sem terem sido as-
-se de réu primárioVIII. Posteriormente, as sentados dentro do lote 105 no Flor do Amazonas
autoridades ambientais várias vezes têm IV, com conflitos com os fazendeiros e represá-
combatido o desmatamento, queimadas e lias com queimadas intencionais. Posteriormen-
retirada clandestina de madeira. te, tem sido anunciado um acordo mediado pelo
• A Justiça Estadual e a Justiça Federal: Sen- INCRA.
do Flor do Amazonas uma área pública Desvio de recursos para construir a Es-
retomada, os processos deveriam correr cola Família Agrícola - O Assentamento Flor do
na Justiça Federal e o INCRA ser parte do Amazonas, de Candeias do Jamari, desde a criação
mesmo, por tratar-se de área sob sua posse. impulsionou o projeto de construção da Escola
Não é o que está acontecendo. Mesmo após Família Agrícola (EFA) no local. Uma associação
decisão da Justiça Federal sobre o domínio formada pelos moradores levava adiante o proje-
da área, reintegrações de posse a favor de to para o qual tinha sido reservada uma área do
terceiros foram decididas na Justiça Esta- assentamento e já havia sido construído um bar-
dual, onde continuam alguns processos. racão. O recurso, inicialmente prometido e anun-
ciado em 2012 como compensação da Usina Santo
Assentados sendo despejados e perseguidos Antônio, foi reduzido em 70% por parte do gover-
no do estado. Posteriormente, a usina desviou a
Moradores do local entrevistados falam so- proposta para construção de uma Escola Familiar
bre a situação, citam que continua o conflito entre RuralIX. Ainda, em julho de 2015, sem consultar os
fazendeiros - os que compraram irregularmente moradores, o INCRA disponibilizou o local para
a terra da AGRINCO - e assentados. Cabe ao IN- instalação de um acampamento de famílias sem
CRA retirar os fazendeiros de dentro da área do terra despejadas de Machadinho do Oeste. Isso
assentamento. Muitos acham que isso nunca vai motivou desencontros e tensões.
acontecer e acreditam que houve envolvimento de No Flor de Amazonas, a CPT e o Projeto
funcionários do órgão na venda de terras públicas. Padre Ezequiel organizaram cursos de agroecolo-
Outros acreditam que o INCRA não tem vontade gia e alguns assentados tem participado. Ainda há
ou capacidade para administrar o assentamento. falta de luz e de escolas em alguns setores. O Pro-
Persistem os processos judiciais de rein- grama Assentamentos Verdes começou a contem-
tegração de posse - Os processos correm contra plar o Flor do Amazonas somente após as reivindi-
famílias assentadas pelo próprio INCRA, sem que cações de alguns assentados.

VIII
http://www.rondoniaovivo.com/noticias/prisao-de-agricultor-em-area-de-litigio-e-contestada-por-acampados-e-comite-popular/23989
IX
Http://www.newsrondonia.com.br/noticias/candeias+do+jamari+ganha+casa+familiar+rural+em+vez+das+efas/55684

66 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Roraima

Madeireira no caminho
de comunidade camponesa
“Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta, mata
verde, céu azul, a mais imensa floresta... No lugar que havia
mata, hoje há perseguição. Grileiro mata posseiro só pra lhe
roubar seu chão”. Vital Farias
Foto: Imazon
Situado no extremo Norte do país, o estado
de Roraima faz fronteira com a Venezuela, Guia-
na, Pará e Amazonas. Cortado ao sul pela linha
do Equador, a maior parte do território fica no
hemisfério Norte. Mais de 60% da área do esta-
do é coberta pela floresta Amazônica. A extensão
territorial é de 224.303,187 km², divididos em 15
municípios. 46% dos habitantes são indígenas. É
o estado brasileiro menos populoso, com apenas
450.479 habitantes. Sua densidade demográfica é
aproximadamente de 2 hab/km². A capital é Boa
Vista, onde residem 65,3% da população do esta-
do. Outras cidades populosas são os municípios
de Rorainópolis, Alto Alegre, Caracaraí, Mucajaí e
Bonfim.
O estado, durante muito tempo, fazia parte por 87,4% de seu Produto Interno Bruto (PIB), a
da província do Amazonas, com população peque- agropecuária é responsável por 4,3% e a indústria
na e economia estagnada, baseada em fazendas de por 8,3%. Os principais produtos agrícolas são
gado. No início da República, em 1904, a porção mandioca, arroz, milho, laranja e banana. A ma-
mais oriental de Roraima foi alvo de uma disputa deira responde por 74% das exportações do estado.
fronteiriça com a Guiana. Essa parte do território A agricultura familiar não foi a prioridade
foi dividida entre os dois países, ficando a maior dos governos anteriores e muito menos do governo
parte para a Guiana. Somente em 1943, a área foi atual. Implantar em Roraima um eixo de produção
desmembrada do estado do Amazonas e trans- agrícola visando incluir o estado no cenário na-
formada em território federal do Rio Branco. Em cional do agronegócio faz parte da plataforma de
1962, o território passou a se chamar Roraima. trabalho da governadora de Roraima Maria Suely
A economia do estado, em 2014, estimada Campos (PP). Articulação neste sentido está sen-
em R$ 6,9 bilhões, representa apenas 0,17% do to- do feita com produtores de soja do Mato Grosso e
tal nacional e é a menor entre os estados brasilei- Paraná.
ros. Ela se apoia no setor de serviços, responsável Nas áreas degradadas pela agricultura co-

67 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia
Imagem mostra o incessante desmatamento na Amazônia Legal,
assim como as queimadas.

mercial, dia a dia estão aumentando as ocorrências tros quadrados, equivalente a 22 campos de fute-
de mortandade de aves e de pequenos animais de- bol, foram desflorestados no estado.
vido à aplicação indevida de agrotóxicos. A des- Na Amazônia Legal, conforme Boletim do
truição da fauna pela caça e pesca é uma constante, Desmatamento do Imazon de março de 2015, o
pois ainda se pratica bastante a caça, por tradição desmatamento acumulado no período de agosto
ou lazer. Pouco a pouco a fauna da região vai se re- de 2014 a março de 2015 atingiu 1.761 quilômetros
duzindo. Da mesma forma a pesca predatória, com quadrados. Houve aumento de 214% do desmata-
uso de apetrechos inadequados, ou em época de mento em relação ao período anterior (agosto de
defeso está reduzindo drasticamente o conjunto de 2013 a março de 2014) quando atingiu 560 quilô-
espécies de peixes regionais, já bastante rarefeita. metros quadrados. Considerando o período entre
agosto de 2014 a março de 2015, o Mato Grosso
Desmatamento liderou o ranking com 36% do total desmatado no
período. Em seguida aparece Pará (25%) e Rondô-
Segundo dados do Instituto do Homem e nia (20%). Em termos relativos, houve aumento ex-
Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o desma- pressivo de 640% no Mato Grosso e 227% no Pará.
tamento ocorre com maior frequência nas áreas de Já em termos absolutos, de acordo com o Imazon,
serras e junto às matas ciliares dos rios e lagos da o Mato Grosso liderou o ranking do desmatamen-
área de savana. No período de agosto de 2012 a ju- to acumulado com 639 quilômetros quadrados,
lho de 2013 o desmatamento em Roraima cresceu seguido pelo Pará (434 quilômetros quadrados) e
49%, segundo dados do Projeto de Monitoramen- Rondônia, com 347 quilômetros quadrados.
to da Floresta Amazônica por Satélites (PRODES) No fim do ano de 2014, a Polícia Federal
e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais cumpriu dezenas de mandados de busca e apreen-
(INPE). Os números mostram que 185 quilôme- são e de condução coercitiva em Boa Vista, Rorai-

68 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


nópolis, Caracaraí e São João da Baliza. Também lonização e Reforma Agrária (INCRA) para que
no Pará, Amazonas e Rio de Janeiro. As investi- fosse implementada a Ouvidoria Agrária Regional
gações da PF apontavam fraudes na concessão de daquela autarquia, bem como que fosse nomeado
autorização de desmatamento, de manejo florestal, servidor para desempenhar a atividade de ouvidor
ou de guia de transporte florestal, disponibilidade agrário regional.
de créditos florestais fictícios, e que permitem o De acordo com o MPF/RR, apesar da im-
desmatamento e retirada ilegal de madeira, de áre- portância da prestação do serviço, a Superinten-
as não documentadas, de terras públicas ou de áre- dência Regional do INCRA em Roraima não conta
as protegidas, além de transporte, processamento com uma Ouvidoria Agrária Regional desde maio
e comercialização destes produtos florestais pelas de 2010. Segundo informações do próprio INCRA,
serrarias e madeireiras. a Ouvidoria deixou de existir em razão do desinte-
resse de servidores em assumir a função em virtu-
Órgãos agrários de da inexistência de função gratificada.
Em maio de 2015 foi realizada uma reunião
O Ministério Público Federal em Roraima para discutir a implantação da Ouvidoria Agrária
(MPF/RR), por meio da Procuradoria Regional Estadual. O secretário adjunto da Segurança Pú-
dos Direitos do Cidadão, expediu, em 25 de ou- blica, Eduardo Castilho, esteve reunido com a Co-
tubro de 2012, enviou recomendação à Superin- missão Nacional de Combate à Violência no Cam-
tendência Regional do Instituto Nacional de Co- po para discutir a implantação de uma Ouvidoria,
Foto: Joka Madruga

Segundo as famílias de Cujubim Beira Rio, a derrubada das Castanheiras pelos madereiros é uma
forma de expulsa-las, pois a castanha é o meio de vida delas

69 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


que tem como objetivo contribuir no processo de de 20 anos na ilha quando chegaram o INCRA e
redução dos conflitos agrários no país. o IBDF [Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
“Os conflitos agrários têm ocorrido em Florestal] e mandaram tirar a gente de lá. Na épo-
todo país, porém, há uma incidência maior na re- ca [ano 2000], o prefeito Antônio Areis mandou
gião Norte. A proposta é implantar até o próximo o INCRA escolher uma terra para nós. Por isso,
ano, uma delegacia especializada de combate à vio- viemos para cá. O INCRA autorizou a gente vim
lência no campo, mas enquanto isso, a Polícia Am- para cá, a gente estava na ilha e estava tudo bem.
biental estará à frente deste trabalho em Roraima”, Zezinho Bacabeira, do INCRA, veio aqui e disse
destacou Castilho. Para ele, com a implantação da que em um ano a gente teria o documento da área,
Ouvidoria em Roraima o cidadão do campo terá mas até hoje nada”, relata seu Raimundo Paciência,
mais um instrumento para ter seus direitos respei- morador da área há mais de 12 anos.
tados. Durante a reunião ficou acordado que um Ainda de acordo com seu Paciência, na re-
delegado da Polícia Civil e um oficial da Polícia gião há “inúmeros crimes ambientais. Se o IBAMA
Militar seriam disponibilizados para desenvolver o fizesse seu trabalho, tenho certeza que esse povo
trabalho junto à Ouvidoria Agrária. todo ia preso. Não podemos plantar, vimemos
numa insegurança, somos constantemente expul-
Cujubim Beira Rio sos por eles”, denuncia. Por fim, o senhor relata que
“antes de os madeireiros e fazendeiros chegarem,
Em uma região de floresta à beira do Rio isso aqui era um paraíso. Tudo era bom, a gente
Branco, no município de Caracaraí, mais precisa- tinha tudo e tudo era fácil. A terra sempre foi boa
mente entre os igarapés Samauma e Cota, está si- para plantar, tudo que se plantava dava. Aqui ti-
tuado Cujubim Beira Rio. Ali vive há muito tempo nha muitas fruteiras e muita caça e com o plan-
um grupo de pessoas, trabalhadores e trabalha- tio e cultivo nada nos faltava. Sempre vivemos em
doras rurais de Cujubim, como são chamados por harmonia, tínhamos uma vida saudável e sempre
todos. Do tempo passado vêm às lembranças das com acordo entre os vizinhos. Tinha vizinhos, mas
pessoas mais velhas das trocas de nomes daqueles a maioria foi embora”.
que se intitulavam donos das terras, sempre as- A comunidade relata também que, atu-
sociados a pessoas ou empresas de grande poder almente, a briga não é pela terra, e sim para não
econômico. Só isso dá uma ideia da especulação tirarem a madeira. Porque se tirarem toda a ma-
existente, do mercado de terras e da sua concen- deira, acabam com tudo e não tem mais sentido
tração. ter a terra. “Eles tinham raiva de mim porque eu
Cujubim Beira Rio, por falta de políticas segurava as pontas, ia para o embate, fui ameaça-
públicas e regularização fundiária, vive constan- do inúmeras vezes, perdi até as contas. Diziam que
te situação de conflito. É uma área muito rica em os problemas aqui são causados por você. Eles não
madeira e castanha, considerada uma terra de querem terra para plantar não, só querem mesmo
“muita fartura” e “boa de morar”. Toda variedade a madeira”, destaca Raimundo Silva, também mo-
de recursos naturais são cuidados pelos morado- rador da área.
res que mantém seus costumes e tem um modo
de vida simples e de muito respeito à terra e na- Situação de conflito, ameaças e violência
tureza. Em visita às comunidades e em reunião
com as famílias que vivem em Cujubim, foram A ação dos fazendeiros – em sua maioria
ouvidos vários relatos das famílias e muitos gritos madeireiros – é a grande ameaça às famílias de
pedindo ajuda. trabalhadores rurais, ao meio ambiente e à própria
“Éramos 36 famílias, estávamos há mais existência do Cujubim Beira Rio. Na contramão do

70 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


processo de convivência do grupo com o local, a diferença não. A terra é boa, mas não tem infraes-
ação de fazendeiros e madeireiros tem sido o gran- trutura nenhuma. Eu tinha muitos sonhos quando
de conflito no Cujubim. A expropriação dos tra- vim para cá. Queria que os meus filhos tivessem
balhadores e trabalhadoras realizada pela madei- uma vida melhor que a minha, que estudassem e
reira Vale Verde tem sido o principal problema e fossem alguém na vida”, conta Maria do Socorro
uma grande ameaça à comunidade. A madeireira, Santos, morada da área.
gozando de grande poder econômico, usa sua in- Seu Paciência relata um pouco da situação
fluência, se articula e expropria os trabalhadores de conflito vivenciada diariamente pelos trabalha-
rurais dos seus territórios. dores. “A perseguição por parte dos fazendeiros e
O grupo que ainda resiste em Cujubim vive madeireiros que insistem em dizer que são donos
amedrontado, ameaçado, e apreensivo, podendo a da terra e acabam com tudo que temos de mais
qualquer hora ser surpreendido por capangas dos precioso aqui. Mas todos nós temos o documento
fazendeiros e madeireiros. Segundo depoimentos (termo de ocupação) que o INCRA emitiu”. Que
colhidos na comunidade, as famílias sempre vive- ainda conta que ele e sua família já foram ameaça-
ram bem, com alegria, sossego. A madeireira tem dos de morte inúmeras vezes. “Vivemos em cons-
tentado expulsar famílias das áreas que ocupam pelo tante ameaça e insegurança. Às vezes temos medo
menos desde 1992. Essa madeireira tem entrado de passar por alguns locais e dormimos no meio
com ações de reintegração de posse contra o grupo do mato. Sempre diziam que tinha gente que ia
e tem mantido rigoroso controle sobre as mesmas. morrer, e que eles só ficariam em paz depois que
Na entrada de Cujubim há uma pequena alguns morressem. Já fizemos de tudo, realizamos
casa onde funciona a sede da madeireira. Quan- passeata, acampamentos, denunciamos, falamos
do os trabalhadores precisam ir à cidade têm que até com o Bispo. Mas nada foi feito”, desabafa Rai-
passar “pelas terras do fazendeiro”, e precisam mundo Paciência.
pedir permissão e dizer a hora de voltar. Isso foi
constatado também quando a equipe da Comissão O ouro de Cujubim: A madeira
Pastoral da Terra (CPT) esteve em uma reunião na
localidade. Ao chegar, a equipe teve que assinar um “Os trabalhadores falam que quando chega-
livro colocando nome, o dia e a hora que entrou na ram a Cujubim só tinha floresta e mata bruta. Tinha
área. somente uma picada [pequeno caminho na mata]
Por isso é muito comum encontrar famílias por onde nós passávamos com a castanha e o trans-
desagregadas. Na área rural ficam os homens e as porte era o burro. Era muito bom, tinha muitas cas-
mulheres vão para sede do município de Caraca- tanheiras e não tinha casas e havia muita caça. As
raí por uma série de fatores. O principal é o medo ameaças e perseguições vêm de muitos cantos, não
da violência e das constantes ameaças, e também é só o ‘Suíço’, é também o ‘Sidnei’ misturado com
porque o estado e o município não se fazem pre- o ‘Boboco’. Faz pena o que eles fazem aqui, entram
sentes, não oferecem nada. Não tem escola, posto com máquinas caminhões e máquinas pesadas para
de saúde, estrada, energia elétrica, nada mesmo. transportar a madeira. Então eles levam tudo, aca-
As famílias camponesas vivem apenas com a espe- bam do tudo”, prossegue Raimundo Paciência.
rança de um dia conseguirem a tão sonhada terra Segundo conta o trabalhador Ricardo Brito,
prometida. “eles [madeireiros] estão passando corrente para
“Tenho pena de ver meus filhos sem escola. derrubar as árvores, depois levam a madeira e a
Vim do Maranhão pensando que aqui tinha algu- área fica pronta para plantar capim. Eles fazem isso
ma coisa melhor para a gente e para os meninos. à noite e durante o dia ficam parados, e a retirada
A vida lá era difícil, mas aqui também. Tem muita da madeira é no final de semana”.

71 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


A castanheira, fonte de renda das famílias lucionar o problema. O conflito entre a madeireira
de pequenos agricultores, por exemplo, é prote- Vale Verde e outras madeireiras pela extração de
gida por lei e a derrubada das árvores representa madeira ilegal só existe porque o estado não se faz
uma forma de expulsar os agricultores da região, presente. “Se tivesse regularizado a área não acon-
pois a castanha é o meio de vida deles. Quando os tecia isso, estávamos em uma situação melhor. O
agricultores da região foram apresentar denúncia tal de Suíço, um estrangeiro, é o maior detentor de
sobre o caso, a Secretaria de Estado do Meio Am- terra. Mais de 40% das áreas do estado de Roraima
biente e dos Recursos Hídricos (Semarh) alegou são dele”, diz Ricardo Brito.
que não tinha viatura para ir ao local.
“Quando recebemos o documento da ter- Organização de apoio
ra dado pelo INCRA e Receita Federal, achávamos
que a terra era nossa, daí chega o ‘Sidnei’ mostran- “A CPT sempre foi a entidade que esteve
do para a gente um documento dizendo que a terra presente nos momentos mais tensos da comuni-
é dele, mandando os trabalhadores saírem da terra dade. O padre Thiago me ajudou muito. Quando
que a área é dele e se não saíssem ele iria chamar tinha audiência sempre ia com a gente. Uma vez a
o ‘Meio Ambiente’ e não poderíamos mais cortar Vale Verde me denunciou e o juiz queria me levar
nenhuma árvore lá”, conta o trabalhador Raimun- algemado para o local, ele não deixou. Sempre me-
do, que ainda lembra que no início das famílias na diava a situação. A Vale Verde alegava que a área
área “produzia-se muito. Tinha muita gente e a co- era para fazer o manejo e que o Paciência não dei-
munidade estava empolgada e muito animada em xava os trabalhadores tirar a madeira. Eles denun-
trabalhar a terra e cultivar para a sua sobrevivência ciavam qualquer coisa, denunciaram inúmeras ve-
e também para a produção de venda”. zes, e a CPT sempre ajudou a comunidade”, destaca
Segundo as famílias, o INCRA havia dividi- o pequeno agricultor Raimundo.
do a terra e dado um lote para cada família. Mas,
a falta de infraestrutura - sem estradas, com acesso _______________________________
precário ao assentamento, sem escolas, posto médi- Fontes de Pesquisa
co, sem energia elétrica - torna a vida muito sofrida. http://www.mundoeducacao.com/geografia/roraima.htm.
E tem perda de alimentos por falta de escoamento Acessado em 07.06.2015
da produção. “Mas o pior é mesmo o cerco dos fa- http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015. Acessado em
zendeiros. De repente apareceu o Suíço. E depois do 07.06.2015
http://www.vermelho.org.br/tvvermelho/noticia.php?id_se-
aparecimento dele a vida em Cujubim virou um in-
cao=8&id_noticia=165761-
ferno, começou o desmatamento e o desequilíbrio
acessado em 08.06.2015
ambiental, ameaças de morte e agressões verbais, http://www.vermelho.org.br/noticia/165761-8 - acessado em
processos judiciais, funcionários (capangas) das 11.11.2015
madeireiras armados intimidando os moradores”, http://www.prrr.mpf.mp.br/noticias/mpf-rr-expede-reco-
denunciam os trabalhadores da comunidade. mendacao-ao-incra-para-implementacao-de-ouvidoria-a-
A situação é ainda mais grave porque o IN- graria/
CRA e a Justiça do estado não têm interesse em so- htpp//09-luta-trabalhadores-caracarai-direitos%20(1).pdf

72 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Tocantins

Comunidade Vitória:
Terra Legal alimenta conflito

Foto: Repórter Brasil


A comunidade Vitória foi formada a partir da ocupação de uma área
da União que havia sido grilada

Em 08 de outubro de 2013, reportagem vei- tinuado foi objeto de operação da Polícia Federal
culada pela imprensa tocantinense afirmava que deflagrada em 17 de fevereiro de 2005, denomina-
1,5 milhões de hectares de terras da União foram da “Terra Nostra”, resultando na prisão de 16 pes-
titulados irregularmente no estado do Tocantins1. soas que integravam uma quadrilha de grilagem
Essa titulação está na base dos constantes conflitos de terras, ameaças a posseiros e outros crimes. Os
por terra no estado. chefes desse grupo, segundo a PF, eram o seguran-
A compra e venda de terras griladas tor- ça Luiz Carlos Fagundes e o advogado Ronaldo
nou-se prática corriqueira no estado, envolvendo Sousa Assis, dono de um hotel e principal agiota
agentes públicos, funcionários do INCRA e donos de Colinas do Tocantins.
de cartórios. Essa situação de prática de crime con- O crime era finalizado no cartório. Na refe-

http://conexaoto.com.br/2013/10/08/1-5-milhao-de-hectares-foram-titulados-irregularmente-no-to-regularizacao-vai-comecar-por-areas-de-conflito
1

73 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


rida operação foi presa também Lucinete de Souza cantins ser considerado pelo agronegócio como o
da Silva Araújo, tabeliã do Cartório de Registro de “novo polo agrícola do Brasil”.
Imóveis de Tupiratins, onde eram realizadas trans- Para o escoamento dessa produção, ainda
ferências fraudulentas dos imóveis para fazendeiros. na década de 1980, foi projetada a Ferrovia Norte-
-Sul com o objetivo, no discurso oficial, de promo-
Tocantins e as frentes de expansão do capital ver a integração e o desenvolvimento do Brasil. A
previsão é que a ferrovia tenha 4 mil quilômetros
O interesse do capital pelas terras no Tocan- e interligue nove estados da federação – até o mo-
tins se dá porque o estado é visto como uma das mento foram concluídos apenas 1.574 quilômetros,
grandes oportunidades de crescimento econômico trecho que liga Anápolis (GO) a Açailândia (MA),
no país. Tocantins foi criado em 1988, após ser des- onde se conecta com a Estrada de Ferro Carajás
membrado do estado de Goiás. Compreende uma para ter acesso ao Porto do Itaqui, no Maranhão.
área de 277.720,569 km², com 139 municípios e uma Assim, a ferrovia visa reduzir custos do transporte
população, segundo o Censo de 2010, de 1.383.445 para os mercados internacionais.
habitantes. O estado faz parte da Amazônia Legal, Ao longo da Ferrovia Norte-Sul estão sen-
apesar de apenas 9% de seu território fazer parte do do construídos seis pátios multimodais: Gurupi,
bioma amazônico. O território tocantinense é co- Porto Nacional, Guaraí, Colinas, Araguaína e Por-
berto, quase em sua totalidade, pelo Cerrado. to Franco. O pátio de Colinas está localizado no
Segundo o governo do estado, Tocantins município de Palmeirante, numa área de 40 km às
possui uma área total com potencial agropecuário margens da rodovia TO-135. O objetivo é operar
de 13.825.070 hectares (50,25% do território do no embarque de commodities agrícolas, fertili-
estado). Desse total, restam para serem ocupados zantes, combustíveis, cargas em geral. Esse pátio é
aproximadamente 5.265.070 hectares, ou seja, 38% apontado como fator de atração de novos empre-
da área. A principal frente de expansão do capital sários em busca de terras para o plantio de grãos
no estado é a pecuária de gado bovino de corte, que por conta das condições agroambientais, sobretu-
ocupa aproximadamente 7,5 milhões de hectares, do pela proximidade com o terminal.
correspondendo a 54,24% da área com potencial Segundo Aline Gonçalves Sêne,“a implan-
agropecuário. Em 2014, conforme dados do Insti- tação do sistema de transporte provoca grandes
tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o mudanças culturais, socioeconômicas e a própria
rebanho bovino contava com mais de oito milhões (re) configuração do espaço. No Brasil os meios de
de cabeças, correspondendo a 18% do total da re- transportes foram instalados para iniciar a integra-
gião Norte, atrás do Pará e de Rondônia. ção do território nacional e mais tarde para aten-
“A exportação de carne de gado no Tocantins der as demandas da exportação do café, uma infra-
alcançou a marca dos US$ 215,6 milhões em 2014. estrutura para atender as elites do país na busca de
O produto vem ganhando espaço no mercado inter- dominar o espaço e realizar a integração econômi-
nacional e já representa 20% de tudo que é vendido ca. Dentro dessa lógica temos a construção da Fer-
no estado para fora do país”, conforme Secretaria de rovia Norte-Sul que tem como objetivo consolidar
Agricultura e Pecuária de Tocantins (Seagro). o crescimento através da ocupação social e econô-
O clima tropical semiúmido, precipita- mica do cerrado e incentivar o agronegócio”2. As
ção pluvial, luminosidade, ventos e água doce são comunidades impactadas pelas obras não contam
apontados como responsáveis pelo fato de o To- nesse processo.

http://laurocampos.org.br/portal/images/stories/documentos/Grandes_projetos_do_capitalismo.pdf
2

74 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


É neste contexto que se enquadra o con- comprada de José Santana Lima e sua esposa Nilci-
flito da comunidade Vitória, no município de nea da Costa Salgado.
Palmeirante, localizada na altura do km 41 da Denominada fazenda Brejão, área de
rodovia TO-335, que liga Colinas do Tocantins a 822,9178 hectares, é um dos muitos casos de grila-
Palmeirante. A grande valorização das terras, ide- gem “legalizada” nos cartórios do estado. Essa pro-
ais para grandes plantações, e a proximidade do priedade teve o seu tamanho reduzido várias vezes
terminal seco da Ferrovia Norte-Sul, atiça a fome até chegar ao limite de 326,3595 hectares. Todavia,
insaciável do agronegócio. Anúncios na internet com o advento da lei 11.952/2009 – lei que criou o
destacam a localização de fazendas próximas ao Programa Terra Legal–, Lázaro Eduardo de Barros
pátio multimodal da ferrovia. A região ao redor e a esposa estavam impossibilitados legalmente de
da comunidade Vitória foi toda desmatada para demandarem a regularização fundiária do imóvel,
ceder espaço às monoculturas. então fizeram uma transferência da cessão de di-
A comunidade Vitória foi formada a partir reito a favor de Paulo César de Barros Júnior, so-

Foto: Guilherme Rosa-Blog do Planalto

Tocantins, formado pelos biomas Amazônia e Cerrado, é considerado pelo


agronegócio como o “novo polo agrícola do Brasil”

da ocupação de uma área da União, mas que havia brinho de Lázaro que requereu a regularização da
sido grilada. À época da ocupação, o imóvel per- área pelo Programa Terra Legal, a partir de então,
tencia a Lázaro Eduardo de Barros, dono de uma denominada Fazenda Santo Reis.
empresa de pesquisas eleitorais, e sua esposa El- Essa transferência para cumprir um dos re-
ziran Assunção Alves Barros, funcionária pública quisitos da lei 11.952/2009 – ocupação anterior a
na Câmara Municipal de Palmas. A área havia sido 1º de janeiro de 2004 – foi registrada em Cartório

75 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


com data de 10 de janeiro de 2003. Ocorre que em 4,9 em Rondônia; 6,29 no Acre; 20,9 no Amazonas;
2004, Lázaro Eduardo declarara ao Sistema Nacio- 9,2 em Roraima; 17,9 no Pará; 1,03 no Tocantins;
nal de Cadastro Rural (SNCR) ser possuidor desse 5,7 no Mato Grosso; e 1,7 no Maranhão”4.
mesmo imóvel, conforme Nota Técnica da Coor- “O INCRA é muito culpado, muito culpa-
denação do Programa Terra Legal do Tocantins. do mesmo. Começa quando funcionários ignoram
Em 21 de setembro 2012 o Programa Terra Legal a existência de trabalhadores rurais sem terra e
emitiu o título a favor de Paulo César de Barros acampados às margens das estradas. Eles passam
Junior, sob condição resolutiva. Fica claro que essa na estrada, olham um acampamento, e não querem
área não somente sofreu mudanças quanto aos nem saber”, denunciam lideranças da comunidade
“donos”, mas também quanto ao tamanho. Vitória.
Nesse caso, o INCRA tem um papel funda-
Governo e atuação no conflito mental no conflito. Em setembro de 2009 houve
uma reunião na Câmara Municipal de Colinas do
Os camponeses, em conversas com a Co- Tocantins para tratar dos conflitos fundiários. Par-
missão Pastoral da Terra (CPT), fizeram a se- ticiparam Edvaldo Soares, da Divisão de Obtenção
guinte leitura do conflito na região: “Existe uma de Terras do INCRA – TO; Paulo César Barros –
‘panelinha’. E nessa ‘panelinha’ estão funcionários pai de Paulo César de Barros Junior, requerente da
de cartórios, membros do Judiciário, INCRA, regularização que resultou em título expedido pelo
Polícia, Programa Terra Legal e outros. E é essa Programa Terra Legal. Os latifundiários, na opor-
‘panelinha’ a responsável pela grilagem de terras tunidade, ofereceramao INCRA o lote 83/Fazenda
públicas”. Brejãopara desapropriação e criação de projeto de
Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da Uni- assentamento.
versidade de São Paulo (USP), explica a evolução A proposta foi recusada pelo representante
do processo de grilagem. Se antes insetos eram ne- do INCRA por se tratar de um imóvel pertencente
cessários para a prática do crime, hoje as figuras à União. No entanto, diante de todos, ele orientou
neste processo são outras. “A prática da grilagem o ofertante a fazer o pedido de regularização junto
foi se sofisticando. Agora, não é mais necessário ao Programa Terra Legal, que estaria cadastran-
envelhecer os documentos com a ajuda dos grilos. do ocupantes de terras da União no município de
A estratégia passou a ser a de tentar regularizar as Palmeirante no mês de novembro. Por ocasião do
terras por meio de ‘laranjas’, via falsas procurações. cadastro, em novembro do mesmo ano, passa a fi-
Este foi o período denominado ‘grilagem legaliza- gurar como posseiro nas terras da União Paulo Cé-
da’, durante os governos militares. Conseguia-se sar de Barros Filho, o mesmo que posteriormente
‘comprar’ do governo militar ou dos estaduais uma receberia o título.
área maior do que a Constituição permitia”3. Como parte do processo de regularização,
Ainda conforme o professor, “o INCRA, o imóvel deve ser vistoriado para comprovar sua
desde os governos militares, arrecadou e/ou discri- ocupação pelo requerente. Entretanto, segundo as
minou um total de 105,7 milhões de hectares. Até ações movidas pelo Ministério Público Federal de
2003 este órgão tinha destinado um total de 37,9 Tocantins (MPF/TO), por ocasião da vistoria foi
milhões e possuía ainda sem destinação 67,8 mi- escrito mais um capítulo delituoso desse programa
lhões de hectares assim distribuídos (em milhões): que, como afirma o professor Ariovaldo Umbelino

http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=486
3

http://www.ecodebate.com.br/2008/07/28/a-grilagem-de-terras-publicas-na-amazonia-artigo-de-ariovaldo-umbelino-de-oliveira/
4

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Foto: EBC/Agência Brasil
O Tocantins, formado por Amazônia e Cerrado, é considerado pelo agronegócio como o “novo polo
agrícola do Brasil”

visa apenas “justificar a legitimação da grilagem a experiência de perambulação de terra em terra


dos médios e grandes imóveis”. imposta pelas cercas do latifúndio. Pessoas com
No dia 27 de novembro de 2011, o enge- histórico de despejos de outras ocupações. Mem-
nheiro agrônomo Erivaldo Costa Arruda esteve no bros de várias famílias conheceram de perto o hor-
imóvel para fazer a vistoria, entretanto Paulo Cé- ror da escravidão em fazendas do Tocantins e do
sar de Barros Junior não estava, como certamen- Pará. A maioria das famílias é originária dos esta-
te nunca esteve. Diante da ausência, o engenheiro dos do Piauí e Maranhão, de onde migraram nas
avisou que voltaria no dia seguinte, como de fato décadas de 1970 e 1980 rumo a Goiás.
fez, quando encontrou Paulo. Zé Valdir, 56 anos, chegou à comunidade
Vitória vindo de outra ocupação, no município
Trajetória das famílias envolvidas de Brasilândia, TO. Lá, depois de três anos de
ocupação, apareceu um “dono das terras” ame-
As famílias da comunidade Vitória são ori- açando expulsar as famílias que, com medo,
ginárias de lugares diferentes, mas em comum têm procuraram a superintendência do INCRA/TO,

77 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


que depois de negociações prometeu assentar atiraram em direção ao acampamento e ameaça-
as famílias em outra área. Diante desta promes- ram matar os/as trabalhadores.
sa as famílias aceitaram a proposta. Entretanto, No ano seguinte, as famílias decidiram sair
oito meses depois foram despejadas, sem que o da beira da estrada e entrar na área da fazenda.
INCRA encontrasse a terra que prometera para Atualmente, 19 famílias ocupam e produzem na
assentar as pessoas. área, apesar de o fazendeiro continuar na sede da
Em 2010, Zé Valdir e outras famílias ex- fazenda.
pulsas de outras comunidades foram orientadas a Mais recente, em outubro de 2015, foi re-
procurar uma terra para demandar ao INCRA o alizada uma reunião na comunidade Vitória e,
assentamento das mesmas. Em 26 de novembro para surpresa de todos, estava presente o advogado
do mesmo ano, 17 famílias ocuparam uma área Ronaldo de Sousa Assis, que se apresentou como
próxima à sede da fazenda Santo Reis, mas no dia 8 comprador de lotes na região do conflito. Duran-
de dezembro foram expulsas por Lázaro, que esta- te a reunião o advogado informou que dias antes
va acompanhado por dois homens. Barracos ainda esteve na área acompanhado do policial civil Sakai
em construção foram derrubados e incendiados. Simonsen de Oliveira, também acusado de compor
Dois dias depois o grupo resolveu reerguer o grupo desarticulado em 2005 pela PF. Na certi-
o acampamento, desta vez às margens da rodovia dão cartorial apresentada pelo advogado consta
TO-335. Na mesma noite, pistoleiros rondaram o que ele comprou 30 alqueires de terra de um pro-
acampamento e disparam tiros de arma de fogo no prietário com residência no estado do Paraná, cujo
local. Os meses seguintes foram marcados por in- procurador é Paulo César Barros.
tensa perseguição aos acampados. O Ministério Publico Federal do Tocan-
Em junho de 2011, a Comissão Pastoral da tins, MPF/TO, entrou com ação na Justiça Federal
Terra (CPT) encaminhou à Secretária de Direitos buscando comprovar que área reivindicada pelos
Humanos da Presidência da República denúncia trabalhadores, na realidade é de domínio público
sobre as ameaças de morte contra os camponeses. e que o reconhecimento pelo Terra legal em nome
No mês seguinte, as famílias bloquearam a TO-335 Paulo César de Barros Júnior se deu por uma práti-
para reivindicar audiência com órgãos fundiários ca delituosa de “estelionato em desfavor dos órgãos
e MPF/TO. Em agosto, representantes da Ouvido- responsáveis pela regularização fundiária ao indu-
ria Agrária, Programa Terra Legal, INCRA e MPF zi-los ao erro, mediante fraude, a fim de obterem
se reuniram no acampamento Vitória com os/as regularização fundiária da Fazendo Santo Reis, lo-
camponeses. Nessa audiência ficou determina- calizada no loteamento Garças, lote 83-P, municí-
do que os fazendeiros que ocupavam ilegalmente pio de Palmeirante/TO”,
nove lotes de área pública deveriam desocupá-los. As provas apresentadas pelo MPF/TO fo-
Em abril de 2012, foi realizado o 3º Encon- ram suficientes para o convencimento da Justiça
tro de Camponeses, Indígenas e Quilombolas, no Federal, que determinou o cancelamento do título
acampamento Vitória. Ao final do encontro, a ro- por entender que o requerente é, na verdade, “la-
dovia TO-335 foi novamente bloqueada para rei- ranja”. Apesar de a Justiça Federal ter determinado
vindicar o cancelamento do título expedido pelo a suspensão e cancelamento do título concedido,
Terra Legal ao grileiro Paulo César de Barros Ju- até o presente momento não houve o cancelamen-
nior. Já em Junho de 2012, aAnistia Internacional, to do título.
em seu comunicado anual, denunciou que 40 fa-
mílias do assentamento Santo Antônio Bom Sos- Organizações de apoio
sego e do acampamento Vitória, no município de
Palmeirante, foram atacadas por pistoleiros que Há um entendimento compartilhado pela

78 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


maioria dos trabalhadores e trabalhadoras do dido. Na ocasião do lançamento, o governo pre-
campo de que a força da resistência é resultado da tendia acelerar regularização de 300 mil ocupações
articulação das comunidades camponesas, qui- informais em terras públicas na Amazônia Legal.
lombolas e indígenas. Nesse sentido, reconhecem Segundo dados do MDA, foram georeferênciados
a relevância do papel da Comissão Pastoral da Ter- 10.388.881 hectares e entregues 18.772 títulos so-
ra no processo de acompanhamento, formação e bre uma área de 1.406.013 hectares.
assessoria. Zé Valdir expressou com clareza a di- O programa está longe de levar segurança
ferença entre o tempo do acampamento em Bra- aos pequenos posseiros da Amazônia. Mas uma
silândia, quando não tinha ninguém para ajudar/ coisa é certa: aqueceu o mercado de terras. Os cam-
orientar na luta, e agora no acampamento/comu- poneses da comunidade Vitória sabem bem disso.
nidade Vitória. “Agora eles sabem mexer com as De acordo com uma liderança do acampamento,
leis. Tem acesso a informações importantes”. antes do programa “não se ouvia falar em despejo
A Articulação Camponesa – composta por em terra da União, agora virou moda”.
posseiros, assentados, acampados, e comunidades A destinação de terras públicas ao agrone-
tradicionais do Tocantins – está sendo fundamen- gócio terá consequências gravíssimas, já sentidas
tal para a luta dessas comunidades pelo acesso e pela comunidade Vitória e por outras comunida-
permanência na terra. Nos encontros da Articu- des. O brejo que corta o território está secando em
lação os/as participantes tomam conhecimento vários trechos devido à destruição do Cerrado. O
sobre as lutas dos quilombolas, indígenas e de volume de lenha “produzida” no estado na ordem
outras comunidades. Mas do que isso é a certeza de 903.224m é um indicador das proporções da
de que “um ajuda o outro”. Segundo trabalhado- destruição em curso.
res, a Articulação tirou os camponeses, indígenas, O sentimento dos camponeses de que “des-
quilombolas do isolamento. Antes da Articulação pejo virou moda” é confirmado pela Comissão
os posseiros e demais comunidades estavam iso- Pastoral da Terra. Nos últimos cinco anos, a CPT
lados, cada um cuidando de seus problemas. Essa registrou 103 conflitos por terra no estado de To-
articulação é muito percebida pelos camponeses cantins, sendo 32 apenas em 2014, o que equivale
de Vitória: “a realização dos encontros aqui foram a 32% do total do quinquênio, ou seja, o avanço
fundamentais para o fortalecimento da nossa co- do agronegócio se dá destruindo os biomas Cer-
munidade”. rado e Amazônia, ambos presentes no Tocantins.
Perguntada se há um “plano B” caso a comunidade
Impactos sociais, ambientais e culturais Vitória seja despejada, uma liderança prontamente
responde: Não. “Daqui só saímos mortos, chega de
Passados seis anos da Lei 11.952/2009, que tanto sofrer de terra em terra. Essa Terra é nossa.
criou o Programa Terra Legal, os resultados conti- Nós vamos resistir”, afirma acampado que prefere
nuam irrisórios diante do quadro que era preten- não se identificar.

79 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016


Por denunciar e sonhar com a oresta livre... Até a mata da várzea fumaceou
A canoa vazia no igapó cou... Tiro de espingarda nosso irmão matou
Violência e machado maldito que esquartejou... E o sonho da paz quase ndou
Dezesseis irmãos violentamente assassinados em dez anos... E o estado nada falou
E foi desta forma que nosso chão de oresta cou
Manchado com sangue do irmão seringueiro que por lá tombou
E agora tem mais oito companheiros que o crime também jurou
Sua vida e sua luta... Sua luta é a nossa luta. Nosso povo sempre o honrou
Mas, o Estado inerte. Não se manifestou
Haverá tempo de paz...
Como a natureza, a gente se refaz... E anima quem sempre amou.

CARTA FRATERNA
Segunda Carta das Comunidades Extrativistas
Machadinho d' Oeste, Rondônia – Amazônia do Brasil
19 de novembro de 2014

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