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Entrevista

Sistemas de pensamento na educação e políticas de


inclusão (e exclusão) escolar: entrevista com Thomas S.
PopkewitzI

Ana Laura Godinho LimaII


Natália de Lacerda GilIII

Resumo

Nos discursos pedagógicos contemporâneos, a defesa do direito


à educação aparece quase sempre associada a enunciados
de teor psicológico e/ou sociológico sobre a importância de
se respeitar e levar em conta as diferenças individuais no
ensino, condição considerada indispensável para tornar a
escola inclusiva. Como se difunde essa convicção no campo
educacional? E quais os seus efeitos nas reformas educativas,
na formulação dos currículos, no trabalho dos professores e
nas experiências vividas pelos alunos? A partir dessas e outras
questões, tivemos a oportunidade e a alegria de entrevistar
Thomas S. Popkewitz, Professor da Universidade de Wisconsin-
Madison, que tem como um de seus principais interesses de
pesquisa a formação histórica dos sistemas de pensamento, em
particular o modo como se produzem, divulgam e implementam
ideias no campo educacional, por meio da formulação dos
currículos e reformas educativas. Nessa conversa, o autor
emprega o conceito de alquimia para pensar sobre os modos
como o currículo opera a conversão das disciplinas científicas
em disciplinas escolares. Popkewitz considera que os currículos
e reformas educativas expressam medo em relação às crianças
que parecem refratárias à escolarização, as quais são vistas
como uma ameaça ao futuro. Observa que essas crianças são o
alvo das políticas de inclusão, as quais, no mesmo movimento
que pretende incluí-las, as excluem ao nomear e tornar visíveis
suas “diferenças”, percebidas como desvantagens.

Palavras-chave

Currículo — Formação de professores — Inclusão/exclusão.


I- Tradução de Ana Laura Godinho
Lima.
II- Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil.
Contato: alglima@usp.br
III- Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
Contato: natalia.gil@uol.com.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1125-1151, out./dez. 2016. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022016420400201 1127
Systems of thought in education and school inclusion
(and exclusion) policies: Interview with Thomas S. Popkewitz

Ana Laura Godinho LimaI


Natália de Lacerda GilII

Abstract

In contemporary pedagogical discourses, the defense of the


right to education appears almost always associated with
statements of psychological and / or sociological content on the
importance of respecting and taking into account individual
differences in education, condition considered essential to
make the school become inclusive. How are this belief spread
in the educational field? Which are its effects on educational
reforms, in the formulation of the curriculum, the work of
teachers and the experiences of the students? From these and
other issues, we had the opportunity and the joy of interview
Thomas S. Popkewitz, Professor, University of Wisconsin-
Madison. He has as one of its main research interests the
historical formation of systems of reason, in particular
the ways in which ideas are produced, disseminated and
implemented in the educational field, through the formulation
of curricula and educational reforms. In this conversation,
the author employs the concept of alchemy to think about
the ways in which the curriculum operates the conversion of
scientific disciplines in school subjects. Popkewitz considers
that curricula and educational reforms express fears of
children who seem refractory to schooling, which are seen
as a threat to the future. Notes that these children are the
target of inclusion policies, which, in the same movement,
include and exclude them, by naming and making visible their
“differences”, perceived as disadvantages.

Keywords

Curriculum — Teacher training — Inclusion/exclusion.

I- Universidade de São Paulo, São


Paulo, SP, Brasil.
Contact: alglima@usp.br
II- Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
Contact: natalia.gil@uol.com.br

1128 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022016420400201 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1125-1151, out./dez. 2016.
Apresentação entre outras –, tem examinado os processos de
produção dos conhecimentos sobre as crianças,
os professores e os métodos de pesquisa em
educação, bem como seus efeitos nos modos de
administrar as condutas na escola.
Como pesquisador, um de seus principais
objetivos foi produzir instrumentos analíticos
para a compreensão das relações entre saber
e poder nos processos de escolarização. A
partir da noção de sistemas de pensamento,
Popkewitz argumenta que as categorias e
distinções que empregamos para entender as
crianças, os professores, o currículo, o fracasso
escolar etc. são parte do processo de produção
desses mesmos elementos, presentes nas escolas
da maioria das nações modernas. Em seus
trabalhos, tem procurado evidenciar como essas
e outras categorias, tais como “adolescente” e
“aprendiz por toda a vida” ou “aprendizagem
baseada em problemas” determinam não
Fonte: Arquivos pessoais do entrevistado. apenas nossa visão e a de todos os envolvidos
sobre o que se passa nas escolas, mas também
Thomas S. Popkewitz é professor do participam na estruturação e transformação dos
Departamento de Currículo e Instrução da modos de vida nessas instituições. Permitem
Universidade de Wisconsin-Madison, nos não apenas pensar sobre as pessoas e o que elas
Estados Unidos, e pesquisador na área de fazem na escola, mas também tornam possível
educação internacionalmente prestigiado. agir de determinadas maneiras em relação a elas,
Recebeu o título de doutor honoris causa nas assim como levá-las a conduzir-se de acordo
seguintes instituições: Universidade de Umeå, com certas regras e princípios e ainda orientá-
na Suécia; Universidade de Lisboa, em Portugal; las sobre como relacionar-se consigo próprias
Universidade Católica de Leuven, na Bélgica e (PEREYRA; FRANKLIN, 2014).
Universidade de Helsinque, na Finlândia. Sua Em suas investigações sobre os discursos
extensa obra corresponde a mais de trinta livros contemporâneos acerca do cosmopolitismo
e duzentos trabalhos entre artigos e capítulos na educação, Popkewitz observa que esses
de livros, muitos dos quais foram publicados se baseiam em princípios humanísticos, na
em outros idiomas, incluindo português, racionalidade e na busca pela aproximação de
alemão, grego, húngaro, romeno, chinês e toda a humanidade em torno de valores comuns,
japonês (Luzón; Torres, 2014). Seus interesses num mundo cada vez mais ameaçado por
de investigação relacionam-se à formação fundamentalismos religiosos e nacionalismos
histórica dos sistemas de pensamento (systems of extremos. Sendo assim, têm sido bem recebidos,
reason) no domínio educacional, especialmente como uma orientação adequada às políticas
na formulação dos currículos e reformas educacionais, em lugar da valorização anterior
educativas. Recorrendo a uma vasta literatura das culturas regionais, que subsidiaram tanto
produzida na Europa e nos Estados Unidos em práticas inclusivas quanto outras que se
diferentes áreas – sociologia do conhecimento, mostraram excludentes. Contudo, a análise feita
história cultural, história e filosofia da ciência pelo autor a partir de uma perspectiva histórica

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permite compreendê-los de outro modo. Ele nos alunos habilidades de comunicação;
observa uma transformação importante nesses capacidade de adquirir e utilizar informações
discursos, quando se compara a passagem do para solucionar problemas; disposição para
século XIX para o século XX com o início trabalhar em grupo de modo produtivo e assim
deste século, a qual se manifesta na maneira por diante. Portanto, ao se tornarem escolares,
de caracterizar o cidadão cosmopolita. Nas as disciplinas passam a ser, em primeiro lugar,
antigas escolas americanas do primeiro período, instrumentos para a fabricação do cidadão
enfatizavam-se os valores humanistas, a desejado, de modo que o aprendizado das áreas
racionalidade e a fé na ciência. Em nossa época, de conhecimento torna-se uma preocupação
o cidadão almejado passou a ser concebido secundária. O autor destaca a importância
como um indivíduo autodirigido, solucionador da psicologia para as alquimias do currículo
de problemas e inovador. Segundo o autor, essas e lembra que, desde a sua constituição como
novas expectativas trazem consigo o medo em disciplina científica, na passagem do século XIX
relação às pessoas que, por diversas razões, para o século XX, essa disciplina não se limitou
afastam-se dessa caracterização. Ao serem a descrever as mudanças pelas quais as crianças
descritas em termos da distância que as separa passam ao longo do tempo, mas também
dos objetivos desejáveis, elas se tornam alvo de produziu caracterizações da criança desejável,
medidas inclusivas cujo propósito é compensar em condições de se tornar um cidadão capaz de
suas faltas, corrigir seus desvios (PEREYRA; participar positivamente na produção do futuro
FRANKLIN, 2014). da pátria (POPKEWITZ, 2010).
Segundo o autor, na análise dos sistemas Embora reconheça que alguma
de pensamento relativos à escolarização, é preciso adaptação dos conteúdos para o aprendizado
levar em conta as distinções que se estabelecem escolar seja necessária, uma vez que os
entre os indivíduos e grupos. Frequentemente, professores e as crianças não são cientistas,
a elas correspondem práticas que, embora se artistas ou escritores, Popkewitz questiona
pretendam inclusivas, ao tornarem visíveis a subordinação de todas as áreas do
as diferenças, simultaneamente separam/ conhecimento à psicologia na elaboração dos
excluem justamente aqueles que se pretendia currículos, a qual, em sua análise, tem como
incluir. Popkewitz emprega um termo forte efeito limitar as possibilidades de pensar e agir
para se referir a essa discriminação e seu efeito na escola. Exemplo disso, a seu ver, é a maneira
mais perverso: abjeção. Para ele, as políticas como se procura educar para a resolução de
educativas que têm em vista a formação dos problemas nos Estados Unidos. A participação
cidadãos do futuro implicam invariavelmente em das crianças é estruturada tendo em vista
inclusão e exclusão-abjeção, e esses aspectos são ensinar-lhes a superioridade dos procedimentos
incorporados ao currículo (POPKEWIZ, 2015). científicos, seus sistemas simbólicos e modos de
Para pensar sobre como o currículo opera argumentação na produção do conhecimento
na formação dos estudantes, Popkewitz se vale verdadeiro, enquanto as conclusões da ciência
da noção de alquimia, recurso analítico que se deixam de ser ensinadas, sendo afastadas
refere ao processo de conversão dos conteúdos do horizonte da criança que deve aprender a
das disciplinas científicas e acadêmicas em questionar e a resolver problemas. O currículo
meios para a criação de disposições psicológicas torna-se artificial, distante das culturas próprias
desejáveis nos alunos. Nesse processo, qualquer às diferentes áreas do conhecimento, as quais
que seja a área do conhecimento – matemática, estão longe de ser praticadas de acordo com as
música ou outra –, todas passam a ter os mesmos regras gerais de um método científico. O autor
objetivos, os quais, nos currículos atuais das considera que o ensino das disciplinas escolares
escolas norte-americanas, incluem desenvolver poderia, alternativamente, levar os alunos a

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compreender as diversas e às vezes imprevistas avaliação permite comparar internacionalmente
maneiras como, em cada área específica, os a aquisição de conteúdos e habilidades
conhecimentos foram e são de fato produzidos, educativas de jovens em diferentes contextos
não a partir da aplicação de um conjunto de nacionais e medir a eficiência de diferentes
procedimentos seguidos de maneira linear até a sistemas nacionais de educação em propiciar aos
descoberta da verdade compartilhada por todos, estudantes os conhecimentos e as competências
mas, mais frequentemente, por meio de disputas, consideradas necessárias à atuação em um
de discussões não inteiramente superadas em mundo globalizado. Para Popkewitz, contudo,
torno do vocabulário, das questões a serem o PISA faz mais do que isso, pois compromete
investigadas e dos procedimentos a serem as políticas sociais e educacionais com a
seguidos para a transformação de determinados produção de modos de vida adaptados ao futuro
fenômenos em objetos, em dados científicos e imaginado/desejado, por meio da reformulação
em explicações sobre o mundo. dos currículos. É preciso considerar ainda os
Em suas análises mais recentes sobre impactos distintos desse programa em diferentes
os modos como se tem buscado transformar contextos nacionais, sobretudo seus efeitos de
os indivíduos em cidadãos cosmopolitas por inclusão/exclusão objetivados em números e
meio da educação, o autor se detém no exame medidas de desempenho.
dos sistemas de prestação de contas que, a seu Em setembro de 2015, Popkewitz veio ao
ver, têm impacto não apenas sobre as teorias Brasil para uma série de palestras e atividades
e as práticas educativas, mas funcionam como de pesquisa realizadas no Rio Grande do Sul.
uma tecnologia para a produção de novos Nessa oportunidade, atendeu calorosamente
tipos de pessoas. Na entrevista, o autor se ao nosso pedido e, em uma manhã chuvosa,
refere ao Programa Internacional de Avaliação concedeu-nos a entrevista que se lê a seguir, a
de Estudantes (PISA), da Organização para a qual foi realizada no âmbito das atividades do
Cooperação e Desenvolvimento Econômico projeto de pesquisa interinstitucional A escola
(OCDE), e tece considerações sobre suas obrigatória e seus alunos: acesso, permanência
implicações educacionais. É sabido que essa e desempenhos (1870-1970) (CNPq).

Referências

LUZÓN, Antonio; TORRES, Mónica. The scholarship of Thomas S. Popkewitz, 1970-2013. In: PEREYRA, Miguel; FRANKLIN, Barry.
Systems of reason and the politics of schooling: school reform and sciences of education in the tradition of Thomas S.
Popkewitz. New York: Routledge, 2014. p. 25-66.

PEREYRA, Miguel; FRANKLIN, Barry. Introduction. In: PEREYRA, Miguel; FRANKLIN, Barry. Systems of reason and the politics of
schooling: school reform and sciences of education in the tradition of Thomas S. Popkewitz. New York: Routledge, 2014. p. 1-22.

POPKEWITZ, Thomas. Reconhecendo diferenças e fabricando a desigualdade: ciências da educação, escolarização e abjeção. In:
CATANI, Denice Barbara; GATTI, Décio (Org.). O que a escola faz? Elementos para a compreensão da vida escolar. Uberlândia:
EDFU, 2015. p. 317-343.

POPKEWITZ, Thomas. The limits of teacher education reforms: school subjects, alchemies, and an alternative possibility. Journal
of Teacher Education, v. 61, n. 5, 2010, p. 413-421.

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Você poderia nos falar um pouco sobre incluía essas palavras psicológicas da época
a sua própria educação, sobre os eventos e sobre como as crianças aprendem.
influências que você reconhece como sendo Quando me dirigi a Millard, ele
mais importantes em sua formação? concordou em ser meu orientador. Eu lhe disse
que queria pensar sobre o novo currículo nos
Eu estava pensando sobre a questão da estudos sociais. Ele me disse: “Certo, mas você
memória. A memória envolve o esquecimento, sabe que todo mundo estuda currículo a partir
por meio de seus deslocamentos. Na construção das teorias psicológicas. Por que você não faz
da memória, você faz de alguma coisa a origem algo diferente?” E ele me fez ler o que era
e o lugar onde algo começou. Para uma vida conhecido como sociologia do conhecimento.
intelectual/acadêmica, é difícil dizer: o que A sociologia do conhecimento é um campo que
é formativo? Eu vou dizer o que me ocorre pergunta por que nós pensamos sobre as coisas
agora respondendo à questão, uma vez que da maneira como pensamos. E, particularmente,
não há uma maneira direta de dizer ou de a antiga sociologia do conhecimento focalizava
onde começar. Quando eu era criança, eu lia a ciência como comunidades de normas e
livros de história como se fossem romances, interações e comunicações sociais. Millard me
eu não sei porquê. E, por alguma razão e fez ler livros em que as pessoas falavam sobre
sem saber na época, eu fui para a Faculdade história, literatura e ciência como modos de
de Artes Liberais na cidade de Nova Iorque, “fazer” coisas e como esses modos de perguntar
onde eu nasci. O currículo das artes liberais e estudar tornam possível o que se conhece.
era orientado para ciências e humanidades e A sociologia do conhecimento era um
não havia especializações profissionais, como campo de estudos que se perguntava o que as
em educação, por exemplo. Eu estou sorrindo pessoas fazem quando elas dizem que fazem
enquanto falo, porque na verdade eu comecei história ou “o que é literatura?” Uma pessoa
a ser um engenheiro, mas não gostei disso. que eu li era um historiador francês chamado
Então acabei me especializando em história e Marc Bloch, que escreveu um livro chamado
educação elementar como subespecialidade Apologia da História: ou o ofício do historiador
e licenciei-me como professor primário. Eu (1964/2001). Trata-se de uma história bela
preciso admitir que o programa de educação e triste. Bela na medida em que seu filho
não era desafiador. Eu não sei por que, mas perguntava a Bloch o que ele fazia como um
não foi muito satisfatório para mim, embora eu historiador. Bloch era parte da resistência
gostasse de lecionar. francesa e escreveu o livro escondido dos
Houve serendipidade (serendipity) nazistas. Triste porque ele foi capturado e morto
também quando eu comecei o meu doutorado pelos nazistas. Outro livro foi o de Northrop
na Universidade de Nova Iorque. Foi por acaso Frye, chamado The Educated Imagination
que se definiu meu orientador. Eu me dirigi a (1964). Frye era um teórico literário. No começo
Millard Clements, um professor relativamente do livro, Frye explica que às vezes as questões
novo na universidade para pedir-lhe que mais simples são as mais difíceis de responder,
me orientasse. Era uma época de reformas como a questão “O que é literatura?” O livro foi
curriculares nacionais e os estudos sociais sobre escrito a partir dessa questão.
as reformas do currículo me interessavam. Os Eu achei fascinante essa literatura
estudantes não deveriam memorizar fatos, mas relacionada ao campo da sociologia do
ser conduzidos por meio de palavras como conhecimento. Enquanto lia esse tipo de livro,
“descoberta”, “investigação” e aprender a eu fiquei bravo e de certa forma me indignei com
generalizar e como fazer pesquisa. A linguagem o meu orientador em um dos nossos encontros.
do pensamento sobre a reforma do currículo Minha indignação não era com ele, mas com o

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fato desse campo da literatura ter sido escondido escolares, não eram contra essas disciplinas
de mim durante todos aqueles anos de estudo. O como modos de compreender.
que eu havia lido era história como substantivo, Millard era atencioso, muito boa pessoa
a qual contava narrativas ao leitor ou teoria e intelectualmente desafiador, de uma maneira
literária que explicava o que se deveria pensar que, pensando retrospectivamente, foi perfeito
sobre os romances. A questão da relação entre para mim, ao pensar sobre a pesquisa da minha
o que você sabe e como você sabe, que estava tese. Para a minha dissertação, eu comecei
no centro da sociologia do conhecimento, não lendo sobre ciência política como uma forma de
era tratada. Quando eu era instruído sobre conhecimento e como você pode entender essa
métodos – e isso ainda hoje – método era algo forma de conhecimento não como algo lógico
que você aprendia para obter conhecimento e ou filosófico, mas como uma construção social
não parte da produção do conhecimento. Um e histórica. A importância da sociologia do
exemplo simples disso é a divisão na pesquisa conhecimento foi ter proporcionado lentes para
entre cursos teóricos e cursos de metodologia. pensar sobre a ciência política como um campo
Os estudantes fazem cursos sobre métodos particular que se ocupa de questões sobre quem
quantitativos e qualitativos separados de seus cria as regras e exerce o poder. Foi um campo
modos de pensar sobre pesquisa e das questões que me levou a pensar sobre as regras e padrões
que estão formulando sobre os fenômenos sociais incorporados nos paradigmas que
humanos. Essa obstrução acadêmica, ao ser estabelecem o que se sabe e como se sabe. Foi
aberta, produziu a minha raiva em relação ao pensando sobre a ciência política dessa maneira
fato de que essa literatura tivesse sido escondida que a minha dissertação pôde enfocar modelos
de mim até então e o motivo pelo qual protestei de currículo que levam em consideração
(não de fato, mas foi esse o sentimento). as formas de ensinar paradigmáticas e
De volta à pergunta sobre a minha concorrentes. Mais tarde, em minha pesquisa,
formação. Essa leitura do meu passado é um eu recusei essa questão do currículo por meio
ponto de partida possível para pensar sobre a da ideia de alquimia das disciplinas escolares
minha formação intelectual. Foi a partir desse que discutirei a seguir.
modo de pensar que alguém na área de literatura Esse modo de pensar sobre a pesquisa,
comparada na minha universidade me sugeriu, as disciplinas e a escola que estava incorporado
uma década mais tarde, que eu iria gostar de ler em minha dissertação foi mantido, de diferentes
os escritos de Michel Foucault relacionados aos maneiras e por meio de uma literatura
meus interesses intelectuais. diversificada. Eu penso sobre como os sistemas
Millard Clements escreveu no campo dos de pensamento que ordenam e classificam o
estudos sociológicos, mas também estudou a que se pensa e faz na escola como tendo uma
estatística como um modo de conhecer. Ele não materialidade. A “razão” da escola é produzida
escrevia muito, mas o que ele escreveu ia contra em práticas sociais e históricas e retorna para o
a doxa contemporânea acerca dos propósitos mundo como aquilo que fazemos para superar
sociais da pesquisa e seus modos de análise, por os problemas sociais com os quais estamos
meio de uma tradição crítica, que eu associaria confrontados. Pensem apenas no uso do Pisa
com a sociologia do conhecimento. Ele também (International Performance Assessments of
era crítico em relação ao domínio da psicologia Students), da OCDE’s (Organização para a
e de uma sociologia funcional nas demandas Cooperação e Desenvolvimento Econômico)
por reformas e mudanças educacionais no e como sua codificação e padronização do
currículo. Suas objeções a esses campos eram ensino são usadas por políticos e pesquisadores
intelectuais e históricas, focalizavam suas para criar modelos de mudança das escolas
inscrições particulares no estudo e nas práticas e dos programas curriculares. Essa ideia do

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conhecimento como um fator ativo, que dá do governo federal vinculado às reformas
forma ao que se pensa e faz, constitui meu uso da Guerra contra a Pobreza e os programas
da materialidade quando eu falo sobre “sistemas da Grande Sociedade das décadas de 1960
de pensamento”, um uso muito diferente do que e 1970. Esses projetos frequentemente eram
é feito pelo materialismo histórico, por exemplo, destinados a pessoas designadas pelo governo
e pela perspectiva social estruturalista. e pelos pesquisadores como grupos sociais
desfavorecidos. Acabei sendo chamado a fazer
Como você começou a se interessar pesquisa sobre formação de professores índios
pela questão das desigualdades na escola e o americanos no norte de Wisconsin e por todo
modo como as reformas educacionais tratam o país. Esses projetos pretendiam melhorar a
desse problema? qualidade dos professores e também incluir
grupos minoritários em áreas pobres do país,
Essa é uma questão difícil porque, primeiro urbanas e rurais. Outro grande projeto estudava
de tudo e para evocar a memória mais uma vez, um programa de reforma da escola elementar
cresci em uma família judia liberal. Meu pai era por todo o país. Esse projeto focalizava escolas
carpinteiro e membro do sindicato e minha mãe de áreas pobres, urbanas e rurais, filhos de
era uma enfermeira que tinha, penso eu, um forte profissionais e escolas dominadas por grupos
compromisso social com a equidade e, como religiosos, embora fossem oficialmente escolas
tinha nascido nos EUA, uma forte crença no “laicas”. A pesquisa foi publicada como O mito
sonho americano (calvinista) do trabalho duro e da reforma educacional (1982) e descreveu
da educação numa sociedade baseada no mérito. etnograficamente as diferentes culturas da
Digo isso porque, ao menos onde vivi, existia escola onde contextos sociais e culturais
uma tradição que eu chamaria de liberalismo, eram importantes. Nossa análise, que é mais
interessada em eliminar a discriminação. institucional — depois os sistemas de pensamento
De novo, este é um momento de se tornram meu foco — é possível ver como
rememoração para construir quem “eu” sou. as desigualdades são produzidas na criação
Mas outras rotas se cruzam com essa, embora de diferentes disposições que orientam o que
não como uma história evolutiva. Quando me é ensinado, mas também as expectativas e os
formei na faculdade, comecei a ensinar em uma desejos presentes nos programas institucionais.
escola elementar no Harlem, na cidade de Nova Nesse último ponto, comecei a pensar
Iorque. O Harlem era uma área onde viviam na desigualdade menos como um problema
principalmente afro-americanos e hispânicos, de estrutura social e mais como um problema
a maioria dos quais vindos de Porto Rico. histórico sobre o modo como pensamos as
Os pais dos meus alunos trabalhavam duro e escolas e criamos nossas noções de diferenças.
tipicamente nos trabalhos mais mal pagos, Isso remete à minha menção anterior sobre
quando conseguiam emprego. As condições a “razão” como parte da produção material
dessa parte da cidade eram terríveis e isso abriu sobre o que “nós” somos e devemos ser e à
meus olhos para um mundo que eu ainda não mudança de pensamento para a sociologia do
conhecia. Eu cresci em uma área do Brooklyn conhecimento, como a maneira pela qual me
que era economicamente mista – algumas engajei no estudo da desigualdade por meio de
pessoas eram ricas, muitas pessoas, como meus inscrições e normas históricas que ordenam e
pais, não eram ricas – mas não existia crime produzem diferenças.
nem pobreza, ao menos até onde eu sabia. E Essas são minhas memórias sobre
não existia medo das ruas. como eu explico a pesquisa que faço. Isso é
Quando eu cheguei na Universidade serendipidade, mas essa serendipidade existe
de Wisconsin, o dinheiro de pesquisa vinha em circunstâncias históricas que tornam esses

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percursos possíveis e outros impossíveis. E falar criaram a escola secundária comum depois da
em caminhos percorridos é reconhecer que se Segunda Guerra Mundial e o grande problema era
você tomar pessoas que cresceram comigo e ver se ela estava promovendo mobilidade social
que têm o mesmo background que o meu, ou para os filhos das classes trabalhadoras. Desse
pessoas que foram para as mesmas escolas e modo, a pesquisa foi direcionada a isso. Eles
até com o mesmo orientador de tese, eles não ignoraram totalmente o problema da diferença
fazem o que eu faço ou têm necessariamente os para além daquilo que está relacionado com a
mesmos valores que os meus. É difícil dizer o estratificação social. Hoje, isso não é assim, e as
que foi formativo, mas é agradável pensar sobre questões sociais enfrentadas tornam impossível
isso e criar memórias. considerar apenas questões de estratificação. Os
franceses são outro exemplo. Eles não ignoram
Depois de tantos anos dedicados à a desigualdade, mas tiveram um modo de lidar
investigação das reformas educativas, nos com isso que não era adequado para considerar
EUA e no exterior, o que você identifica como questões de religião e cultura exteriores à
sendo seus problemas típicos? sua imagem laica. Se você vai à China, eles
reconhecem a desigualdade, mas de modos muito
Bem, um deles, claro, são as mudanças peculiares, que frequentemente se assentam em
na vida social e econômica. Isso foi denominado uma distinção rural/urbano que é epistêmica e
de Sociedade do Conhecimento, Sociedade da culturalmente diferente do Ocidente.
Inovação, e o tipo de pessoa que deve viver Portanto, o problema da desigualdade
nesse mundo, o estudante permanente. Penso está relacionado com o problema da diferença,
que essas frases, ou, como António Nóvoa, de algumas vezes chamada de multiculturalismo,
Lisboa, as chama, topoi, explicam um pouco outras de interculturalismo, e o problema
as mudanças ocorridas e como entendê-las. Os de modernizar as escolas. As reformas
discursos sobre a sociedade do conhecimento frequentemente dizem respeito a como usar
são uma ficção conveniente; apesar disso a a escola para mudar o modo como as pessoas
modernidade, que data do século XVIII, já dizia pensam a si mesmas, a sociedade e a história.
respeito ao conhecimento como governo da Isso é chamado de “aprender”, e o processo, de
conduta; e só agora, com diferentes epistemes, currículo escolar. E as reformas são feitas para
o conhecimento se tornou um descritor da descobrir o melhor modo de conseguir que
sociedade, da economia e da escolarização. Os aqueles excluídos (os socialmente desfavorecidos,
topoi deixam essas mudanças não escrutinadas em risco ou os grupos periféricos) aceitem as
nas reformas educativas. Então, um problema narrativas e imagens da sociedade de forma que
para a pesquisa é tratar esses topoi como parte possam ser inseridos e que os problemas sociais
dos eventos históricos por entender; com e as desigualdades possam ser remediados.
pesquisas que compreendam que esses modos Mesmo quando se fala sobre conhecimento
de falar sobre pessoas e diferenças são efeitos indígena e cultura local para valorizar o outro
de poder e de teses culturais sobre como as e reconhecer as diferenças, os programas de
pessoas vivem. reforma utilizam os sistemas epistemológicos da
Relacionado a isso, e eu penso que se psicologia e da sociologia, por exemplo, que são
pode ver isso se tornando mais evidente do que em geral funcionais. Um dos meus estudantes de
antes de diferentes modos, está o problema da doutorado, Licho Lopez fez um estudo histórico
desigualdade. Se eu tomo o norte da Europa, muito bonito de política e ciências sociais
eles focalizaram principalmente o acesso e a relacionado à inscrição do indígena como uma
mobilidade social como o problema do Estado e linguagem na educação da Guatemala, da virada
da pesquisa, por exemplo, na Suécia. Os suecos do século até o presente. O reconhecimento

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da diferença é produzido em processos cujos estratégia da crítica é também uma estratégia
princípios de tempo e espaço reinscrevem as de mudança, ao abrir a possibilidade de pensar
divisões e identidades que inicialmente deveriam coisas que estão fora do que já existe no quadro
ser desafiadas por meio do currículo. da nossa situação atual.
O filósofo politico francês Jacques É no âmbito dessa obrigação intelectual
Rancière focaliza, em parte, essa inscrição e política da pesquisa que se pode pensar sobre
da desigualdade para resolver problemas de a escola e suas possibilidades. Eu penso que
equidade. Ele argumenta que os pesquisadores a escola constitui uma forma institucional
começam pela pressuposição da desigualdade importante nas sociedades modernas, por criar
para atingir a equidade, o que, paradoxalmente noções de bem comum, mas ao mesmo tempo
produz desigualdade. Isso ocorre na forma de institui também um modo de criar distinções,
distinções entre, por um lado, os especialistas então essa sua dupla característica precisa ser
que produzem conhecimento sobre as pessoas e, continuamente examinada. As pessoas tentam
por outro lado, as pessoas a serem beneficiadas. lidar com a questão do multiculturalismo,
Cria-se uma hierarquia que separa a expertise mas também lidam com ciência e matemática
do sociólogo e do filósofo dos outros e e como melhorar a educação musical etc. Ao
produz desigualdade. Ele propõe começar pela mesmo tempo, as escolas se construíram sobre
igualdade ao formular a investigação; isso um legado particular do Iluminismo. Esse
muda a maneira como lidamos com a questão legado inclui um modo de pensar comparativo
da desigualdade, na medida em que não que inscreve as representações e as identidades
reproduz as divisões e a hierarquia da pesquisa das pessoas como a origem da mudança. Por
contemporânea. Seu livro sobre educação, O exemplo, pesquisas sobre a influência da
mestre ignorante, explora isso em relação às família e da comunidade sobre o aprendizado
suas perguntas sobre o que as escolas fazem. das crianças produziram classificações de
famílias diferentes como sendo “vulneráveis”.
Você encontrou alguma boa proposta A pesquisa busca formas de rever os modos
que merece ser mencionada? de vida e de comunicação na família para que
as crianças se saiam melhor na escola. Mas
Eu vou dar uma resposta dupla. A a própria noção de “vulnerável” assume a
primeira está relacionada ao problema da normatividade da família imaginária, que não
pesquisa e das comunidades intelectuais, à é vulnerável porque apresenta o estilo de vida
obrigação de reconhecer os compromissos e os modos de comunicação certos. A produção
sociais e políticos que se tem com uma da diferença e a divisão são constitutivos dos
sociedade que seja justa e igualitária, que é o padrões discursivos e não são intencionais por
de fazer buracos na causalidade do que é dado parte dos pesquisadores.
como natural e aparentemente inevitável. Esse Num certo sentido, meus estudos sobre
esburacar não é dizer que tudo é ruim, mas a reforma escolar pretendem entender como
mostrar que tudo é perigoso. Tornar aparentes as inscrições da diferença e da representação
os limites do presente e suas ortodoxias é um criam exclusões e abjeções em seus esforços
dos modos pelos quais o trabalho intelectual para incluir. O que eu estou dizendo é, em
e a pesquisa podem contribuir para manter primeiro lugar, que os próprios modos de
vivo um compromisso social. Isso não dispensa pensar que organizam as ciências da educação
o fato de que as coisas precisam ser feitas e e a reforma educacional não são apenas sobre
transformadas. O que isso faz é propiciar meios ideias e teorias, mas “ações” sobre o que é (im)
de pensar sobre as regras e os padrões que têm possível. Além disso, é importante reconhecer
ordenado o que é possível ou impossível. Essa que o conhecimento não é um epifenômeno do

1136 Entrevista - Ana Laura Godinho LIMA; Natália de Lacerda GIL. Sistemas de pensamento na educação e políticas...
real, mas é material. Eu também reconheço a sobre as escolas, as crianças, as famílias ou as
indeterminação, uma vez que não há garantias. sociedades, é parte de uma narrativa cultural
Agora o outro lado de mim. Se você me sobre as pessoas e as diferenças. Para brincar
perguntar a que tipo de escola eu gostaria que um pouco com as palavras, a estatística é um
minhas crianças fossem, eu recorreria a um li- modo de pensar que deixa o departamento de
vro de dois professores que ensinaram na esco- matemática e entra em outras arenas sociais
la-laboratório de Dewey, em Chicago, na virada para pensar abstratamente sobre as relações. A
para o século XX. Na pesquisa discutida em estatística ingressa na política e na pesquisa para
O mito da reforma educacional (1982), que eu renascer como parte de um diálogo cultural sobre
mencionei antes, há um capítulo sobre a escola, o presente e a mudança, em que funciona para
cuja cultura é descrita como “construtiva”. ordenar e classificar coisas e pessoas. Diferenças
Como eu disse antes, nós continuamente na escolarização que são padronizadas e
precisamos agir e procurar realizar nossas codificadas em avaliações internacionais são
convicções nas práticas cotidianas. Mas ao inscritas em registros culturais e políticos. Esses
mesmo tempo precisamos pensar sobre os registros nunca são meramente descritivos, mas
limites do presente como sendo importantes geram princípios de visualização por meio de
para pensar sobre a indeterminação do presente. um conjunto de discursos sociais, culturais e
políticos que produzem as classificações e as
Em vez de pensar a estatística como uma estratégias comparativas da medida. Foucault
descrição do real, você propôs compreender faz referência a isso quando fala sobre as grades
seus efeitos na produção de categorias para de práticas históricas que se associam para
classificar pessoas. Como esses efeitos são produzir objetos de reflexão e ação. Falar sobre
produzidos no campo da educação? o avanço das crianças envolve a associação
de ideias sobre infância, desenvolvimento
Se você pensar sobre a estatística e diferenças como qualidades de pessoas
como algo feito apenas no departamento de que podem ser especificadas e medidas
matemática da universidade e como um modo para localizar e identificar diferenças entre
de pensar que diz respeito apenas à sua lógica populações distintas. Esses diferentes discursos
interna e à majestade com que os estatísticos passam a coexistir com ideias sobre a natureza
organizam relações e quantidades, então dos sujeitos que estão sendo testados. Quer
trata-se da pura razão e não tem nada a ver dizer, a medição do Pisa, da OCDE incorpora
com cultura, sociedade e política. É possível, concepções do que é a ciência e a matemática
contudo, que a história da estatística nunca que permitem a padronização e a codificação,
tenha sido algo sobre números e lógica pura. de modo que itens possam ser construídos e
No século XIX, o nome que se deu à estatística modelos estatísticos aplicados para estabelecer
foi aritmética política, a qual se referia à polícia equivalências e diferenças, dadas as magnitudes
do Estado. Meu interesse na estatística é em entre as nações.
como ela é trazida para os domínios social e Sem a grade das práticas históricas para
cultural para dizer o que é, como as coisas são dar inteligibilidade à ideia de avanço, não
feitas e o que deveria ser corrigido quando seus haveria estatística comparativa incorporada
cálculos apontam para magnitudes vistas como ao Pisa, por exemplo. Deleuze e Guattari, de
portadoras de anomalias, como as desigualdades maneira análoga a Foucault, falam sobre isso
identificadas no desempenho dos estudantes como uma montagem, conexões e desconexões,
quando comparados por classe, raça e gênero. como em um rizoma, que habilitam objetos.
Para dizer de modo um pouco diferente, a Para pensar sobre isso por meio da ideia de
estatística, como um modo de contar a verdade cozinhar uma receita, a estatística é como um

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1125-1151, out./dez. 2016. 1137


ingrediente para fazer um bolo. Ela se combina Brasil por meio da participação padronizada
com diversos outros ingredientes históricos nesses diferentes lugares.
para tornar possível a medida. Quando a Mas há algo mais sobre o conhecimento
farinha é adicionada à mistura do bolo, quando prático. O prático não está relacionado a nada
os números são adicionados nas medidas da conhecido empiricamente, mas a um desejo
OCDE, esses números já não são apenas números que é abstraído ou a uma teoria imaginária
adicionados a outros ingredientes. O que eles sobre como a vida deve ser organizada. As
produziram é algo diferente. Quando o bolo sai medidas e os modelos de mudança da OCDE,
do forno, não são vistos os ingredientes, mas mas não apenas eles, tomam essas abstrações
determinados objetos sobre os quais se pensou e desenvolvem meios de padronizar, codificar
e agiu. O mesmo pode ser pensado em relação e administrar os elementos de seu sistema de
aos números do Pisa. Eles são incorporados em modo a atualizar o futuro desejado no qual
formas particulares de reflexão e ação que são as crianças devem tomar parte. Eu me referi a
diferentes da soma de suas partes individuais. esse tipo de ciência como utopia enclausurada.
As histórias que se contam são histórias sobre Quando a OCDE fala, por exemplo, sobre o Pisa
nações e pessoas, crianças e professores. Então como um recurso capaz de fazer com que as
você não pode pensar sobre os números como nações melhorem seus sistemas, as categorias
números puros, fora das práticas culturais. e a classificação incrustadas nas medidas
A minha pesquisa relativa às avaliações estatísticas são discursos sobre algumas noções
de desempenho internacionais explora a grade idealizadas sobre a sociedade e a nação que
na qual a estatística é incorporada para dar certamente não se referem ao futuro por vir.
forma àquilo sobre o que se pensa e sobre o Os modelos de mudança de sistema da OCDE
que se age. Essa grade não corresponde apenas vinculam-se a um conhecimento anterior, no
à ciência e à medida. As distinções e categorias qual as medidas e as correlações são dirigidas a
que ordenam a estatística são políticas, no quem o professor deveria ser, a quem a criança
sentido de que incorporam princípios culturais é, mas também sobre aos valores e normas
que diferenciam e dividem os tipos de pessoas. que organizam a família e a comunidade.
Penso que isso nos leva de volta à questão Eu vou falar sobre isso na segunda-feira,
anterior sobre a desigualdade, mas por meio de relacionando-o à pesquisa que eu fiz com
questões sobre os sistemas de pensamento que colegas suecos sobre avaliações internacionais
organizam e classificam as práticas educacionais. de desempenho. Eu penso que as medidas estão
Eu procurei compreender o programa da OCDE muito claramente preocupadas não apenas
para a avaliação internacional do desempenho com a criança, mas também com tudo o que
dos estudantes (Pisa) como incorporando cerca as crianças, para torná-las diferentes do
pressupostos culturais sobre a sociedade, as que elas são e, ao mesmo tempo, em inscrever
pessoas e a mudança que estão engastados na diferenças que produzem desigualdades em vez
episteme de suas mensurações. de igualdade.
O estudo do Pisa da OCDE evidencia Meus estudos do Pisa são sobre os efeitos
uma ironia nas práticas educacionais correntes. de diferentes padrões históricos que se associam
As afirmações públicas são de que as medidas e formam princípios que governam o que se
incidem sobre os conhecimentos práticos pode dizer, pensar e fazer. Os números se tornam
que os estudantes precisam para sua futura parte de um fenômeno social que diz respeito a
participação na sociedade. Há uma arrogância como alguém fala a verdade sobre o que é real,
projetada aqui de que a OCDE sabe o futuro sobre como os problemas devem ser vistos e os
da sociedade e pode medir seu presente em caminhos para corrigir os problemas sociais.
Singapura, Coreia do Sul, Estados Unidos e Minha pesquisa busca entender como esse modo

1138 Entrevista - Ana Laura Godinho LIMA; Natália de Lacerda GIL. Sistemas de pensamento na educação e políticas...
de pensar se conecta a uma rede de práticas estão reformulando o que fazem para preparar as
para dirigir atenção a quem os professores crianças para os testes, incluindo mudanças no
são e deveriam ser, e essas práticas também currículo para adequá-lo aos tipos de questões
incorporam imagens sociais e narrativas da que são feitas e assim por diante.
família, da criança e da comunidade. Deixe-me dar outro exemplo, o Nenhuma
Esse olhar para as estatísticas pode ser criança para trás, nome da legislação americana
situado em um campo da história da ciência que para tornar as escolas iguais para todas as crianças,
diz como a ciência e as teorias se tornam atores. de todas as condições sociais, econômicas e
O legado das teorias sociais e psicológicas em culturais. Sua intenção era a igualdade, mas seus
educação é tomar os humanos como sendo os princípios de usar testes para identificar as escolas
únicos atores. Essas teorias da agência definem e os estudantes que fracassam incorporam uma
a criança, o professor ou os pais como o ator série de princípios de desigualdade, que eu discuti
e a origem da compreensão e do pensamento acima, incluindo a inserção da desigualdade
sobre o que é feito e a mudança. A intenção e o em vez da igualdade, de que falei antes com o
propósito humanos ou as forças estruturais são trabalho de Jacques Rancière e que foi discutido
definidos como agentes causais inseridos em também em seu livro O filósofo e o pobre (2004).
teorias da escolarização e do aprendizado. O que Em todo caso, você pode ver os efeitos da
eu estou sugerindo é um outro modo de pensar estatística em dois níveis. No primeiro, os efeitos
sobre a agência, formado por meio dos sistemas nas condições históricas que tornam possível que
de conhecimento que ordenam, classificam esse seja um modo de pensar sobre as escolas, os
e diferenciam o que é possível (e impossível) professores etc. E no outro, que são mais efeitos
pensar e fazer. Nesse sentido, a estatística se relativos ao que as pessoas começam a pensar
torna um ator ao determinar o que constitui os como sendo possível e ao que as pessoas fazem.
problemas da educação, as características dos Eu estive preocupado principalmente com o
sistemas escolares que favorecem ou limitam primeiro nível.
a sua mudança e os parâmetros do que se
considera como soluções razoáveis. Você realçou o valor e a importância
Neste ponto eu preciso recorrer ao da associação de diferentes disciplinas,
trabalho de Ian Hacking, que está preocupado como a sociologia e a história na análise
com a maneira pela qual os modos de trabalho crítica das estatísticas. Você considera que
nas ciências produzem modos de pensar sobre essa perspectiva interdisciplinar também
as pessoas tendo em vista enfrentar problemas pode contribuir para problematizar uma
sociais, e como esses modos de pensar se voltam compreensão determinística dos dados
para a vida cotidiana para criar tipos de pessoas estatísticos na educação?
e então agir sobre elas, na forma de princípios
sobre o que elas são. A “atuação” das medidas no A resposta é “Claro que sim”. Se olharmos
cotidiano da escola é visível hoje na Finlândia, para a outra parte da nossa discussão, eu estou
que aparecia no topo nas mensurações anteriores continuamente trazendo bibliografias diferentes
do Pisa e agora está tentando descobrir como e aproximando-as, e não é que eu esteja
permanecer no topo por meio da reorganização fazendo isso intencionalmente, mas eu continuo
de suas escolas. Você também pode vê-la na encontrando referências relevantes para a minha
China, onde inicialmente Xangai foi autorizada compreensão da ciência, para os problemas da
a participar do teste e hoje estão expandindo a mudança e os princípios por meio dos quais as
amostra. Disseram-me que agora todas as escolas pessoas falam sobre os problemas da educação,
da China estão sendo solicitadas a preparar os professores e as crianças. Existe uma tendência
as crianças para o exame do Pisa. E as escolas em educação, mas não apenas na educação, de

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1125-1151, out./dez. 2016. 1139


saber bem todo o possível dentro do domínio sociologia histórica da ciência. Por exemplo, é
no qual você se especializou como pesquisador. aparentemente natural sentar em uma classe e
Isso leva a uma hiperespecialização, na medida tomar notas ou fazer pesquisa qualitativa que
em que você continuamente focaliza qualidades requer observações em sala de aula. Esse modo
diminutas dos fenômenos, de uma maneira que de observação requereu o desenvolvimento
não te permite pensar sobre as pessoas e as coisas de um tipo particular de “self” científico
do mundo para além de fronteiras pré-definidas que emergiu entre 1600 e 1800. Isso exige
que continuamente limitam suas questões e sua aprender como se distanciar da vida cotidiana
compreensão. e conceitualizar os acontecimentos do dia a dia
Eu considero esse tipo de especialização como coisas que importam. E eu gosto de ler
como incesto profissional. Você lê o que já é filosofia – particularmente filosofia histórica e a
interno à bibliografia familiar no âmbito da filosofia do continente europeu (versus filosofia
qual você realiza a sua pesquisa. Assim, a analítica, embora haja elementos da filosofia
pesquisa continua repetindo a si própria e britânica sobre a linguagem, por exemplo, que
resulta em um modo de fazer pesquisa onde se eu não pretendo dispensar). Esses diferentes
torna impossível questionar o que já se tornou percursos acadêmicos servem para pensar sobre
aceito como o modo de elaborar as questões, as questões do conhecimento e como se torna
os métodos e as soluções dentro das fronteiras possível pensar sobre as pessoas como atores
existentes sobre o que é “razoável”. Enquanto humanos e agentes, como efeitos do poder.
eu também penso dentro das fronteiras, que Eu leio através das disciplinas, o que
são os modos de pensamento organizados usualmente significa não encontrar respostas
de maneira paradigmática, minhas leituras diretas para aquilo sobre o qual eu estou
continuamente procuram encontrar lugares que trabalhando. Em vez disso, essas leituras se
me ajudem a questionar o que é tomado como tornam parte de um jogo intelectual para pensar
natural e inquestionável, para descobrir o que sobre e desafiar as distinções do senso comum
é inquestionável para a escola – como pensar e os modos de organizar a educação. Isso é
que as escolas são lugares de aprendizagem e as importante para compreender que os fenômenos
crianças são tipos de pessoas que “aprendem” – da escola não se ajustam a um campo disciplinar
perguntando como pesquisador sobre como específico, mas, se eu recorrer à frase de antes, são
esses objetos da escolarização se tornam formados por meio de uma rede ou conjunto de
inteligíveis como modos de pensar e agir. diferentes trajetórias históricas que não têm uma
Quando eu falo sobre ler bibliografias simples origem. O problema intelectual é como
diferentes, penso em referências que desenvolver modos interpretativos de pensar e
proporcionam meios de compreender e tornar estudar os modos como as coisas são engendradas.
frágil o que é dado como natural e inquestionável. Eu aprendi a provocar o meu pensamento
Não se trata de uma literatura específica e não por meio dessas leituras, por meio da filosofia,
está confinada em qualquer disciplina, mas história, sociologia, estudos culturais e teorias
cruza fronteiras. Eu leio histórias sociais e visuais, estudos feministas, entre outras, e
culturais, tais como as que se referem à formação então a cultivar bons amigos que me põem
cultural das repúblicas modernas e a ideia de em contato com essas literaturas que eu não
cidadão como um tipo de pessoa necessária poderia encontrar sozinho. Hoje estou lendo
aos governos. Eu aprecio histórias conceituais sobre a lógica cultural da computação. Eu não
para considerar como ideias de “social”, noções tenho certeza de como encontrei esse livro, mas
de tempo, ideias de progresso, por exemplo, é intrigante para pensar sobre números e o novo
tornam possível pensar e organizar a vida. Eu saber da sociedade e da educação chamado de
leio sociologia do conhecimento e sociologia e “big data”. Para responder à sua questão, não

1140 Entrevista - Ana Laura Godinho LIMA; Natália de Lacerda GIL. Sistemas de pensamento na educação e políticas...
é apenas ler bibliografias interdisciplinares, Isso talvez remeta novamente à
mas pensar sobre como situar o conhecimento questão anterior da interdisciplinaridade.
acadêmico que me permite jogar com ideias e Esse movimento através das disciplinas, que
me autoriza a “ver” e pensar sobre os problemas se relaciona com o que eu estudo, produz os
nos quais eu estou trabalhando em educação. problemas sobre como eu penso a minha própria
classificação disciplinar. Se eu recorrer aos
Como um pesquisador do currículo, diferentes convites para participar de atividades
como você vê a influência dos estudos profissionais, às vezes eu sou posicionado como
culturais nas teorias do currículo? sociólogo. E então, que tipo de sociólogo? Um
sociólogo cultural? Um sociólogo político?
Houve a Universidade de Birmingham Eu escrevi um livro, por exemplo, intitulado
que empregou teorias culturais em termos A sociologia política da reforma educacional
estruturalistas, no âmbito da tradição marxista. (1991), que pode me alocar no campo da
Paul Willis, por exemplo, foi um dos líderes nesse sociologia, embora eu não tenha certeza de
campo e influenciou os estudos críticos sobre a que todos os membros da área concordariam.
educação. Mas eu penso que há hoje um outro Às vezes eu passo por um historiador ou então
ramo dos estudos culturais que se relacionam, sou visto como um filósofo pelas definições dos
em parte, ao trabalho sobre os estudos outros. Eu penso que isso acontece porque não
psicológicos de Valerie Walkerdine, Nikolas se sabe o que fazer comigo quando se trata de
Rose e Nancy Lesko – que são diferentes uns classificação. E então eu vou para o campo
dos outros, mas apresentam uma familiaridade dos estudos sobre o currículo e alguns dos meus
por meio do modo como aproximam a cultura escritos são dirigidos a esse tipo de questões.
de questões que dizem respeito a relações entre Penso que essas diferentes classificações são
saber e poder que são históricas e propõem aplicadas, em parte, devido ao meu modo de
questões diferentes das que eram formuladas escrever e também ao tipo de livro que eu
na Escola de Birmingham. produzi e, parece-me, a percepção de outros,
Eu penso o que eu faço como sendo que pensam classificações como identidades.
estudos culturais. Estou preocupado em Mas eu vejo essa necessidade de
compreender como as pessoas criam os objetos localizar nas categorias existentes como aquilo
da vida cotidiana. Também estou interessado na que Rancière chamou de policiar as fronteiras,
história cultural, que é parte dos estudos culturais uma característica particular da modernidade.
contemporâneos. Essa aproximação requer uma Conhecer alguém consiste em situá-lo como
historicidade para considerar como princípios são pertencente a uma classificação existente de
gerados para formar teses culturais sobre quem um tipo de pessoa e população. Para mim, isso
as pessoas são, deveriam ser e quem não “cabe” também é um problema, uma vez que eu leio
– a relação entre os três serve para pensar sobre através de vários campos que eu descobri que
como a exclusão, a abjeção e as inclusões não não cabem perfeitamente nas fronteiras dos
são opostas, mas estão embutidas uma na outra sindicatos da academia. Por alguma razão,
e são parte do mesmo fenômeno. Cada ato de na minha escrita (e no meu pensamento), a
inclusão é um ato de exclusão, na medida em que tentativa de desnaturalizar o que é familiar
são relacionados – não apenas linguisticamente, na educação produz uma sintaxe e noções que
mas também historicamente. Essa é uma maneira não são familiares e eu não me encaixo nessas
diferente de entender o poder e as diferenças, distinções muito bem. Então, enquanto eu
portanto, daquela do grupo de Birmingham que se diria que um aspecto central nos meus estudos
vale das teorias do social estruturalismo, as quais é a questão da cultura por meio dos sistemas
incorporam oposições binárias. de pensamento, esses cruzam fronteiras,

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1125-1151, out./dez. 2016. 1141


evidenciam filiações ao mesmo tempo em que necessária e importante na organização da
as transgridem. escolarização e seus compromissos sociais e
políticos. Dito isso, meu interesse volta-se para
O que você pensa das perspectivas outros modos de ampliação do pensamento
multiculturais que reivindicam a igualdade sobre as práticas históricas e concretas por
no currículo? meio das quais as diferenças são produzidas.
Modernidade e Holocausto (2000), de Zygmunt
Há dois elementos nessa questão. Em pri- Bauman levanta uma questão importante. Ele
meiro lugar, Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant se pergunta como se tornou possível que os
escreveram um artigo muito interessante, alemães, detentores de grande parte da alta
“Sobre a astúcia da razão imperialista” (1999). cultura do Iluminismo, matassem milhões
O texto compara a noção americana de raça de pessoas. Sua resposta é que é importante
com o contexto histórico do Brasil. Os autores considerar a modernidade como algo que
dizem: vejam, vocês não podem usar as cate- tornou possível um modo de pensar que torna
gorias americanas de raça, porque elas incluem as pessoas capazes de constituir as diferenças
um conjunto particular de relações históricas e de uma maneira que pode transformar grupos
distinções que não são adequadas para pensar particulares de pessoas em não-humanos
sobre o Brasil. Esse último tem uma história e, portanto, como parte de um estado de
cultural e relações sociais muito diferentes que exceção. De certo modo, a discussão de Giorgio
entram nos princípios que definem diferença Agamben sobre o campo ecoa esse movimento
e raça. As categorias americanas não funcio- geral para se pensar sobre as consequências do
nam e é preciso ser muito cuidadoso para não estilo de pensamento comparativo que ganhou
ser epistemologicamente imperialista e, desse visibilidade no Iluminismo e hoje incorpora
modo, perder a historicidade do que se está es- as ciências contemporâneas que lidam com a
tudando. A ideia do multiculturalismo, quando inclusão social.
eu falo sobre isso, é para reconhecê-la por meio Eu escrevi sobre essa “comparatividade”
de uma formação histórica particular de raça da razão e a fabricação histórica das diferenças
e desigualdade, a dos Estados Unidos. A for- em Cosmopolitanism and the Age of School
mação e o contexto focalizaram principalmente Reform (2008). Eu argumentei nesse livro
as questões do poder soberano e as políticas de que as ciências sociais e psicológicas, desde
representação e identidade que essas questões a virada do século XX nos Estados Unidos
geraram em suas estratégias para considerar até atualmente, incorporam esse modo de
exclusões e grupos marginalizados. O foco na pensamento comparativo e seus gestos dúbios.
exclusão emerge principalmente em relação à Dúbio é uma palavra para expressar que
representação dos afro-americanos nas escolas, reformas e pesquisas carregam um gesto de
mas também como uma parte maior do movi- esperança de maior inclusão por meio das
mento pelos direitos civis relativos aos espaços reformas. E, relacionado a esse gesto (seu
públicos e às oportunidades econômicas. Hoje duplo), são simultaneamente engendrados
esse foco é dominante, mas ampliou-se para os medos em relação às populações que ameaçam
discursos sobre pessoas de cor, sobre gênero e a esperança de formar esses tipos de pessoas,
sexualidade, entre outras distinções, que bus- as quais incorporam essa esperança do presente
cam criar um panorama mais amplo no qual e suas imagens de progresso. Hoje os gestos
são expostas as desigualdades sociais. dúbios são expressos na linguagem da inclusão
Situar as perspectivas multiculturais que você encontra em grande parte da literatura
como um movimento social na educação é do multiculturalismo. Essa linguagem fala, por
reconhecer que elas têm sido uma intervenção exemplo, que “todas as crianças aprendem” e

1142 Entrevista - Ana Laura Godinho LIMA; Natália de Lacerda GIL. Sistemas de pensamento na educação e políticas...
fala dos conhecimentos que os grupos étnicos category of “women” in history (1988) e, com a
e minoritários possuem. Expressa a esperança filósofa feminista Judith Butler, que argumenta
de que a escola pode encontrar processos de que nós precisamos reconhecer que o pronome
instrução que capacitem crianças de diferentes “eu” implica concomitantemente o autobiográfico,
backgrounds sociais, culturais, étnicos e raciais na medida em que corresponde à pessoa que fala.
a se tornarem igualmente bem-sucedidas. Mas junto com o “eu” pessoal, há o “eu” histórico.
O gesto de esperança, no entanto, Esse último reconhece que discursos específicos
incorpora práticas culturais que estão formados historicamente circulam por meio da
frequentemente contidas na metonímia do fala para dar inteligibilidade ao que é dito.
“todos”; como em “escola para todos” e “todas É esse “eu” histórico que precisa ser
as crianças podem aprender”, por exemplo. considerado em qualquer projeto de compreensão
A inscrição do “todos”, contudo, incorpora da escola, seus limites e suas possibilidades.
um conjunto particular de princípios no qual Eu escrevi sobre isso um tempo atrás,
o “todos” assume uma unidade a partir da quando pensava sobre pesquisa educacional
qual se definem as diferenças. Quando nós e paradigmas (1982). Eu argumentei que a
olhamos para os programas curriculares, por pesquisa estava interessada na atividade e no
exemplo, as narrativas do ensino incorporam movimento, uma vez que seus próprios esforços
uma esperança de inclusão que, ao mesmo de mudança reinscreviam o próprio quadro
tempo, produz medos em relação ao tipo de seu contexto contemporâneo. O resultado
de criança considerado perigoso. Isso não disso, irônica e paradoxalmente, são teorias da
acontece abertamente, mas por meio das mudança que dizem respeito à conservação e à
distinções geradas sobre a criança a quem estabilidade e não à transformação.
“falta” motivação, a família “fragilizada” que Em um livro que eu editei, chamado
não oferece apoio para que a criança possa ter Foucault’s Challenge (1998), há um capítulo de
sucesso na escola, a criança em desvantagem, a David Schaafsma sobre uma estudante secun-
criança com baixa autoestima. Cada uma dessas dária afro-americana que estava grávida em
expressões evidencia o desejo de ajudar e incluir Detroit. A estudante era classificada com uma
a criança; apesar disso, simultaneamente gera distinção sobre “meninas adolescentes grávi-
princípios sobre as características, qualidades e das” que eram posicionadas como um proble-
capacidades que definem a criança diferente e a ma tanto para a escola como para a sociedade.
diferença corresponde a uma “falta”. Dizer que Essa população era composta principalmente
a criança apresenta “falta” de motivação já é por mulheres afro-americanas. Em um nível,
inscrever valores e normas sobre o que é “visto” você pode ler a narrativa em termos dessa
como motivação e separar a criança a quem jovem mulher resistindo às distinções social-
“falta” essa qualidade. O estilo comparativo mente dadas e tendo “voz”. Mas o discurso
de pensamento contém o que é geralmente por meio do qual essa mulher expressava sua
considerado como oposição: inclusão e exclusão “resistência” era formado em um sistema de
são parte do mesmo fenômeno. pensamento que definia a mulher como um
A ideia de gestos dúbios na razão tipo particular de pessoa que é diferente. As
comparativa do pensamento contemporâneo distinções por meio das quais a jovem mulher
se relaciona com a minha referência anterior a falava era a do “eu” histórico mencionado an-
Rancière sobre a desigualdade como produto dos teriormente. Elas incorporavam característi-
esforços para criar igualdade. A teoria feminista cas culturais consideradas patológicas sobre a
e a historiografia aproximaram-se dessa camada moralidade e a sexualidade que diferenciavam
de análise por meio da questão que Denise Riley essa estudante secundária da normalidade não
levantou em Am I that name? Feminism and the declarada das outras.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1125-1151, out./dez. 2016. 1143


Se eu tomo esse capítulo, ele oferece um Minha preocupação é simultaneamente
modo de enquadrar o multiculturalismo. Os teórica e metodológica; ou seja, como entender
estudos culturais aos quais estou me referindo o multiculturalismo no contexto de como a
para pensar sobre o multiculturalismo indicam diferença é ordenada; e como um acontecimento
uma alternativa aos estudos da Escola de de diferentes trajetórias sociais, epistemológicas
Birmingham, que também são centrais para a e políticas, que se encontram para criar o objeto
antropologia contemporânea. Eu estou sugerindo de reflexão – multiculturalismo. Transformar
que, enquanto questões estruturais sobre cultura, em acontecimento e tratar os objetos da
representação e identidade são importantes, escolarização como monumentos para uma
é preciso se perguntar sobre a produção do cultura. Tratar os objetos da escolarização
diferente, sobre tecnologias concretas de como monumento nos permite perguntar sobre
radicalização, por exemplo. Trata-se de jogar com como esses objetos – crianças e a construção
a ideia de cultura, historicizando os princípios das diferenças – tornaram-se historicamente
gerados sobre quem “nós” somos, devemos ser, e possíveis e plausíveis para pensar sobre as pessoas
quem são os abjetos desses espaços? como portadoras de diferenças individuais não
Parece-me, portanto, que questões como algo natural, mas explorar as lógicas
sobre diferenças construídas em narrativas e ou racionalidades específicas que estão em
imagens sobre os tipos de pessoas precisam ser operação nos conhecimentos da psicologia e da
consideradas como projetos do multiculturalismo. antropologia relacionados à educação.
Isso não quer dizer que atualmente não existam
no pensamento educacional americano trabalhos Alquimia é um conceito metafórico
politicamente importantes e intelectualmente importante em seus textos sobre o currículo
sensíveis feitos na perspectiva multicultural. e as reformas educacionais, que contribuem
Meus colegas Gloria Ladson-Billings, Carl para explicar como a pedagogia converte
Grant e Anthony Brown na Universidade do disciplinas científicas em conteúdos escolares,
Texas-Austin, de diferentes maneiras, propiciam com o objetivo de produzir a criança desejada
intervenções importantes para desafiar práticas e o cidadão do futuro. A psicologia é um
educacionais existentes. Ainda assim, tanto ao elemento central dessas alquimias. A seu
pensar sobre o que vem sendo feito e em minha ver, qual é a relevância da psicologia nos
preocupação com a estruturação epistemológica currículos de formação de professores?
da diferença há ainda a necessidade de
reconhecer, como fazem Bourdieu e Wacquant, Eu me aproximei disso anteriormente,
que as noções de multiculturalismo não podem então vou continuar o que havia começado a
ser traduzidas diretamente para pensar sobre dizer. As psicologias que usamos para pensar
problemas sociais e diferença. O compromisso sobre instrução e aprendizado e a pesquisa
e a tarefa exigem considerar historicamente educacional sobre matemática e ensino
a relação de epistemologia para as distinções de ciências, por exemplo, focalizam essas
culturais e as tecnologias que produzem a psicologias educacionais para considerar os
diferença. Isso está sendo parcialmente feito processos e efeitos da instrução. Eu argumentei
no trabalho de Weili Zhou, na Universidade que esses estudos não estão relacionados ao
Chinesa de Hong Kong, sobre a organização entendimento da ciência, da matemática e das
histórica e cultural no pensamento educacional artes. As psicologias educacionais são tecnologias
chinês contemporâneo e por Jamie Kowalcyk, sociais para produzir determinados tipos de
na Faculdade de Concordia, Chicago, sobre a pessoas. Incorporam teses culturais sobre como
educação intercultural italiana e seus princípios uma criança vive e como deveria viver. Essas
de exclusão e abjeção. teses dizem respeito à relação dos indivíduos

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com uma ordem moral e o pertencimento e uma filosofia analítica que define os campos
coletivo. Se você olha para a origem da disciplinares por meio da identificação de
formação das disciplinas escolares, você percebe seus conceitos e generalizações. Os modelos
que elas não foram criadas para ensinar música existentes de tradução do currículo tratam os
ou ciências para as crianças. Apareceram para campos disciplinares, se eu puder recorrer à
ajudar a construir o pertencimento coletivo, gramática, como nomes e não como a relação
proporcionando processos que ordenam as entre o que é feito (sua qualidade de verbo) com
sensibilidades, disposições e consciências das o que é admitido como sendo seus objetos (a
pessoas, particularmente os pobres, imigrantes qualidade de nome). Essa qualidade de nome
e populações raciais que eram temidas como no currículo inscreve tradições analíticas para a
populações perigosas na passagem para o compreensão do conhecimento, que existe como
século XX. Na virada para o século XX e na sendo independente de seus modos de produção.
formação da escola americana moderna, as As psicologias são sobre produzir determinados
psicologias educacionais foram delineadas tipos de pessoas e sobre efeitos de poder.
para criar estratégias de intervenção dirigidas Para dizer isso de modo um pouco
às novas populações que ingressavam na diferente, se eu fosse até alguém no departamento
escola “moderna” de massas. Para pensar de matemática que está trabalhando em algum
sobre isso historicamente, as ciências deveriam problema esotérico do campo e perguntasse:
criar conhecimentos que seriam úteis para “Como vai a sua resolução de problema?”;
produzir certos tipos de pessoas portadoras “Sua motivação está alta hoje?” A pessoa
das disposições e sensibilidades apropriadas à provavelmente olharia para mim como se
participação e ao “pertencimento” em práticas eu fosse meio maluco! Todas essas palavras
sociais e políticas. Essa produção de tipos de e formações psicológicas que organizam o
pessoas, retomando os gestos dúbios, criam ensino das disciplinas escolares não têm nada
exclusão e abjeção em seus esforços para incluir. a ver com os matemáticos e os cientistas, seus
Você encontra eventos homólogos em Portugal, modos de vida e suas relações com o que é
quando você lê o trabalho histórico de Jorge do gerado nesses campos do conhecimento. Os
Ó, Catarina da Silva Martins e Ana Paz. modelos de tradução do currículo cristalizam
Pensar sobre a escola e suas ciências o conhecimento disciplinar. Eles são
desta maneira proporciona um modo de se transformados em determinados conceitos
aproximar do ensino das disciplinas escolares. e generalizações. A pedagogia é o processo
Ensinar música e matemática são alquimias. A pelo qual as crianças devem ser levadas a
alquimia propicia um modo de pensar sobre as entender a majestade dos resultados de práticas
escolas como instituições que precisam realizar disciplinares – seus conceitos, generalizações.
uma transformação mágica dos conhecimentos Essa aproximação cria um mundo estável para
disciplinares. Eu digo “precisam” na medida as crianças apreenderem, por meio do privilégio
em que as crianças não são cientistas, músicos concedido às psicologias da aprendizagem.
concertistas ou artistas. A questão formulada Além disso, os modelos de tradução
pela ideia de alquimia é quais são as tecnologias do currículo contemporâneo incorporam
que traduzem os campos disciplinares, tais como gestos dúbios; há a esperança de transformar
a física e a música, em modelos curriculares que as crianças engajadas em temas de salvação
ordenam a instrução. sobre o futuro, e a esperança simultaneamente
Ao se perguntar sobre a alquimia que incorpora medos em relação às populações que
traduz o currículo escolar, uma vez que a ameaçam o futuro. Os gestos dúbios produzem
questão é posta, a resposta é relativamente fácil. exclusões e abjeções em seus esforços para
A alquimia é gerida pela psicologia educacional incluir. E, finalmente, a alquimia esconde os

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processos sociais, culturais e políticos por meio modelares para que os estudantes se engajem
dos quais o conhecimento é produzido. Isso no ensino das disciplinas escolares. Bruno
apaga qualquer elemento crítico na educação. Latour, Ian Hacking e Lorraine Daston, entre
Deixe-me dar um exemplo. Quando outros, integram um campo de estudos engajado
eu olhei para os padrões de aprendizagem de na tradução da ciência e da matemática em
matemática e música nos Estados Unidos, as duas discursos dirigidos à compreensão histórica
disciplinas escolares eram organizadas a partir das maneiras como e das condições nas quais o
de conceitos similares relativos às psicologias pensar e o agir “cientificamente” se produzem.
educacionais. Ruth Gustafson, que produziu uma Eu penso que, se você quer desenvolver o
bela dissertação sobre as origens da educação currículo escolar, essas são as especialidades que
musical nos Estados Unidos, e eu escrevemos um proporcionam espaços para o desenvolvimento
artigo sobre os parâmetros curriculares para a de modelos de tradução. O desenvolvimento das
educação musical e matemática (com Gustafson, psicologias, se necessário, é formado em relação
2002). Apesar de os dois campos de conhecimento à tradução de modelos e não separadamente.
parecerem muito diferentes quando se olha para Isso significaria que os modelos curriculares não
a matemática e para a música de conservatório, se iniciariam com o aprendizado das teorias,
por exemplo, os parâmetros curriculares sobre mas pelo questionamento a respeito do que as
o que as crianças devem aprender ou como pessoas fazem nesses campos disciplinares e
devem ser avaliadas eram quase os mesmos. Os artísticos para encontrar linguagens para os
parâmetros eram sobre o crescimento da criança, modelos curriculares que pudessem conectar-se
o desenvolvimento, as qualidades morais e com psicologias apropriadas.
as disposições. Eles incorporavam sentenças
psicológicas sobre solução de problemas, Você considera possível garantir
habilidades de comunicação, motivação etc. o mesmo direito à educação para todas
Então, ainda que o conteúdo, o que deveria ser as crianças, tendo em vista as diferenças
aprendido, fosse diferente, essas diferenças se individuais?
fundiam numa linguagem que era praticamente
a mesma. As disciplinas são tratadas como Essa é uma questão muito complexa,
conjuntos dados de conceitos e generalizações então eu vou primeiro tentar pensar sobre essa
que os estudantes aprendem, enquanto a complexidade para depois oferecer uma resposta.
psicologia fornece as regras e parâmetros para a Em primeiro lugar, a noção de “mesmos direitos”
seleção, organização e avaliação das aquisições me leva de volta à questão anterior sobre o uso
da classe. da palavra (uma ideia) “todos”. Isso é parte de
Se eu me volto para a sociologia do um modo de pensar específico – uma unidade
conhecimento e da ciência e para os estudos a partir da qual a diferença é estabelecida. E
da tecnologia, eu posso pensar em diferentes há o conceito de individualidade, incorporando
modelos de tradução para a compreensão das uma noção de diferença que é separada, pelo
disciplinas escolares da física, biologia ou menos textualmente, do social e histórico. E,
história. A literatura oferece um modo de pensar finalmente, o conceito de direitos que parece
sobre a física ou a matemática que é muito como algo que existe naturalmente para a
diferente daquele como elas são traduzidas, por escola e o pesquisador assegurarem que seja
meio da psicologia, nos modelos curriculares. respeitado nas práticas pedagógicas.
Essa última focaliza seus conteúdos e objetos de Então a complexidade envolve a relação de
reflexão como sendo separados dos “métodos mesmos (para todos), individualidade, e direitos e
científicos” ou, hoje, como os processos é preciso ver o sentido disso. Eu vou tentar pensar

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sobre eles em conjunto, em uma grade ou como Bem, eu estou fazendo uma distinção en-
parte de uma receita, para pensar sobre as três tre o que as escolas dizem que estão fazendo e
palavras como sendo razoáveis para falar por as condições que tornam historicamente possíveis
meio de suas conexões com outras práticas. esses modos de pensar e agir. Eu não assumo que
Deixe-me começar com “direitos”. as diferenças individuais são algo natural para
A questão dos direitos assume que há um o pensamento e a escola. Eu quero saber sobre
consenso unificado sobre o que é bom, as distinções e classificações dadas para moldar
ético e moral. Esse consenso e harmonia o que é possível fazer, uma vez que as pessoas
aparecem como uma natureza transcendental sejam “indivíduos”. Isso significa pensar a classi-
e a-histórica para a humanidade. Jacques ficação sobre os indivíduos como sendo histori-
Rancière tem um bom artigo sobre os camente produzidas (e produzidas recentemente)
direitos humanos que se relaciona com isso. para organizar crianças, professores e noções de
Ele questiona quem é o sujeito dos direitos igualdade. Meu propósito não é aniquilar o pen-
humanos e argumenta que se trata de uma samento sobre o indivíduo. É desnaturalizar o que
abstração que parece não se conectar a nada é dado como natural sobre as diferenças individu-
e, ainda assim, aparece como algo natural que ais, por exemplo. E, ao fazê-lo, entender os limites
implica uma polaridade que divide aqueles dos modos atuais de pensar e agir, como os estilos
que têm direitos e aqueles sem direitos, os comparativos de racionalidade e os gestos dúbios
quais dependem do poder soberano. de exclusão e abjeção de que eu falei antes.
A palavra “mesmo” assume tanto a Essa problematização do senso comum
unidade do “todos” como seu sentimento, e é, da escola como um efeito de acontecimentos
parece-me, um modo de honrar o compromisso históricos é um modo de pensar sobre a
com a ideia de equidade. Contudo, como eu mudança. Carrega a possibilidade de abrir outras
disse antes, o “todos” assume uma unidade a alternativas, além das que já estão disponíveis
partir da qual se inscrevem as diferenças. no presente. Embora não haja garantias, esse
E, então, há o compromisso com as modo de historicizar a escola e seus métodos
“diferenças individuais”. Se eu for histórico em de pesquisa não inscreve uma teoria sobre a
relação a isso, a ideia de indivíduo ocorre no fabricação de tipos de pessoas e o governo do
século XVIII, ao mesmo tempo em que a ideia futuro, como a que está implicada na pesquisa
do social. As duas estão interligadas. Falar sobre social e educacional contemporâneas. Se eu
o social é assumir algo sobre os indivíduos e retorno à ideia das diferenças individuais, as
vice-versa. A ideia de indivíduo está sempre teorias sobre individualização e diferenças
relacionada a alguma ideia do social – falar individuais incorporam princípios sobre tipos
sobre a resolução de problemas requer algumas de pessoas e o que importa como sua “natureza
qualidades sociais e valores para considerar o humana”. A tarefa da escola se torna atualizar
que é e o que não é resolução de problemas. e administrar o que é dado como natural.
Então, perguntar sobre diferenças individuais Pesquisar é encontrar os melhores métodos ou
é perguntar sobre o social envolvido na ideia processos de aplicação das teorias que definem
das diferenças e sobre o que conta quando as as diferenças individuais. Mas essa teoria não
pessoas falam, pensam e agem. diz respeito ao que existe, e sim a um modelo
de criança que a pesquisa deve atualizar por
As escolas, pelo seu modo de meio da padronização e do cálculo. Isso é um
funcionamento, tornam visíveis as diferenças pouco irônico. Individualizar é padronizar. E
individuais, na medida em que crianças da no topo dessa ironia está o fato de que essa
mesma idade devem aprender o mesmo pesquisa é entendida como mera descrição. Mas
currículo ao longo do mesmo período. não é esse o caso.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 1125-1151, out./dez. 2016. 1147


Então a questão é em si mesma histórica. associado com a invenção da república moderna.
É para entender a grade de ideias, narrativas Não é por um acidente histórico que a bandeira do
e conceitos que diferenciam e distinguem Brasil leva o lema “ordem e progresso”, tomado
tipos de pessoas que incorporam princípios de de August Comte no século XIX. O positivismo
normalidade e patologia – eu volto novamente incorpora temas específicos relacionados ao
a pensar sobre a inscrição dos gestos dúbios da compromisso do Iluminismo com a razão e a
“razão” educacional. ciência na formação do pertencimento coletivo.
Você não pode ter a noção moderna de governo a
A escola moderna se baseia na crença de menos que haja pessoas que sejam responsáveis e
que o conhecimento científico tem o poder de participem da criação do bem comum.
aperfeiçoar os seres humanos e as sociedades O que é interessante para mim ao pensar
e conduzi-los ao progresso. Teorias críticas sobre isso é que os fundadores da república
têm questionado essa crença de diversas americana têm uma profunda dívida com as
maneiras. A partir da sua perspectiva crítica, ideias do Iluminismo que eles transpuseram
qual poderia ser a relevância da escola para para a teoria política do Estado e do cidadão.
a sociedade e os indivíduos contemporâneos? Mas eles não acreditavam que as pessoas fossem
capazes de pensar como o cidadão cosmopolita
Eu penso que as tradições crítica e liberal do Iluminismo. A educação devia ensinar às
têm uma dívida em relação ao Iluminismo (Marx crianças sobre os seus sentimentos, mas deixava
e Descartes tinham) e à ideia iluminista sobre a para as elites a tarefa de produzir conhecimento
razão e a racionalidade no processo de mudança. sobre as pessoas e ordenar os processos de
Mas há diferenças no modo como essa dívida é mudança. Quando eu falei sobre a alquimia
aceita e utilizada. Eu não sei como formulá-lo, nas disciplinas escolares contemporâneas, esse
a não ser talvez dizer que existe uma atitude medo das pessoas é incorporado nos modelos
do Iluminismo, que orienta a nossa atenção de currículo que organizam o que é conhecido
para a história humana e para a ação, que dá e os modos de conhecer. Parece-me que a
a possibilidade de intervir e continuamente relevância da escola está em encontrar novos
procurar honrar nossos compromissos sociais e modos de traduzir, que preservem a honestidade
políticos. Mas com esse compromisso existe a e a integridade do conhecimento disciplinar, o
obrigação de continuamente questionar como que inclui modos de engajamento na dúvida e
as coisas são feitas e seus limites. Essa é a não apenas na ordem e na disciplina. Chamar
ideia da dívida que acompanha os esforços de algo de “resolução de problemas” não leva ao
melhoria social. O Iluminismo foi esse duplo: envolvimento com as questões substantivas de
um modo de agir para melhorar o mundo que, mudança, ação humana e questões de liberdade,
ao mesmo tempo, requeria uma atitude crítica que estão na interface entre as teorias políticas
dirigida ao que estava sendo feito. As duas modernas e a escolarização.
trajetórias precisam ser pensadas em conjunto. Parece-me que parte do argumento
Questionar o que é natural a respeito do mundo de Rancière se refere a que muito do que nós
é parte do processo de torná-lo melhor. assumimos como democracia diz respeito a
Há a promessa da escola moderna e eu não policiamento. Seu argumento de que você
estou pronto para renunciar a ela. Mas com essa não pode institucionalizar a democracia
promessa há o reconhecimento da importância é importante. O que as escolas fazem é
da dúvida e daquilo que atualmente designamos institucionalizar a democracia e seus tipos de
como estudos críticos. A escola moderna é, se pessoas. Isso reinscreve os gestos dúbios de que
vocês quiserem, um nobre experimento do século eu falei antes. Talvez O mestre ignorante, de
XIX. Esse experimento esteve estreitamente Rancière, ofereça uma alternativa relevante nos

1148 Entrevista - Ana Laura Godinho LIMA; Natália de Lacerda GIL. Sistemas de pensamento na educação e políticas...
dias de hoje tanto para a escola como para as a interpretação é delimitada, e respostas
questões sobre igualdade. elaboradas para parecer razoáveis. Conforme Ian
Um último comentário, relacionado à Hacking, operamos com estilos de pensamento
pesquisa, quanto à tendência de reduzir a pesquisa que não são empiricamente comprovados, mas
a métodos que são de fato inscrições de técnicas, que oferecem os princípios a partir dos quais
como quando você usa ‘métodos’ qualitativos ou nós conhecemos e produzimos os objetos de
quantitativos. Os historiadores fazem a mesma reflexão e ação. Sendo assim, os métodos são
coisa ao fazerem as técnicas se parecerem com importantes e devem ser conhecidos apenas
métodos. Historiadores frequentemente posam quando considerados no interior de um estilo
de positivistas quando tomam o arquivo como de pensamento.
o repositório da história. A tarefa do historiador O problema para mim é aquele que
torna-se descobrir o sentido do que está no Feyerabend discutiu em Science against
arquivo. Foucault falou sobre o arquivo de Freedom (1974). Ele escreveu que costumava
um modo diferente. Trata-se de transformar ir a encontros e pensava que as pessoas ao
coisas em arquivo e tratar ocorrências da vida e redor dele eram profissionais incompetentes,
afirmações como acontecimentos, para entender que não conheciam as questões que estavam
as condições que os tornaram possíveis. Isso é formulando. Então, ele percebeu que as pessoas
algo diferente de “ver” coisas como dados. não eram incompetentes. O problema era o
É importante reconhecer que toda a modo como eram educadas para apagar a
pesquisa envolve sua encarnação em estilos memória e produzir uma ignorância histórica
de pensamento através dos quais os problemas sobre o modo como as questões que formulavam
são definidos, os métodos são produzidos, haviam se tornado importantes.

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