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Araraquara-SP
Junho, 2005
Abstract:
This dissertation aims to rescue from literary oblivion or at least from a minor categorization
within Brazilian Literature the work of Gastão Luis Cruls, “the great Flemish flower” in the
words of Raquel de Queirós. Based on tenets of Reception Theory or the Aesthetics of
Reception, the author of this study proposes a new aesthetic perception of the dual
characteristic of Cruls´s novels and short stories: regionalism and psychological analysis.
Critical texts about Cruls´s achievements from 1933 to the present are brought to the fore and
made audible in “dialogue” with present day view. The novel A Amazônia misteriosa (1925)
and the diary about his participation in General Rondon´s mission (“Missão Rondon”:
Óbidos-Tumucumaque) to the Amazon in 1928/29, and which was published with he title A
Amazônia que eu vi (1930) are analyzed and contrasted as narratives that blur the distinction
between fiction and reporting, mixing the fantastic and the travel genres. An anthology is also
presented so as to make available to the reader of today the critical analysis of Cruls´s oeuvre,
his critical texts published in the “Boletim de Ariel” and some of his short stories of mystery
and phantasmagoric terror. Therefore, this research is an attempt to (re)discover the
contemporaneousness of Gastão Luis Cruls´s thematic diversity in which close observation of
Nature and human nature, of thought and imagination are artistically brought together to
reveal greatness and misery, dream and reality in this terrae brasilis. It is also an attempt to
require a larger space in Brazilian Literary History to the work of this artistic shaman.
Keywords: Gastão Luis Cruls; A Amazônia misteriosa; A Amazônia que eu vi; Brazilian
Literature; Literary Reception; Fantastic Narrative.
15
Resumo:
16
Dedico
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, na sua inaudita graça, por mais um trabalho que se inicia. E, se a
busca da realização é um caminho seguro, é graças também à paciência, à amizade e a uma
orientação que despertou o pesquisador, amadureceu o crítico e acreditou no orientando
agradeço, pois, com a gratidão que as palavras não podem traduzir, à minha orientadora, a
Profa. Dra. Maria Clara Bonetti Paro, sabendo que o percurso para o crescimento intelectual é
árduo, difícil, muitas vezes solitário e pouco compreendido, porém, trata-se da busca de um
tesouro que não tem preço.
Nesse caminho, às vezes é preciso ser tomado pelas mãos para continuar indo em
frente. Ao longo da jornada, quando isso se fez necessário, não faltaram as mãos solidárias do
amigo e professor José Antônio de Souza, ajudando a dar os primeiros passos e estando
presente nos momentos que se fizeram muito difíceis.
Por falar em primeiros passos, é preciso agradecer profundamente à Profa. Dra. Maria
Helena de Queiroz, minha professora na graduação, e também amiga, que me apresentou o
nome de Gastão Luis Cruls, as primeiras referências sobre esse autor e o romance A
Amazônia misteriosa do artista Cruls. Foi mesmo um achado!
Com esse achado, tornou-se possível uma proximidade com a Profa. Dra. Alda Maria
Quadros do Couto, que contribuiu com a ajuda indispensável na difícil tarefa de elaborar um
projeto e de descobrir o que realmente queria este pesquisador com relação ao estudo de
Gastão Cruls. E não foi só isso. Ainda pude contar com a amizade e a estrela espiritual da
amiga Alda.
Chegando em Araraquara, para iniciar o Mestrado, tornou-se pessoa importante em
minha vida o amigo Josafá que, mesmo sem me conhecer, recebeu-me em sua casa até que
pudesse, finalmente, andar com os próprios pés.
Mas o começo de cada etapa é sempre difícil, e muito valiosa foi a ajuda dos
professores da Pós-Graduação da UNESP, com a disposição de seu tempo e o oferecimento de
livros e outros materiais úteis à pesquisa sobre Gastão Cruls. A propósito, também os
profissionais da Secretaria da Pós e do atendimento bibliotecário não são aqui esquecidos,
nem minha gratidão passaria em linhas brancas. Além deles, o Marcos Celso e a Tamiko da
Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo, a Elaine e a Lucrécia da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro e algumas profissionais da Pró-reitoria da UNESP, que deram,
gentilmente, a atenção que este estudante precisou durante o trabalho de pesquisa de campo,
18
são recordados(as) nesses agradecimentos. Naturalmente, lembro o Sr. José Mindlin e a
secretária de sua Biblioteca, a Cristiane, pela generosidade no atendimento e, já, por
oferecerem as portas abertas da Biblioteca José Mindlin à continuidade das pesquisas sobre G.
Cruls.
Agradeço também à Profa. Dra. Karin Volobuef e à Profa. Dra. Ana Luiza S.
Camarani, que deram uma contribuição inestimável, com correções e sugestões, na fase de
qualificação deste trabalho, compondo minha Banca Examinadora. Mas as contribuições não
pararam aí, uma vez que, em tantas oportunidades, novas atenções se fizeram necessárias e
foram atendidas. Ainda nessas linhas, agradeço ao Prof. Dr. Sidney Barbosa, dono de uma
palavra amiga e que, junto dos amigos Márcio Roberto Prado, Fábio Lucas Pierini e Mauri
Cruz – aos quais, aproveitando o ensejo desejo também agradecer – favoreceu sempre as
oportunidades de discussões interessantes no âmbito da academia, mas também do coração
humano. Pude contar, pois, com amizades que ajudaram um sonho e um trabalho a continuar.
Trabalho que contou também com a compreensão dos mais próximos, que sempre
estão perto, e dos quais, em certos momentos, foi preciso o distanciamento, a bem do
exercício acadêmico. Lembro, por essa razão, e com muito carinho, da minha irmã Tânia, a
quem tenho por filha; do meu cunhado Roberto, de sua esposa, a minha irmã Sônia e da
filhinha do casal, minha sobrinha Nayara. Juntos, eles demonstraram tolerância e amor na
partilha da privacidade, ao longo dos meses em que lhes fui, literalmente, um necessitado.
Ao amigo-irmão Sílvio de Oliveira, à sua esposa Josana, ao Silvinho e à Diúlia, a
gratidão de um desconhecido que se tornou da família. Aos meus pais e irmãos, por adoção na
criação tardia, Abadio, Madalena, Ricardo e Eduardo, respectivamente, o agradecimento de
um quase peregrino. Pela ternura e alegria, sou sensível e grato a Josias, Bete, Paulo e
famílias.
À CAPES, cuja bolsa me valeu 23 meses de Mestrado, e sem o que, talvez esse
trabalho não se realizasse, fica a minha sempre lembrada gratidão.
A todos, enfim, o abraço sincero do ser humano, e o reconhecimento do professor-
estudante e do cidadão Cláudio Silveira Maia.
19
Sumário
Introdução Geral.......................................................................................................................14
Volume 1
Sessão 1
Primeiras palavras....................................................................................................................16
Situando o autor....................................................................................................................... 20
20
Capítulo 3: Diálogo com a Recepção de Gastão Luis Cruls na crítica
brasileira de 1933 aos dias de hoje......................................................................75
Considerações.................................................................................................187
Sessão 2
21
4.1 Apresentação............................................................................................192
4.2 O Romance...............................................................................................194
4.3 O Diário....................................................................................................196
4.4 De um ponto qualquer entre a fantasia e o documento............................198
4.5 Alguns tipos de relações e fatos estruturais............................................. 202
4.5.1 O tucupi, a caamembeca e a valentia........................................... 202
4.5.2 Coincidências............................................................................... 205
4.5.3 O lar e o Natal.............................................................................. 209
4.5.4 Experiência.................................................................................. 214
4.5.5 As diferenças................................................................................216
4.5.6 O fabulário....................................................................................219
4.6 Epílogo.....................................................................................................220
Capítulo 5: Do mito e da lenda ao reino do fantástico em: A ilha das almas selvagens
(Wells) e A Amazônia misteriosa (Cruls).............................................................................. 229
5.1 Apresentação............................................................................................229
5.2 O Fantástico com H.P. Lovecraft, Louis Vax, Jean Molino.................... 230
5.3 Instâncias do conteúdo mítico-lendário................................................... 232
5.4 O mito de Platão e o mito de Aristóteles................................................. 233
5.5 A conjunção mito e lenda e a instauração do fado...................................234
5.6 Nosso texto nossa ronda no reino do fantástico..................................236
5.6.1 A materialização do medo e o espreitamento da morte............... 237
5.6.2 Nossa noite no Reino do fantástico..............................................238
5.6.3 Nossa atmosfera........................................................................... 239
5.6.4 Nossa narrativa fantástica............................................................ 240
5.6.5 O marcar do tempo.......................................................................240
5.6.6 Conseqüências do efeito surpresa e uma volta pelo imaginário...241
5.6.7 No seio da morte.......................................................................... 242
5.6.8 O encontro com o medo e a busca de refúgio.............................. 243
5.6.9 Pega-pega e esconde-esconde...................................................... 244
5.6.10 A tormenta como efeito da(s) metamorfose(s)............................ 247
5.6.11 Criaturas do medo: a dor, o mal e os monstros............................249
5.7 Epílogo.....................................................................................................252
5.7.1 Curioso não resiste.......................................................................253
Últimas palavras.....................................................................................................................256
Referências Bibliográficas......................................................................................................265
...
22
Volume 2
1933
1934
1936
1944
1948
1949
1950
23
1952
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1963
24
1964
1965
1966
1967
1973
1977
1978
1979
1986
1987
1988
25
1995
1997
2002
2003
Conversa Fiada.......................................................................................................................469
Frank Harris............................................................................................................................470
Banjo...................................................................................................................................... 471
Sang Reservé..........................................................................................................................472
Albert Samain.........................................................................................................................473
Foujita.....................................................................................................................................474
Lasar Segall............................................................................................................................474
Nas Serras e nas Furnas..........................................................................................................475
O Incrível João Pessoa........................................................................................................... 475
La Ronde de L’Amour........................................................................................................... 476
Badú....................................................................................................................................... 477
La Pavlova..............................................................................................................................478
Um Vaqueano do Desconhecido............................................................................................478
Gondim da Fonseca................................................................................................................480
To the Gallows I must Go......................................................................................................480
Visitantes Estrangeiros...........................................................................................................481
Escritores do Norte.................................................................................................................483
Ecos........................................................................................................................................484
Os “descobridores” de Fawcett.............................................................................................. 486
“Maria Luiza”.........................................................................................................................488
Miscelânea..............................................................................................................................489
O Brasil Continua, Clarissa, Censura Estrábica.....................................................................490
Stanley....................................................................................................................................492
“L’ Homme du Brésil”...........................................................................................................494
Miguel Couto..........................................................................................................................496
26
Antonio Torres....................................................................................................................... 497
Visita Inesperada....................................................................................................................498
“Nijinsky”...............................................................................................................................500
Brasiliana................................................................................................................................501
Ronald de Carvalho................................................................................................................502
Georges Raeders Le Comte de Gobineau au Brésil..........................................................503
Autobiografias........................................................................................................................504
Comidas..................................................................................................................................506
Três Livros Valiosos.............................................................................................................. 508
O Livro de Silva Mello...........................................................................................................509
Depoimento de Gastão Cruls sobre seu livro Aparência do Rio de Janeiro..........................512
O espelho................................................................................................................................515
Meu sósia................................................................................................................................521
Contas brabas......................................................................................................................... 527
A patativa............................................................................................................................... 532
Noites brancas........................................................................................................................552
A noiva de Oscar Wilde......................................................................................................... 559
G. C. P. A...............................................................................................................................568
O noturno nº 13...................................................................................................................... 575
27
Volume 2
1933
1934
1936
1944
1948
1949
1950
28
1952
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1963
29
1964
1965
1966
1967
1973
1977
1978
1979
1986
1987
1988
1995
30
1997
2002
2003
Conversa Fiada.......................................................................................................................469
Frank Harris............................................................................................................................470
Banjo...................................................................................................................................... 471
Sang Reservé..........................................................................................................................472
Albert Samain.........................................................................................................................473
Foujita.....................................................................................................................................474
Lasar Segall............................................................................................................................474
Nas Serras e nas Furnas..........................................................................................................475
O Incrível João Pessoa........................................................................................................... 475
La Ronde de L’Amour........................................................................................................... 476
Badú....................................................................................................................................... 477
La Pavlova..............................................................................................................................478
Um Vaqueano do Desconhecido............................................................................................478
Gondim da Fonseca................................................................................................................480
To the Gallows I must Go......................................................................................................480
Visitantes Estrangeiros...........................................................................................................481
Escritores do Norte.................................................................................................................483
Ecos........................................................................................................................................484
Os “descobridores” de Fawcett.............................................................................................. 486
“Maria Luiza”.........................................................................................................................488
Miscelânea..............................................................................................................................489
O Brasil Continua, Clarissa, Censura Estrábica.....................................................................490
Stanley....................................................................................................................................492
“L’ Homme du Brésil”...........................................................................................................494
Miguel Couto..........................................................................................................................496
Antonio Torres....................................................................................................................... 497
Visita Inesperada....................................................................................................................498
“Nijinsky”...............................................................................................................................500
Brasiliana................................................................................................................................501
Ronald de Carvalho................................................................................................................502
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Georges Raeders Le Comte de Gobineau au Brésil..........................................................503
Autobiografias........................................................................................................................504
Comidas..................................................................................................................................506
Três Livros Valiosos.............................................................................................................. 508
O Livro de Silva Mello...........................................................................................................509
Depoimento de Gastão Cruls sobre seu livro Aparência do Rio de Janeiro..........................512
O espelho................................................................................................................................515
Meu sósia................................................................................................................................521
Contas brabas......................................................................................................................... 527
A patativa............................................................................................................................... 532
Noites brancas........................................................................................................................552
A noiva de Oscar Wilde......................................................................................................... 559
G. C. P. A...............................................................................................................................568
O noturno nº 13...................................................................................................................... 575
32
Maia, Cláudio Silveira
Gastão Luis Cruls: uma nova recepção / Cláudio Silveira Maia. –
2005
2 v. : 30 cm
33
Introdução Geral
primeiro volume compreende nossas primeiras palavras sobre os dois roteiros desenvolvidos
damos conta ao leitor do percurso teórico seguido para um trabalho que ao mesmo tempo
diálogo com a recepção crítica crulsiana, nos quais sinalizamos nossas primeiras impressões
Recepção de Gastão Cruls na crítica brasileira de 1933 aos dias de hoje”, que, na verdade, é o
Amazônia que eu vi: entre a ficção e a história”; já o capítulo 5 compreende a análise “Do
mito e da lenda ao reino do fantástico em: A ilha das almas selvagens (Wells) e A Amazônia
misteriosa (Cruls)”.
Assim, fechamos o “Volume 1”, intitulado “Gastão Luis Cruls: uma nova recepção”,
34
A seguir, temos o “Volume 2: Gastão Cruls e seus críticos: antologia”. Abrimo-lo com
a “Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls”, e o continuamos com outras três antologias
de Cruls: “Antologia dos textos de Cruls publicados no Boletim de Ariel”, “Antologia dos
fortuna crítica de Gastão Cruls”, foram escolhidas as seguintes designações: estudos críticos,
referências e correspondências.
“Estudos Críticos” é utilizada para estudos mais apurados sobre o escritor Cruls
e sua obra, estudos esses que foram publicados em livros e revistas especializadas
...
35
Sessão I
Primeiras palavras
tudo que falasse dele ou de sua arte, surpreendia-nos, a cada leitura, uma extasia que
fascinava e nutria, página a página, nosso interesse e paixão pelo descobrimento de um nome
convenceu de que não seríamos “devorados”. Com efeito, nascia, ali, um perscrutador de um
universo literário algo fantástico, algo ciência; de fantasia e de lógica mas, sobretudo da
Cuiabá, no Mato Grosso (MT) a Santarém, no Pará (PA) – a BR-163 era, de verdade, um
amazônica. Nessa época corria o ano de 1981, e a estrada que levava para outras paragens ia
feito carreador na selva brasileira. Sem asfalto, o chão de barro ou poeira magoava dias e
noites de viagem porém incendia um deslumbre sem igual: uma sensação das coisas nunca
1
SABINO, Fernando. Gente. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 300.
36
vistas, que dava um arrepio de medo e um tanto de bem. Ainda não saberíamos explicar, mas
que a gente tem de realizar um ideal de vida. Nesse sentido, estudar vida e obra de um autor
forma, alguns momentos nossos de aventura, idas e vindas em território da Amazônia Legal.
gesta do Modernismo à luz dos anos vinte (1922)2 imprimem, na literatura de Cruls, uma
expressão de vanguarda, e conferem a este trabalho uma marca d’água caracterizada pela
combinação Rio – Amazônia, cuja insígnia lavrou a dualidade na narrativa de um escritor tão
caro à literatura do Brasil e infelizmente esquecido pela mesma crítica que o consagrou em
esgotadas. Destes, dois romances inacabados, Glória (sobre a Amazônia) e Angra (sobre o
Enfim, pensando este trabalho por uma entrada na literatura crulsiana, optamos por
aprendizagem. Norteados, porém, os lindes ainda não demarcados, quanto à recepção e crítica
2
Marco histórico do Modernismo no Brasil.
37
De fato, o estudo sobre a fortuna crítica de Gastão Luis Cruls (RJ 1888 – RJ 1959)
periódicos, percorre a distância de mais de oitenta anos de uma crítica diversa e abrangente,
neste primeiro volume, em sua primeira sessão, dois capítulos introdutórios que pretendem
circunscrever, respectivamente, uma idéia geral da crítica e a paixão de Gastão Cruls pela
nossa Amazônia um dos mais fortes veios literários do autor. A seguir, apresentamos um
diálogo com a Recepção crítica crulsiana. Na segunda sessão, por sua vez, apresentamos duas
segundo volume, uma antologia da fortuna crítica crtulsiana, dos textos críticos do escritor
audiovisuais, que nos permitiriam desenvolver um breve estudo sobre essa obra francesa.
Mas o destino nos trouxe Gastão Cruls. E foi mesmo pura sorte. Desde o dia em que a
Profa. Dra. Maria Helena de Queiroz, nossa orientadora para aquela monografia, deu-nos o
38
nome e as primeiras folhas sobre o escritor, pudemos empreender uma busca que assumiu
desafios importantes.
processo de rastreamento do autor e de sua obra. Ainda bem. Graças às pedras do caminho,
Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro e com as unidades da UNESP de Assis e Marília nos
proporcionaram uma experiência ímpar, além dos momentos inesquecíveis junto a professores
e colegas acadêmicos, todos sensibilizados com aquela pesquisa que aqui continua e, por isso
quatro anos do Curso de Letras de Cassilândia-MS; as tantas lições que estão a inspirar e o
apoio, o incentivo, o entusiasmo recebido dos professores que formaram nossa Banca
professores das seis Disciplinas que estudamos, especialmente da parte de nossa orientadora
a Profa. Dra. Maria Clara Bonetti Paro, nos encorajam a continuar e ter, por insígnia da
...
39
Situando o autor
A obra crulsiana há muito esgotada pelo primor com que a lógica e a arte nela foram
equacionadas de modo a gerar arte e fantasia concreta. Medida por medida e à luz da crítica,
entendemos este trabalho justificado pelo ato mantenedor e remissivo que lhe é premissa
maior: fundamento indispensável a qualquer estudo que pretenda resgatar e externar valores,
Tal como escreveu o crítico Silva Melo (1959)3, em Recordações de Gastão Cruls, é
impossível “falar do grande escritor, do notável literato e historiador” (p. 364) sem colocar em
Ainda de acordo com Melo, até mesmo com relação às letras, foram a “honestidade”, a
Cruls era “o padrão de homem leal que primava pelo corretismo e pela dignidade”. Refugiado
na literatura, o cientista deu vazão “ao seu temperamento excessivamente introvertido” (p.
Por tudo isso, conforme Silva Melo, necessário era escolher criteriosamente os amigos
e os lugares que lhe fossem cúmplices. Pensando nas palavras de S. Melo, quando nos conta
da intimidade do artista, podemos dizer que Cruls era o bom jardineiro: cultivava plantas de
folhas e de flores, e, das flores, amava as orquídeas. Gostava também de animais silvestres
(particularmente dos pássaros cantores) e de crianças. Como continua Silva Melo, o escritor
3
Pelos mesmos motivos explicados à introdução do “Capítulo 3”, a paginação dos textos sobre a biobibliografia
crulsiana, neste tópico, segue segundo a localização desses textos na “Antologia da fortuna crítica de Gastão
Cruls”, no “Volume 2”.
40
apreciava longas conversas ao telefone e, no alto da Boa Vista – seu cantinho arrebatador –
degustava aperitivos e pitava cigarros, aliás, as piteiras lhe eram muito caras e exemplares
magníficos para um presente que se queria estimado. Quanto à sua estrurura, era, nas palavras
de Silva Melo, “alto, magro, ereto, sem qualquer tendência para a obesidade” (p. 366).
“Possuía pernas longas” (p. 366) e os passos rápidos, que, conforme entendemos, mais lhe
asseveravam o aspecto, segundo Melo, “casmurro” (p. 366) quase puritano, na visão do
público.
milenar – conjugado num tempo verbal modalizado pelo humor e regido pela ironia suave e
de auto-suster-se. Conforme nos informa Silva Melo, o “Lido”, em Copacabana, era o cantão
das madrugadas – a pupila da hora do vinho, da cervejinha gelada, dos petiscos, da boemia.
Era mais que a própria casa, era um segundo lar. Sempre em companhia de Miguel Osório e
do próprio Silva Melo, Gastão Cruls excursionava por longas caminhadas a pé – coisa mesmo
de levar aos limites da exaustão – mas que lhe davam, além do prazer, um de seus
passatempos favoritos.
Existe ainda hoje, no Rio de Janeiro, uma casa que fora o lugar de algumas das
melhores inteligências do país: Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Manuel Bandeira,
Cândido Portinari, Aníbal Freire, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, João Olympio, entre
outros. Mantido pelo Rio Arte e localizado na Rua Rumânia, 20, Laranjeiras 4, o imóvel, a que
fizemos menção, conserva o estilo neocolonial da cultura fluminense e oferece, aos propósitos
Em 04 de maio de 1888, nasceu Gastão Luis Cruls, filho de Luís Cruls, cientista belga,
41
Conforme Raimundo de Meneses (1956), na cidade do Rio de Janeiro, àquela época
Distrito Federal, Gastão Cruls iniciou-se nos estudos às vias do Colégio Ruch, no antigo
morro do Castelo, de onde transferiu-se, ao tempo do Ginásio, para Petrópolis. Parece que
gostava de mudanças: tornou a transferir-se primeiro para o São Vicente e depois para o
Colégio Pedro II. Desejando atender aos desejos do pai, diplomou-se médico em 1910. Ainda
material para as suas primeiras estórias. Segundo Meneses (1956), o interesse pelo veio
literário fê-lo aproximar-se de escritores como Antônio Torres, Gilberto Amado, Monteiro
Lobato e Miguel Osório de Almeida. Particularmente do primeiro, sobre quem, depois de sua
morte, lançou Antônio Torres e seus amigos (1950), privou preciosa e frutífera amizade, como
nos revelam algumas cartas de Torres a Gastão Cruls, compendiadas no “Volume 2”. Por esse
tempo, de primeiros contatos com a literatura, no ano de 1917, Gastão Cruls, sob o
então dirigida por Monteiro Lobato, e, depois, com outros, agora sob o seu próprio nome,
Conforme nota da editora à edição de Quatro romances (1958), Cruls viveu os anos de
1921 e 1922 na Paraíba do Norte, como membro da Comissão de Saneamento Rural, chefiada
por Acácio Pires. Por essa ocasião, oportunou-lhe observar os cenários nordestinos incluídos
em seu segundo livro de contos Ao embalo da rede (1923). Logo depois, destacou-se como o
42
(1925), em que a descreve por nuanças reais como se nela houvesse estado. Mais tarde, após
visitá-la, lançou A Amazônia que eu vi (1930) e, post scriptum, Hiléia amazônica (1944).
Entre 1931 e 1938, dedica-se quase que exclusivamente ao “Boletim de Ariel” (revista
biobibliográfica de que foi diretor). De acordo com o que ainda nos reporta Silva Melo
(1959), a Gastão Cruls, ouvidor mordaz, não escapava frase alguma era, quase sempre, o
campeão nos torneios de “perspicácia” (p. 370); e fazia das palavras esdrúxulas e daquelas
perguntas absurdas material para pilhéria e interpretações “homéricas” (p. 372), como aquelas
da “língua tátá” (p. 372) em que os amigos interpelavam a vítima, deixando-a numa situação
flagrantemente embaraçosa.
As viagens pelo Norte e Nordeste foram, por sua vez, cruciais ao delineamento do
européias, as rememorizações dos feitos do jovem Conde de Nassau deram a Cruls um estilo
inédito, sui generis, não contemporâneo de seu tempo e, talvez, também por causa disso, seja
muito particular sobre amizade. Seu espírito brincalhão, entretanto, não instavam ofensas, e
nem a picardia maliciosa ou irônica acarretava qualquer “revolta ou aborrecimentos” (p. 373).
Infelizmente, conforme nos noticia Silva Melo (1959), tanta “alegria pelo viver” (p.
376) veio-lhe a ser freada. Durante dois anos, continua S. Melo, uma enfermidade entristeceu-
lhe a alma e o semblante, até esvanecer-se rumo a outros paraísos, que não a Amazônia e o
Rio de Janeiro. Quando fora estudante de medicina (recorda o amigo Silva Melo) sofrera de
uma neurastenia. Ironia do destino, ou não, a mesma enfermidade volta ao paciente tantos
anos depois e com enorme gravidade. O mais irônico, de acordo com S. Melo, é que estava
praticamente recuperado quando surge uma infecção das vias urinárias: era a sua sentença de
43
morte, ditada por uma intervenção cirúrgica, executada sob um dos termos técnicos que tanto
Sem dúvida, uma lástima constrangedora do destino, que não lhe permitiu terminar
Angra (que seria, segundo Silva Melo, um de seus melhores livros) e Glória, outro livro sobre
a Amazônia. Mas, esse mesmo destino, de modo algum foi capaz de ofuscar o talento, a
competência, o carisma e todos os demais primores que compõem a obra do artista Gastão
Luis Cruls.
...
44
Escopo Teórico e Metodológico
limitado. O presente estudo não poderia ser diferente. Contudo, para atender o critério
que escolhemos como suporte teórico para nossas reflexões. Assim, ainda que tantos outros
que escolhemos estarão amalgamados por uma concepção ampla e geral, e dois deles já aqui
enunciados, a fim de dar conta ao leitor do percurso teórico perseguido para essa nova leitura
Pois bem, abordando a obra crulsiana sob a ótica da questão narrativa, e pensando em
um narrador que seja um novo artesão um homo faber capaz de sentir e expressar a
experiência coletiva com um diferencial não apenas tecnicista, nos encontraremos diante de
Assim como Durand (2001), entre outras palavras, que dedicou um capítulo inteiro de
também nós, se transcendermos para o real ou surreal da vida, quem sabe poderemos nos
45
sentir como o Nerval que desce ao inferno em Aurélia. Uma descida que desceríamos
agarrados aos textos-catafalco ou de procissão rumo ao mundo sem Deus descrito nas
outros escritores clássicos da literatura fantástica; isso, para não mencionar o triângulo
O avatar que nos motiva mais fortemente nesse mergulho é a leitura do romance A
Amazônia misteriosa, de Cruls, obra essa que contém diversos índices de narrativa fantástica
como, por exemplo, o episódio “Revelação”, analisado em nossa sessão “Lendo a Herança
Encontrada” a propósito de uma abordagem comparatista com o romance The island of doctor
Moreau, de Wells; este, na versão de Monteiro Lobato: A ilha das almas selvagens.
outros articuladores do conceito de “narrativa fantástica”, tal como se pode ver à bibliografia,
foram contatados diversos temas não necessariamente exclusivos do fantástico, ligados, por
nos parecem motivos suficientes para justificar a afinidade entre a composição de narrativa
fantástica e o leitor, sendo o leitor pensado como um habitante desse nosso mundo, essa
fortemente renovado com a psicanálise (um dos campos preferidos de Cruls) e o surrealismo,
temas como a noite, a morte, o estranho, a natureza, o vampiro, o lobisomem, a viúva negra,
“Revelação” d’Amazônia misteriosa, de Cruls. Uma narrativa começa com: “Visão horrífica e
46
atraente, que a um só tempo despertava sentimentos de piedade, revolta e nojo” (1958, p.
104). Apesar desse começo extremamente realista, nota-se que a narrativa vai se
transformando, beira à metamorfose e evolui para um estágio naturalista até chegar ao espaço
cemiterial do Dr. Hartmann n’A Amazônia misteriosa), pois, esvaecemos para o mundo dos
Rimbaud, a Amazônia misteriosa projeta a narrativa de uma aventura sem volta, uma descida,
tanto aproximam Cruls de Nerval, de Mallarmé e de Lautréamont. Assim, para pisar a soleira
(CRULS, 1958, p. 104). Uma projeção, aliás, similar à passagem de uma narrativa romântica
consciência, é a fuga de uma realidade seca, que não pode ser vivida sem um pouco de
harmonia, como aquela que Baudelaire realiza em seus Pequenos poemas em prosa. Nesse
seio da morte, estamos cada um de nós. Com efeito, em um universo tão familiar, ninguém
precisa hesitar em morrer. Só para combinar com o poema de Hoeldërlin, transcrito em nosso
“Capítulo 2”: também a morte só se vive uma vez, apesar de a vermos, tantas vezes na vida,
passando tão perto de nós. Mas há, ainda, muitas linhas para escrever...
...
47
O domínio da História e o domínio da Ficção:
homem/mundo, idealizado pela forma do romance, reportamos Lukács (1965) quando afirma
que a forma literária pode conter a manifestação de determinada estrutura social, pois que, à
medida que o romance apresenta-se sob o signo da multiplicidade étnica e lingüística, sua
forma passa a representar ou a conter aspectos das estruturas sociais, quer na relação entre os
fechadas”. De acordo com Lukács (apud ANTUNES, 1998), há uma estrutura econômica que
precede as estruturas sociais históricas. Na Grécia épica, por exemplo, foi o caos econômico
históricas. O herói grego, que era o grego típico representante de todos os gregos, vê-se
então incapaz de superar o fado da tragédia. Aí, reside o poder do mito sobre os antigos.
De toda sorte, os valores mantidos pelas armas da retórica e pelo escudo da reflexão
são os valores a serem buscados, retomados pelo herói romântico anterior aos fenômenos da
48
Logo, o como da mimese no romance é que vai externar quais valores estão sendo
buscados, e por que via, se pela crítica, se pela sugestão. A confluência dos elementos desses
discursos mostrará que funitivos concorrem (no texto) no trânsito sócio-histórico a qualquer
época, e, claro, no trânsito que nos diz respeito: o da contemporaneidade. Nesta, a sangria da
epopéia poética mereja na epopéia da prosa do romance moderno, conforme descreve Hegel
Lukács (1965), ao escolher o romance histórico de Balzac para objeto de sua análise,
condições às quais qualquer atividade produtora está sujeita, inclusive a atividade produtora
da realidade literária. Com esse intuito, o crítico Lukács interpreta alguns referenciais
mimese da práxis, ou seja, sua narrativa precisa representar a ação humana. Assim, como
estruturada.
Outros desdobramentos poderiam ser aqui contemplados, mas essas teorias serão
Amazônia que eu vi:...”, análise também situada na sessão “Lendo a Herança Encontrada”
deste trabalho.
O campo do imaginário, por sua vez, com textos de Gaston Bachelard, Mircea Eliade e
Gilbert Durand, entre outros, nos permitiu amalgamar conceitos tanto da história quanto da
ficção, junto ao conceito sócio-antropológico. E fizemos essa opção para compactar uma parte
49
de nossa análise parcialmente citada no parágrafo anterior e que emendamos agora: “... entre a
história e a ficção”.
metáforas surge na letra de um sinal comum e, ao mesmo tempo, também de uma senha –
configurando as pistas que o autor deixa na obra para reconhecimento da “coisa”, como diria
Jean-Paul Weber. Dessarte, com essas leituras e associações pode-se dizer que a noite,
enquanto símbolo da escuridão do raciocínio, não está mais tão escura. Mas, talvez, ainda
continue polêmica.
...
demonstramos como o autor foi lido nos diferentes contextos histórico-literários pelos quais
Com efeito, para o estudo (na forma de diálogo) da fortuna crítica de Gastão Cruls,
Álvares de Azevedo”, Dissertação de Mestrado de Mayra Angélica Pandolfi, que nos foi
sugerida pela autora de Frestas e Arestas a Profa. Dra. Karin Volobuef; e a “Fortuna
Helena de Queiroz, nossa orientadora na graduação para a monografia “Gastão Luis Cruls:
bibliografia de apoio também a então mestranda Mayra A. Pandolfi. Outro trabalho que
também merece destaque é a Dissertação de Mestrado “Mas este livro não passa de um
romance... ficção, história e identidade em dois romances de Márcio Souza”, de José Alonso
Torres Freire. Essa dissertação e algumas ilustrações sobre o romance A selva, de Ferreira de
50
Castro, nos foram indicadas pela Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi. A seguir, com a
Gastão Cruls por Thereza Freire Vieira, publicada pela “Publicom”, substanciou-se nosso
referencial para a construção desta Dissertação de Mestrado em dois volumes: “Gastão Luis
primeiro quarto do século XX, deveu-se não só à afinidade com o escritor pela nossa confessa
identificação com a região amazônica brilhantemente contada e retratada pelo autor, mas,
por exemplo, a diversidade de seus temas) e à sua evidente ausência do atual cenário da
literatura brasileira.
Face essa desconcertada disforia entre o que se diz do escritor e sua obra, e o silêncio
de reunir sua recepção crítica, tarefa ainda não realizada e cujo trabalho poderá simplificar o
A conferir, consideramos neste trabalho a hipótese de que quem recebe faz, lendo e
interpretando, a fortuna da obra. Assim, a isso se reporta o conceito de literatura adotado por
51
É importante destacar o “conjunto de receptores” mencionado por Cândido, lembrando
que o panorama histórico da literatura de fins da década de cinqüenta, quando ele publica a
das atenções” nos estudos literários é a recuperação, a reiteração “das vozes” das experiências
do “conjunto de receptores”.
Aos alemães Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser coube apresentar, pela primeira vez,
por Jauss em 1976/77 forneceram subsídios a Hans-George Gadamer que, em sua obra
de gravidade dos estudos literários, da relação da obra com o seu autor, para a relação dela
com o seu leitor – importando saber que efeitos a arte tenciona provocar no interpretante; isto
5
Linguagem de alguma maneira convencionalizada.
52
é, que leituras podem ser depreendidas do objeto-texto no correr do tempo. Tais efeitos
anteriormente alcançado pelos formalistas, como reconhece Jauss (LIMA, 1979), mas que
testemunho da crítica literária colhido pelo método tradicional de fortuna crítica, por cuja via
pode-se mapear o trânsito histórico da recepção da obra por parte do crítico, implica, talvez,
compreensão das diversas impressões externadas pela obra através da relação autor/leitor
virtual e repercutidas por seus leitores reais, os mais diversos. É o que Iser (LIMA, 1979)
chama de “estrutura de apelo da obra”. Um nome que, não por acaso, nos remete a Kenneth
Burke.
seu ensaio “Psicologia e Forma”, alguns princípios referentes ao que ele denominou “atrativo
da literatura”. Esse atrativo, postulando neste trabalho a empatia como elemento catalisador,
engendra o emoldurado que retém o efeito produzido pelo autor e as maneiras de efeito
recebidas pelo leitor; considerando o fenômeno literário como uma estrutura modelizante que
conforme a tradução de José Paulo Paes) apresenta uma teoria da forma literária, cuja energia
força que, na estrutura artística, se move do conteúdo para a expressão e da expressão para o
53
leitor, posto diante dele no ato de leitura. Com efeito, a definição ampliada de Burke uma
revelação, instantânea ou não, é a forma da narrativa que mostra, é verdade, o autor como
aquele que manobra inclusive as expectativas do leitor; já não se trata, pois, de um retrato,
mas de um filme, da projeção de uma relação iterativa entre o texto e o leitor. Porém, também
Estas brechas, abertas durante o caminho de volta, ou seja, durante o retorno do efeito
ativo para o efeito contemplativo, no processo de interlocução leitor e texto, e das quais não
se ocupa Burke, levarão, conforme Campos (1976), Max Bense (quatro anos depois do
provável inovação do estatuto crítico, um modo de ver não o efeito produzido ou o efeito
revidado, mas o efeito da leitura, sendo ela a câmara dos efeitos entre o texto e seu anteparo
(o leitor). Amparado nessas considerações, o crítico concluirá em dois dos seus próximos
ensaios que
recepção e que Burke, Bense e Jauss propagam a partir de um refletor comum: Immanuel
Kant.
Se, por um lado, Jauss desenvolve sua teoria da recepção estética a partir da prenoção6
de leitor ideal, Gumbrecht (LIMA, 1979) atrela a esse ponto considerações sobre a resposta
6
Termo aventado da preciência de Freud.
54
literária proporcionada pelas diferenças sociais; diferenças não levadas em conta por Jauss.
Jauss quanto à experienciação estética iniciada por Kant. A esse contexto virá somar-se a
forma análoga ao processo de leitura do texto ficcional, releva a necessidade de o leitor sair
interpretativos. Mas essa articulação, contudo, implica também um leitor implícito que, pela
momento o ensaio de Stierle sobre a recepção do texto ficcional, apesar de haver sofrido
fortes contestações (LIMA, 1979), acrescenta uma novidade em relação a Iser: na esteira da
uma da outra, seria impossível aniquilar, conforme observa Luiz Costa Lima (1979), o
que o texto literário esteve a clamar por novas formas de leitura crítica, não só a partir de
meados do século XX, como daí se expandem, mas desde o fim da Era Clássica em fins do
século XVIII. Outrossim, passagens que destoam da literatura fechada nos universos greco-
romano e judaico-persa são literaturas que merecem, igualmente, serem redescobertas, a fim
critério de verificação dos efeitos nele já internalizados, o analista que recorre aos
55
fundamentos da estética da recepção pode reconstituir o que H. R. Jauss chamou de
Esse modelo caracteriza a interpretação como a arte de recriar, ao que Wolff, lendo
texto literário. Com efeito, enquanto na Alemanha se divulgavam os princípios dessa nova
literária do autor. Tal princípio nos dá uma imagem perfeita da provocação de Jauss à teoria
literária:
56
“evolução literária”, ela revela aquela função verdadeiramente constitutiva
da sociedade que coube à literatura, concorrendo com as outras artes e forças
sociais, na emancipação do homem de seus laços naturais, religiosos e
sociais.
Se, em função dessa tarefa, vale a pena ao estudioso da literatura superar sua
postura a-histórica, aí se encontrará também uma resposta à questão acerca
de com que finalidade e com que direito pode-se ainda hoje ou
novamente hoje estudar a história da literatura (JAUSS, 1994, p. 57).
correspondências, uma vez que são essas fontes que veiculam a discussão sobre a arte literária
“Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls” esta, compendiada no “Volume 2”. Assim,
as referidas fontes são tratadas no “Capítulo 3”, sob o título “Diálogo com a Recepção de
Gastão Luis Cruls na crítica brasileira de 1933 aos dias de hoje”, deste “Volume 1”. Além
disso, desenvolvemos duas análises sobre a narrativa crulsiana, nos “Capítulos 4 e 5”, ainda
neste volume.
entender que o contrato literário entre o texto e o leitor envolve particularidades sujeitas ao
Com efeito, a leitura de uma obra literária, às vezes reduzida à esfinge de uma
contar com uma flexibilidade talvez mais sensível e experiente do crítico entre outros ganhos
57
do pensamento moderno; este, mais dinâmico e fluido (posto que vivemos em uma civilização
aberta) e nunca outra vez, radical capaz de atinar, sem preconceitos, para as diferentes
e a análise de até que ponto ele consegue levá-lo a termo em sua obra literária (KOTHE,
1981, p. 11) é uma das competências da crítica, o “Capítulo 1” desta dissertação dedica-se a
analisar o papel que a crítica literária exerce nesse processo, efetivamente, no espaço autoral
de Gastão Cruls.
58
Capítulo 1
Madruga o dia.
O castelo está cercado
De gritos de patos selvagens.
(Kyoroku)
espaço, e que esse espaço compreende três signos que se movimentam constantemente e que
se comunicam; signos, portanto, que se co-relacionam. São eles: o escritor, o texto e o leitor.
Desse modo, quando nomeamos este capítulo “A crítica no espaço autoral”, pensamos em
dialogar com algumas vozes que discutem o texto literário, sendo, esse texto, a obra realizada
Assim, escritor, texto e leitor são, para nós, arquipensadores responsáveis pela
construção da autoria e as testemunhas argüidas pela crítica. Para melhor ilustrar essa idéia,
toda vez que escrevermos a palavra autor estaremos pensando nos correspondentes do espaço
autoral acima composto. Desse modo, a nomenclatura autor não será exclusividade do
escritor, mas compreenderá também o texto e o leitor. Nesse sentido, pensando em melhor
afirmar nossa proposta para este capítulo, interviremos nessa ordem e estenderemos o campo
da autoria pelos mesmos três pontos de convergência, porém, partindo do texto. Teremos
Isso se faz necessário para marcar nossa posição frente à problemática da autoria, para
mostrar como vemos a discussão desse espaço autoral e como pensamos o processo de
formação do crítico das artes, em particular, da arte literária. Com efeito, quando intervimos
59
na ordem tradicional de compreensão da autoria, não esquecemos o que nos dissera Óscar
Colaborando com Tacca, imprimimos o diálogo do Cruls autor com seu narrador, que
Note-se que sempre fui avesso a revelar os meus projetos literários e nem
mesmo aos meus amigos mais íntimos costumo falar no que ando fazendo ou
ainda pretendo escrever. Não será isso, talvez, um traço de modéstia, mas
porque tenho a superstição de que as obras muito anunciadas dificilmente se
realizam, ou quando chegam a ser executadas, nunca correspondem ao que
delas se esperava. Haverá também outra razão. Não sei contar muito bem o
que sempre ganhará quando for definitivamente passado para o papel. Aliás,
Flaubert também sofria desse mal e nada lhe era mais penoso do que
resumir, em conversa, o que seria o entrecho de qualquer de seus romances
(CRULS, 1951, p. 287).
De acordo com essas palavras, de Gide na citação anterior e de Cruls nessa última, os
um expoente múltiplo, pois que estamos considerando três os construtores da autoria. De mais
60
materialismo; seguramente, atravessará a globalização e continuará sendo espelho e conselho
do homem em sua natureza íntima e social, como tem sido do princípio aos nossos dias. A
arte tem o poder indestrutível de envolver, e aí, nessa força-razão de existir por si mesma
denominamos de espaço autoral se identifica através de dois refletores chamados por Tacca,
Para alejar toda duda, el que narra y escribe acumula precisiones, tan
triviales como el color de la tinta, la clase de papel o el tipo de lámpara que
utiliza. El libro es aquí, pues, el resultado de un acto (intrascendente o
sagrado, según lo entienda el narrador). Entre el acto de escritura y el libro
hay una relación directa, que el narrador pone en evidencia (TACCA, 1973,
p. 118).
Pronto. Hei-nos diante da varinha de condão. E a magia que há em tudo isso é a ilusão
de que a criatura domina o criador e os que com ela tomam contato. Ilusão porque não se trata
de dominar. Isso é a arte inexplicavelmente despertada no íntimo do ser humano, que abrocha
reminiscências de nossa lendária estada no paraíso. A arte, esse milagre materializado, que dá
guarida à verdade e à beleza, tem vida própria; não pode ser domada pelo escritor nem
descoberta ao bel prazer do leitor. Ela é a alma do artista que se materializa nas pontas de seus
dedos ou na ponta de sua língua. Nesse ponto, assiste-nos a diferença fundamental entre o
escritor de letras e o escritor de arte: o escritor de letras escreve as palavras; mas, o escritor de
fascínio que a leitura de textos sobre a Amazônia e a psique exerceu sobre o escritor enquanto
8
Segundo a filosofia Kantiana, noumenon é o nome de algo que existe por si mesmo. Opõe-se, pois, ao
fenômeno (phaenomenon), que existe a partir de uma reação.
61
leitor. Dessa leitura de inspiração, o homo faber Cruls passou a criar: instala-se, assim, o
espaço autoral de Gastão Cruls, cujo firmamento literário migra para uma nova transleitura da
A propósito,
remota literatura, quando esta era ainda apenas solfejada de pai para filho. Esse tempo, que
remonta ao nomadismo dos povos antigos, apresenta-nos, através, por exemplo, de livros
abstraído da história judaica, não é diferente do regime helênico, celeuma dos povos das
Nessa época de pessoas ainda tão distantes da civilização, mas também já longe do
yabadabadoooo da Era da Pedra Lascada, ou, para citar o nome científico, do Período
Paleolítico; o leitor caracterizava-se por render um eterno culto aos mortos. Nesse reduto de
civilizações fechadas, olhar o futuro era proeza de oráculos ou profetas. Dessa forma, se
algum leitor (comum) quisesse olhar as entrelinhas das palavras era visto como o infiel.
9
Versos nossos: uma tentativa de caracterizar o mal-leitor.
62
De onde estamos e olhando para trás, dá para ver o quanto o teísmo foi usado como a
desculpa que vinha sempre a calhar para assegurar a manutenção do dogmatismo, recurso
de construção e diferenciação das tribos. Porquanto, a simples idéia de ser um leitor mais
arguto era causa de grande comoção naqueles primeiros moinhos de sociedade. Com efeito,
nem tão broncos como os homens das cavernas e nem um pouco reflexivos como podem ser
os leitores contemporâneos, a esses leitores endeusados por Salomão não restava nada além
catedrais, enfim, na alienação preconizada pelo dogmatismo e em tantos outros aguilhões que
impediram por muito tempo uma leitura do mundo e a interação entre os sujeitos leitores,
por si mesma e, como uma hipnose de sujeito oculto, hipnotiza autor e leitor, criando seus
sentidos para a interpretação. Nesse percurso, do tálamo ao ocaso da criação, nasce uma
ubiqüidade que se reproduz sempre que autor ou leitor tentam captar uma palavra em seu
(impossível) significado final. Torna-se, deveras, impraticável uma leitura da ficção, baseada
em uma fórmula irredutível. Quando lemos um texto literário, muitas vezes estamos, na
verdade, sendo lidos por ele; e se quisermos saber o que o texto quer nos dizer precisamos
ouvi-lo. Ora, isso requer de nós o despojamento dos pré-conceitos e da função de dominador,
o texto é a estratégia em segredo que assegura ao fenômeno literário sua passagem de geração
a geração, sendo capaz de se renovar como a estrela de cada manhã. Onde estará então a
chave capaz de decifrar os enigmas da literatura? Bem, isso nem o escritor o sabe. Mesmo
porque não há enigmas a serem decifrados; há, sim, o trâmite de uma correspondência sócio-
63
interativa entre o texto, a autoria e a leitura, cuja manifestação dispensa o leitor reteso e busca
o leitor abrangente, a fim de entender que texto, autoria e leitura são leitores de uma realidade
ao mesmo tempo material e imaterial. O leitor abrangente seria, então, um leitor de outros
leitores, vivos ou ressuscitados, pelo próximo ato de ler; mais um instrumento do conjunto
artístico, e que repercute, distintamente, cada partitura da obra literária, seja numa primeira
cooperando para manter interesses de uma suposta linhagem de sangue azul, em muitas partes
do mundo. Essa contracultura ressumbra, por exemplo, nos diversos segmentos da estrutura
produção de capital. Não debalde estamos, pois, neste capítulo, gravitando brevemente no
(t)alvez minha verdadeira vocação fosse ser autor de apócrifos, nos vários
sentidos do termo: porque escrever é sempre ocultar alguma coisa de modo
que depois seja descoberta; porque a verdade que pode sair de minha caneta
é como a lasca que um choque violento faz saltar de um grande rochedo e
projetar-se longe; porque não há certeza fora da falsificação (CALVINO,
1999, p. 198).
64
Percebemos, na citação lida, o evento de um leitor real que se transforma em virtual,
caracterizando-se leitor implícito, um sujeito em íntima relação com o objeto: tão íntima e
intensa que sujeito e objeto entrelaçam-se nas lacunas do texto e avivam as chamas chamadas
pelo verbo. A cada leitura, as chamas, palavras no ato da leitura, avermelham-se como o ouro
reluzente das minas, recriam as lendas, fazem aparecer o que não parece provável e arranjos
maravilha a própria maravilha, pois, sem ela, a palavra não causa efeito. A propósito, Iser,
autor pertencente à tradição da fenomenologia da resposta estética, assim continua sobre o ato
de leitura:
professora Magda Soares, citada por Fernando Sabino (1996, p. 175) no livro Gente, quando o
Pensando nisso, é mesmo notório que desse aprendizando resultem o repertório crítico-
competências do saber humano. Nesse sentido, compreendendo as riquezas que esse saber
postula, especialmente, se veiculado pelo texto literário, argumenta Maria Tereza Magnani:
65
edição, difusão, seleção) e utilização desses textos (MAGNANI, 1989, p.
34).
Com efeito, a leitura de um texto literário realiza o contato entre texto, leitor e autor.
Temos, assim, a força motriz que inaugura um processo: o de difusão da mensagem literária.
Esse processo tem por finalidade garantir que o conteúdo chegue a outro ouvinte, e é assim
que a correspondência dialógica se efetiva. Logo, o texto, o autor, o leitor e, agora, outro
mundo, e está aberto a diferentes sinóticos de leitura. Possibilidades que oscilam entre a
retórica e a lógica, mas que constituem um signo perfeito à medida que, no ato de leitura,
fazem flutuar o significante e o significado. Assim, é essa leitura sempre relativa e o sentido
construído por seu espaço autoral. Um espaço que não termina e que, como no espetáculo do
A leitura do texto literário enseja, portanto, um trabalho que vai além do texto, que
despertando os sentidos, as emoções e fazendo ver que a literatura pode ser responsável pela
realização harmônica dessa proximidade é o sonho de todo texto que, por meio de seus
66
símbolos, está sempre nos prevenindo, relembrando ou profetizando uma linda história de
amor ou uma grande tragédia, a vida ou a morte, a esperança ou o desespero, o começo, o fim,
o recomeço e todas as coisas dos dias e noites contidos no universo sem cercas e sem fim.
Com efeito,
Pensamos que tal medida é a medida de uma leitura abrangente. Nos dias de hoje, sem
essa leitura, o leitor algema seu pensamento e sua criatividade, ignora a venda nos olhos do
menino de asas e com arco e flecha nas mãos, vira a sobreposição das trevas, como no mito de
“Orpheu”, na própria luz, torna-se mais um rosto do medo e uma visage do mito da estirpe
econômicas, o sujeito, sem a leitura abrangente, é mais um leitor não lido e tornado lenda 10 no
submundo da ignorância.
além das condições do meio. Sem forças para esbater-se, sucumbe tragado pelos tufões da
econômicas, mas também sociais e culturais, impedindo o indivíduo de ser gente, um grupo
Se a tais diferenças prefigura a referência dominante não alhures, nem muito aquém
dos nossos dias, do solstício das deficiências; então a ignorância, marcada principalmente pela
10
Segundo Lesky (1985), aquele que carrega e (re)transmite o fado da tragédia.
67
mitificação da(s) leitura(s), está longe de ser apenas página da história, continua uma flor do
Contudo, desejamos que não seja ainda mais demorada a esperança de se coincidirem
Brasil. Esperamos que isso aconteça e que esse acontecimento se manifeste no dom e na voz
e da outridade dele próprio, leitor-pessoa. Ainda mais: seja o dom e a voz de um leitor crítico
um conto, nas linhas de uma escultura, na cena do teatro, no detalhe do filme, no close da
Ao reunir os diversos textos que comentam o escritor Gastão Luis Cruls e sua obra,
lhes a corte. Verificamos então que a crítica pode ser um lençol puxado para baixo ou puxado
para cima, uma bruxa malvada ou uma fada madrinha; mas, sem dúvida, uma voz
indispensável ao estudo das artes, no nosso caso, no estudo do texto literário. De todo modo, é
ela capaz de desvelar as relações imbricadas na arte, desde os motivos que a fomentam até os
68
Assim, pensando em compreender o texto literário, entendemos ser necessário o velho
princípio da maiêutica de Sócrates, segundo o qual para cada pergunta há sempre uma
resposta que levanta uma nova pergunta, levando a própria crítica à autocrítica, à
reformulação do comentário e à rediscussão do senso comum. Foi assim que novas teorias
sobre o modo de perceber o efeito estético da arte foram surgindo. Entretanto, essa rosca-sem-
fim do rigor filosófico não põe jamais concretude ao ficcional, já que este, a nosso ver, não
poderá nunca ser fundamentado pelo não-literário, em virtude de seu conteúdo potencialmente
preferir a explanação. Talvez por causa disso, tantos artistas têm estado esquecidos,
conduzidos ao degredo das terras áridas da exclusão, ou aos guetos do holocausto de sua
causa capitis, que exterminam a possibilidade de uma leitura naturalmente motivada pelo
prazer de ler.
Por outro lado, a crítica abre caminho para o interpretante da obra e descobre o crítico
no exercício de suas atribuições mais inerentes no trato com a arte, de certa forma, vis a vis
[...] sem dúvida o sei bem... (por o ter algum dia desfiado de mim mesmo?
Ou que outrora o aprendi no linear de toda ciência?) que [...] secreta seu fio,
baba o fio de sua teia... tem as pernas tão distantes, tão distintas – o deslocar
tão delicado – para a seguir poder medir essa teia – perlongar em todo
sentido sua obra de baba sem a romper nem se enredar – enquanto todos os
demais animalejos não prevenidos nela se emaranham mais e mais a cada
um de seus trejeitos ou cabriolas perdidas de fuga... [...] Sim, súbito, de um
ângulo da sala eis que sobre vós me precipito a largos passos, atenção de
meus leitores presa à peia de minha obra de baba, e não é o momento menos
grato do jogo! É aqui que eu vos pico... e adormento! (CAMPOS, 1997, p.
217-218).
Nesse sentido, como a aranha, o artista chama para sua peia vernacular a atenção de
seu leitor. Entretanto, o leitor crítico, especialmente aquele afirmado como crítico da arte,
69
objeto estético, sem cair no emaranhado das metáforas e metonímias do grande eufemismo ou
destacamos o trecho no qual Bloom, um dos mais eminentes críticos do nosso tempo, define a
crítica:
É, óbvio: uma desleitura, levada a termo por um leitor que se vale de um método e
vocabulário críticos, e que sabe que as impressões da primeira leitura já não serão as da
segunda, porque, na tentativa de firmar suas impressões, o crítico se depara com um objeto
que se move à sua revelia. Com efeito, o crítico, no exercício do seu trabalho, está sempre em
de figuras mínimas que se associam e flutuam em busca de uma harmonia como a da nota
musical na partitura perfeita. É o crítico, pois, entre uma leitura e outra, um bruxo músico, um
Contudo, e nos servindo das palavras de Bloom, retificamos apenas a expressão “de
poema a poema” para de prosa a prosa e emendamos com Calvino (1995): “nenhum livro que
fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão”. Isto é, a leitura da crítica não substitui a
leitura da arte. Porém, como retoma a orelha não assinada de Por que ler os clássicos, “ela
pode ser uma excelente companhia de leitura, esclarecendo, chamando a atenção para detalhes
empoeirados”.
70
Pensamos assim numa crítica parceira da função do autor e que analisa a obra pelo
prisma da mensagem artística, tornando sem efeito a empresa de cisma e desconfiança à qual
se reporta Rainer Maria Rilke (1995), em uma de suas Cartas a um jovem poeta,
Diga-se de passagem, que os críticos têm que passar pelo crivo da engenharia de um
espaço autoral a fim de exercerem o direito de dizerem o que dizem. Se o que dizem terá ou
não direito à credibilidade, depende de quão idôneos são nessa tarefa de argüir os elementos
literários do texto, se for isso mesmo que fazem. No caso de R. Rilke, a carta destinada a
Franz Xaver Kappus, a quem, inclusive, destina um soneto num momento em que o jovem
crítica precisam ser cuidadas de uma ponte que aviste a cura transdisciplinar empenhada pelo
poeta, prosador e crítico alemão. Com efeito, mas não tão incisivo quanto Rilke, Ítalo Calvino
pondera com algumas questões a verificação da crítica, cujas opiniões oscilam, não
71
Pensando com Calvino e recuperando a epígrafe de abertura deste capítulo: se o
castelo de letras estiver cercado pelos patos selvagens de Kyoroku, aludindo a metáfora
proposição, para críticos sem leme, a devastação certamente será a noite trágica que se
denuncia.
descompromissada (EAGLETON, 1983, p. 78) nem a textofagia denunciada por Rilke. Nesse
sentido, acreditamos que o trabalho da crítica pode sim ter por horizonte a função de descobrir
(trans)significar para cada pergunta ou nova leitura e, ao mesmo tempo, servir de agência de
fomento para a fruição do estético e do lúdico, tendo em vista a potencialização das relações
estético escolhido. Sendo a mão que psicografa os sinais de sua matéria de trabalho: o fazer
Álvaro Lins para o estabelecimento da crítica, quando afirma, em seus ensaios e estudos de
obras, com relação a autores e problemas de literatura no período compreendido entre 1940-
1960, que
(o) ato da crítica é aquele que completa, que retifica, que amplia. O que abre
perspectivas, o que desdobra situações. [...] Dentro da mais pura e da mais
estrita atividade crítica existe uma função criadora. A criação do crítico lhe
vem da possibilidade de levantar, ao lado ou além das obras dos outros,
idéias novas, direções insuspeitadas, novos elementos literários e estéticos,
sugestões de bom gosto, sistematizações, esquematizações, quadros de
valores. Crítica num tríplice aspecto: interpretação, sugestão, julgamento
(LINS, 1964, p. 368-9).
72
Assim, frente ao texto, objeto para sua sentença, o crítico percebe, examina, escolhe,
coteja e finalmente toma posição de afirmação ou negação de algo a respeito do objeto de sua
crítica. Vê-se, portanto, que o fazer crítica implica um determinado domínio científico, que
metodicamente, o seu objeto. Logo, qualquer que seja esse objeto, a função do crítico consiste
Outrossim, não se pode ignorar que todo tempo histórico remete-nos ao futuro, haja
por isso mesmo, apropriados pela ficção. Logo, quando a crítica desapropria a arte de certos
primitivo, fantástico: aos campos das possibilidades da retórica e da lógica, de onde, pelo
fazer artístico, deriva a obra; penetra, portanto, no próprio ato da recepção literária:
que move a roldana da expressão escrita. Necessariamente coagida por essa senhora mística,
fascinante e que nos embrenha nos tempos com impressionante majestade e imponência, a
crítica precisa consentir amoldar-se no colo de uma premissa maior: a de fazer justiça ao valor
estético de uma obra em todos os estágios de sua realização. Enfim, acreditamos numa crítica
11
A citação é de Stierle explicando Jauss.
73
que fulgure-se resplendora do efeito artístico, em uma crítica que se preze e atenha por prumo,
paradoxo: nome tão efusivamente aclamado pela crítica de seu tempo e adjacências, é
adormentado até tornar-se completamente ausente dos estudos acadêmicos e dos círculos de
leitura do texto literário brasileiro. Afora a filmagem de Elsa e Helena12 pela Companhia
Atlântida Nacional de Cinema, à sua obra rica em gênero e volumes não foi dedicado ainda
nenhum estudo mais detalhado que, com toda justiça, sempre esteve aí por merecer.
Um artista com traços de James Joyce, E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Emily
Brönte e James Conrad, entre outros de propalada envergadura, não cai no esquecimento por
acaso. Mesmo sendo um dos escritores brasileiros que mais publicou literatura fantástica, seu
nome sequer aparece entre ilustres ou não da história desse gênero no Brasil. Embora não
tenha sido um participante ativo do movimento modernista, sua arte moderna, como será
capaz de sentir um tempo que não era o seu e de expressá-lo com a força da realidade, o autor
trajetória recorrente e explorada sob diversas perspectivas no fazer literário crulsiano torna-o,
correntes de vanguarda nem com a bula dos então chamados “passadistas” na fase heróica do
Modernismo Brasileiro. Isso significa que o escritor Cruls escrevia pelo prazer de escrever,
12
Esse romance de Gastão Cruls deu origem ao filme “A sombra da outra” (1950), de Watson Macedo.
74
narrava pelo prazer de contar. Não se submetia a normas de inclusão no status quo literário.
Manteve-se livre para exprimir verdades e sonhos naturais às pessoas de todas as épocas e
gerações.
Nome que, ainda em vida, foi tantas vezes lembrado nos “bastidores” para ocupar a
imortalidade na Academia Brasileira de Letras, faleceu mortal, talvez por não ser
Brasil e sua gente. E conheceu-os do Rio de Janeiro ao Pará, passando pelo Nordeste.
Portanto, sua arte era mesmo expressão de um mundo brasileiro, desconhecido até de alguns
silêncio até que as tantas reedições de suas obras, quase sempre esgotadas, tiveram negadas
75
diário (A Amazônia que eu vi) e do documentário (Hiléia amazônica) com o ensaio de José
Paulo Paes sobre o romance Frei Apolônio. Nesse diálogo, outras vozes, como a de Goethe, a
de Euclides da Cunha e a de Graça Aranha juntam-se a Cruls e dão ritmo a um debate sobre
gente e território selvagens, lembrando as odes à Natureza de Neruda influenciado por Walt
76
Capítulo 2
por José Paulo Paes no ensaio intitulado “Utopia e distopia na Amazônia”. Com efeito, um
romance de formação que se desdobrará em outras duas obras de Cruls: no diário de viagem
Assim, nas cenas que seguem, estaremos nos permitindo paragrafar alguns atos de
fala, que apresentam a utopia da Amazônia enquanto paraíso remanescente da terra guardada
pelas sentinelas do portal original, e a utopia da harmonia perfeita entre os naturais do planeta
utopia remata a primeira, provocando a distopia de ambas: pois, se não há homens em estado
Último refúgio dos tupiniquins do Atlântico Sul, a Amazônia povoa nosso presente
com folclore, lendas, mitos e um colar sem contas de ciência. Esse mundo, um povoado
Empédocles e Demócrito, por exemplo, duzentos anos antes de Aristóteles (384-322 a.C).
77
Guardadas as diferenças entre colonizadores e colonizados, eventualmente vindas a
público por historiografias e ensaios, a Amazônia de Gastão Cruls se nos aparece um romance
da selva brasileira, distanciando-se desde logo de qualquer rumor de consciência de uma parte
inspiraram a Cruls, que o autor desejou conhecer de visu a nossa hiléia. Dessa forma, fez parte
com as Guianas. Assim, já na rota da Amazônia real, dirigida pelo Marechal Rondon, o autor
registra impressões e acontecimentos que lhe permitiram escrever A Amazônia que eu vi,
um diário de viagem e uma literatura de informação que serviu, seguindo o curso dos
reanimando paisagens de outros romances e compondo a sua, nos dá uma visão privilegiada
exotismo, lendas e mitos singulares à região orientam a narrativa a partir da visão de duas
(1995, p. 10), “teve seu paradigma no Wilhelm Meister de Goethe” –, vive e retrata a história
78
A característica de romance de formação se erige, na A Amazônia misteriosa, e como
acontece em Frei Apolônio, analisado por Paes (1995, p. 10): “no caráter palinódico da sua
submetidos, como cobaias humanas, aos experimentos do Dr. Hartmann. Essas experiências
vão modificar ao extremo a visão que Rosina, a francesa mulher do alemão e cientista
Hartmann, tinha dessa etnia quando chegou ao Brasil. Assim aconteceu também com:
[K. F. von] Martius que, primeiramente, muito pessimista nos seus juízos
sobre o nosso ameríndio, enquanto apenas lhe conhecera o tipo já
desculturado, mais tarde, quando no Amazonas, deixava escapar da pena as
seguintes palavras a respeito de uma índia Pacé: “A mulher do tuxaua
Albano tinha traços tão regulares, olhos tão brilhantes e o físico tão bem
proporcionado que com a sua boquinha negro-azulada até na Europa
causaria sensação”. O mesmo sucede ao Príncipe Adalberto da Prússia que,
ainda guardando nos olhos o aspecto feroz e desconfiado dos Puris e
Coroados que vira no Vale do Paraíba, pasma de surpresa e admiração ante a
beleza, a força e a afabilidade de trato dos índios que vai encontrar na
Amazônia. E vem-lhe esta tirada ao observar alguns índios que remavam
numa canoa: “Artistas deviam visitar estas regiões. A vista de tão belas
formas e atitudes traz a recordação de estátuas da antiguidade, pois entre este
povo o livre desenvolvimento da força e da forma do corpo não é
prejudicado pelas roupas e pela efeminação; tudo é natural e a afetação é
desconhecida, tanto nas atitudes como nos movimentos” (CRULS, 1976, p.
271).
testemunha no documentário de Cruls, Hiléia amazônica, como nos sugere a citação acima.
Então, terá sido, Frei Apolônio, um resultado da transformação do próprio von Martius. E o
convite aos artistas, da parte do Príncipe Adalberto da Prússia, para, conforme a passagem
acima, “visitar” o território apinhado de uma superstição cavernosa criada durante o “ciclo da
borracha” e que metia nos brasileiros o medo desejado pelos estadunidenses, foi atendido,
entre poucos, por Gastão Cruls, que lá esteve três vezes. Na passagem abaixo o autor nos fala
79
22 de dezembro [de 1928]. [...] Quando eu decidi esta viagem, não foram
poucas as vozes que me clamaram: “Mas que loucura! O que é que você
vai fazer no Norte? Você não tem medo das febres?” Era-me difícil
responder, mesmo porque muita gente ignora a existência de certas criaturas
que já nasceram roídas pelo tédio e em cuja alma se pode ler o Quosque
eadem? de Sêneca (CRULS, 1973, p. 144).
da borracha na Amazônia brasileira, e ávidos capitalistas deixaram para trás o lixo produzido,
Esse cenário nos deixa ver melhor, hoje, alguns porquês da recente onda noticiada na
imprensa televisiva e escrita com respeito a pessoas membros de certas Organizações não
governamentais (ONGs), que fincaram em nosso solo bandeiras próprias em lugar do símbolo
Pois bem, depois desse sobrevôo, notemos que o choque de correção da realidade no
indivíduo, experimentado por von Martius, não é muito diferente do de Euclides da Cunha –
como Cruls – também revelador da realidade brasileira, quando descobre, segundo Paes
(1995, p. 10), “sur le champ, que em Canudos havia muito mais do que a sublevação
monarquista na qual o seu jacobinismo republicano até então candidamente acreditara”. Nesse
sentido, a passagem que segue mostra que o escritor de Os sertões mudou de idéia a respeito
[...] Era uma evocação. Como se a terra se ataviasse em dados trechos para
idênticos dramas, tinha-se, ali, o que quer que era recordando um recanto de
Iduméia, na paragem lendária que perlonga as ribas meridionais do Asfaltite,
esterilizada para todo o sempre pelo malsinar fatídico dos profetas e pelo
reverberar adusto dos plainos do Iêmen...
O arraial “compacto” como as cidades do Evangelho completava a
ilusão (CUNHA, 1995, v. 2, p. 401, grifo do autor).
80
Nesse ínterim, e de volta para a Amazônia de Cruls, mais do que pontos de contato
do escritor é o primeiro documento seu de uma trilogia que compõe a mata, as pessoas e as
relações entre esse lugar e essa gente. Talvez, uma vaga utopia muito próxima da de Graça
Aranha em Canaã, também comparada por José Paulo Paes na análise de Frei Apolônio.
ideológicas bem definidas, mas Cruls lhas faculta uma identidade e instrumentos de
Essa garantia representa um mínimo de humano no que tange à formação de pessoas e mesmo
à aventura por elas reclamada em seu espaço natural, bem como à relação integradora entre
81
completo asselvajamento e fazendo a vida dos nossos índios (CRULS, 1976,
p. 288, em nota à 2ª edição).
dramas e verdades tão presentes em nosso cotidiano pelo folclore amazônico, nacionalmente
pela morte das amadas, a expiação da culpa pelo herói impotente, as traquinices da vida longe
guerreiras, a fantasmagórica aparição da selva para o homem perdido e com medo de sua
fortuna.
visão sensível ao subterrâneo proibido das condições sociais, e uma visão muito próxima do
significado “obtuso” de Roland Barthes (1977, p. 54-5) em sua análise das imagens
(patrocinadas pela visão) e como elas se distanciam dos signos, abrindo o leque das
gente e a Amazônia numa prosa com estilo que faz do narrador que conta a história, mais que
naturalista, um doublê do drama poético. Acena ele próprio com a lira quando encena o
13
Referimo-nos ao romance A Amazônia misteriosa, ao diário de viagem A Amazônia que eu vi e ao
documentário Hiléia Amazônica.
14
De acordo com Paes (1995, p. 11), recurso também na narrativa de Frei Apolônio.
82
Contavam ter sido este lago consagrado à lua pelas Amazonas que, todos
os anos, pela mesma época, se reuniam à sua volta e faziam uma grande
festa à mãe dos muiraquitãs, que nele habitava um palácio encantado. Era,
então, que as icamiabas, ungidas pela luz balsâmica do luar, mergulhavam
nas águas límpidas do lago e iam receber da mãe das pedras verdes o barro
dúctil com que desveladamente trabalhavam os seus muiraquitãs, até que o
calor do sol chegasse para os endurecer e transformar nos magníficos
talismãs. Essa festa coincidia com a vinda anual dos maridos fortuitos ao
Reino das Pedras-Verdes, e aos índios que no consórcio anterior lhes tinham
dado uma filha, as Amazonas ofereciam o muiraquitã que acabavam de
modelar (CRULS, 1958, p. 60).
de perigo: a Amazônia invadida pelo predador humano, brasileiro ou estrangeiro, seu palco
gemendo a profanação de seu ecossistema, a extirpação das espécies e a captura para morte,
Stalin:
Por essa razão ou temor, Cruls recria o mito das Amazonas, despojado da história
malsinada que transformou o mito em lenda 15, com a esperança de proteger a deslumbrante
floresta. Além do mais, conforme nota da editora à oitava edição desse romance, desde a
15
Ver mais sobre o assunto nos capítulos 4 e 5.
83
Conquanto, não é difícil rastrear, na injeção de morfina que o levou a imaginar A
que
Ainda de acordo com Paes, esse culto à Natureza idolatrada encontraria expressão na
Às Parcas
Um sol só,
Ó mortíferas,
Um outono só, Para curtir meu canto.
Que morra então minha alma,
Da doce lira saciada.
Quem na vida
Não prova a divina justiça,
Não fica em paz no baixo Orco.
Mas se uma vez apenas
O sagrado da alma
Meu poema enlaça,
Podem chegar, sombras do inferno!
Grato estarei
Mesmo que a lira não leve.
Ah, viver só uma vez
Como os deuses...
¾ E mais pra quê?
84
O poema de Hoeldërlin16 revela, a exemplo de Schiller e Goethe, que, rebeldes aos
dogmas que a religião estabelecida pretendia perpetuar às custas da inércia dos fiéis
propósito, n’A Amazônia misteriosa de Cruls, a Natureza é vista como Deus quando o
narrador afigura o rio como “tormentoso”, equivalente de rio impetuoso, o que traz à tona a
idéia de fragilidade do homem e de sua “tosca” embarcação, que bem poderiam, a qualquer
momento, serem tragados pela volúpia fremente daquelas águas-deusas e, se não por elas, não
faltavam ali os imensos jacarés não descabidamente afiançáveis por crocodilos ou dragões
Como em Frei Apolônio, analisado por Paes, e como pode ser visto nos “Capítulos 4 e
formação. De acordo com Paes (p. 12), referindo-se a Frei Apolônio, “a essa poetização do
Já que Paes dialoga com Rosseau na análise de Frei Apolônio, podemos dizer que n’A
Amazônia misteriosa o mito de Rousseau migra para uma lenda multiforme e figurativizada
pela personagem Ataualpa, o grande senhor dos Incas 17. A transcendência dessa personagem
interior, sugere uma origem para os índios da Amazônia; todavia, com uma propositada
alocação do poder das pedras verdes, conhecido não pelos Incas, mas pelos Astecas. E este
16
Poema traduzido por Antonio Medina Rodrigues e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jul.
1988. Suplemento Folhetim.
17
Povo pré-colombiano que viveu na América Central e Norte da América do Sul.
85
lugar, a aldeia animada “ao som de torés e maracás”, proporcionará ao nosso aventureiro
refletir:
Tal como, segundo Paes, sentiu Hartomann em Frei Apolônio, há, na necessidade
interceptada pelo narrador d’A Amazônia misteriosa de experimentar o novo, longe da neblina
e paisagens ocres da Europa, perdido nas sempiternas florestas verdes da Amazônia, uma
repercussão do naturismo de Rousseau, espelhado por Paes. Tanto mais que o que leva o
visionário até à escritura de sua fantasia é não apenas o interesse do cientista pelas
humanidade do índio.
A propósito, como bem relativizou Roberto da Matta (1981, p. 115), esse lugar, “o
é dado por posição, o observador pode comparar pelo contraste esses pontos críticos com
outros pontos críticos de outras instituições de sua ou de outras sociedades”. Com efeito, no
encontro com a personagem inca, o narrador que conta a história da A Amazônia misteriosa
ouvirá:
18
Obs: A nota (3) é do próprio autor: Nome por que são conhecidas, em quíchua, as flores da Habrantus
Chilenses, da família das Amarilidáceas.
86
arma o tosco machado de pedra? Não meu amigo, não foi isso o que
encontraram os descobridores, mas povos perfeitamente constituídos e
organizados, e que, talvez, nada ficassem a dever às civilizações do Oriente
(CRULS, 1958, p. 84).
viagem ao encontro dos selvagens amazônicos, seja sob a ótica do mito das “Amazonas”, seja
entrada, finalmente no romance, no último dia relatado sobre a forma de diário, o narrador
lembra Byron em sua Oração à Natureza, pensando nos estados de tirania por que passavam
Esse estado de tirania capaz de subjugar humanos sem dogmas, de fazê-los prostrar
Natureza, desejado por J. J. Rousseau, depois por I. Kant e por Johann G. von Herder,
evangelizadora, não rendia a manutenção da identidade cultural dos índios. Havia a outra
utopia: aquela que perseguia o objeto de uma cultura única que anulasse as diferenças e
construísse, com o passar do tempo, uma raça geneticamente pura. O fastígio dessa ideologia
e sua queda, somados à derrocada de outras ideologias similares contribuíram para uma visão
social principiada no dialogismo, mas não impediu a “cruzada etnocida” (PAES, 1995, p. 13)
que pode ainda hoje ser surpreendida em território da nossa Amazônia, e claro que não só
nela.
nativo, são vistos como protagonistas de um estado de barbárie por essa mesma sociedade que
consagrou os pensadores modernos, dos quais se destacam Rousseau, Kant, Leibniz, Francis
Bacon, René Descartes, entre outros qui dedit nobis signum. A dicotomia é latente: apregoa-se
87
a defesa da cultura indígena, mas não sem a integração dessa comunidade natural à
comunidade maior, pensada como “civilizada” sob padrão do positivismo, assim assinalado
abatida, já que ainda não havia edificado cidades, mas de ode tão funesta quanto a do
sacrifício dos Incas, dos Astecas e dos Maias. Por outro lado, em uma pintura dos nossos
aborígenes, assim se manifestará o naturalista Alfred Wallace (apud CRULS, 1973, p. 88):
“Suas figuras são soberbas e diante das mais perfeitas estátuas eu nunca senti prazer igual ao
que encontrava admirando esses modelos vivos da beleza a que podem atingir as formas
Entreouça:
[...] essa visão retrospectiva, pelo tempo atrás, é o maior libello que ainda se
escreveu contra a crueldade, a ferocidade, a bruteza dos conquistadores que,
em nome da cultura christianissima do occidente europeu, destruiram, com
requintes de selvageria inenarravel, a obra secular de uma civilisação
ignorada. Só deixaram a ruina e o horror de seus feitos, pelos expedientes
que usaram: a guerra, o perjurio e a traição, antes; a barbarie, a
pusillanimidade e a covardia depois... (MENNUCCI, 1934, p. 197-8).
19
Obs: O narrador não leva nessa consideração os índios exterminados na América do Norte.
88
Note-se que em nome do mesmo evangelho apregoado como salvador, o europeu
Zero” dos Maias, inexplicavelmente, pela ciência moderna, mais preciso que o “Calendário
Deste e de outros conceitos que para aqui não seria difícil trasladar, vem-nos
o justificado pesar de que toda essa gente não houvesse sido melhor
aproveitada na formação da nossa nacionalidade. Infelizmente, não
pensavam assim os colonizadores, afervorados no extermínio do nativo, que
lhes era entrave à posse rápida e total da terra. Agiam deste modo para
depois recorrer ao tráfego dos negros... (CRULS, 1973, p. 88).
(PAES, 1995, p. 14) que acompanha o jogo de xadrez dos movimentos e ações sem volta ou
enredam: como von Martius, em Frei Apolônio, o narrador de Cruls mostra a utopia e a
protagonista n’A Amazônia misteriosa e narrador que conta a história) recruta para essa
lugar e profundo conhecedor dos caminhos do rio e das trilhas naturais da selva, o que não
impediu que a expedição se perdesse. Será a essa personagem que o narrador da história mais
queda original, com efeito, o ideal utópico de Rousseau. Diante do gigantismo amazônico, o
20
Palavras que transcrevemos à página anterior, no corpo do texto.
89
médico-cientista, figurando um narrador-personagem, imagina-se um homem assim como o
Pacatuba, um vivente que estivesse vivenciando o divino ato da criação que começava dali,
protagonista.
silêncio com que testemunhava os acontecimentos, para só falar com a precisão da hora
acertada, eram as qualidades mais apreciadas e desejadas pelo médico de cultura milenar, que
rebater os vícios e os males da civilização, fazendo-a notar, talvez, que a felicidade plena,
fantasiada por todas as gentes em todos os tempos, mora nas coisas mais simples. E que
21
Esta última frase entre aspas seria do próprio Hartomann, enquanto as anteriores seriam de Rousseau.
90
depende apenas do que, na passagem abaixo, o narrador que conta chama de “sábio
comunismo”:
miscigenação, idealizada pela utopia: íntima dos brancos, e desejosa de fugir com eles, será
vigiada, perseguida e morta pelos da sua tribo, pois que vista como traidora do sagrado
culturas não tem qualquer sentido se não tiver caráter inclusivo em vez de exclusivo, como na
91
A seu tempo, a experiência do alemão Hartmann na Amazônia misteriosa, seguindo
modelo do Dr. Moreau de Wells, é pano de fundo para outra experiência do narrador-
crulsiano constrói sua narrativa com o imaginário da Amazônia e sua gente, não tão edênico
como o queria Rousseau, nem tampouco o lugar esquecido de uma cultura “degenerada,
“sopro de loucura” na Europa, cujas ventas arroubaram meio século com duas Grandes
Guerras Mundiais e tantas outras guerras, chamadas locais, mas que continuavam matando em
nome de Deus e dos interesses da civilização em todo mundo. Consciente desse quadro, o
enquanto acontecimento harmonizador do homem natural com o civilizado, ainda uma vez
em suas observações, destaca sempre o mérito das diferenças e nunca o que hipoteticamente
possa ser prescrito como melhor ou pior exemplar da raça humana. Nesse sentido, a
diversidade analógica do narrador que conta converge para a diversidade natural do ethos
92
distopia de uma manutenção canhestra da cultura indígena. Com efeito, o médico aventureiro
Nessa viagem, que fará quase dez anos depois da idealização da A Amazônia
misteriosa, o escritor Cruls tem a oportunidade de confrontar imaginário e realidade por ele
mesmo. Sem nenhuma demagogia é isso mesmo que ele faz no diário de viagem A Amazônia
que eu vi. Nele, o presencismo da diversidade pautada pela ideologia civilizatória e pela senão
inocente, ingênua natureza dos naturais amazônicos, aponta os motivos por que quer a
integração a sociedade que auto proclama-se civilizada, e os motivos por que os naturais
deveriam, caso soubessem, reagir ao aculturamento. Aculturamento que teve seu impulso
respondera seriamente na passagem acima aos protestos do Dr. Djalma Batista, inclusive,
alinhavra nos seus “Agradecimentos” para o A expressão amazonense, pedimos licença para
inserir, entre aqueles que estremam de uma literatura contorcida na resignação, o nome do
93
A preocupação do artista com a degenerescência da raça indígena por força do contato
com a corrupção branca aparece, ainda que rarefeita, sombreada em muitas passagens em que
propósito de uma opinião formada, a princípio sua, e que passa, a partir do expediente na A
Amazônia que eu vi, a contribuir, ainda mais forte, para a formação do humano por uma
preservação como habilidade do homem ser natural para manter viva a Natureza, como aliás
aparece nas páginas e aquarelas de seu último livro publicado sobre a Amazônia, a Hiléia
amazônica, cuja edição princeps conta com pranchas coloridas de Hilda Velloso e Armando
[...], enfim, pelo bom gosto e apurado acabamento artístico de tudo que
concebem e realizam com a máxima perfeição, que eles não são de nenhum
modo os irmãos bastardos dos Tapajós, Omáguas ou Curizaris, que tantos
gabos receberam de Acuña, Heriarte e outros cronistas que ainda os
conheceram, nem tampouco são filhos espúrios daqueles outros que na foz
do Amazonas nos deixaram tão evidentes provas da sua civilização (CRULS,
1976, p. 276).
capítulo seguinte, ainda em “Busca da Herança Negada”, um diálogo sobre como Cruls,
homem e artista, foi lido por sua crítica. Nesse diálogo, cada crítico aparece em ordem de
chamada cronológica e tem, cada um deles, o seu nome destacado de forma a nos guiar, aqui e
...
Capítulo 3
94
Diálogo com a Recepção de Gastão Luis Cruls na crítica brasileira de 1933 aos dias de
hoje
A procura dos textos com os quais dialogamos foi uma empreitada que demandou
turbulências burocráticas, necessárias para aquisição de textos que não podiam ser
fotocopiados e tiveram que ser transcritos à mão; nos obrigaram, por conta do tempo que não
pára e dos prazos que nos vencem, a cessar a procura, a ajuntar o que havíamos encontrado e
transcrevermos as palavras dos críticos aqui reunidos, citaremos as páginas de sua localização
na “Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls”, incluída no “Volume 2”; exceto no caso
integral dos textos, seus respectivos autores e todas as informações essenciais, inclusive, a
paginação de início e fim dos textos originais. Textos que, aliás, se encontram esparsos e, em
alguns lugares, em péssimas condições de conservação. A propósito, nem todos eles são aqui
...
A voz da crítica é mais uma pintura do acontecimento, pela palavra. Mais uma forma
de narração do fato no tempo ¾ uma nova leitura ou comentário. A primeira pintura crítica na
23
Comentário a respeito de Murilo Mendes, publicado no Jornal do Brasil de 24 fev., 1972.
95
recepção de Gastão Cruls inicia-se a partir de 1920 com os primeiros contos publicados e
adquire tons mais intensos, com o sucesso de A Amazônia misteriosa (1925). Neste capítulo,
AGRIPINO GRIECO
brasileiro na obra de Gastão Cruls. Segundo esse crítico, Cruls soube perceber os detalhes da
Gastão Cruls é apresentado por Grieco como escritor de contos e romances; afirma,
entretanto, que “o romancista nele é bem mais vigoroso” (p. 277), e cita como exemplo, desse
acreditamos que essa influência pode ser sintetizada à atmosfera fantástica de Kipling, ao
populares à época, pelo vigor intelectual e sensível, sabendo brindar o leitor mais exigente,
conforme as palavras do crítico, com aquele “sorriso interior” (p. 278) e uma ponta de ironia
Além desses destaques, Grieco parece sugerir que a tecitura d’A Amazônia misteriosa
conto de estrato nordestino, que conjuga as lendas e paixões do agreste. Assinala também a
forte presença da temática do nacional na obra de Cruls, explicando-a, por esse prisma, em
96
função do interesse do artista pela Natureza, pelas pessoas e seu modo de vida no dia-a-dia.
Nesse sentido, pois, Cruls é regionalista assim revelando-se desde a língua que as suas
Amazônia pululante de Grieco, tão diferente, segundo ele, das florestas da Guiné Bissau, onde
Maurice Maindron, lá estando, disse não ter encontrado palavras do crítico: “nem pássaros,
nem mamíferos, nem répteis, nem mesmo uma mosca ou borboleta” (p. 278). Esse evidente
exagero de Maindron, na verdade, não deve chegar até nós entendido ao pé da letra. É mais
uma comparação que o crítico Grieco faz entre a descrição das duas florestas, com clara
Strauss que vê, na floresta de Tristes trópicos, particularmente na amazônica, uma “opressão”.
Por assim dizer, um comentário mais apurado sobre esse espaço florestal, comparado por
é precursor, surge na década de vinte quando a voga modernista era ainda uma posição
moderno nacionalismo ou da atenção maior dos escritores para essa temática contraposta a
em idos dos anos trinta, um nacionalismo com consciência crítica, como o que aparece, por
Anima-se, então, a paisagem. Tanto à orilha do rio, como nos tesos da ilha
lobrigam-se casinhas humildes, quase todas soerguidas do solo, para fugirem
aos riscos da enchente, e tendo cada qual o seu portinho, por vezes numa
nesga de areia alva, onde descansam as canoas.
97
De novo, espanta-nos a destreza com que tenros curumins cortam as águas
do rio pagaiando sozinhos à proa de frágeis e minúsculas montarias. Não
raro, vem-lhes mesmo o capricho de se afoitarem até a maresia despertada
pelo nosso comboio, onde as casquinhas de noz guinam e cabriteiam sobre
as levadias, para maior gáudio dos seus palinuros. Observando-os em tão
perigoso folguedo, acode-nos a idéia de Rodway, que, no testemunhar a
habilidade com que os indígenas da Guiana pilotavam as suas embarcações,
se recordava do velho mito de uma criatura meio-homem e meio-peixe.
(CRULS, 1973, p. 4, grifos do autor).
É nesta passagem de A Amazônia que eu vi que Cruls apresenta uma visão de análise
Nela diverge bastante, por exemplo, do boêmio Álvares de Azevedo, visto por Machado de
Assis como um dos mortícolas da zarabatana de Byron. Que as visões de Cruls e Azevedo
sejam diferentes em relação ao ambiente da Amazônia não surpreende. É até natural que
assim seja, se considerarmos as escolas literárias nas quais tomaram parte. Mas não cremos
que a divergência quanto ao pensamento sobre o lugar amazônico se justifique nessa questão
de estética. A opinião do autor da Lira dos vinte anos é parte da realidade ainda hoje, apenas
precocemente estampada (se dada como conclusiva), o que não é segredo nenhum, já que ao
extraordinário artista, morto aos 20 anos, foi negado o tempo de amadurecer e colher os
Falam dos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas na
floresta, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido ao menos
uma noite, como se acordassem procurando túmulos, e perguntando como
Hamlet no cemitério a cada caveira do deserto o seu passado. Mentidos tudo
isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que esqueceu-se
talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco há
insetos repulsivos, répteis imundos; que a pele furta-cor do tigre não tem o
perfume das flores... que tudo isto é sublime nos livros, mas é
soberanamente desagradável na realidade! (AZEVEDO, 1998, p. 89).
Ora, uma realidade que o artista boêmio e urbano não conheceu. Seu comentário aí é
pessoal e recriado na forma de poesia: uma poesia que flexiona a passagem das horas no
impressões que, aliás, não são exclusividade de uma época, portanto, não refletem uma
98
coerência apenas estética, mas também a sinceridade do homem Álvares de Azevedo naquele
momento.
arte de Gastão Cruls, Grieco – um dos grandes amigos do artista, comenta então, ainda que
sucintamente, a narrativa crulsiana perpassada “da Coivara à Vertigem”, título este de seu
responsáveis pela incorporação de sua diversidade temática. Entre tais especificidades, Grieco
destaca a dualidade campo/cidade nos contos de Coivara, os “espectros do meio-dia” (p. 363)
Amazônia misteriosa, o duplo em Elsa e Helena, o diálogo literal entre o artista e a obra de
arte no A criação e o criador; que nos faz pensar no diálogo entre a obra e o leitor em Se um
viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino. Ainda bordando com esses pontos-cruz da
manta crulsiana, o crítico ponteia a “sequidão esquemática” (p. 363) no diário A Amazônia
Oportunamente, queremos retomar apenas dois aspectos destacados pelo crítico: “os
em um dos contos que, por sinal, traz o mesmo nome dado a todo o volume: “Ao embalo da
rede”. Temos aí um exemplo do que Agripino Grieco chama “espectros do meio-dia”, e que, a
seu ver, “não são menos bem vistos [pelo leitor] que os espectros da meia-noite dos discípulos
de Edgar Allan Poe e E. T. A. Hoffmann” (p. 363). Com efeito, um “fantástico do comum” (p.
99
Fôra justamente a um incidente ocorrido durante a noite em que velara o
cadáver da futura sogra, que Otávio atribuía o rompimento. Na câmara
ardente, achando-se por um momento a sós com Elisa, possuira-o de súbito
uma excitação estranha, que o levaria sem dúvida às maiores loucuras, se a
noiva, logo às primeiras carícias, o não houvesse repelido com um gesto de
horror. Datava daí a radical transformação de Elisa, que desde êsse dia se
retraíra e era cada vez mais fria para com êle. Não havia engano: era esta a
única razão do rompimento (CRULS, 1951, p. 218).
carruagem do guia sem rosto, o Totem crulsiano d’A Amazônia misteriosa. Tal análise nos
é uma pretensão futura, mas já fica aqui sugerida a quem queira nos acompanhar nessa
Em poucas linhas, diremos apenas que o conto “Ao embalo da rede” embala, no duplo
uma simbologia da transcendência do dia para a noite e desta para o dia, continuamente, como
numa viagem de raios translúcidos por espelhos labirínticos; daí, o efeito do pânico, do
Quando Grieco quer dizer que o fantástico diúrno de Cruls é tão bem visto quanto o
fantástico noturno de Poe e de Hoffmann, o crítico está entendendo essas duas estacas do
paraíso, no desejo de um lugar ao sol, no encontro com uma felicidade mal iluminada por sua
existência putrefata e mortal, como no velório do Coronel Antenor Ribeiro, que antecede a
cena do velório da mãe de Elisa e é palco para uma relação inusitada entre Otávio e a viúva
100
Transportado numa rêde, o corpo do coronel chegara à fazenda pouco antes
de mim e fora colocado assim mesmo no seu quarto, aproveitando-se para
isso os próprios ganchos da rêde em que costumava dormir. Aí o vi pouco
depois, à luz bruxoleante e enfumarada das duas velas de carnaúba, que já
lhe ardiam à cabeceira. Estava totalmente desfigurado e irreconhecível, com
um grande rombo na testa, a cabeça tôda empastada de sangue e duas postas
negras em lugar dos olhos. Depois, a despeito da secura do ar naquelas
paragens, já havia sinais francos de decomposição e mal se podia respirar no
quarto (CRULS, 1951, p. 222).
Não sei onde li, já há muitos anos, certo episódio ocorrido com um caçador
que, transido de pasmo e medo, por uma noite enluarada, no deserto indiano,
foi forçado a presenciar os longos e ferozes amores de dois grandes tigres de
Bengala.
Pois nós nos amamos assim, naquela noite, soltamente, brutalmente, com o
calor dos animais no cio, enquanto as velas crepitavam sempre e o ar era
cada vez mais pesado das podridões do morto.
Agora, há quinze dias, na casa de Elisa...
Otávio tinha de novo a voz embargada pelo pranto e mal podia prosseguir:
¾ Tu dirás que foi o perfume das flores... Eu tenho a certeza, porém, de que
foram os primeiros sinais da decomposição (CRULS, 1951, p. 224).
“Ao embalo da rede” é, pois, um conto tão ao gosto do leitor de literatura fantástica,
Gautier. Mas, será com A Amazônia misteriosa, romance que, a nosso ver, sincretiza espectros
do meio-dia e da meia-noite da ficção de gênero fantástico, que Gastão Cruls obterá, assinala
363).
Espairecendo agora a Vertigem, Agripino Grieco nos diz que aí “Gastão Cruls tenta
[...] com pleno êxito o romance de costumes”, a exemplo de “Manuel Antônio de Almeida e
Lima Barreto” (p. 363-64). Chama a atenção para o estilo com que o artista flagra o dia a dia
sociólogo Frédéric Le Play e a peça Come le foglie, de Giuseppe Giacosa, para frisar ao que
ele chama “dispersão” e “debandada” (p. 364) da família na sociedade moderna. Nessa
101
família, “exatamente como as folhas [...] os corações novos se vão espalhando por todos os
De fato, concordamos com o crítico. Porém, apesar de nem tão novo, o Dr.
rua dolorosa do decálogo hebreu. Mercedes, filha de uma empregada da família Marcondes,
que fugira com o namorado, representa o que há de novo no coração do velho Doutor:
Por esse prisma da Vertigem, desponta uma sociedade que se finge desavisada,
vivendo e girando a grande antítese do imaginário humano; da vida, da qual a arte é sempre a
102
SUD MENNUCCI
misteriosa, de Cruls, no que ela tem de mais vivo: o espírito do “Salambôo” (p. 280).
dos anos 240-237 antes de Cristo, em um momento de revolta dos mercenários. No contexto,
crescer a invasão dos povos bárbaros e a ameça de perda dos territórios conquistados.
histórica, [...] “traz tamanho cunho de vida efetivamente vivida, de episódios e cenas
verdadeiramente realizados, desenrola-se com uma tal riqueza de pormenores, com tal
um conjunto que diz respeito ao modo de vida bastante singular de uma tribo da floresta
amazônica. Gastão Cruls a narra como se tivesse visto com seus próprios olhos. As
personagens aparecem, entram em cena com desenvoltura e graça; a mesma graça com que se
despedem de cada ato de que participam. É isto: um teatro a céu aberto. Uma representação
um modo que o artista Cruls escolheu para falar aos seus leitores, buscando a sensibilização
das gerações futuras para com os nossos índios. Das gerações futuras, porque, fora das
páginas da ficção científica não existe uma máquina do tempo capaz de nos teletransportar
para o passado, a fim de repará-lo. O que foi feito, feito está. E é esse feito está que nos
103
permite, a nós aqui do presente, a reavaliação dos acontecimentos passados, do encadeado
histórico que criou o estado atual. Sairá dessa rediscussão a escolha de uma nova perspectiva
de comunhão ou não entre a sociedade dos que já estavam aqui e a dos que vieram depois.
Abrindo uma janela no contexto histórico, vamos avistar a passagem que Sud
Mennucci verbera com “esta certeza deixa-nos tristes” (p. 281). O crítico aí se refere à visão
que Orellana teria tido de umas mulheres guerreiras, e considera essa tal visão, improvável.
Mas, na mesma página em que o autor Cruls (1958, p. 57) diz que as Amazonas foram vistas
por volta do ano 1500, uma “primeira e única vez, por Orellana e seus companheiros”, dirá
também que muito antes dos conquistadores adentrarem as paragens da nossa selva “já os
brasileiras, que como personagens nas histórias verificáveis de Cartago, e ainda (graças aos
conquistadores) nas não verificáveis dos Incas, Astecas e Maias, ¾ viveram na pele de pessoas
que tentaram proteger a si e a seus filhos do genocídio. Talvez, entre elas, um dia houvesse
estado, historicamente, “Pentesiléia e Taléstris” (CRULS, 1958, p. 54), rainhas mais famosas
das Amazonas brasileiras, aqui coloridas no poema “Delenda Cartago” de Olavo Bilac (1997,
p. 104):
...
104
Heróicas, abafando os soluços e as queixas,
Cortavam-nas.
Essas tranças da cor das noites tormentosas... Quantos lábios ardendo em sedes
luxuriosas, As tocaram outrora entre febris abraços!... Tranças que tanta vez ¾ frágeis e
doces laços! ¾
Olavo Bilac introniza, com perfeição parnasiana, o quadro das Amazonas brasileiras
como defensoras da etnia local, e como guerreiras contra a opressão do delenda omnia,
ameaça que vinha por parte dos conquistadores: essa, a verdadeira opressão da floresta.
cartaginesa, redivive na A Amazônia misteriosa. E, Gastão Cruls, situado pelo crítico como
“romancista de larga envergadura” (p. 286), verbera uma importante e necessária empresa de
acrescentaríamos.
105
Oxalá seja como resolve o narrador da A Amazônia misteriosa, na cena em que o
entre as civilizações:
TEXTO ANÔNIMO
Cruls Vertigem”, em 1934, para o jornal “Gazeta de Notícias”. Compara esse romance aos
Cruls constitui um importante veio literário que, a cada criação, como também afirmará
Nelson Werneck Sodré (1995), parece aprofundar o esmero com que o artista constrói suas
narrativas e aquilata seus dramas. Esse constructo, preenchido pelo suspense inesgotável e
pela complexidade temática, nos presenteia com uma arte ao mesmo tempo fluída e
106
Da segunda, ganhou o espírito do aventureiro, a pulsação do sangue latino, como
veremos em Silva Melo (1959) nas Recordações de Gastão Cruls. Dividido, precisou de um
Desse modo, não concordamos com o crítico quando ele faz diferenciação entre os
meios que mais influenciaram a composição romanesca de Cruls. Entre outras virtudes, o
povo belga, do qual Cruls descende, é conhecido por sua capacidade de criar palavras a partir
contornos de sua cidade natal, o Rio, ofertaram ao artista uma visão rica em contrastes, que de
maneira alguma se exprime em modo “baço” (p. 289) e discordante no estilo do autor, mesmo
ressonâncias” (p. 288); um quê, aliás, de ressonâncias tão primas da biologia humana, como
podemos ler nessa passagem densa de uma sexualidade velada entre o Dr. Marcondes e
Clélia, personagens principais da história. A mesma Clélia vista e tratada com os maiores
cuidados do pudor, mas que ele descobrirá ser a amante do fascista Sartori:
107
Ainda pensando nas ressonâncias, mas agora trazendo também algumas conjecturas,
podemos dizer que o cotidiano de um casamento que, pelo que se nota na história, apenas
sedução do desconhecido, que empresta uma atmosfera de sonho à realidade” (CRULS, 1951,
Seguindo com nossa análise, esse real, para o protagonista de Vertigem, nutre-se e vive
a partir do reencontro com Clélia. Reencontro que o faz desejá-la ainda com mais força: com
tanta força que ela já não mais saía de seus pensamentos. Certamente, a química do amor e da
fraternidade supitou no sangue do Dr. Marcondes, ante o gesto inesperado de D. Clélia. Não
sem causa, esse toque provocou-lhe uma daquelas reações químicas que tanto admirou nos
tempos de faculdade, de forma especial, aquelas que tornavam soluções opacas, em coloridas
e brilhantes tonalidades, cuja precipitação mais bela, a seu ver, era a de um “azul intenso, sem
mácula, celestial” (CRULS, 1958, p. 443). Nesse instante tão desejado e tão evitado, tão
libidinoso e tão puro, o Dr. Marcondes era uma vertente do mais nobre êxtase, como se
estivesse no próprio “céu escampo, luminoso e alto, de horizontes nítidos e alegres” (CRULS,
1958, p. 443) depois de uma chuva inesperada e breve num dia de sol. Em suas mãos, os
crítico, explanam uma suave e profunda discrição no estilo Gastão Cruls de lidar com um caso
de sexo em Vertigem. Sabemos, entretanto, que nada dessa discrição existe em Elsa e Helena.
De mais a mais, o crítico acerta quando diz que o verdadeiro drama de Vertigem não é
impenetrabilidade das almas, umas às outras, das surpresas que nos reservam as criaturas que
melhor cremos conhecer” (p. 290). Assim, em seu empreendimento novelístico, o escritor
108
Cruls clama por suas almas flamenga e latina para tecer seu complexo universo ficcional
através de sua prosa naturalmente bela, envolvente, excelsa e magnífica; capaz de nos
JAYME DE BARROS
J. Barros, através de Espelhos dos livros (1936), pendura defronte de nós um espelho
efeito da vertigem, tanto faz olhar a cidade do pináculo da montanha, como o salto no vazio
Discorrendo sobre o romance Vertigem, de Gastão Cruls, o crítico comenta (o que ele
concedido a certas personagens banais e, ao mesmo tempo, o “longo tempo” (293) que as
margeia da narrativa. Tal modo de expor e de retirar os tipos aponta para um certo
Concordamos em parte com as observações de Barros. É bem possível que uma dessas
circunstâncias, a que o crítico se refere, seja recidiva na personagem Rufina a mulata que
fôra ama de leite da menina Rute, filha do Dr. Marcondes, e que é a mãe da Mercedes, uma
mulatinha que fugira com um trabalhador de circo e estava morando num morro. Rufina, a
filha para uma vida incerta, deseja a interferência do Dr. Marcondes. Era essa a esperança
desenhada no seu coração de mãe, conforme podemos ver na passagem abaixo, em (CRULS,
1958, p. 457) “pormenores mínimos, incidentes sem qualquer laivo de importância, [que]
109
¾ A Emília ¾ Seu Doutor sabe, aquela parda gorda, baixa, que mora lá na
avenida e já veio também aqui por causa de uma dor que tinha do lado – pois
foi ela que estêve com a Mercedes. Não vê que ela tem uma comadre em
Madureira, onde o tal circo está trabalhando? Foi por ela que a Emília soube
que a Mercedes está morando na Piedade, em cima de um morro, e então foi
procurar por ela. Diz que ela está muito satisfeita e que não quer vortá.
Imagine, Seu Doutor, que a Emília encontrou ela de pé no chão, lavando
umas panela no fundo do quintá. Uma menina que foi criada com tanto luxo.
Ainda há pouco tempo, quando ela fez anos, com umas inconomias que eu
tinha e mais um auxílio que me deu Sinhá Rute, eu comprei uma cafêse
[coiffeuse]24 para ela, que tinha muita vontade de ter uma. Eu não sei se Seu
Doutor sabe que o Pedro, aquêle rapaz que já esteve aqui de copeiro, quis
muito se casá com ela. Pois quis. Mas a Mercedes dizia que só se casava
com home que fosse mais branco do que ela. Deus me perdoe, mas pra
arranjá um branco daquela ordem... Seu Doutor não acha que se a polícia
quisesse (CRULS, 1958, p. 457-8)...
O crítico parece sugerir que a prática de igual detalhismo descricionista seja um vício
porque J. Barros fez menção do romance A cidade e as serras, de Eça de Queiroz, pensamos
que o detalhismo, na Vertigem, resulta mais de uma provável vinculação do contexto histórico
desse romance à estética realista, que propriamente ao realismo literário ou mimético; por sua
segunda história, não por acaso filiada à primeira ou principal, em que as personagens-núcleo
comparada por Barros, conforme suas palavras, à construção “de Luciano de Rubempré, de
que Wilde se lembrava com amargura, nos momentos de maior e mais clara alegria” (p. 294).
Segundo o crítico, a caracterização do Dr. Marcondes é tão forte, sintetiza com tal fidelidade
esquecido.
impressão forte do autor. Uma impressão que o leitor atento não esquece, seja pelo sorriso em
24
Esse reparo é do próprio autor.
110
tom de deboche, seja pelo tom lívido ou avermelhado da face numa circunstância um tanto
embaraçosa. A propósito, um exemplo de tom de deboche pode ser visto numa francesinha
que faz companhia ao Dr. Marcondes e seu amigo Dr. Braga um tipo namorador que
resolvera levar o amigo para afogar algumas mágoas e agora se encontravam ali, numa pensão
da caftina Mme. Jeanne, nessa passagem em que o Dr. Braga tenta atiçar o amigo e é
desavergonhado:
¾ Você já reparou que olhos tem essa pequena? Parece uma Madona.
¾ Nossa Senhora de Todos os Pecados, é assim que um rapaz que vem aqui
gosta de chamá-la, disse Mme. Jeanne.
¾ Veja também as mãos. São dois verdadeiros biscuits, insistiu o Dr Braga,
dirigindo-se sempre ao amigo. ¾ O resto eu não elogio porque não conheço.
A rapariga fez um amuo e protestou:
¾ Polisson! (CRULS, 1958, p. 477, grifos do autor).
colocação do detalhe crulsiano, um dos detalhes que o crítico entende como banal. No caso, o
que esse mesmo detalhe cria a identidade da personagem, nos fala dela e nos faz sentir a sua
falta. De fato, então, é uma personagem que existe. Com efeito, é ainda a prática do detalhe
111
crepúsculo se preparava para receber o manto da noite (CRULS, 1958, p.
460).
Quem poderia dizer que o colorido desse anúncio seria ressonante mais de cem
páginas à frente, quando o Dr. Marcondes, novamente absorto nas pensativas proporcionadas
por D. Clélia, ouvindo do imigrante francês, de nome Franz, que as “flôrres” lélias estavam
Talvez a mesma lélia da Lélia de George Sand, seguramente lida por Cruls, aqui
representado pela imagética realista do mau caráter, qualidade negativa nem sempre
escolhida, mas que se pensa dissimulada e que se teme vergonhosa, que se faz em mau juízo e
estigmatiza a personalidade do próprio caráter. Amando Clélia, o Dr. Marcondes teria, apenas
cama, ele a teria só para si. Clélia, acamada, também não desejaria outra coisa que não os
cuidados do médico. E, assim, a vivência de um amor sadeano nas suas profundezas, jamais
que o mau caráter na verdade nada tivesse de mal, a não ser o aplacamento das expressões
íntimas que tanto quiseram ser ditas. Este sim, um recato, e considerado por nós o grande mal.
LIRA CAVALCANTI
Em seu artigo “Elsa e Elena” para a revista “Leitura”, em 1944, Lira Cavalcanti parece
psicanálise no romance Elsa e Helena, de Gastão Cruls. Centra sua análise em torno das
112
personagens principais e, sobretudo, em “Elsa Helena” (p. 294). Isso mesmo: o crítico fatora a
sujeito composto. A idéia, provavelmente, é revelar que se trata de uma só pessoa com dupla
características bem definidas, segundo os estudos freudianos: “em Helena: [vivem] os traumas
afetivos, o despertar alarmante das forças intempestivas, o affect freudiano nos seus distúrbios
escoantes”, [...] “em Elsa vive tudo em recalcamento sob o guante severo da censura” (p.
295).
a mulher para ser a mãe de família, a esposa devotada e a senhora do lar; a outra, a mulher
para despertar, satisfazer e provocar o desejo irrefreável pelo sexo. Talvez aí, pensamos, a
biopsíquica do sonho, sob as “penas de Hesnard, Laforgue, Alendy, Pichon Saussure e tantos
outros” (p. 295), como indica Cavalcanti, possa dar pistas de uma divisão não
patriarcal, e sob o estigma de Eva, devia viver sob as condições de Adão e da lei de Moisés.
ojeriza, e atemorizado pela suspeita de traição que parecia se confirmar, assim descreve as
113
A hipocrisia da sociedade da época é muito bem explorada por Cruls, que deixa claro
o sofrimento da mulher na passagem acima. Lendo Elsa e Helena, assistimos, como diz
suavidade, a carícia terna, o consciente dócil e meigo, em Elsa” (p. 295). O crítico aí nos
ambiente que tão naturalmente convida e estimula a sua prática, como o ambiente tropical
brasileiro. O resultado dessa falsa moral é que a libido toma formas ainda mais
surpreendentes. Não obstante, é o caso da dupla personalidade de Elsa. Fôra tão terrível o
encarceramento a que ela e outras de sua geração passada foram submetidas, que a
manifestação do duplo se auto-representa como uma maldição. Uma maldição que desperta
um desejo irrefreável e sem limites simplesmente em função da liberdade negada, e que vai
fazer de Elsa, por exemplo, a mulher casada que trairá o marido com o cunhado Mário, a
criatura insaciável e dominadora, a outra dela mesma vinda “dos recessos mais íntimos da
personalidade de Elsa” (p. 296), que se revelará irresistível e desmoronador. Dessa forma, e
psicanálise de Freud deram a Cruls farto material para o exame de casos da mente, do coração
Nesse sentido, consideramos também que Elsa e Helena, duas mulheres unidas por
uma “benquerença recíproca”: Elsa, “um lio de sentimentos brandos [...], de graça e recato”
(CRULS, 1958, p. 291); e Helena, um vórtice da volúpia impetuosa e volúvel, não tinham
que necessariamente ser uma e outra. Bem poderiam ser uma mesma pessoa, a mesma Elsa ou
a mesma Helena, desde que livres dos grilhões da recriminação sexual, cuja efusão era tratada
por muitas famílias, à época retratada pelo romance, à base de morfina e do aprisionamento.
114
Com efeito, a condição na qual Elsa passa a ser declarada assiste um esquecimento
legalidade familiar.
Assim, compreendemos que na escritura sem magia de Elsa e Helena, a cada palavra,
metáfora do duplo uma teia astuciosa para envolver a “Esfinge” e enfrentá-la. Constitui-se
assim um labirinto através do símile Elsa Helena em busca da introspecção. Nesse sentido, o
ganho do subjetivo que parece diluir a verdade é um esforço para traduzir a tensão do ato da
tormentoso como o cilício, cujo rosto é o retrato do transbordamento do eu-lírico nos rostos
e desencontros de uma sociedade confusa, para qual efeito muito contribuiu a técnica do corte
francês no romance; técnica que, aliás, é-nos apresentada por Coutinho (1986) com vistas ao
romance crulsiano: além de Elsa e Helena, também aos romances A Amazônia misteriosa,
Vertigem, A criação e o criador, e, a nosso ver, de forma ainda mais significativa em De Pai
a Filho.
ASTROJILDO PEREIRA
115
A. Pereira, em Interpretações (1944), reunindo ensaios e estudos seus de 1929 a 1944,
Pereira interpreta esse romance de Cruls como o “espelho da família burguesa” (p.
294). Afirma que se trata de um romance revolucionário, na medida em que apresenta uma
barbárie social que, a propósito, vivemos hoje em dia. A nosso ver, portanto, a interpretação
de Pereira é um bom exemplo de uma análise que observou as diferenças de tom e de forma
das palavras na maneira de exprimir o conjunto de episódios verossímeis, que forma a trama
da ficção romanesca, sendo esse conjunto, um conjunto de coisas idênticas, já que construído
crash da bolsa de Nova York, entre as duas Grandes Guerras Mundiais, o crítico, na
intérprete de Vertigem. O seu Interpretações, além de sugerir uma certa ordem cronológica
através da datação dos ensaios e estudos arrolados, indica um pensamento que retoma fatos
históricos para explicar a história ficcional. É assim que, para analisar a sociedade burguesa
116
em desagregação, Pereira utiliza o Manifesto Comunista de Marx (1847) 25, demonstrando
dessa sociedade levava junto a família. Um comentário, talvez taciturno, mostra-nos a que
vitupérios o desânimo nos pode lançar depois de sucessivas crises, sintoma generalizado da
Vencida essa crise mais aguda, mas tão grave que exigiu da família uma
longa temporada em Teresópolis, ainda por muito tempo o estado de Licinha
continuou a preocupar o pai. É que a empolgou de vez uma melancolia
irremediável, que só encontrava consôlo na prática de devoções e assídua
freqüência às igrejas e, a pouco e pouco, se ia transformando em verdadeira
mania religiosa (CRULS, 1958, p. 437, grifos nossos).
Vertigem, tipos de uma burguesia celerada, coadunam com os tipos burgueses de qualquer
burguesia do mundo, com inverossimilhança apenas para a então União Soviética, naquele
primeiro trino de dez anos do século XX, única sociedade não-burguesa, excetuando-se a
realidade oriental. Tal aproximação acontece porque os motivos que fazem funcionar as
pessoas inseridas nesse sistema são os mesmos em todo o mundo, isto é, a autodoação, sem
burguesia no século XX e que a está desintegrando em nosso século, pelo primado soberano
da sociedade de consumo.
Entrementes, esse problema já era apontado por Gastão Cruls na Vertigem que retrata
os primeiros trinta anos da burguesia industrial do Brasil do século XX. Em sintonia com
outros de seu tempo, como Coelho Neto e Olavo Bilac, Cruls participou ativamente, através
25
O autor deve ter tomado como base o ano em que os comunistas se reuniram na extinta URSS, para apreciar
uma primeira versão do Manifesto ainda não publicada. Como se sabe, a história indica o ano de 1848, data da
publicação do Manifesto em Londres, como o ano do aparecimento do Manifesto Comunista.
117
de sua obra, da vida política e social do Brasil, ao que cabe o balanço de Olavo Bilac sobre os
preocupavam mais com o brado da matéria que com o humano. Como se os desgostos, as
mazelas e toda dor que verve de um ser sempre em perigo: o grito de uma gente que morria,
Revela-se, pois, a Vertigem de Cruls, em seu aspecto social, nessas palavras de Pereira
NEY GUIMARÃES
principalmente pelo plano da narrativa sobre a paisagem amazônica. Oferece-nos uma leitura
de uma tela, cujos corredores isotópicos (BLIKSTEIN, 1995) – veículos dos sentidos da
imagem ou da palavra, não ostentam a análise objetiva a exemplo do que acontece, como diz
Guimarães, “nas obras de Ferreira de Castro e Abguar Bastos” (p. 301); aos quais
acrescentamos o nome de Márcio Souza, entre outros que procuram centrar a atenção do leitor
118
diretamente nos problemas sociais trazidos por suas narrativas. A pintura crulsiana tem
também os mesmos objetivos caros à literatura de cunho social. Difere, entretanto, no modo
de mostrá-los. O autor almeja, com isso, despertar-nos para os acontecimentos, para o que
amazônico, a fim de que olhemos com merecido e urgente interesse os problemas in loco que
são de todos nós. Nessa ocasião, para nos despertar, o autor nos toca, como no entrecho que
Essa pintura crulsiana da “imensidão verde brasileira” (p. 300), conforme essas
pensando na estreita relação que nós temos com os pássaros, especialmente depois do dilúvio
e do sair de Jesus das águas do Rio Jordão, enxergar no Uirapuru a alma da floresta. Senão a
alma, ao menos o som anímico, que silva os ares e inebria aos outros pássaros e a todos os
canto entoa tão profundo, expansivo e harmônico, em agradecimento pela vida, pela beleza
119
Com efeito, e segundo o que pensamos, a descrição é determinante para o desenrolar
Cruls, a descrição é uma área viva que acompanha o movimento da narrativa e que a intui, a
eflui e a influi, gerando uma lente objetiva capaz de surpreender a emoção da floresta-mãe.
desde que ele a sinta “como coisa viva” (p. 302). É nesse sentimento, pois, de interação do
homem com a natureza, logo, da narrativa em harmonia com a descrição, em que reside o
na Hiléia.
comuns aos que se deixam tomar pelo gigantismo da terra virgem, não levando em conta que
tal gigantismo é apenas relativo (basta olhar a Terra em relação ao Universo), que se não for
esteira.
literatura de seu tempo, contrariando a previsão de Guimarães, Gastão Cruls é hoje, quase
escritos de Tristão de Ataíde sobre a obra de contos crulsiana datam de 1920, e tracejam um
estereótipo curioso de tempos em que a nossa literatura era considerada por esse crítico, senão
por outros mais, uma literatura em formação. Ao advogar sobre os contos do volume Coivara
120
(1920), que ilustrava para conhecimento do público o nome de Gastão Luis Cruls, Amoroso
caracterizam a dualidade sempre presente, marcante, e que viria a se consolidar com primor
no fazer literário de Gastão Cruls. Aliás, não tão somente enquanto escritor de contos, mas
também enquanto escritor de romances, como, a propósito, profetiza Lima no capítulo LIV
pseudônimo Sérgio Espínola, assinante das suas primeiras estórias, nos populares folhetins,
para o nome Gastão Cruls, faz finalmente espairecer aquela aura nebulosa que pairava sobre a
verdadeira identidade do escritor folhetinesco de 1917. Afinal de contas, quem havia de ser o
escritor daquelas linhas “acre-doces” (p. 306)? Nas palavras do crítico, “não é de hoje a
atenção despertada por certos contos publicados na Revista do Brasil por Sérgio Espínola, que
Consideramos natural a mudança porque, uma vez despertada a atenção dos leitores, o
pseudônimo havia, pois, seguindo um certo costume comum a artistas da época, cumprido sua
função. Mantido o suspense até 1920, o certo é que o mistério daquela escrita poética, mas em
prosa, apresentava a seus leitores uma arte reveladora dos caminhos percorridos ao rufo dos
tambores, com o assobio das gaitas, o choro da viola e os sons nada indiscretos dos habitantes
Brasil interior.
forçado dos nossos silvícolas, dos negros da terra e, depois, pelos negros escravos, ao baque
121
de facões, machados, suor, fome, sangue e morte; mas também pelo empreendimento
beleza da expressão poética, tão comum na composição das epopéias. Assim, alguns de seus
contos, de acordo com Herman Lima (1952, p. 94), como “G. C. P. A.”, “Noites brancas” e
“Abcesso de fixação”, “de cruel realismo e sombria originalidade de tema, têm o cunho dos
terra de deuses e heróis, e em Portugal-Rei das Grandes Navegações, no Brasil também havia,
pois, esplendores de Glória encobertos, ainda mais sublimes que a “Aurora Boreal”, e que,
pescador, do peão de boiadeiro, mas sobretudo do voyeur, foram e vão sendo reveladas:
A “Mãe dágua” não é apenas nome do conto acima representado, nem tampouco uma
lenda ou pavonice folclórica. É cientificamente uma mãe para todos os brasileiros: a mãe-
água, que só pode ser de água, e em cujos mananciais mina a maior reserva de água doce e
potável do mundo. Além da espetaculosa beleza exibida por cachoeiras como as de “Itaipu”
no Paraná, a do “Véu das Noivas”, a das “Andorinhas” e a dos “Namorados” na Chapada dos
termais da “Lagoa Santa” em Goiás, os “Saltos” de Costa Rica e Cassilândia no Mato Grosso
do Sul; e o “Rio-Mar” com seus braços hercúleos, além dos majestosos lagos naturais e
subaquáticos, ¾ a nossa mãe dágua dá água viva e rica em novas esperanças médicas,
122
Na leitura de linhas tão frescas e puras, o contista mostra que o estereótipo não é o
real, mas é, num quadro formidável, pintura transparente de uma realidade brasileira que
Claro que ele está falando do modo pelo qual Gastão Cruls nos dirige a palavra. A
palavra, esta, a grande coivara de Cruls. Um contêiner, já a esse tempo, de fabulosos filões
braúna”; a Regina e o Paulo, de “O noturno nº 13”; o Naco, Seo Chico Sabino ou a Natalina,
narrativizados pelo autor Cruls, que anda a nos olhar. Assim como olhou à Regina uma
morta que, ao som de Chopin, vem buscar o marido Paulo em “O noturno nº 13”:
Ainda os vi mais uma vez, já então muito mais longe, quando desciam, num
terreno limpo, pela fita branca de um atalho que levava ao Paraíba. Iam
ainda abraçados e já se me afigurava que não andavam, tão serena era a sua
marcha.
E com a vista perdida ao longe, acompanhei-os assim por algum tempo, até
que as suas duas sombras se diluíram, de todo e para sempre, na luz hesitante
da madrugada... (CRULS, 1951, p. 24).
crítica, como se poderá notar nas linhas críticas retomadas e comentadas neste capítulo e no
“Volume 2”. Em tempo, Amoroso Lima não se enganara: a obra crulsiana é revisitada, seus
123
Pela escumilha da folhagem, num grenalha imponderável e faiscante, ou
então pelas frinchas da ramaria, em longas tiras de luz, a claridade a pouco e
pouco invadia o recesso da mata, adelgaçando-lhe os contornos e
reacendendo os verdes da vegetação, que ainda se marasmava, perdida em
sombras orvalhadas e espessas (CRULS, 1951, p. 25).
...
Ébion de lições de literatura brasileira, Amoroso Lima volta a publicar sobre Cruls e destaca
que este “é um dos mais autênticos representantes do conto moderno, não modernista” (p.
GASTÃO CRULS
com nostalgia da rua do Ouvidor26, no Rio de Janeiro. Conta dessa rua, como e onde tudo
nomes de artistas, comerciantes, amigos, conhecidos e anônimos. E fez ainda mais, recorreu a
todo um conhecimento histórico, que remonta ao século XVI. Citou lugares esplendorosos,
como uma “capela inaugurada em 1628, no lugar em que existira um forte” (p. 308), e onde
esteve, no seu tempo, quem sabe ainda hoje, a Igreja da Cruz dos Militares.
De mais a mais, a cidade do Rio de Janeiro, parecia despertar em Cruls uma saudade
26
O mesmo texto encontra-se reproduzido na íntegra em CRULS, Gastão Luis. Aparência do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1952, v. 2, p. 420-5.
124
proliferação urbana conduzida por uma política severamente capitalista. Incomodava-o a idéia
de que um dia toda aquela beleza terminasse; e se é bem verdade que ela, apesar de tantas
agressões sofridas, continua lá, também é verdade que muito se perdeu. De todo modo,
uma agonia solitária que, por outro lado, rendia-lhe a revelação de segredos das pedras, das
madeiras, dos prédios, das árvores, dos hábitos, dos costumes, da cultura, do mar, das
montanhas, dos chafarizes, do bonde, dos morros, dos lampiões... da rua do Ouvidor. Na alma
de Gastão Cruls, lugares e pessoas são desfrutados no mais pequeno indício, transformado
pela rua enquanto escreve. Caminhando, ao vivo e a cores, e conversando outra vez com
de hotéis e cafés ou no meio da rua mesmo. Nesse momento, detemo-nos um pouco para
comentar com o nosso leitor, sobre uma curiosidade destacada por Gastão Cruls em nota de
rodapé, no seu Aparência do Rio de Janeiro, a respeito da rua do Ouvidor, que, em 1947,
Chamou-se antes rua da Quitanda dos Mariscos e, ainda antes, rua do capitão
Mateus de Freitas. Mais tarde, durante certo tempo, deu-lhe também o povo
nome de origem meio porca, ligada a certo médico inglês, especialista no
tratamento de almorreimas, e que aí teve consultório. De uma feita, no seu
português muito engrolado, disse o esculápio a um cliente, tranqüilizando-o:
¾ Seu c.. sarará. Foi quanto bastou para que a rua passasse a ser rua do
Sucussarará. Diz-se ainda ter sido na rua da Quitanda, numa casa do lado
par, esquina da rua do Sabão, que, em 1711, se contaram os muitos mil
cruzados entregues a Duguay-Truin, para resgate da cidade (CRULS, 1952,
v. 1, p. 143).
Celebrino, Gastão Cruls via a rua do Ouvidor como um hino à amizade, aos bons
papos entre um Rui Barbosa e a gente nem tão intelectual, mas nem por isso inculta, que
125
costumavam se encontrar casualmente, mas nem tanto, já que todos acudiam à rua do
Ouvidor, justo por causa desses encontros não marcados; mas sempre, como de costume,
Olavo Bilac, José Veríssimo, Alberto de Oliveira, Machado de Assis, todos com uma história
para contar da rua, que era muito mais que uma rua. Era como se fosse a casa de todos os
cariocas, do Brasil brasileiro, do brasileiro mestiço, do violeiro e do sambista, das óperas, das
sonatas e outros clássicos musicais, de João do Rio e de cantores boêmios como Orlando
Silva: era, essa rua nossa ladrilhada, encantada, o pulso do nosso coração.
no teatro, nos jornais; enfim, em todas as artes, ¾ ainda hoje tinge a nossa razão de uma
num estalo, num repente, sem abandonar as lembranças de glória ou desalento, trazidas em
grande parte do glamour de uma rua da Capital do Império, Capital dos primeiros anos de
República, cujo canto do poder estava por perder. Ele, já de muito o sabia, e por que temia:
fora de seu pai a missão de demarcar o novo lugar, onde estaria a futura rua do poder
republicano. Então, o Rio, não seria esquecido? O certo, é que a rua do Ouvidor ainda tem seu
charme. Como nós mesmos pudemos ver, durante o tempo que passamos no Rio, (re)
buscando as memórias do autor. Só não sabemos dizer o quanto ainda sobrevive do charme
apreciado pelo escritor, publicado pela primeira vez em 1949, e que dizia de outros
126
Sempre na moda e lugar da conversa ao ar livre, do encontro das turmas. Além disso,
Machado já tinha razão: “Não levarão daqui a nossa vasta baía, as nossas grandezas naturais e
industriais, a nossa rua do Ouvidor, com o seu autômato jogador de damas, nem as próprias
vai além: “O tílburi [...] promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar, e entrarem os
GILBERTO FREYRE
A partir de 1949, o artista Cruls passa a contar com a análise de Gilberto Freyre sobre
brasileiros. Sempre interessado no que a crítica tinha a dizer de sua obra, Cruls agradece:
[...] Dizia Afrânio Peixoto que a primeira edição de uma obra é a sua última
prova. E será porventura a última? Pelo menos, assim se espera e deseja,
quando, à sua leitura, dedicaram olhos atentos alguns amigos e eruditos, a
quem se fazem aqui novos agradecimentos (CRULS, 1952, v. 1, p. 11).
atenção especial à espiritualidade com que Cruls imprime uma descrição da selva de pedra
carioca, deixando brotar dela a natureza sempre exuberante do mar, das praias e das pessoas
127
Rio de Janeiro. Mas, excepcionalmente, deixemos que o próprio Cruls conte sobre esse
documentário da paisagem carioca, que contém o artigo de Gilberto Freyre, logo na sua
A seu tempo, Gilberto Freyre segue descrevendo, de um modo que nos parece
por Gastão Cruls. O crítico não esquece de mencionar os contrastes, inclusive sociais, que
aumentavam à medida que a cidade crescia, algo desordenada, mas, no íntimo, uma cidade
redefinida por Gastão Cruls com a mesma harmonia dos “rumores vindos das águas e das
matas e que aqui se misturam fraternalmente aos dos bondes, dos automóveis, dos homens,
dos mercados, das danças, dos armazéns, dos jogos, das ruas, das favelas, dos hotéis, como
A impressão que temos dessa leitura de Freyre, é que o Rio, em sua beleza nunca
esgotada nas descrições, parece ter a força natural e suficiente para continuar vivo e
apaixonante, apesar das ameaças que desde tão longe ameaçam por fim ao que de maravilhoso
ainda existe. Ademais, uma aquiescência das imagens que nos são dadas por Freyre, pode ser
vista no comentário de Joel Pontes, intitulado “O Rio de ontem visto por olhos de hoje”, com
o subtítulo “O livro de Gastão Cruls e as imagens pitorescas ou poéticas que ele revive”,
ainda um livro da rua do Ouvidor, a mesma rua do Ouvidor que Crus descreve em seu artigo
128
comentamos. Como diz Freyre, já no título de sua matéria, é um documentário sobre “O Rio
que Gastão Cruls vê”, “livre para evocar o passado e comentar o caráter da cidade” (p. 320).
Pensamos que vale a pena apontar uma curiosidade: Gastão Cruls, em seu texto sobre
a rua do Ouvidor, fala do Rio como uma cidade mulher. Parece-nos que Freyre partilha a
mesma idéia quando, descrevendo as formas dos morros, afirma que nelas “a paisagem da
Segundo Freyre, Gastão Cruls foi um artista que amou o Rio de Janeiro. De fato, é
e que o crítico nos reporta em seu comentário. De acordo com Freyre, apesar das
contemporâneo de Cruls, continuava a ser “a mais bela das cidades do Brasil” (p. 322). No
nosso modo de ver, apesar da brutalidade capitalista a que a cidade continuou sendo
Outrossim, levando-se em conta que o Rio era o lugar em que o novo, no Brasil,
chegava primeiro, Cruls anteviu as preocupações alarmantes por que passa a sociedade
carioca hoje. Entre elas, a do crescimento urbano desordenado e os conflitos entre forças de
banal, mas que nos revela uma alienação do espaço tropical e a preferência por um certo
modismo em valorizar o que vinha de fora. Com efeito, a mesma tradição da qual Cruls fala
na passagem abaixo estava presente na política, na educação e em outras áreas do Brasil desse
tempo, como bem nos informa Antônio Torres em suas cartas a Gastão Cruls, que, inclusive,
comentamos à frente:
129
Ah, a tradição e a linhagem dos egrégios mestres-cucas de outros países! Daí
o não termos um só restaurante genuinamente brasileiro, de comida
tipicamente nacional, que a temos, e muito boa, com os seus variados e
magníficos pratos regionais.
Mas como pensar nisso se até em menus que se estiram por colunas e mais
colunas e onde confraternizam as sauces remoulades e os goulaschen, o
caviar e a olla podrida, a bacalhoada à minhota e o roast-beef, só de raro em
raro há lugar para qualquer vatapazinho, que assim mesmo só aparece por ali
muito ressabiado, e quase sempre também muito mal feito? (CRULS, 1952,
v. 2, p. 576, grifos do autor).
Janeiro, por Gastão Cruls, ou seja, da composição desse documentário como “Guia Prático,
Histórico e Sentimental de São Sebastião do Rio de Janeiro”, “que ninguém estava mais
indicado para a tarefa que o Sr. Gastão Cruls, que é carioca da gema, e que aqui tem vivido
quase sempre”.
A crítica e escritora Lúcia Miguel Pereira, no seu livro Cinqüenta anos de literatura
(1952), não comenta, propriamente, o artista G. Cruls e sua obra, mas sintetiza e, a nosso ver,
primeira metade do século XX. Acreditamos ser relevante o comentário de seu texto como um
todo, considerando a presença de Gastão Cruls no panorama da literatura brasileira por ela
abordado, especificamente quando trata da geração de 30. As informações que por ela nos
caldeirão prestes a ferver de novo com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, L. M. Pereira
decanta a literatura dos rincões, das montanhas, das veredas, das novas sociedades urbanas e
rurais emergentes, bem como das novas relações entre essas sociedades. Fornece-nos, pois,
130
elementos da história literária que nos permitem distinguir a poesia, o conto, a canção, o
romance e outros gêneros do regionalismo brasileiro, como “Casa grande & senzala, de
Gilberto Freyre, cujo cunho para logo se imprime na fisionomia intelectual, reforça e anima
regionalismo tradicional, por vezes, apenas folclórico, de um regionalismo real; num claro
muitas delas insondadas, só hoje em dia aparecem noticiadas e louváveis em toda a federação.
que desnudaram os exageros românticos, ao parnasianismo da rima rara e perfeita: uma quase
se o grupo da “maior orgia intelectual que a história artística do país registra” (p. 327),
segundo essas palavras de Mário de Andrade, aqui veiculadas por conta de Lúcia M. Pereira.
“arquipélago cultural” (p. 327), para usarmos a expressão de Viana Moog, também por conta
da crítica. Dessa forma, ter uma literatura que fosse a expressão desse arquipélago,
deliciosamente anárquico, de dialetos e variantes, era o grande desafio para um fazer literário,
em grande parte, ainda viciado no rebuscamento barroco, como se pode ver na Historiografia
exemplo.
131
Nesse contexto, o “Boletim de Ariel”, fundado e dirigido por Gastão Cruls e Agripino
“havia então lugar para uma revista destinada tão somente à crítica [...] para se verificar
quanto foi rico o surto literário. Poetas, romancistas, ensaístas escrevem com entusiasmo,
sincronismo totalitários de um e de outro. Vence a arte. E nos são dadas as jóias e grinaldas de
Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Cora Coralina, Lúcio
Cardoso; além de outras, e de outras que estão por serem descobertas, e de uma que estamos
(re) descobrindo: Gastão Cruls, apontado por Miguel-Pereira, ao lado de Dinah Silveira de
Queiroz, como os únicos ficcionistas – entre os da geração de 30 – que tiveram “grande poder
abria apenas para a crítica, como acima está assinalado. Pensamos que, em seu “Boletim”, não
apenas a crítica mostrava a sua cara, mas, sobretudo, a nova arte despontava, como pudemos
ler nas páginas arquivadas dessa revista, abençoada por um outro sol nascente: mais vermelho
enorme no Nordeste e de arco-íris mais intenso, com o colorido ainda mais realçado, no
Norte. Simulacro congênere nos dá G. Rosa em “A hora e vez de Augusto Matraga”, de seu
“Sagarana”, volume que reúne nove de doze das suas primeiras histórias; ao mostrar à preta,
mulher do preto, chamada por Mãe Quitéria, o “círculo rodeando ao redor da lua cheia”, “o
132
Essa sabedoria, pois, que refere o povo e a paisagem brasileiros, pertencente a
estudiosos do léxico e de outras áreas, por esse tempo, mais fechadas e restrita, na literatura, a
Continuando nossas reflexões... de fato, num contexto, em que criar uma arte limitada
pelo plano material e físico perdia força ante o avanço do impressionismo, cujo marco nos
reporta ao quadro “Impression”, de Claude Monet, a arte brasileira esbatia-se também com
amarras da estética naturalista e com a redoma da estética parnasiana. Esse rodopio levantou
acalantos, anedotas, rondós, parlendas e tantas outras espécies líricas e narrativas do interior
Uma olhada em obras de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, Graça Aranha, Antônio
Torres, Lima Barreto, José Geraldo Vieira, Peregrino Júnior, Monteiro Lobato e Gastão Cruls,
por exemplo, nos permite observar traços profundos de uma arte nova, independente e
reanimada, voltada para o social e o psicológico no campo e na cidade, através de uma (re)
Esses novos olhos da arte buscavam encontrar novos heróis e anti-heróis, novas
arrefecida na alma de gelo do homem dos primeiros quarenta anos do século XX. O
como nos nossos dias, os avanços tecnológicos nas áreas das ciências materiais e das
133
sociológicas a repensarem as relações entre os homens e entre estes e a Natureza; outra
novidades diárias apresentadas pelas ciências, como o caso dos transgênicos e a pesquisa com
surpresa em espécie. Precisamos lembrar que, para essa sociedade, a referência ainda era o
imagístico de uma sociedade estática e não habituada a presenciar sucessivos eventos que
mexiam suas bases morais, religiosas e materiais. Com efeito, dois sintomas desse contexto
Nesse sentido, o voltar os olhos para o interior do ser e da terra, é uma procura por
refúgio, abrigo e esperança. Na ânsia dessa procura a arte se revelará expressionista, um pós-
impressão do sentimento do artista, do artista como médium e mago; isto é, como profeta e
como Franz Kafka, James Joyce e Virgínia Woolf. Naturalmente, essa caracterização da arte
não era novidade, mas talvez ela nunca tenha sido tão necessária, e talvez nunca tantos artistas
tenham sentido ao mesmo tempo as mesmas necessidades, medos e dramas de uma realidade
nitidamente, para eles, sombria. De sua atmosfera cinzenta, a realidade que levou Baudelaire a
é encontrada na nossa literatura pelo menos desde Machado de Assis em Memórias póstumas
de Brás Cubas. Se, no entanto, alguns nomes foram marginalizados por conta do escolho de
134
manter uma forma, uma moldura para o espelho da sua arte, cabe-nos lançar as próprias
Queremos também considerar que: entre o estatuto de dar uma forma ao conteúdo e o
de instituir a anti-forma há uma escolha arbitrária e relativa, posto que uma e outra são linhas
de romper as linhas, os estereótipos e dar-nos uma imagem muito maior que a moldura
desproporcional para menos, dar-nos um ponto ínfimo, mas como sincretizante de uma
realidade que não caberia nem no maior quadro do mundo; seja esse quadro a tela do pintor, a
Rosa, poderá lembrar, pelo colorido verbal, os parnasianos lavores estilísticos”, “mas não há
regresso, não se volta à declamação” (p. 333). Assim, optar por dar uma forma ou por não dar
uma forma não impede o conteúdo de erigir-se forma. Ademais, é preciso objetar-se que a arte
de fins do século XIX e incipiente no século XX, com forma ou sem forma, ela seria para
sempre diferente da arte clássica. A poesia continuou existindo depois do holocausto, assim
como sobrevivera em tempos de guerras santas, remontadas aos tempos de Moisés e Josué,
pelas quais povos inteiros foram exterminados em nome da intolerância. Aliás, a mesma
135
intolerância que rastilhou-se acesa e mortal nas guerras modernas e nas guerras urbanas e
corredores isotópicos, dos quais falamos em Ney Guimarães (1944), pontilham um canguru
Canaã de Graça Aranha reclama a palinódia da Canaã do Oriente, como o “Buriti perdido” de
Afonso Arinos:
OLÍVIO MONTENEGRO
o artista Cruls como romancista moderno ao lado de Graciliano Ramos, José Lins do Rego,
Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, Ciro dos Anjos. Munido de uma crítica livre, entretanto,
provoca dizendo que “o escritor Gastão Cruls tem uma fantasia inventiva até o sonho, como a
das crianças, [mas] o artista parece não reproduzir esse sonho com a mesma audácia com que
o concebeu” (p. 337). Nesse sentido, na análise da ficção crulsiana, a exemplo da análise de
outros nomes, feita por Olívio Montenegro, desponta uma crítica “forte”, “ruidosa”, aliás, são
esses alguns dos predicados utilizados por Freyre, ao avaliar o modo de O. Montenegro fazer
136
evidência a qualidade da obra estudada e o poder de expressão e de interpretação artística da
alcance da visão crítica de Montenegro lhe permitiu, conforme Freyre avalia, ponderar a
influência inglesa e norte-americana sobre alguns dos nossos romancistas mais ilustres: de
Machado de Assis a Gastão Cruls, de José de Alencar a Jorge Amado ou a Érico Veríssimo.
Ainda de acordo com G. Freyre, o crítico Montenegro esteve entre os mais aptos para o trato e
Observa-se que Montenegro construiu uma crítica que valorizou os textos literários
atenção especial ao romancista Gastão Cruls, com destaque para a narrativa de cunho
problemas nacionais. Retomando Freyre: essa abordagem é o objetivo maior que O romance
brasileiro almeja alcançar, e que certamente o faz, segundo esse prefaciador, “na impressão
casos estranhos, e ainda a expressão detalhista, desejando a veracidade: “um teatro de tons
claros, suaves e bem nítidos” (p. 337). Com esses recursos, o artista escreveu uma obra para a
137
qual concorreu documentário e arte das paisagens, dos costumes e da memória das pessoas,
em que o crítico chama Malila de “a doce bugrinha” (p. 338), e diz que o artista Gastão Cruls
“cinge-se aos flagrantes mais característicos, aos detalhes mais expressivos do caráter daquele
povo indígena, e tudo o que nesse quadro sugere de história de ficção é nos seus traços
essenciais história verdadeira” (p. 339). Por sua vez, de nosso ambiente urbano, citamos
lembrando das hesitações do Dr. Marcondes, e por isso dizendo dessa “pontinha de algo
extraordinário que teria ficado por dizer” (p. 337), sendo essa, sempre, uma característica da
narrativa crulsiana. Conforme o crítico, porém, apesar desse estilo “cauteloso”, “na fixação de
certas paisagens, na pura narrativa, poucos o excedem [Cruls] em uma prosa mais encantadora
De fato, os espaços da Amazônia e do Rio de Janeiro dão a Cruls uma feição dupla tão
serenamente moldada pela perspicácia do autor, que levam o artista para os estratos mais
sentimentais e morais, conseqüentes dos desajustes da personalidade ao meio. Ainda mais que
esse meio, no Brasil, é um meio em formação, com mudanças profundas nas instituições
27
Esse conto está transcrito na antologia “Outros contos” do “Volume 2”.
138
Conheceis o que penso a respeito do complexo problema da assistência
pública, que entendo não se deva limitar apenas às instalações nosocomiais,
mas ao serviço de socorros higiênicos, alimentares, farmacêuticos e médicos
a domicílio (CRULS, 1951, p. 189).
Por isso mesmo toda a literatura de Cruls é arte e documento desse Brasil em busca da
quadro do cotidiano nacional, cuja rotina faz pensar numa narrativa que por vezes imbica um
romance crulsiano, este, sugerido por Montenegro como quase branco, sonolento, em lugar do
ritmo eloqüente que as tais cenas parecem pedir, pode ter um rumo de análise diferente do
estranhamento, inclusive na própria leitura que o leitor faz ao texto, é uma espécie de
arremate de sua escritura finamente polida, dizendo sempre muito mais do que parece. No
dizer de Massaud Moisés (1997b, p. 442), comentando o contista Cruls, “a emoção preexiste e
subsiste ao exame racional e é isso exatamente que tais narrativas diligenciam oferecer”.
TEMÍSTOCLES LINHARES28
1954, no seu artigo para “O Estado”, “Um teste sobre o romance”, sobre os contornos cada
vez mais complexos que estão enredando o romance. Em virtude disso, pensamos com as
palavras do crítico: “definir o romance é impossível, nem interessa mais hoje” (p. 340).
Linhares defende o argumento de que o romance, para ser um bom romance, deve oferecer
uma narrativa capaz de plasmar o leitor em sua atividade de leitura; isto é, um romance o qual
28
O mesmo texto publicado em 1954 no “O Estado” reaparece em LINHARES, Temístocles. Diálogos sobre o
romance brasileiro. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1978, p. 110-13.
139
“lemo-lo de uma assentada, mergulhamos nas suas páginas sem o saber, devorando-o
Comentando o romance De pai a filho, de Gastão Cruls, o crítico afirma que “o livro é
realmente soberbo e não encontra muitos similares em nossa literatura. É quase impossível
apontar uma aptidão maior para jogar com o dom de construir e armar os problemas de um
romance” (342). Linhares observa o estilo com que o escritor trata a sociedade enferma
decadente, tudo isso agravado pela grande tensão por qual passava o mundo, de olho no
espaço europeu, prestes ao início do primeiro confronto bélico mundial da Era Moderna, ¾
Cruls fotografa essa sociedade profundamente sentida por suas chagas e, ao mesmo tempo,
de minas, de tiros de canhão e; o melhor de tudo: com o invento de Santos Dumont como
arma de guerra. Para uns, um acontecimento entre heróis e vilões; para outros, o início do fim
ignorância apocalíptica: os que tentavam pensar num sentido para a vida, já pensando no
140
Isso dizia, num tempo de um Rio de cavalo e de cabriolé, o Dr. Rocha Sampaio,
pelo marido Alberto, acamado, e tendo ela ainda que pensar no filho Betinho, lá na Europa.
Teresa, antes a Teresinha parceira do namorado Alberto em suas paixões ardorosas, agora
apenas amarulhada das loucuras de amor passadas, se verá chamuscada das chamas do inferno
em mareado paraíso carioca. Alberto morre e a Betinho se reserva a herança do pai: um dote
como corrupção terrena, malícia diabólica, possessão do demônio, treva e toda sorte de
otimamente calculista: é assim que definimos um bom romance ou um bom livro de literatura.
possamos corroborar o nosso pensamento sobre o bom romance: “Teresa, a figura de mulher
que sobrenada do livro, encarna a poesia feminina, a vitória do romance, o que ele contém de
mais puro e transcendente” (p. 343). No entanto, Linhares aponta um defeito no estilo
romanesco de Gastão Cruls, em oposição à ação e aos caracteres, segundo o crítico, bem
desenvolvidos e bem construídos. A nosso ver, trata-se do mesmo defeito já apontado pelo
comentarista de nosso “Texto Anônimo”, a respeito de Vertigem, e que será comentado por
141
Wilson Martins, em 1954; isto é, um tempo “baço” para o primeiro, e “morto” (p. 345) para
Linhares. Evidentemente, não concordamos com esses entre-aspas; até porque, já temos
de Barros. Fica, para nós, “a isocronia perfeita entre o romance [de Cruls] e as circunstâncias
normais da vida” (p. 342), representada em Alberto, a personagem principal de De pai a filho.
WILSON MARTINS
Estado de S. Paulo”, faz uma diferença entre narrativa e romance, baseado na prosa de Gastão
Cruls. Examinando o romance De pai a filho, de Cruls, o crítico pontua alguns elementos do
estilo narrador crulsiano, estilo esse, sempre sentinela, segundo suas palavras, “de uma notícia
de jornal bem redigida, e na qual não faltam, como jamais se ausentam, do seu estilo, as
Vê-se, portanto, que esse desfio narrativo é, segundo o crítico, mais próprio de um
outro gênero: o jornalístico. Talvez hoje, então, possamos olhar diferente para o que o crítico
chamou de “perfeição formal” (p. 346). Com efeito, podemos acrescentar, Gastão Cruls, antes
paisagens e um registro de detalhes os mais sutís; sem dúvida, devido à influência de seu pai,
142
Paralelamente, desenvolvia, quase que em tom de brincadeira, o gosto pelo fazer
literário que, aliás, precipitou-se das anedotas destiladas durante seu estágio de residência no
Pensando nisso, sua linguagem não poderia nunca desvencilhar-se de uma erudição
o “Boletim de Ariel”, ¾ uma voz da crítica que, nos anos 30, circulou oito anos da voga
literária; e Sílvio Romero, com A história da literatura brasileira. Por conseguinte, essa
mesma erudição é ainda acentuada pelos termos das áreas médicas, da botânica e da
populares que o escritor fazia questão de assimilar, além dos galicismos devant le france,
Como se isso não bastasse, as viagens que Cruls fez pelo interior do Brasil, tendo
nosso país, proporcionaram a Cruls uma prosa, em seu tempo, talvez sem paralelos. Por isso
“proustiana” (p. 346). De fato, um quadro proustiano por excelência, só pode ser fielmente
do estudo evolutivo sobre essa mesma personagem no plano da mesma história. Então, talvez
assim seja justificável o descricionismo das páginas 136-144, referidos por Martins:
Por isso tudo, aquêle baile do Clube dos Diários, realizado também num
sábado, fora para ela [Teresinha] uma noite excepcional. Tivera as
preferências de Alberto para várias contradanças, inclusive o cotillon,
143
marcado por êle e de que fôra assim a figura principal. A mais, tendo ido à
festa em companhia dos Camargo, quando êle não dançava, procurava
sentar-se a seu lado, no grupo em que conversava o casal. Faziam parte dessa
roda os Rocha Sampaio, êle o colega de Alberto na Faculdade e ela, por
coincidência, filha de uma antiga amiga de D. Chiquinha coisa que só então
acabavam de apurar, mas bastante para estreitar a simpatia entre ambas. A
moça, que a via pela primeira vez, mostrava-se encantada por Teresinha, e
quis saber quem era Lea. Disse-lhe D. Chiquinha, contando como haviam
conhecido o Dr. Leme Neto, durante a revolta da armada (CRULS, 1954, p.
144, grifo do autor)29.
Notemos então que as oito páginas mencionadas por Martins, nos permitem também a
seguinte leitura: a de que não se tratava tão somente de uma ida de Teresinha ao baile para
dançar com Alberto a valsa de Strauss, assistida por seu pai entre embevecido e acanhado em
presença da viúva Gomes, D. Eponina Gomes, cujo capricho dessas coisas que algumas
pessoas captam no ar não passou despercebido aos olhos da órfã de mãe, Teresa; que viu, é
verdade, o baile como ocasião apropriada para encurralar o pai. De toda sorte, não era só isso,
nem esse, pensamos, o fio principal da narrativa. No entrecho destacado, a cena do baile é o
ponto de encontro que medeia o romance, reúne algumas de suas figuras capitais e, recuando
para as páginas anteriores, até à 136, verificamos um corte à página 140, que marca
sucessivos cortes menores, originando histórias secundárias em torno dos núcleos principais
do romance.
Wilson Martins segue com uma lista de exemplos, sempre a fim de mostrar, segundo
ele, a “maneira tranqüila e exata de narrar” (p. 347) do escritor Cruls, afirmando que o estilo
sensível” (p. 348). Em De pai a filho, por exemplo, a dita de alguns hábitos das personagens,
Assim, só mesmo depois que algumas revistas, como o “Tim-Tim por Tim-
Tim” ou a “Capital Federal” tinham alcançado extraordinário êxito e todo o
29
O exemplar utilizado por nós tem a dedicatória assinada por Gastão Cruls, e adereçada a Álvaro Augusto
Lopes em 31/03/1954.
144
mundo dizia que eram uma “fábrica de gargalhadas”, é que êle condescendia
em ir vê-las. Quanto a qualquer representação de ópera, no Lírico, maior
ainda a sua ojeriza. Não era homem para etiquetas e patacoadas. Referia-se à
obrigação da casaca e aos bondes de “ceroulas”, que tanto o irritavam.
Assim, por todo consolo, D. Pepê limitava-se a acompanhar pelos jornais o
sucesso da “Tosca”, levada pela primeira vez no Rio, ou a ver, na porta da
Casa Arthur Napoleão, o retrato dos artistas que compunham o elenco da
Companhia (CRULS, 1954, p. 27, grifos do autor).
detalhe na narrativa crulsiana. Ao dar nome aos hábitos da personagem, não está apenas
discursando o figurino, mas construindo-lha uma personalidade que, aos poucos, vai se
Por isso seu estilo não flui ao compasso, segundo Wilson Martins, do “tempo
romanesco” (p. 350), para esse crítico, o principal prejudicado na primeira parte de De pai a
filho, terminada à página 189. Um descricionismo próximo ao de Eça de Queiroz, mas não
necessariamente o mesmo estilo, nem, como já se viu, o estilo propriamente proustiano; quem
sabe, algo entre os dois, ou, algo além dos dois, ou, ainda, nada disso; mas certamente o estilo
...
Martins (1965), na A literatura brasileira, afirma que a nova edição d’A Amazônia misteriosa
de Cruls, em 1929, marca o clímax da literatura da Amazônia no Modernismo. Por outro lado,
(1997a), que afirmam que Cruls vai além do regionalismo tradicional, ao explorar a psicologia
das personagens e as nuanças do ambiente; e isso acontece desde os contos de Coivara, como
145
podemos ver na antologia dos “Contos de mistério e assombramento” e de “Outros contos” no
“Volume 2”.
Ariel”, revista dirigida por Cruls e Grieco, o “órgão crítico por excelência da literatura
moderna na década de 30”. Diríamos que não só da literatura brasileira moderna, mas da
literatura moderna no mundo, cujo exemplo podemos verificar nos textos críticos de Gastão
Em 1955, Brito publica a antologia Histórias de Cristo, para a qual, de Gastão Cruls,
apresenta-nos “O último encontro”, conto talvez não menos polêmico que O evangelho
segundo Jesus Cristo, romance de José Saramago. Nessas duas obras, o destaque recai sobre a
natureza do relacionamento existente entre Jesus Cristo e Maria Madalena, que atualmente
circula na mídia com grande interesse de teólogos e do público em geral. Afinal, trata-se de
uma história que envolve o homem que dividiu o nosso calendário em duas épocas, o nosso
Jesus Cristo – a almenara de vida ou morte – que salvará os fiéis e julgará os infiéis no
nova ordem” (p. 354) da qual, não há dúvidas, fazemos parte. Se, então, o livro de José
quer nas câmaras internas da igreja cristã quer entre os que M. Brito chama de “crentes” (p.
354) seguidores do Cristo, imagine-se o que não se pensou do conto de Cruls, publicado em
146
Nesse momento, consideramos oportuno explorar um pouco mais o assunto sobre
Maria Madalena, especialmente porque ela é a principal personagem nesse conto de Cruls.
Pensando nos acontecimentos do Concílio de Nicéia (325 d.C.), que canonizaram alguns
textos e fizeram apócrifos a outros que diziam respeito ao mesmo Jesus, queremos ressaltar a
Código Da Vinci, romance de Dan Brown, que fala do casamento de Jesus com Maria
em conto, nos revela sem a observação de qualquer dogma, que Maria Madalena era a
com a pecadora amada, há pistas de uma hipotética vida paralela de Jesus, no vale do Cedron,
Ainda no vale do Cedron, mas já tão no sopé da montanha que os seus olhos
não poderiam alcançá-lo, Maria Madalena revia o jardim de Getsemani, com
as suas oliveiras prateadas à sombra das quais tantas vezes descansara na
companhia de Jesus, ouvindo-lhe embalada a palavra meiga e persuasiva, até
que a noite caísse e os dois, sempre juntos, de novo voltassem à Betsaida
(CRULS, 1951, p. 163).
A impressão que temos é que os encontros de Jesus com Maria Madalena não seriam
vistos com maldade pelos moradores do Cedron. E é irônico que o Opus Dei (Obra de Deus,
em latim) da igreja católica e algumas outras vozes eclesiásticas exprimam tanta repugnância,
ante a possibilidade da descoberta de que Maria Madalena tivesse mesmo sido uma amante de
Jesus. Utilizando dados da própria lógica canônica, sabemos que Jesus, na Terra, fez-se como
homem sujeito às mesmas paixões. Assim era necessário, para que tivéssemos um exemplo
humano, pensamos que há, aí, motivo a mais para justificar a relação que muitos diriam
147
herética. Ora, estando Jesus somente de passagem, peregrino em terra inóspita, e, Maria
Madalena, para sempre condenada à solidão quer pela suposta incorporação dos sete
demônios de que fala S. Lucas, quer pela hipótese de que ela seria a prostituta a ser
apedrejada aos dois não se destinou outra vida, que não uma vida em segredo. A mesma
vida em segredo do mito do “Santo Graal” – Gradalis – (Cálice, também do latim) nos
romances arthurianos, que trasladou para o Reino da Bretanha, pelas mãos de José de
Arimateía, mas não sem a ajuda de Maria Madalena, o que sobrou do sangue de Jesus – já o
Cristo, vertido no calvário, e de cujo lado perfurado, pela lança de um soldado romano,
pingaram as últimas gotas do líquido divino, hoje, sagrado. Ou, ainda, a mesma vida em
segredo de Maria, mãe de Jesus, à qual são negadas, pelo cânone, a maternidade dos irmãos
Mas, antes de tudo, no conto de Cruls, Maria Madalena é aquela sobre quem não se
deve atirar a pedra, é a protegida do Senhor, aquela que, sutilmente chamada pelo Mestre
quando havendo ficado sentada em casa, lhe saíra correndo ao encontro para dizer a seus pés
que se Ele ali tivesse estado, logo que avisado da doença de Lázaro, este não teria morrido;
repetindo, pois, as palavras de Marta, mas provavelmente com muito mais calor. Nesse “O
antífrase da Maria de Betânia, e ambos irmãos de Marta, os três irmãos amados pelo
homem Jesus. E Maria Madalena não é de modo algum a mulher servil, simbolizada pela Eva
caída em tentação e punida, conforme as leis do “Pentateuco”. Com graça, Maria Madalena é
ainda a duração de um instante heróico, aquela que acompanha Jesus imperfeito à hora do
adeus; que, como na “Paixão de Cristo” (2004) de Mel Gibson, busca o olhar de ternura, esse
sabido consorte do homem que representa o caminho, a verdade e a vida: o próprio Deus, o
próprio amor do “Novo Testamento Bíblico” que não pôde, portanto, lhe ter sido negado. No
“último encontro”, Maria Madalena foi também a primeira a ouvir e a dizer ao mundo inteiro,
148
do Mestre ressuscitado, que Ele vive; e nessas entrelinhas, que o nome dela era talvez a
[...] ouvindo que alguém lhe sussurrava o nome com ternura: “Maria...”
Voltou-se. Como num sonho, imagem incorpórea e logo fugidia, Jesus
paiarava à sua frente na refulgência de um halo luminoso.
E tão doce era o seu olhar, tão suave o seu sorriso, que ainda mesmo que
duvidasse da sua divindade, Maria Madalena já não duvidaria mais do seu
amor... (CRULS, 1951, p. 164).
“O suave Gastão Cruls” (p. 354), como o chama Brito, pareceu-nos mesmo, nesse “O
30
último encontro” , uma metonímia de duas metáforas do Cristo muito conhecidas e
homem de ciência no artista Cruls: não porque é um artista com cultura científica, mas,
dizem, porque é um cientista com “poderosa vocação de ficcionista e de lírico” (p. 361).
Afirmam, pois, que, “pela primeira vez, ciência e literatura se deram as mãos para produzir
uma obra de arte” (p. 361), referindo-se à composição 31 do diário de viagem A Amazônia que
eu vi.
caracteres como produtos “de uma profunda e ampla cultura estética”. Para eles, mesmo
diante de temas alucinantes, como nos contos “Meu sósia” e “G. C. P. A.”, Cruls constrói uma
narrativa sólida à justa medida. Conforme Lima (1952, p. 336), “suas histórias, quase sempre
de intensa dramaticidade, são compostas de maneira harmoniosa, num estilo sóbrio e elegante,
30
“O último encontro” encontra-se transcrito na íntegra na antologia “Outros contos” do “Volume 2”.
31
Ver mais sobre o assunto no Capítulo 4.
149
Gostaríamos de aproveitar o ensejo e estender o nosso comentário sobre os dois contos
citados por Barbosa e Cavalheiro. Em “Guarde o cadáver para autópsia” – “G. C. P. A.”, a
conto de mortícola. Silvino, matéria de aula do professor Rodrigues, numa das lições em que
era versado, descobriu o significado da plaqueta amarrada ao derradeiro leito dos doentes
A partir daí o terror se torna um épico da fuga de Silvino da mesa de autópsia. É onde
mais se percebe a sobriedade de Gastão Cruls, diante do tema alucinante. Os dias seguintes
são vazados pelo pensamento único que ansiava a melhor oportunidade de fugir sem ser
apanhado de final tão atroz, como o daqueles que tiveram suas cabeças decepadas e cada osso
do corpo desconjuntado, muitas vezes estacados em figurações bisonhas que mais davam a
sem passar por uma tensão nervosa que quase o matou no corredor do hospital, o que poria
em perigo toda a sua saga, alcançou as pedras do quebradouro do mar, ali mesmo nas
proximidades de Niterói, de onde deixou que seu corpo fosse “sumindo-se no crespo das
ondas” (CRULS, 1951, p. 43). Mas, decerto fora rejeitado por Netuno, pois,
150
Bem, se o tal Castro conseguiu desenvolver sua tese cunhada em originalidade não o
sabemos. Mas que ele representa a multidão de residentes de medicina, não temos qualquer
dúvida. O próprio Gastão Cruls fora um deles. E talvez também por isso sustentasse, mesmo
em momentos que a pressão parece baixar ou subir em disparada, e o coração supitar e dar a
terrível sensação de que está a sair pela boca, ¾ sua indiscutível originalidade quanto ao
Essa solidez não será diferente no jeito do conteur dizer, em “Meu sósia”, que alguém
deseja rivalizá-lo de igual para igual. Aí, o narrador autodiegético confronta-se com o
lado, seu rival n’A Amazônia misteriosa só poderia ser ele mesmo; talvez, essa, uma resposta
a alguns críticos desse seu romance; de outro lado, assevera a probabilidade de plágio:
Eu devia estar lívido. Era o meu romance que lhe saltava da boca, sem tirar
nem por.
Com um sorriso diabólico, o meu sósia arrematou:
¾ Mas mesmo que assim fosse, a vitória será daquele que o publicar
primeiro: ¾ Paulo de Alencastro, que sou eu ou... Como é o seu nome?
Foi aí, quando ouvi o meu nome, que lhe pulei ao pescoço e rolamos juntos a
escada (CRULS, 1951, p. 297).
SILVA MELO
Melo, um dos amigos mais próximos de Gastão Cruls, nas Recordações sobre Gastão
Cruls (1959), comenta sobre o homem Gastão Cruls. Segundo ele, até mesmo com relação à
glossolalia que Cruls faz soar, murmurar e gemer em suas personagens; foram a honestidade,
151
Ao que nos parece, tentado pela palavra, essa ligadura que ora aproxima ora separa aos
homens, Gastão Cruls parece ser sempre A portrait of the artist as a young man, de Joyce,
devido ao vigor com que desbarata as maracucas criadas pela vazão do “temperamento”
opções para exílio e ousadia no ato de fazer literatura-arte. Taciturno, às vezes alienado do
mundo, era um inconformado com a política de interesses e com o estado de paralisia, que
brasileiros.
Por tudo isso, a Gastão Cruls, era imperiosa a escolha bastante distintiva das rodas de
prosa e dos lugares que lhe fossem cúmplices e testemunhas de um cavalheiro arredio e
amante da terra-mãe. Conforme continua testemunhando Silva Melo, curioso notável, leitor
Talvez por isso, a diversidade temática e o mergulho na psique tenham feito brotar, em sua
obra, tanta riqueza de conteúdo. Com efeito, e conforme Silva Melo, “quem atentar para a sua
obra literária não terá dificuldade em descobrir traços marcantes desse seu temperamento, de
um lado grave, austero, rigoroso; do outro prenhe de sarcasmo e ironia” (p. 367).
...
Melo, em suas novas Recordações de Gastão Cruls (1967), analisa algumas faces da
entrelinhas que, por vezes, ele próprio se passa invisível. Nesse propósito, o amigo Silva
Mello transcreve e comenta discretamente três textos de Cruls, publicados pela primeira vez
na Revista do Brasil, e mais tarde reunidos no volume Quatuor, de Contos reunidos (CRULS,
1951, p. 241-52).
152
De certa forma, Melo parece colocar esses textos de Cruls em uma sessão de
Para instigá-lo, comentamos a seguir, o conto não comentado por Silva Mello, mas
que está inserido no volume Quatuor, e que, claro, passa pela mesma linha revelatória da
personalidade de G. Cruls.
32
“Conto de Natal” é um prolongamento do conto “A viagem”, e, a exemplo deste,
denota, entre outras possíveis leituras, uma crítica vociferal ao modo de vida consubstanciado
pelas aparências; apesar de ser uma crítica cuidada pelo jeito indireto de acusar. Vimos aí,
com uma ironia urdida pelo mimo muito peculiar de Gastão Cruls, que a ascensão social é
pretendida pelos pobres, através da mesma simbologia artificial representante do poder dos
ouro.
sempre maroto, o escritor guardava perfeita ciência de que seu alvo seria atingido em cheio.
Nesse alvo, a hipocrisia e a opulência, repassadas por meio de uma hereditariedade lacônica:
Em sua exposição, o conteur ataca, com uma ironia a cada linha, todo um sistema
história do menino rico, que ganhou de Papai Noel “uma armadura tão bonita, de peitoral
32
“Conto de Natal” encontra-se transcrito na antologia “Outros contos” do “Volume 2”.
153
reluzente, capacete empenachado e cinturão de espadim à ilharga”, converte-se no sonho e na
descoberta da verdade que tanto ali lhe doía, mas que o levaria a ver que não existe Papai
Noel para pobres na mesma forma de Papai Noel para ricos. Afinal, pobres não têm casas com
lareira. E ele também descobriria que a vida não é um sonho. Mas isso tudo se o exorcismo
não tivesse sido quebrado pelo pai que, diante da vultosa vantagem prenunciada na
cavaleiro, igualzinha à do seu vizinho rico. Notório como esse episódio expõe o ridículo da
vida sendo vivida por aparências! Outrossim, o investimento do pai se justificava pela idéia de
que bastaria ao filho ser “jeitoso” e ter “uma certa compostura de maneiras”, apenas artifícios
como se vê, para “alcançar tudo” o que ele quisesse. E aqui cabe uma boa pergunta-dominó:
Será que o pronome ele se refere mesmo a “ele” menino? Não seria a ele pai?
Assim, muitos sapatinhos ainda são postos nas janelas na noite de Natal, e continuam a
não pegar nada além do sereno. Quem sabe um dia, aquele menino pobre também tenha
descoberto que valem a pena o sonho, a fantasia e o ritual; porque há tempo de sermos
pequenos e há tempo de mostrar que crescemos: talvez então, o menino-adulto não se tornasse
uma extensão do pai, que viu no presente deixado por alguém que se fez de Papai Noel, um
presente ainda melhor do que aquele que o filho pedira. Talvez, o menino-adulto haja
descoberto que o Papai Noel que lhe dera o fraque em vez da armadura de cavaleiro, era seu
amiguinho que, sendo-lhe amigo, deu-lhe também o meio de um dia também ser rico.
Mas, como ao futuro emergente ainda competiria juntar ao anel simbólico “a pedra
154
adulto tenha, de verdade, conquistado a pedra característica, e também, de verdade,
descoberto a verdade: como o futuro são outros tempos, no futuro dele, pode ter dado um
grande grito de libertação dos males de tudo que é feito de aparências. Um grande e
lancinante grito, daqueles de quebrar regras como no “Abaporu” de Tarsila do Amaral ou,
antes, na anomia do filósofo neokantiano David Émile Durkheim. O mesmo grito que,
segundo Silva Mello, Gastão Cruls jamais pôde soltar, e “pelo qual tanto aspirou a sua alma”
(p. 416).
BERNARDO GERSEN
arrolados em nosso levantamento, com os quais o nosso leitor poderá comparar, ¾ adentrou
camadas mais profundas da obra romanesca. De fato, um exame atento de suas linhas nos
permite considerar essa profundidade, já que ela não poderia deixar a cava na estrutura
superficial da narrativa, como o próprio título de seu artigo para o jornal “O Estado”, em
O ideário romanesco presente na literatura escrita, pelo menos desde até aonde
conseguimos, daqui, de nossa contemporaneidade, recuar, nos faz pôr ao relevo dessas linhas
exagerar, os feitos heróicos na Grécia antiga, com a finalidade de condensar, sincretizar num
determinado tipo, ou num tipo construído a partir da soma de partes-tipo de vários tipos
transfigurados e cabidos numa imagem que dá, ao leitor, toda a dimensão e o âmbito dos
155
forte ou marcha contracta da narrativa, o tempo do romance. Chegamos a isso considerando,
entre outros, Benedito Nunes, um dos que abordam a questão do tempo romanesco.
Com efeito, como lemos algumas teorias e os romances de Gastão Cruls, podemos
dizer, claro que ainda com cautela, que o escopo crítico do gênero romance, essa dualidade
para uma realidade, além de ficcional, também verificável, seria uma célula mater desse
gênero da ficção.
Em Gastão Cruls, pois, temos uma medida irrefutável dessa dualidade, convertida em
unidades mutuamente indutivas no próprio artista, já que, como sublinha Gersen, Cruls
possuía uma identidade dual. E isso não foi sua escolha. Era um destino com o qual tinha que
conviver. Por isso, o conflito entre o cientista e o literato. Não houvesse a dualidade, não
existiria também o conflito, e assim não teríamos o romancista que, em Cruls, será também
intimista. Aficcionado pela arte e pela liberdade desde antes dos tempos de faculdade, ver-se-
á aprisionado pelo lastro a frio da ciência. Para buscar seu antidestino, seu primeiro amor: a
liberdade, Cruls procura encontrar a saída. Ao pôr essa roda em movimento, gera o conflito, o
Mas, não queremos furtar o prazer de se ler a análise que Bernardo Gersen faz
tais temas, os nossos comentários. Só, para mais uma vez virarmos a página ou adentrarmos
novo nome da crítica crulsiana, queremos deixar uma imagem do alter ego de Gastão Cruls
156
que ele queria criar: produto do seu engenho, vida de criação, hausto de
criador, amassada no seu sangue, calcinada no seu cérebro...
Donegal chorava (CRULS, 1958, p. 394, grifos do autor).
Como diz B. Gersen, a partir de A criação e o criador o fazer literário de Cruls “se
torna mais genuinamente romanesco” (p. 382). Interposto, segundo o crítico, “uma espécie de
alter ego” (p. 382) entre o criador e a criação, o artista fá-los diálogo a três em uma
comunicação que não termina, deixando o leitor a escrever o capítulo que não se escreveu: o
um dos romances aos quais o crítico reservou um maior número de linhas, deixaremos a
Encontrada”.
...
Catorze dias depois de publicar seu artigo “Ficção e realidade: conclusão”, no jornal
mesmo jornal e, ainda falando da ficção de Gastão Cruls. Invertidos os núcleos do sujeito
romance de Cruls que faz parte do volume Quatro romances, publicado em 1958, fonte do
comentário de Gersen.
amplia a veia intelectualista de Elsa e Helena” (p. 387), em um novo caso de dissociação da
personalidade.
A propósito, podemos dizer que se trata de uma dissociação que refluxa a própria
consciência narradora sintetizada nas epígrafes de A criação e o criador, sendo uma, para
157
cada uma das três partes seguintes nesta ordem: “O criador”, “A criação” e “A criação e o
criador”.
Revirando essas partes, e de acordo com Bernardo Gersen, descobrimos que Donegal é
o próprio Gastão Cruls. Para tanto, partimos do pressuposto de que, na primeira parte, o
ficcionista narra de si mesmo em terceira pessoa. Tal recurso revela-se um subterfúgio para
ato da criação. Essa primeira parte apresenta até mesmo um possível rascunho de
caracterização das personagens, como se pode ver às páginas 307-310 de Cruls (1958). Com
narrador: as linhas gerais e a base inicial da história estão prontas, mas, muito pode mudar na
hora de discursar essa história. Já o primeiro sinal de confusão do narrador aparece nas
primeiras páginas, antes mesmo que o romance comece; aí, o narrador está à frente do
discurso e projetado na história, o que representa uma ansiedade natural quanto a desenvolver
insights and outsights, a ponto de não se saber distinguir qual realidade é a realidade, com
exemplo na invocação de Maurois: “Não se deve pedir ao artista que êle seja fiel à realidade,
mas, sim, à sua realidade” (MAUROIS, apud CRULS, 1958, p. 322). A dificuldade da opção
¾ Qual! Por mais que você queira, insistia Jaguarão, não me convence que
êsse entrecho não se apóie em qualquer fato da vida real, algum drama
verídico de que, no mínimo, você teve conhecimento, se nêle também não
tomou parte ativa, como tudo está a indicar. Então a maneira por que você
fala nessa tal Yolanda, o ardor com que a defende... Eu chego a pensar que,
158
além de Brás e Philippe, há um outro apaixonado por ela e que, dentro em
pouco, o seu romance terá de falar num menage à quatre... (CRULS, 1958,
p. 323, grifos do autor).
focalização interna através da qual as personagens se manifestam, mostram que estão vivas e
que influem a história. Nesse momento, talvez o momento mais fluídico da composição
romanesca, o criador passa a ser secundário; escreve não o que tinha planejado ou o que
espremia do cérebro, a fim de continuar aquelas páginas, às vezes, a anos entulhadas à espera
da solução: escreve, sim, a história que as próprias personagens discursam. De fato, Donegal,
Dondoca, Dondoca,
Anda depressa
Que eu belisco essa pernoca...
O criador, em sua suposta vida real, quando estava perdido e sem saber como retomar
o seu romance teve seus sentidos despertados por um telefonema no qual, numa linha cruzada,
flagrava uma conversa entre uma Yolanda e um Phillippe, justamente, nomes de duas das suas
personagens. Nas palavras de Gersen, “a partir daí nosso romancista passa a participar da vida
de seus personagens e a intervir diretamente nos seus destinos, a realidade mistura-se à ficção,
influencia-a e por sua vez é por ela influenciada” (p. 388). Com efeito, de aí em diante inicia-
se uma caça a personagem, com desvelado interesse por Yolanda: é como se o criador
159
quisesse ver a personagem caracterizada em seu rascunho, em ação. O entrecho anterior é
uma observação espacial que parte de um narrador que retira por instantes o olhar de Yolanda:
culmina. Depois de criar a criatura e de ver-se nela, de inventar uma história e de ser enredado
Criação”). Todas elas foram importantes para a construção do gênero romance, para
desfecho impensado, destes, que fazem um romance ser um romance: um desfecho segundo o
qual o criador pode, não raro, ser a personagem de um outro criador. Quanto à realidade, se do
Wilde (apud CRULS, 1958, p. 347): “não é a arte que copia a vida, mas a vida é que copia a
arte”.
segundo o crítico, “o maior romance de Gide” (p. 390), e destaca da composição crulsiana
uma formação que corresponderia, nas palavras do crítico, “à tríade hegeliana” (p. 389).
Gersen ainda comenta, no mesmo artigo, os romances Vertigem, Elsa e Helena e, uma vez
mais, A Amazônia misteriosa, cuja passagem pelo crítico destacada, e que o leitor poderá ler
160
em seu artigo que transcrevemos, é, segundo Gersen, maior que qualquer dos romances “de
RACHEL DE QUEIROZ
Queiroz que, escrevendo a nota “Última Página” para o jornal “O Cruzeiro” em 29/08/1959,
Sensibilizada com sua morte, Queiroz fala de um dos predicados mais preciosos do escritor: o
zelo das amizades. De certa forma, nesse momento de luto, lamenta a pouca atenção que nós,
de modo geral, damos aos nossos amigos enquanto estão vivos; e percebe o contraste desse
(des)cuidado no amigo que se foi: “E tratando-se justamente de uma pessoa como Gastão
Cruls, todas essas omissões cotidianas da amizade ainda parecem mais graves, porque ele não
as cometia nunca. Amizade para ele não era uma palavra à-toa, era um dom, um compromisso
Aparentemente fechado, como pontuou Silva Melo (1959), e não dado a muita
conversa, Gastão Cruls, à primeira vista, segundo compreendemos, mostrava-se uma pessoa
pouco sociável. Essa impressão, porém, parece que se dissipava aos primeiros sinais de
amizades que vicejaram-se poucas mas leais, pelos anos dos estudos de medicina, de viagens
pelo Brasil e de encontro com a vocação literária, Gastão Cruls revelou-se exemplo de amigo
que não esquece, que não falseia, que se mantém próximo e solícito, como bem nos lembrará
Rachel de Queiroz ainda recita suas primeiras lembranças da “grande flor flamenga”
(p. 393), e comenta a respeito de uma aflição, certamente comum a todo escritor: a aflição da
“terrível insegurança de quem escreve para os outros lerem”, imaginando que Gastão Cruls
161
“muitas vezes precisou de uma palavra de fé ou de animação” (p. 394). Nessas palavras de
Queiroz desponta a tristeza da sensação, comum de muitos, de que algo muito importante que
precisava ser dito não o foi, apenas por “preguiça” (p. 394). Quase despedindo-se, a amiga e
escritora cita o gesto inesquecível de Gastão Cruls para com a mãe dela: o gesto simples de
perguntar pela “leitora antiga” e de “lhe mandar seus livros novos” (p. 396); mas,
Queiroz, o momento da despedida de sua mãe. Nesse momento, segundo Queiroz, o presente
de uma flor plantada e cuidada por ele no seu pequeno jardim, no Alto da Boa Vista, era o
Assim, a nosso ver, não surpreenderia, por isso mesmo, que o acordar de saudade das
sensibilidade e saber; nos tomasse a nós mesmos de sobressalto, num mundo ainda tão carente
Quando ele se vai, Rachel de Queiroz rememora aquele último riso lateral, sem abrir a boca,
...
162
JOEL PONTES
aplicação literária do termo goetheano “sinfronismo”, que designa, em nossa avaliação, uma
capacidade rara: a de eternizar instantes que comumente passam despercebidos. Nas palavras
do crítico: “resulta que o autor sinfrônico tem que 1º) sentir o tempo que não é o seu e 2º)
A competência com que o autor usa essa capacidade em sua novelística confere,
segundo Pontes, a “originalidade maior” (p. 404) de Gastão L. Cruls nas palavras, na sintaxe e
nos aspectos do enredo. E, a nosso ver, a formação acadêmica na Escola de Medicina do Rio
de Janeiro, e o gosto por conhecer os muitos tipos humanos de seu país, faz da arte de Cruls
caráter etéreo dessas obras, que as fazem continuar vivas e de leitura indispensável para todas
as épocas. Segundo Pontes, a força dos clássicos permanece vital porque a arte neles contida,
e que deles emana a cada leitura ou releitura, é um retrato daquele presente, hoje, tempo
Nesse interlúdio, esse passado de Homero, Sócrates, Platão, Ovídio, Ariosto, Sêneca,
Assis entre outros, porta as vozes de mensageiros que a todo momento estão querendo dizer
algo aos homens contemporâneos de qualquer época: mensagens que falam de amor, de ódio,
que, desde sempre, põem o homem em conflito com a Natureza. E o artista, retratando-os
tempo, concede-lhes o milagre da transcendência; e isso, de tal forma, que apesar da mudança
163
dos tempos, da vontade dos homens e dos valores da sociedade, a voz que deveras nos fala,
que talvez tenha ecoado pela lacuna de seis mil anos, soa-nos tão profundamente atual e
agora.
Pensando nesse retrato, nessa pintura, nessa música tão real para nós que se nos parece
viva, de dentro de nossa realidade, nossa bruma incerta, podemos dizer que as vozes dos
clássicos são as vozes das almas e da Natureza de seus tempos. Vozes auscultadas pelo artista
de Deus de cujo resplendor da Glória ou do Inferno muitos não suportaram: ficaram loucos e
a outros enlouqueceram, suicidaram-se, e os que viveram sãos viveram alienados. Apesar dos
exemplos dessa tragédia do humano nas histórias de Sêneca, Klaus Mann, Nijinsky, Camile
Claudel ou Sá-Carneiro, não acreditamos que tal destino tenha que ser a regra irreversível da
fatalidade.
De toda sorte, o artista sofre naturalmente por um ideal possível, mas tornado
inalcançável pelos modelos conflitivos da sociedade dos homens. Modelos que podem
aprisionar o corpo e a mente, mas nunca a alma. E o artista sabe. E como a alma é o coração
do espírito, e o espírito a força capaz de fazer revoluções, talvez se explique porque nos
Mas não se cala a voz da alma. Essa agonia metafísica, embora enclausurada em um
corpo tão limitado, continua por aí, nos cantos, nas vilas, nas cidades e nos campos, ¾
pensando nos dizer alguma coisa. Sua presença no tempo e nos tempos, ou seja; no seu
homens.
164
Essa voz é o sinfronismo da arte, segundo Joel Pontes, termo empregado “em relação à
essência literária a Ortega y Gasset” no El Espectador, quando Ortega, segundo Pontes, “se
serve desse termo para explicar as relações entre Azorín e don Jacinto Bejarano, um
desconhecido padre de aldeia. ‘Siento, como se fueran mios tu dolores’, diz o escritor” (p.
399).
Esse exemplo é similar ao exemplo tomado por Carlos Reis (1999, p. 359-61), falando
Emma Bovary no discurso da história de Madame Bovary, de Flaubert. De acordo com esse
Emma Bovary, tuve en la boca el sabor de arsênico con tanta intensidad, me sentí yo mismo
Eis aí um autêntico caso do sinfronismo goetheano que, sob outros termos, é tratado
em Carlos Reis (1999, p. 360, grifos do autor) por uma personagem que liga e faz conexão
com o mundo real na presentidade: “Os próprios estudos literários (e nos últimos tempos a
33
De acordo com Carlos Reis, 1999, p. 358, grifos do autor: “Baseando-se na utilização por E. Souriau (no
âmbito de pesquisas sobre a narrativa cinematográfica) do conceito de universo diegético, como local do
significado, distinto do universo do écran, local do significante fílmico, Genette considera, em Nouveau
Discours du Récit (Paris, Seuil, 1983, p. 10-14), que o termo diegese deve designar o universo espácio-temporal
em que decorre a história [...]”.
165
uma história ficcional que representa vivamente, como a impressão teatral, a história da vida
real. Esse universo diegético, comentado por Reis, é a expressão que substitui o termo
que tanto a personagem balisada por Carlos Reis, quanto a balisada por Ortega e Gasset na
transposição do termo goetheano para a literatura, figura não apenas em discurso direto, mas
discurso, já que, em essência, todo discurso é potencialmente polifônico. Pelo que nos parece,
isso anula a diferença entre Platão e Aristóteles sobre o fazer narrativo na diegese. Para o
primeiro, na diegese figurariam dois modos de fala: o do narrador esforçando-se para dar ao
leitor a impressão de que é uma outra pessoa que fala, e o do narrador que se expressa em
uma fala originalmente sua. Para o segundo, os dois modos descritos por Platão são mimese,
ou seja, tudo na haplé diegésis é imitação, seja pelo falar característico ou modalizante da
personagem, seja pelo falar peculiar do narrador, mesmo quando esse narrador representa a
agir” (p. 400) que se encarrega da geração da simpatia enquanto elemento catalisador da
Aliás, continua Pontes, há “no livro Qué es literatura?, publicado em fins de 1954, uma
fora feita por Ortega y Gasset, como de fato confirmamos na edição em português:
166
chamou “sinfronismo”, ou seja, a coincidência espiritual, de estilo, de
módulo vital, entre o homem de uma época e os de todas as épocas, dos
próximos aos dispersos no tempo e no espaço (CASTAGNINO, 1969, p. 41,
grifos do autor).
de Gastão Cruls, dizendo que o sinfronismo literário no escritor justifica-se na direção que o
sinfronismo crulsiano em De pai a filho revela a busca do artista pela perfeição do ofício
artístico, inteiramente “entregue à criação com intensidade tal que dela participou” (p. 406).
Não comentaremos a análise sinfrônica de Joel Pontes. Mas, deixaremos ao nosso leitor o
convite para lê-la no “Volume 2”. Por hora, fica aqui um pequeno brinde do sinfronismo
E foi então que ela se voltara com muitos mimos para uma cria da casa, neta
de antigos escravos do pai, mas que dera naquela mulatinha tapada e
songamonga, sem préstimo para nada e que só servia para apanhar uma coisa
aqui e outra ali (“Ceição, vá ver se o leiteiro já veio!” “Ceição, procure o
meu carretel de retrós que rolou para debaixo do armário!”), e ainda o que
melhor fazia era puxar as botinas do patrão (CRULS, 1954, p. 13).
personagens, quer em relação à posição social, grau de instrução, etc” (p. 403). De nossa
parte, em Cruls, como vimos na passagem acima, essa deficiência não existe. Podemos até
dizer que ela não pode ser encontrada em nenhuma parte de sua obra. Enquanto isso,
conforme afirma Pontes, “nossos romancistas, via de regra, têm uma só linguagem, num
ver, pois, na estrutura do entrecho acima, o sinfronismo de Cruls está fielmente pautado desde
167
os arranjos morfossintáticos engendrados pelo autor, à mimese da narrativa na narrativa, ali
Contudo, as investigações sociais, o olhar sobre o mundo e as pessoas nas idas e vindas pelo
No dia seguinte, quando Teresa desceu para a primeira pose, vestia uma
linda blusa lilás. Fôra um presente de Iracema, às vésperas da chegada de
Betinho, quando todos insistiam para que tirasse o luto.
Ao vê-la, mais moça do que nunca, no seu magnífico outono que valeria por
muitas primaveras, o filho contemplou-a com olhos de êxtase:
¾ Só falta o chapéu, para ser a Apparition de Mallarmé (CRULS, 1954, p.
503).
uma infinidade de temas que traduzem uma cultura, até então, muito pouco conhecida dos
De acordo com Carpeaux, o termo “Pré-modernismo” foi criado por Tristão de Ataíde
408). Trata-se, portanto, de uma literatura mais sociológica no conteúdo, mas ainda
168
Dentre os escritores pré-modernistas, Carpeaux releva alguns nomes que teriam sido
citados pelo crítico está o de Gastão Cruls, cujo estilo excede, na escritura de romances
psicológicos, “os limites do regionalismo”; e continua ainda em suas palavras, “assim como
para Cruls recai sobre o escritor apenas enquanto contista regionalista e, conforme Carpeaux,
à maneira de Affonso Arinos, Simões Lopes Neto, Monteiro Lobato e Peregrino Júnior; logo,
Por sua vez, queremos acrescentar que também o regionalismo nos contos de Gastão
Cruls é permeado pela reflexão psicológica de personagem. Nesse sentido, gostaríamos de nos
estender um pouco mais nesse assunto. Um exemplo considerável pode ser visto já a partir de
Raimunda quebra o silêncio ao chegar a um lugar que não queria, e cuja visão a fará mudar de
idéia:
Numa situação como essa, o narrador faz de conta que dá, literalmente, (GENETTE,
1970, p. 170-71) a palavra à sua personagem: Raimunda “acabou elogiando...”. Isso nos conta
169
“inferneira” e “arreliava” seriam uma tentativa de imitação da parte do narrador. O enunciado,
pois, uma fala subordinada ao discurso relatado (reportado) de tipo dramático – uma mimese
caracterizada em dois graus: o narrador que conta imita com voz emprestada pelo narrador-
personagem, quando não é mais a entidade que narra pelo seu ponto de vista, mas já o
fingimento do ponto de vista do outro, até adentrar a instância narrativa em discurso direto.
Notando que esse discurso é desde antes a fala de uma personagem que imita na representação
a fala supostamente original, de uma pessoa naquele campo conversacional, temos então a
capacidade de imitar por parte do narrador que conta, facultada pela imitação que ele próprio
faz a partir de uma outra imitação. A primeira, quando toma para si o modo de dizer de
outrem, ainda em discurso indireto, implica uma mimese simples; mas, a segunda, quando
delega voz a uma personagem que continua a falar em conformidade com a primeira imitação,
e que é ainda o mesmo narrador onisciente, implica uma mimese em escala de dois graus; isto
interlocutor (D. Raimunda, no entrecho acima) a partir da expressão do seu rosto: “alentado
pelo modo prazenteiro com que Raimunda escutava a enfiada de seus projetos”, é
170
ou seleção das informações do texto, ou ainda, para usarmos um termo que preferimos, a
privilegia não apenas o que elas pensam (e já isso é diferenciado, de acordo com o que mais
prende a atenção de cada uma delas), mas também as particulares emoções inerentes a
principalmente em face da expectativa do que ela, por certo, teria a perder. Já Chico Sabino,
focalização interna (e, por isso mesmo, focalizadores), facultam do espaço focalizado imagens
assídua devoção à Senhora da Piedade, no oratório da Tia Felisberta” (CRULS, 1951, p. 106),
mas deixaria de sofrer com a falta de água; Chico Sabino, a seu tempo, ganharia com o triunfo
de sua vontade e de seu sonho por quase dez anos, “dois lustros” de “vida feliz e produtiva”
na terra “feraz e benfazeja” (CRULS, 1951, p. 109) que ele mesmo escolhera. Triunfo,
entretanto, que seria ceifado pela morte de Raimunda e a convivência com um certo saci de
suas crendices.
171
Este entrecho é a linha divisória entre uma narrativa de um narrador heterodiegético e
Falando dos tipos de relação que podem unir a narrativa metadiegética à narrativa
primeira; e, nas linhas em que fala do, por ele chamado, terceiro tipo de narrativa
narrador transporta-se para a diegese e nela conta de novo o que vinha contando para um
leitor fora da história (nós, por exemplo). Esse ato de recontar, realizado na diegese pelas
De fato,
Chico Sabino:
Não! Patrãozinho sabe bem que seu prêto velho quase não bebe, [...] Mal
assuntei, vi um matinho mais adiante a mexer, e o esconjurado pôs-se logo a
gritar: Saci! Saci-saperê! Saci-saperê! [...] Meu amo está rindo porque
ainda não topou com êle, nem sabe das suas artimanhas. O negrinho é
mesmo astucioso e mau [...] (CRULS, 1951, p. 113).
O fazendeiro:
172
Com efeito,
(a) passagem de um nível narrativo para outro não pode, em princípio, senão
ser assegurada pela narração, acto que precisamente consiste em introduzir
numa situação, por meio de um discurso, o conhecimento de uma outra
situação (GENETTE, 1970, p. 233).
A idéia é estabelecer uma relação entre o ato narrativo: ação de como contar. E a
situação presente: por que se está contando isto. Temos assim, uma narrativa segunda; logo,
Note-se que toda a passagem em discurso indireto livre, na qual a história de “A morte
do saci”, em ato narrativo, começa com “Descendo pela estrada velha Chico Sabino
matutava...” (CRULS, 1951, p. 110) é traduzível para a primeira pessoa: Descendo pela
Todas as informações dos parágrafos acima nos são dadas pelo narrador
uma narrativa primeira focalizada da extradiegese. Mas ao que parece, essa entrância vai
reentrando a outra – diegética; e o fato desse conteúdo não ser recontado textualmente na
diegese, pode ser justificado pelo conhecimento da situação, já dado aos possíveis leitores da
Trata-se mesmo de uma opção clara pelo não-repetir textualmente (suposto que já o
repete de forma subentendida e a nível de contexto) e, ao mesmo tempo, por dizer que esse
Aliás, no plano do texto não há quem conte a história ao fazendeiro. Só sabemos que
há isto: (que posto textualmente seria um recontar) o ato de contar por apreensão de um
173
O primeiro está, a princípio, fora da história, mas temos a impressão de que ele se vai
aproximando, entra na diegese (já que não-dizer pode equivaler a dizer mais; como se
narrador que continua essa narrativa segunda. Porém, e já a partir deste instante, em linhas da
narrativa primeira. Como que num piscar-de-olhos a digese tornou-se metadiegese e voltou a
ser diegese.
Defendemos que entre a narrativa extradiegética das páginas 110-13 de Cruls (1951), e
vácuo do discurso que serve justamente para situar o tempo entre a narrativa (geralmente de
narrativa na narrativa.
discursivas no universo diegético; ainda mais que funcionam, cada qual, como um jogo de
Talvez possamos arriscar e articular aqui dois tipos do narrador, pelo seu nível
narrativo e pela sua relação para com a história que, conforme Genette (1970, p. 247) podem
ser:
174
“Narrador (nível) extradiegético – (relação) heterodiegético: narrador
tradicional que conta do primeiro nível uma história da qual está ausente”;
podemos ler uma ficção que notabiliza a arte literária e revela um certo sentimento íntimo
(por fim do escritor) no trato conversador de assuntos de seu chão e sua gente. Assim, “cada
personagem [de Cruls] se exprime em sua linguagem, tem o falar característico de sua
FERNANDO GOES
Fernando Goes, no prefácio de seu O espelho infiel (1966), fala da dificuldade inerente
às atribuições da crítica, já que ela se defronta com definições e práticas diferenciadas. Seja
pelo escopo de um método não marxista ou marxista, seja pela técnica empírica ou dialética
na análise do material factual, afirma Goes: “será sempre a crítica um espelho infiel a refletir
cronograma histórico do autor. Empreende uma marcha linear e empírica na busca pela
confirmação de algumas críticas já conhecidas por ele a respeito do Sr. Gastão Cruls, como o
chama; entre elas a de Olívio Montenegro, publicada quase 28 anos antes. O espaço
percorrido pelo crítico dá conta justamente daquela fase de transição da crítica, de 1940 a
1960, período em que o olhar crítico no Brasil e nesse momento sofre transformações que o
175
tarefa que se impôs, Goes vai de A Amazônia misteriosa, passa pela A Amazônia que eu vi,
por Vertigem, e chega em De pai a filho. Nesse caminho, Cruls teria ficado ausente da ficção
por dezesseis anos, ou seja, entre História puxa história (1938) e De pai a filho (1954).
Nesse expediente, o crítico, que reconta parte da história do prosador Cruls, aborda o
enunciados miméticos – discurso da imitação –, desse romance de Cruls, tais como “tipa” e
“bilontra” (p. 410). Desses vocábulos vale o crítico para situar o autor entre aqueles que se
aproveitam com primor da língua pertencente a cada época, portanto, e distintamente, a cada
personagem. Por causa de ocorrências lingüísticas dessa natureza é que Joel Pontes se referiu
a Cruls como sendo um escritor sinfrônico; um criador que dá liberdade, livre arbítrio a suas
personagens.
Passeando pela prosa de Cruls, o crítico Goes enxerga na superfície dela uma
economia muito próxima do que, podemos pensar, Lotman (1978) reportou de “processo-
menos” no seu A estrutura do texto artístico. De acordo com Lotman, o grau maior de
informatividade implícita revela um alto teor de literariedade. Claro que a descoberta desse
alto teor do fenômeno literário é, nas condições de abrangência do implícito, sempre mais
difícil e necessariamente mais criteriosa. Esse estilo reticente, que F. Goes chama de vigoroso
que resulta numa prosa da mais elevada qualidade, sem “pano de fundos”, como por exemplo,
o poético, tão repetidas vezes tomado pelos nossos escritores, sobretudo os regionalistas
uma mestria que aumenta de muito o valor de seu romance. De resto, convém acentuar que o
escritor é um dos nossos poucos prosadores que realmente escrevem... em prosa” (p. 411).
176
A limpidez da prosa crulsiana, como já dizia Goes, aparece tácita, como, segundo
sua superestrutura ou, a níveis profundos do plano discursivo, desde as suas primeiras
com Goes, esse mesmo estilo notório, mas avaliado como ríspido no A Amazônia misteriosa,
de 1925, reaparece em 1954, quase trinta anos depois. E agora, assim compreendemos,
podendo ser vista de um outro ângulo, essa forma de fazer estesia e catarse na prosa repete-se
em De pai a filho:
Com efeito, esse aspecto da ficção crulsiana, delineado pela dosagem dos contornos de
seus arranjos sempre prosaicos, merecerá de Eugênio Gomes o título de “mestre consumado
da prosa” e a opinião de Rubem Braga que o aponta como um autor que se dirige ao leitor em
“tom de camaradagem”. Esses comentários, nas “orelhas” de De pai a filho para crítica de
Aparência do Rio de Janeiro, corroboram a conclusão de Goes a esse respeito: “Gastão Cruls
[...] é um verdadeiro prosador, prosador naquele sentido em que o foram Machado de Assis e
177
Repassando as lições deixadas por outros críticos, Goes observa com apontamentos
que marcam acentuadamente sua passagem pela história da composição do estilo prosador de
Cruls que, se não usou a poesia como fundo de suas narrativas, usou-a muitas vezes, feito um
episódio em que Dona Pepê é recriminada pelo marido, o Cardoso, a despeito do gosto rueiro
A mulher e a galinha
Stances a Manon:
34
O Wyndham Lewis de que fala Campos (1976).
178
Fazendo coro ao autor Cruls, o crítico Goes não deixa de assinalar um olho no furacão
testemunhado pela narrativa que fala do interesse de Cruls pelos casos mórbidos, denunciando
filho como conseqüência do trauma de ter flagrado “a mãe sendo possuída pelo pai”: Les
jambes en l’air, comme une femme lubrique (p. 405) ¾ acena Goes com esses versos de
Baudelaire, finalizando sua crítica de modo a instar-se uma panorâmica da evolução do estilo
através de um painel da matéria ficcional de Gastão Cruls. E, De pai a filho, apontado pelo
crítico como “vasto painel da vida carioca no princípio do século XX” (p. 405), dedica suas
GASTÃO CRULS
seguinte foi compilado da reimpressão da obra de Le Blanc, em 1977, pela Editora Brasil
tese social é publicada no mesmo ano em que se publica também a versão do mesmo romance
em razão do nenhum estímulo substancial dado à atividade de leitura; num país de tempos de
altos e vergonhosos índices de analfabetismo. Cruls temia que os nossos jovens ainda mais se
afastassem dos livros, para ele, “única fonte de saber” (p. 419).
179
Entrementes, o autor reconhece que o quadrinho pode ser de grande utilidade para o
ponto de vista do quadrinizante, uma leitura cênica, como dirá Causo (2003) a respeito desse
explicitude da paixão entre Rosina e Seu Doutor, e a poção do erotismo flagrante em Malila;
além da cena na qual o protagonista e narrador representado, Seu Doutor, é surpreendido pelo
apoiando-se em Herman Lima, e desse apoio ressalta, entre outros, o conto “Abcesso de
fixação”, dedicado por Cruls a Silva Melo, e do qual daremos um pequeno entrecho que
Medicina, para fazer frente aos quadros de infecção generalizada, consistia em produzir
uma vez concentrados em um único tecido ou órgão, são mais facilmente combatidos, com
Com efeito, uma vez instalado o foco germinal, presumia-se atrair os germes que
poderiam se espalhar por todo o organismo. Nesse sentido, funcionava como antecipação de
180
um quadro real e total de infecção generalizada. A diferença é que esse quadro seria real em
uma pequena parte do corpo, possibilitando a intervenção médica e a cura. Era, assim, uma
armadilha para esses bichos infecto-contagiosos. No conto, Gastão Cruls cria uma
personagem que aplica essa técnica nela mesmo; só que, em vez de destinado ao tratamento
(CRULS, 1951, p. 208), ¾ a atitude de matar, a personagem só haverá que pensar nesse crime,
de sanção muito maior, que nas obsessões e idéias estranhas que lhe tiravam o sono todas as
Por outro lado, eu tinha agora um motivo real de preocupação, que era o
receio de que me viessem a descobrir e isso já dava bastante trabalho ao meu
cérebro para que êle não achasse mais tempo para ruminar desvarios. [...]
Afinal, eu só visava minha felicidade e não posso ser considerado um
criminoso. [...] O senhor, no meu caso, não faria a mesma coisa? (CRULS,
1951, p. 210).
AFRÂNIO COUTINHO
Cruls foi um “homem de imaginação solta” (p. 422). Certamente, essa liberdade para o
impulso criador permitiu ao artista pintar a Amazônia com um colorido peculiar àqueles que
dão vazão ao temperamento simples, sem rebuscamentos nem complicações, até porque, a
singularidade do ethos amazônico nada pede de extraordinário: uma vez que em si mesmo já o
é. Foi assim que sem que lá houvesse estado escreveu o romance A Amazônia misteriosa,
181
Afrânio Coutinho ainda destaca que com Gastão Cruls, Monteiro Lobato, Simões
Lopes Neto e Afonso Arinos, entre outros vistos em comentários anteriores como Euclides da
coube valorizá-la num tom revolucionário, responsável pela sua definitiva integração” (p.
427).
...
panorama no qual a realidade e a fantasia aparecem não mais disjuntas, mas intercaladas, na
trás com uma consciência histórica dos episódios do evento Modernismo e ter, na corrente
psicológica explorada pelos simbolistas, o campo no qual, segundo Coutinho, Cruls adapta
ambiente e para motivos locais. Como dissera Lima (1952, p. 94), “a ressaltar, ainda, que é
Gastão Cruls, com “A noiva de Oscar Wilde” e “O noturno nº 13”, um dos poucos autores
brasileiros a tratarem o conto de imaginação e mistério, com todo o sortilégio literário dos
escritor que ficou à parte das transformações estéticas levadas a cabo no momento, segundo o
crítico, mais eloqüente do Modernismo. Mesmo porque, um escritor definido por sinfrônico
(PONTES, 1960) não poderia se dar ao luxo de um temperamento mais ardente, ainda que em
circunstâncias de borbulha, como a desenhada na São Paulo das décadas de vinte e trinta,
que se impunha à do café, e pelos movimentos revoltosos num cenário político que acabou
182
finalizando a chamada “República Velha” e inaugurando o “Estado Novo” de Vargas. Cabia,
ao artista Cruls, manter-se lúcido na apresentação dos detalhes e em suas observações: estilo
que valeu à sua obra, segundo Coutinho, lugar entre as “mais importantes da ficção brasileira”
importantes: um reitera pontos de vista de autores como Grieco e Coutinho, a respeito, mais
uma vez, da associação ciência/fantasia; outro indica uma particularidade nova: a capacidade
que o artista tem de “apurar seus recursos a cada criação” (WERNECK, 1995, p. 598).
Pensando em apuro do estético, vale colocar lado a lado o conto nove de Sagarana “A hora e
Rosa.
Olhando para essas obras-primas da literatura brasileira, pode-se notar que o estilo tão
experimentado por Guimarães nas suas primeiras estórias é consolidado na “A hora e a vez
Também nas primeiras estórias de Cruls, esse estilo revelador de propriedades das
personagens, situadas no mesmo nível discursivo de seu criador, surge já como uma
¾ Cansadinho, hein, seu doutor? E pelo que vejo hoje não se arranja mais
nada, disse Manoel Formiga a olhar desconsoladamente para os cachorros. ¾
Só agora foi que eu vi por que é que estes diabos me estão fazendo passar
vergonha e não querem trabalhar. É que a Mutuca está no vício e eles estão
só com sentido nela (CRULS, 1951, p. 26).
Formiga pondo os olhos nos cães que “estão só com sentido” na Mutuca, e esta última já
35
Fantasmagoria da linguagem: ou “linguagemas” termo aventado para caracterizar os neologismos tão ao
gosto de Guimarães Rosa.
183
circunstanciada pelas aspas, são uma belíssima pintura de uma aparência e de uma linguagem,
respectivamente, consoante com a forma pela qual se nos apresenta o real, que bem parece o
lugar de interioridade, de cheiro de terra à primeira chuva, de gente que ainda pára para olhar
as cores violeta, azul-turquesa, azul-índigo, verde, amarelo, alaranjado e vermelho dos arcos-
da-velha, aqui colocados no plural, justamente, tendo em vista a presença desse fenômeno nos
céus do Brasil, em número comum de dois e em conformidade com os lençóis abertos com
...
volta a citar Gastão Cruls, e classifica como “excelentes” (p. 425) os livros de contos do autor
como Coivara, Ao embalo da Rede e História puxa história. Detalhe interessante é pensar que
os contos compreendidos por esses volumes contêm “poderosa dramaticidade” (p. 425), como
afirma o crítico, além de, conforme acreditamos, revelar tipos e lugares pitorescos de um
Brasil ainda hoje estranho para muitos brasileiros. Nesse estranhamento, segundo
entendemos, perspicazmente percebido pelo artista, ganham forte estímulo criador o elemento
ciência e a fantasia, pela caracterização do ambiente e das pessoas na sua obra de ficção. Não
sem propósito, pois, trata-se de uma obra de contos e romances que superou as fronteiras
tradicionais do regionalismo brasileiro, visto, talvez, junto à edição princeps de uma escritura
não interessada em prejulgar, por um Gastão Cruls visionário e alcunha nata de uma arte, não
PEDRO NAVA
Em suas memórias (1987), Pedro Nava reencontra o Gastão Cruls de quem fora
vizinho por alguns meses, entre fins de 1938 e início de 1939. Ao lermos o volume de Galo
184
das trevas, fica claro porque Antônio Cândido, na orelha da 4ª edição, diz que esse livro é “o
Cruls surge-lhe espaldeirada na poltrona, de um preto mais uma vez impecável, como se
quisesse dizer que, do outro lado, a noite é límpida e de gala. A cada gesto, Pedro Nava
rememora outro, e mais outro, e assim vai reconstituindo um momento e todos os momentos
em fração de segundos, é verdade, mas com uma perfeição que surpreende pela nitidez dos
acontecimentos e pela fluidez das palavras, soadas o mais natural, como se estivessem sendo
chega-se a pensar que não se trata de uma ilusão, de uma simulação; mas de que tudo está
rematerializou.
185
De acordo com Nava, se estava em noite inspirada, Gastão apresentava-se brincalhão,
um demônio a pentelhar os amigos e pô-los em polvorosa. Se, em vez disso, cismava ficar em
de uma sempre providencial piteira, seu cachimbo da paz. Aliás, da forma como
Mas, mergulhando em nossas reflexões, é curioso como a opinião dos amigos era
importante para Gastão Cruls. Na verdade, os amigos lhe eram muito mais que bons amigos.
Eram de fato a sua família. E não uma família involuntária como as famílias normais o são
para cada qual de seus entes, eram, sim, uma família que ele mesmo escolhera. Assim foi que
esteve a ponto de destruir, segundo Nava, devido à opinião de um amigo, uma de suas
melhores criações. Graças a outro amigo, porém, o romance De pai a filho não foi rasgado e
pode contar também com a crítica desse mesmo grande amigo e, principalmente, para este
caso, de mais um dos grandes escritores brasileiros: Pedro Nava, nosso contemporâneo até
1984, e desde então eternizado em nossas memórias pela importância e pelo primor de sua
arte literária.
RUY RIBEIRO
de Gastão Cruls. Relata o crítico que tal pêndulo entre a realidade e a ficção, adquiriu o artista
de seu pai o astrônomo e escritor Luis Cruls. Nesse ponto biográfico continua o crítico até
chegar ao comentário das obras do escritor, deixando entrever dois aspectos internos da
186
A propósito, penetrando a história de A Amazônia misteriosa, o engano que deixa os
primeiros sinais de sumiço no mato, qualquer outro que não o mateiro Pacatuba teria voltado
para trás. Seria a única forma de não se perder ainda mais. Mas também a outra forma de
contornos de uma lenda que turva e espanta a realidade. De súbito, porém, na noite que
antecedeu o encontro com as flechas dos índios, o narrador representado fala de um sonho que
tivera com gigantescos tentáculos avançando perigosamente sobre eles. Perto dos pés dos
contemplar os horrores daquela cena de atos trôpegos na escuridão, culminados com a morte
de Rosina, narrada por Ruy Ribeiro. A história evola paulatinamente do irreal para o
verificável, sem nunca apertar o passo, mas com o ritmo pulsando sem quebrar a freqüência.
Inobstante, é devido a esse ritmo da narrativa crulsiana, que Ribeiro cita Amoroso Lima, a
A nosso ver, o cenário aí nos lembra uma casinha européia no Rio antigo, com portão
estreito, sótão e porão. Lugar ideal para provocar arrepios, reminiscências e reencarnações.
Com efeito, tão logo o pó desses bens e males é levitado e começa a afetar os moradores da
187
casa, a mudança para o campo sugere a passagem de um lugar assombrado para outro ainda
mais: uma casa de campo, com ares de velha mansão abandonada, de lagos com juncos e
Gastão Cruls: “realidade histórica, conhecimento científico e imaginação” (p. 431). Para o
crítico, tal trinômio atinge em De pai a filho, seu “romance maior”, “o ponto máximo do
processo criativo” (p. 431). Passando por alguns contos, como “Um ahasvero moderno”, R.
Ribeiro lembra a tendência de Gastão Cruls para os casos mórbidos, inclusive, auto-
representando-se em figuras como o satírico dr. Uchôa de “Um aasvero moderno” e outros
(o) Snr. Uchôa não sabia bem dos motivos que o levaram a decidir-se pela
carreira médica, e talvez que as razões dessa escolha estivessem mais na
opinião dos outros do que mesmo num aprofundado exame das suas próprias
aptidões (CRULS, 1951, p. 79).
De fato, isso o sabemos, como aconteceu ao dr. Uchôa, não era a medicina a vocação
de Cruls, mas foi determinante a influência do pai. E se não permaneceu cativo nas clínicas e
nos hospitais, curando enfermos e salvando vidas, foi porque o gosto pela aventura e a paixão
pela liberdade lhe foram as maiores aspirações. Sua vocação então, não poderia ser outra que
não a literatura. Com ela, tornou-se não só escritor, mas um artista que incorporou à vocação
uma riqueza ainda insondada de conhecimento científico e espiritual do mundo e das pessoas.
segredo da esfinge”, como nessa passagem em que o narrador faz nova tentativa para decifrar
a esfinge Nádia:
Estava uma tarde no Garnier, quando vi Nádia entrar. Dessa vez era mesmo
ela: muito chique, lindas pérolas nas orelhas, dedos fulgentes de anéis...
188
Esteve a examinar por algum tempo os livros expostos. Separou dois ou três
romances, mais algumas revistas francesas. A seguir, passou às mãos do
caixeiro uma lista e este andou correndo as estantes. Consegui ler depois
essa relação, deixada na livraria para que fossem procuradas por outras casas
as obras ali existentes, e pasmei do seu cultivo espiritual: “Evolution Old
and New, de Samuel Butler, Shelley, de Francis Thompson, The Intellectual
Life, de Hamerton, H. Poincaré Dernières Pensées, The Philosophy of
Humanisme do Viscount Haldane, The Misuse of Mind de Karin Stephen,
Lucien Bourgués et Alexandre Deneréaz La Musique et La Vie Intérieur,
Dwelshauvers La Psycologie française contemporaine, Husson
L’Occitanisme. Essay sur les peuples mediterranée-atlantes, Camis II
meccanismo delle emozioni, Wilhelm Ostwald Der Energetische
Imperativ” (CRULS, 1951, p. 230).
de Assis & Manuel Bandeira, Assis Barbosa comenta o fim de um Rio de Janeiro dos tempos
de Manuel Bandeira, Machado de Assis, Gastão Cruls e de todos os outros que por esse tempo
da cidade” (p. 439), referindo sua obra que documenta o Rio, em Aparência do Rio de
Janeiro.
O crítico folheia as páginas de uma época eternizada por Cruls, visitando retratos
principalmente de lugares como “As Laranjeiras, Cosme Velho e Águas Férreas”, e parece
morros, por aquele tempo tão atraentes e amigáveis, hoje nos chegam com uma paisagem
quanto mais ainda seria se certos governos que por lá passaram a tivessem administrado com
uma visão de futuro e de respeito às pessoas que lá moram e que lá visitam. Se existe um
paraíso na Terra, não temos dúvidas que o Rio é parte dele. Infelizmente, porém, parece um
nostalgia parece que chora a falta dos caramanchões, das pontezinhas, das fruteiras e dos
lugar tão abençoado que ainda hoje impressiona. Como diz o crítico, desse jardim edênico, e
diríamos que esse nosso jardim era ainda mais bonito que aquele do Oriente, “já em 1965”
“tudo se tinha acabado” (p. 437). E quando lemos relatos de uma vida doce, regada a passeios
tranqüilos por paisagens singulares e carinhosas à menina dos nossos olhos, fazendo
piqueniques na orla da mata e desfrutando os frutos e os regalos que uma Natureza rica em
mar, água doce, flores, árvores, passarinhos e um número de tanta vida e beleza que chega ao
céu, só nos resta mesmo pensar, como sugere Assis Barbosa, numa “fantasia do absurdo” (p.
436).
MASSAUD MOISÉS
Todavia, como confirma Massaud Moisés (1997a), o estilo da prosa de Gastão Cruls
não evoluiu da belle époque em conformidade com os “apelos” (p. 444) da Semana de Arte
emana de uma atmosfera do campo ou da cidade, num veículo ainda em trânsito pelo
realismo. Seja como for, Moisés dá pistas do esteticismo de Cruls, situando-o algo próximo
temática realista para a temática simbolista. Esta irá cruzar territórios do pré-modernismo e
percebendo-os pelo dado histórico literário, como, por exemplo, nas aproximações com
Coelho Neto e o ponto de vista de Olívio Montenegro (1953) que diz, no seu O Romance
190
...
interpreta a mesma matéria dos contos de Cruls, agora pelo prisma do fantástico. Nessa
assertiva, Moisés diz do “espanto”, do efeito “surpresa” (p. 442) e do, emendamos,
estranhamento oferecidos pelas narrativas do autor no conto “Meu sósia”, como na passagem
O duplo Paulo de Alencastro, alter ego de Cruls, personifica um encontro entre o real e
o imaginário, de duas pessoas que desejam a mesma personalidade. Esse encontro resulta, por
um lado, em um conflito entre leis da Física, como aquela em que dois corpos não podem
ocupar o mesmo lugar no espaço; por outro, na dúvida e na incerteza sobre o que é ou não
real, e sobre onde está o espaço da razão. Finalmente, entendemos que os ícones
sugere a transmissão da emoção para o leitor, “freqüentemente vem mesclado ao de idéia: “La
descent into the Maelstrom”, de Edgar Allan Poe, “O Jogral de Nossa Senhora”, de Anatole
France” (p. 441); através, segundo o crítico, de recursos das “narrativas de mistério ou de
191
ANTÔNIO CÂNDIDO & JOSÉ ADERALDO CASTELO
compreende um histórico da prosa desde a aura do Modernismo até a década de 30, e a vida
cultural dos anos 30 a 45; chamou-nos a atenção a presença de Gastão Cruls, segundo esses
críticos, já um “veterano” (p. 444) ao lado do qual vieram se juntar nomes como Marques
Rebelo e José Geraldo Vieira. Nas palavras de Cândido e Castelo, esse grupo “se alimentou”
da estética modernista “sem radicalismo”, o que lhes “permitiu aproveitar muitas lições do
meio literário de qual Cruls também faz parte, depois das metamorfoses da Semana de 22 a
exemplo do comentário que fizemos em Lúcia Miguel Pereira (1952). Nossa atenção então se
volta para o decênio de 1930, período em que o romance, conforme Antônio Cândido e José
Aderaldo Castelo, “teve um grande surto, tão brilhante como o que se verificou entre 1880 e
1910” (p. 444), e destacou-se por tematizar uma das principais cores desse novo romance: a
Mas queremos, para dialogar com Cândido e Castelo, nos estendermos em uma análise
regionalista, ainda do conto “A morte do saci”, de Gastão Cruls, como fizemos, a propósito da
joão de barro” é não apenas figura de linguagem, mas um recurso de retórica integrado ao
192
modo narrativo e à enunciação do texto. A possibilidade da contra-argumentação consiste no
fato de que só diria se, como nos traz o parte-texto, “ao longe avistasse” uma casa que não
A princípio, então,
através de um narrador que não se identifica e faz diminuir o fio narrativo até o ponto da
sinfrônica como já nos dera estudo Castagnino (1969). Essa atuação dos narradores é
responsável pela dinâmica do discurso e constitui uma estrutura narrativa justificada por uma
narração que desempenha, naturalmente, uma metamorfose que sobraça o real pela
verossimilhança:
Para rematar, alentado pelo modo prazenteiro com que Raimunda escutava a
enfiada de seus projetos, Chico Sabino foi-lhe direito à causa dos
aborrecimentos. O lote ficava, na verdade, um tanto retirado... Mas se êle
não ia mais à turma e o seu trabalho tinha de ser todo pela redondeza? Era
preciso ver além do mais, que havia em tudo muito exagero. Pelo atalho do
mundo novo, em menos de três horas se podia estar no armazem, e, desde
que preciso fosse, uma ou duas vezes por semana, êle até lá desceria com
facilidade (CRULS, 1951, p. 107).
passa bastão. Nesse instante estão elípticos os sinais explícitos de discurso direto (segunda
introdução); cuja perspectiva sai de foco pelas reticências. É como se o estilizador (narrador
que conta) recobrasse a sua própria consciência. No quadro imediato surge a terceira
indireto.
Este momento marca, pois, a fusão de que falamos. Dela emerge a aparente
incoerência enunciativa: não é o estilista (o narrador que conta) quem pensa com os
E assim temos do estilista ao retomar o enunciado: “Não se enganara o velho colono nas suas
previsões” (CRULS, 1951, p. 108). De fato, como previsto, Raimunda fora clandestinamente
persuadida. Fora apanhada num momento em que não lhe cabia o revide, e isso foi muito bem
lido nos olhos dela por Chico Sabino. De súbita infelicidade, porém, foi a epifania do engano,
malgrado a intenção do velho colono de tão somente assustar o satã que o espantava:
magia a criação artístico-literária. Mais que parte do fabulário de Chico Sabino, o saci era
parte real da sua vida; pois que o tinha, desde a morte da Raimunda, seis meses antes, “em
verdadeira perseguição” (CRULS, 1951, p. 110). Era um levantar e dormir com o diabo do
seo Chico Sabino contava, a personagem Naco apropriou-se de vozes outras pertencentes a
um mundo que ela mesma recriava a cada aparição. Tornou-se um místico da lenda e um
conversor do mito.
Chico Sabino era seu mito! Aquele que sobre em quando era pensado como pai ou
aquele que devia ter morrido em vez do pai (ambos, Chico Sabino e Manoel Estevão, eram
194
velhos conhecidos), ou quem sabe o menino crédulo quisesse dar uma lição no velho
incrédulo, mostrando-lhe, ao vivo e a cores, que sacis existem. Entram em cena, portanto, atos
de um elenco ético, étnico e cultural, parte próprio, parte instituído pela escuta, pela
observação e pela experiência, e parte fantasiado. Esse elenco denuncia nas artimanhas, nas
o autor quer enfocar: se política, se econômica, se social, se histórica; e nós diríamos que
todas essas, levando-se em conta o ellan regionalista que Cruls começava a descobrir.
medo e ignorância das assombrações e fantasmas: o saci estava ali. Era real. O medo era sua
alucinação, e o menino Naco o produto atingido por uma bala “calibre 16” (CRULS, 1951,
p. 114) à mira de folhagens remexendo. “O endiabrado Naco” tanto ouviu que acreditou poder
ser um saci. E foi! Mas certamente jamais ouvira ou jamais acreditara nem percebera um
desfecho trágico para o saci, da boca de seo Chico. Nas histórias de saci, um herói a
malazartes, o saci não morre e diverte as crianças fazendo as artes que elas crianças não
devem fazer. Dessa forma, o saci é para elas o herói que arrebenta a convenção do não poder
fazer, e é assim que o ouvir e o divertir-se com suas histórias representam o escape para uma
vivência livre, engraçada e com muita ação, como a do perneta de gorro e cachimbo.
compassos de tempo real para um leitor ou ouvinte que poderiam ser reais. Ao consumir
tempo real no imaginário das pessoas, a ficção deixa de ser só ficção e, dependendo das
circunstâncias (de que circuito) no ambiente dos envolvidos com a história, haverá ou não a
195
Chico Sabino, por sua vez, tanto contou de saci, que, apesar de estar com má visão dos
olhos, suspeitou o suficiente da natureza do que não via para atirar. E não foi muito, já que
as gentes dos matos, nos matos atiram quase que à toa. Mas não era o caso do Chico Sabino.
Ele nem tinha arma de fogo. E aqui mora o que ambos não sabiam: estrelavam o episódio de
“A morte do saci”. Assente-se que não foi o saci que morreu, mas uma de suas personagens: o
“Saci-saperê” (CRULS, 1951, p. 110), saperê de sapeca e de sapê e de pererê, que se foi no
“horizonte distante e colinoso”. Porém, “a lua, como uma grande caçoula de prata, muito
branca e redonda” (CRULS, 1951, p. 116), ainda hoje sobe... Trazendo quem sabe, conforme
RAUL DE SÁ BARBOSA
puxando a mesma orelha que Alexei Bueno assina para essa Antônio Torres: uma antologia,
de Sá Barbosa. Tomamos tal iniciativa ao ocorrer-nos que a introdução e as notas com vistas à
seleção de Raul de Sá Barbosa são baseadas no livro de Gastão Cruls, Antônio Torres e seus
Amigos, de 1950. E dizemos mais: Gastão Cruls e o ex-padre Antônio Torres cultivavam uma
amizade cujo vínculo mostrou-se de uma afinidade indestrutível, com certas diferenças
contraponto aos modos muito serenos de Cruls. Fosse-nos possível cotejar a “Antologia” de
Sá Barbosa com a “Antologia dos textos de Cruls publicados no Boletim de Ariel” (esta
última, ainda neste trabalho ofertaremos ao nosso leitor), veríamos que os dois amigos se
196
(cujo é dia) a fim de que, pela poderosa intercessão de tão glorioso santo, me
venha de lá alguma carta que seja pelo menos tão interessante quanto a
última que de ti recebi...” 36 [...]; “O Gilberto [Freyre] é o único que me tem
escrito sempre e não deixa minhas cartas sem resposta. Deixar de responder
a uma carta é uma desatenção. Mas para comigo, é uma profunda falta de
afeto e uma grave injustiça, porque eu só escrevo às pessoas a quem estimo
muito, e eu só estimo a muito pouca gente neste mundo; e como você está
nesse número, estranho o seu injustificável silêncio. É fantástico! Parece que
sou eu o único a amar os meus amigos!” 37 [...]; “Caro Cipriano. Há que
tempo não recebo uma linha sua! Há talvez mais de um mês, o que é
incrível!” 38 [...]; “Meu caro Ramos, é incrível que hajas passado tanto e tão
longo tempo sem me mandar uma linha sequer! Digo tão longo tempo
porque ouço apenas a voz do meu coração. E conhecendo-te, sei que o teu
coração também é sensível. Escreve-me, filho meu!... Onde estão os amigos?
O Agripino Grieco é para mim uma coisa tão distante quanto as nevadas dos
Abruzzos, de onde ele veio por via do sangue paterno e materno...” 39.
Sua correspondência se destinava sobretudo, mas não exclusivamente, aos
membros do grupo que se formara em torno dele no Rio, a partir de 1920, e
que se desfez com sua partida para a Europa. Conhecido como o “Grupo dos
Pilotos” 40, costumava reunir-se ao entardecer na Livraria Castilho; na filial
da Pascoal; ou no Bar Nacional, com suas duas entradas, uma no largo da
Carioca, junto da estação dos bondes de Santa Teresa, e outra na rua Santo
Antônio.
Gastão publicou, além das que lhe foram dirigidas, e que começara a
divulgar pelo Boletim a partir de 1934, i. e., depois da morte de Torres, as
que Torres havia escrito a Saul Borges Carneiro, A. J. Castilho, Miguel
Osório de Almeida, Alberto ramos, Aureliano Brandão, Mário Guaraná, A.
da Silva Melo, Augusto Veloso e Cipriano Lage.
Faltam as cartas a Gilberto Amado, outro amigo dileto. Em depoimento
manuscrito de doze páginas, feito a meu pedido, e enviado de Nova York
para Hamburgo em 1962 [Gilberto Amado foi membro da Comissão de
Direito Internacional das Nações Unidas desde sua primeira sessão, em
1949; e eu servia àquele tempo, no Consulado-Geral em Hamburgo, como
Konsul-adjunckt, mesmo cargo de Torres na década de 30], Gilberto Amado
repetiu, quase ipsis litteris, a explicação que dera para essa lacuna no livro
Presença na política (Rio, 1958, p. 152): “Faltam... as cartas que Torres me
escreveu no decorrer da vida, inúmeras como se pode ver pelas referências
na obra de Gastão” nesse depoimento manuscrito, a que chamou “notas at
random”, o embaixador me dizia que as cartas eram “dezenas e dezenas ou
mais...” “Durante algum tempo”, escreveu ele, “nutri a esperança de
descobri-las. Perderam-se, porém, hoje estou certo, em malas e caixões
extraviados com outros papéis (títulos antigos de nomeação, certidões de
batismo e de casamento, título de sócio do Jóquei Club, mapas de Sergipe
[Gilberto Amado era sergipano, de Estância] preciosos, do tempo da colônia,
romance quase pronto), sem dúvida durante a guerra russo-finlandesa, e a
européia, que se lhe seguiu, em viagem da Finlândia à Suécia, da Suécia à
Itália, e da Itália à Suíça”. As ditas “notas at random” anunciavam uma
36
Carta de Londres a Saul Borges Carneiro, de 19. III. 1929 em CRULS, 1950, p. 192.
37
Carta de Londres a A. J. de Castilho, de 18. VII. 1921 em CRULS, 1950, p. 122.
38
Carta de Hamburgo a Cipriano Lage, de 5. II. 1931 em CRULS, 1950, p. 266.
39
Carta de Londres para Alberto Ramos, de 5. X. 1927 em CRULS, 1950, p. 271.
40
Nota (1) do autor: Efigênio Sales teria contado uma anedota licenciosa, que dava como acontecida com um
piloto do Lloyde. Torres, que achara graça na história, e gostava, segundo Cruls, de pôr apelido nas pessoas,
passou a chamar Efigênio de ‘piloto’ e, depois, a saudar assim, indistintamente, todos os amigos. O nome pegou.
197
última busca no Lausanne Palace Hotel, onde parte da bagagem em trânsito
poderia muito bem ter ficado.
No excelente prefácio à sua coletânea, Cruls faz um justificado paralelo
entre Torres e o planfetário francês Paul-Louis Courier (1772-1825), e a
comparação é ainda mais pertinente pelo fato de que o próprio Torres
costumava citar o outro, chamando sempre “meu mestre” ao autor de Lettres
écrites de France et d’ Italie.
Cruls acentua que, em Torres, o homem e o escritor nunca se separavam.
“Quer se dirigisse ao público pelas colunas do jornal, quer discreteasse com
um amigo sob envelope fechado, o escritor de prosa límpida e pena ágil e
acerada estava sempre a serviço do homem, que só sabia pensar em voz alta,
com a coragem de suas idéias e a severidade dos seus julgamentos”.
O longo período no exterior favoreceu essa copiosa correspondência da qual
se publicam aqui, como amostragem, alguns excertos.
Vem a pêlo observar41 que a vida diplomática nos deu também outro notável
epistológrafo em Ruy Ribeiro Couto (1898-1963), ausente do país por quase
trinta e quatro anos, cuja grandeza se comprovará quando forem reunidas e
editadas suas cartas.
Como Antônio Torres e Ribeiro Couto, um terceiro epistológrafo do
Itamarati, o poeta e embaixador Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1964),
“da geração que fundou a Academia” (ocupou a cadeira nº 9), acabou
esquecido pelos meios intelectuais do Brasil. E, no entanto, “era uma das
maiores culturas e mais finas sensibilidades que já têm produzido as nossas
letras”. Essas observações são do segundo Afonso Arinos, que o conheceu
em Roma42 e via nele a pessoa que mais influência literária e cultural
exerceu sobre a sua mocidade.
Para não perder contacto com o país e, principalmente, com a língua
portuguesa, segundo me confidenciou, Guimarães Rosa ocupou apenas três
postos no exterior: Hamburgo, Bogotá e Paris. Preferia servir na Secretaria
de Estado, onde se deixava ficar pachorrento, na apagada Divisão de
Fronteiras. E me disse que só aceitara a terceira remoção para não fazer
papel de cretino: jamais alguém recusara Paris.
Já Torres sempre sonhara viver na Europa.
Antes da publicação tardia (1950) de Antônio Torres e seus amigos, Amadeu
Amaral Júnior, que tomara conhecimento de parte do material no Boletim de
Ariel, opinou [...] que “reunidas, [as cartas de Torres] dariam talvez o melhor
livro dele”. Com isso concorda Alberto Venâncio, da Academia Brasileira de
Letras: “A correspondência guarda parelha com a obra do polemista” e foi
“uma felicidade” que Cruls a tivesse organizado e dado a lume. Já na opinião
de Otto Maria Carpeaux, ela é decepcionante: “Não se poderia esperar, num
livro editado por Gastão Cruls, qualquer sensacionalismo barato”. Mesmo
assim, a seu ver, as cartas “revelam, senão nas entrelinhas, a personalidade
do missivista. São expressões de um brasileiro tipo 1910 que, profundamente
aborrecido com a vida em sua pátria, observa com admiração algo ingênua a
vida diferente na Europa. E é tudo”. (Otto Maria Carpeaux, “Antônio Torres
e seu amigo [Cruls], O Jornal, 19.XI.1950).
41
Nota (2) do autor: O uso da expressão é uma homenagem ao meu amigo Donaldson M. Garschagen, que gosta
muito de empregá-la.
42
Nota (3) do autor: Magalhães de Azeredo foi representante do Brasil junto à Santa Sé de 1920 a 1934.
198
Acresce que Gastão censurou as cartas, tanto no Boletim de Ariel quanto no
volume da Companhia Editora Nacional. Nem podia ser de outra maneira,
explicou ele a Homero Senna quando o livro estava em preparação: “Torres,
na sua correspondência íntima, era ainda mais sem peias e ferino do que em
seus artigos. Ora, há muitas vezes alusões a pessoas vivas que não podem, de
modo algum, ser divulgadas. Seria arranjar barulho e inimizades”
(República das Letras, Livraria S. José, 1956, p. 283).
Agora, com Gastão Cruls igualmente morto, por que não se faz uma edição
não-expurgada da correspondência? Eu mesmo, que preparo um livro sobre
meu predecessor no consulado em Hamburgo, teria muito prazer em anotá-la
(SÁ-BARBOSA, 2002, p. 251-55)43.
contundente à sociedade brasileira da época, passiva diante da condição de inferior que lhe
impingia a opinião externa. Uma opinião que ainda hoje custa-nos caro e nos leva a perguntar
internacionais, criado como a moça bastarda; isto é, como um destinado a obedecer e a acatar,
civilizados.
Amplia-se no horizonte, mais claro hoje, por que o Brasil era chamado pelos alemães
Esse grupo jamais acreditou que um país composto por subraças, conforme se dizia, venha a
ser, um dia, uma civilização de quilate. Infelizmente, eles estavam certos. Durante muito
tempo os brasileiros mais que expoliados pela segregação externa, foram roubados e
manietados pelos próprios brasileiros: ultrajados pela corrupção e pelo confinamento a linhas
brasilidade que muito ainda tem a provar, mas que decidiu-se a não ser a moça bastarda
43
Grifos e interpolações do autor.
199
idealizada pelos padrastos. Com toda certeza, Antônio Torres, altivo e orgulhoso, deve estar-
se rindo agora, feliz , não plenamente satisfeito ainda, mas certo de que não fora o último
comportamento do brasileiro. Tão áspera, que ainda agora quando a lemos, têm-se a
lugares do Brasil, o mesmo orgulho que o brasileiro tem de sua ignorância, febrilmente
admoestado por Torres, ainda subsiste mantido por interesses institucionais das mesmas
instituições que pregam a liberdade e a extensão do braço democrático a todo o povo. Essas
nível educacional. Isso explica por que hoje, a despeito da ação institucional de socorros
das cavernas, é estar diante de um quadro desencorajador; mas visualizar a ignorância nos que
deveriam combatê-la é estar diante de uma cena extraordinariamente bestial. De fato, o Brasil
motivo de “desgostos, tristeza e vergonha” (p. 452), nessas palavras de Torres. Talvez, seja
possível pensar que o que Torres chamou nos brasileiros de “ignorância incurável”, e de
“imoralidade irremediável” (p. 452) seja em nossos dias uma aflição menos infernal. Nas
palavras do crítico, o ressaibo de uma amargura, mas em cada letra o sofrimento de um amor
200
Em outra carta, de fevereiro de 1927, Antônio Torres fala de um certo temperamento
chamado de doutor fulano de tal sem o ser. Para tanto, utiliza-se de um anel ao qual não fez
jus e ostenta uma aparência de altivez que, de tão catafalsa, estruge ridícula. O segundo, por
sua vez, curva-se à mera aparência e venera o doutor que não é doutor. Conserva o mesmo
pensamento dos silvícolas que viram nos homens das caravelas os deuses encarnados que por
milênios eles adoravam em espírito e em sacrifícios. Ambos, a tal elite e esse serviçal,
indoutos na natureza do crivo necessário a qualquer que deseje titular-se doutor de verdade,
por muito tempo formaram o quadro paradoxal e patético de um país assim lupado pelo grupo
dos países maiorais. Resquícios desse tempo, entretanto, ainda são encontrados à larga no
bacharel que gosta de ser chamado de doutor e nos prestador de adulação conivente com um
estado que convencionou-se natural, haja vista o discrepante distanciamento salarial, por
tomando por base uma sociedade titulada pela influência econômica, dá mesmo para se
perguntar quem de fato é o doutor. E pensar que o dinheiro e a riqueza material sem
autoria feminina. Talvez em função de que ele também ainda cultivava certos valores, sem os
saber discriminatórios. Uma prova de que o ser humano está infalivelmente destinado a erros
Tivesse dado tempo, a correção certamente, para Antônio Torres, teria vindo pelo
próprio amigo Gastão Cruls, que não apenas uma vez o presenteara com livros assinados por
mulheres. Na carta em questão, o destaque recai sobre o livro de Clemence Dane, Legend,
201
encomendado pelo Cruls leitor de autorias femininas, o qual Torres diz que leria antes de
enviar. Afinal, não há, nem nunca houve motivo não preconceituoso que avaliasse a qualidade
A carta de 1930 difere pelo tom poético com que se refere à Natureza, e metálico com
estadunidenses pelo mundo, e que se irradiava fortemente pelo Brasil das grandes cidades da
época. Antônio Torres louvava a idéia de mudança da Capital Federal do nosso país para o
Planalto Central, mas, não acreditava que isso fosse possível; ao menos não no curto prazo.
A crítica aos Estados Unidos é perturbadora. Fosse hoje e talvez seria considerado
terrorista. Já por aquele tempo comenta com Gastão Cruls questões que nos são totalmente
atuais, como o interesse de gringos pela nossa Amazônia e o intragável acordo que trouxera
Na carta de agosto de 1931, Torres fala a Cruls de Gilberto Freyre, que viria a ser
amigo dos mais íntimos de Gastão Cruls, dividindo, inclusive, e por um tempo, um
apartamento no Alto da Boa Vista, no Rio. Nessa carta curta, Torres pede a Cruls que lhe
arranje alguns artigos sobre a nossa ortografia, àquela época, em vias de reforma.
exprime o temor da ocupação estrangeira. Um temor que ele, fora do Brasil, pôde sentir mais
real, posto que o desejo de invasão era partilhado por muitos, inclusive por gente aqui dentro.
202
Mas talvez, justamente por serem muitos os pretendentes, a ocupação não se haja efetuado.
Era sempre um risco tomar a iniciativa, e imprevisível a reação dos demais concorrentes.
preocupação com o avanço do comunismo. Além disso, uma outra questão era mais urgente à
época: a restauração do Estado Judeu a Israel, em pleno curso na década de 30 do século XX,
e que envolvia diretamente interesses voltados para o controle do Oriente, principal fonte de
Guerra Mundial. Nesse contexto, parece-nos óbvio que uma Segunda Grande Guerra já se
desenhava.
...
Comentamos essas cartas por considerá-las relevantes na relação entre Gastão Cruls e
Antônio Torres. Ademais, não só por isso, mas também por notória ligação entre os muitos
rodapés de Raul de Sá Barbosa, no “Volume” seguinte. Esses artistas, e esses críticos, tal
como Gastão Cruls e Antônio Torres, desejaram e lutaram por uma nova ordem mundial,
uma análise que nos desse um intertexto das obras A Amazônia misteriosa (Cruls) e A ilha do
203
Dr. Moreau. A idéia nos foi apresentada pela Profa. Dra. Ana Luiza S. Camarani, então nossa
professora da Disciplina “Narrativa Fantástica”. Foi justamente por aqueles dias que
Profa. Dra. Maria Célia Leonel nossa professora em Narratologia, Disciplina que cursamos
anterior à acima citada. A professora Maria Célia descobriu o livro lendo um jornal e, o nome
de Cruls, ali mencionado, chamou-lhe a atenção justamente porque, àquele tempo, estávamos
Assim, foi uma surpresa, e uma grata coincidência descobrir que a análise de Causo
punha frente a frente o mesmo Cruls e o mesmo Wells, com as respectivas mesmas obras que
nos era objeto de análise na “Narrativa Fantástica”, e que de fato tornou-se o “Capítulo 5”
desta Dissertação.
amazônica, n’A Amazônia misteriosa, erige a figura enigmática de Atahualpa, cuja aparição
uma força metafísica que centraliza uma espécie de energia invisível – uma força criadora –
científica. Em Atahualpa, paira o buraco negro do espírito guerreiro e solitário que cancela na
De repente, vinda não sei de onde, surgiu ao meu lado uma figura estranha e
intimidante. Era um tipo altaneiro e ainda moço, de porte airoso e olhar
dominador e grave. No rosto, bronzeado e longo, o nariz aquilino e a curva
incisiva do mento energizavam-lhe o perfil. Aparatosamente vestido, sobre a
túnica de lã branca, com recamos de ouro e prata e ponteada a pedras
preciosas, trazia um rico manto de penas frouxeladas e multicores. O peito,
chispando jóias, ostentava uma gorjeira de monstruosas e lúcidas
esmeraldas, como esmeraldas lhe manilhavam os pulsos e cravejavam o
couro das sandálias altas. Um turbante de borlas rubras e larga trançadeira de
pérolas e outras gemas encristava-lhe a fronte com duas longas penas
listradas de preto e branco (CRULS, 1958, p. 83).
204
Conforme Causo, Cruls “emprega índices de uma cultura pré-colombiana” para
e que, por especulação, bem poderia ser parte da Atlântida desaparecida, conforme Platão,
naquela malfadada noite de 9.000 anos antes de Cristo. Destarte, o aspecto de mistério do
combinamos com Causo quanto a revelação, em Cruls, de uma identidade brasileira que se
Tive a sensação que fazia um extenso vôo por espaços ilimitados e regiões
completamente desconhecidas. Por fim, foi a miragem.
À minha frente, e vista do alto para que melhor a pudesse contemplar,
estendia-se uma cidade magnífica. Erigida entre canais e cintada por uma
muralha natural de pórfiro, as suas casas de estuque branco e brilhante ou de
barro poroso, e os seus templos e palácios de pedra e com altos torreões,
miravam-se no espelho das águas, bordando de lado a lado as longas e largas
estradas que cruzavam os lagos e iam ter ao continente. Florestas de
pinheiros, bosquetes de carvalhos, plainos cultivados formavam um engaste
verde a esta jóia, que rompia do seio das águas qual uma outra Veneza
(CRULS, 1958, p. 84).
Mas essa outra Veneza, tal como a Veneza da Península Ibérica, que fora a extensão
do inferno de Dante, era, no Meridiano Sul, o inferno onde o Dr. Morte o Dr. Moreau de
teríamos um laboratório que seria um tipo de Hades dos trópicos, povoado de anjos e
demônios de asas quebradas; caricaturas de mortos reanimados pela eterna ambição da ciência
em prol da longevidade do homem, aliás, desse homem sempre em busca de quebrar a regra
205
[...] Por causa do que você fez, a terra será maldita. Terá de trabalhar no
pesado e suar para fazer com que a terra produza algum alimento; isso até
que você volte para a terra, pois dela você foi formado. Você foi feito de
terra e vai virar terra outra vez (BÍBLIA, cap. 3, vers. 17c, 19).
E, ainda dirá Deus no mesmo Gênesis: “ Não deixarei que os seres humanos vivam para
sempre, pois são mortais. De agora em diante eles não viverão mais do que cento e vinte
Moreau, a lenda dos dois querubins míticos, guardiães do Jardim de Éden, e que eram
também é a terra caída em desgraça com a personalidade dupla do homem, representada pelas
de Proteus e do gênero gótico no romance de ficção científica, Causo aponta uma provável
influência do conto “William Wilson”, clássico de Poe, na temática do duplo crulsiano, como
em “Meu Sósia”. Nesse “interessante” (p. 467) conto, como afirma Causo, Cruls realiza uma
206
Pedro Jaguarão.
Pedro Jaguarão?! Mas que coisa esquisita! Pensava eu comigo mesmo.
Contudo não disse nada (CRULS, 1958, p. 419).
Considerações
Nesse diálogo, percebemos que o estilo vigoroso de Cruls, assinalado por Agripino
possibilidades de plasma do romance que, como sabemos, é um gênero que tem se mostrado
literatura em que ficcional e real aproximam-se interativamente. O crítico Joel Pontes (1960)
também nos chama a atenção para a arte de Gastão Cruls e nos dá, de acordo com críticos
como Sud Mennucci (1934), Lira Cavalcanti (1944), Amoroso Lima (1948), Gilberto Freyre
(1949), Herberto Sales (1950), Lúcia Miguel Pereira (1952), Silva Melo (1959), Bernardo
Gersen (1959), Afrânio Coutinho (1986) e Roberto de S. Causo (2003), entre outros,
elementos mais que suficientes para afirmar que a obra de Gastão Cruls é uma obra que devia
(1934) com o romance Salammbo, de Flaubert; e apontado por Causo (2003) como um
clássico da ficção científica brasileira. Elsa e Helena só encontrou rivais, segundo Lira
Michaelis. Vertigem, por sua vez, é visto por Astrojildo Pereira (1944), como um romance
revolucionário no modo como trata a burguesia brasileira do início do século XX, narrando a
derrocada econômica e moral dessa classe, quando geralmente se fazia o contrário. Segundo
Gersen (1959b), que destaca as vantagens do romance de Cruls sobre o romance de Gide, A
207
criação e o criador é, ao mesmo tempo, um romance de costumes e de idéias; cosmopolita ao
modo de um Paul Morand. Por último, o romance De pai a filho, de acordo com Pontes
integrados na trama. Ainda sobre De pai a filho, romance que amplia o espelho da burguesia
Coutinho destaca a maior marca de Gastão Cruls: a união da realidade com a imaginação e a
filiação do autor à corrente psicológica, que, sabemos, já vinha desde o Simbolismo, passou
Temístocles Linhares (1954) e Wilson Martins (1954), que fazem ressalvas ao estilo narrativo
de composição da prosa crulsiana, nos fornecem, hoje, com os elementos à época apontados
Cruls, como um artista que sempre esteve à frente de seu tempo, como, aliás, prenuncia o
A propósito dos contos de Gastão Cruls, Herman Lima (1952) afirma que tais contos
são raros exemplares do conto universal, e Amoroso Lima (1963) nos dá a idéia de que se
trata de contos modernos precursores do Modernismo. Contos que, por nossa vez, avaliamos
em dois gêneros: contos fantásticos que tendem ao trágico moderno e contos regionalistas que
idos anos 20 e 30. Conforme pontua Massaud Moisés (1997b), os contos de Cruls garantem
uma emoção que resiste à reflexão. Ficamos com a impressão de que a narrativa é a expressão
de uma verdade, ou, ao menos, ficamos a desejar que assim fosse. Como sobreleva Celso P.
Luft (1979), o drama no conto crulsiano nos lança, ainda hoje, do ponto de vista dramático,
208
tradicional, pois, pelo Gastão Cruls conteur, também nos dá importante testemunho o crítico
Otto Maria Carpeaux (1964). Importante ressaltar, ainda, que Gastão Cruls foi um dos poucos
Enfim, a obra de Gastão Cruls romancista e contista é alçada pela crítica que
não seria crítica), às maiores alturas da arte literária brasileira e, em função disso, pensamos
haver chegado a hora do artista ilustre ser honrado com as honras que seus livros merecem,
209
SESSÃO II
Gastão Cruls, quatrocentos anos depois de Cabral, redescobre o Brasil ao registrar com
letras da antiga ortografia lusa, o sonho de uma viagem pela Amazônia. Ao mesmo tempo,
Silvino Santos, com sua câmera Pathé a manivela, registrava o primeiro contato com os índios
amazônica. Inspirados pela vista estonteante de uma Amazônia do começo do século XX, as
de Aurélio Michiles.
Para o escritor Cruls, três anos após publicar a sua Amazônia idealizada, a aventura
continua e, desta vez, ela é real. Amigo do Marechal Rondon, Cruls faz parte da expedição às
Guianas, que, embarcada nas canoas de madeira, remava rio acima, saindo do Pará. Essa
aventura, trágica para muitos, foi também importante iniciativa do governo brasileiro, de
reconhecimento das nossas fronteiras e daquela parte do nosso território. Além de mapas e
documentos geo-econômicos sobre a região, dessa viagem Cruls nos deu A Amazônia que eu
vi, um diário de viagem no qual dialoga com A Amazônia misteriosa. Imaginação e realidade
por Cruls em seus contos, e que tanto marcaram no autor os anos vividos no Nordeste,
misturam-se às vozes da Amazônia crulsiana, cuja textura nos oferecerá, de hora adiante,
pelos próximos capítulos, percussão e sopros que nos levarão para dentro da mata ou para a
rouquidão do agreste, para a beira dos rios da Amazônia ou para as margens do São
210
Mas nossa viagem não ficará só no ambiente da Amazônia selvagem e desconhecida,
ou da caatinga nordestina, ela seguirá também por outros caminhos desconhecidos por onde o
autor se atreveu a andar. Esses caminhos, da mente e do paisagismo urbano, retratados nas
o suspense nos chamam a embarcar, levados pela parte que aqui nos cabe, da herança de
Gastão Cruls.
...
211
Capítulo 4
história
4.1 Apresentação
Gastão Cruls nos oferece, tanto n’A Amazônia misteriosa quanto n’A Amazônia que eu
vi, guardadas as devidas proporções da figuratividade, uma poesia do imaginário. Em sua arte
de escrever, nos anima os sentidos pela animação das belas paisagens amazônicas, cujos mitos
de suas paragens de verdume denso, e à noite, de uma negrura ainda mais impenetrável,
oferece caminho aberto por suas águas caudalosas, frescas e em meio a um calor intenso,
tropical e úmido. Diante de esplendorosa beleza, não se curvarão os olhos já turvos da extasia
do seu canto e até do seu silêncio que a todos enfeitiçam por sua magia insinuante, perigosa e
sedutora que nos faz desejar ardentemente desfrutar o prazer de tocá-la, selva virgem e pura,
212
Coxas abertas em mar,
delta desnudo,
agora e sempre
as espumas da vida
deslizando
no clitóris da selva,
...
“Dersu Uzala” (1975), do cineasta japonês Akira Kurosawa. Nesse filme, as fotografias muito
presentificação do real na ficção, anotada pelo encontro, de fato, entre o capitão Arseniev
Ussuri, são duas coordenadas importantes para construir a representação daquele tempo
instaura uma dupla visão. A primeira nos mostra dois homens: o capitão Arseniev e o caçador
Natureza (Dersu). Já a segunda, nos dá uma redução simplificada desses sistemas, pois eles,
com todas as suas complexidades, estão reduzidos ao universo de dois homens supostamente
opostos.
45
Poema “Ritual de iniciação” da poemália “Porantim” de Loureiro, João Jesus de Paes (2000, v.1, p. 29).
213
É esse encontro, ou esse embate, entre as representações da civilização e da Natureza,
que tentaremos aproximar nesta leitura do diário e do romance de Cruls. Com efeito,
aportando no cais da A Amazônia que eu vi, sugerimos uma realidade que parece interpretar o
parecem repetir, no diário de Cruls, passagens imaginadas por ele no romance A Amazônia
misteriosa.
reciprocidade.
ponto de contato entre ambos, para exemplificar a projeção do factual sobre o imaginário
4.2 O Romance
214
boas gargalhadas, tal a cara impagável com que ele ficou, de testa toda
encalombada e beiçorra enorme e muito vermelha (CRULS, 1958, p. 3).
mistura-se com a alteridade do ambiente e se reflete nas aparências que serão geradas a cada
personagem que dialoga com Pacatuba. No espaço entre esse narrador que conta a história e
Seu Doutor há uma ponte que constrói-se pela metáfora anafórica: o narrador que conta
transforma-se no doutor que deixa de ser doutor para ser, por instantes, os expectadores do
Pacatuba ao mesmo tempo que é o amigo sensibilizado com o sofrimento imagético da dor.
imaginário e à história de quem lê, como por exemplo, a opinião de um historiador que
bem omitir certas coisas, principalmente as que se passam longe do mar, embora a muitos
possam algumas delas parecer prodigiosas e incríveis”. O autor dessa opinião, o historiador
Caio Plínio, fala de uma particularidade muito importante: a da escolha que quem escreve faz
que o objeto escrito reveste-se de algum quilate de cunho científico ou literário, mas,
científico. Escolhido pelo autor Gastão Cruls para coligir as páginas de seu primeiro romance,
o comentário de Plínio destina-se, pois, a fazer parecer que o romance pode ser a história, ou
que a história pode ser uma narrativa estilizada numa forma do romance.
215
Vamos pensar, portanto, o romance como o evento literário que melhor traduz as
4.3 O Diário
Por sua vez, ao imaginarmos um diário pensamos também de acordo com um universo
descrições do mundo, suas paisagens, pessoas e acontecimentos, escrito por viajantes. Esse
gênero parece ressumir qualquer efeito estético, uma vez que, a princípio, pretende apenas
descrever o observado. Porém, tal limite parece não reconhecer fronteiras. A leitura, mesmo
do diário de um botânico, reconhecendo folhas, flores e frutos, por maior que seja o rigor
dedicado ao fazer científico, se mostrará uma leitura de narrativas que obedeceram ao(s)
216
Talvez o diário prime por uma versão da verdade verificável em suas fontes,
acontecido cujos canais discursivos são, todavia, os mesmos do evento passível de acontecer:
Não por acaso, portanto, o historiador e romancista Cruls abre as páginas de seu diário
dissera: vai e goza. Bebe a música dos pássaros e dos ventos, deslumbra-te nas luzes, inebria-
te nos odores”. De fato, a advertência procede. E pensando nela à vista do cenário amazônico
e da identidade de sua gente, é possível depreender que apesar de soar romântica, poética,
evoca uma reação ao estado de opressão e domínio, retrato não só da Amazônia e de outros
lugares brasileiros do tempo de Cruls, mas ainda do nosso. Ouvir a música dos pássaros e dos
ventos é muito bom, o perigo é bebê-la e ficar anestesiado para o que acontece no dia a dia da
vida. Esse não é o caso de Cruls, que experimenta no diário o exercício da reportagem.
Oportunamente,
Não temos dúvida que esses dizeres podem se referir a Gastão Cruls. Formado em
Medicina e depois Diretor da revista e editora “Boletim de Ariel”, Cruls nos deu uma boa
medida do homem inconformado com a rotina. Além disso, foi, na literatura, artista e crítico
da arte. Com efeito, esses caracteres da dualidade crulsiana se fazem presentes na composição
217
também do diário A Amazônia que eu vi, como destaca, na passagem abaixo, o Marechal
Rondon em carta ao amigo e companheiro, Gastão Cruls, na “Missão Rondon” 46; missão que,
Permita-me, meu caro Gastão Cruls, duas palavras de entusiasmo pelo seu
livro: A Amazônia que eu vi, crônica literária da Expedição aos lindes do
Brasil com a Guiana Holandesa, caracterizados pelos paredões enflorestados
da cordilheira Tumucumaque, dominante do vastíssimo vergel que o Cuminá
rega e alimenta. É a síntese bem feita com donaire literário, da Excursão
Militar de Estado-Maior, realizada com fins científicos também. Sem ser
trabalho de pura ficção em que o gênio da imaginação construiria as imagens
decorativas do pensamento do autor, sente-se nas narrativas belamente
apresentadas o encanto do estilo do escritor, que prima pela correção e pela
elegância da forma com a rigorosa honestidade peculiar ao seu belo caráter.
O Diário é a narrativa empolgante. [...].
Sem diminuir o galardão literário conquistado pela A Amazônia misteriosa,
de alto quilate artístico, julgo que A Amazônia que eu vi, é complemento real
da ficção bem arquitetada pelo gênio artístico que concebeu a primeira e
segunda obras, precursoras que serão da terceira em elaboração espiritual
(RONDON apud CRULS, 1973, p. xxxii).
entre a história e a ficção; todavia, para apresentar ao leitor a proposta que ora se define,
abordaremos história e ficção como literatura em sua função lúdica, assimilando e aplicando o
46
Falamos mais sobre a “Missão Rondon” no “Capítulo 2”.
218
A estrutura do diário estratifica a idéia do materialismo dialético da filosofia
hegeliana: reifica a necessidade que funda a história e justifica sua permanência no tempo,
pelo ato contínuo irreversível de caminhar sobre as águas sinuosas da única direção possível.
Para a história ser uma história comprometida com a humanização do mundo, ela precisa
cumprir a virtude de chegar ao futuro com uma recordação mais firme e concisa o quanto
história com escala das notas musicais numa Clave de Sol, como as dos exemplos recordados
pelo escritor nas páginas da A Amazônia que eu vi, cuja sintonia alcandoramos agora:
47
Quando falamos em função lúdica, estamos pensando no efeito da recepção à proposta do romance de tese,
cuja idéia ou teoria é exemplificada pela ficção. Esse mesmo efeito pode ser surpreendido no diário, que, a
princípio, pensando na sua aproximação do gênero ficcional, ligar-se-ia ao subgênero romance de tese.
48
(1) Nota 1 do próprio autor: “Tomada do ensaio de Raúl Castagnino: Primavera, poesia e milícia (XXVIII)”.
219
12 de outubro. [...] Não sei se em regozijo à descoberta da América, ouvi
hoje, pela primeira vez, cantar o uirapuru. Foi pela manhã, bem perto do
acampamento. Surpreendeu-o o Benjamim, que me chamou a escutá-lo.
Trinos, gorjeios e regorjeios em floreados incríveis. Havia de ser um gênio
da floresta que assim soprava em flauta tão sutil. Mas eu, alhures, já descrevi
o canto do passarinho mágico, e não me posso repetir. Prefiro citar Spruce,
trasladando para aqui a pauta em que o botânico inglês pôde reter um dos
principais motivos das suas inúmeras fiorituras: [o autor transpõe a partitura
de Spruce].
Benjamim, que já o ouviu muitas vezes, guarda de outiva as suas
modulações e assim as reproduz: [o autor transpõe agora a partitura de
Benjamim].
[...], não são pequenas as diferenças entre os dois temas. Mas o uirapuru é
garganteador de tais recursos e gosta tanto de improvisar... Depois, entre
Spuce e Benjamim, medeiam largos oitenta anos e não é para admirar que de
lá para cá ele haja enriquecido os seus processos (CRULS, 1973, p. 44-45,
grifos do autor).
tal qual ele foi em sua aparência e em sua música. E nesse tempo, há uma infinidade de
leitura de Levy Bruhl a respeito de Jean Jamés, medita sobre uma escritura que se renovará
por um outro ato de leitura: a leitura do relato trasladado, e a verificação do objetivo e das
sensações imanentes dessa relação naturalmente intrínseca e fatal, entre o homem e o objeto:
Eu acho que nada é mais saudável para o espírito que alguns meses no
campo: para o espírito e para o caráter. Nessa meia-solidão, a gente quase se
cura de todas as pequenas preocupações do amor próprio, a gente não tem
mais ninguém com quem brigar; a gente sonha viver bem, a pensar o bem, a
agir bem por conta própria, sem querer fazer melhor que os outros, a gente
vive de uma maneira ao mesmo tempo mais pessoal e mais desinteressada. A
gente tem para si, para os sonhos, para as esperanças, para as ambições, toda
a amplitude do horizonte, e todos os píncaros do céu. Para mim, que tenho
grande prazer em viver com meus camaradas, tenho um prazer novo ao
recordá-los: os pequenos defeitos e as pequenas vontades inevitáveis que, na
vida em comum, por vezes nos incomoda e nos irrita, desvanecem-se à
distância em um tipo de ar puro e de lembrança embelezada... Eu só guardo
deles o que eles têm de melhor, as qualidades particulares de caráter e de
220
espírito, e me agrada em fazê-los conversar assim na minha memória, com
abandono e sinceridade... (BRUHL apud CRULS, 1973, p. 43).49
D’Annunzio, e afigurar-lhes uma insígnia de ou romance ou diário (supondo que ainda não
tivessem), estaríamos emboscados: literalmente, as passagens que lemos são marcadas pela
documento porta uma epígrafe literária. Analogamente, o efeito produzido (com o que
história prima pela prerrogativa do simplesmente contar o sabido e o visto sem qualquer
Por outro lado, o mesmo paradoxo não resiste à análise quando posto em relação com
havia estado lá, criou uma história fundada em três instâncias principais: a floresta, a
fantástica e de ficção científica mescla-se com uma Natureza imponente e real, reconstituída a
da Amazônia. Então, além de plasmar as figuras – quer figuras discursivas, quer figuras do
nível da figurativização – o artista dá vida a essas figuras que assumem, assim, uma função
influenciará o escritor que exerce o domínio da narrativa, mas é dominado por certos aspectos
49
Tradução nossa para a transposição do original francês de Levy Bruhl, por Gastão Cruls.
221
dela. Pensando nisso, a propósito das intenções deste nosso trabalho, cremos ser pertinente o
Nesse sentido, entendemos que a análise da narrativa foi sendo apurada a cada
juízo do texto lido. Conforme o tratamento que o professor Antônio Cândido nos dá sobre a
matéria, pode-se perceber que a análise da narrativa passa a ser mais uma análise da narração,
de Cruls.
nela que ciência e fantasia se encontram e migram ou não para a arte. De toda sorte, as três
222
áreas acima destacadas são campos históricos particulares a uma cultura determinada, de uma
combinação ou o plasma dessas figuras, no entanto, não seria efetuada sem o propósito de
indicado pela capacidade que algumas pessoas têm para ficarem valentes depois de alguns
um fazer literário.
“caamembeca” 51, o narrador autodiegético do romance, plasma experiências da vida real sua
obrigação de rigor frente à verdade, a personagem que conta sua própria história demonstra
correntes lingüísticas. Entre as inferências dessa demonstração, pensamos que a mais simples,
e também mais forte, aparece na indicação do peixe como alimento, no preparo peculiar da
mandioca para molho e no uso da caamembeca como auxiliar digestivo, uma vez que tem o
eu vi, tem-se a impressão de que suas páginas integram a história do romance. A passagem
50
Tucupi: molho de mandioca usado no tempero de peixe.
51
Caamembeca: vegetal da família das Palageáceas (usado como anti-ácido e desintoxicante).
223
cena, no entanto, não foi descrita. No diário, a descrição dos urros da onça e o apontamento de
dois homens, o Ricardo e o Vicente – que saíram à procura da fera numa canoa, em noite
ainda que clara, denotam uma versão muito próxima ao que, no romance, poderia ser
22 de dezembro. Ouvimos esta noite uma onça que parecia estar bem à
nossa frente, na margem direita. Os seus urros eram formidáveis e repetiam-
se com grande freqüência. Como a noite fosse muito clara, o Ricardo e
Vicente tomaram a canoa e saíram a procurá-la. Pouco depois ouvíamos dois
tiros, mas, ao que soube, foram dados a esmo e não devem ter atingido o
alvo. Apenas a fera se intimidou, buscando paragem mais remota, pois que
de novo se fez silêncio à nossa volta (CRULS, 1973, p. 144, grifos do autor).
arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando
O exagero na ficção faz com que o efeito da verdade chegue à consciência do leitor.
Contudo, assim como o documento não tem forças para exprimir no informado um princípio
de reação, também a ficção não embute no destinatário uma reação exagerada. Isso acontece
devido à mediação que o leitor naturalmente faz quando lê – seja documento, seja arte. Dois
Assim:
diz que
(é) justamente esta concepção da obra como organismo que permite, no seu
estudo, levar em conta e variar o jogo dos fatores que a condicionam e
motivam; pois quando é interpretado como elemento de estrutura, cada fator
se torna componente essencial do caso em foco, não podendo a sua
legitimidade ser contestada nem glorificada a priori (CÂNDIDO, 1967, p.
17).
224
Com efeito, olhando para as narrativas do romance e do diário, e levando em conta “o
descrição, indistintamente. Observa-se que o diário nos conta de uma passagem que acontece
“à noite” e focaliza a valentia de dois homens à procura de uma fera. Uma focalização até
irônica, pois que a noite estava clara, os homens adentraram poucos passos na mata e deram
tiros a esmo. Já o romance, conta de uma “certa manhã”, pela hora do almoço, e revela
a caamembeca de sobremesa.
diário estão, no jogo das probabilidades, com os melhores índices para aparecerem no
Amazônia misteriosa seja enriquecendo o texto literário com o detalhe histórico, seja
4.5.2 Coincidências:
O estar perdido na mata muitas vezes suscita a impressão de já haver passado por
certos lugares. Essa impressão, além de aumentar o medo e a incerteza até o ponto de impedir
leis das quais não temos domínio, posto que a composição de uma ou de outra será conteúdo
de situações que referem o sujeito dominado e até medrado diante de aparições e aparências
que, a certa altura, se confundem. Por isso, é um grande alívio quando em ambiente tão mais
hostil quanto mais desconhecido se consegue seguir em frente e avançar rumo ao que se tem
225
por saída, fuga dos perigos e dos demônios da Natureza que surge para o perdido sempre
como uma fantasmagoria disposta a tragá-lo. Uma possível descrição para esse episódio é nos
dada por Cruls no diário introdutório do romance A Amazônia misteriosa. No dia 24-XII-
191... n’A Amazônia misteriosa o narrador que participa da aventura nos conta:
Sob esse mesmo pretexto, a expedição chefiada pelo Marechal Rondon e da qual o
escritor ficcionista da Amazônia, Gastão Cruls, fazia parte, também avançou bem naquela
véspera de Natal. Segundo ele mesmo, virando a página do romance e nos encontrando com
as linhas perfiladas pelo diário, ficamos sabendo que, neste mesmo dia de véspera de Natal,
24 de dezembro (1928) n’A Amazônia que eu vi, nossos aventureiros da vida real estão em
águas do Cuminá. São flagrantes nesse entrecho, não somente as coincidências com relação
ao lugar – figurativizado pelo rio caudaloso e a imponência das florestas – mas também pela
recompensa do “poder-estar livre” de obrigações, a fim de festejar uma data que lhes dizia
circunstâncias natalinas não excede o óbvio, mas daí a imaginar praticamente o mesmo
226
Lendo as linhas próximas à narrativa deste dia, percebemos, na A Amazônia
eu vi:
No livro de ficção, o narrador arma encontros com outros grupos na floresta, forja
situações, porta-se como herói da expedição e por isso mesmo deve mantê-la sob seu controle.
Sob seu controle, significa dizer que o medo e a apreensão – atmosfera flagrante no
diário de viagem: “o rio está nos ossos, e são quase os mesmos os tropeços que se nos
deparam a cada momento” (CRULS, 1973, p. 142) – não devem instar de seu comportamento.
No entanto, uma expressão comum à mesma data do romance e do diário (a véspera de Natal)
chama-nos à atenção.
Ei-la:
n’A Amazônia que eu vi: “... devemos ter feito um enorme avanço...” (CRULS, 1973, p. 146).
52
Nossa popular “tapioca”: bolo de massa de mandioca. Hoje, dependendo da localidade, assume formas,
recheios e requintes diversos.
227
De modo algum o romance nos desvia da idéia de “viagem pelos caminhos do rio”. E
isso, coincidentemente, é o que o diário também nos descreve. A diferença é que no romance,
o narrador que testemunha narra os acontecimentos por um ponto de vista exterior, mas
sujeito ao plano das expectativas criado pelos níveis discursivos que suportam a história; ao
passo que o escrevente do diário descreve o que se passa apenas muito próximo dele.
narrador que conta a história pode contar com o gênio da criação, no diário o escritor não
silêncio reina, talvez, como meio de evitar os presságios – alimentados pelas situações de
climáticas e meteorológicas do tempo, que apareceriam com naturalidade no diário, pois são
histórica porque
(o) romance representa a máxima expressão artística de uma época [no nosso
caso, retratada em uma viagem], mostra as contradições [forma velada no
diário devido à natureza política da excursão] da sociedade sem tentar
soluções conciliatórias arbitrárias [no diário essa solução arbitrária é o
silêncio] – quando penetra na essência das relações burguesas e revela seu
caráter histórico [lembremos o quadro “A liberdade guiando o povo” de
Eugène de La Croix], em outras palavras, quando é [romance] realista
(LUKÁCS apud ANTUNES, 1998, p. 196).
E, na interpretação de Antunes,
Durand, assinaladas neste trabalho, não podemos desacreditar a valia dos dados sócio-
228
culturais referendados pelo romance. Entre os tais, destacamos uma passagem do Natal n’A
Amazônia misteriosa: “Japins do extremo norte, guaxes do sul e xexéus do nordeste é tudo
uma única e mesma coisa, e ambos teriam razão se não quisessem que fossem pássaros
Claro que a motivação para a conversa aqui relatada pelo nosso narrador-testemunha,
foi estimulada pelas doses que ele próprio (narrador) distribuía. Conquanto, é de igual modo
conhecido esse artifício como estímulo aos remeiros das canoas (índios ou não) para deixar
atrás braças e mais braças do rio. Isto, ao que sentimos, é mais real no romance que no diário.
Desde quando ainda no berço da civilização, o homem pára para pensar ou não pensar
retorna o bem-estar trazido não pelo apoio físico do corpo e sim pela sensação de descanso
que o homem, a partir do degredo, tem necessidade de experimentar. O mito bíblico descreve
um homem em comunhão com ele mesmo e a Natureza até determinado dia. Como não tinha
conhecimento o homem não avaliava nem a presença nem a não-presença das coisas que
satisfaziam a sua alma e o seu espírito. Conquistando a ciência do saber, o homem aprendeu
que quanto mais se sabe mais se há para saber. O conhecimento constitui-se, pois, rotina
necessária para a valorização do nosso tempo geralmente muito curto por mais extenso que
seja. Por causa disso, até entre os chamados bárbaros o lar tinha um estatuto que já ali o
Morris West, é um belo vestido textual dos muitos lares que existem ou já existiram no
mundo. Descreve cenas do cotidiano de grupos e sociedades anacrônicas e modernas que têm
229
condições estamentais de sustentação das famílias, entre as quais destaca-se o monoteísmo, o
dia de Natal é o marco histórico de um acontecimento que dividiu o mundo ocidental em dois
instituição do catolicismo no século V depois de Cristo cria o dia de Natal para símbolo da
instauração de um novo tempo. O tempo da família e do estado sob a “benção” do clero. Hoje,
afastados dos motivos iniciais, o lar é ainda motivo de valorização da idéia de lugar íntimo,
familiar; e o Natal, motivo de “guarida” e continuidade desse lar, cuja celebração a todo 25 de
um dia de Natal experimentado por homens isolados do mundo. O isolamento, além de fato na
diegese, revela-se um corredor para um pensar lá atrás, um viajar no tempo que faz o
narrador-personagem rememorar “os versos do poeta: Home! Sweet home!” (CRULS, 1958,
p. 9).
Deveras! Ele não apenas rememora esses versos, mas, aí, e nessa ocasião – envolta por
uma situacionalidade criada pelo se pensar “em plena selva amazônica” – o narrador-
personagem chega a compreender os versos que tantas vezes lera e ouvira. Será, quem sabe,
esse mosto de saudade e de lonjura, que o fará levantar-se para tomar uma dose de realidade,
isto é, fazer alguma coisa em vez de voltar no tempo. Assim é, que, entre definhar-se no
saudosismo de outros Natais e o carpe diem daquele seu dia de Natal, o narrador representado
prefere levantar-se, aproveitar a manhã, aproveitar a tarde – seja fazendo coisas, seja
prestando atenção a uma discussão entre o João cearense e o Galdino que disputavam a razão
Tal disputa, relatada no romance, desvela a quantas pode andar o nonsense a respeito
das dimensões espaciais, especialmente, quando esse espaço geográfico é um país de porte
230
fossem xexéus – como são conhecidos no Nordeste, e o outro queria que fossem japins –
como são conhecidos na Amazônia. Estes mesmos pássaros são conhecidos no Centro-Sul
brasileiro por guaxes, e será por isso, que o observador da discussão concluirá que “ambos
teriam razão se não quisessem que fossem pássaros diferentes” (CRULS, 1958, p. 10).
Aliás, supondo que tivéssemos de optar por dar razão a um ou outro, seguindo o
princípio da coerência quanto ao lugar, o Galdino ficaria com a razão. Conquanto, a lição que
fica dessa passagem pontua a necessidade de se conhecer o chão que se pisa e também o que
está ao redor: um redor só delimitado pelas fronteiras que, por particularidades históricas, são
traçadas não pelos equipamentos topográficos, mas pelo grau de consciência de um povo.
Já na aventura contada pelo diário, no dia “25 de dezembro” da A Amazônia que eu vi,
selva tropical brasileira – reaparece, nesse diário, sob a forma do Natal imaginado no
romance. Na experienciação real, aquele Natal de 1928 passou como um dia qualquer. No
entanto, devido às sanções de algumas valias ostentadas pela tradição, sanções estas, que,
ainda que mudas, muito tocam os sentimentos humanos há um quê de frustração no ar,
quando o escritor repete a pergunta que faz a si mesmo: “Como se poderá passar um dia de
Natal isolado do mundo, em plena selva amazônica?” (CRULS, 1973, p. 147). A resposta não
presépio de Natal. No Natal de A Amazônia misteriosa não faltaram as flores (apesar de serem
de algodoeiro bravo) nem alguma imagem para santificar aquele dia: o Pacatuba, catequisado,
231
apresentou a imagem sacrossanta de Nossa Senhora da Conceição. Tudo, enfim, como manda
no dia de Natal e de se embriagar não foi esquecida. É claro que não poderia faltar a
discussão, a briga – por conta do excesso da ingestão alcoólica e para fazer jus ao estigma do
Vimos então que o isolamento, o silêncio, o vazio das instâncias discursivas são
sempre preenchidos pelo romancista. Esse preenchimento está ausente no diário. Comporta-se
como uma lacuna, uma folha em branco. Na verdade, não só lacuna da narrativa, mas também
contêiner daquilo que, em documento, ou não se quer contar, ou não se concebe como
matéria de preenchimento não está de todo ausente do diário. Pelo menos, não do diário de
Cruls: sempre que o escritor se acha sem o que falar, reescreve A Amazônia misteriosa.
palavras da próxima citação, “repercute e atua” no próprio criador e leitor primeiro de sua
obra, oferecendo à literatura e à história motivos para a verificação do fato, para o sonho e
para a imaginação. Na passagem do dia de Natal d’A Amazônia que eu vi, lugar e dia em que
o escritor esteve, Cruls expressa a lembrança que tem sobre o dia de Natal alguns anos antes e
mas sobremaneira especial para o leitor da ficção que neste caso (em particular) é também o
53
Entenda-se por esse algo diferente a ceia de Natal.
232
autor. Vemos a saudade do lar no entrecho de A Amazônia que eu vi, ainda mais viva que na
expressão Home! Sweet home! do entrecho romanesco. Neste, fugiu-se ao gosto de sentir
lhes à noite. Nitidamente, a descrição se pauta em experiências de outros Natais. Natais esses
adversidades da vida. No nosso diário, frente ao prenúncio das dificuldades que os próximos
dias reservavam. De fato, no romance o artista tece uma rede de fruição, apegando-se a um
estilo próprio, às metáforas. Enfim, a imagens que lhe permitam sentir o ambiente. Enquanto
que no diário, as linhas parecem trêmulas e, por vezes, vazias, com uma certa tensão e
(naquelas circunstâncias dominadas pelo narrador que conta a história). Por sua vez, a
narrativa do diário nos dá conta de uma situação que domina o envolvido. Dominado, ele não
pode olhar à sua volta e sentir o ambiente: deixa-se levar pelo pensar “de coração nas mãos”
...
4.5.4 Experiência:
do mais, não há braço que agüente as manobras a que estão presos os remeiros, mercê dos
rebojos e correntezas – peculiares aos leitos entre “barrancos e talhadões” – sem ter onde
abicar. Entre outras providências, a experiência manda parar à enseada da praia e descansar.
Consorte54, não havia mesmo outro jeito, pois a igarité 55 já começava a encher de água. E isso,
ao lado de ser um perigo, foi também providencial: era véspera de Ano Novo.
Ademais, se na A Amazônia misteriosa eles estavam labutando com o rio, não lhes
será indiferente a experiência no diário de A Amazônia que eu vi. Troque-se, por sinal, só o
n’A Amazônia que eu vi. Fica, no entanto, o trocadilho de que, em um, fecha-se o ano em
labuta; e, no outro, inicia-se. Sobre isso, os oráculos poderiam dizer muitas coisas, e nós, se
pegássemos carona nelas, descobriríamos outras paragens. Para evitá-las, por agora, convém
nos atermos ao vínculo com a experiência. Mais uma vez ela dita: se a verruma está rachada é
bom que seja manuseada com carinho. Como se fossem uma progressão dos acontecimentos
da necessidade premente dos reparos e da prática do calafeto, são alguns ícones do motivo
experiência.
nada. Por mais desconexa que pareça, entendemos que coisa alguma pode não-ser reflexo do
não-visto ou do não-sentido. A ficção baseia-se na experiência e opta por centrar-se nela, ficar
aquém ou ir além.
Com efeito, o romance delineia-se por esses três pontos em segmento discursivo. Por
sua vez, o diário mantém-se fixo na experiência in continuum; ou seja, não se narra uma
história, narram-se acontecimentos. Assim temos que: acontecimentos são contidos pela
54
Palavra empregada com o sentido irônico de estar com sorte.
55
Canoinha.
234
história, logo, o romance, que narra uma história, é (arriscamos) um relato mais compacto do
fornecimento de matéria exata para a constatação ou aferição. Isso, entretanto, não significa
que essa matéria exata não esteja lá – embaralhada no engendramento das estruturas
narrativas:
Poderíamos até dizer, e sem medo de errar, que a providência calafetar (ilusória e
natureza da arte – em essência, atemporal. A propósito, Lukács, ao abordar uma visão estética
da natureza da arte,
4.5.5 As diferenças:
como forma de eufemização do real e da busca de nosso anti-destino, são absorvidas pelo
texto, histórico ou de ficção. São diferenças que, de acordo com as especificidades do gênero,
serão (re)interpretadas.
235
Afinal, “Que nos trará de bom o ano novo?” (CRULS, 1958, p. 14). A referência à
Primeira Grande Guerra Mundial, combinada com a lembrança dos versos não-rememorados
de Lord Byron, nos dão um importante indício da provável unidade que falta em “1-I-191...”
de A Amazônia misteriosa; pois, sabendo que a Guerra durou de 1914 a 1918, e levando em
número (9).
Em causa aí, está uma expressão que medeia as expressões destacadas acima: estamos
falando do conteúdo ideológico intrínseco (fomento de ideologias separatistas radicais 56), mas
imanente em “o sopro” da pergunta “Ainda perdurará pela Europa o sopro de loucura que
Para Lukács,
da história e da literatura, em qualquer que seja o tempo, se cumpre bem em nossa análise e,
Pensando nessa dialética capaz de intermediar a linha entre a ilusão e algo empenhado,
recordemos: No primeiro dia do ano de 1929, “iniciamos o ano em luta com um rio”. Dez
56
Essas ideologias constituíram o chamado nazifascismo durante o período de preparação e combates da 2ª
Guerra Mundial.
236
anos antes, no mesmo dia, (pelos nossos cálculos) “fizemos pouso numa ilhota”. Situando as
iterativo:
rio e nos adendos da ilha furtivam-se os casebres sobre toras. O rio faz o arresto das canoas e
homens, vez por outra, surpreendidos por precoces curumins a singrar as águas do rio como se
fossem peixes. A maresia despertada pelo comboio, as casquinhas de noz, os ingás, o barulho
dos pássaros, dos macacos, da água... Há vida na mata! E a sincronia dos movimentos lembra,
(a) história volta a ser uma questão [e hoje em dia ainda mais fortemente]
problemática, inevitavelmente vinculada ao conjunto de pressupostos
culturais e sociais contestados que também condicionam nossas noções sobre
a arte e a teoria atuais; nossas crenças [cremos em mitos?] em origens e
finais, unidade e totalização, lógica e razão, consciência e natureza humana,
progresso e destino, representação e verdade, sem falar nas noções de
causalidade e homogeneidade temporal, linearidade e continuidade
(HUTCHEON, 1991, p. 120).
Nesse ínterim, enquanto o narrador que conta a história d’A Amazônia misteriosa
como na cena acima descrita; na página 7 d’A Amazônia que eu vi Cruls nos dá a bela quadra
de Alberto Rangel:
E cílios de canarana.
237
da qual os versos musicados57 na voz de Silvino Santos (cineasta pioneiro das selvas
bem como o ritual de percussão Auê... Auê... Auê... Pa... Auê... Auê... Auê... Pa... Auê... Auê...
Auê... Pa... Auê... Auê... Auê... Pa...(CRULS, 1958, p. 30) muito comum nos encontros entre
índios e brancos, e descrito n’A Amazônia misteriosa como uma “melopéia” (CRULS, 1958,
p. 31). Vê-se que história e ficção se encontram e viram poesia, música e ritual. E mesmo
quando se espalham no terreno escorregadio das concepções e descrições; como por exemplo,
Amazônia que eu vi (CRULS, 1973, p. 24) – têm ainda um ponto comum: a mesma pedra que
espraia as águas quando atirada nelas. Mesmo porque, não há uma diferença gritante de
arbusto para árvore. Há, no mínimo, contatos genealógicos e etimológicos. Na súmula fica a
lição de não se divergir com as diferenças, mas de apreciá-las, experimentá-las numa práxis
interativa e fazer uma história na qual a literatura, mais que consolo e eufemização do real,
4.5.6 O Fabulário:
57
CD O cineasta da selva. São Paulo, 1997.
238
Nível discursivo da ciência e da fantasia e preâmbulo às nossas considerações finais, o
fabulário é a grande matriz da urdidura do texto, seja texto de narrativa fantástica, como é o
caso da A Amazônia misteriosa, seja texto de uma narrativa não estilística como se propõe,
segundo alguns, a narrativa de diário. No caso do diário de A Amazônia que eu vi, não se pode
dizer que seja uma narrativa absolutamente não estilística e isso devido a diversos motivos.
Entre eles vale a pena citar: o intercâmbio com as passagens d’A Amazônia misteriosa e a
correspondência com outros veios estilísticos, como algumas pistas de Os sertões de Euclides
único algarismo romano, da data de “1-I-191...” na A Amazônia misteriosa: “Que nos trará de
bom o ano novo?” (CRULS, 1958, p. 14), ele sai da diegese para dialogar com uma história e
uma literatura que lhe vêm à tona pelo teor da pergunta. Interessante que, nesse caso, história
Primeira Grande Guerra Mundial e os “belos versos de Byron, na sua Oração à Natureza”
(CRULS, 1958, p. 14). Ademais, não por acaso história e ficção estão sujeitas aos eventos da
Natureza e isto, aquele observador de paisagens tão gigantes, tão densas, podia sentir tão
perto naquele momento de reflexão. Apesar de ser essa reflexão conteúdo de um romance, o
intercâmbio do real diegético com uma realidade externa à realidade que se conta, parece
mesmo capaz de provocar aquela sensação de mistura das realidades (ficcional e histórica),
Seja como for, quem estava na guerra tinha medo de morrer ou de ficar louco. Por
outro lado, quem estava lá, na floresta, tinha, naturalmente, medo dos índios, dos selvagens –
239
Não à toa, portanto, alguns dias depois, os companheiros de aventura, pel’A Amazônia
misteriosa, partem. E aqui fica o último posto de troca, de encontro – entre a história e a
ficção. A continuidade da história, que bem poderia ser a do romance, é marcada pelo diário
de A Amazônia que eu vi. Nele, a vontade de ir para casa, o medo dos índios e do fabulário
indígena e, como se não bastasse, uma viagem de canoa em plena escuridão da noite
faziam pensar que a “todos estaria fadado ir conhecer o pajé do fundo [do rio], o Sacaca”
4.6 Epílogo
Hutcheon (1991, p. 126) escreve que conforme Paul Ricoeur (1984a, p. 162)
240
Los fundamentos que ay para assegurar la
Provincia de las Amazonas en este río, son
tantos y tan fuertes que seria faltar a la fée
humana el no darles crédito.
Não obstante, e já não se tratará de uma questão de fé, mas de acontecimento, Cruls
Cruls aprecia que, real ou fictícia, a existência remota da ginocracia58 das Amazonas,
que serviam de insígnia à mesma tribo e que têm motivado “quantas controvérsias”.
Interessante que essa (re)significação não vem sem história ou outras visitas literárias; basta
darmos uma certa atenção aos nomes próprios presentes nos parte-textos acima e veremos
58
O mítico e lendário Reino das Amazonas teria durado enquanto durou a mística Era das rãs.
241
cenário de encontro entre representações de força da civilização e representações de força da
Natureza.
amazonas desaparecem tragicamente. Com efeito, ficam as pedras-verdes – que lhes valiam
símbolo de poder e proteção sobrenaturais. Assim, tanto para a narrativa do romance quanto
para a narrativa do diário o campo é o mesmo: o ethos amazônico que mais uma vez virá por
O próprio testemunho do autor nos dá aqui conta de mais um ponto de contato entre a
história e a ficção. A crendice e a fé fazem tão parte da história quanto da ficção. Em alguns
casos, mais na história. Basta lembrarmos as grandes guerras. Em qual delas não se conta ou
Reportemos um exemplo clássico: o povo foi movido pelos ideais de liberdade, reagiu
a um estado de tirania dominado pelo clero e pela nobreza; enfim, irrompeu na forma de luta
burguesia venceu e passou a portar-se como o novo tirano. Será preciso nova tirania para
buscar os ideais que insuflaram a Revolução e foram enterrados sob os corpos de milhares de
camponeses que tombaram em favor de uma ilusão. Então esse mimetismo tirânico será
242
Com efeito, Bonaparte faz cumprir aos camponeses o fado da Revolução. Porém, o
tempo já era outro; e o retrato de A liberdade guiando o povo não comportava a figura de um
tirano. Os camponeses não queriam mais ser camponeses. Queriam agora ser burgueses.
exilado. Mas não a sua história: o mito e a lenda, o cavalo e o chapéu de Napoleão ou do
Em A Amazônia que eu vi, temos um diário que nos conta (ou re-conta as aventuras
d’A Amazônia misteriosa) sobre quatro meses de aventura pela selva amazônica brasileira.
Uma aventura de reconhecimento daquele território, que começa a partir da cidade de Óbidos-
viagem. Aliás, como a própria viagem, viajando. E se não tem um lugar de partida e chegada,
tem o mesmo veículo que o diário: o rio o mitoa lenda a história dos viajantes dos
Se n’A Amazônia misteriosa não há uma Óbidos que se estende como uma
fantasmagoria (humilde e pequenina na partida) – mas que agora (na chegada de volta)
“avulta aos meus olhos como um grande centro de civilização” (CRULS, 1973, p. 160), não
há, por sua hora e vez, na A Amazônia que eu vi, a confissão bastante possível na realidade:
Beije seu Doutor... Pode beijar! Não se agonie por minha causa... E
ajudando-me a manter o rosto da morta, com os olhos também amarados
pelo pranto, o Pacatuba concluiu: E seu Doutor pensava então que eu não
sabia? Sabia de tudo... Paixão de amor não se esconde... É como o mel de
pau lá do nosso agreste, mesmo metido no oco das árvores, ele está
cheirando de longe (CRULS, 1958, p. 170).
243
Assim, no diário avulta a visão. No romance, o sentimento. E ambos avultam na
descida do rio, em A Amazônia que eu vi (p. 137); e em rio abaixo n’ A Amazônia misteriosa
(p. 165). Retire-se o drama do romance, e teremos um diário de viagens ficcional muito
um romance. E quem pode duvidar que histórias de amor não aconteceram na expedição do
expiação da culpa – posto que o acontecimento denunciado no olhar não fora verbalmente
Rosina com a personagem Seu Doutor vinha sendo mantido no acaso, estava encarcerado na
ação de não-dizer daí a sensação de que nem tudo foi dito e de que havia tanto a se dizer.
Não se estranhe, então, as conseqüências dessa fatalidade, como o choro, o pranto e, às vezes,
Portanto, com Hutcheon, viramos a página para rediscutir a história, sabendo que
Parece-nos, mesmo, que os princípios da teoria histórica não estão muito distantes do
senso comum. Por sua vez, o senso comum é constantemente (re)modalizado pelo imaginário
de cada tempo histórico. Nesse sentido, os estudos que fizemos, segundo algumas teorias da
antropologia do imaginário, nos permitem colocar problemas sobre os quais, talvez, a tradição
literária não se debruça com muito interesse. Tanto no romance como no diário de Cruls,
244
(p)õe em evidência o processo esquemático da expressão e manifesta a
passagem da projeção imaginária à expressão estilística. A figura expressiva,
e especialmente a figura de retórica, é a redução a uma simples sintaxe desta
inspiração fantástica profunda, na qual o semantismo se despoja pouco a
pouco do conteúdo vivido que o anima, para se reduzir progressivamente a
um puro processo semiológico e, no limite, formal (DURAND, 2001, p.
420).
mundos que se encontram no papel e no real. A diferença é que, uma vez no papel, estes
mundos com tudo o que podem fazer, para o bem ou para o mal, preenchem uma estrutura,
por natureza, eufêmica já que nenhum acontecimento de papel pode nutrir sensações, pelo
menos, não à mesma proporção do aqui-agora do vivido, e cujos detalhes serão relativos à
vista do senso comum. Logo, temos nessa relatividade a busca por uma verdade entre o fato e
a versão pelo lado da história; e a composição de um certo equilíbrio entre o fato e a fantasia,
esquemática. Ao mesmo tempo, porém, flui como uma leitura poética do denso material
imaginativo que apresenta, sobretudo de sonhos e mitos. Esse material, n’A Amazônia
misteriosa e nA Amazônia que eu vi, revela-se um continente de motivos e temas ora para
transpostos pelos arquétipos de Durand, na medida em que estes lhes são anteriores e
eu vi, é o lugar de encontro entre a civilização e a Natureza, entre homens de etnias diferentes
um eclipse do dia e da noite, como forma de um fantástico que exerce sua supremacia
245
sobre a duração do tempo. Uma duração de eufemismo fantástico no romance, e de
aflora, preenche o espaço e mobiliza o ambiente pois que a fantasia é o sonho que dialoga
com o mito, com a lenda e os ancestrais, abrindo caminho para a transcendência e, pela arte e
homem de hoje, perduram lado a lado o mágico e o lógico”. Isto é, a ciência e a fantasia
marcas d’água da dualidade na arte de fazer: Literatura e História, por Gastão Luis Cruls.
Acreditamos, pois, que assim como o artista apura a arte de criar a cada criação,
também o historiador devia apurar o fato a cada história. Por este prisma, parece-nos que a
246
se considerarmos que a recorrência é marca comum às linhas de pensamento modernas – seja
Está escrito. Uma escrita que se repete, seja para criar, seja para registrar, corrigir ou
panorâmicas que se completam. Em suas narrativas, as cores60 são ícones de confirmação dos
ritos e, a ausência de som, o som do silêncio. As reentrâncias dos gêneros nos gêneros, o jogo
de cena entre vogais e consoantes, entre unidades sêmicas e fêmicas: Harmonia? Desarmonia?
Ambas fazem parte da arte de criar literatura. Constituem a inarmonia – um ritmo no ritmo –
intertexto que faz realidade e fantasia se comunicarem. Sua prosa é sempre construída sobre
um disfemismo poético no qual afloram vozes e visões do imaginário, mas também das ações
escrever e criar o efeito da extasia, cuja leitura nos permitiu o exercício deste trabalho. Na
verdade, tão somente um exercício de breve apreciação das temáticas história e ficção. Com
efeito, esperamos que a densa carga das figuras, signos e reproduções miméticas de algumas
247
Somos todos degredados fortuna da apparição!
E chega o porto, e ali as docas,
remamos rumo aos mistérios do último destino.
É o fim da peregrinação sobre as ondas do mar,
É um mergulhar das sombras na luz e nós sabemos:
todas as andanças serão rebocadas ao nada,
quando respirarmos o primeiro volume do novo ar.61
61
Versos nossos.
248
Capítulo 5
Do mito e da lenda ao reino do Fantástico em: A ilha das almas selvagens (Wells) e A
5.1 Apresentação
Mais que narrativa fantástica, A Amazônia misteriosa do escritor Gastão Luis Cruls
nos revela uma poética do imaginário virginal. Ao cotejar um de seus episódios: a passagem
Revelação – com A ilha das almas selvagens, versão lobatiana para a The island of doctor
Moreau de Wells, nos encontraremos no meio de uma cosmovisão às voltas com mitos,
gênero fantástico.
Pour um littérateur il y a de si
cruels moments quand il est Seul devant as
table, em face d’une matière qui n’est rien,
um rêve vague, une nuée dont il fant tirer
quelque chose.
Jérôme et Jean Tharaud
62
Assim são chamados os trabalhadores dos rios; relaciona-se semanticamente com remanso.
249
E nós? Existimos será?
5.2 O Fantástico com H.P. Lovecraft, Louis Vax, Jean Molino: lugar de criação dos
Surdindo à flor destas páginas e onerando-nos com sua presença, a teoria de Lovecraft,
farsa e o surreal da vida ou não-vida. Aliás, é entre: existir e como viver; e, não-existir e de
que forma se-não-viver, que está uma determinada estação: o equilíbrio fio de início e fim
por Lovecraft. Entrementes, este umvelt64 não é tudo para a iniciação do gênero fantástico, e
certamente, essa havia de ser a opinião de Louis Vax, que define o Fantástico a partir do
250
articula as unidades do espaço, criando intersignos capazes de (re) significar os sentidos
convencionais. A teia para crivo desse semantismo estranho ao real estende-se a ponto de
humana na Terra.
Uma tal porção de um sistema arbitrário que não se destina, mas que nos destina a
alguma coisa é talvez a grande noite da qual não conseguimos despertar ainda. Enfim, a
Toda uma série de seres que não podem aparecer durante o dia, esperam a
noite para manifestar-se e para agir; à noite, o mundo é abandonado a outras
forças, a outros habitantes e obedece a novas leis. É por isso que a própria
narrativa fantástica adquire todo seu sentido apenas na vigília, precisamente
no momento em que se sente a presença dos seres que são todos atores da
narrativa: a noite, domínio da ação fantástica, é também o quadro
privilegiado de sua narração (MOLINO, p. 38).
temas, se fantásticos, serão perpassados por ela em revista aos principais elementos
MITYLENE66 (criogênese dos mitos e das lendas), mantém-se viva e fértil na literatura,
251
A Lenda
O Mito
Mito e lenda ou lenda e mito são formas simples de veiculação dos ensinamentos
peregrinus).
das culturas, também binárias: uma apoiava-se no conteúdo lendário do decor (de
acompanhava o canto.
252
Vê-se logo que tais considerações velam dualidades que se opõem sistematicamente.
São elas resultado de muitas leituras e delas, para prumo desta análise, escrevinharemos (em
nossa tradução) os dizeres de Albin Lesky (1985)67, sobre os começos da literatura grega:
Logo, as epopéias homéricas são o canto do mito na glorificação dos gregos e o canto
da lenda na ruína comum, sendo que ao mito atribuía-se um herói ou heróis (homens
obedientes aos deuses eram premiados com o nascimento de heróis) e à lenda, os mortos
(homens sem deuses não tinham heróis) como focos da narrativa principais.
da existência vira uma anedota, uma novela, um romance... todas elas, células
proibidas o inimigo de nossas almas atrai os fiéis do Deus Altíssimo para a sua própria igreja:
o hades tabernaculus.
deleites antes proibidos, voltam-se de novo para a prática do ocultismo; isto é, praticam às
escondidas as antigas virtudes, fazendo irado o diabo que vai buscar junto ao trono do
67
Versão espanhola.
253
Benedictus Dominus Deus Noster, a explicação para essa, imagine só, heresia. A metáfora é
Que queres tu meu pobre diabo? As capas de algodão têm agora franjas de
seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a
eterna contradição humana. (MACHADO DE ASSIS, 1974, p. 374).
naturalmente irônica porque se trata de um Machado de Assis, que resultam as posições não
por acaso rescisórias de Platão e Aristóteles (ELIADE, 1963) em relação ao mito grego:
maravilhoso. Nesse sentido, para o filósofo grego, o mito original, se se pretende original,
nasce com o gênesis da harmonia: Homem, Natureza, Deus. Já Platão anuncia o mito como
tragédia grega, entendida pelo autor de A República como sina da rebeldia do homem. Com
efeito, o mito platônico caracteriza-se por uma narrativa da resposta (em forma de vingança)
lenda ou legenda. Todavia, e de acordo com Mircea Eliade (1991, p. 126), “a síndrome
Esmiuçando o texto, notemos que esse chegar ao fim é o retorno ao início. Convém-nos então
254
Para o mito de Platão, originário com a queda 68, compomos a lenda judaico-persa: “As
criaturas são a causa do mal”. No percurso dessa narrativa, uma crescente sombra negra vai
morte de Abel e da maldição sobre Caim, da materialização dos anjos degenerados em forma
Por sua vez, para o mito de Aristóteles compomos a lenda, também judaico-persa, assinalada
em Gênesis:
rotina no Paraíso: as crianças Adamah (Adão) e Evah (Eva) brincavam com os animais do
também por provas incontestáveis, que os animais falam não a língua dos homens, mas a
deles.
Ademais, ao tempo em que a narrativa bíblica tem um teor poético, tem no cerne uma
reportagem histórica. Aliás, reportagem histórica é o que Platão faz ao significar os mitos
gregos. Interessante que, para cada símbolo mítico, haja conteúdos da lenda ou legenda
judaico-persas69.
descobrimos que ambos são derivados do genérico grego phantasia, termo que já cunha seu
68
Ver Gênesis caps. 1-7, “Bíblia Sagrada: nova edição Papal”. Ver também “Dicionário de Mitos Literários” de
Pierre Brunel.
69
Ver novamente MITYLENE à p. 666 do Dictionary of the Bible de Grant & Rowley.
255
apanágio no aramaico esthasie70 [hebraico: mizpeh71]. Notoriamente, as narrativas de mito e
lenda caminham por vias paralelas e sentidos opostos, até instituírem um novo signum
comuni: o fado.
pintura do teto da Capela Sistina. Considerada pelo Papa Júlio II, não uma obra de arte, mas
uma maravilha, Michel’Ângelo pinta o dedo indicador do homem apontando sublime para
Deus: o mito, pois, vai para o celeste Jardim; a lenda vem para as selvas brutas da Natureza,
palco em que o homem contracena com seus demônios como, por exemplo, a personagem
O Senhor lhe pedirá contas, como mas vai pedir a mim, e a ti, bispo,
quando chegar a tua vez. Mas eu perguntarei ao juízo de Deus por que
permite Ele esta mortandade dos homens que vem desde o princípio do
mundo, Estes ódios de crenças, estas vinganças de povos, esta interminável
dor do mundo, A quem não basta a morte natural (SARAMAGO, 1993, p.
146).
Antes, porém...
Tem um mistério o ar. E há uma charada na língua. Diante dos olhos, sempre um
enigma. Em algum lugar, pesadelo e pavor se encontram. Tudo exala um cheiro estranho e
que espreita: o susto seguido de morte que floresce na repugnância e no asco produzidos pela
70
Sem referência.
71
Lugar do êxtase. Ver p. 667 do Dictionary of the Bible de Grant & Rowley. Ver também “Dicionário de Mitos
Literários” de Pierre Brunel.
256
Essa passagem é a descrição de um cenário, ou de uma atmosfera, se preferirmos. Esse
cenário, essa atmosfera recorrente, é o casulo da grande maioria das narrativas fantásticas:
respectivamente.
Bem, a análise que apresentaremos não será exceção a essa quase regra. O encontro
entre os textos de Cruls e de Wells não nos furtará da sedução do medo, nem o medo do
entrarmos no pesadelo da A ilha das almas selvagens (1896)72 ou d’A Amazônia misteriosa
(1925)73. Vodu!
Folheando a página, cremos ser fundamental lembrar uma varredura da mais valia
cultural após a crucifixão de Cristo. Até a instituição da Era Messiânica o homem aceitava
seu destino como fado indissolúvel. A morte era motivo de regozijo e a vida entendida como
peregrinação no exílio. O homem era um desterrado por um mea culpa (sempre obscuro) de
seus ancestrais. Ele devia aceitar, incondicionalmente, segundo o Livro da Lei e o Decálogo –
o Deuteronômio74 – sua condição de flagelado como a via crucis necessária à sua repatriação
(a [re] conquista do Paraíso). Vivia, assim, sob a esfinge do mito; sendo a esfinge, ela própria,
a lenda piramidal de incípios da civilização egípcia e, antes dela, recuando um pouco para
perto de seis mil anos a.C., o ícone oracular o ocaso fatídico das antigas civilizações
72
1896: data da primeira edição de The island of doctor Moreau.
73
1925: data da primeira edição de A Amazônia misteriosa.
74
Ver “Bíblia Sagrada: nova edição Papal”.
257
mesopotâmicas75 como as dos Medos, Persas, Babilônicos; e também dos povos semitas 76,
personagens do Corão, todo o mundo helênico da simbologia mítica e todo o mundo judaico-
fantasmas, de zumbis e experiências. Talvez, aqui tenhamos uma diferença interessante entre
dizer que, sobretudo na Idade Média, e especialmente com o in curso, primeiro das Cruzadas
e depois da Contra Reforma, ocorridos na alta e baixa “Idade das trevas”, a narrativa
fantástica alimentou-se dessa tensão; enquanto que, antes de Cristo, esse gênero (que ainda
da viúva negra (aracnofobia), amalgamam-se aos panegíricos dos demônios da noite, aos
rolos sobre estranhas criaturas do Mar Morto e às inscrições rupestres de rituais macabros –
eventos estes presentes na noturnidade dos homens das cavernas. Deveras, a alquimia da
passagem “Revelação” (na A Amazônia misteriosa) com as passagens “No escaler do Lady
homem solitário” (na A ilha das almas selvagens), apresenta um quadro da escuridão interna
75
De Mesopotâmia: Terra entre rios.
76
Semitas: Povos das areias.
77
Porque atualmente são as duas ideologias religiosas dominantes e em conflito.
258
ao homem que, animada pelo medo, povoa-lhe o imaginário de sombras e breu, e o faz
moriah78 em projeção com myrtle79 ou mysia [do persa mythras: mystérion para os gregos] e
myrtus no hebraico, palavra quase homógrafa muito parecida com o semema grego mythos.
Por outro lado, o tempo não existe: o narrador representado d’ A Amazônia misteriosa ou o
narrador autodiegético d’ A ilha das almas selvagens estão perdidos na floresta. Neste lugar, a
Natureza é ameaçadora, a atmosfera tensa, o ambiente denso – numa palavra – uma existência
carregada. Estamos, no mundo do Fantástico. Somos levados por este mundo (pela narrativa)
já desde a leitura dos títulos A Amazônia misteriosa e A ilha das almas selvagens.
Uma vez nas páginas destes romances, somos teleguiados por vultos entrecortados na
mata e orientados por uivos lancinantes que parecem mesmo gelar a alma. Como se não
(RODRIGUES, 1988) titubeamos sempre e lutamos sofregamente para não cair na cuia de
ayquec80.
...
78
Visão. Ver Dicionário Bíblico. In: “Bíblia de Estudo Pentecostal”.
79
Ver página 682 do Dictionary of the Bible de Grant & Rowley.
80
Espécie de poção alquímica, um alucinógeno para sonhar no sono.
259
5.6.4 Nossa narrativa fantástica:
Conforme Todorov (1970, p. 29), “c’ est l´hésitation éprouvée par un être qui ne
incredulidade, consiste a hesitação diante das visões (moriah) na narrativa. Numa primeira
Macaco? Preguiça? E atentei para o ser estranho que se rojava no chão com
movimentos muito lerdos e hesitantes. Não! Era uma criança? Aquelas
formas não enganavam e eram bem humanas. Mas... então, seria um
monstro? (CRULS, 1958, p. 104).
início e fim, pelas reticências e exclamação entremeadas, nos fala de um ritmo, de uma
cadência que parece natural ao fantástico. Repare-se que esse compasso é marcado
texto denuncia a atmosfera fantástica. No entrecho que segue veremos que o narrador sai da
diegese e conta:
81
Ver “Bíblia Sagrada: nova edição Papal”. Notas p. 35; e nota 21 p. 976.
82
Ver nota 21, p. 976, cf. título da nota acima [de Jesus como Salvador de todos].
260
Perplexo, a fazer-me mil perguntas... os meus olhos não se despregavam
mais daquele quadro, visão horrífica e atraente, que a um só tempo
despertava sentimentos de piedade, revolta e nojo. E a criancinha continuava
a mover-se, espapaçada de ventre, o corpo languinhento e mole, a cabeça
bamboante fuçando um leito de palha (CRULS, 1958, p. 104).
O sair da diegese não foi acidental. Fazendo-se de conta de que se está fora da história,
destinatário do texto: ou se percebe o herói da aventura como aquele que está literalmente
emboscado, e que desatinado, está absorto em seu visionarismo, ou se percebe este herói à
maneira de um superador daquele acontecimento, muito embora ele ainda não tenha se
delineado completamente. Uma ou outra dessas posições (de qualquer forma estamos diante
“perplexo” e, como que sobre o efeito de um alucinógeno, tudo passasse à sua frente
acontecimentos tudo não houvesse “bamboante” em sua cabeça; quer cabeça de alguém que
conta a história depois da história (e aí já a história diluída pelo tempo), quer cabeça de um
que decorre o contado). Por qualquer que seja o motivo da dispersão, pensamos que um balde
de água fria não foi necessário para que o narrador representado depressa voltasse à narrativa:
261
Gostamos de olhar bem de perto tudo o que nos chama à atenção. Em geral
apreciamos a liberdade do ser desabrido e do sonhar acordado. Por causa disso, precisamos
avaliar afinal se o que nos tirou de inebriante enleio da vida merece nossa apreciação. Então,
palavras “a flacidez” e “certo empastamento” confirmam para o sujeito lúcido que não há
exagero: Há sim uma criatura languinhenta e mole e bamboante, como sugere o entrecho
anterior ao último lido. A narração busca claramente o efeito da intensidade. Esta, não é
se pensa que o mistério foi desvendado... “Mas teria nascido assim? E por que o prendiam
numa jaula, como um bicho?” A impressão que nos dá é que o irreal é apenas o inimaginável.
tradução de Monteiro Lobato. O título original do texto que estamos comentando ao lado do
texto de Cruls é The island of doctor Moreau (1896). Entretanto, a versão de Lobato está
intitulada A ilha das almas selvagens83 (?). De acordo com o levantamento que fizemos, é a
única, no Brasil, que traz uma versão diferente de outras traduções. Estas deram preferência
pela tradução direta do título original, traduzindo-o por A ilha do doutor Moreau.
estatuto literário primeiro que Wells empreende ao título, principalmente com o nome
Moreau, por certo associado ao tema da morte e da reanimação: O Doutor Morte como Deus,
o que institui uma paródia invertida do texto bíblico quando situa a criação e, ao mesmo
tempo, corporifica sobremodo grotesco (como nas lendas africanas dos zumbis) a promessa da
ressurreição. Apesar dessa aversão, a opção que fizemos nos fala de uma grande metáfora: a
83
Embora o livro não traga este dado, acreditamos que sua tradução se reporte à fase de 1920 da literatura
brasileira, que ficou conhecida como fase Monteiro Lobato. O exemplar que utilizamos data de 1962, sendo este
o volume nº 6 da Coleção Sagarana.
262
vida no seio da morte. Essa vida tenebrosa é vista como que vida de almas selvagens em um
mundo também selvagem, já que desconhecido: o mundo da própria morte. Por ter sido
contemporâneo da obra de Wells, e pela criação e experiência que tinha das literaturas
fantásticas, das lendas e dos contos de fada, acreditamos que Monteiro traduziu melhor o
Em sua A ilha das almas selvagens, Lobato nos faz mergulhar no evento que nos
ameaça desde o nascimento: a morte. Mergulhados nela, vamos viver um mundo de sensações
estranhas sem muito do bang-bang americano observado em outras traduções, que a nosso ver
beiram o trágico-cômico, quando não o ridículo para uma aventura nos trópicos. O contato
com seres e habitantes esquisitos, o ronco do mar e o silvo do vento convergem para uma
apuração menos naturalista de um estilo que tende para o surreal e nos oferece ganhos
inestimáveis: a versão Lobatiana prima pelo suspense e isto é o que mais nos interessa para
Oh, mil anos que eu viva e nunca me esquecerei daquelas impressões! Corri
até a fimbria da água e por ela segui, ouvindo de vez em quando o chape-
chape do vulto a me acompanhar. A luz salvadora estava ainda muito longe.
Tudo mais, negrores. O chape-chape ia-se aproximando. Eu já respirava com
esforço, porque não me restabelecera de todo e não estava afeito a exercícios
violentos. Percebi que a coisa me alcançaria muito antes que eu atingisse a
casa de pedra (WELLS, 1962, p. 50).
A narrativa aparece no texto sem a introdução bastante comum de quando dei por mim
já estava correndo (em uma disparada sem freios pela mata). A Ausência deste marcador
textual torna mais pujante a sensação de “respirar com esforço”. O efeito é o de mergulhar o
263
autodiegético) aciona um mecanismo de autodefesa. Ele percebera no lapso de milésimos de
segundos que estava lidando com algo – “a coisa” – que não conseguiria enfrentar. Entendeu
que se fosse apanhado não teria escapatória: certamente morreria. Aquém do mais, a menor
idéia de ver-se frente a frente com aquela criatura horrível era assombrosa. Infelizmente para
ele, ao racionalizar tudo isso que até determinado ponto da corrida era reação desencadeada
por instinto, surpreende-se tomado pelo medo: suas forças parecem minguar e seu ser racional
vê-se incapaz de reagir ao que julga inevitável: não chegaria à “casa de pedra” (refúgio muito
Neste ponto de nossa análise, instaura-se um plasma entre a passagem que estamos
misteriosa):
Importante dizer que nas duas histórias o protagonista busca um refúgio, e logo um
refúgio de pedra. O movimento da empresa é que é diferente: um, quando vê, já está correndo
na direção da casa de pedra; o outro persuadiu-se (haja sangue frio) a quedar, cair acantado na
mata feito pedra. Eliminada a possibilidade da denúncia (do “talvez denunciar-se”) de sua
metonímia do hiperônimo84 “pedra”: ele não seria a pedra, mas o continente de estereótipos
atribuídos ao “fazer-se de pedra”. Entre os quais, o de respirar sem mover o diafragma, pois,
mesmo tão leve movimento, seria já suficiente para provocar a denúncia não desejada através
84
Hiperônimo: na Lingüística, designa aos chamados nomes genéricos, aqueles que geram outros nomes.
264
dos ruídos de puxar e soltar o ar dos pulmões e do farfalhar das folhas – posto que estava na
“galhaça”. Por um instante, porém, parece-nos que a imagem refratada pelo quadro narrativo
de que estamos a falar pode ser, justamente, a imagem imediata e anterior ao acontecimento
do “lançar-se em uma corrida louca pela mata” (na passagem de “A coisa na floresta”). Isso,
“Por fim”, pode servir de indicador para a modalização tanto da atitude do narrador
que era a mesma, os textos sugerem tomadas de atitudes díspares para um fim comum: o de
estar protegido pela “casa de pedra”. Em Wells, o homem busca por ela, convencido de que se
lá chegar estará fora de perigo. Em Cruls, o homem busca estar envolvido pela atmosfera da
casa de pedra, pois seu primeiro alvitre foi o de “empedrar-se”. Note-se que este mesmo
raciocínio pode ter passado pela cabeça do homem de “A coisa na floresta”. Todavia, ele não
conta com a frieza da qual dispõe a personagem de “Revelação”, logo, temeroso de não
conseguir ficar tão quieto como uma pedra e, com efeito, não conseguir esconder sua
presença, quando deu por si, “já respirava com esforço” (Wells, 50) de tanto que correu.
É possível olhar para este quadro de empedramento do narrador de Cruls pelo ponto de
265
começara a gritar uma, duas, três vezes: “Hans! Hans! Hans!” (CRULS, p.
105, grifos do autor).
Pois sim! Isto é coisa de pedra bem animada. Assim, o sujeito suprime-se o máximo
possível em direção aos valores atribuídos ao estar-se como pedra. Não se transforma,
contudo, na pedra conforme conteúdo semântico de penedo: rocha, imóvel por causa disso,
menos imaginária. De toda sorte, tão forte é esta imagem do “buscar refúgio na casa de
floresta” (Wells), parece ainda não ter se desvencilhado dela. A prova é o assinte à página 134
sobrenatural ou a prova de que tal fenômeno não existe (o protagonista de “Revelação”, talvez
porque no seu caso a coisa que lhe metia medo era o alemão e este só veio em sua direção até
certo ponto, não corre). Obviamente, não se admitirá para não-medo o sentido de sem-medo:
266
Em ambos os textos, de Cruls e Wells, o espaço é duplo: ou será a floresta e a casa de
pedra (Wells), ou será a floresta e a aldeia (Cruls). A atmosfera fúnebre vai se desenhando de
“No escaler de Lady Vain” (Wells, p. 10) lemos que naqueles mares, por oito dias derivaram
Teria, por esta ocasião, Mr. Prendick perdido a anima? Conforme Vax, escrevendo
Com efeito, a metamorfose é uma das alegorias que simbolizam (re-significam) a fera
que dorme em cada um de nós. Daí ela causar, ao mesmo tempo, medo e atração.
Encimesmado, o homem do entrecho lido se surpreende rindo-se de sua própria desgraça. Não
operador “ao sabor das ondas” oblitera uma ponta de sarcasmo quase irônico, ou finamente
irônico, para derrogar a metáfora do sortilégio, do se estar a bel prazer das ondas em mar
aberto. Claro que isso só pode ter sabor de sal, cuja salubridade tem, nas águas marítimas,
267
demônios do(s) horror(es), que não serão apenas “horrores da sede” no epílogo de Prendick
(Wells, 134).
N’A ilha das almas selvagens e n’A Amazônia misteriosa, a metamorfose é o grande
(o)uvi longe um gemido. Havia de ser do puma e tomei o rumo oposto. Uma
volta do riacho barrou-me o caminho. Saltei-o e entrei a caminhar pela
margem oposta.
Chamou-me a atenção um fungo vermelho, corrugado e foliáceo qual um
líquen, mas deliqüescente e gelatinoso ao toque (WELLS, 1962, p. 46),
que estranhamente mexia-se na folhagem. Cresce a impressão de estar olhando para um feto
em sua primeira semana e já fora da bolha uterina. É possível imaginar e também desconfiar
que este mesmo fungo virá a ser aquela criatura que eu ou você (pois o narrador personagem
pode ser qualquer um de nós) encontraríamos algum dia numa floresta. Que tal? :
[...] Movi-me um pouco mais à frente para o ver melhor e ao fazer isso
desloquei uma pedra que de lá rolou dentro da água. A criatura ergueu a
cabeça e seus olhos cruzaram com os meus. [...] olhou-me atônito. As pernas
teriam metade do tronco (WELLS, 1962, p. 45).
ocorrências do real. Renegar os monstros é o mesmo que negar um quê da nossa essência,
uma vez que monstros existem porque nós os criamos. Nesse extenso e turvo mundo de
laboratório, a realidade não é apenas o agora, mas todo um complexo de experiências que
268
reportam gerações. O contato com os ancestrais e, conseqüentemente, com o que eles
pluralidade de caracteres divergentes, notórios no cotidiano das relações humanas, são índices
Envolta nas quimeras que a perturbam, a personagem rememora as coisas de que havia
ouvido falar ou lido. Parece nutrir um certo desejo pelo monstro quanto à curiosidade de
espremidura, de aperto dos olhos em favor de uma claridade impossível no reino fantástico. A
sempre diante do inesperado, para o narrador que se representa o sem saída da narrativa é
também a porta fechada, um desestímulo à reação, a tramela das pernas e da razão daí
85
Diagonia: Termo aventado para designar as tribulações por que passam as pessoas sem, em geral, compreender
que, baseado no princípio da evolução, somos um conjunto que porta DNAs antecessores, porém, de posse da
faculdade de livre arbítrio, e apesar do meio, optamos por quem seremos.
269
5.6.11Criaturas do medo: a dor, o mal e os monstros:
Alguma dúvida? Uma lembrança leva à outra e a tentação aqui nos traz de novo a
ironia de Machado de Assis, grafada às primeiras páginas desta análise e que nos diz da eterna
contradição humana. Somos sempre tentados pelo proibido. Freqüentemente vemos como
desafio o desvendar o mistério. É o grito da vontade de ser herói, de ser heroína... de sermos
como Deus! Mas para isso, será de havermos com vilões, perigos e batalhas antológicas com
monstros. Aliás, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo, assistimo-la; romanceada
Imperador Asteca. No entanto, só a “reminiscência” pode mesmo acudir por “capricho”, ritual
tão macabro. Além do que, a figura de Ataualpa no último entrecho já comentado, relaciona-
se com Montezuma numa nítida afinidade: ambos revelam uma empatia que corta dimensões
representado que os tem em sonho e em reminiscência. Nada melhor para uma orgia
transtextual! Com efeito, mais uma vez com Vax (1972) eis a divisão do ser em vítima e
uma situação mais interessante: ele não seria o monstro, e sim a alegoria do monstro. O
se aproximar demais. Monstro, mesmo, seria ele próprio. E será essa caricatura de gente – o
monstro travestido em trajes humanos – que “dominará” os desejos do ator em cena, sempre
movido e motivado pela “tentação tão grande” que “era”. Na real, o que faz do alemão um
270
monstro são suas (mórbidas) realizações de experimentos laboratoriais. E conhecê-las no
contexto do fantástico requer de nós estar em zona só atingível com grande risco, como na
Atraído por ruídos tenebrosos que cortavam o silêncio, andava de um ponto a outro.
Com efeito, é a recusa ao tédio que mais nos aproxima do mal-estar. É que, para fugir ao que
chamamos de tédio, distraímo-nos; e neste ínterim, somos bestiais: quando nos damos conta,
está como uma pessoa em estado de lassitude, que provavelmente não podia se aperceber das
linhas de relevo, da geografia do lugar – uma razão possível para explicar a impressão de que
estava a ouvir “um resumo de todas as dores do mundo”. Não obstante, estamos olhando para
uma narrativa fantástica e precisamos nos ater ao ambiente fantástico. Portanto, as expressões
“o portão principal estava encadeado” e “um resumo de todas as dores do mundo” arquitetam
a engenharia (entre outras leituras) de um cemitério fechado para a festa das almas-penadas.
são inexprimíveis quando se tem a carne latejada pelo espinho da rejeição aos enxertos 86. E
deve haver nisso tudo muito gosto de sangue. Sobretudo se atentarmos para o fato de que
naquele tempo (o tempo de referência para o real diegético) o transplante de órgãos era prática
pouco desenvolvida na medicina e vista pela sociedade com muita resistência. Havia vez em
sempre um naco de antropofagia. Na melhor das hipóteses, o ser remendado pareceria mesmo
um ser remendado. E nada era mais nojento que pensar nas costuras arrebentando e as
86
O Doutor Moreau fabricava monstros, enxertando órgãos os de mais diversa espécie, como de animais em
homens e destes em animais.
271
vísceras vazando de um ser aniquilado. Aniquilamento que não se restringe à forma de vida,
Aquela mesma dor sem gritos não me teria feito mal. Mas tinha voz – e a
despeito do brilho do sol, do esplendor da vegetação tropical e das brisas
frescas que me vinham do oceano, o mundo me aparecia numa confusão
terrível, como que atravessado de manchas negras e rubras, e povoado de
fantasmas (WELLS, 1962, p. 43).
Uma vez mais o universo da aparição permuta com o desejo de acariar homem e
animal. Seja pelo designar do vocábulo “voz” para os urros do puma, seja pelo
seja pela insensibilidade à dor se não há grito; o contrato literário (texto-leitor) nos coloca
rotos diante do que pensamos que somos e o que fazemos. Nesse incurso, há ainda que lidar
5.7 Epílogo
Em síntese, e ainda explorando os textos, notamos que três relações binárias de Jean
monstro e a metamorfose; a noite e o sonho. Estes temas, recorrentes nas lendas orais e no
Fantástico então concebido como gênero, formam-se da substância de que Molino chamou de
Vigília. Não sem causa, portanto, a poção de ayquec em Cruls e o resgate em meio à tormenta
“Revelação”:
272
o acaso e, pouco depois, eu já era todo olhos para o que começava a
observar, possuído de verdadeiro espanto (CRULS, 1958, p. 103).
“A cara estranha”:
E isso não era nenhum pesadelo. Temos um quadro de Cruls e Wells: Frente a frente, a
canoeiro de má catadura” (Wells) escreveu-se uma advertência que, de certa forma, não
Lamento muito ter de ser misterioso Mr. Prendick, mas não se esqueça de
que não foi convidado. Nosso pequeno estabelecimento encerra um segredo,
ou coisa que o valha, é uma espécie de quarto secreto de Barba Azul. Nada
mortal para um homem como o senhor (WELLS, 1962, p. 36).
O resgate da fábula do “Barba Azul” de Perrault tem a ver com duas declarações do
protagonista quando sugere que há um “mistério” numa “espécie de quarto secreto de Barba
será incontido: o de entrar no quarto do “Barba Azul”. A chave do quarto é o estímulo que
273
fragmento: “Nada mortal para um homem como o senhor”. Bem, se foi ou não mortal, que o
Ewers87:
Boa paga para quem atreveu-se a entrar no quarto de “Barba Azul”. O mais certo é que
eles, persona de A ilha das almas selvagens e persona de A Amazônia misteriosa, ainda
continuem lá. Um, em sua tormenta; outro, em suas cismas – e ambos nesse nicho
aprisionados.
87
Em Cruls, 1958, p. 304: dedicado à memória de Tôrres Viana, inesquecível amigo.
274
De toda sorte, optamos, no exercício deste trabalho, por um Fantástico transcendental
cujas linhas dublam as faces do tempo e produzem na atmosfera do (su) posto real o
desolamento do ser. Pressionado por um certo trobismo88 craniano, o ser desolado tende para
o reverso da razão comum. Envolvido, por novas premissas à busca do continuar existindo,
guia-se pelo instinto da coisa que o habita. A conferir, é que se pensar no tudo; e em todos:
experiências...) são orientados por leis fantásticas (lisuras). Como? Simples! : o estar-fazer da
realidade nenhuma.
tramam os semas da natureza dos sentidos e convertem a morte da vida racional na morte da
própria divindade. Isso é o que vimos chamar de entorse do passional, na medida em que a
relação entre o ser e a coisa: conhecidos um do outro, deflagram uma batalha pelo reino da
das almas, a realidade da(s) matéria(s), e (re) significamos, a cada leitura, o imaginário da
88
Termo derivado de trobar [trovar], para designar as vozes fechadas que fomentam atitudes repentinas,
desconexas, intempestivas... .
89
Grantema: uma aglutinação para grande tema.
275
Últimas palavras
O diálogo com criador, a criação e a crítica crulsianos chega, nesse momento, numa
pequena pausa. Uma pausa na qual queremos pousar nossas reflexões e recordar a intensidade
da arte de Gastão Cruls. Em nossas recordações, pois, vimos um artista que ignorou os
âmbito do cânone literário brasileiro. Cruls alçou velas à liberdade. Sabia que o exaspero das
tendem a ser amainadas. Com a paciência e a sobriedade do crítico que nele vivia, G. Cruls
aguardou em silêncio que o calor das primeiras manifestações modernistas fluísse para
veredas de um caminho mais brasileiro, menos estrangeiro; mais coerente, portanto, com os
Com toda certeza, foi muito difícil a um autor, que sabia estar na liberdade do artista a
fazer literário, ou com o fazer artístico como um todo, considerando que as artes em geral no
Brasil passaram a dispor-se mais para o que realmente é e sempre foi importante: o
de Janeiro, nos apresenta um brasileiro genuíno que sonhou e sofreu à espera de um Brasil
que, em vez de lamentar suas diferenças, as visse somadas. Em Gastão Cruls, pois, realizou-se
Amazônia, bem como dos arranha-céus da cidade e da personalidade humana. Lendo sua
276
Não temos dúvida: por escrever uma literatura contemporânea sempre, Gastão Cruls
foi rabiscado por aqueles que o queriam conformado na concha fechada de uma tradição que
chegava para substituir a tradição clássica. Tradição por tradição, Cruls preferiu a sua: a de ser
fiel e honesto ao artista livre que morava no seu peito, e que vive, eterno, na obra que criou.
cidade da garota de Ipanema Cruls foi, o tempo todo, um anfitrião do pitoresco local
brasileiro. Foi o jardineiro do Alto da Boa Vista e a flor das Laranjeiras, lugares em que
morou por mais tempo. Apontado pela crítica como um dos reveladores da realidade
brasileira, vale lembrar que, ainda hoje, são poucos os escritores das nossas letras que
souberam dar tanta vida e realidade às suas criações. Não por acaso, pois, Gastão Cruls é
Couto, como podemos ver no texto “Miguel Couto” à antologia dos textos de Cruls
publicados no “Boletim de Ariel”, no “Volume 2”. Aí, Cruls nos conta como fez saber ao
amigo e mestre sua decisão de enveredar-se pela literatura, depois de muito pesar os prós e os
contras e tomar conhecimento de que não poderia esperar o mesmo compromisso de retorno,
em razão, podemos dizer, de seu espírito incapsulável e de serem as suas letras uma roseira
sem redoma.
a dualidade da sua natureza ao mesmo tempo científica e fantástica. A propósito, Gastão Cruls
potencialmente dual e que acena hospitaleira e terna ao encontro das raças e à troca de idéias,
tão necessários à realização social ou do “sábio comunismo”, expressão usada por Cruls na
277
À leitura dos textos de Gastão Cruls crítico e de Gastão Cruls artista, percebemos o
homem sensibilizado com o sofrimento e a dor do outro, como, a propósito, nos revela a
essa personagem é construída é ainda a antífrase de tantos brasileiros excluídos, por uma
poesia, a ciência e a fantasia fragmentam-se e se perdem em favor de uma narrativa única, que
Pensando a respeito, o íntimo agitado de Cruls, do qual nos falou seu amigo Silva
Melo, tentava constantemente assimilar o olhar do outro, ver o outro pelos olhos desse outro.
O introspectivo olhar crulsiano, que pode ser verificado em todos os seus contos e romances,
crulsiana se nos revela não apenas a composição do subjetivismo literário, nem somente a
recomposição da história, mas, acima de tudo, uma relação de vida entre o texto, o autor e o
leitor. Dessa forma, o discurso do artista sai das imagens para o plano da reintegração do
signo que acarreta, em si, a sociabilidade da língua, sendo essa sociabilidade, o primeiro
princípio que deveras nos aproxima o princípio da socialização do homem com os homens
Por fim, somos nós os leitores e os para quem se lê os expoentes do estilo socializador
de Gastão Cruls. Contar prosas e romancear causalidades, promover o lirismo no ciclo das
realidade por meio do utiludismo e de uma leitura crítica do mundo e dos textos, convertidos
pela presença do outro, a presença de Gastão Luis Cruls é companheira desses autos e
278
cooperadora na função humanizadora do homem. Em síntese, a própria aura do artista
sociedade.
No volume a seguir, oferecemos uma lenda concreta de uma parte de tudo que
apresentamos aqui. Com a palavra, os críticos e o próprio Gastão Cruls em páginas que
as obras do artista. Esperamos que Cruls volte para ficar, que finalmente se cumpra o
reconhecimento teimosamente tardio, pelo próprio autor condicionado ao valor da sua obra,
como podemos ler em sua entrevista a Raimundo de Meneses (1956), na antologia que abre o
“Volume 2”.
Ao virar esta página, suspiramos nosso primeiro esforço, mas o leitor ainda se haverá
no ar às voltas com tudo que está ainda por dizer: camarinhas em alto mar91. Todavia,
exilado. Desejamos, conquanto, por essa história que (re)buscamos através do diálogo com a
crítica crulsiana, e através das análises que desenvolvemos, ver apendoada uma nova recepção
capaz de tocar, suficientemente, a sensibilidade e o desejo pela (re)leitura das obras de Gastão
Cruls, a começar agora pelas benvindas, esperamos, linhas da crítica e da arte crulsianas.
91
Expressão figurada com sentido de muitas pequenas coisas ainda não descobertas. Cada pequena coisa em
alto mar pode ser muito grande quando avistada.
279
A obra de Gastão Cruls92
CONTO
1920
Neste Volume:
O Noturno Nº 13
Cipó braúna
G. C. P. A.
Noites brancas
Um aasvero moderno
O caçador de pacas
A morte do saci
1923
Neste Volume:
Flor do tabuleiro
O último encontro
A eutanásia
92
Não constamos, nesta oportunidade, as obras reeditadas; nem as versões em inglês e em quadrinhos da
Amazônia misteriosa.
280
No clube
Antíope e o sátiro
O abcesso de fixação
Biró
Ao embalo da rede
No templo de Palas
O segredo da esfinge
1938
Neste Volume:
Contas brabas
Mãe dágua
Arrependimento
Meu sósia
A patativa
Circuito da Gávea
Iniciação
O espelho
Do outro lado
Fauna exótica
Fim de viagem
1951
Neste Volume:
281
A viagem
Conto de Natal
Baking-Powder Intelectual
O bom moço
1951
Neste Volume:
COIVARA
AO EMBALO DA REDE
QUATUOR
ROMANCE
1925
1927
1928
1934
282
Vertigem. Rio de Janeiro: Ariel, 1934.
1954
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