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Uma História

de Amor
---------------- Carlos Heitor Cony ----------------

(Baseado no conto "O Amor, Outra Vez", do


livro "Quinze Anos", publicado pela Ediouro.)

Ilustrações
Teixeira Mendes
30ª Edição
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A nossa cidade era muito diferente naquela
época. Tudo era simples: desde a estação de trem
- nosso único ponto de contato com o resto do
mundo - às casas rústicas que se espalhavam sem
ordem pelas ruas empoeiradas. A igreja, no alto
do morro, com a praça de canteiros à frente, o
clube, o ginásio e o palacete do teu pai formavam
aparte nobre do nosso universo. Ali, as ruas eram
pavimentadas e havia canteiros de bogaris
floridos nas calçadas.
Tudo pertencia aos Rezende. Deles eram os
melhores terrenos, as melhores plantações de café
e algodão. Tu eras uma Rezende e a distância que
nos separava parecia maior do que os quarteirões
que havia entre a tua casa de menina rica e o
casebre onde eu vivia com minha mãe. Ela
costurava para fora, pois meu pai morrera quando
eu tinha 3 anos de idade. Fazia alguns vestidos
para as freguesas menos exigentes do lugar.
Nunca fez nada para os Rezende, que compravam
tudo no Rio ou em São Paulo. Eu teria morrido
se, um dia, tivesse ido bater à tua porta com um
embrulho na mão e receber as reclamações que
nunca faltavam:

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- Este vestido está uma droga! Assim não é
possível!
Tu eras a rainha da cidade, a filha única do
Comendador Rezende, o homem mais rico de
toda aquela região. Teu reinado era total, tanto
pela fortuna do teu pai quanto pela tua própria
beleza. Impossível haver no mundo alguém mais
bonita. Teus cabelos eram louros e me pareciam
fantásticos, irreais. Eu sonhava com eles
enquanto brincava no rio que cortava o meu
bairro. Era quase uma vala. Contudo, se
transformara no meu único brinquedo, pois era
gratuito, tal como o Grupo Escolar onde eu fazia
o curso primário.
Certa manhã, eu estava brincando no rio
quando o automóvel de teu pai parou perto. Um
pneu dianteiro tinha furado e o motorista me
pediu ajuda. Quando me aproximei, vi que
estavas dentro, no banco de trás. Minhas pernas
tremeram. Creio que ajudei muito mal. De
repente, tu colocaste o rosto na janela e olhaste
para mim. Eu vi teus olhos de perto. Pensei que
todo o azul do céu havia se concentrado neles.
Não falaste comigo. Eu era parte da margem da
estrada, onde fiquei, quando o carro partiu
levantando uma nuvem de pó.
Quando cheguei em casa, minha mãe
atendia a uma freguesa que viera reclamar de um
serviço.
- Este vestido está horroroso, Dona Clara.
Se não tiver conserto, quero o meu dinheiro de
volta e outro corte de tecido!
Mamãe abaixou a cabeça. Eu ergui a
minha, prometendo a mim mesmo que haveria de
chegar o dia em que ninguém mais nos
humilhasse. Minha mãe pediu desculpas.
- A senhora me perdoe, Dona Zélia. Vou
consertar direitinho. Depois mando o Henrique
entregar na sua casa.
Eu sofria vendo minha mãe curvada sobre
a máquina, até de madrugada. Às vezes, quando
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levantava para ir à escola, eu a encontrava
dormindo em cima da costura. Tomava o meu
café ralo e saía de mansinho, para não despertá-
la.
Terminei o curso primário como primeiro
aluno do Grupo Escolar. Eu estudava muito para
compensar minha mãe. Ela sorria quando eu
chegava com a caderneta cheia de notas altas - e
também porque adivinhava que esse era o único
caminho para que eu vencesse a nossa pobreza.
No dia que entregaram as notas finais, a
professora me chamou a um canto:
- Henrique, você foi o melhor aluno, todos
esses anos. Será uma pena se não continuar os
estudos. Sua mãe não pode matriculá-lo no
ginásio?
Engoli em seco, tentando achar voz para
responder. Ela entendeu o meu silêncio.
- Sei que a vida é difícil para vocês. Mas
quem sabe se fizer um sacrifício? Quer que eu
fale com ela?
- Obrigado, Dona Iracema, pelo interesse.
Eu mesmo falo. Mas acho que vai ser difícil.
Depois, eu já tenho um emprego.
Era quase uma mentira. Meu orgulho fez
com que achasse aquela saída. Eu não queria que
minha mãe sofresse mais por mim. Sabia qual
seria a sua resposta: "Não, Dona Iracema, ando
muito cansada, a costura não dá para tanto.
Henrique terá que procurar trabalho. Estudo é
para quem pode."
Quanto ao emprego, bem, eu já vinha
pensando nele. Volta e meia fazia entregas para o
Seu Gomes, dono da única loja que consertava
rádios e abajures. Ele puxava de uma perna e não
podia caminhar muito. Por isso, me pedia para
entregar os aparelhos consertados e eu ganhava
umas moedas. Juntei um punhado delas e
entreguei à minha mãe, num dia em que o
dinheiro faltou em casa.
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- Onde você arranjou isso?
Contei como havia ganho o dinheiro. Ela
ficou pensativa. Naquela noite, depois que
jantamos e eu a ajudava com a louça, me
aconselhou:
- Meu filho, era bom que você se
empregasse. Eu estou com pouca costura. O
serviço aumenta perto do Natal. Mas janeiro e
fevereiro quase não faço nada. O Gomes está
velho. E com a perna doente não pode fazer
entregas. Acho que ele aceitaria um ajudante.
Pensei nisso quando a professora falou
sobre a continuação dos meus estudos. Minhas
possibilidades estavam naquele emprego. E eram
bem pequenas. Mesmo assim, cheguei em casa
agitado. Mamãe percebeu minha excitação mas
nada perguntou. De noite, já deitado, falei
baixinho:
- Mamãe...
Logo me arrependi. Torci para que não
tivesse escutado. Mas ela ouviu e quis saber o
que era. Contei então a conversa com a
professora.
- Mãe, eu gostaria de ir para o ginásio -
concluí.
Ela não respondeu. O resto da noite virou-
se de um lado pra outro na cama estreita. Eu a
ouvia mexer-se e procurava também pelo sono
que não vinha.
No dia seguinte, não se tocou no assunto.
Mas ele pesava sobre nós. Não consegui comer
na hora do almoço. Ela, então, ergueu para mim
os olhos cansados e disse:
- Meu filho eu não posso pagar o ginásio.
Se você conseguir um emprego, e com ele pagar
os estudos, está bem. Para mim, não preciso de
nada.
Então eu me ajoelhei a seu lado, coloquei a
cabeça no seu colo e prometi que seria o melhor
aluno do ginásio. E que trabalharia com tanta

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vontade e firmeza que um dia ela não precisaria
costurar.
Acariciou o meu rosto. Sua voz era triste
quando falou:
- Prepare-se para sofrer, meu filho. Aqui no
bairro somos todos pobres. No Grupo Escolar
todos eram iguais. Mas no ginásio você estará no
meio de gente rica, que tem tudo. Lá, a nossa
pobreza será defeito.
Eu estava decidido. Abracei-a.
- Sei que será difícil. Acredite em mim.
Nós venceremos.
Abraçando minha mãe, eu mesmo acreditei
no que dizia.

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Numa cidade pequena, não só as paredes,
mas até as ruas e o vento têm ouvidos. A notícia
de que eu ia freqüentar o ginásio se espalhou
rapidamente. Antes mesmo da matrícula, todos
comentavam a novidade. Os bairros da cidade
eram claramente separados, como as camadas
sociais. E o fato do filho da costureira do bairro
mais pobre subir para o quarteirão calçado e
ajardinado foi considerado ofensivo. Nas
conversas de porta de cinema ou na confeitaria,
Oswaldo Matos, o coletor, chegou a comentar em
voz alta, para que todos ouvissem:
- Isso é um absurdo! É o que dá o ensino
ser público! Nossos filhos vão ter que sentar no
mesmo banco do filho da mulher mais pobre
daqui! Precisamos convencer o padre a fundar um
ginásio particular, para evitar essa
promiscuidade! Odeio esse tipo de mistura!
A "mistura" não era tão mistura assim, nem
o ginásio tão democrático. Soube disso no dia da
matrícula. Havia taxas a serem pagas por certas
regalias. Tive que renunciar a todas. A principal,
foi relativa à carteira individual. Seria colocado

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um banco, no fundo da sala, para os que não
pudessem pagar pela carteira.
Fui depois à loja do Seu Gomes. Se ele não
me desse o emprego, adeus ginásio! O velho me
olhou por cima dos óculos, quando entrei.

- Chegou em boa hora. O rádio de Dona


Olga está pronto. Você pode entregar?
- Agora mesmo. Na volta preciso falar com
o senhor.
Entreguei a encomenda o mais rápido que
minhas pernas puderam. O velho Gomes ficou
surpreso com a minha eficiência.

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- Já de volta?
- Era perto. E não gosto de perder tempo.
- Você é um menino esperto.
- Seu Gomes, eu gostaria de trabalhar com
o senhor. Tenho jeito para aprender as coisas. E
preciso de um ordenado fixo para pagar os meus
estudos.
- Ouvi dizer que você matriculou-se no
ginásio. Admiro a sua coragem. Estou mesmo
precisando de um ajudante, não só para fazer as
entregas, como aqui na loja também. Pode
começar amanhã. Depois de uma semana,
combinaremos o ordenado. Primeiro quero ver se
é capaz de me ajudar no conserto dos rádios.
Saí correndo, o coração aos pulos. Tinha
conseguido a garantia do que precisava para
continuar os estudos. Fui direto para casa, contei
tudo a mamãe. Depois, desci a ribanceira do rio,
deitei no capim macio da margem e fiquei
sonhando com os teus olhos azuis.

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Cheguei cedo, no primeiro dia de aula. Aos
poucos, o pátio foi se enchendo. Quase todos se
conheciam, freqüentavam os mesmos lugares. O
único elemento estranho era eu. E fizeram
questão de deixar bem claro que, além de
estranho, eu era indesejável. Passavam pelo canto
do muro, onde eu tinha me encostado, olhando de
lado. Outros me apontavam e cochichavam. Foi
preciso ser muito cara-de-pau para não sair
correndo dali.
Quando entrei na sala de aula vi logo o
meu banco, lá no fundo. Parecia com o banco da
cozinha de minha mãe. Para escrever, eu teria de
usar as costas da cadeira da frente, como apoio.
As carteiras envernizadas se enfileiravam até
quase o estrado imponente, sobre o qual ficava a
mesa do professor. E atrás, o quadro-negro, no
qual haviam escrito:
O Ginásio de Vila Rezende saúda o
Comendador Rezende.
Teu pai viria àquele primeiro dia de aula
para receber uma homenagem. Os outros alunos
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entraram e foram ocupando as carteiras. Fiquei só
no banco. Alguns me olhavam, como se eu
tivesse invadido um território proibido. Baixei os
olhos, e só os ergui quando todos haviam se
acomodado. Então vi os teus cabelos louros e
fiquei feliz por poder vê-los diariamente, lá do
meu banco que, por ironia, ficava mais alto do
que as carteiras.
O diretor veio à aula inaugural para receber
teu pai. Foi a primeira vez que o vi. O homem
alto, corpulento e imponente pareceu um velho
conhecido. Ainda que não o tivesse visto antes,
eu sabia tudo sobre ele.
Assim que eles entraram, houve silêncio na
sala. O diretor iniciou o seu discurso:
- Contamos hoje com a presença, entre nós,
do Comendador Rezende, cuja família fundou
esta cidade. Por suas relações de amizade no Rio
e em São Paulo, ele poderia ter matriculado sua
filha em qualquer colégio famoso. Entretanto,
para prestigiar a sua terra, preferiu confiar-nos a
tarefa de educar Helena. Isso nos traz grande
prazer e responsabilidade. Sentimo-nos altamente
honrados. Este humilde ginásio recebe entre seus
alunos, Helena Rezende...
O discurso foi por aí afora. Não escutei o
resto. O brilho dos teus cabelos me queimava. Eu
sentia o desafio da distância entre atua carteira e
o meu banco. Naquele momento, eu tinha a
determinação de vencer. Ocupava o último lugar
da sala, o mais escuro. Mas seria o melhor aluno
da turma e de todo o ginásio.
E fui.
E fui mais. Trabalhava e aprendia, na loja
do Seu Gomes. Um dia encontrei, atrás de uma
prateleira, um manual de eletricidade. Comecei a
estudar, até aprender tudo. Quando recebi o
primeiro ordenado, depois de pagar as taxas do
ginásio e dar uma ajuda à minha mãe, usei o resto
do dinheiro para mandar buscar, pelo Reembolso
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Postal, outros livros sobre eletricidade. Eu sentia
que, em breve, a eletricidade e a eletrônica seriam
vitais para a humanidade. Varava noite adentro
estudando. Tinha esperança no futuro. E me
preparava para ele, no silêncio das noites, cortado
apenas pelo barulho da máquina de costura de
minha mãe.
Fui sempre o primeiro aluno do ginásio. E
fui também o sujeito mais atormentado e tímido
do mundo, quando, certa manhã, vieste ao meu
banco, com o teu caderno aberto. E me pediste
para copiar os meus exercícios. Fiquei atordoado.
Entreguei-te meu caderno, esperando que o
levasses para tua carteira. Para meu espanto, tu
sentaste ao meu lado e copiaste, ali, a matéria. Vi
teu olhar azul muito de perto e guardei-lhe a
expressão, quando disseste:
- Obrigada, Henrique.
Tu sabias o meu nome. E eu sabia que
começava a te amar .
Apesar das dificuldades que enfrentava,
consegui manter o primeiro lugar da turma. Tu
eras a segunda. Acostumaste a me procurar,
quando tinhas dificuldades com a matéria. Logo,
começaram os comentários a nosso respeito.
Durante os recreios, cansei de ouvir alusões.
- As notas de Helena não são vantagem. O
pai dela tem dinheiro para subornar os
professores e o diretor. E, além disso, ela
comprou o Henrique, para fazer os deveres dela!
Era mentira. Eu apenas te auxiliava,
principalmente em matemática, tua maior
deficiência e minha maior facilidade. Um dia,
reparando que eu fazia cálculos de cabeça,
perguntaste:
- Como consegue fazer contas sem lápis e
papel?
Olhei teu rosto intensamente e respondi:
- Fecho os olhos e me imagino contando os
fios do teu cabelo.
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Ficaste corada e séria. Eu logo me
arrependi daquela besteira. Baixei os olhos para
os cálculos.

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O primeiro ano passou rápido. Fora os
momentos que eu te ajudava nos deveres,
continuávamos vivendo em mundos separados e
distantes. Eu, trabalhando a tarde toda com Seu
Gomes, estudando noite adentro, lendo tudo o
que me caía nas mãos, ajudando minha mãe com
a louça e com as entregas. Tu, passando férias em
Santos, de onde voltavas queimada de sol e mais
bonita, passeando de carro, freqüentando o clube,
o cinema e a confeitaria, com teus pais e amigos.
Por motivos diferentes, a turma toda nos
invejava. A mim, o primeiro lugar do colégio. A
ti, a posição de soberana da cidade. Tu eras o
centro daquele universo, no qual nunca fui
admitido. Estudar era o único direito que o
ginásio me concedia. Excursões, jogos, reuniões
sociais de tudo isso fui sempre excluído.
Na metade do segundo ano, houve um
incidente que revelou o quanto eu continuava
intruso.
Tinhas uma pulseira de ouro com teu nome
gravado, nunca a tiravas do braço. Aquela manhã,
quando voltei do recreio, um pouco atrasado, a
classe estava excitada. Todos, do professor aos
alunos, olhavam debaixo das carteiras,
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vasculhavam o chão, mexiam na cesta de papéis.
Tu choravas, com a cabeça sobre os braços
cruzados na carteira. Do meu canto, eu via teus
ombros cobertos pelos cabelos louros, sacudidos
pelos soluços. Fui o único que nada fez, por não
saber o que procuravam. E esse fato ajudou a
criar o problema. A busca não teve sucesso.
Depois de quase meia hora, todos voltaram para
seus lugares. O professor foi até a tua carteira.
- Sinto muito, Helena, não achamos a
pulseira. Você tem certeza que a tirou do braço,
durante a prova de desenho?
Balançaste a cabeça.
- Não me lembro. Hoje cedo eu estava com
ela. Depois não sei mais. Foi presente de mamãe.
Por isso eu gostava tanto dela.
- Se estiver na sala, a zeladora encontra. A
menos que... - o professor fez uma pausa ... que
alguém tenha visto na sua carteira e apanhado...
Nesse momento, todos os olhares se
voltaram para mim. Custei um pouco aperceber o
que aquilo significava. Eu era o mais pobre e,
portanto, o mais suspeito. Senti o sangue subindo
no meu rosto. O professor acompanhou o olhar da
classe e o pensamento da classe. Eu tinha
chegado mais tarde do recreio. E fora o único a
não procurar a pulseira. Ele olhou atentamente
para mim. O silêncio me pesou como um insulto.
Só tu não te voltaste. Continuaste a chorar com a
cabeça sobre os braços. Teus soluços quebravam
o silêncio. Então o professor falou:
- Henrique, por que você não nos ajudou a
procurar a pulseira de Helena?
A pergunta doeu fundo. Meu orgulho
firmou a voz para responder:
- Não sabia o que procuravam. Entrei por
último na sala.
- E por que chegou atrasado?
- Fui aqui perto entregar uma encomenda
de minha mãe.

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- Mesmo assim podia ter se informado
sobre o que estava acontecendo e se oferecido
para ajudar.
Raiva, humilhação e vergonha explodiram
dentro de mim. Lágrimas me subiram aos olhos,
lágrimas que empurrei para dentro. Eu não
permitiria que me vissem chorar. Respondi,
erguendo a cabeça:
- Não faço parte desta classe, já fizeram
questão de deixar isso bem claro. Se me
oferecesse para ajudar, teria sido recusado, pela
mesma razão que agora suspeitam de mim. Se
acham que fui capaz de roubar, pensariam, da
mesma forma, que eu seria capaz de encontrar a
pulseira e não devolvê-la.
O professor não esperava pela resposta.
Ficou embaraçado. Eu havia dito a minha
verdade. E ela incomodava.
Jorge, O teu primo, foi quem teve a idéia.
- Reviste os bolsos dele, professor.
- Boa idéia! Henrique, venha aqui! Vamos
revistá-lo para que todos vejam.
A brutalidade foi tão grande que não
consegui me mover do lugar. O professor
endureceu a voz.
- Henrique, dei-lhe uma ordem! Obedeça!
Então levantaste o rosto molhado e falaste:
- Não faça isso, professor. O Henrique
seria incapaz de uma coisa dessas. Por favor,
deixe-o em paz!
- Se ele não é culpado, não tem o que temer
- observou o professor.
- Eu sei que ele não pegou a minha
pulseira. E se for para provar inocência, é melhor
revistar todos, começando pelo Jorge, que teve
essa idéia boba.
Por um momento o professor pareceu
indeciso. Depois:
- Está bem. Afinal a pulseira é sua.
Deixemos a revista para depois. E vamos à aula.

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Não sei como consegui agüentar até o fim
da manhã. Quando a classe terminou, os
cochichos me perseguiram até fora do colégio. A
história se espalhou pelos corredores. O ginásio
inteiro me apontava.
Cheguei em casa arrasado. Fiz o possível
para esconder o fato de minha mãe. Porém
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quando voltei do trabalho, no fim da tarde,
encontrei-a de olhos vermelhos. Uma freguesa
lhe contara o que acontecera. Ela me abraçou,
chorando.
- Eu bem avisei que íamos ter muito
sofrimento.
- Tenho a consciência tranqüila, mãe. E
nada me fará desistir dos estudos.
Na manhã seguinte, fui tentado a não ir à
aula. Precisei juntar toda minha coragem. Uma
fuga só aumentaria a suspeita geral. Cheguei em
cima da hora, para evitar os comentários do pátio.
Fui o último a entrar na classe. Helena se
levantou, assim que me viu. Pediu licença ao
professor e caminhou para mim.
- Henrique, eu estava esperando você
chegar. Quero que todos saibam que o chofer do
papai achou minha pulseira atrás do banco do
carro. O fecho estava quebrado. Peço desculpas
por ter, sem querer, causado uma humilhação
para você.
Todos baixaram a cabeça. Tu eras a rainha.
Deixaste isso bem claro àquela manhã. Eu
caminhei, de cabeça erguida, para o meu banco,
no fundo.

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Fizeste 15 anos. Estavas cada vez mais
bonita. A cidade inteira preparou-se para a festa.
Teu pai mandou vir orquestra de fora. Os
convites foram impressos em São Paulo. Eras o
único assunto da cidade. Até o velho Gomes
comentava os preparativos, enquanto
consertávamos os rádios.
- O Comendador vai oferecer churrasco na
praça para os pobres. O clube está ficando uma
beleza, pintado de novo. E vem flor de São Paulo
que não acaba mais. Você não estuda com ela?
- Estamos na mesma classe. Mas não
pertenço ao mundo dela.
- Você tem coragem, rapaz. Deve ser duro
enfrentar as feras.
Levantei a cabeça e olhei longe, para a praça
deserta àquela hora.
- Tem sido muito duro. Mas vou vencer.
Esta cidade ainda vai se orgulhar de mim.
Na véspera do teu baile vieste a mim - eu
agora ocupava uma carteira. Afinal, tinha
conseguido pagar a taxa. Meu antigo banco fora
retirado da sala.

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- Henrique, aqui está o seu convite.
Gostaria que você fosse à minha festa.
Jorge escutou. Não perdeu a ocasião de me
humilhar .
- Ora, Helena, o filho da costureira no seu
baile, era só o que faltava! Imagine a fúria do seu
pai. Além disso, nem roupa ele tem. Só se a mãe
der uma de alfaiate.
Empalidecemos ao mesmo tempo. A
indignação pelo insulto me fechou a garganta. Tu
falaste por mim:
- Você morre de inveja porque ele é o
melhor aluno da classe e você só consegue passar
em segunda época. Pois fique sabendo que
pobreza não é defeito.
Sem querer, tu me feriste fundo,
mencionando minha pobreza. Voltaste para o teu
lugar sem perceber o quanto aquele convite
queimava as minhas mãos.
Pouco almocei, àquele dia. Minha mãe me
olhou preocupada, mas nada disse. A tarde se
arrastou, pesada, triste.
Ao consertar um rádio, machuquei a ponta
do dedo. O corte foi profundo. Seu Gomes me
mandou à farmácia fazer um curativo e tomar
injeção anti-tetânica.
Não pude jantar. O dedo latejava, eu
remoía para dentro tuas palavras - "pobreza não é
defeito!".
Minha mãe não tirava os olhos de mim.
Até que não agüentou mais :
- Meu filho, o que foi desta vez?
Contei a história do convite, omitindo a
maldade de Jorge e tua inocente observação.
- Eles não perdem ocasião de te magoar .E
eu ainda pressinto muito sofrimento para nós
dois. Tenha cuidado, meu filho. Não vá se
apaixonar por essa moça. Seria sofrer em vão.
Levei um choque. Teria minha mãe
adivinhado o que eu mesmo não ousava me
confessar?
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O dia do teu aniversário amanheceu azul e
quente. Era sábado, não havia aula nem trabalho.
Vaguei pela beira do rio todo, evitando pensar na
noite que se aproximava. Vi as luzes da cidade se
acenderem. Iluminado, o palacete do teu pai
anunciava a festa. O vento trazia as vozes do
povo que se aglomerava na praça, onde serviam o
churrasco para aqueles que não tinham acesso ao
clube. A música começou. Então voltei para casa
e me enfiei na cama, na esperança de não ouvir
nada nem pensar mais. Mas a música atravessava
a noite, penetrava pelas paredes de madeira do
nosso casebre e mordia os meus ouvidos. Eu te
imaginava toda de branco, os cabelos louros
soltos nos ombros, os olhos azuis refletindo as
luzes do salão - e sofria. E me virava na cama,
perseguindo o sono que não vinha.
Velei, insone, atua festa. Só quando a
música cessou, já com a primeira claridade da
manhã, é que consegui adormecer, para sonhar
com teus olhos, muito perto de mim, num salão
florido e vazio. Te tomei nos braços e dançamos
ao som da música invisível. Eu sentia o teu
perfume, os teus cabelos macios que me
acariciavam o rosto. Foi a primeira vez que
sonhei contigo, de olhos fechados.

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Não se falou de outra coisa em toda cidade,
durante uma semana. Teus quinze anos te fizeram
mais bela. Era como se, de repente, tomasses
consciência de que eras mulher. Os rapazes
sentiram a mudança. Começaram a te cercar. E
havia ameaças e olhares quando vinhas até a
minha recém-conquistada carteira pedir auxílio
para os teus deveres de matemática. Ficávamos
muito próximos, resolvendo problemas. Eu sentia
o teu cheiro e me perdia no teu olhar azul. Não
sei como acertava os cálculos.
Um dia, deste comigo embatucado com
uma versão para o inglês.
- Alguma dificuldade? - Estou apanhando
para fazer o trabalho que o professor pediu.
Teu rosto se iluminou. O sorriso clareou
teus olhos.
- Eu posso quebrar o teu galho !
E me ajudaste, feliz por poder fazê-lo. Eras
boa aluna na matéria, tinhas professor particular.
Dali em diante, virou ritual fazermos juntos os
deveres de inglês. E mesmo quando superei as
dificuldades e fui capaz de seguir sozinho,

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continuei fingindo que não sabia nada para
merecer o teu auxílio.
Teu primo Jorge continuava a me
perseguir. Apesar dos três anos de convivência
diária, eu continuava segregado, excluído da
turma. Minha presença era tolerada de má
vontade. Diariamente, encontrava bilhetes
debaixo da carteira. Até uma gilete colocaram na
minha cadeira. Não me cortei por sorte. Acho que
foi o instinto que me fez olhar a cadeira, àquela
manhã, antes de sentar. A revolta cresceu dentro
de mim. Eu vinha suportando, em silêncio, toda
espécie de humilhação. Chegara ao limite.
Permaneci de pé, mesmo quando o professor
mandou sentar. Ele me olhou, com estranheza,
quase que com raiva.
- Henrique, por que ainda está de pé?
- Não posso sentar , professor.
Ele franziu atesta.
- E o que o impede?
- Gostaria que o senhor mesmo verificasse.
Ele se irritou com a minha ousadia.
- Afinal, por que você está querendo armar
confusão?
- Será fácil o senhor ver, se vier até aqui.
Ele ficou furioso, tomando minha
obstinação por desrespeito.
- Sente, imediatamente, ou se retire da sala.
Vou comunicar ao diretor sua insubordinação.
- Mas comunique também que colocaram
uma gilete na minha cadeira e, por isso, recusei
sentar .
- O que você está dizendo?
- A verdade. Por isso insisti para que o
senhor mesmo visse. A lâmina ainda está aqui.
Ele veio até o meu lugar. Depois voltou
para o seu estrado, sacudindo pesadamente a
cabeça. Ficou de pé, na frente da mesa, com os
braços cruzados, enquanto eu retirava a gilete e
me sentava. O silêncio era pesado. Então ele
falou:
26
- Desta vez vocês se excederam. Percebi
que hostilizaram este rapaz, desde o 1º ano, por
motivos que não vou discutir. Mas para tudo há
limites. Não tolerarei abusos aqui dentro. Espero
que o culpado se apresente até o fim das aulas.
Do contrário, toda a turma pagará por ele.
O ambiente permaneceu tenso durante a
manhã. Os alunos se entreolhavam, cabreiros. As
aulas terminaram sem que ninguém se
manifestasse. Quando bateu o último sinal, o
professor tirou os óculos e aguardou. Ninguém se
mexeu para sair .
- Estou esperando que o culpado se
apresente. Ficaremos aqui até que ele se decida.
O silêncio continuou. Os minutos se
arrastavam. Estava claro que ninguém se
acusaria. O professor tornou a insistir:
- Se alguém teve coragem para fazer uma
brincadeira tão maldosa, devia ter para responder
por ela...
E continuou com o sermão sobre
dignidade, hombridade e responsabilidade. Que
foi de todo inútil. Eu estava cansado daquilo.
Todos estavam. Então, uma das moças pediu
licença e se levantou.
- Professor, acho que sei quem foi. E já que
ele ficou mudo, penso que é meu dever acusá-lo.
Quando entramos na classe, ouvi Jorge dizer para
o Marcos que o Henrique ia ter uma surpresa.
Estou certa que foi ele.
Jorge ficou roxo. Ainda tentou negar. Mas
vendo o outro descoberto e não querendo ter
culpa no cartório, Marcos confirmou a acusação
da colega.
O professor ficou indignado: - Jorge, você
está suspenso por uma semana. Levarei o caso ao
conhecimento do diretor e pedirei que fale com o
seu pai. Para você, Marcos, três dias de suspensão
por não ter impedido a brincadeira ou me
avisado. O Henrique podia ter se machucado
seriamente.
27
Foi um rebuliço: um parente dos Rezende
punido por causa do filho da costureira! Eu
estava quebrando tabus. O pai de Jorge não
aceitou o castigo do filho. Falou alto por toda a
cidade: "Esta aldeia não vai para frente por causa
de coisas assim. Onde já se viu deixarem o filho
da costureira matricular-se no mesmo ginásio
onde estudam os filhos das melhores famílias?"
Minha mãe perdeu algumas freguesas, que
acharam melhor deixar bem claro de que lado
estavam.
Jorge me deixou em paz o resto do ano. E a
turma seguiu seu exemplo. Ser ignorado
incomodava menos.

28
O ano terminou. Vieram as férias. Mais
uma vez, foste para Santos com a família. Eu
dobrei meu horário de trabalho na loja do velho
Gomes. Já entendia mais de eletricidade que ele.
Gastava todo o dinheiro que me sobrava em
livros. Descobri que o inglês era importante para
a profissão que eu pretendia seguir. Estudei
aquelas férias todas, suprindo com obstinação as
dificuldades de aprender uma língua sem
professor. Consegui dominar o inglês o suficiente
para ler qualquer texto. Pude, então, ampliar
meus conhecimentos de eletricidade. Com 18
anos eu lutava pelo meu futuro, compensando
com duplo esforço a desvantagem da pobreza.
As férias acabaram. Tu ficaste mais tempo
em Santos, perdeste o começo das aulas. Era o
último ano. A turma reuniu-se logo na primeira
semana para programar a festa de formatura.
Escolheram uma comissão. E mesmo sem a tua
presença, te elegeram Presidente das Festas.
Ganhaste assim o teu primeiro título.
Quanto a mim, apesar de ser o melhor
aluno da turma, foi como se eu não existisse. Na
hora de dividir despesas, fizeram os cálculos.
29
- Somos 27. Mas o Henrique não entra
nessa. Ele não tem dinheiro para pagar a sua cota.
- Também - aparteou Marcos - o coitado dá
duro a tarde toda, na loja do Gomes, e estuda até
de madrugada!
Jorge aproveitou a chance:
- Ele deve se contentar com o curso. Já
fomos obrigados a aturá-lo nesses quatro anos.
Fiquei calado, como se não tivesse
escutado. Uma coisa era verdade: eu não podia ir
ao baile.
Chegaste na segunda semana de aulas.
Logo te comunicaram a eleição para a Presidente
das Festas e os planos iniciais para a festa.
- Tudo bem. Mas por que 26 cotas, se
somos 27 alunos?
- O Henrique não entra nisso.
- E por que não?
- Não tem dinheiro para pagar a cota dele.
- Pois se querem que eu seja Presidente,
tratem de aceitar o Henrique também. Ou ele
entra ou arranjem outra Presidente. Se ele não
puder pagar, eu pago.
Vinda de ti, esta esmola doeu mais.
Querendo me incluir na festa, me feriste fundo.
Procurei um canto isolado do pátio, para evitar
que me encontrasses. E lá fiquei, sozinho,
chutando as pedras miúdas do chão. Estava tão
concentrado na minha humilhação que nem te vi
chegar.
- Desculpe, Henrique, eu não quis te
ofender...
Eu me voltei e vi teus olhos. O azul ardeu
em mim. Senti que estava marcado para sempre.
Eu te amava.
O sinal chamou-nos para a aula. Andaste
na frente, os cabelos louros jogados pelo vento
fresco de março. Eu tinha agora a minha missão:
te amar.
A rotina das aulas nos afastou. Tu seguias a
tua vida de menina rica. eu o meu trabalho de
30
rapaz pobre, que lutava para pagar os estudos e
ajudar a mãe. Descobria, aos poucos, que só
existia para ti na hora dos problemas de
matemática.
Eu te observava de longe. A menina que vi
um dia, na janela do carro, era agora a moça mais
bonita do mundo, dona do meu coração e do
coração de quase todos os rapazes da cidade.
Eles te cercavam por todos os lados. No
recreio, no clube, no cinema. Se derrubavas um

31
lápis, todos se atropelavam para apanhar. Eu
sabia que tinhas dois pretendentes sérios: Roberto
e Alceu. O primeiro terminara o ginásio um ano
antes e fazia os preparatórios, com professores
particulares. Era o teu companheiro nas festas. O
outro estudava Direito em São Paulo. Raramente
aparecia em nossa cidade. Diziam que vocês
passavam juntos a temporada de praia, em
Santos. Tornara-se o favorito de teu pai, pois o
rapaz era filho de outro fazendeiro rico da região.
Em abril, mamãe adoeceu. Fui obrigado a
perder uma semana de aula para cuidar dela.
Quando voltei à escola, tive que pegar a matéria
dada com a turma. Eu não tinha amigos a quem
recorrer . Fosse a quem fosse que pedisse, levaria
um não como resposta. Pensava no que fazer,
quando te aproximaste de mim.
- Por que faltou a semana toda ?
- Minha mãe ficou doente. Tive que cuidar
dela.
- Temos prova de inglês amanhã. Se quiser,
posso mostrar a matéria que foi dada, durante o
recreio.
Respondi que sim, um pouco engasgado.
passaste o recreio me explicando o que os
professores haviam ensinado, durante a minha
ausência. O tempo correu rápido. Quando nos
demos conta, os outros voltavam para a classe.
- Leve os meus cadernos para copiar os
pontos.
- E a prova de amanhã?
- Já estudei. E tenho aula particular hoje. O
caderno não me fará falta.
- Obrigado, Helena - foi tudo o que
consegui murmurar.
Tu me olhaste bem de perto.
- Quero que você continue sendo o melhor.
Merece isso mais do que ninguém...
Durante o resto da manhã, não pude tirar os
olhos da tua nuca dourada.

32
Minha mãe ainda estava doente. Corri para
casa, encontrei-a sentada na máquina.
- A senhora ainda não está boa para
trabalhar.
- Dona Esmeralda viaja amanhã e precisa
do vestido.
Tirei-lhe a costura da mão. E a obriguei a
se deitar .

33
- Meu filho, tenho que aprontar ...
- Dona Esmeralda vai viajar sem o vestido.
A senhora precisa descansar .Não se preocupe
pelo dinheiro. Ganhei um extra consertando a
radiola do Seu Domingos.
Ela viu teus cadernos sobre a minha cama.
- De quem são esses cadernos tão bonitos?
- Helena me emprestou para copiar alguns
pontos.
Fitou-me dentro dos olhos:
- Tenha cuidado, meu filho, tenha
cuidado...
Ela desconfiava do meu amor por ti. E
adivinhava o quanto eu teria que sofrer.

34
Ali pela metade do ano, a turma planejou
uma excursão, numa cachoeira próxima da
cidade. Pela primeira vez vieram me convidar
para um programa. A tua ostensiva proteção foi a
causa do convite. Recusei.
- Não posso ir. Preciso trabalhar.
- Mas é feriado. O comércio estará fechado.
- O serviço está um pouco atrasado. Vou
aproveitar a folga para colocar tudo em dia.
Ninguém ligou para a desculpa. No fundo,
a minha recusa representou um alívio para eles.
Não fui ao passeio. Mas naquela manhã levantei
bem cedo. Saí para fora de casa e fiquei vendo as
luzes se acendendo nas casas onde moravam os
rapazes e moças de minha turma. Não agüentei
ficar ali. Caminhei até a praça e me escondi atrás
de uma árvore. O palacete de teu pai estava todo
iluminado. Criados iam e vinham, carregando
caixas e embrulhos. Os Rezende patrocinavam o
piquenique e davam a condução. O ronco do
ônibus reluzente, vindo de São Paulo
especialmente para levar a turma, quebrou o
silêncio das ruas adormecidas.

35
Eu te vi no ônibus. Escondido, vi o monstro
arrancar , desaparecer na curva, levantando poeira
nas ruas. Amanhecia. Vi o sol clarear a praça.
Apagaram-se as luzes das casas. Empurrei como
pude o resto do dia. Mas na hora do almoço não
consegui engolir a comida. Minha mãe também
pouco comeu. Enquanto lavava a louça nada
disse. Depois, com uma voz distante, falou sem
fitar meus olhos.
- Eu não queria que você sofresse.
Apertei suas mãos :
- Um dia isso vai terminar. A senhora vai
ver.
Não sei se era a ela ou a mim mesmo que
eu tentava convencer. Ela murmurou:
- O problema não são os estudos. É o
resto...
Ela sabia. Minha marca era visível a seus
olhos. E se entristecia porque não podia fazer
nada para me ajudar .
Ao cair da tarde, fui ver a turma chegar. O
mesmo ônibus, coberto de pó, apareceu na
mesma curva que o engolira pela manhã. E dele
desceram todos, de cabelos escorridos e faces
coradas pelo sol da montanha.
Guardei na lembrança tua figurinha
descendo do ônibus, a blusa vermelha amarrada
na cintura, os cabelos molhados pela água da
cachoeira. Tu me viste, encolhido no banco da
praça e fizeste um gesto. Tive a impressão que
vinhas para onde eu estava. Mas logo tua
governanta segurou teu braço e ambas
caminharam para o portão da tua casa.
Sozinho na praça, esperei a noite como
havia esperado a manhã. As luzes se acenderam,
quase ao mesmo tempo, nas casas que rodeavam
o quarteirão da igreja. Eu ali fiquei pensando que
talvez fosse melhor deixar o ginásio, a loja do
velho Gomes, e partir para a capital. Lá havia
cursos de eletricidade na Politécnica, e eu seria

36
estudante como os demais. Quem sabe eu
venceria mais rápido e com menos sofrimento?
Quando entrei em casa, vi minha mãe
dormindo sobre a costura, os cabelos grisalhos e
opacos, iluminados pela lâmpada. Com muito
cuidado para que não despertasse, carreguei-a
para a cama - eu havia ficado mais forte e ela
mais frágil. Tive pena de nós dois. Senti-me
preso a um destino mesquinho, feito de coisas
pequenas, que, apesar de tudo eu amava
terrivelmente com a obstinação resignada que só
a pobreza tem.

37
Na semana seguinte, o colégio inteiro
comentava que Roberto era agora o teu namorado
oficial. Um rapaz bonito, de família influente.
Alceu, o rival, andava longe, estudando em São
Paulo - o que lhe deixava o campo livre. Eras
disputada como uma presa de guerra. A luta valia
a pena, acredito eu.
Roberto aproveitava a ausência do outro e
ia consolidando a sua vantagem. Era teu par nos
bailes e, aos poucos, ia forçando a porta da tua
casa, conquistando teu pai e tua família.
Sofri com os comentários que ouvia. Foi
duro te ver entrar no cinema, ao lado dele.
Certa manhã, alguém escreveu num papel:
- "Helena estava beijando o Roberto no
bambual". Antes que o professor chegasse, o
bilhete passou de mão em mão, por toda classe,
entre risinhos abafados. Finalmente, jogaram-no
sobre a minha carteira.
A raiva me subiu à garganta. Amassei com
ódio a folha de papel. Foi quando percebeste
tudo. Decidida, vieste até onde eu estava.
- Quero ler o que escreveram aí.

38
- É melhor ignorar , Helena.
- Henrique, me dê esse papel!
Entreguei-te a folha. Desamassaste e leste
o que todos haviam lido. Teus lábios tremeram.
Foste para teu lugar e choraste em cima dos
braços cruzados. Fui incapaz de ir até lá, como
era meu desejo. Fiquei imóvel, vendo teus
ombros tremerem com os soluços.
E, de repente, vieste para mim. Perguntaste
em voz alta, para que todos ouvissem:
- Henrique, você acreditou nisso?
- Não.
- Os outros pouco me importam. Mas você
não podia acreditar .
Dizendo isto, sentaste na minha carteira e
choraste com o rosto escondido no meu ombro.
Eu te abracei, acariciei o teu cabelo.
- Eu te amo, Helena.
- Eu também, Henrique! Eu também te
amo!
O professor nos encontrou assim
abraçados. O escândalo abalou a cidade. A notícia
que o filho da costureira e a filha dos Rezende
haviam se abraçado, em plena aula, correu as ruas
de ponta a ponta. Os alicerces da sociedade
tremeram. A repressão veio rápida e violenta.
Falou-se que teu pai ia te tirar do colégio.
Realmente deixaste de freqüentar as aulas por
mais de uma semana. Parece que a proximidade
dos exames finais o fizeram pensar noutra
solução. Ele veio até o colégio e se trancou por
muito tempo com o diretor. As conseqüências
não tardaram.
Pouco depois, fui chamado à Secretaria. O
diretor foi objetivo e solene:
- Você passou dos limites, rapaz. Sua
atitude é ofensiva aos padrões não só do colégio,
como desta cidade. Devia ter se mantido no seu
lugar. Nós o ensinamos e educamos esses anos
todos. Precisava ter mais consideração pelos
favores recebidos.
39
Eu estava farto de ser humilhado. Minha
revolta, acumulada em todos aqueles anos de
silêncio e resignação, estourou. Enfrentei o
homem de cabeça erguida:
- Nunca recebi nenhum favor! Este é um
colégio público. Pago as taxas em dia. No
entanto, deram-me um banco de cozinha, no
fundo da sala, enquanto não tive dinheiro para
pagar pela carteira. Sou o melhor aluno deste
colégio, graças ao meu próprio esforço. Nunca
contei com a boa vontade de ninguém. Só com
Helena.
- Você está sendo insolente!
- Estou dizendo a verdade. Ela chorou no
meu ombro. Eu a abracei. Nós nos amamos.
- Não admito que fale nesses termos de
uma colega! Sua atitude é um insulto à família
Rezende. Vejo-me obrigado a pedir-lhe que deixe
o colégio.
- Tenho intenções de terminar o curso.
- Serei forçado a expulsá-lo!
- Terá que expulsar Helena Rezende
também. Eu recorrerei até aos tribunais, se for
necessário. Este curso me custou muito para que
eu o perca assim.
Ele viu que não conseguiria me intimidar.
E tudo que fizesse contra mim atingiria Helena.
- Está bem. O fim do ano está perto.
Termine o curso. Mas não pense que a família
Rezende o deixará em paz. Repito: você devia ter
ficado no seu lugar. Agora pode ir.
Voltei para a sala. Eu tinha perdido o
medo. E isso me dava forças.
Na saída, Jorge me esperava, rodeado pelos
outros rapazes. Interceptou meu caminho. Cuspiu
de lado, com as mãos nos quadris e provocou:
- Hoje foi seu último dia de aula! Se
aparecer amanhã, quebro sua cara!
- Por que não quebra agora?
- Viram? Ele resolveu cantar de galo.
Precisa apanhar para aprender.
40
Dizendo isto, ele me atacou. Rolamos no
pó da calçada. Jorge era forte e ágil.

Mas eu carregava anos e anos de raiva


acumulada. Bati com fúria, até que o venci. Ele
entregou os pontos. Então levantei e fui para
casa, deixando-o atordoado no meio da turma.
Minha mãe se assustou quando me viu
chegar sujo e amarrotado.
- Que aconteceu?

41
- Tive de acertar umas contas...
- Tenho medo do que podem fazer com
você. Primeiro, o escândalo no colégio. Agora,
esta briga...
- Não se preocupe, mãe. Ultimamente
aprendi que os ataques diminuem quando a gente
reage.
- O que vai ser de nós? Quase todas minhas
freguesas estão me abandonando. Vamos ficar na
miséria.
- Elas voltarão. E se não voltarem, daremos
um jeito.
- Você ainda é um garoto.
- Agora sou um homem.

42
A repressão foi longe. Além da tentativa do
Jorge, tentaram me punir de outra maneira.
Àquela tarde, quando cheguei na loja dos
rádios, o velho Gomes me chamou para uma
conversa:
- Henrique, acho que vou ter que vender o
negócio. Estou ficando muito velho e o serviço
não está compensando manter um ajudante.
- Compreendo.
Ele baixou a cabeça:
- Você é um bom rapaz. Mas quer ir muito
alto. Aqui está o seu ordenado, mais um mês de
gratificação. Você merece. Sempre trabalhou
bem. Não esqueça de levar as suas ferramentas.
Na hora que eu ia saindo, não sei que bicho
o mordeu. Ele veio fiscalizar a caixa de
ferramentas, para ver se eu não levava nada de
sua loja.
Não cheguei a ficar preocupado. Eu já
tinha alguma independência profissional. Muitos
clientes procuravam a loja por minha causa. E
havia quem me levasse rádios para consertar em
minha casa. Por lealdade ao velho, sempre
encaminhei o serviço para a loja. Agora, não
tinha mais essa obrigação. Não havia em toda a
região quem entendesse de eletricidade como eu.
43
E esse fato, que todos reconheciam, valeu-me
muito.
Certa noite, pouco depois de ter sido
despedido, um dos sinais da estação ferroviária
deu um curto-circuito. Esperava-se um trem às 10
horas e o socorro só chegaria no dia seguinte. O
superintendente mandou me chamar .
- É uma emergência, rapaz. Sem
sinalização, pode haver um acidente. Além do
trem das 10, que pára aqui, outros passam direto.
Espero que possa nos ajudar. O velho Gomes não
foi capaz de fazer nada.
Trabalhei com vontade. Antes do horário
do trem, eu tinha consertado não só o sinal
defeituoso, como descoberto outros pontos que
necessitavam de imediato reparo. A pedido do
superintendente, fiz um relatório para a diretoria
da Estrada, com sugestões sobre o sistema
elétrico das linhas. Eles acataram minhas idéias e
me ofereceram um pequeno emprego. Aceitei.
Com isso pude fazer face às despesas até o fim do
ano.
Agora, raramente tu vinhas às aulas. E
quando aparecias, eras sempre acompanhada pela
governanta que não mais te largava: até às aulas
assistia, sentada numa cadeira que arranjaram
especialmente para ela. A mulher controlava
todos os teus passos. Assim, tudo o que nos
restou foi a troca de olhares, à distância.
Difíceis, para nós, os últimos dias de aula.
Ao mesmo tempo, nos agarrávamos aos breves
instantes que passávamos na mesma sala,
sabendo que em breve, até isso terminaria.
Afinal, chegou a época dos exames. Não
sei como consegui manter as minhas notas.
Depois veio um período terrível, melancólico. Os
dias se arrastavam. Eu rondava a tua casa, na
esperança de te ver de longe. Mas estavas bem
guardada.
Chegou a noite da formatura. Vesti meu
terno escuro e fomos, mamãe e eu, a pé, até o
44
ginásio, em cujo salão nobre se realizaria a
solenidade. O céu estava escuro. Subimos
devagar a ladeira que levava à praça. Para mim,
aquela festa não representava nada. O que
contava era que ia te ver.
Fomos recebidos friamente. Deixei mamãe
e fui para o meu lugar na turma que se formava.
A solenidade nada teve de especial. Discursos de
praxe e circunstância. Quando o diretor citou o
meu nome, como o primeiro aluno, houve
silêncio. Fui receber o diploma. Minha mãe
começou a bater palmas com força. Aquele
aplauso, solitário e forte, acompanhou os meus
primeiros passos para o palco. Então outras
palmas se juntaram às dela, vindas do meio da
turma. Eram as tuas. Daí todos se juntaram ao
aplauso. E, para meu espanto, quando voltava
para o meu lugar, vi que teu pai também me
aplaudia.
Terminada a solenidade, mamãe e eu nos
levantamos para sair. Tu vieste até onde eu estava.
- Henrique, você será meu par no baile,
amanhã. Papai concordou.
E antes que eu me recuperasse da surpresa,
veio a explicação.
- Depois do baile viajarei para São Paulo.
Vamos de mudança. É possível que eu termine
casando com o Alceu. Supliquei a papai que me
deixasse dançar com você. Ele resolveu me fazer
a vontade. Vamos ter uma noite para sermos
felizes. Eu te espero amanhã.
- Estarei lá - prometi, com a boca seca, a
alma em pedaços.
Teu casamento já definido: uma só noite
para ser feliz. Minha impotência me humilhava
enquanto eu seguia pelas ruas escuras e
poeirentas. Quando cheguei em casa, minha mãe
perguntou :
- Você vai ao baile com a moça?
- Vou.
Os olhos dela estavam ansiosos. Foi para a
45
máquina - haviam aparecido dois vestidos de
última hora:
- Eu sabia que você ia sofrer muito. Eu
sabia...
Dei um murro na mesa. Ela me olhou
assustada
- Meu filho!
- Não vou deixar que ela se case com
outro! Ela me ama! Trabalharei e estudarei como
louco. Se dinheiro é tão importante, vou ganhar o
dobro do que tem o pai dela. E vou vencer,
mamãe. Ninguém me tomará o que me pertence!
- Henrique, não fale assim! Se ela gosta de
você, haverá um jeito...
- Mãe, esta noite foi a primeira vez que
vesti uma roupa decente. Tenho 19 anos. Até hoje
só trabalhei. E vivemos de cabeça baixa por aí,
como se devêssemos desculpas pela nossa
pobreza. Em parte a culpa foi nossa porque
sempre nos deixamos pisar.
- E o que a gente podia fazer?
- Reagir, mãe! Nessas últimas semanas,
aprendi que a gente só tem o respeito que impõe.
Se eu não tivesse ficado firme, até do colégio
teriam me expulsado!
- E agora o que você vai fazer?
- Juntar dinheiro para fazer um curso de
eletricidade, em São Paulo.
- E eu?
- A senhora vai comigo. Ela sacudiu a
cabeça.
- Não se incomode comigo. Você foi
sempre um bom filho. Está na hora de cuidar de
sua vida. Eu não tenho mais importância.
Abracei-a. Beijei com carinho os seus
cabelos grisalhos.
- Para mim, a senhora é a primeira pessoa
do mundo! E vou levá-la comigo.
Ela riu, um riso cansado.
- Está bem. Mas vá dormir. Amanhã será
um dia importante para você.
46
Foi um dia comprido. As horas se
espichavam sobre os ponteiros. Eu aguardava e
temia a noite. Caminhei até a beira do rio, deitei
no capim, com a cabeça sobre os braços
cruzados, e fiquei olhando o céu. Um pouco
adiante, o lugar onde o carro do teu pai parou,
àquela manhã. O tempo que passara, desde então,
não podia ser medido em anos. Lembrei o teu
rostinho de menina, os olhos azuis que me
haviam fitado, indiferentes. E te vi na plenitude
dos teus 16 anos. Lembrei o amor e a tristeza nos
olhos azuis. "Vamos ser felizes ao menos uma
noite." Eu queria a vida inteira para ser feliz
contigo. E me recusava a aceitar que me fosses
roubada. Eu ansiava, pela noite. Mas já sentia -
dolorosamente - o vazio da manhã seguinte. E de
tudo mais.
Voltei tarde para casa. Então me dei conta
de que não tinha roupa para o baile. Larguei o
corpo na cadeira desanimado. Não bastasse tudo,
ainda havia o nada.
Mamãe percebeu o meu aborrecimento.
- O que há, meu filho?
- Não tenho roupa para a festa.
47
- Não pensamos nisso.
- Eu não pretendia ir ao baile.
- E agora, como vai ser?
- Vou com a mesma roupa da formatura.
Acho que Helena não se importará.
Quando chegou a hora, tive vontade de
desanimar. Apesar de nova, a roupa apenas me
embrulhava. Eu estava ridículo e feio.
Fui te buscar a pé. Naquele tempo, tudo era
mais perto. Eu sabia que os rapazes tinham carros
para levarem suas namoradas. Eu não podia me
dar ao luxo de alugar um automóvel.

48
Bati na porta do teu palacete, com mão
firme. A governanta atendeu.
- Entre, por favor. Helena não demora.
Conduziu-me até o imenso hall e deixou-me só.
A escada de mármore branco prendeu
minha atenção. Por ali tu descerias. Fixei meus
olhos nela - e o resto perdeu o sentido.
O relógio bateu 11 horas. Não percebi que
teu pai entrara na sala. Dirigiu-se a mim.
Trocamos um "boa-noite" seco, hostil. Ele me
olhava sobre a minha cabeça, quando falou:
- Traga Helena cedo. Amanhã, viajamos às
9 horas. Ela não deve ir dormir muito tarde.
Não cheguei a responder. Apareceste no
alto da escada e não enxerguei nem ouvi mais
nada. Estavas linda. O vestido azul parecia
escorrer dos teus olhos. Uma tiara de águas-
marinhas coroava teus cabelos louros. "Parece
mesmo uma rainha", - pensei. Tu paraste no meio
da escada para que eu te admirasse. Depois,
desceste devagar, com os olhos presos nos meus.
Tua mãe veio contigo.
- Não esqueça de pôr o xale na volta. À
noite, sempre faz frio.
E para mim:
- Você trouxe carro?
Respondeste por mim:
- Nós combinamos ir a pé.
- O chofer pode levá-los e...
- Não, mamãe. Nós preferimos ir andando.
Tua mãe ia insistir. Mas teu pai a
interrompeu.
- Deixe. Hoje será como ela quer.
Fomos andando de mãos dadas. Os bogaris
perfumavam as calçadas e nossa felicidade ficou
suspensa na noite. A cauda do teu vestido
arrastava um pouco no chão. Caminhávamos
devagar, para encompridar o trajeto. Fiz uma
coisa tola:
- Desculpe a minha roupa. Não tive tempo
de ...
49
Apertaste minha mão.
- Você está muito bem assim.
Continuamos andando de mãos dadas, sem
pressa, até aquela esquina onde, hoje, há uma
garagem. Então ouvimos o som de uma valsa. O
baile começava. A música nos chegava filtrada
pela distância e pelo perfume dos bogaris. Tu
abriste os braços para mim.
- Vamos dançar aqui!
Eu então apertei-te nos braços. Ergueste o
rosto para mim. Tua pele estava luminosa à luz
da lua. Senti lágrimas nos teus olhos e, antes de
dançar, beijei teus lábios. Foi um beijo de
orgulho, humildade e pranto. O pranto do homem
que se fortalecia em mim, prometendo à sua
carne, à sua ambição, conquistar o direito de te
amar.
Não sei quanto tempo dançamos na
esquina. Perceberam tua ausência no baile. Foi
quando viram que dançávamos na esquina, em
plena rua. Vieram todos ver de perto a afronta: os
dois loucos que se abraçavam e se beijavam,
entre os bogaris, ao som da música que cortava a
noite fria, como deuses enjaulados, mas livres.
De repente, o carro de teu pai freou,
bruscamente, quase em cima da calçada. Ele
saltou como um tigre. A voz dele cortou a
música.
- Seu vagabundo!
- Papai, nós nos amamos...
- Cale a boca! Chega de me envergonhar.
Entre já no carro.
- Papai... Ele te arrastou pelo braço e
jogou-me o último insulto.
- O filho da costureira!
Permaneci parado onde estava. Aos
poucos, as pessoas foram se afastando,
retomando ao baile. Fiquei sozinho na esquina,
com o perfume dos bogaris e a lembrança da
valsa que acabava. Caminhei lentamente pela
praça. Sentei num banco, e lá vi o dia nascer.
50
As luzes do teu palacete não se apagaram.
Creio que ali ninguém dormiu, apressando os
preparativos para a viagem. Mal o dia clareou, os
criados começaram a se mexer. Vi quando saíste
da casa e entraste no automóvel. Então me
aproximei. Por instantes nos olhamos nos olhos.
O carro partiu, ainda estava escuro no mundo.
Fui para casa, chutando as pedras do meu
desespero manso e doído.

51
O palacete dos Rezende foi fechado. A
família decididamente não pretendia voltar mais,
abandonara tudo.
O escândalo abalou a cidade. Minha mãe
perdeu as últimas freguesas. Não fosse meu
emprego na Estrada de Ferro, teríamos passado
fome. Era muita audácia, um garoto da beira do
rio, amar a moça mais rica do lugar.
O velho Gomes havia fechado a loja. Aos
poucos, fui sendo procurado para consertar os
aparelhos elétricos. Não havia outro que pudesse
fazer isso. Eles não tinham escolha.
O tempo foi passando. Intensifiquei meus
estudos sobre a eletricidade. A guerra terminava.
Novos horizontes se abriam para os que tinham
ambição e determinação. Um mundo com
maiores possibilidades começava a surgir. Eu me
preparava para construir, nele, o meu lugar.
Foi duro suportar atua ausência. Dominava
a vontade de largar tudo e correr até onde estavas.
Mas não podia ir de mãos vazias. Tinha que lutar.
A noite do baile foi ficando esquecida. Eu
já não era "o filho da costureira". Sabiam meu

52
nome, procuravam meus serviços. Nem por isso
me aceitavam como igual.
Por mais de uma vez, fizeram-me saber
que ias casar .Eu me desesperava.
Certa noite, cheguei tarde em casa. A velha
sinalização da Estrada entrara em pane.
Ultimamente, eu vinha insistindo junto à direção
para que fosse substituída por outra, mais
moderna. Estava tão absorvido no problema que,
a princípio, não reparei que a casa estava às
escuras. Só quando abri a porta e um silêncio
pesado veio ao meu encontro é que me dei conta
de que alguma coisa acontecera ali.

Mamãe estava caída sobre os braços, na


mesma posição em que tantas vezes a encontrava
dormindo em cima da costura. Toquei seu ombro
para despertá-la. Inutilmente. Estava morta.

53
Não sei como tive forças para providenciar
tudo. Alguns vizinhos me ajudaram. Atravessei a
noite chorando sobre o seu corpo.
Quando joguei o primeiro punhado de terra
sobre o seu caixão, decidi que, agora mais do que
nunca, eu devia vencer por mim e por ela.
Voltei a pé do cemitério. O céu azul,
enorme, ampliava a minha solidão. Dali para a
frente, eu contava apenas comigo.
Nos dias seguintes, tratei de me desfazer
das coisas que não ia levar. Decidi ir embora de
Vila Rezende. Dei os trastes para os vizinhos,
encaixotei meus livros e ferramentas, fiz a mala.
Não havia muito o que pôr nela. Pedi demissão
do emprego. A cidade ficou sabendo que eu
partia.
Na véspera da viagem, encontrei o velho
Gomes, na praça. Fazia tempo que não nos
víamos. Seu cabelo estava todo branco e ele
andava meio curvado. Abriu o rosto num sorriso:
- Então vai nos deixar, Henrique?
- Viajo amanhã cedo.
- E quando volta?
- Não sei. Talvez nunca mais.
- Bobagem! Quem bebeu água do rio,
termina sempre voltando. Até os Rezende vão
acabar aqui de novo. Ouvi falar que a filha deles
não casou até agora. É de estranhar. Uma moça
tão bonita!
Meu coração disparou. Era bom ouvir de
alguém o que eu me repetia todos os dias. O
velho continuou:
- O Comendador era uma fera. Homem
acostumado a mandar. Mas os tempos estão
mudando. A guerra virou tudo de pernas para o
ar. Quando você subiu lá da beira do rio para ir
estudar no ginásio, foi um escândalo. Eu devia
favores aos Rezende, como toda cidade devia.
Não tive outro jeito...
Percebi que, à sua maneira, ele pedia
desculpas.
54
- Não se preocupe, Seu Gomes. O senhor
foi bom para mim.
- Se não fosse você, eu teria fechado aquela
biboca bem antes. Três meses depois que
começou a trabalhar , você já entendia da coisa
muito mais do que eu. Fui um moleirão dizendo
amém ao Comendador, quando ele me mandou
despedir você.
- Não pense nisso agora.
- Tá certo...
Ele piscou um olho.
- Vou andando. Boa sorte, rapaz. Se existe
alguém que merece tudo de bom, é você!

55
Vila Rezende ainda dormia quando
atravessei suas ruas, rumo à estação. Parei um
momento, em frente ao palacete do teu pai.
Súbito, tive consciência de que realmente um
mundo novo começava. Eu, o menino pobre e
órfão, tinha forçado uma abertura. Era por minha
causa que o imenso casarão havia cerrado as
portas. A família mais rica e influente do lugar
fugira para não enfrentar o rapazinho da beira do
rio. Eu era forte. Senti isso naquele instante.
Peguei a minha maleta e andei para a
estação. O trem apitou e partiu. Vila Rezende foi
ficando para trás e, logo, desapareceu, engolida
pelas curvas dos morros.
São Paulo. A estação, gente, vozes, sons.
Fiquei atordoado.
Meu terno de formatura me pareceu
desajeitado. Me senti um caipira a mais na grande
cidade. A verdade é que ninguém reparava em
mim.
A tarde estava quente, em breve,
escureceria. Tinha que encontrar onde passar a
noite. Um pouco de pânico quando deixei a
estação e enfrentei o movimento das ruas. As
luzes se acenderam. Eu não sabia para onde ir.
56
Letreiros anunciavam hotéis e pensões
"familiares". Eu me dei conta do quanto era só e
inexperiente. Tive medo da cidade imensa e
desconhecida. Meus propósitos - tão firmes e
adultos na minha cidadezinha - pareciam agora
tolos e ridículos.
Parei, na frente da estação, pensando no
que fazer.
- Precisa de carregador?
Um velhinho simpático sorria para mim.
Tinha um rosto franco, aberto.

57
- Não, senhor. Preciso é de uma
informação. O senhor conhece alguma pensão
barata onde eu possa alugar um quarto?
Ele me olhou, em silêncio. Depois:
- É a primeira vez que vem a São Paulo?
Disse que sim com a cabeça.
- De onde você é?
- De Vila Rezende.
Ele franziu a testa.
- Nunca ouvi falar.
- É uma cidade pequena e sem importância.
- Por que não se hospeda com algum
amigo?
- Não conheço ninguém.
- Parentes?
- Não tenho ninguém. Minha mãe morreu.
Ele coçou a cabeça.
- Acho que posso ajudá-lo. Perto daqui tem
uma viúva que aluga quartos para estudantes. Ela
não aceita qualquer um. Pede referências. Mas
você tem uma cara tão inocente que talvez a
convença. Vamos até lá.
Fomos andando pelas ruas apinhadas. As
pessoas caminhavam apressadas, sem olhar para
os lados, fisionomias cansadas e tensas, vincos na
testa e nos cantos da boca.
Meu guia contava a sua vida, viera do
Nordeste, quarenta anos atrás, também
perseguindo seus sonhos.
- Cheguei de pau-de-arara. Tinha 20 anos e
muita fome no lombo. São Paulo era a terra da
promissão. Tive um primo que veio e voltou rico.
Isso me decidiu. O máximo que consegui foi ser
motorista da Prefeitura. Vivi modestamente. Me
aposentei e hoje carrego malas, para melhorar o
feijão com arroz. Chegamos. É no segundo andar.
O edifício era cinzento e triste. Subimos a
estreita escada de cimento. Ele tocou a
campainha. Uma senhora miudinha, de óculos e
cabelos grisalhos presos num coque, olhou pela
portinhola. Só depois é que abriu a porta.
58
- Como vai, Seu João? Trouxe a roupa
mais cedo esta semana?
- Não, senhora. Trouxe pensionista para a
senhora.
Ela me examinou detidamente.
- De onde ele vem? - perguntou.
- De Vila Rezende.
- Tem carta de recomendação?
Antes que eu abrisse a boca, Seu João
respondeu:
- Não, senhora. Mas ele é filho de uma
prima da minha mulher. Só não vai lá para casa
porque não temos lugar.
Ela pensou uns momentos.
- Bem, se é um parente de Dona Joana, o
caso muda de figura. Tenho uma cama vaga, num
quarto com mais dois rapazes. O primeiro
pagamento é adiantado.
- Está bem. E estava mesmo. O que eu
mais desejava era tomar um banho e dormir. A
viagem tinha me deixado exausto. Levei Seu João
até a porta. Agradeci a ajuda e quis dar-lhe uma
gorjeta. Ele recusou.
- Guarde o dinheiro, rapaz. Vai precisar
dele. Vejo você daqui a dois dias, quando trouxer
a roupa para Dona Maria. Boa sorte. E tenha
cuidado.
- Obrigado por tudo. O senhor foi muito
bacana.
Subi. Dona Maria tinha arrumado minha
cama.
- Você está com cara de fome e de sono.
Jantamos às 7 e meia. Mas vou lhe preparar um
lanche enquanto toma banho.
Sorri, agradecido.
- A senhora adivinhou.
- Seus companheiros de quarto ainda não
chegaram do trabalho. Pedirei que não façam
barulho.
Meu cansaço me salvou das explicações
quanto ao parentesco com a tal de Dona Joana. E
59
foi bom. Sempre fui um desastre na hora de
mentir. Tomei um café com leite reforçado, me
joguei na cama, e não vi mais nada até amanhã
seguinte.

60
Acordei cedo com o movimento dos dois
rapazes no quarto. Assim que me viram desperto,
foram se sentando.
- Eu sou Antônio, gaúcho, arribado há dois
anos da capital. O outro é Carlos, mineiro
caladão, mas boa-praça.
- Meu nome é Henrique. Cheguei ontem do
interior.
- Veio estudar ou trabalhar?
- As duas coisas. Só não sei por onde
começar...
- Que é que você sabe fazer? Perguntou
Carlos.
- Conserto aparelhos elétricos. Estudei tudo
o que pude sobre o assunto.
- Comece comprando jornal. E apronte as
pernas! - falou Antônio. - A gente se vê de noite.
Nós dois trabalhamos num banco. Estamos
criando coragem para fazer um curso, à noite.
Eles se foram. Segui o conselho de
Antônio. Comprei um jornal, recortei os anúncios
que me pareceram possíveis, tomei informações
de ruas e itinerários e saí.

61
Foi uma semana dura. A resposta era
sempre a mesma: não. As razões variavam: eu era
muito jovem, não tinha carta de recomendação, o
serviço era de muita responsabilidade. Começava
a desesperar. Minhas economias davam para dois
meses de pensão. E o começo das aulas estava
próximo. Se não conseguisse trabalho, teria de
desistir dos estudos.
Os rapazes me animavam. Antônio era
brincalhão e extrovertido. Carlos, quieto e
acomodado. Era a primeira vez que eu tinha
amigos, gente para quem eu era Henrique.
A segunda semana passou. Nada de
emprego.

62
Uma tarde, eu vinha voltando cansado, de
mais uma tentativa. Peguei o ônibus errado.
Quando percebi que ia em direção contrária,
puxei a campainha. Desci numa zona totalmente
desconhecida. Nas ruas estreitas, alinhavam-se
diversas lojas. Procurei o ponto de ônibus que me
levasse para o centro. Então vi a placa -
Consertam-se rádios e aparelhos elétricos. Foi
como reencontrar um rosto amigo.
A loja era pequena e apertada. Um garoto
me atendeu de má vontade.
- Quero falar com o dono.
- Ele está lá dentro. É cobrança?
- Não. Quero falar com ele.
- Passe por trás do balcão. O velho está
furioso.
A oficina não era muito maior que a loja.
Não havia janelas e a iluminação vinha de uma
única lâmpada, colocada no centro da peça. O
homem, inclinado sobre um rádio desmontado,
resmungava sozinho. Alguma coisa me lembrou o
velho Gomes. E isso me fez sentir em casa. Ele
levantou a cabeça quando entrei.
- Se é conta para pagar , pode ir dando o
fora. Só faço pagamento às segundas-feiras.
- Estou procurando trabalho. Entendo
bastante de eletricidade.
- Entrou no lugar errado. Todo mundo acha
que sabe endireitar estas drogas elétricas. Como
se fosse fácil! Não preciso de ajudante para ter
que ensinar o que é uma válvula e para o que
serve!
- Tenho prática. Estudei muito. Consertei
os sinais da Estrada de Ferro e...
- Chega de conversa! Se sabe mesmo
consertar um rádio, comece por este aqui. Faz
dois dias que trabalho nele e está cada vez pior.
- Deixe ver. O defeito era simples. Deu
mais trabalho remontar o que o velho havia
desmontado, que consertá-lo. Ele me observava,
por cima do ombro. Quando terminei:
63
- Está pronto?
- Agora é só ligar.
- E vai funcionar?
- Experimente.
O homem ligou o aparelho e sintonizou
numa estação. O som de um chorinho invadiu a
loja. Ele tirou os óculos:
- Abro a loja às 8. Amanhã esteja na porta
15 minutos antes. Depois combinamos o seu
ordenado. Como é seu nome?
- Henrique Silva.
Eu tinha um emprego. O resto viria com o
tempo.
Cheguei tarde na pensão. Dona Maria
fechou a cara.
- O jantar é às 7 e meia, Seu Henrique!
- Desculpe o atraso. Tive que fazer teste
numa loja de eletricidade. Consegui trabalho.
O rosto dela desanuviou.
- Que bom! Tome seu banho, enquanto
esquento a janta.
Os meus companheiros ficaram felizes com
a novidade. Eram bons amigos. Antônio foi logo
dizendo:
- Precisamos comemorar. Que tal um
cinema e depois um chope?
Enquanto bebíamos, num barzinho da Av.
São João, a conversa girava em torno dos meus
planos.
- E você pretende entrar na faculdade? -
perguntou Carlos.
- Primeiro preciso me firmar no emprego, o
suficiente para trabalhar à tarde e à noite,
deixando a manhã livre para estudar.
- E você vai agüentar o rojão?
- Estou acostumado.
- Você parece que sofre de alguma coisa
recolhida.
Olhei a espuma do copo.
Contei-lhes minha história. Ouviram
calmamente. Quando terminei, Carlos comentou:
64
- Você tem que se apressar, companheiro.
A paciência das mulheres é curta.
- Ela esperará por mim - respondi. - E
agora vamos dormir. Amanhã tenho que chegar
cedo no emprego.
Seu Tomás tinha um gênio miserável. Tive
ocasião de verificar isso na primeira semana. Ele
despediu o garoto que cuidava do balcão, aos
gritos, porque não varrera direito a loja. Por mais
que eu me esforçasse, tinha sempre uma
reclamação na ponta da língua. Fora disso, era
um homem honesto e decente. Descobri, com o
tempo, que vivia só. Esse fato me levou a ter
mais paciência com ele.
No trabalho, tinha um defeito grave: era
muito desorganizado. A oficina vivia de pernas
para o ar e se perdia muito tempo procurando as
ferramentas que ele nunca sabia onde havia
guardado. Decidi fazer-lhe uma proposta.
- Seu Tomás, eu gostaria de trabalhar este
fim de semana.
Ele me olhou surpreso:
- Por quê? Não temos tanto serviço assim.
- Eu queria pôr em ordem a oficina. E se o
senhor permitisse, pintar as paredes de branco.
Fica mais claro para agente trabalhar.
Ele coçou o alto da cabeça, sinal de que
estava pensando. Demorou um pouco para
responder:
- Está bem. Você entende do riscado. Mas
não pense que vou lhe pagar mais por isso. Para
mim, não vejo necessidade de tanta ordem.
Mas na segunda-feira, quando deu com a
sala pintada de branco, o material limpo e
arrumado nas prateleiras, seu rosto se abriu.
Bateu no meu ombro e falou:
- Gosto de você. rapaz. Tem cabeça e não
tem preguiça. Isto aqui mudou de cara! Esta
segunda-feira começou bem, apesar de ser dia de
pagar contas.

65
E não parei aí. Convenci-o a pintar e
reformular a frente da loja, fazer uma vitrina,
encomendar novo letreiro, e ter um pequeno
estoque de aparelhos elétricos e lustres. O
negócio cresceu, os lucros subiram, meu
ordenado dobrou e antes do fim do segundo ano
eu era sócio na loja.
Continuei morando na pensão de Dona
Maria e dividindo o quarto com Carlos e Antônio.
Perdi minha timidez. Aprendi a rir, a brincar com
as pessoas. Freqüentava cinemas, teatro, lia tudo
o que podia. Apesar do horário apertado, dei jeito
de fazer um curso regular de inglês. Vila Rezende
se esfumava na minha memória. A tua lembrança,
porém, permanecia viva, a me empurrar para a
frente.

66
Entrei na Faculdade de Engenharia. Eu
fazia mágica com o tempo. Trabalhava de tarde e,
às vezes, de noite. Estudava, aprendia inglês.
Passava os fins de semana fincado nos livros,
pondo em dia a matéria ou trabalhando na loja,
quando o serviço acumulava.
Consegui entusiasmar Carlos e Antônio
para estudarem também. Eles faziam Direito.
Eram amigos leais e simples. Durante aqueles
anos todos, nunca deixei de pensar em ti.
Vivíamos na mesma cidade. Nossos mundos,
porém, continuavam distantes. Impossíveis.
A guerra havia terminado. E as coisas
aconteciam muito depressa. Os meios de
comunicação foram se expandindo, diminuindo o
tamanho dos problemas mas criando outros,
maiores e, talvez, piores. Como eu previra, a
eletricidade que já desempenhava importante
papel na vida do homem moderno, era agora um
deus que alimentava as indústrias, dava conforto
à vida. Uma nova era começava. Começou-se a
falar em eletrônica. Poucos sabiam o que isso
representava. Fui dos primeiros a pensar em
construir uma televisão experimental, com os
67
recursos dos laboratórios da Faculdade. A
engenhoca não funcionou cem por cento mas deu
para provar que era possível transmitir imagens à
distância. Mais tarde voltaria a trabalhar nisso,
mas em outras bases, e com mais sucesso.
Seu Tomás continuava ranzinza, mais por
hábito do que por necessidade. Tínhamos dois
balconistas e um ajudante na oficina. Estávamos
pensando em alugar a loja ao lado, para aumentar
a nossa. Eu sabia que não se podia pensar em
coisas pequenas. Era importante para o meu
futuro pensar grande. Eu pensava em ti.
Chegou o Natal. O terceiro que eu passava
em São Paulo. Carlos e Antônio viajaram para
suas casas, no interior do Estado. A pensão ficou
vazia. Eu fiquei. Não tinha família. Pela primeira
vez, percebi que estava realmente sozinho no
mundo. Antes, quando era pobre, mal tinha
tempo para pensar nisso. Mas agora que as coisas
melhoraram, eu começava a sentir com nitidez a
minha verdadeira situação. E mais do que nunca
necessitava de ti. Pois não imaginava minha vida
sem o teu amor.
Por causa disso, decidi fazer um Natal para
os outros. Combinei tudo com Dona Maria.
Convidamos os amigos e conhecidos que
sabíamos sozinhos no mundo, tal como eu. E
mais Seu Tomás, Dona Joana, seus filhos e netos.
Armamos uma enorme árvore de Natal na sala
principal da pensão. Comprei presentes, frutas,
flores. Na grande noite tivemos 20 pessoas para a
ceia. Dona Maria estava feliz. Eu também. Tinha
descoberto que se pode ser feliz dando alegria aos
outros.
Mas nem tudo tinha acontecido, então. Eu
teria de passar por uma prova amarga para o meu
orgulho. E decisiva para o meu futuro.
Foi no 4.º ano de Engenharia. Hospedou-se
na pensão de Dona Maria um novo rapaz,
Belmiro, de uns 22 anos de idade, vindo de
Goiás. Era um rapaz calado, triste, que fazia
68
questão de se isolar de todos. Eu respeitava a sua
maneira de ser, mas Dona Maria não gostava dos
modos dele:
- Cuidado com esse Belmiro. Alguma coisa
me diz que ele está escondendo alguma coisa!
Eu achava graça. No fundo, apreciava
Belmiro, era diferente de nós mas mantinha a sua
dignidade. Pagava pontualmente seus
compromissos e trabalhava num banco, como
caixa. Mais tarde - dizia ele - iria reiniciar os
estudos, pois queria ser contador.
Tudo aconteceu de repente. Foi no mês de
abril, havia uma garoa insistente caindo sobre a
cidade e eu fui para a Faculdade bem cedinho,
pois tinha uma prova importante. Quando saí da
pensão, notei que Belmiro também saía de seu
quarto, levando uma enorme mala nova.
-Vai viajar? - perguntei, interessado.
- Sim... recebi uma carta, minha mãe está
doente em Morrinhos e eu preciso ir vê-la.
Lamentei sinceramente a aflição do colega
de pensão e não me passou pela cabeça que teria
problemas por causa disso. Nem sequer dei
importância ao fato de que ele levava uma mala
absolutamente nova. Geralmente, as malas dos
fregueses de uma pensão são velhas, herdadas
dos pais e avós, caindo aos pedaços. Aquela mala
nova era sinal de uma súbita abastança.
Fui para a Faculdade, fiz a prova, almocei
por lá mesmo. Depois passei pela loja do Seu
Tomás, da qual já era o sócio mais importante.
Não acreditei quando vi o rosto dele, me olhando
severamente:
- Henrique, o que houve com você?
- Nada - respondi, tranqüilamente.
- Nada? Mas a polícia esteve aqui,
procurando por você...
- A polícia? Nem por um momento
suspeitei de coisa grave. Fiz um ligeiro exame da
situação, para ver se lembrava de alguma
exigência burocrática que precisava cumprir. Há
69
tempos, tinha tido a necessidade de um atestado
de residência, fora ao distrito mais próximo da

pensão, fizera o requerimento e recebera o


documento. Fora disso, não tinha nada a ver com
a polícia e acreditava que a polícia nada tinha a
ver comigo.
Antes mesmo que pudesse explicar
qualquer coisa a Seu Tomás, dois homens
surgiram à minha frente. Estavam do outro lado
da rua, espreitando a loja. Mal me viram chegar,
me cercaram.
70
- Você é que é o Henrique?
- Sou. Algum problema?
- Muitos problemas, rapaz. Você mora na
pensão da Dona Maria?
- Moro. Os senhores sabem disso, por que
perguntam?
- Bem, essa cara de anjinho não nos tapeia.
- Não tenho nem faço cara de anjinho. Essa
é a minha cara. Nasci com ela e não tenho outra
para a ocasião.
- Tá bem. Além do mais, é petulante. Mas
vamos apurar tudo direitinho. Entre no carro.
Eu nem tinha reparado, mas um carro
policial havia parado na rua e nos esperava. Antes
que me empurrassem para dentro, perguntei com
energia:
- O que está havendo? Não fiz nada, não
podem me levar preso!
- Quem falou que você está sendo preso? -
respondeu um dos homens.
- Isso é a consciência culpada - comentou o
outro.
Eu estava perplexo. Espremido entre os
dois policiais, no banco traseiro do carro,
procurei manter a cabeça fria.
- Para onde me levam?
- Não se preocupe. Você está indo para um
lugar bem conhecido.
Na verdade, eles estavam me levando para
a pensão onde morava. Quis saber de mais
detalhes mas eles desconversavam. Pouco depois
chegamos. Havia mais policiais na porta da
pensão. Realmente, fiquei assustado.
Quando entrei, vi a cara aflita de Dona
Maria. Ela não agüentou:
- Henrique... uma desgraça... uma
desgraça...
Eu continuava aturdido. Abracei-me a ela.
Suas lágrimas me molharam o rosto.
- Mas o que houve, Dona Maria?

71
Um dos policiais me segurou pelo braço e
me afastou dali. Levou-me ao meu quarto. Parou
à porta e me perguntou:
- Conhece este quarto?
- Conheço, sim senhor. É o meu quarto.
- Muito bem. Faça o favor de entrar.
Entrei, acompanhado pelo policial. Minha
surpresa foi grande. Dentro do quarto havia outro
homem, armado com um baita revólver.
- Mas... não estou entendendo nada... - foi
tudo o que consegui falar.
- Daqui a pouco começa a entender.
O policial que me acompanhava tomou
posição ao lado da minha cama. Estava solene,
parecia um ator no palco.
- Quer dizer que você não está entendendo
nada, hem? - disse ele.
E com um rápido puxão, arrancou o lençol
que cobria a minha cama. Abri os olhos, com
espanto: o colchão estava rasgado, na beira. E
pela abertura, que parecia ter sido feita há pouco,
o enchimento de capim seco estava todo revirado.
Isso não era tudo: no meio daquele enchimento,
havia vários pacotes de notas, com o rótulo do
papel timbrado pelo banco.
- Sabe o que é isso? Dinheiro, meu caro,
dinheiro do bom!
Eu sabia que era dinheiro. Mas como
aquilo fora parar dentro do meu colchão?
- Como é? - continuava o policial, que
parecia extremamente satisfeito com a mágica
que acabara de realizar. - Compreende agora?
Essas notas saíram quentinhas do Banco Central,
foram para a Agência da Praça da República e de
lá vieram para o seu colchão. Podia explicar
como isso foi feito?
Eu estava aturdido mas consegui falar: -
- Honestamente, não sei de nada. Sou
estudante, faço Engenharia, sou sócio numa
pequena loja de eletricidade, nunca precisei

72
roubar nada... Dona Maria me conhece há muitos
anos... eu... eu...
Apesar de tudo, precisei de controle para
não chorar. O policial percebeu isso:
- Então? Não vai confessar? Está bem,
contar tudo vai ser mesmo difícil. Mas vamos
levá-lo para a Delegacia de Roubos e Furtos... lá
a coisa é mais dura e você se lembrará de tudo...
nós temos meios para ajudá-lo!
Um clarão passou pela minha cabeça: o
novo hóspede da pensão que saíra naquela manhã
com uma mala nova! A mãe doente... ia para
Morrinhos, uma cidade do interior goiano... a
essa hora estaria longe, era caixa do banco, justo
de uma agência na Praça da República! Tudo
fazia sentido mas como provar a minha suspeita?
Se falasse em Belmiro, talvez estivesse acusando
um inocente que seria incomodado. Mas como
explicar aquela fortuna no meu colchão?
Para meu espanto, Dona Maria entrou no
quarto, aos prantos. Ela parecia ter tido a mesma
suspeita:
- Eu bem que desconfiava daquele sujeito,
Henrique! – disse-me ela, no intervalo dos
soluços. - Sei que você é inocente, já disse isso
para esses homens, mas eles não me escutaram. O
Belmiro saiu hoje cedo, resolveu viajar de uma
hora para outra... levou tudo o que tinha...
evidente que não volta mais...
Aquela era uma hora de surpresas. Quando
pensava que tudo havia acabado, o policial que
parecia o chefe dos homens tranqüilizou Dona
Maria:
- O rapaz que saiu daqui esta manhã não
precisa voltar mais. Ele já voltou, ou melhor, nem
chegou a sair da capital. Está preso na delegacia.
Foi ele quem nos indicou onde estava o
resto do dinheiro que havia roubado. Na mala
dele, havia uma fortuna, mas ele roubou mais do
que podia carregar. E deixou muita coisa aqui.
Não foi preciso apelar para métodos mais fortes,
73
o rapaz confessou tudo. E disse que Henrique
fora seu cúmplice...
- O quê? - perguntei eu, pela primeira vez
perdendo a paciência. - Ele não podia me acusar!
É um absurdo!

74
- Palavra contra palavra! - rematou o
policial. - E agora vamos! Lá na delegacia vocês
dois se entendem!
Eu não sabia mais o que pensar. Meu
trunfo, minha maior prova de inocência, era
justamente aquela: Belmiro roubara o banco e
escondera parte do dinheiro no meu colchão. Não
podia imaginar que ele já me acusara, sem
qualquer motivo para isso. Se ele não mudasse de
tática e continuasse me acusando, como eu
poderia provar que nada tinha a ver com aquele
roubo?
Dona Maria me olhou espantada. Para ela,
aquela revelação fora um choque maior do que a
sua resistência. Parara de chorar e me fitava,
como se, no fundo, começasse a duvidar de
minha inocência. Eu percebi isso.
- Dona Maria, eu estou inocente. Mais cedo
ou mais tarde a verdade será revelada e a senhora
verá que...
Dona Maria não deixou que eu terminasse.
Me abraçou e, surpreendentemente, disse
baixinho no meu ouvido uma coisa que há muitos
anos não ouvia:
- Meu filho!...

75
Eu pensava sinceramente que o pior já
tinha passado. Iria à delegacia e lá, diante de
Belmiro, provaria a minha inocência. Impossível
que ele insistisse naquele absurdo. Seria fácil
desmascará-lo.
Mas alguma coisa de sobrenatural parecia
tramar contra mim. Quando cheguei na Delegacia
de Roubos e Furtos, pensei que seria colocado
imediatamente à frente do ladrão. E que em meia
hora sairia dali, para a minha vida normal. No
fundo, começava a ter a sensação de estar
vivendo um pesadelo.
Ao invés de ser levado à presença do
Belmiro, os policiais .me conduziram a uma sala
atapetada, que parecia ser a mais nobre da
delegacia. Era o gabinete do delegado. Estava
vazio. O policial me informou:
- O doutor delegado só chega mais tarde.
Mas você será atendido pelo secretário dele, o Dr.
Jorge...
Bem, há muito Jorge no mundo. Eu não
tinha outra coisa a fazer senão esperar e confiar
que a verdade, afinal, se esclarecesse. Mas tudo
conspirava contra mim. Uma porta dos fundos do
gabinete se abriu e entrou um homem. Era um
76
jovem, muito bem vestido, uma cara vagamente
conhecida. Não precisei forçar a memória e lá
estava, Jorge Rezende, o teu primo, meu antigo
colega de ginásio, o mesmo que me acusara de ter
roubado a tua pulseira, lembra-te?
Ele ficou tão espantado quanto eu.
Olhamo-nos demoradamente, olhos nos olhos, em
silêncio. Minha posição era desvantajosa, eu
estava sob a suspeita de ter cometido um crime.
Ele, como sempre, por cima da carne-seca: era o
secretário do delegado. Não sabia como Jorge me
trataria e minha dignidade me impediu que
forçasse uma intimidade. Esperei que ele falasse
e desse o tom de nossa conversa.
Jorge ficou em silêncio um bocado de
tempo. Depois de me examinar detidamente
(deve ter percebido que eu já não tinha o aspecto
miserável dos meus tempos de garoto) dirigiu-se
ao policial que me escoltava:
- Então, é esse o homem ?
- É, sim senhor. Revistamos o quarto dele,
as notas do banco estavam lá, aquele ladrão não
mentiu, deu o nome e o endereço legais... estava
tudo lá...
Jorge fingiu que tirava um cisco imaginário
da testa:
- Bem, deixa esse rapaz aqui, vou
conversar com ele.
O policial se retirou e ficamos no gabinete,
eu e teu primo.
- Eu sabia que você ia terminar mal -
começou ele.
- Eu não terminei ainda - respondi. - Tenho
muito caminho pela frente. E não estou nada mal.
Trabalho numa loja, sou sócio do negócio. E
estou no 4.º ano de Engenharia. Daqui a pouco
se- rei doutor como você...
Ele teve um rasgo de honestidade:
- Ainda não me formei. Também estou no
4.º ano de Direito mas me arranjaram um bom

77
emprego na polícia. Quando me formar , já tenho
um lugar de delegado me esperando.
Foi a primeira vez, em toda a vida, que ele
conseguira conversar realmente comigo. Mas
logo aquela franqueza passou. Ele voltou a seu
tom habitual. Naquele momento, era uma
autoridade. E eu, um réu.
- Muito bem, Henrique, a nossa família
nunca conseguiu esquecer o mal que você nos
fez...
- Eu não fiz mal nenhum. Não tenho culpa
de...
- Não falemos sobre isso. Seria idiota
imaginar que discutisse aqui na delegacia, com
um ladrão de banco, um problema de família...
- Foi você quem puxou o assunto.
- Está bem. Esqueça. E de agora em diante
não me chame de você. Sou doutor.
- Você ainda não se formou. Não pode
abusar de um título que não lhe foi dado.
Ele titubeou. Mas corrigiu:
- Me chame de senhor.
- Está bem. O que o senhor quer saber?
- Como foi o assalto?
- Que assalto?
- Não se faça de bobo. Você e seu
cúmplice estão presos. Ele já confessou tudo. O
dinheiro que faltava na mala dele foi encontrado
no seu colchão, tal como ele nos disse. Como
você explica isso?
- Honestamente, não posso explicar nada.
Contei o que sabia. Que vira, pela manhã,
Belmiro se retirando da pensão, com a mala nova.
Que fora fazer uma prova na Faculdade. Que fora
depois para a loja, onde os policiais me
detiveram. Que na pensão, o meu quarto havia
sido revistado e que lá estavam as notas. E que eu
podia explicar o resto que faltava naquela história
tão bem quanto explicaria um círculo quadrado.

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Para terminar, levantei a única
possibilidade que me restava:
- Gostaria de ser acareado com o Belmiro.
Duvido que ele mantenha a acusação diante de
mim, olhando nos meus olhos.
Jorge fez uma cara de aborrecimento mas
admitiu:
- Você continua orgulhoso e cheio de si.
contudo, tem razão. Vamos fazer a acareação.
Mas não hoje...
- Por que não hoje?
De repente, senti que ele tinha um plano
macabro: poderia me manter preso vários dias,
prolongando à vontade o meu tempo de prisão.
Afinal, a acareação poderia ser favorável para o
meu caso e quanto mais ele adiasse o meu

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encontro com Belmiro, mais tempo me teria sob
suas garras.
- Isso é assunto nosso. Você será acareado
quando eu quiser. Por ora, considere-se preso e
trate de não estrilar. Temos celas aqui na
delegacia. O conforto é muito relativo mas você
já está habituado...
Ele apertou um botão. Uma campainha
tocou lá fora. O policial reapareceu, com um riso
mau na boca:
- Posso levar o cara, doutor?
- Pode. Amanhã ou depois nós faremos a
acareação...
Eu me senti perdido. Já sofrera
humilhações em minha infância e mocidade, mas
de há muito me afirmara num padrão que não
suportava aquela indignidade. Tudo desabara
como um raio sobre a minha cabeça. Mas o que
fazer. Se reagisse, seria espancado? Pioraria a
minha situação. Aceitar tudo aquilo
submissamente, porém, era superior às minhas
forças. Eu tinha de fazer alguma coisa. O quê?
O policial me agarrou pelo braço e me
conduziu para fora do gabinete. Depois, sempre
me segurando com força, me levou por um
corredor. Descemos uma escada, mais outra, mais
outra. Evidente que estávamos indo para os
porões da delegacia, onde ficam as celas
sombrias.
Senti uma tonteira. Acredito que a minha
fortaleza se desmoronou. Eu fraquejava. Um suor
frio molhou a minha fronte. Estranhamente, senti
vontade de vomitar. Mofaria ali por quanto
tempo?
Uma porta gradeada foi aberta. O chão era
úmido, de cimento ralo e áspero. Nenhuma luz. O
destino caprichara nas tramas e, justamente
quando eu me aprumava na vida, jogava-me
aquela provação injusta mas da qual eu não sabia
como sair.

80
Tropecei num obstáculo invisível, que na
verdade não existia: era o início de um desmaio.
Aquilo foi um sinal: eu estava me entregando.
Precisava reagir. Era inocente, não podia
fraquejar como um covarde. Reuni toda a minha
força de vontade e me mantive em pé.
Entrei na cela. Havia dois homens caídos
no chão, imundos e tristes. Se passasse naquele
lugar alguns dias, eu ficaria assim: imundo e
triste. O policial se preparou para fechar a porta
novamente. Nisso, ouvi uma voz que vinha do
corredor:
- Ananias! Ananias!
O policial respondeu:
- Que é?
- O delegado chegou e mandou chamar
esse rapaz!
O policial fez uma cara azeda mas tinha de
cumprir a ordem recebida. Com a má vontade que
foi possível arranjar, rosnou entre os dentes:
- Me acompanhe. Fiz o mesmo caminho,
desta vez subindo as escadas. Não podia imaginar
o que me aconteceria. Mas qualquer coisa, agora,
seria melhor do que a realidade. A dura, a incerta
realidade que estava vivendo.

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No gabinete do delegado, estavam agora
vários homens. Um deles parecia mais importante
do que os outros. E era:
Quando me viu entrar, adiantou-se:
- O senhor é o Henrique?
- Sim.
- Ainda bem que cheguei a tempo. Sou o
Diretor de Relações Públicas do banco e vim aqui
para esclarecer uma terrível confusão que foi
armada.
Eu senti que chegara a minha vez. Afinal,
alguma coisa de bom começava a surgir.
- Demos pelo desfalque na manhã de hoje -
continuou ele. - Avisamos a polícia. Foi fácil
prender o Belmiro, que ainda estava na
Rodoviária, esperando o ônibus para Goiás. Na
mala, havia parte do dinheiro roubado. A outra
parte, segundo nos confessou, havia ficado com o
sócio dele. Deu o seu nome. Disse que vocês
haviam escondido o dinheiro no colchão. Ele
dava o fora, ia começar a vida em Goiás com o
dinheiro roubado. Você preferira continuar em
São Paulo e por isso guardara o dinheiro no
colchão. Bem, a palavra dele, até prova em
contrário, valia tanto quanto a sua.
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- Eu pedi que me fizessem uma acareação
com ele - esclareci. - Mas o Doutor Jorge
Rezende, aqui presente, disse que só poderia
realizar esta medida preliminar daqui a dias...
Eu acentuara propositadamente a palavra
doutor. Notei que Jorge ficara vermelho.
- Não será preciso acareação nenhuma.
Conseguimos uma prova melhor.
E dizendo isso, o diretor fez sinal para um
policial que guardava uma das portas de acesso

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do gabinete. Por ela, entrou uma moça magrinha,
com uniforme de bancária.
- Esta é Sulema - continuou ele. - É caixa
em nosso banco e teve um namoro com Belmiro.
Ontem... bem, é melhor que ela mesma conte
tudo o que sabe.
E a moça contou. Belmiro gostava dela e
insistira pelo namoro. No início, aceitara a
companhia dele, mas logo notou que o rapaz não
era exatamente o que ela pretendia. Deu-lhe o
fora. Belmiro entrou em depressão. Prometeu-lhe
mundos e fundos. Disse que um dia seria rico e
que poderiam viver muito bem, como fazendeiros
em Goiás. Ela cometeu a imprudência de zombar
dele, "você nunca será nada na vida" - dissera ela.
Belmiro passou a evitá-la. Vivia pelos
cantos, não falava com ninguém. Na véspera do
roubo, repentinamente a abordara:
- Você disse que eu nunca seria nada na
vida. Pois está enganada. Vou ficar rico agorinha
mesmo, tenho um plano genial!
- Que plano? - perguntara ela.
- Vou levar um dinheirão aqui do banco e
fujo para Goiás.
Sulema pensara numa brincadeira.
Evidente que Belmiro não faria aquilo. Mas
naquela manhã, estava indo para o banco quando
encontrou o rapaz no ponto de ônibus que ela
tomava todos os dias para ir ao trabalho. Trazia
na mão uma mala nova.
- Belmiro, você por aqui?
- Vim me despedir. Olha, aqui dentro da
mala tenho uma fortuna. Dei um desfalque no
banco e agora vou para Goiás. Lá eu conheço
todas as tocas, vou me esconder num lugar onde
ninguém me encontrará. Em breve a polícia me
esquecerá e aí aproveitarei o dinheiro. Virei
buscar você, para nos casarmos.
- Mas Belmiro, isso é uma loucura! Eu não
amo você mas, sinceramente, acho que está
fazendo besteira, não gostaria que nada de mal
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lhe acontecesse. E a polícia vai pegar facilmente
um ladrão tão boboca...
- Boboca, não! Parte do dinheiro que
roubei eu escondi no colchão de um colega de
pensão. Ele chegou muito tarde ontem à noite. É
estudante de Engenharia. A polícia vai achar o
dinheiro com ele e pensará que demos o golpe
juntos. Enquanto perder tempo com ele, eu fujo e
me escondo para valer.
A moça contou a sua história. Todos me
olhavam agora, com certa pena. Eu estava em
frangalhos. E o que não tinha feito ainda, acabei
fazendo: levei as mãos ao rosto e comecei a
chorar.

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Muita coisa podia relembrar ainda. Boas e
más, as emoções se foram. Não me queixo, não
me glorifico com este sofrimento que, afinal, eu
cumpri durante tantos anos, para te merecer. Uma
coisa é certa: o tempo custou a passar naqueles
dias. Não sei por quê, a pensão de Dona Maria
não me pareceu a mesma. Ela tentou ser quase
uma segunda mãe para mim, principalmente
depois daquele incidente que tanto nos maltratou,
a mim e a ela. Mas tudo soava falso naquela casa
que me abrigara. Eu não podia continuar ali.
Muitas noites acordei, banhado em suor,
vendo em sonhos os policiais que me buscavam
para pagar crimes absurdos. Depois de algum
tempo, senti que ali estava a mão do destino: eu
devia mudar de casa.
Foi difícil arranjar uma boa desculpa para
convencer Dona Maria a me deixar partir. Ela
achava que eu não saberia tomar conta de mim.
- Viver sozinho é muito perigoso - disse-
me ela. - Aqui, você tem uma pessoa que luta por
sua felicidade.
Era verdade, mas não era tudo. Eu
precisava me libertar daquele mundo, ganhar
independência. Procurei um pequeno apartamento
para mim, num bairro afastado. Financeiramente,
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melhorava cada vez mais, pois a loja continuava
progredindo.
Uma tarde, fiz minhas malas e deixei a
pensão. Beijei Dona Maria com carinho e prometi
que sempre a visitaria, o que foi uma verdade.
Até que, pouco mais tarde, ela decidiu fechar a
pensão e vir morar comigo, como governanta,
amiga e - por que omitir? - como segunda mãe
mesmo.
Formei-me em Engenharia. Tal como
acontecera anos antes, quando me formara no
nosso ginásio, ela foi a primeira a bater palmas
quando me chamaram para receber o diploma.
Por um momento, senti que minha verdadeira
mãe nunca me abandonara. Não posso me
queixar da vida - creio que disse isso há pouco,
mas é bom repetir.
Profissionalmente, eu estava bem escorado
pela minha prática. No início da década de 50,
chegaram as primeiras televisões ao Brasil.
Vieram técnicos de fora para montar os
transmissores. Mas eu já tinha algum
relacionamento no setor e me chamaram. O
primeiro programa transmitido no Brasil teve um
diretor-técnico: eu.
Recebi um convite para viajar ao exterior.
Aprendi muito nos Estados Unidos. Voltei de lá
como um especialista. Publiquei uma tese sobre
eletrônica e ingressei em academias. Estava me
aproximando dos 30 anos e já era um profissional
respeitado. Mas me sentia infeliz.
Perdi o contato com a minha própria
felicidade. Eu lutara desvairadamente durante
tanto tempo, perseguindo a possibilidade de nos
amarmos. E depois de muitos descaminhos,
muitas quedas e espinhos, eu me armara cavaleiro
mas não tinha a quem oferecer o meu amor.
Numa de minhas viagens ao Brasil, soube
que atua família estava em extinção. E que tu
estavas quase noiva de um banqueiro. Moravas
agora no Rio. Provavelmente, alguém já tinha
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comentado no seio da tua família o meu sucesso
profissional. Imagine, aquele rapaz pobre da beira
do rio, o filho da costureirinha!
O que ninguém podia saber é que tudo
aquilo fora feito perseguindo um objetivo: o teu
amor.
Mas num certo sentido, tudo ficou mais
fácil. Nem vale a pena recordar mais nada.
***
Os anos se passaram. Hoje, tens medo que
a nossa Maria Clara esteja apaixonada por um
rapaz pobre. Por um jovem que estuda e trabalha
naquela garagem, ali na esquina da praça - a
mesma em que dançamos entre os bogaris
suspensos na noite. Tudo mudou, Helena.
Já não temos canteiros floridos nas
calçadas. O nosso ginásio fica fora do centro e
Vila Rezende até mudou o nome: hoje se chama
Rio Azul. Sim, nós voltamos e criamos esta
grande cidade.
Minha mãe tem um túmulo de mármore,
quase igual ao do teu pai - embora para eles isso
não faça diferença. O palacete dos Rezende eu
mesmo o destruí para construir esta casa que é a
nossa fortaleza, o nosso mundo. Nossa filha é
parecida contigo: tem teus olhos azuis e teus
cabelos louros. Por isso mesmo, talvez, tens
medo que ela sofra.
Temes em vão. Tudo foi incorporado na
grande cidade que conquistamos. Somos os
mesmos, mas nada mais é o mesmo. Temes por
Maria Clara mas te esqueces que um dia amaste
um rapaz que trabalhava obstinadamente numa
pequena loja de eletricidade. Hoje - sejamos
generosos, ou melhor, sejamos justos - daremos
uma oportunidade a esse rapaz e a Maria Clara.
Amanhã é o nosso aniversário de
casamento. Convidemos o rapaz para jantar
conosco. Será um jantar simples, só nós quatro.
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Talvez ele se sinta embaraçado ao sentar na mesa
de um presidente de usinas, de um professor de
eletrônica, de um catedrático de universidade,
autor de livros.
Nada disso importa. Deixarei este bilhete -
tão comprido que parece uma novela mal escrita e
mal-acabada - junto de tua cama. Quando
despertares, saberás toda a fragilidade de um
homem que conseguiu ser na vida somente aquilo
que o amor obteve dele e nele gerou esta
felicidade, esta fortaleza e - agora sim - esta
humildade feita de vitória e sofrimento.
Com a ternura de sempre, e mais uma vez
o amor de sempre, o teu
Henrique

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