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Cláudio Silveira Maia

Gastão Luis Cruls: uma nova recepção


V. 1

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da Faculdade de Ciências e Letras
da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (FCL/UNESP), Campus de
Araraquara, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre, sob a
orientação da Profa. Dra. Maria Clara
Bonetti Paro.

Araraquara-SP
Junho, 2005
Abstract:

This dissertation aims to rescue from literary oblivion or at least from a minor categorization
within Brazilian Literature the work of Gastão Luis Cruls, “the great Flemish flower” in the
words of Raquel de Queirós. Based on tenets of Reception Theory or the Aesthetics of
Reception, the author of this study proposes a new aesthetic perception of the dual
characteristic of Cruls´s novels and short stories: regionalism and psychological analysis.
Critical texts about Cruls´s achievements from 1933 to the present are brought to the fore and
made audible in “dialogue” with present day view. The novel A Amazônia misteriosa (1925)
and the diary about his participation in General Rondon´s mission (“Missão Rondon”:
Óbidos-Tumucumaque) to the Amazon in 1928/29, and which was published with he title A
Amazônia que eu vi (1930) are analyzed and contrasted as narratives that blur the distinction
between fiction and reporting, mixing the fantastic and the travel genres. An anthology is also
presented so as to make available to the reader of today the critical analysis of Cruls´s oeuvre,
his critical texts published in the “Boletim de Ariel” and some of his short stories of mystery
and phantasmagoric terror. Therefore, this research is an attempt to (re)discover the
contemporaneousness of Gastão Luis Cruls´s thematic diversity in which close observation of
Nature and human nature, of thought and imagination are artistically brought together to
reveal greatness and misery, dream and reality in this terrae brasilis. It is also an attempt to
require a larger space in Brazilian Literary History to the work of this artistic shaman.

Keywords: Gastão Luis Cruls; A Amazônia misteriosa; A Amazônia que eu vi; Brazilian
Literature; Literary Reception; Fantastic Narrative.

15
Resumo:

Esta dissertação visa resgatar do esquecimento literário ou ao menos de uma


classificação menor na Literatura Brasileira a obra de Gastão Luis Cruls, “a grande flor
flamenga” nas palavras de Raquel de Queirós. Baseado em princípios da Teoria da Recepção
ou da Estética da Recepção, o autor deste estudo propõe uma percepção estética nova da
dupla característica dos romances e dos contos de Cruls: regionalismo e análise psicológica.
Os textos críticos sobre as realizações de Cruls de 1933 ao presente são trazidos à frente e
feitos audíveis no “diálogo” com uma visão atual. O romance A Amazônia misteriosa (1925) e
o diário sobre sua participação na missão do general Rondon (“Missão Rondon”: Óbidos-
Tumucumaque) na Amazônia em 1928/29, e que foi publicado sob o título A Amazônia que
eu vi (1930), são analisados e contrastados como narrativas que nublam a distinção entre a
ficcionalidade e a reportagem, combinando os gêneros fantástico e história-viagem. Uma
antologia é também apresentada para permitir o acesso ao leitor atual da análise crítica da
oeuvre de Cruls, seus textos críticos publicados no “Boletim de Ariel” e alguns de seus contos
de mistério e assombramento. Conseqüentemente, esta pesquisa é uma tentativa de permitir
aos leitores de hoje (re)descobrir a contemporaneidade da diversidade temática de Gastão
Luis Cruls em que as observações da Natureza e da natureza humana, do pensamento e da
imaginação são trazidas artisticamente juntas para revelar a grandeza e a miséria, o sonho e a
realidade na terra brasileira. É também uma tentativa de reivindicar um espaço maior na
História Literária Brasileira para a obra deste shaman artístico.

Palavras-Chave: Gastão Luis Cruls; A Amazônia misteriosa; A Amazônia que eu vi;


Literatura Brasileira; Recepção Literária; Narrativa Fantástica.

16
Dedico

à Linalda, a zihca, minha mãe.

Compartilho com minha turma,


17
a 3ª da UEMS de Cassilândia-MS

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, na sua inaudita graça, por mais um trabalho que se inicia. E, se a
busca da realização é um caminho seguro, é graças também à paciência, à amizade e a uma
orientação que despertou o pesquisador, amadureceu o crítico e acreditou no orientando 
agradeço, pois, com a gratidão que as palavras não podem traduzir, à minha orientadora, a
Profa. Dra. Maria Clara Bonetti Paro, sabendo que o percurso para o crescimento intelectual é
árduo, difícil, muitas vezes solitário e pouco compreendido, porém, trata-se da busca de um
tesouro que não tem preço.
Nesse caminho, às vezes é preciso ser tomado pelas mãos para continuar indo em
frente. Ao longo da jornada, quando isso se fez necessário, não faltaram as mãos solidárias do
amigo e professor José Antônio de Souza, ajudando a dar os primeiros passos e estando
presente nos momentos que se fizeram muito difíceis.
Por falar em primeiros passos, é preciso agradecer profundamente à Profa. Dra. Maria
Helena de Queiroz, minha professora na graduação, e também amiga, que me apresentou o
nome de Gastão Luis Cruls, as primeiras referências sobre esse autor e o romance A
Amazônia misteriosa do artista Cruls. Foi mesmo um achado!
Com esse achado, tornou-se possível uma proximidade com a Profa. Dra. Alda Maria
Quadros do Couto, que contribuiu com a ajuda indispensável na difícil tarefa de elaborar um
projeto e de descobrir o que realmente queria este pesquisador com relação ao estudo de
Gastão Cruls. E não foi só isso. Ainda pude contar com a amizade e a estrela espiritual da
amiga Alda.
Chegando em Araraquara, para iniciar o Mestrado, tornou-se pessoa importante em
minha vida o amigo Josafá que, mesmo sem me conhecer, recebeu-me em sua casa até que
pudesse, finalmente, andar com os próprios pés.
Mas o começo de cada etapa é sempre difícil, e muito valiosa foi a ajuda dos
professores da Pós-Graduação da UNESP, com a disposição de seu tempo e o oferecimento de
livros e outros materiais úteis à pesquisa sobre Gastão Cruls. A propósito, também os
profissionais da Secretaria da Pós e do atendimento bibliotecário não são aqui esquecidos,
nem minha gratidão passaria em linhas brancas. Além deles, o Marcos Celso e a Tamiko da
Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo, a Elaine e a Lucrécia da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro e algumas profissionais da Pró-reitoria da UNESP, que deram,
gentilmente, a atenção que este estudante precisou durante o trabalho de pesquisa de campo,

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são recordados(as) nesses agradecimentos. Naturalmente, lembro o Sr. José Mindlin e a
secretária de sua Biblioteca, a Cristiane, pela generosidade no atendimento e, já, por
oferecerem as portas abertas da Biblioteca José Mindlin à continuidade das pesquisas sobre G.
Cruls.
Agradeço também à Profa. Dra. Karin Volobuef e à Profa. Dra. Ana Luiza S.
Camarani, que deram uma contribuição inestimável, com correções e sugestões, na fase de
qualificação deste trabalho, compondo minha Banca Examinadora. Mas as contribuições não
pararam aí, uma vez que, em tantas oportunidades, novas atenções se fizeram necessárias e
foram atendidas. Ainda nessas linhas, agradeço ao Prof. Dr. Sidney Barbosa, dono de uma
palavra amiga e que, junto dos amigos Márcio Roberto Prado, Fábio Lucas Pierini e Mauri
Cruz – aos quais, aproveitando o ensejo desejo também agradecer – favoreceu sempre as
oportunidades de discussões interessantes no âmbito da academia, mas também do coração
humano. Pude contar, pois, com amizades que ajudaram um sonho e um trabalho a continuar.
Trabalho que contou também com a compreensão dos mais próximos, que sempre
estão perto, e dos quais, em certos momentos, foi preciso o distanciamento, a bem do
exercício acadêmico. Lembro, por essa razão, e com muito carinho, da minha irmã Tânia, a
quem tenho por filha; do meu cunhado Roberto, de sua esposa,  a minha irmã Sônia e da
filhinha do casal, minha sobrinha Nayara. Juntos, eles demonstraram tolerância e amor na
partilha da privacidade, ao longo dos meses em que lhes fui, literalmente, um necessitado.
Ao amigo-irmão Sílvio de Oliveira, à sua esposa Josana, ao Silvinho e à Diúlia, a
gratidão de um desconhecido que se tornou da família. Aos meus pais e irmãos, por adoção na
criação tardia, Abadio, Madalena, Ricardo e Eduardo, respectivamente, o agradecimento de
um quase peregrino. Pela ternura e alegria, sou sensível e grato a Josias, Bete, Paulo e
famílias.
À CAPES, cuja bolsa me valeu 23 meses de Mestrado, e sem o que, talvez esse
trabalho não se realizasse, fica a minha sempre lembrada gratidão.
A todos, enfim, o abraço sincero do ser humano, e o reconhecimento do professor-
estudante e do cidadão Cláudio Silveira Maia.

19
Sumário

Introdução Geral.......................................................................................................................14

Volume 1

Gastão Luis Cruls: uma nova recepção

Sessão 1

EM BUSCA DA HERANÇA NEGADA

Primeiras palavras....................................................................................................................16
Situando o autor....................................................................................................................... 20

Escopo Teórico e Metodológico.............................................................................................. 25

Capítulo 1: A crítica no espaço autoral ................................................................................ 39


1.1 Considerações teóricas...............................................................................39
1.1.1 O leitor e a leitura do texto literário...............................................42

1.2 A crítica no espaço autoral de Gastão Luis Cruls......................................48

Capítulo 2: Paralelos utópicos e distópicos com a Amazônia de Cruls.................................57

20
Capítulo 3: Diálogo com a Recepção de Gastão Luis Cruls na crítica
brasileira de 1933 aos dias de hoje......................................................................75

AGRIPINO GRIECO (1933).....................................................................76


SUD MENNUCCI (1934)......................................................................... 83
TEXTO ANÔNIMO (1934)...................................................................... 86
JAYME DE BARROS (1936)................................................................... 89
LIRA CAVALCANTI (1944)....................................................................92
ASTROJILDO PEREIRA (1944).............................................................. 95
NEY GUIMARÃES (1944).......................................................................98
ALCEU AMOROSO LIMA (1948)........................................................ 100
GASTÃO CRULS (1949)........................................................................104
GILBERTO FREYRE (1949)..................................................................107
LÚCIA MIGUEL PEREIRA (1952)........................................................110
OLÍVIO MONTENEGRO (1953)........................................................... 116
TEMÍSTOCLES LINHARES (1954)...................................................... 119
WILSON MARTINS (1954)................................................................... 122
MÁRIO DA SILVA BRITO (1955).........................................................126
ALMIRO ROLMES BARBOSA & EDGAR CAVALHEIRO (1957)... 129
SILVA MELO (1959)..............................................................................131
BERNARDO GERSEN (1959)............................................................... 135
RACHEL DE QUEIROZ (1959)............................................................. 141
JOEL PONTES (1959).............................................................................143
OTTO MARIA CARPEAUX (1964)...................................................... 148
FERNANDO GOES (1966).....................................................................155
GASTÃO CRULS (1977)........................................................................159
CELSO PEDRO LUFT (1979)................................................................ 160
AFRÂNIO COUTINHO (1986).............................................................. 161
PEDRO NAVA (1987)............................................................................ 164
RUY RIBEIRO (1988).............................................................................166
FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA (1988)......................................... 169
MASSAUD MOISÉS (1997)...................................................................170
ANTÔNIO CÂNDIDO & JOSÉ ADERALDO CASTELO (1997)........ 172
RAUL DE SÁ BARBOSA (2002)...........................................................176
ROBERTO DE SOUSA CAUSO (2003)................................................ 184

Considerações.................................................................................................187

Sessão 2

LENDO A HERANÇA ENCONTRADA

Capítulo 4: O romance A Amazônia misteriosa e o diário A amazônia que eu vi: entre a


história e a ficção................................................................................................................... 192

21
4.1 Apresentação............................................................................................192
4.2 O Romance...............................................................................................194
4.3 O Diário....................................................................................................196
4.4 De um ponto qualquer entre a fantasia e o documento............................198
4.5 Alguns tipos de relações e fatos estruturais............................................. 202
4.5.1 O tucupi, a caamembeca e a valentia........................................... 202
4.5.2 Coincidências............................................................................... 205
4.5.3 O lar e o Natal.............................................................................. 209
4.5.4 Experiência.................................................................................. 214
4.5.5 As diferenças................................................................................216
4.5.6 O fabulário....................................................................................219
4.6 Epílogo.....................................................................................................220

Capítulo 5: Do mito e da lenda ao reino do fantástico em: A ilha das almas selvagens
(Wells) e A Amazônia misteriosa (Cruls).............................................................................. 229

5.1 Apresentação............................................................................................229
5.2 O Fantástico com H.P. Lovecraft, Louis Vax, Jean Molino.................... 230
5.3 Instâncias do conteúdo mítico-lendário................................................... 232
5.4 O mito de Platão e o mito de Aristóteles................................................. 233
5.5 A conjunção mito e lenda e a instauração do fado...................................234
5.6 Nosso texto  nossa ronda no reino do fantástico..................................236
5.6.1 A materialização do medo e o espreitamento da morte............... 237
5.6.2 Nossa noite no Reino do fantástico..............................................238
5.6.3 Nossa atmosfera........................................................................... 239
5.6.4 Nossa narrativa fantástica............................................................ 240
5.6.5 O marcar do tempo.......................................................................240
5.6.6 Conseqüências do efeito surpresa e uma volta pelo imaginário...241
5.6.7 No seio da morte.......................................................................... 242
5.6.8 O encontro com o medo e a busca de refúgio.............................. 243
5.6.9 Pega-pega e esconde-esconde...................................................... 244
5.6.10 A tormenta como efeito da(s) metamorfose(s)............................ 247
5.6.11 Criaturas do medo: a dor, o mal e os monstros............................249
5.7 Epílogo.....................................................................................................252
5.7.1 Curioso não resiste.......................................................................253

Últimas palavras.....................................................................................................................256

A Obra de Gastão Cruls..........................................................................................................260

Referências Bibliográficas......................................................................................................265

...

22
Volume 2

Gastão Cruls e seus críticos: antologia

1. Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls...........................................274

1933

GRIECO, Agripino. Evolução da prosa moderna.................................................................277

1934

MENNUCCI, Sud. Rodapés...................................................................................................280


GAZETA DE NOTÍCIAS. Gastão Cruls ¾ Vertigem.......................................................... 286

1936

BARROS, Jaime de. Espelho dos livros................................................................................292

1944

CAVALCANTI, Lira. Elsa e Elena.......................................................................................294


PEREIRA, Astrojildo. Interpretações....................................................................................297
GUIMARÃES, Ney. A Amazônia misteriosa........................................................................300

1948

LIMA. Alceu Amoroso. Primeiros estudos: contribuição à história do modernismo


literário...................................................................................................................................303

1949

JORNAL DE LETRAS. Gastão Cruls................................................................................... 310


CRULS, Gastão. A Rua do Ouvidor......................................................................................311
PONTES, Joel. O Rio de Janeiro de ontem visto por olhos de hoje......................................315
FREYRE, Gilberto. O Rio que Gastão Cruls vê.................................................................... 320

1950

SALES, Herberto. Notas de leitura........................................................................................326

23
1952

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Cinqüenta anos de literatura...................................................372


LIMA, Herman. Variações sobre o conto..............................................................................336

1953

MONTENEGRO, Olívio. O romance brasileiro...................................................................337

1954

LINHARES, Temístocles. Um teste sobre o romance


(Em torno do último livro do Sr. Gastão Cruls).....................................................................339

MARTINS, Wilson. Últimos livros: a ficção-IV (Conclusão)...............................................345

1955

BRITO, Mário da Silva. Histórias de Cristo......................................................................... 353

1956

MENESES, Raimundo de. Gastão Cruls escreveu “A Amazônia Misteriosa” antes de


conhecê-la...............................................................................................................................357

1957

BARBOSA, Almiro Rolmes; CAVALHEIRO, Edgar. Obras primas do conto brasileiro...361

1958

GRIECO, Agripino. Da Coivara à Vertigem......................................................................... 362

1959

MELO, Silva. Recordações de Gastão Cruls......................................................................... 364


GERSEN, Bernardo. Ficção e Realidade...............................................................................381
GERSEN, Bernardo. O Criador e a Criação...........................................................................387
QUEIROZ, Rachel de. Última Página................................................................................... 393
O ESTADO. Faleceu Gastão Cruls........................................................................................397

1960

PONTES, Joel. O aprendiz de crítica. Rio de Janeiro: INL, 1960........................................ 399

1963

LIMA, Alceu Amoroso. Ébion de lições de literatura brasileira..........................................407

24
1964

CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira.................407

1965

MARTINS, Wilson. A literatura brasileira...........................................................................409

1966

GÓES, Fernando. O espelho infiel.........................................................................................409

1967

MELO, Silva. Recordações de Gastão Cruls......................................................................... 413

1973

COUTINHO, Afrânio. Conversa fiada.................................................................................. 416

1977

CRULS, Gastão. (Sobre) A Amazônia misteriosa em quadrinhos (1944)............................. 419

1978

MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira....................................................... 420

1979

LUFT, Celso Pedro. Literatura portuguesa e brasileira....................................................... 421

1986

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 4................................................................422


COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 5................................................................422
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 6................................................................425

1987

NAVA, Pedro. Galo das trevas: as doze velas imperfeitas................................................... 425

1988

RIBEIRO, Rui. Gastão Cruls: entre a ficção e a realidade.................................................... 427


BARBOSA, Francisco de Assis. Machado de Assis & Manuel Bandeira.............................434

25
1995

SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira.................................................438

1997

MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira........................................................... 438


MOISÉS, Massaud. A criação literária.................................................................................441
CÂNDIDO, Antônio; CASTELLO, José Aderaldo...............................................................442

2002

SÁ-BARBOSA, Raul de. Antônio Torres: uma antologia.................................................... 447

2003

CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a


1950........................................................................................................................................463

2. Os textos críticos de Gastão Cruls publicados no Boletim de Ariel........ 468

Conversa Fiada.......................................................................................................................469
Frank Harris............................................................................................................................470
Banjo...................................................................................................................................... 471
Sang Reservé..........................................................................................................................472
Albert Samain.........................................................................................................................473
Foujita.....................................................................................................................................474
Lasar Segall............................................................................................................................474
Nas Serras e nas Furnas..........................................................................................................475
O Incrível João Pessoa........................................................................................................... 475
La Ronde de L’Amour........................................................................................................... 476
Badú....................................................................................................................................... 477
La Pavlova..............................................................................................................................478
Um Vaqueano do Desconhecido............................................................................................478
Gondim da Fonseca................................................................................................................480
To the Gallows I must Go......................................................................................................480
Visitantes Estrangeiros...........................................................................................................481
Escritores do Norte.................................................................................................................483
Ecos........................................................................................................................................484
Os “descobridores” de Fawcett.............................................................................................. 486
“Maria Luiza”.........................................................................................................................488
Miscelânea..............................................................................................................................489
O Brasil Continua, Clarissa, Censura Estrábica.....................................................................490
Stanley....................................................................................................................................492
“L’ Homme du Brésil”...........................................................................................................494
Miguel Couto..........................................................................................................................496

26
Antonio Torres....................................................................................................................... 497
Visita Inesperada....................................................................................................................498
“Nijinsky”...............................................................................................................................500
Brasiliana................................................................................................................................501
Ronald de Carvalho................................................................................................................502
Georges Raeders  Le Comte de Gobineau au Brésil..........................................................503
Autobiografias........................................................................................................................504
Comidas..................................................................................................................................506
Três Livros Valiosos.............................................................................................................. 508
O Livro de Silva Mello...........................................................................................................509
Depoimento de Gastão Cruls sobre seu livro Aparência do Rio de Janeiro..........................512

3. Contos de mistério e assombramento.......................................................515

Do volume de contos História puxa história

O espelho................................................................................................................................515
Meu sósia................................................................................................................................521
Contas brabas......................................................................................................................... 527
A patativa............................................................................................................................... 532

Do volume de contos Ao embalo da rede

O abscesso de fixação............................................................................................................ 540


Ao embalo da rede..................................................................................................................547

Do volume de contos Coivara

Noites brancas........................................................................................................................552
A noiva de Oscar Wilde......................................................................................................... 559
G. C. P. A...............................................................................................................................568
O noturno nº 13...................................................................................................................... 575

4. Outros contos........................................................................................... 582

O assassinato de Roberto Flores.............................................................................................582


Conto de Natal........................................................................................................................589
A viagem................................................................................................................................591
Baking-Powder intelectual.....................................................................................................592
O bom moço...........................................................................................................................594
O último encontro...................................................................................................................596

27
Volume 2

Gastão Cruls e seus críticos: antologia

1. Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls...........................................274

1933

GRIECO, Agripino. Evolução da prosa moderna.................................................................277

1934

MENNUCCI, Sud. Rodapés...................................................................................................280


GAZETA DE NOTÍCIAS. Gastão Cruls ¾ Vertigem.......................................................... 286

1936

BARROS, Jaime de. Espelho dos livros................................................................................292

1944

CAVALCANTI, Lira. Elsa e Elena.......................................................................................294


PEREIRA, Astrojildo. Interpretações....................................................................................297
GUIMARÃES, Ney. A Amazônia misteriosa........................................................................300

1948

LIMA. Alceu Amoroso. Primeiros estudos: contribuição à história do modernismo


literário...................................................................................................................................303

1949

JORNAL DE LETRAS. Gastão Cruls................................................................................... 310


CRULS, Gastão. A Rua do Ouvidor......................................................................................311
PONTES, Joel. O Rio de Janeiro de ontem visto por olhos de hoje......................................315
FREYRE, Gilberto. O Rio que Gastão Cruls vê.................................................................... 320

1950

SALES, Herberto. Notas de leitura........................................................................................326

28
1952

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Cinqüenta anos de literatura...................................................372


LIMA, Herman. Variações sobre o conto..............................................................................336

1953

MONTENEGRO, Olívio. O romance brasileiro...................................................................337

1954

LINHARES, Temístocles. Um teste sobre o romance


(Em torno do último livro do Sr. Gastão Cruls).....................................................................339

MARTINS, Wilson. Últimos livros: a ficção-IV (Conclusão)...............................................345

1955

BRITO, Mário da Silva. Histórias de Cristo......................................................................... 353

1956

MENESES, Raimundo de. Gastão Cruls escreveu “A Amazônia Misteriosa” antes de


conhecê-la...............................................................................................................................357

1957

BARBOSA, Almiro Rolmes; CAVALHEIRO, Edgar. Obras primas do conto brasileiro...361

1958

GRIECO, Agripino. Da Coivara à Vertigem......................................................................... 362

1959

MELO, Silva. Recordações de Gastão Cruls......................................................................... 364


GERSEN, Bernardo. Ficção e Realidade...............................................................................381
GERSEN, Bernardo. O Criador e a Criação...........................................................................387
QUEIROZ, Rachel de. Última Página................................................................................... 393
O ESTADO. Faleceu Gastão Cruls........................................................................................397

1960

PONTES, Joel. O aprendiz de crítica. Rio de Janeiro: INL, 1960........................................ 399

1963

LIMA, Alceu Amoroso. Ébion de lições de literatura brasileira..........................................407

29
1964

CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira.................407

1965

MARTINS, Wilson. A literatura brasileira...........................................................................409

1966

GÓES, Fernando. O espelho infiel.........................................................................................409

1967

MELO, Silva. Recordações de Gastão Cruls......................................................................... 413

1973

COUTINHO, Afrânio. Conversa fiada.................................................................................. 416

1977

CRULS, Gastão. (Sobre) A Amazônia misteriosa em quadrinhos (1944)............................. 419

1978

MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira....................................................... 420

1979

LUFT, Celso Pedro. Literatura portuguesa e brasileira....................................................... 421

1986

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 4................................................................422


COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 5................................................................422
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 6................................................................425

1987

NAVA, Pedro. Galo das trevas: as doze velas imperfeitas................................................... 425

1988

RIBEIRO, Rui. Gastão Cruls: entre a ficção e a realidade.................................................... 427


BARBOSA, Francisco de Assis. Machado de Assis & Manuel Bandeira.............................434

1995

SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira.................................................438

30
1997

MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira........................................................... 438


MOISÉS, Massaud. A criação literária.................................................................................441
CÂNDIDO, Antônio; CASTELLO, José Aderaldo...............................................................442

2002

SÁ-BARBOSA, Raul de. Antônio Torres: uma antologia.................................................... 447

2003

CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a


1950........................................................................................................................................463

2. Os textos críticos de Gastão Cruls publicados no Boletim de Ariel........ 468

Conversa Fiada.......................................................................................................................469
Frank Harris............................................................................................................................470
Banjo...................................................................................................................................... 471
Sang Reservé..........................................................................................................................472
Albert Samain.........................................................................................................................473
Foujita.....................................................................................................................................474
Lasar Segall............................................................................................................................474
Nas Serras e nas Furnas..........................................................................................................475
O Incrível João Pessoa........................................................................................................... 475
La Ronde de L’Amour........................................................................................................... 476
Badú....................................................................................................................................... 477
La Pavlova..............................................................................................................................478
Um Vaqueano do Desconhecido............................................................................................478
Gondim da Fonseca................................................................................................................480
To the Gallows I must Go......................................................................................................480
Visitantes Estrangeiros...........................................................................................................481
Escritores do Norte.................................................................................................................483
Ecos........................................................................................................................................484
Os “descobridores” de Fawcett.............................................................................................. 486
“Maria Luiza”.........................................................................................................................488
Miscelânea..............................................................................................................................489
O Brasil Continua, Clarissa, Censura Estrábica.....................................................................490
Stanley....................................................................................................................................492
“L’ Homme du Brésil”...........................................................................................................494
Miguel Couto..........................................................................................................................496
Antonio Torres....................................................................................................................... 497
Visita Inesperada....................................................................................................................498
“Nijinsky”...............................................................................................................................500
Brasiliana................................................................................................................................501
Ronald de Carvalho................................................................................................................502

31
Georges Raeders  Le Comte de Gobineau au Brésil..........................................................503
Autobiografias........................................................................................................................504
Comidas..................................................................................................................................506
Três Livros Valiosos.............................................................................................................. 508
O Livro de Silva Mello...........................................................................................................509
Depoimento de Gastão Cruls sobre seu livro Aparência do Rio de Janeiro..........................512

3. Contos de mistério e assombramento.......................................................515

Do volume de contos História puxa história

O espelho................................................................................................................................515
Meu sósia................................................................................................................................521
Contas brabas......................................................................................................................... 527
A patativa............................................................................................................................... 532

Do volume de contos Ao embalo da rede

O abscesso de fixação............................................................................................................ 540


Ao embalo da rede..................................................................................................................547

Do volume de contos Coivara

Noites brancas........................................................................................................................552
A noiva de Oscar Wilde......................................................................................................... 559
G. C. P. A...............................................................................................................................568
O noturno nº 13...................................................................................................................... 575

4. Outros contos........................................................................................... 582

O assassinato de Roberto Flores.............................................................................................582


Conto de Natal........................................................................................................................589
A viagem................................................................................................................................591
Baking-Powder intelectual.....................................................................................................592
O bom moço...........................................................................................................................594
O último encontro...................................................................................................................596

32
Maia, Cláudio Silveira
Gastão Luis Cruls: uma nova recepção / Cláudio Silveira Maia. –
2005
2 v. : 30 cm

Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual

Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara.

Orientador: Maria Clara Bonetti Paro

l. Cruls, Gastão Luis, 1888-1959. 2. Literatura brasileira.


3. Narrativa fantástica. I. Título.

33
Introdução Geral

Este trabalho compõe-se de dois volumes paginados em seqüência contínua. O

primeiro volume compreende nossas primeiras palavras sobre os dois roteiros desenvolvidos

durante nossas atividades de pesquisa, nomeados, respectivamente: “Sessão I: Em Busca da

Herança Negada” e “Sessão II: Lendo a Herança Encontrada”. Na “Sessão I” abrouxamos

nossas “Primeiras palavras”, situamos o artista Cruls em um breve comentário biográfico, e

damos conta ao leitor do percurso teórico seguido para um trabalho que ao mesmo tempo

resgata e reapresenta autor e obra. Na seqüência, trazemos dois capítulos introdutórios ao

diálogo com a recepção crítica crulsiana, nos quais sinalizamos nossas primeiras impressões

sobre a crítica e a obra de Cruls. A saber: “Capítulo 1: A crítica no espaço autoral” e

“Capítulo 2: Paralelos utópicos e distópicos com a Amazônia de Cruls”.

Ainda “Em Busca da Herança Negada” apresentamos o “Capítulo 3: Diálogo com a

Recepção de Gastão Cruls na crítica brasileira de 1933 aos dias de hoje”, que, na verdade, é o

nosso mediador entre as “Sessões I e II”.

Abrindo a “Sessão II: Lendo a Herança Encontrada”, apresentamos os capítulos 4 e 5.

O “Capítulo 4” compreende a análise “O romance A Amazônia misteriosa e o diário A

Amazônia que eu vi: entre a ficção e a história”; já o capítulo 5 compreende a análise “Do

mito e da lenda ao reino do fantástico em: A ilha das almas selvagens (Wells) e A Amazônia

misteriosa (Cruls)”.

Assim, fechamos o “Volume 1”, intitulado “Gastão Luis Cruls: uma nova recepção”,

com as nossas “Últimas palavras”, a “Obra de Gastão Cruls” e as Referências bibliográficas.

34
A seguir, temos o “Volume 2: Gastão Cruls e seus críticos: antologia”. Abrimo-lo com

a “Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls”, e o continuamos com outras três antologias

de Cruls: “Antologia dos textos de Cruls publicados no Boletim de Ariel”, “Antologia dos

contos de mistério e assombramento” e “Outros contos”.

Quanto à classificação das modalidades dos textos reunidos no corpo da “Antologia da

fortuna crítica de Gastão Cruls”, foram escolhidas as seguintes designações: estudos críticos,

referências e correspondências.

 “Estudos Críticos”  é utilizada para estudos mais apurados sobre o escritor Cruls

e sua obra, estudos esses que foram publicados em livros e revistas especializadas

sob a forma de artigos ou ensaios.

 “Referências”  compreende os comentários, também sobre autor e obra,

presentes em obras gerais, periódicos e jornais.

 “Correspondências”  reúne notas de jornais e revistas, bem como algumas

apreciações do livro das correspondências de Cruls, intitulado Antonio Torres e

seus amigos, através da antologia de Sá Barbosa (2002).

...

35
Sessão I

EM BUSCA DA HERANÇA NEGADA

Primeiras palavras

É bem possível que as dificuldades para construção da paz comecem nas


divisões, nas rupturas instaladas nos subterrâneos de nossa própria
individualidade, nas áreas inexploradas de nossa vida emocional e mental,
no nosso mundo inconsciente  já que em plena consciência o homem é
lúcido, isto é, quer a ciência, ama a verdade e o bem. Onde começar o
trabalho pela construção da paz? Eu diria que devo começá-lo através de
mim mesmo. No meu diálogo interior, no esforço por realizar minha própria
e pessoal conciliação.1

De 2001 a 2004, ínterim de escrevinhas e busca da literatura de Gastão Luis Cruls e do

tudo que falasse dele ou de sua arte, surpreendia-nos, a cada leitura, uma extasia que

fascinava e nutria, página a página, nosso interesse e paixão pelo descobrimento de um nome

e de uma prosa, silenciados pela “esfinge” do pré-modernismo brasileiro.

O primeiro toque à rara 2ª edição d’A Amazônia misteriosa, trazendo na capa a

inscrição inédita de um muiraquitã anterior a Macunaíma de Mário de Andrade, nos

convenceu de que não seríamos “devorados”. Com efeito, nascia, ali, um perscrutador de um

universo literário algo fantástico, algo ciência; de fantasia e de lógica  mas, sobretudo da

Natureza e psicologia humana.

Entrementes, era de onze anos nossa idade quando conhecemos a Amazônia. De

Cuiabá, no Mato Grosso (MT) a Santarém, no Pará (PA) – a BR-163 era, de verdade, um

ambiente inóspito a quem desejasse altear, do planalto central, as paisagens da planície

amazônica. Nessa época corria o ano de 1981, e a estrada que levava para outras paragens ia

feito carreador na selva brasileira. Sem asfalto, o chão de barro ou poeira magoava dias e

noites de viagem  porém incendia um deslumbre sem igual: uma sensação das coisas nunca

1
SABINO, Fernando. Gente. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 300.

36
vistas, que dava um arrepio de medo e um tanto de bem. Ainda não saberíamos explicar, mas

já conseguíamos sentir uma força ventando de um gigante chamado Brasil.

Conquanto, estar hoje escrevendo uma Dissertação de Mestrado sobre a

biobibliografia de Gastão L. Cruls é, para nós, a conquista de um desejo: aquele da vontade

que a gente tem de realizar um ideal de vida. Nesse sentido, estudar vida e obra de um autor

que contemplou as maravilhas da nossa Amazônia, é também contemplar alguns caminhos e

descaminhos comuns a pioneiros e peregrinos da terrae brasilis, além de espelhar, de alguma

forma, alguns momentos nossos de aventura, idas e vindas em território da Amazônia Legal.

Ao lado do labor da expressão amazona, a expressão cultural do Rio de Janeiro e a

gesta do Modernismo à luz dos anos vinte (1922)2 imprimem, na literatura de Cruls, uma

expressão de vanguarda, e conferem a este trabalho uma marca d’água caracterizada pela

combinação Rio – Amazônia, cuja insígnia lavrou a dualidade na narrativa de um escritor tão

caro à literatura do Brasil e infelizmente esquecido pela mesma crítica que o consagrou em

vida por romances, contos, traduções e documentários escritos  publicados em edições

esgotadas. Destes, dois romances inacabados, Glória (sobre a Amazônia) e Angra (sobre o

Rio), dizem bem o que aqui está sendo chamado de dualidade.

Enfim, pensando este trabalho por uma entrada na literatura crulsiana, optamos por

fazê-lo segundo estudos da “Estética da Recepção”. Entretanto, devido à diversidade dos

gêneros na obra de Cruls, também se promoverá a interdisciplinaridade com outras correntes

da crítica e da análise literárias, ao que, acreditamos, aflui a riqueza de anos de pesquisa e

aprendizagem. Norteados, porém, os lindes ainda não demarcados, quanto à recepção e crítica

do artista Cruls, precisam estreitar-se, ao menos, inicialmente, no bojo de uma investigação

teórica predominante, e nisso reitera-se a escolha pela “Estética da Recepção”.

2
Marco histórico do Modernismo no Brasil.

37
De fato, o estudo sobre a fortuna crítica de Gastão Luis Cruls (RJ 1888 – RJ 1959)

reside na compilação e no comentário de artigos, ensaios, referências e correspondências.

Com efeito, o conjunto dessas publicações, alçado às páginas substanciais de livros e

periódicos, percorre a distância de mais de oitenta anos de uma crítica diversa e abrangente,

mas ainda pouco aprofundada.

Assim, em nosso trabalho, orientado por seqüência cronológica, apresentamos, pois,

neste primeiro volume, em sua primeira sessão, dois capítulos introdutórios que pretendem

circunscrever, respectivamente, uma idéia geral da crítica e a paixão de Gastão Cruls pela

nossa Amazônia  um dos mais fortes veios literários do autor. A seguir, apresentamos um

diálogo com a Recepção crítica crulsiana. Na segunda sessão, por sua vez, apresentamos duas

análises da narrativa do autor. Como já declaramos, à “Introdução Geral”, apresentamos, no

segundo volume, uma antologia da fortuna crítica crtulsiana, dos textos críticos do escritor

publicados no “Boletim de Ariel”, dos seus contos de mistério e assombramento esparsos em

quatro volumes de contos diversos, e, ainda, de outros contos.

Cumpre-nos, dessa forma, ao término de um percurso, o inevitável olhar retrospectivo,

 com o qual, esperamos, sejam agraciadas, com o justo reconhecimento da

contemporaneidade, a memória e a obra de Gastão Luis Cruls.

A propósito, quando iniciamos nossa monografia para o curso de Letras da

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, a UEMS, pretendíamos escrever um estudo

interpretativo sobre as mensagens de O pequeno príncipe de Antoine de Saint’Exupéry

(1998). Já havíamos, inclusive, recolhido alguns materiais, como livros e imagens

audiovisuais, que nos permitiriam desenvolver um breve estudo sobre essa obra francesa.

Mas o destino nos trouxe Gastão Cruls. E foi mesmo pura sorte. Desde o dia em que a

Profa. Dra. Maria Helena de Queiroz, nossa orientadora para aquela monografia, deu-nos o

38
nome e as primeiras folhas sobre o escritor, pudemos empreender uma busca que assumiu

desafios importantes.

Por ser um nome praticamente desconhecido, tivemos alguns transtornos no correr do

processo de rastreamento do autor e de sua obra. Ainda bem. Graças às pedras do caminho,

ganhamos novas amizades e descobrimos novas fontes de informação. Os contatos com a

Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro e com as unidades da UNESP de Assis e Marília nos

proporcionaram uma experiência ímpar, além dos momentos inesquecíveis junto a professores

e colegas acadêmicos, todos sensibilizados com aquela pesquisa que aqui continua e, por isso

mesmo, são co-autores deste trabalho.

À luz da Providência, designaram-se as responsabilidades, renovou-se a esperança e a

recompensa aconteceu. Em todas as etapas desta Dissertação recusou-se a alternativa do

fracasso. Acreditamos sempre. Essa reflexão, e os ensinamentos apreendidos ao longo dos

quatro anos do Curso de Letras de Cassilândia-MS; as tantas lições que estão a inspirar e o

apoio, o incentivo, o entusiasmo recebido dos professores que formaram nossa Banca

Examinadora no Processo de Seleção pelo Programa de Pós-Graduação em nível de Mestrado

da UNESP, na área de Estudos Literários, Campus de Araraquara; e também da parte dos

professores das seis Disciplinas que estudamos, especialmente da parte de nossa orientadora

 a Profa. Dra. Maria Clara Bonetti Paro, nos encorajam a continuar e ter, por insígnia da

continuidade, a vontade inamovível de aprender.

...

39
Situando o autor

A obra crulsiana há muito esgotada pelo primor com que a lógica e a arte nela foram

aditadas contempla, de forma especial, as singularidades da Amazônia brasileira e o vínculo

natal entre o autor e a cidade do Rio de Janeiro. A história, a literatura, a medicina, a

geografia, a economia, o paisagismo – ciências humanas e exatas – são, em Gastão Cruls,

equacionadas de modo a gerar arte e fantasia concreta. Medida por medida e à luz da crítica,

entendemos este trabalho justificado pelo ato mantenedor e remissivo que lhe é premissa

maior: fundamento indispensável a qualquer estudo que pretenda resgatar e externar valores,

principalmente, se entre esses valores está um Gastão Cruls.

Tal como escreveu o crítico Silva Melo (1959)3, em Recordações de Gastão Cruls, é

impossível “falar do grande escritor, do notável literato e historiador” (p. 364) sem colocar em

relevo as “qualidades de caráter, de sensibilidade e de inteligência” do “homem”, do “amigo”

e do “companheiro” (p. 365) Gastão Cruls.

Ainda de acordo com Melo, até mesmo com relação às letras, foram a “honestidade”, a

“compreensão” e a “perspicácia” (p. 365) os predicados que mais o caracterizaram. Gastão

Cruls era “o padrão de homem leal que primava pelo corretismo e pela dignidade”. Refugiado

na literatura, o cientista deu vazão “ao seu temperamento excessivamente introvertido” (p.

365), complexo, e por vezes em conflito com a própria personalidade, superficialmente

equilibrada, harmônica, mas agitada no íntimo.

Por tudo isso, conforme Silva Melo, necessário era escolher criteriosamente os amigos

e os lugares que lhe fossem cúmplices. Pensando nas palavras de S. Melo, quando nos conta

da intimidade do artista, podemos dizer que Cruls era o bom jardineiro: cultivava plantas de

folhas e de flores, e, das flores, amava as orquídeas. Gostava também de animais silvestres

(particularmente dos pássaros cantores) e de crianças. Como continua Silva Melo, o escritor
3
Pelos mesmos motivos explicados à introdução do “Capítulo 3”, a paginação dos textos sobre a biobibliografia
crulsiana, neste tópico, segue segundo a localização desses textos na “Antologia da fortuna crítica de Gastão
Cruls”, no “Volume 2”.

40
apreciava longas conversas ao telefone e, no alto da Boa Vista – seu cantinho arrebatador –

degustava aperitivos e pitava cigarros, aliás, as piteiras lhe eram muito caras e exemplares

magníficos para um presente que se queria estimado. Quanto à sua estrurura, era, nas palavras

de Silva Melo, “alto, magro, ereto, sem qualquer tendência para a obesidade” (p. 366).

“Possuía pernas longas” (p. 366) e os passos rápidos, que, conforme entendemos, mais lhe

asseveravam o aspecto, segundo Melo, “casmurro” (p. 366)  quase puritano, na visão do

público.

Na verdade, em Gastão Cruls encontra-se o homem sério – transcendente de cultura

milenar – conjugado num tempo verbal modalizado pelo humor e regido pela ironia suave e

cheia de alento, seca ou amanteigada (a depender do momento), mas, invariavelmente capaz

de auto-suster-se. Conforme nos informa Silva Melo, o “Lido”, em Copacabana, era o cantão

das madrugadas – a pupila da hora do vinho, da cervejinha gelada, dos petiscos, da boemia.

Era mais que a própria casa, era um segundo lar. Sempre em companhia de Miguel Osório e

do próprio Silva Melo, Gastão Cruls excursionava por longas caminhadas a pé – coisa mesmo

de levar aos limites da exaustão – mas que lhe davam, além do prazer, um de seus

passatempos favoritos.

Existe ainda hoje, no Rio de Janeiro, uma casa que fora o lugar de algumas das

melhores inteligências do país: Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Manuel Bandeira,

Cândido Portinari, Aníbal Freire, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, João Olympio, entre

outros. Mantido pelo Rio Arte e localizado na Rua Rumânia, 20, Laranjeiras 4, o imóvel, a que

fizemos menção, conserva o estilo neocolonial da cultura fluminense e oferece, aos propósitos

desta pesquisa, o nome de outro morador: Gastão Luis Cruls.

Em 04 de maio de 1888, nasceu Gastão Luis Cruls, filho de Luís Cruls, cientista belga,

matemático e astrônomo trabalhando no Brasil a convite do Imperador D. Pedro II, e de Dona

Maria de Oliveira, mulher de vida simples, humilde e recatada.


4
Tel: (0XX21) 2265-9960.

41
Conforme Raimundo de Meneses (1956), na cidade do Rio de Janeiro, àquela época

Distrito Federal, Gastão Cruls iniciou-se nos estudos às vias do Colégio Ruch, no antigo

morro do Castelo, de onde transferiu-se, ao tempo do Ginásio, para Petrópolis. Parece que

gostava de mudanças: tornou a transferir-se primeiro para o São Vicente e depois para o

Colégio Pedro II. Desejando atender aos desejos do pai, diplomou-se médico em 1910. Ainda

na Universidade assistiu o professor Miguel Couto, especializou-se em Medicina Sanitária e,

exercendo função no Serviço de Saneamento Rural, participou da expedição às Guianas com

o Marechal Cândido Mariano Rondon. Ao voltar, dedicou-se à literatura e tomou posto de

bibliotecário da Universidade do Distrito Federal, sendo nomeado Chefe dos Serviços de

Biblioteca da Secretaria da Educação, responsabilidade que desempenhou até aposentar-se.

Todavia, segundo lemos da crítica, é a relação do médico com o paciente o conteúdo

material para as suas primeiras estórias. Segundo Meneses (1956), o interesse pelo veio

literário fê-lo aproximar-se de escritores como Antônio Torres, Gilberto Amado, Monteiro

Lobato e Miguel Osório de Almeida. Particularmente do primeiro, sobre quem, depois de sua

morte, lançou Antônio Torres e seus amigos (1950), privou preciosa e frutífera amizade, como

nos revelam algumas cartas de Torres a Gastão Cruls, compendiadas no “Volume 2”. Por esse

tempo, de primeiros contatos com a literatura, no ano de 1917, Gastão Cruls, sob o

pseudônimo de Sergio Spinola, publicou os seus primeiros contos na “Revista do Brasil”,

então dirigida por Monteiro Lobato, e, depois, com outros, agora sob o seu próprio nome,

republicou-os no volume Coivara (1920).

Conforme nota da editora à edição de Quatro romances (1958), Cruls viveu os anos de

1921 e 1922 na Paraíba do Norte, como membro da Comissão de Saneamento Rural, chefiada

por Acácio Pires. Por essa ocasião, oportunou-lhe observar os cenários nordestinos incluídos

em seu segundo livro de contos Ao embalo da rede (1923). Logo depois, destacou-se como o

primeiro grande intérprete da Amazônia: antes de conhecê-la publicou A Amazônia misteriosa

42
(1925), em que a descreve por nuanças reais como se nela houvesse estado. Mais tarde, após

visitá-la, lançou A Amazônia que eu vi (1930) e, post scriptum, Hiléia amazônica (1944).

Entre 1931 e 1938, dedica-se quase que exclusivamente ao “Boletim de Ariel” (revista

biobibliográfica de que foi diretor). De acordo com o que ainda nos reporta Silva Melo

(1959), a Gastão Cruls, ouvidor mordaz, não escapava frase alguma  era, quase sempre, o

campeão nos torneios de “perspicácia” (p. 370); e fazia das palavras esdrúxulas e daquelas

perguntas absurdas material para pilhéria e interpretações “homéricas” (p. 372), como aquelas

da “língua tátá” (p. 372) em que os amigos interpelavam a vítima, deixando-a numa situação

flagrantemente embaraçosa.

As viagens pelo Norte e Nordeste foram, por sua vez, cruciais ao delineamento do

perfil do escritor Cruls. As anedotas, as lendas indígenas e caboclas, as particularidades

européias, as rememorizações dos feitos do jovem Conde de Nassau deram a Cruls um estilo

inédito, sui generis, não contemporâneo de seu tempo e, talvez, também por causa disso, seja

explicável uma certa apatia da crítica frente a sua produção literária.

Crítica e críticos à parte, fervilhavam em Gastão Cruls a caricatura austera e a

caramunha graciosa. Era inventivo e aventureiro. Era um sonhador. E tinha um conceito

muito particular sobre amizade. Seu espírito brincalhão, entretanto, não instavam ofensas, e

nem a picardia maliciosa ou irônica acarretava qualquer “revolta ou aborrecimentos” (p. 373).

Infelizmente, conforme nos noticia Silva Melo (1959), tanta “alegria pelo viver” (p.

376) veio-lhe a ser freada. Durante dois anos, continua S. Melo, uma enfermidade entristeceu-

lhe a alma e o semblante, até esvanecer-se rumo a outros paraísos, que não a Amazônia e o

Rio de Janeiro. Quando fora estudante de medicina (recorda o amigo Silva Melo) sofrera de

uma neurastenia. Ironia do destino, ou não, a mesma enfermidade volta ao paciente tantos

anos depois e com enorme gravidade. O mais irônico, de acordo com S. Melo, é que estava

praticamente recuperado quando surge uma infecção das vias urinárias: era a sua sentença de

43
morte, ditada por uma intervenção cirúrgica, executada sob um dos termos técnicos que tanto

conhecia  “a uremia” (p. 377).

Sem dúvida, uma lástima constrangedora do destino, que não lhe permitiu terminar

Angra (que seria, segundo Silva Melo, um de seus melhores livros) e Glória, outro livro sobre

a Amazônia. Mas, esse mesmo destino, de modo algum foi capaz de ofuscar o talento, a

competência, o carisma e todos os demais primores que compõem a obra do artista Gastão

Luis Cruls.

...

44
Escopo Teórico e Metodológico

O verdadeiro mediador é a própria arte.


Falar de arte significa querer servir de mediador
ao mediador; apesar de isto ser um modo limitado
de experimentar o conteúdo artístico, muitas
maravilhas nos têm sido dadas.
 GOETHE

O estudo de natureza científica, qualquer que seja ele, obriga o autor,

metodologicamente, a recorrer a conceituações, classificações e outros elementos teóricos de

procedência sempre numerosa, apesar de se restringir o objeto de estudo a um campo

limitado. O presente estudo não poderia ser diferente. Contudo, para atender o critério

objetividade, foram dele escoimadas eventuais considerações conflitivas com os fundamentos

que escolhemos como suporte teórico para nossas reflexões. Assim, ainda que tantos outros

conceitos tenham prestado inestimáveis ganhos à realização deste trabalho, os fundamentos

que escolhemos estarão amalgamados por uma concepção ampla e geral, e dois deles já aqui

enunciados, a fim de dar conta ao leitor do percurso teórico perseguido para essa nova leitura

dos textos de Cruls.

Pois bem, abordando a obra crulsiana sob a ótica da questão narrativa, e pensando em

um narrador que seja um novo artesão  um homo faber capaz de sentir e expressar a

experiência coletiva com um diferencial não apenas tecnicista, nos encontraremos diante de

dois domínios preferenciais:

O domínio da Narrativa Fantástica:

Assim como Durand (2001), entre outras palavras, que dedicou um capítulo inteiro de

seu livro Estruturas antropológicas do imaginário à narrativa “Fantástica transcendental”,

também nós, se transcendermos para o real ou surreal da vida, quem sabe poderemos nos

45
sentir como o Nerval que desce ao inferno em Aurélia. Uma descida que desceríamos

agarrados aos textos-catafalco ou de procissão rumo ao mundo sem Deus descrito nas

narrativas fantásticas, tomando carona com E. T. A. Hoffmann, E. A. Poe, H. P. Lovecraft e

outros escritores clássicos da literatura fantástica; isso, para não mencionar o triângulo

equilátero da poesia francesa: Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé.

O avatar que nos motiva mais fortemente nesse mergulho é a leitura do romance A

Amazônia misteriosa, de Cruls, obra essa que contém diversos índices de narrativa fantástica

como, por exemplo, o episódio “Revelação”, analisado em nossa sessão “Lendo a Herança

Encontrada” a propósito de uma abordagem comparatista com o romance The island of doctor

Moreau, de Wells; este, na versão de Monteiro Lobato: A ilha das almas selvagens.

Percorrendo um caminho estruturado por T. Todorov (1975) e que chega a tantos

outros articuladores do conceito de “narrativa fantástica”, tal como se pode ver à bibliografia,

foram contatados diversos temas não necessariamente exclusivos do fantástico, ligados, por

exemplo, ao roman noir, ao realismo-mágico e à ficção científica. De toda sorte, o efeito

surpresa, a oscilação entre extremos como a fé e a incredulidade, a atmosfera de temeridade

do além e da nebulosidade do real, a deformação espaço-temporal e a constante incerteza

quanto ao dia de amanhã e quanto ao desconhecido,  efeitos recorrentes no drama crulsiano,

nos parecem motivos suficientes para justificar a afinidade entre a composição de narrativa

fantástica e o leitor, sendo o leitor pensado como um habitante desse nosso mundo, essa

(su)posta realidade verificável.

Consideradas as metamorfoses do fantástico na primeira parte do século XX,

fortemente renovado com a psicanálise (um dos campos preferidos de Cruls) e o surrealismo,

temas como a noite, a morte, o estranho, a natureza, o vampiro, o lobisomem, a viúva negra,

adquirem novos desdobramentos. Um exemplo pode ser verificado na passagem de

“Revelação” d’Amazônia misteriosa, de Cruls. Uma narrativa começa com: “Visão horrífica e

46
atraente, que a um só tempo despertava sentimentos de piedade, revolta e nojo” (1958, p.

104). Apesar desse começo extremamente realista, nota-se que a narrativa vai se

transformando, beira à metamorfose e evolui para um estágio naturalista até chegar ao espaço

negro e ao tempo esfumado: hei-nos no fantástico. Da atmosfera de roman noir (o laboratório

cemiterial do Dr. Hartmann n’A Amazônia misteriosa), pois, esvaecemos para o mundo dos

morto-vivos (tecidos e fibras revivificados).

A exemplo da Aurélia, de Nerval, que comporta uma antecipação das Iluminações, de

Rimbaud, a Amazônia misteriosa projeta a narrativa de uma aventura sem volta, uma descida,

de verdade, ao inferno, povoado de demônios da cabala, da alquimia e da obscuridade, que

tanto aproximam Cruls de Nerval, de Mallarmé e de Lautréamont. Assim, para pisar a soleira

do inferno de Cruls, basta a projeção de uma narrativa realista para a simbolista

“reminiscência de certo capricho de Montezuma, que colecionava monstros humanos”

(CRULS, 1958, p. 104). Uma projeção, aliás, similar à passagem de uma narrativa romântica

a uma narrativa mais simbolista n’A morta, de Guy de Maupassant.

A narrativa fantástica de Cruls, em que a linguagem maleável e contrastiva engendra

os movimentos líricos da alma, do esfumato do devaneio e da loucura, e dos sobressaltos da

consciência, é a fuga de uma realidade seca, que não pode ser vivida sem um pouco de

harmonia, como aquela que Baudelaire realiza em seus Pequenos poemas em prosa. Nesse

mundo de romantismo, de realismo-naturalismo, de simbolismo e de surrealismo; da vida no

seio da morte, estamos cada um de nós. Com efeito, em um universo tão familiar, ninguém

precisa hesitar em morrer. Só para combinar com o poema de Hoeldërlin, transcrito em nosso

“Capítulo 2”: também a morte só se vive uma vez, apesar de a vermos, tantas vezes na vida,

passando tão perto de nós. Mas há, ainda, muitas linhas para escrever...

...

47
O domínio da História e o domínio da Ficção:

O mundo do homem é o mundo do sentido. Tolera a


ambigüidade, a contradição, a loucura ou a confusão,
não a carência de sentido.
 Otavio Paz (O Arco e a Lira)

De fato, há na modernidade uma função ideológica representada pela cisão entre o eu e

o mundo; entre a realização pessoal e a funcionalidade do sistema racional burguês. Isso,

nessa sociedade de classes, estabelece o conflito das diferenças sociais e desencadeia o

enfrentamento pela reação entre os valores antagônicos da matéria e do espírito,  o que

acarreta a ironia no plano da linguagem e as punições no nível da conseqüência do discurso.

Por outro lado, pensando no movimento de busca, de procura da harmonia

homem/mundo, idealizado pela forma do romance, reportamos Lukács (1965) quando afirma

que a forma literária pode conter a manifestação de determinada estrutura social, pois que, à

medida que o romance apresenta-se sob o signo da multiplicidade étnica e lingüística, sua

forma passa a representar ou a conter aspectos das estruturas sociais, quer na relação entre os

grupos quer na relação de um todo histórico com outro.

Na epopéia, o conteúdo sociológico era moldado de forma a caber em uma estrutura

pré-concebida, e a arte, na antiguidade clássica, era um produto daquelas “civilizações

fechadas”. De acordo com Lukács (apud ANTUNES, 1998), há uma estrutura econômica que

precede as estruturas sociais históricas. Na Grécia épica, por exemplo, foi o caos econômico

decorrente do imperialismo romano o responsável pela implosão de suas estruturas sócio-

históricas. O herói grego,  que era o grego típico representante de todos os gregos, vê-se

então incapaz de superar o fado da tragédia. Aí, reside o poder do mito sobre os antigos.

De toda sorte, os valores mantidos pelas armas da retórica e pelo escudo da reflexão

são os valores a serem buscados, retomados pelo herói romântico anterior aos fenômenos da

urbanização e industrialização da sociedade.

48
Logo, o como da mimese no romance é que vai externar quais valores estão sendo

buscados, e por que via, se pela crítica, se pela sugestão. A confluência dos elementos desses

discursos mostrará que funitivos concorrem (no texto) no trânsito sócio-histórico a qualquer

época, e, claro, no trânsito que nos diz respeito: o da contemporaneidade. Nesta, a sangria da

epopéia poética mereja na epopéia da prosa do romance moderno, conforme descreve Hegel

na Estética: o belo artístico ou o ideal.

Lukács (1965), ao escolher o romance histórico de Balzac para objeto de sua análise,

tinha por objetivo revelar a sujeição ideológica e as marcas do determinismo histórico-social,

condições às quais qualquer atividade produtora está sujeita, inclusive a atividade produtora

da realidade literária. Com esse intuito, o crítico Lukács interpreta alguns referenciais

marxistas e dirá que a presença da história no romance intervém na elaboração das

perspectivas estéticas. Com efeito, pensando no ficcional, segundo uma percepção

aristotélica, o romance, enquanto forma de um conhecimento universal, precisa passar pela

mimese da práxis, ou seja, sua narrativa precisa representar a ação humana. Assim, como

analisa Hutcheon (1991), nesse campo envolvendo a história e a ficção, a intertextualidade é o

cenário real no qual se desenvolvem os acontecimentos, quer por verossimilhança na ficção

historicamente condicionada; quer por verossimilhança também na história discursivamente

estruturada.

Outros desdobramentos poderiam ser aqui contemplados, mas essas teorias serão

rediscutidas na análise desenvolvida em “O romance A Amazônia misteriosa e o diário A

Amazônia que eu vi:...”,  análise também situada na sessão “Lendo a Herança Encontrada”

deste trabalho.

O campo do imaginário, por sua vez, com textos de Gaston Bachelard, Mircea Eliade e

Gilbert Durand, entre outros, nos permitiu amalgamar conceitos tanto da história quanto da

ficção, junto ao conceito sócio-antropológico. E fizemos essa opção para compactar uma parte

49
de nossa análise parcialmente citada no parágrafo anterior e que emendamos agora: “... entre a

história e a ficção”.

Enfim, lendo a Amazônia de Cruls, um sem número de símbolos, de transposições e de

metáforas surge na letra de um sinal comum e, ao mesmo tempo, também de uma senha –

configurando as pistas que o autor deixa na obra para reconhecimento da “coisa”, como diria

Jean-Paul Weber. Dessarte, com essas leituras e associações pode-se dizer que a noite,

enquanto símbolo da escuridão do raciocínio, não está mais tão escura. Mas, talvez, ainda

continue polêmica.

...

Sobrepondo-se a esses conceitos, propomos uma abordagem ampla e geral da

biobibliografia de Gastão Luis Cruls, orientada pela Estética da Recepção: primeiro

apresentamos um escritor desconhecido do público leitor contemporâneo, depois

demonstramos como o autor foi lido nos diferentes contextos histórico-literários pelos quais

sua obra se estende.

Com efeito, para o estudo (na forma de diálogo) da fortuna crítica de Gastão Cruls,

dois trabalhos, entre outros, foram particularmente importantes: “A recepção crítica de

Álvares de Azevedo”, Dissertação de Mestrado de Mayra Angélica Pandolfi, que nos foi

sugerida pela autora de Frestas e Arestas  a Profa. Dra. Karin Volobuef; e a “Fortuna

crítica comentada de Guilherme de Almeida”, Dissertação de Mestrado da Profa. Dra. Maria

Helena de Queiroz, nossa orientadora na graduação para a monografia “Gastão Luis Cruls:

uma fortuna crítica inicial”. Inclusive, o trabalho de Maria H. de Queiroz serviu de

bibliografia de apoio também a então mestranda Mayra A. Pandolfi. Outro trabalho que

também merece destaque é a Dissertação de Mestrado “Mas este livro não passa de um

romance... ficção, história e identidade em dois romances de Márcio Souza”, de José Alonso

Torres Freire. Essa dissertação e algumas ilustrações sobre o romance A selva, de Ferreira de

50
Castro, nos foram indicadas pela Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi. A seguir, com a

descoberta da Dissertação de Pedro Maligo e de uma compilação parcial da fortuna crítica de

Gastão Cruls por Thereza Freire Vieira, publicada pela “Publicom”,  substanciou-se nosso

referencial para a construção desta Dissertação de Mestrado em dois volumes: “Gastão Luis

Cruls: uma nova recepção”; “Gastão Cruls e seus críticos”.

  A idéia de juntar a recepção crítica de Cruls, dispersa em livros e periódicos desde o

primeiro quarto do século XX, deveu-se não só à afinidade com o escritor pela nossa confessa

identificação com a região amazônica  brilhantemente contada e retratada pelo autor, mas,

principalmente, devido a caracteres muito particulares e inerentes ao estilo de Cruls (como,

por exemplo, a diversidade de seus temas) e à sua evidente ausência do atual cenário da

literatura brasileira.

Face essa desconcertada disforia entre o que se diz do escritor e sua obra, e o silêncio

que os encobrem na contemporaneidade, torna-se importante, se não indispensável, a missão

de reunir sua recepção crítica, tarefa ainda não realizada e cujo trabalho poderá simplificar o

acesso a informações de natureza múltipla sobre a produção crulsiana, para outros

pesquisadores que certamente virão.

A conferir, consideramos neste trabalho a hipótese de que quem recebe faz, lendo e

interpretando, a fortuna da obra. Assim, a isso se reporta o conceito de literatura adotado por

Antonio Cândido em Formação da literatura brasileira (1975), qual seja, a literatura

entendida como sistema, distinguindo manifestação literária de literatura. Para Cândido, a

literatura é um sistema de obras ligadas por índices comuns, isto é:

(a) existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos


conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes
tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor
(de modo geral, uma linguagem traduzida em estilos) que liga uns a outros
(CÂNDIDO, 1975, v. 1, p. 23).

51
É importante destacar o “conjunto de receptores” mencionado por Cândido, lembrando

que o panorama histórico da literatura de fins da década de cinqüenta, quando ele publica a

Formação pela primeira vez, e começos da década de sessenta,  caracteriza-se pelos

estudos que tendiam a decompor a estética literária no plano restritivo da linguagem5,

reduzindo-a e ignorando o elemento histórico-cultural na análise da literatura. É nesse

momento que a “Estética da Recepção” aparece na Alemanha como proposta de reavaliação

dos estudos literários, a fim de resgatar a historicidade da literatura a partir da construção do

processo de recepção da arte literária, em contextos históricos diferenciados, concebendo a

literatura enquanto produção, recepção e comunicação. Para a Estética da Recepção, o “centro

das atenções” nos estudos literários é a recuperação, a reiteração “das vozes” das experiências

do “conjunto de receptores”.

Aos alemães Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser coube apresentar, pela primeira vez,

os princípios fundamentais da Estética da Recepção. Estes princípios  apresentados na

Universidade de Constança, Alemanha, em 1967, e reformulados (LIMA, 1979) parcialmente

por Jauss em 1976/77  forneceram subsídios a Hans-George Gadamer que, em sua obra

Verdade e método (1961), indicava a possibilidade de lastrear a hermenêutica sob nova

direção, na esteira da história dos efeitos:

H. G. Gadamer refere-se à consciência da história dos efeitos, que dá conta


do impacto dos eventos passados [históricos] sobre o presente e confunde-se
à tradição. H. R. Jauss transporta-se à hermenêutica literária que, na etapa de
aplicação, registra o impacto de uma obra sobre o público leitor e o sistema
literário (ZILBERMAN, 1989, p. 113).

A despeito das diferenças entre os principais teóricos da escola alemã, a principal

contribuição do Colégio de Constança foi o deslocamento, para termos de análise, do centro

de gravidade dos estudos literários, da relação da obra com o seu autor, para a relação dela

com o seu leitor – importando saber que efeitos a arte tenciona provocar no interpretante; isto
5
Linguagem de alguma maneira convencionalizada.

52
é, que leituras podem ser depreendidas do objeto-texto no correr do tempo. Tais efeitos

amalgamados e esquadrinhados, na estrutura temática e formal da obra, permitem, aos

recepcionalistas, esconjurar o espectro do subjetivismo ou impressionismo; feito esse já

anteriormente alcançado pelos formalistas, como reconhece Jauss (LIMA, 1979), mas que

surge agora em um horizonte histórico naturalmente mais amplo, em que a estética e a

historicidade da organização literária são contextualizadas. Esse objetivo, ao lado do

testemunho da crítica literária colhido pelo método tradicional de fortuna crítica, por cuja via

pode-se mapear o trânsito histórico da recepção da obra por parte do crítico, implica, talvez,

em uma “dialética do esclarecimento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) necessária à

compreensão das diversas impressões externadas pela obra através da relação autor/leitor

virtual e repercutidas por seus leitores reais, os mais diversos. É o que Iser (LIMA, 1979)

chama de “estrutura de apelo da obra”. Um nome que, não por acaso, nos remete a Kenneth

Burke.

Burke (CAMPOS, 1976), um dos mestres do New criticism, oferecia já em 1931, no

seu ensaio “Psicologia e Forma”, alguns princípios referentes ao que ele denominou “atrativo

da literatura”. Esse atrativo, postulando neste trabalho a empatia como elemento catalisador,

engendra o emoldurado que retém o efeito produzido pelo autor e as maneiras de efeito

recebidas pelo leitor; considerando o fenômeno literário como uma estrutura modelizante que

influencia autores e leitores.

Segundo Campos (1976), K. Burke em Counter-Statement (1952) (ou Réplica,

conforme a tradução de José Paulo Paes) apresenta uma teoria da forma literária, cuja energia

é capaz de instaurar e apreender significados (efeitos), suscitar e satisfazer desejos  uma

força que, na estrutura artística, se move do conteúdo para a expressão e da expressão para o

conteúdo, reciprocamente. Essa definição, ampliada no ensaio “Lexicon Rhetoricae”, deslinda

a primeira, editada em “Psicologia e Forma”, e que consistia em um retrato da expectativa do

53
leitor, posto diante dele no ato de leitura. Com efeito, a definição ampliada de Burke  uma

revelação, instantânea ou não, é a forma da narrativa que mostra, é verdade, o autor como

aquele que manobra inclusive as expectativas do leitor; já não se trata, pois, de um retrato,

mas de um filme, da projeção de uma relação iterativa entre o texto e o leitor. Porém, também

essa definição mostra brechas significativas.

Estas brechas, abertas durante o caminho de volta, ou seja, durante o retorno do efeito

ativo para o efeito contemplativo, no processo de interlocução leitor e texto, e das quais não

se ocupa Burke, levarão, conforme Campos (1976), Max Bense (quatro anos depois do

“Lexicon Rhetoricae”) a interpretar em Racionalismo e sensibilidade (1956) a satisfação do

interpretante como causalidade digna da atenção do crítico, sobretudo, considerando, nessa

provável inovação do estatuto crítico, um modo de ver não o efeito produzido ou o efeito

revidado, mas o efeito da leitura, sendo ela a câmara dos efeitos entre o texto e seu anteparo

(o leitor). Amparado nessas considerações, o crítico concluirá em dois dos seus próximos

ensaios que

(r)ealmente, não se pode, ao mesmo tempo, “reivindicar a arte moderna e


proporcionar análises regressivas”, porque a “arte moderna é a que menos suporta
um atraso da linguagem e do pensamento na sua interpretação e na sua crítica”
(Aesthetica II); da mesma forma, “é impossível uma criação regressiva, a criação só
pode ser progressiva, uma vez que a inovação pertence à sua essência” (Das
Existenzproblem der Kunst) (BENSE apud CAMPOS, 1976, p. 13).

Esclarece-se, então, um possível pioneirismo de Kenneth Burke, ao menos na

simulação de certos princípios caros à hermenêutica e, mais propriamente, à experiência

estética. Trata-se de fundamentos aos quais se filiam os principais teóricos da estética da

recepção e que Burke, Bense e Jauss propagam a partir de um refletor comum: Immanuel

Kant.

Se, por um lado, Jauss desenvolve sua teoria da recepção estética a partir da prenoção6

de leitor ideal, Gumbrecht (LIMA, 1979) atrela a esse ponto considerações sobre a resposta
6
Termo aventado da preciência de Freud.

54
literária proporcionada pelas diferenças sociais; diferenças não levadas em conta por Jauss.

No entanto, em favor dessa posição, Gumbrecht abandona os conceitos já defendidos por

Jauss quanto à experienciação estética iniciada por Kant. A esse contexto virá somar-se a

importante contribuição de Iser, quando, interpretando o processo das interações humanas de

forma análoga ao processo de leitura do texto ficcional, releva a necessidade de o leitor sair

do lugar comum se quiser vivenciar o efeito (wirkung) que a obra causa.

Inaugura-se, então, o processo “hermenêutico” de articulação dos elementos

interpretativos. Mas essa articulação, contudo, implica também um leitor implícito que, pela

auto-regulação da estrutura da obra artística, pressupõe-se seja um leitor ideal. Nesse

momento o ensaio de Stierle sobre a recepção do texto ficcional, apesar de haver sofrido

fortes contestações (LIMA, 1979), acrescenta uma novidade em relação a Iser: na esteira da

recepção, considerando as diferenças sociais do receptor, Stierle chama a atenção para as

possibilidades problematizadoras da questão de tomada de consciência do estético e do social.

É preciso acrescentar que, sem essas referências, entendidas como complementares

uma da outra, seria impossível aniquilar, conforme observa Luiz Costa Lima (1979), o

pessimismo impregnado ou o “culto do negativismo”, atestado por Adorno e os estruturalistas

em geral, baseando-se nos mecanismos de fomento da leitura do texto literário na sociedade

industrial capitalista, em substituição à sociedade feudo-clerical. Importante destacar, ainda,

que o texto literário esteve a clamar por novas formas de leitura crítica, não só a partir de

meados do século XX, como daí se expandem, mas desde o fim da Era Clássica em fins do

século XVIII. Outrossim, passagens que destoam da literatura fechada nos universos greco-

romano e judaico-persa são literaturas que merecem, igualmente, serem redescobertas, a fim

de que fundamentos ainda não lidos sejam manifestos.

Logo, acudindo o critério de rastreamento da recepção crítica do texto literário e o

critério de verificação dos efeitos nele já internalizados, o analista que recorre aos

55
fundamentos da estética da recepção pode reconstituir o que H. R. Jauss chamou de

“horizonte de expectativa”. O fundador da estética recepcional, Hans Robert Jauss,

juntamente com Iser, Stierle e Gumbrecht, compreende a declinação do estruturalismo e do

método histórico como modelos de análise do texto, propondo reescrever a história da

literatura através de um modelo novo, construído a partir do intercâmbio

sincrônico/diacrônico, entre as obras literárias e os leitores seus contemporâneos ou pósteros.

Esse modelo caracteriza a interpretação como a arte de recriar, ao que Wolff, lendo

contrapontos de Hirsch e Gadamer assinala:

Uma sociologia da literatura em geral incorporaria, é claro, o significado


original (e sua construção), a mediação desse significado através de, por
exemplo, uma série de críticos, e o significado atribuído à obra por qualquer
leitor novo, bem como as inter-relações entre tais aspectos (WOLFF, 1982,
p. 116).

Então, Janet Wolff refere-se à estética da recepção como um modo de socializar o

texto literário. Com efeito, enquanto na Alemanha se divulgavam os princípios dessa nova

forma de compreensão da literariedade, no Brasil, Haroldo de Campos (1975) propunha um

modo de revisitação do cânone da literatura brasileira, mediado pelo olhar de sincronia  de

devir no tempo e no espaço, com as premissas de valorização da obra e resgate da memória

literária do autor. Tal princípio nos dá uma imagem perfeita da provocação de Jauss à teoria

literária:

De tudo isso, conclui-se que se deve buscar a contribuição específica da


literatura para a vida social precisamente onde a literatura não se esgota na
função de uma arte da representação. Focalizando-se aqueles momentos de
sua história nos quais obras literárias provocaram a derrocada de tabus da
moral dominante ou ofereceram ao leitor novas soluções para a casuística
moral de sua práxis de vida  soluções estas que, posteriormente, puderam
ser sancionadas pela sociedade graças ao voto da totalidade dos leitores ,
estar-se-á abrindo ao historiador da literatura um campo de pesquisa ainda
pouco explorado. O abismo entre literatura e história, entre o conhecimento
estético e o histórico, faz-se superável quando a história da literatura não se
limita simplesmente a, mais uma vez, descrever o processo da história geral
conforme esse processo se delineia em suas obras, mas quando, no curso da

56
“evolução literária”, ela revela aquela função verdadeiramente constitutiva
da sociedade que coube à literatura, concorrendo com as outras artes e forças
sociais, na emancipação do homem de seus laços naturais, religiosos e
sociais.
Se, em função dessa tarefa, vale a pena ao estudioso da literatura superar sua
postura a-histórica, aí se encontrará também uma resposta à questão acerca
de com que finalidade e com que direito pode-se ainda hoje  ou
novamente hoje  estudar a história da literatura (JAUSS, 1994, p. 57).

Por nossa vez, e buscando a distância necessária pertinente ao crítico, pretendemos

mostrar-nos um expectador-participante ou mais um receptor ativo que vê, cooperadas, as

relações de motivação estética e de consciência do real.

Na análise de nosso material priorizamos o diálogo com artigos, ensaios, referências e

correspondências, uma vez que são essas fontes que veiculam a discussão sobre a arte literária

de Cruls. Para efeito de organização, optamos por tratá-las em separado e paralelas à

“Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls”  esta, compendiada no “Volume 2”. Assim,

as referidas fontes são tratadas no “Capítulo 3”, sob o título “Diálogo com a Recepção de

Gastão Luis Cruls na crítica brasileira de 1933 aos dias de hoje”, deste “Volume 1”. Além

disso, desenvolvemos duas análises sobre a narrativa crulsiana, nos “Capítulos 4 e 5”, ainda

neste volume.

A propósito, nossa pesquisa buscou fundamentos na Estética da Recepção, desejando

entender que o contrato literário entre o texto e o leitor envolve particularidades sujeitas ao

“horizonte de expectativas” de ambos; pois, um dos mais importantes objetivos da Estética da

Recepção é justamente a reconstrução desse horizonte de expectativas, que tem, por

finalidade precípua, o esclarecimento das relações da obra com o público em diferentes

circunstâncias da história literária.

Com efeito, a leitura de uma obra literária, às vezes reduzida à esfinge de uma

classificação estética simplesmente cronológica, precisa, aos olhos da contemporaneidade,

contar com uma flexibilidade talvez mais sensível e experiente do crítico entre outros ganhos

57
do pensamento moderno; este, mais dinâmico e fluido (posto que vivemos em uma civilização

aberta) e nunca outra vez, radical  capaz de atinar, sem preconceitos, para as diferentes

leituras que a obra de arte recebeu no devir espaço-tempo.

Iniciando, pois, e considerando que o exercício de discutir o dom criador de um artista

e a análise de até que ponto ele consegue levá-lo a termo em sua obra literária (KOTHE,

1981, p. 11) é uma das competências da crítica, o “Capítulo 1” desta dissertação dedica-se a

analisar o papel que a crítica literária exerce nesse processo, efetivamente, no espaço autoral

de Gastão Cruls.

58
Capítulo 1

A crítica no espaço autoral

Madruga o dia.
O castelo está cercado
De gritos de patos selvagens.
(Kyoroku)

1.1 Considerações Teóricas

Iniciamos nossas reflexões a partir do pressuposto de que a autoria se constrói em um

espaço, e que esse espaço compreende três signos que se movimentam constantemente e que

se comunicam; signos, portanto, que se co-relacionam. São eles: o escritor, o texto e o leitor.

Desse modo, quando nomeamos este capítulo “A crítica no espaço autoral”, pensamos em

dialogar com algumas vozes que discutem o texto literário, sendo, esse texto, a obra realizada

não propriamente pelo escritor, mas por um espaço autoral.

Assim, escritor, texto e leitor são, para nós, arquipensadores responsáveis pela

construção da autoria e as testemunhas argüidas pela crítica. Para melhor ilustrar essa idéia,

toda vez que escrevermos a palavra autor estaremos pensando nos correspondentes do espaço

autoral acima composto. Desse modo, a nomenclatura autor não será exclusividade do

escritor, mas compreenderá também o texto e o leitor. Nesse sentido, pensando em melhor

afirmar nossa proposta para este capítulo, interviremos nessa ordem e estenderemos o campo

da autoria pelos mesmos três pontos de convergência, porém, partindo do texto. Teremos

então a ordem: texto, escritor e leitor.

Isso se faz necessário para marcar nossa posição frente à problemática da autoria, para

mostrar como vemos a discussão desse espaço autoral e como pensamos o processo de

formação do crítico das artes, em particular, da arte literária. Com efeito, quando intervimos
59
na ordem tradicional de compreensão da autoria, não esquecemos o que nos dissera Óscar

Tacca, no capítulo “Autor y Fautor”:

Todo libro pertenece, en principio, a un autor. El es, en primer lugar, quien


da la cara. Asume la palabra, la autoría, el relato. Se identifica, desborda al
narrador. Declara a veces abiertamente: “Laura, Douviers, La Pérouse,
Azaïs... que faire avec tous ces gens-la? Je ne les cherchais point; c’est en
suivant Bernard et Olivier que je les ai trouvés sur ma route. Tant pis pour
moi; désormais, je me dois à eux”7 (TACCA, 1973, p. 35).

Colaborando com Tacca, imprimimos o diálogo do Cruls autor com seu narrador, que

conversa no espaço do discurso ficcional sob vislumbre do tema “Meu sósia”:

Note-se que sempre fui avesso a revelar os meus projetos literários e nem
mesmo aos meus amigos mais íntimos costumo falar no que ando fazendo ou
ainda pretendo escrever. Não será isso, talvez, um traço de modéstia, mas
porque tenho a superstição de que as obras muito anunciadas dificilmente se
realizam, ou quando chegam a ser executadas, nunca correspondem ao que
delas se esperava. Haverá também outra razão. Não sei contar muito bem o
que sempre ganhará quando for definitivamente passado para o papel. Aliás,
Flaubert também sofria desse mal e nada lhe era mais penoso do que
resumir, em conversa, o que seria o entrecho de qualquer de seus romances
(CRULS, 1951, p. 287).

De acordo com essas palavras, de Gide na citação anterior e de Cruls nessa última, os

aspectos culturais que perpassam nossos arquipensadores do espaço autoral ficam a

descoberto. Teremos, nesse caso, um conjunto de valores e sensibilidade humana elevado a

um expoente múltiplo, pois que estamos considerando três os construtores da autoria. De mais

a mais, o mesmo Tacca reconhece no capítulo “La voz y la letra” que:

Como la mónada leibniziana, la obra se cierra sobre sí misma y queda, como


diria Dufrenne, sin ventanas que se abran hacia el mundo ni hacia el autor.
La escritura aparece como un misterio, como una caída o déchéance, como
una inexplicable materialización del milagro, como unas extrañas tablas de
la ley, como una revelación inpenetrable! (TACCA, 1973, p. 129, grifo do
autor).
É por essa razão que a arte resiste a qualquer rival, e nisso consiste o sublime, o

maravilhoso: a arte atravessou os tempos e os temporais da história, os clássicos e o


7
A frase entre aspas é de André Gide.

60
materialismo; seguramente, atravessará a globalização e continuará sendo espelho e conselho

do homem em sua natureza íntima e social, como tem sido do princípio aos nossos dias. A

arte tem o poder indestrutível de envolver, e aí, nessa força-razão de existir por si mesma 

uma vez instaurada a leitura, está sua garantia de vida eterna.

Consideradas as assertivas de Tacca, a natureza das entidades que formam o que

denominamos de espaço autoral se identifica através de dois refletores chamados por Tacca,

respectivamente: o noumenon e o phaenomenon. Noumenon8 para a aura do artista descrita na

citação anterior, e phaenomenon para o realismo escriturário:

Para alejar toda duda, el que narra y escribe acumula precisiones, tan
triviales como el color de la tinta, la clase de papel o el tipo de lámpara que
utiliza. El libro es aquí, pues, el resultado de un acto (intrascendente o
sagrado, según lo entienda el narrador). Entre el acto de escritura y el libro
hay una relación directa, que el narrador pone en evidencia (TACCA, 1973,
p. 118).

Pronto. Hei-nos diante da varinha de condão. E a magia que há em tudo isso é a ilusão

de que a criatura domina o criador e os que com ela tomam contato. Ilusão porque não se trata

de dominar. Isso é a arte inexplicavelmente despertada no íntimo do ser humano, que abrocha

e floresce as flores do bem e do mal no jardim remanescente em nossos sonhos,

reminiscências de nossa lendária estada no paraíso. A arte, esse milagre materializado, que dá

guarida à verdade e à beleza, tem vida própria; não pode ser domada pelo escritor nem

descoberta ao bel prazer do leitor. Ela é a alma do artista que se materializa nas pontas de seus

dedos ou na ponta de sua língua. Nesse ponto, assiste-nos a diferença fundamental entre o

escritor de letras e o escritor de arte: o escritor de letras escreve as palavras; mas, o escritor de

arte deixa as palavras se escreverem.

De fato, o espaço autoral de Gastão Cruls, por exemplo, materializou-se a partir do

fascínio que a leitura de textos sobre a Amazônia e a psique exerceu sobre o escritor enquanto
8
Segundo a filosofia Kantiana, noumenon é o nome de algo que existe por si mesmo. Opõe-se, pois, ao
fenômeno (phaenomenon), que existe a partir de uma reação.

61
leitor. Dessa leitura de inspiração, o homo faber Cruls passou a criar: instala-se, assim, o

espaço autoral de Gastão Cruls, cujo firmamento literário migra para uma nova transleitura da

assunção do artista em seu ato de escrever.

A propósito,

(h)emos dicho, aprovechando una frase de La casa de Mujica Láinez, que la


mitad del milagro narrativo consiste en que algo se haya sabido, y la otra
mitad en que haya sido dicho. En realidad, esta segunda mitad debería a su
vez repartirse por igual entre el milagro de que haya sido dicho y el milagro
de que haya sido escrito (TACCA, 1973, p. 113, grifos do autor).

1.1.1 O leitor e a leitura do texto literário

Não tem senão a sua sombra, senão a sua


inconsciência. Nada a seu lado senão a
indiferença; e, consigo, senão a inverdade.
Matéria feita de sono. 9

Símbolo da referência teórico-literária dos textos há o leitor, desde os tempos da mais

remota literatura, quando esta era ainda apenas solfejada de pai para filho. Esse tempo, que

remonta ao nomadismo dos povos antigos, apresenta-nos, através, por exemplo, de livros

heurísticos da Bíblia como “Crônicas” e “Levítico”, um leitor condicionado. Esse exemplo,

abstraído da história judaica, não é diferente do regime helênico, celeuma dos povos das

areias de cristais brancos, hoje conhecidos como árabes.

Nessa época de pessoas ainda tão distantes da civilização, mas também já longe do

yabadabadoooo da Era da Pedra Lascada, ou, para citar o nome científico, do Período

Paleolítico; o leitor caracterizava-se por render um eterno culto aos mortos. Nesse reduto de

civilizações fechadas, olhar o futuro era proeza de oráculos ou profetas. Dessa forma, se

algum leitor (comum) quisesse olhar as entrelinhas das palavras era visto como o infiel.

9
Versos nossos: uma tentativa de caracterizar o mal-leitor.

62
De onde estamos e olhando para trás, dá para ver o quanto o teísmo foi usado como a

desculpa que vinha sempre a calhar para assegurar a manutenção do dogmatismo,  recurso

de construção e diferenciação das tribos. Porquanto, a simples idéia de ser um leitor mais

arguto era causa de grande comoção naqueles primeiros moinhos de sociedade. Com efeito,

nem tão broncos como os homens das cavernas e nem um pouco reflexivos como podem ser

os leitores contemporâneos, a esses leitores endeusados por Salomão não restava nada além

do auto-silêncio e do eco obrigatório das vozes de seus pais, incansavelmente repetidas no

muro das lamentações, nas peregrinações à Meca, no auto-flagelamento endossado pelas

catedrais, enfim, na alienação preconizada pelo dogmatismo e em tantos outros aguilhões que

impediram por muito tempo uma leitura do mundo e a interação entre os sujeitos leitores,

especialmente quando o promotor dessa leitura e interação era a literatura de ficção.

Cerne de um fenômeno não aprisionado, a obra-prima literária se auto-estrutura, pensa

por si mesma e, como uma hipnose de sujeito oculto, hipnotiza autor e leitor, criando seus

sentidos para a interpretação. Nesse percurso, do tálamo ao ocaso da criação, nasce uma

ubiqüidade que se reproduz sempre que autor ou leitor tentam captar uma palavra em seu

(impossível) significado final. Torna-se, deveras, impraticável uma leitura da ficção, baseada

em uma fórmula irredutível. Quando lemos um texto literário, muitas vezes estamos, na

verdade, sendo lidos por ele; e se quisermos saber o que o texto quer nos dizer precisamos

ouvi-lo. Ora, isso requer de nós o despojamento dos pré-conceitos e da função de dominador,

segundo o “Pentateuco”, função tão inerente ao homem.

Enfim, a palavra é a dominante eterna no curso natural da mensagem artística, em que

o texto é a estratégia em segredo que assegura ao fenômeno literário sua passagem de geração

a geração, sendo capaz de se renovar como a estrela de cada manhã. Onde estará então a

chave capaz de decifrar os enigmas da literatura? Bem, isso nem o escritor o sabe. Mesmo

porque não há enigmas a serem decifrados; há, sim, o trâmite de uma correspondência sócio-

63
interativa entre o texto, a autoria e a leitura, cuja manifestação dispensa o leitor reteso e busca

o leitor abrangente, a fim de entender que texto, autoria e leitura são leitores de uma realidade

ao mesmo tempo material e imaterial. O leitor abrangente seria, então, um leitor de outros

leitores, vivos ou ressuscitados, pelo próximo ato de ler; mais um instrumento do conjunto

artístico, e que repercute, distintamente, cada partitura da obra literária, seja numa primeira

leitura, seja numa releitura.

Infelizmente, ainda hoje, muitas formas redutoras do leitor abrangente continuam

cooperando para manter interesses de uma suposta linhagem de sangue azul, em muitas partes

do mundo. Essa contracultura ressumbra, por exemplo, nos diversos segmentos da estrutura

geo-antropológica do nosso país, em que a produção, inclusive a do conhecimento, é muitas

vezes preterida em lugar do extrativismo libertino e imediatista, isto é, da gananciosa

produção de capital. Não debalde estamos, pois, neste capítulo, gravitando brevemente no

espaço da metacrítica, e é mesmo possível que

(t)alvez minha verdadeira vocação fosse ser autor de apócrifos, nos vários
sentidos do termo: porque escrever é sempre ocultar alguma coisa de modo
que depois seja descoberta; porque a verdade que pode sair de minha caneta
é como a lasca que um choque violento faz saltar de um grande rochedo e
projetar-se longe; porque não há certeza fora da falsificação (CALVINO,
1999, p. 198).

E, de fato, acreditamos que

(a)penas a imaginação é capaz de captar o não-dado, de modo que a estrutura


do texto, ao estimular uma seqüência de imagens, se traduz na consciência
receptiva do leitor. O conteúdo dessas imagens continua sendo afetado pelas
experiências dos leitores. Essas experiências constituem o quadro de
referências que permite apropriar-se do não-familiar ou ao menos
fundamentar sua imagem. A concepção do leitor implícito descreve,
portanto, um processo de transferência pelo qual as estruturas do texto se
traduzem nas experiências do leitor através dos atos de imaginação. Como
essa estrutura vale para a leitura de todos os textos ficcionais, ela assume um
caráter transcendental (ISER, 1996, p. 79).

64
Percebemos, na citação lida, o evento de um leitor real que se transforma em virtual,

caracterizando-se leitor implícito, um sujeito em íntima relação com o objeto: tão íntima e

intensa que sujeito e objeto entrelaçam-se nas lacunas do texto e avivam as chamas chamadas

pelo verbo. A cada leitura, as chamas, palavras no ato da leitura, avermelham-se como o ouro

reluzente das minas, recriam as lendas, fazem aparecer o que não parece provável e arranjos

sintáticos rearranjam-se em outras maravilhas, outras palavras. Parece-nos que a leitura

maravilha a própria maravilha, pois, sem ela, a palavra não causa efeito. A propósito, Iser,

autor pertencente à tradição da fenomenologia da resposta estética, assim continua sobre o ato

de leitura:

De importância central para a leitura de qualquer obra literária é a interação


de sua estrutura com seu receptor. É por isso que a teoria fenomenológica da
arte chamou a atenção, enfaticamente, para o fato de que o estudo de uma
obra deve ocupar-se não só do texto real, mas também, e nas mesmas
proporções, das ações envolvidas na resposta ou reação àquele texto. O
próprio texto oferece simplesmente “aspectos esquematizados” através dos
quais a matéria da obra pode ser produzida, ao passo que a produção real se
faz através de um ato de concretização (ISER apud WOLFF, 1982, p. 123).

A esse esquematismo da natureza da interpretação também se soma o dito da

professora Magda Soares, citada por Fernando Sabino (1996, p. 175) no livro Gente, quando o

artista lembrou-se e reportou a frase da renomada crítica dos estudos a respeito da

aprendizagem da língua: “Aprendemos a língua usando-a, não falando a respeito dela”.

Pensando nisso, é mesmo notório que desse aprendizando resultem o repertório crítico-

vocabular, o conhecimento de mundo e a capacidade de articular pragmaticamente essas

competências do saber humano. Nesse sentido, compreendendo as riquezas que esse saber

postula, especialmente, se veiculado pelo texto literário, argumenta Maria Tereza Magnani:

De um ponto de vista interacionista, a leitura é um processo de construção de


sentidos. Oscilando numa tensão constante entre paráfrase (reprodução de
significados) e polissemia (produção de novos significados), ela se constitui
num processo de interação homem/mundo, através de uma relação dialógica
entre leitor e texto, mediada pelas condições de emergência (produção,

65
edição, difusão, seleção) e utilização desses textos (MAGNANI, 1989, p.
34).

  Com efeito, a leitura de um texto literário realiza o contato entre texto, leitor e autor.

Temos, assim, a força motriz que inaugura um processo: o de difusão da mensagem literária.

Esse processo tem por finalidade garantir que o conteúdo chegue a outro ouvinte, e é assim

que a correspondência dialógica se efetiva. Logo, o texto, o autor, o leitor e, agora, outro

leitor; portanto, mais um interlocutor, comunicam-se perpetuamente. Porém, o texto literário

em seu conteúdo polissêmico de expressão e de forma é uma representação fantástica do

mundo, e está aberto a diferentes sinóticos de leitura. Possibilidades que oscilam entre a

retórica e a lógica, mas que constituem um signo perfeito à medida que, no ato de leitura,

fazem flutuar o significante e o significado. Assim, é essa leitura sempre relativa e o sentido

construído por seu espaço autoral. Um espaço que não termina e que, como no espetáculo do

nascimento de uma supernova, oferece a opção de o leitor atribuir-lhe significado a partir de

suas vivências e de sua imaginação. É o que Jeremy Hawthorn também argumenta:

Qualquer resposta artística envolve uma inter-relação dialética de autor,


leitor e obra. A consciência do autor e do leitor estão, da mesma forma,
relacionadas com a totalidade de seus mundos, inclusive a “experiência
congelada” do passado. Assim, a busca de qualquer núcleo estático em torno
do qual o processo literário possa ser tecido e à luz do qual possa ser
explicado, e avaliadas as respostas a ele, é o equivalente moderno da busca
da pedra filosofal. Nenhuma obra de arte imutável, nenhuma natureza
humana imutável, nenhuma resposta “legítima” ou “literária” pode, quando
investigada, manter sua imutabilidade (HAWTHORN apud WOLFF, 1982,
p. 121, grifos do autor).

A leitura do texto literário enseja, portanto, um trabalho que vai além do texto, que

valoriza a construção e apreensão do real mediante a utilização artística da linguagem,

despertando os sentidos, as emoções e fazendo ver que a literatura pode ser responsável pela

formação de um homem mais amigo da Natureza e do semelhante. Ademais, pensamos que a

realização harmônica dessa proximidade é o sonho de todo texto que, por meio de seus

66
símbolos, está sempre nos prevenindo, relembrando ou profetizando uma linda história de

amor ou uma grande tragédia, a vida ou a morte, a esperança ou o desespero, o começo, o fim,

o recomeço e todas as coisas dos dias e noites contidos no universo sem cercas e sem fim.

Com efeito,

(p)arafraseando o filósofo neoplatônico [Plotino], diríamos: é necessário que


a disposição de ânimo do leitor e sua sensibilidade se tornem pares e
semelhantes às do criador para compreender intimamente sua obra e vibrar
com ela em uníssono; [porque] jamais um leitor bem disposto abordará uma
criação literária sem tornar-se ele também criador em certa medida
(CASTAGNINO, 1969, p. 57).

Pensamos que tal medida é a medida de uma leitura abrangente. Nos dias de hoje, sem

essa leitura, o leitor algema seu pensamento e sua criatividade, ignora a venda nos olhos do

menino de asas e com arco e flecha nas mãos, vira a sobreposição das trevas, como no mito de

“Orpheu”, na própria luz,  torna-se mais um rosto do medo e uma visage do mito da estirpe

condenada. Infletido no vitral de uma sociedade profundamente recortada pelas diferenças

econômicas, o sujeito, sem a leitura abrangente, é mais um leitor não lido e tornado lenda 10 no

submundo da ignorância.

Essa tragédia, que se percute na imensidão do tempo, impede a pessoa de ver e de ir

além das condições do meio. Sem forças para esbater-se, sucumbe tragado pelos tufões da

máquina tecnológica ou pela resistência à passagem de leitor neurovegetativo a leitor cidadão.

Assim, o corporativismo decorativo perdura o imaginário das diferenças, sobretudo

econômicas, mas também sociais e culturais, impedindo o indivíduo de ser gente, um grupo

de ser comunidade, um Estado de ser uma Nação.

Se a tais diferenças prefigura a referência dominante não alhures, nem muito aquém

dos nossos dias, do solstício das deficiências; então a ignorância, marcada principalmente pela

10
Segundo Lesky (1985), aquele que carrega e (re)transmite o fado da tragédia.

67
mitificação da(s) leitura(s), está longe de ser apenas página da história, continua uma flor do

mal que antropomorfiza.

Contudo, desejamos que não seja ainda mais demorada a esperança de se coincidirem

na leitura abrangente as experiências do universo místico, mestiço e plurivalente do povo do

Brasil. Esperamos que isso aconteça e que esse acontecimento se manifeste no dom e na voz

de um leitor crítico da vida e da sociedade, do mundo fabricado e da Natureza, do imaginário

e da outridade dele próprio, leitor-pessoa. Ainda mais: seja o dom e a voz de um leitor crítico

de tudo isso na tela de um quadro, na nota de um canto, no verso de um poema, no espaço de

um conto, nas linhas de uma escultura, na cena do teatro, no detalhe do filme, no close da

dança, da quadrilha, das quadras e quadrinhas... ou no rosto de um romance; naturalmente,

dom e voz de um leitor crítico da arte.

1.2 A crítica no espaço autoral de G. L. Cruls

Os órgãos do conhecimento, sem os quais não é possível uma


leitura crítica e empreendedora, chamam-se amor e respeito.
Tampouco a investigação pode prescindir deles; pois só quem
tem amor e respeito pode compreender e classificar com amor e
respeito. Sem eles, a leitura quedará no vazio.
 Emil Staiger

Ao reunir os diversos textos que comentam o escritor Gastão Luis Cruls e sua obra,

tornou-se inevitável o cotejamento. Digamos que, em nosso processo investigatório, fizemo-

lhes a corte. Verificamos então que a crítica pode ser um lençol puxado para baixo ou puxado

para cima, uma bruxa malvada ou uma fada madrinha; mas, sem dúvida, uma voz

indispensável ao estudo das artes, no nosso caso, no estudo do texto literário. De todo modo, é

ela capaz de desvelar as relações imbricadas na arte, desde os motivos que a fomentam até os

diversos processos ensejados pelo ato criador.

68
Assim, pensando em compreender o texto literário, entendemos ser necessário o velho

princípio da maiêutica de Sócrates, segundo o qual para cada pergunta há sempre uma

resposta que levanta uma nova pergunta, levando a própria crítica à autocrítica, à

reformulação do comentário e à rediscussão do senso comum. Foi assim que novas teorias

sobre o modo de perceber o efeito estético da arte foram surgindo. Entretanto, essa rosca-sem-

fim do rigor filosófico não põe jamais concretude ao ficcional, já que este, a nosso ver, não

poderá nunca ser fundamentado pelo não-literário, em virtude de seu conteúdo potencialmente

subjetivo e, por vezes, apenas hipoteticamente explicável.

Não raro, o crítico é tentado pelo manjar do se sobre-estar à obra, de marginalizá-la e

preferir a explanação. Talvez por causa disso, tantos artistas têm estado esquecidos,

conduzidos ao degredo das terras áridas da exclusão, ou aos guetos do holocausto de sua

causa capitis, que exterminam a possibilidade de uma leitura naturalmente motivada pelo

prazer de ler.

Por outro lado, a crítica abre caminho para o interpretante da obra e descobre o crítico

no exercício de suas atribuições mais inerentes no trato com a arte, de certa forma, vis a vis

com o autor que, como a aranha, e,

[...] sem dúvida o sei bem... (por o ter algum dia desfiado de mim mesmo?
Ou que outrora o aprendi no linear de toda ciência?) que [...] secreta seu fio,
baba o fio de sua teia... tem as pernas tão distantes, tão distintas – o deslocar
tão delicado – para a seguir poder medir essa teia – perlongar em todo
sentido sua obra de baba sem a romper nem se enredar – enquanto todos os
demais animalejos não prevenidos nela se emaranham mais e mais a cada
um de seus trejeitos ou cabriolas perdidas de fuga... [...] Sim, súbito, de um
ângulo da sala eis que sobre vós me precipito a largos passos, atenção de
meus leitores presa à peia de minha obra de baba, e não é o momento menos
grato do jogo! É aqui que eu vos pico... e adormento! (CAMPOS, 1997, p.
217-218).

Nesse sentido, como a aranha, o artista chama para sua peia vernacular a atenção de

seu leitor. Entretanto, o leitor crítico, especialmente aquele afirmado como crítico da arte,

precisa equilibrar-se entre a alteridade e a presentidade necessárias à elucidação crítica do

69
objeto estético, sem cair no emaranhado das metáforas e metonímias do grande eufemismo ou

da hipérbole esquematizados pelas linhas venosas da arte.

Pois bem, pensando nas arapucas armadas ao longo da paradigmática do texto

literário, e que as mesmas figuras de construção, de pensamento e de linguagem tratadas por

Harold Bloom na poesia, em A angústia da influência, são as mesmas na narrativa em prosa,

destacamos o trecho no qual Bloom, um dos mais eminentes críticos do nosso tempo, define a

crítica:

A crítica é o discurso da tautologia profunda  do solipsista que sabe que o


quer dizer está correto, mas que aquilo que diz está errado. A crítica é a arte
de descobrir os caminhos secretos levando de poema a poema (BLOOM,
1991, p. 134).

É, óbvio: uma desleitura, levada a termo por um leitor que se vale de um método e

vocabulário críticos, e que sabe que as impressões da primeira leitura já não serão as da

segunda, porque, na tentativa de firmar suas impressões, o crítico se depara com um objeto

que se move à sua revelia. Com efeito, o crítico, no exercício do seu trabalho, está sempre em

busca das evidências escondidas. Ao descobri-las, as manifesta desejando mostrá-las a partir

de figuras mínimas que se associam e flutuam em busca de uma harmonia como a da nota

musical na partitura perfeita. É o crítico, pois, entre uma leitura e outra, um bruxo músico, um

analista entre Freud e Mallarmé que trabalha na reengenharia das metáforas.

Contudo, e nos servindo das palavras de Bloom, retificamos apenas a expressão “de

poema a poema” para de prosa a prosa e emendamos com Calvino (1995): “nenhum livro que

fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão”. Isto é, a leitura da crítica não substitui a

leitura da arte. Porém, como retoma a orelha não assinada de Por que ler os clássicos, “ela

pode ser uma excelente companhia de leitura, esclarecendo, chamando a atenção para detalhes

importantes, revelando aspectos despercebidos e projetando nova luz sobre autores já

empoeirados”.

70
Pensamos assim numa crítica parceira da função do autor e que analisa a obra pelo

prisma da mensagem artística, tornando sem efeito a empresa de cisma e desconfiança à qual

se reporta Rainer Maria Rilke (1995), em uma de suas Cartas a um jovem poeta,

desaconselhando a leitura de textos críticos em virtude da sublimação de seus pressupostos e

da inconstância de seus vereditos:

Deixe-me fazer aqui um pedido: leia o menos possível trabalhos de estética e


crítica. Ou são opiniões partidárias petrificadas e tornadas sem sentido em
sua rigidez morta, ou hábeis jogos de palavras inspirados hoje numa opinião,
amanhã noutra. As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode
alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e
manter e mostrar-se justo com elas (RILKE, 1995, p. 31-32).

Diga-se de passagem, que os críticos têm que passar pelo crivo da engenharia de um

espaço autoral a fim de exercerem o direito de dizerem o que dizem. Se o que dizem terá ou

não direito à credibilidade, depende de quão idôneos são nessa tarefa de argüir os elementos

literários do texto, se for isso mesmo que fazem. No caso de R. Rilke, a carta destinada a

Franz Xaver Kappus, a quem, inclusive, destina um soneto num momento em que o jovem

pendulava entre ser um príncipe da poesia ou um soldado-herói, as palavras em relação à

crítica precisam ser cuidadas de uma ponte que aviste a cura transdisciplinar empenhada pelo

poeta, prosador e crítico alemão. Com efeito, mas não tão incisivo quanto Rilke, Ítalo Calvino

pondera com algumas questões a verificação da crítica, cujas opiniões oscilam, não

absurdamente, no tempo. Vejamos, pois, a ponderação de Calvino:

[...] De narradora no passado, e do presente que me tomava a mão nos


trechos conturbados, aqui está, ó futuro, saltei na sela de seu cavalo. Quais
estandartes novos você me traz dos mastros das torres de cidades ainda não
fundadas? Quais fumaças de devastações dos castelos e dos jardins que
amava? Quais imprevistas idades de ouro prepara, você, malgovernado,
você, precursor de tesouros que custam muito caro, você, meu reino a ser
conquistado, futuro... (CALVINO, 2002, p. 132-33).

71
Pensando com Calvino e recuperando a epígrafe de abertura deste capítulo: se o

castelo de letras estiver cercado pelos patos selvagens de Kyoroku, aludindo a metáfora

“patos selvagens” para leitores “malgovernados” e desdobrando-a, no desenvolvimento dessa

proposição, para críticos sem leme, a devastação certamente será a noite trágica que se

denuncia.

Com efeito, à valorização do estético ou primazia da arte não interessa a leitura

descompromissada (EAGLETON, 1983, p. 78) nem a textofagia denunciada por Rilke. Nesse

sentido, acreditamos que o trabalho da crítica pode sim ter por horizonte a função de descobrir

a essência criadora da arte de sua capacidade fenomenal de auto-suster-se e de

(trans)significar para cada pergunta ou nova leitura e, ao mesmo tempo, servir de agência de

fomento para a fruição do estético e do lúdico, tendo em vista a potencialização das relações

entre o sujeito-texto e o sujeito-leitor.

Todavia, ao crítico compete o exercício da renúncia à parcialidade e o sacrifício pela

neutralidade, que é extremamente necessária para a interpretação e o julgamento do objeto

estético escolhido. Sendo a mão que psicografa os sinais de sua matéria de trabalho: o fazer

crítica, crítica enquanto consciência do fenômeno literário, sua competência reside na

faculdade de surpreender e exprimir esse fenômeno. Isso nos dá o quadrante perfeito de

Álvaro Lins para o estabelecimento da crítica, quando afirma, em seus ensaios e estudos de

obras, com relação a autores e problemas de literatura no período compreendido entre 1940-

1960, que

(o) ato da crítica é aquele que completa, que retifica, que amplia. O que abre
perspectivas, o que desdobra situações. [...] Dentro da mais pura e da mais
estrita atividade crítica existe uma função criadora. A criação do crítico lhe
vem da possibilidade de levantar, ao lado ou além das obras dos outros,
idéias novas, direções insuspeitadas, novos elementos literários e estéticos,
sugestões de bom gosto, sistematizações, esquematizações, quadros de
valores. Crítica num tríplice aspecto: interpretação, sugestão, julgamento
(LINS, 1964, p. 368-9).

72
Assim, frente ao texto, objeto para sua sentença, o crítico percebe, examina, escolhe,

coteja e finalmente toma posição de afirmação ou negação de algo a respeito do objeto de sua

crítica. Vê-se, portanto, que o fazer crítica implica um determinado domínio científico, que

corrobora um conjunto de recursos instrumentais a fim de decompor, reflexiva e

metodicamente, o seu objeto. Logo, qualquer que seja esse objeto, a função do crítico consiste

na escolha de um método de análise que descubra a arte de uma presumida parcela de

dificuldade quanto à fruição do estético, em coerência com o tempo histórico examinado.

Outrossim, não se pode ignorar que todo tempo histórico remete-nos ao futuro, haja

vista na presentidade do privilégio de prever e rever os acontecimentos, geralmente reais e,

por isso mesmo, apropriados pela ficção. Logo, quando a crítica desapropria a arte de certos

adornos, de alguns de seus elementos-identidade, na verdade projeta a arte ao seu estado

primitivo, fantástico: aos campos das possibilidades da retórica e da lógica, de onde, pelo

fazer artístico, deriva a obra; penetra, portanto, no próprio ato da recepção literária:

[...] a recepção é sempre o momento de um processo de recepção, que se


inicia pelo “horizonte de expectativa” de um primeiro público e que, a partir
daí, prossegue no movimento de uma “lógica hermenêutica de pergunta e
resposta”, que relaciona a posição do primeiro receptor com os seguintes e
assim resgata o potencial de significado da obra, na continuação do diálogo
com ela. O significado da obra é apreensível não pela análise isolada da
obra, nem pela relação da obra com a realidade, mas tão só pela análise do
processo de recepção, em que a obra se expõe, por assim dizer, na
multiplicidade de seus aspectos (STIERLE apud LIMA, 1979, p. 134). 11

Então, entendemos o nome de crítica literária como a compreensão sistemática de tudo

que move a roldana da expressão escrita. Necessariamente coagida por essa senhora mística,

fascinante e que nos embrenha nos tempos com impressionante majestade e imponência, a

crítica precisa consentir amoldar-se no colo de uma premissa maior: a de fazer justiça ao valor

estético de uma obra em todos os estágios de sua realização. Enfim, acreditamos numa crítica

11
A citação é de Stierle explicando Jauss.

73
que fulgure-se resplendora do efeito artístico, em uma crítica que se preze e atenha por prumo,

sobretudo, a valorização da arte.

No caso bastante específico da crítica de Gastão Cruls, reside no mínimo um

paradoxo: nome tão efusivamente aclamado pela crítica de seu tempo e adjacências, é

adormentado até tornar-se completamente ausente dos estudos acadêmicos e dos círculos de

leitura do texto literário brasileiro. Afora a filmagem de Elsa e Helena12 pela Companhia

Atlântida Nacional de Cinema, à sua obra rica em gênero e volumes não foi dedicado ainda

nenhum estudo mais detalhado que, com toda justiça, sempre esteve aí por merecer.

Um artista com traços de James Joyce, E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Emily

Brönte e James Conrad, entre outros de propalada envergadura, não cai no esquecimento por

acaso. Mesmo sendo um dos escritores brasileiros que mais publicou literatura fantástica, seu

nome sequer aparece entre ilustres ou não da história desse gênero no Brasil. Embora não

tenha sido um participante ativo do movimento modernista, sua arte moderna, como será

discutida no “Capítulo 3”, já era realidade na pluralidade de seus contos e romances de

vetores psicológicos e imaginários, como bem exemplificam os contos “No clube” e “O

espelho” ou os romances A Amazônia misteriosa e De pai a filho. Inovador a cada criação,

capaz de sentir um tempo que não era o seu e de expressá-lo com a força da realidade, o autor

Gastão Cruls é um artista nato.

O princípio da dualidade, o mais expressivo de sua obra, percorre dois territórios

distintos: os espaços urbano e rural, e os espaços da razão e (des)razão humanas. Essa

trajetória recorrente e explorada sob diversas perspectivas no fazer literário crulsiano torna-o,

à vista de seus contemporâneos, um libertino  já que não comprometido nem com as

correntes de vanguarda nem com a bula dos então chamados “passadistas” na fase heróica do

Modernismo Brasileiro. Isso significa que o escritor Cruls escrevia pelo prazer de escrever,
12
Esse romance de Gastão Cruls deu origem ao filme “A sombra da outra” (1950), de Watson Macedo.

74
narrava pelo prazer de contar. Não se submetia a normas de inclusão no status quo literário.

Manteve-se livre para exprimir verdades e sonhos naturais às pessoas de todas as épocas e

gerações.

Nome que, ainda em vida, foi tantas vezes lembrado nos “bastidores” para ocupar a

imortalidade na Academia Brasileira de Letras, faleceu mortal, talvez por não ser

politicamente sociável. Entretanto, não se rendeu ao casuísmo: continuava escrevendo. Mestre

no suspense, exímio tramador, historiador, era um homem ávido do desejo de conhecer o

Brasil e sua gente. E conheceu-os do Rio de Janeiro ao Pará, passando pelo Nordeste.

Portanto, sua arte era mesmo expressão de um mundo brasileiro, desconhecido até de alguns

alardeadores do Modernismo, e sua sensibilidade literária era retrato de uma multidão, só

mais tarde anunciada em Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Enquanto isso se desenvolvia, tracejando o contexto histórico-cultural da literatura

brasileira do século XX, percebe-se que a literatura de Cruls caminhou no escuro e em

silêncio até que as tantas reedições de suas obras, quase sempre esgotadas, tiveram negadas

outras tiragens, postergando o autor ao desinteresse da crítica e, conseqüentemente,

ocultando-o ao público leitor dos nossos dias.

Assim, antes de virar a página, tornamo-nos, a partir daqui, um crítico e um estudante

que desejam entrar pelas três portas da literatura:

Los estudiantes – a quienes dedicamos nuestro libro – podrían aprovechar tal


criterio, para emprender, con mayor comprensión del oficio, investigaciones
sobre cualquier aspecto de la literatura. Después de todo nuestro propósito es
dar, no una historia de la crítica – aunque de paso la damos –, ni un
panorama de los críticos de hoy – aunque tambíen de paso lo damos –, sino
las llaves para entrar, por tres puertas, en la literatura (IMBERT, 1969, p.
17).
Por tudo isso, o capítulo seguinte será uma tentativa de mostrar aspectos relevantes da

obra crulsiana e de tornar visíveis o compromisso e o respeito do escritor para com as

questões sociais, através do diálogo entre vozes do romance (A Amazônia misteriosa), do

75
diário (A Amazônia que eu vi) e do documentário (Hiléia amazônica) com o ensaio de José

Paulo Paes sobre o romance Frei Apolônio. Nesse diálogo, outras vozes, como a de Goethe, a

de Euclides da Cunha e a de Graça Aranha juntam-se a Cruls e dão ritmo a um debate sobre

gente e território selvagens, lembrando as odes à Natureza de Neruda influenciado por Walt

Whitman e a poesia transversal do poeta e ensaísta Jorge Luis Borges.

76
Capítulo 2

Paralelos utópicos e distópicos com a Amazônia de Cruls

Falarás a linguagem dos videntes


E ninguém nunca há de prestar ouvido
A essas tristes parábolas gementes.
 Jonas da Silva

Neste capítulo, objetivamos mostrar que A Amazônia misteriosa, de Cruls, é também

um romance de formação, a exemplo do romance Frei Apolônio, de von Martius, analisado

por José Paulo Paes no ensaio intitulado “Utopia e distopia na Amazônia”. Com efeito, um

romance de formação que se desdobrará em outras duas obras de Cruls: no diário de viagem

A Amazônia que eu vi e no documentário Hiléia amazônica.

Assim, nas cenas que seguem, estaremos nos permitindo paragrafar alguns atos de

fala, que apresentam a utopia da Amazônia enquanto paraíso remanescente da terra guardada

pelas sentinelas do portal original, e a utopia da harmonia perfeita entre os naturais do planeta

verde e o verdugo colonizador de ontem e de hoje. À franquia do ato consumado, a última

utopia remata a primeira, provocando a distopia de ambas: pois, se não há homens em estado

de graça e em espírito de confraternização o paraíso é apenas uma adivinha, que açula.

Último refúgio dos tupiniquins do Atlântico Sul, a Amazônia povoa nosso presente

com folclore, lendas, mitos e um colar sem contas de ciência. Esse mundo, um povoado

místico, histórico e futurista, é símbolo de uma realidade bruta  da natureza sem a

intervenção do homem, e de forças quer conscientes, quer inconscientes; aliás, as mesmas

forças e a mesma realidade que instigaram os filósofos da natureza Tales, Heráclito,

Empédocles e Demócrito, por exemplo, duzentos anos antes de Aristóteles (384-322 a.C).

77
Guardadas as diferenças entre colonizadores e colonizados, eventualmente vindas a

público por historiografias e ensaios, a Amazônia de Gastão Cruls se nos aparece um romance

da selva brasileira, distanciando-se desde logo de qualquer rumor de consciência de uma parte

ou ressentimentos de outra. No curso de uma aventura pela Amazônia imaginária, em A

Amazônia misteriosa, seus protagonistas trocam idéias e sentimentos sobre os índios

ocidentais e o desbravamento dessa região do Brasil.

As leituras sobre a Amazônia, necessárias para a composição do seu romance, tanto

inspiraram a Cruls, que o autor desejou conhecer de visu a nossa hiléia. Dessa forma, fez parte

da “Missão Rondon” (1928-1929), que objetivava o reconhecimento das fronteiras brasileiras

com as Guianas. Assim, já na rota da Amazônia real, dirigida pelo Marechal Rondon, o autor

registra impressões e acontecimentos que lhe permitiram escrever A Amazônia que eu vi, 

um diário de viagem e uma literatura de informação que serviu, seguindo o curso dos

desdobramentos da A Amazônia misteriosa, de fomento para a composição da sua Hiléia

amazônica. Em síntese, o trabalho de Cruls, condensando diversos tratados descritivos,

reanimando paisagens de outros romances e compondo a sua, nos dá uma visão privilegiada

de um conteúdo ao mesmo tempo técnico e artístico.

N’A Amazônia misteriosa a focalização recai sobre os transes diante de perigos

iminentes e as condições misteriosas que envolvem as personagens. Suspense, beleza,

exotismo, lendas e mitos singulares à região orientam a narrativa a partir da visão de duas

personagens européias (o alemão Hartmann e a francesa Rosina) e de duas personagens locais

(o mateiro Pacatuba e a índia Malila) sujeitas ao estatuto de um narrador que, à moda de um

narrador típico de um Bildungsroman ou romance de formação – tipologia que, segundo Paes

(1995, p. 10), “teve seu paradigma no Wilhelm Meister de Goethe” –, vive e retrata a história

vivida pela narração.

78
A característica de romance de formação se erige, na A Amazônia misteriosa, e como

acontece em Frei Apolônio, analisado por Paes (1995, p. 10): “no caráter palinódico da sua

efabulação”. Conforme entendemos, a retratação consiste, no nível discursivo de Cruls

(1958), nas experiências abstraídas do convívio e da exploração dos indígenas brasileiros,

submetidos, como cobaias humanas, aos experimentos do Dr. Hartmann. Essas experiências

vão modificar ao extremo a visão que Rosina, a francesa mulher do alemão e cientista

Hartmann, tinha dessa etnia quando chegou ao Brasil. Assim aconteceu também com:

[K. F. von] Martius que, primeiramente, muito pessimista nos seus juízos
sobre o nosso ameríndio, enquanto apenas lhe conhecera o tipo já
desculturado, mais tarde, quando no Amazonas, deixava escapar da pena as
seguintes palavras a respeito de uma índia Pacé: “A mulher do tuxaua
Albano tinha traços tão regulares, olhos tão brilhantes e o físico tão bem
proporcionado que com a sua boquinha negro-azulada até na Europa
causaria sensação”. O mesmo sucede ao Príncipe Adalberto da Prússia que,
ainda guardando nos olhos o aspecto feroz e desconfiado dos Puris e
Coroados que vira no Vale do Paraíba, pasma de surpresa e admiração ante a
beleza, a força e a afabilidade de trato dos índios que vai encontrar na
Amazônia. E vem-lhe esta tirada ao observar alguns índios que remavam
numa canoa: “Artistas deviam visitar estas regiões. A vista de tão belas
formas e atitudes traz a recordação de estátuas da antiguidade, pois entre este
povo o livre desenvolvimento da força e da forma do corpo não é
prejudicado pelas roupas e pela efeminação; tudo é natural e a afetação é
desconhecida, tanto nas atitudes como nos movimentos” (CRULS, 1976, p.
271).

Acreditamos ser importante considerar que Martius, autor de Frei Apolônio, é

testemunha no documentário de Cruls, Hiléia amazônica, como nos sugere a citação acima.

Então, terá sido, Frei Apolônio, um resultado da transformação do próprio von Martius. E o

convite aos artistas, da parte do Príncipe Adalberto da Prússia, para, conforme a passagem

acima, “visitar” o território apinhado de uma superstição cavernosa criada durante o “ciclo da

borracha” e que metia nos brasileiros o medo desejado pelos estadunidenses, foi atendido,

entre poucos, por Gastão Cruls, que lá esteve três vezes. Na passagem abaixo o autor nos fala

a propósito da primeira delas:

79
22 de dezembro [de 1928]. [...]  Quando eu decidi esta viagem, não foram
poucas as vozes que me clamaram:  “Mas que loucura! O que é que você
vai fazer no Norte? Você não tem medo das febres?” Era-me difícil
responder, mesmo porque muita gente ignora a existência de certas criaturas
que já nasceram roídas pelo tédio e em cuja alma se pode ler o Quosque
eadem? de Sêneca (CRULS, 1973, p. 144).

Como sabemos, com a descoberta da borracha sintética veio o declínio da sociedade

da borracha na Amazônia brasileira, e ávidos capitalistas deixaram para trás o lixo produzido,

levaram o dinheiro e puseram fim ao sonho amazônico do início do século XX.

Esse cenário nos deixa ver melhor, hoje, alguns porquês da recente onda noticiada na

imprensa televisiva e escrita com respeito a pessoas membros de certas Organizações não

governamentais (ONGs), que fincaram em nosso solo bandeiras próprias em lugar do símbolo

da soberania brasileira; e, ainda, alguns porquês do interesse estrangeiro sobre as decisões do

nosso governo quanto às questões de segurança da Amazônia, envolvendo, por exemplo, as

demarcações de terras indígenas nas áreas fronteiriças, como o episódio de repercussão

internacional sobre a demarcação da “Reserva Raposa Serra do Sol”.

Pois bem, depois desse sobrevôo, notemos que o choque de correção da realidade no

indivíduo, experimentado por von Martius, não é muito diferente do de Euclides da Cunha –

como Cruls – também revelador da realidade brasileira, quando descobre, segundo Paes

(1995, p. 10), “sur le champ, que em Canudos havia muito mais do que a sublevação

monarquista na qual o seu jacobinismo republicano até então candidamente acreditara”. Nesse

sentido, a passagem que segue mostra que o escritor de Os sertões mudou de idéia a respeito

de Canudos, quando, por si próprio, constatou:

[...] Era uma evocação. Como se a terra se ataviasse em dados trechos para
idênticos dramas, tinha-se, ali, o que quer que era recordando um recanto de
Iduméia, na paragem lendária que perlonga as ribas meridionais do Asfaltite,
esterilizada para todo o sempre pelo malsinar fatídico dos profetas e pelo
reverberar adusto dos plainos do Iêmen...
O arraial  “compacto” como as cidades do Evangelho  completava a
ilusão (CUNHA, 1995, v. 2, p. 401, grifo do autor).

80
Nesse ínterim, e de volta para a Amazônia de Cruls, mais do que pontos de contato

com o romance de formação ou com o romance geográfico de aventuras, o primeiro romance

do escritor é o primeiro documento seu de uma trilogia que compõe a mata, as pessoas e as

relações entre esse lugar e essa gente. Talvez, uma vaga utopia muito próxima da de Graça

Aranha em Canaã, também comparada por José Paulo Paes na análise de Frei Apolônio.

Canaã e A Amazônia misteriosa têm em comum, além da nacionalidade de duas

personagens (Milkau é alemão como o Professor Hartmann), a característica que absorve de

ambos os autores a preocupação com o problema do choque entre autóctones e alóctones do

mundo natural e do mundo fabricado, segundo a ótica do Ocidente. Problema que a

miscigenação, compreendida enquanto um instante de síntese numa dialética étnico-cultural

em que a civilização é a tese e a barbárie, a antítese, resolveria numa totalidade integradora, a

princípio, sempre utópica.

À semelhança de Canaã, essa visão dialética vai-se confirmar, na escrita ficcional de

A Amazonia misteriosa, em um sucessivo concurso de idéias entre as suas personagens

principais: o médico-cientista “Seu Doutor” (narrador-personagem que conta a história), o

alemão e também cientista “Hartmann”, a jovem esposa do alemão  a francesa “Rosina”, o

guia “Pacatuba” e a amazona “Malila”. Essas personagens são porta-vozes de opiniões

ideológicas bem definidas, mas Cruls lhas faculta uma identidade e instrumentos de

construção de um destino, se a favor da história, mas, também, de um antidestino se quiserem.

Essa garantia representa um mínimo de humano no que tange à formação de pessoas e mesmo

à aventura por elas reclamada em seu espaço natural, bem como à relação integradora entre

civilização e Natureza, com exemplo reificado na Hiléia:

Informação recente, ouvida do Coronel Armando Levy Cardoso, que


também foi membro da já citada Comissão de Demarcação de Fronteiras,
diz-me que na Mesopotâmia do Marapi e do Paru de oeste, formadores do
Cuminá Grande ou Erepecuru, por sua vez afluente do Trombetas, vive uma
tribo de pretos, os Mecorô (talvez corruptela de negrô), em estado de

81
completo asselvajamento e fazendo a vida dos nossos índios (CRULS, 1976,
p. 288, em nota à 2ª edição).

Precauções à parte, a trilogia13 de Gastão Cruls é possivelmente a mais rica em cores,

dramas e verdades tão presentes em nosso cotidiano pelo folclore amazônico, nacionalmente

vislumbrado na apresentação da “Festa de Parintins” e do “Boto Tucuxi”. As aventuras

transpostas no romance e no diário da subida e descida do rio, entremeadas por flash-backs14,

de casos da literatura e fatos históricos, dão a um e outro o aspecto da continuidade e

destacam ingredientes importantes da ficção romântica: amores prematuramente encurtados

pela morte das amadas, a expiação da culpa pelo herói impotente, as traquinices da vida longe

e desobrigada dos padrões de comportamento, os naufrágios, o mito e a lenda das mulheres

guerreiras, a fantasmagórica aparição da selva para o homem perdido e com medo de sua

fortuna.

De fato, a história de “perdidos na selva”, contada pelo narrador-personagem de Cruls,

sustenta-se na feitiçaria, na lembrança e no imaginário dialético, cujas imagens refletem uma

visão sensível ao subterrâneo proibido das condições sociais, e uma visão muito próxima do

significado “obtuso” de Roland Barthes (1977, p. 54-5) em sua análise das imagens

(patrocinadas pela visão) e como elas se distanciam dos signos, abrindo o leque das

possibilidades de leitura, independentemente dos valores sócio-culturais já cristalizados.

Aliás, a estrutura tradicional da narrativa na Amazônia misteriosa vai servir apenas de

estereótipo folhetinesco para o verdadeiro quadro do romance, no qual avultam exuberantes a

gente e a Amazônia numa prosa com estilo que faz do narrador que conta a história, mais que

naturalista, um doublê do drama poético. Acena ele próprio com a lira quando encena o

episódio do lago “Iaciuaruá” ou “Espelho da Lua”, n’A Amazônia misteriosa:

13
Referimo-nos ao romance A Amazônia misteriosa, ao diário de viagem A Amazônia que eu vi e ao
documentário Hiléia Amazônica.
14
De acordo com Paes (1995, p. 11), recurso também na narrativa de Frei Apolônio.

82
 Contavam ter sido este lago consagrado à lua pelas Amazonas que, todos
os anos, pela mesma época, se reuniam à sua volta e faziam uma grande
festa à mãe dos muiraquitãs, que nele habitava um palácio encantado. Era,
então, que as icamiabas, ungidas pela luz balsâmica do luar, mergulhavam
nas águas límpidas do lago e iam receber da mãe das pedras verdes o barro
dúctil com que desveladamente trabalhavam os seus muiraquitãs, até que o
calor do sol chegasse para os endurecer e transformar nos magníficos
talismãs. Essa festa coincidia com a vinda anual dos maridos fortuitos ao
Reino das Pedras-Verdes, e aos índios que no consórcio anterior lhes tinham
dado uma filha, as Amazonas ofereciam o muiraquitã que acabavam de
modelar (CRULS, 1958, p. 60).

Esse passado, magicamente fortalecido no romance de Cruls irrompe em uma cisma

de perigo: a Amazônia invadida pelo predador humano, brasileiro ou estrangeiro, seu palco

formidável para a exibição de sua inestimável riqueza entregue à ação da biopirataria,

gemendo a profanação de seu ecossistema, a extirpação das espécies e a captura para morte,

escravagismo ou conversão do índio,  permite ligar o autor a algumas artérias do

materialismo histórico, principalmente se se tiver sob perspectiva a assertiva de Walter

Benjamin quando se viu diante da confluência das ideologias repressoras de Mussolini e

Stalin:

O verdadeiro retrato do passado passa rapidamente diante de nós. O passado


pode ser percebido apenas como uma imagem que surge no instante em que
pode ser reconhecida e nunca mais é vista... . O materialismo histórico quer
reter essa imagem do passado, que surge inesperadamente para o homem,
assinalada pela história em um momento de perigo (BENJAMIN, 1969, p.
253).

Por essa razão ou temor, Cruls recria o mito das Amazonas, despojado da história

malsinada que transformou o mito em lenda 15, com a esperança de proteger a deslumbrante

floresta. Além do mais, conforme nota da editora à oitava edição desse romance, desde a

adolescência Cruls fora tomado pelo interesse em torno da literatura enigmática e de

“silhuetas” sempre verdes da Amazônia, na contrapartida de sua origem guardadora da cultura

e dos costumes europeus.

15
Ver mais sobre o assunto nos capítulos 4 e 5.

83
Conquanto, não é difícil rastrear, na injeção de morfina que o levou a imaginar A

Amazônia misteriosa, um “afloramento do ímpeto panteísta do pré-romantismo alemão”, que,

nessas palavras de Paes (1995, p. 12), transportou a mensagem do duplo Hartomann-Martius

que

(d)iz ter vindo ao “continente esplendoroso” da América, ou, mais


particularmente, ao “poderoso Amazonas” atraído pela “inescrutabilidade da
natureza, em nenhum lugar mais intensamente sentida do que naquelas
abençoadas regiões”. Foi só ali que ele pôde ter enfim uma percepção mais
profunda da “plenitude infinita da natureza, e a convicção da beleza eterna
da criação, do esplendor da ordem divina do Universo”. Mesmo porque,
confessa ainda no preâmbulo da sua narrativa, sempre o dominara “a
vontade indefinida de resolver os múltiplos enigmas que nos aguardam,
longe de cultura e costumes europeus, no país das florestas eternamente
verdes” (PAES, 1995, p. 12).

Ainda de acordo com Paes, esse culto à Natureza idolatrada encontraria expressão na

prosa e poesia de Hölderlin, de qual oferecemos uma pequena mostra:

Às Parcas
Um sol só,
Ó mortíferas,
Um outono só, Para curtir meu canto.
Que morra então minha alma,
Da doce lira saciada.
Quem na vida
Não prova a divina justiça,
Não fica em paz no baixo Orco.
Mas se uma vez apenas
O sagrado da alma
Meu poema enlaça,
Podem chegar, sombras do inferno!
Grato estarei
Mesmo que a lira não leve.
Ah, viver só uma vez
Como os deuses...
¾ E mais pra quê?

84
O poema de Hoeldërlin16 revela, a exemplo de Schiller e Goethe, que, rebeldes aos

dogmas que a religião estabelecida pretendia perpetuar às custas da inércia dos fiéis

seguidores, os pré-românticos da Alemanha fizeram da Natureza uma nova religião. A

propósito, n’A Amazônia misteriosa de Cruls, a Natureza é vista como Deus quando o

narrador afigura o rio como “tormentoso”, equivalente de rio impetuoso, o que traz à tona a

idéia de fragilidade do homem e de sua “tosca” embarcação, que bem poderiam, a qualquer

momento, serem tragados pela volúpia fremente daquelas águas-deusas e, se não por elas, não

faltavam ali os imensos jacarés não descabidamente afiançáveis por crocodilos ou dragões

miniaturizados, e nem por isso menos aterrorizantes.

Como em Frei Apolônio, analisado por Paes, e como pode ser visto nos “Capítulos 4 e

5” deste trabalho, ocorre na A Amazônia misteriosa uma poetização da natureza amazônica.

Poetização que, aliás, justifica o termo “palinódia” e reitera o caráter de romance de

formação. De acordo com Paes (p. 12), referindo-se a Frei Apolônio, “a essa poetização do

natural” fantástico “estava ademais subjacente a lição do Rousseau do Discurso sobre a

desigualdade quando, vendo na vida civilizada a ‘fonte de todos os males do homem’,

encarnava no mito do bom selvagem a sua nostalgia de um hipotético estado natural”.

Exemplarmente, pois, a palinódia de Frei Apolônio reprime, no diálogo entre Paes e

Rousseau, a presença ameaçadora do homem não-natural.

Já que Paes dialoga com Rosseau na análise de Frei Apolônio, podemos dizer que n’A

Amazônia misteriosa o mito de Rousseau migra para uma lenda multiforme e figurativizada

pela personagem Ataualpa, o grande senhor dos Incas 17. A transcendência dessa personagem

(CRULS, 1958, p. 83-4), observada pelo narrador da história, em estado de monólogo

interior, sugere uma origem para os índios da Amazônia; todavia, com uma propositada

alocação do poder das pedras verdes, conhecido não pelos Incas, mas pelos Astecas. E este

16
Poema traduzido por Antonio Medina Rodrigues e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jul.
1988. Suplemento Folhetim.
17
Povo pré-colombiano que viveu na América Central e Norte da América do Sul.

85
lugar, a aldeia animada “ao som de torés e maracás”, proporcionará ao nosso aventureiro

refletir:

Do meu esconderijo, a cavaleiro da campina muito verde onde abrolhavam


lírios amarelos – talvez os amancais (3) da planura andina – eu não me
cansava de contemplá-las, no maravilhamento do soberbo espetáculo, fecho
magnífico a quanto já me fora dado ver e admirar, desde que chegara ao
Reino das Pedras Verdes.
E mais eu pensava, e mais me parecia impossível que tudo aquilo fosse
mesmo uma simples tribo de selvagens arrincoada em plena mata, vivendo
dos seus instintos, e inteiramente entregue à lei da natureza (CRULS, 1958,
p. 83).18

Tal como, segundo Paes, sentiu Hartomann em Frei Apolônio, há, na necessidade

interceptada pelo narrador d’A Amazônia misteriosa de experimentar o novo, longe da neblina

e paisagens ocres da Europa, perdido nas sempiternas florestas verdes da Amazônia, uma

repercussão do naturismo de Rousseau, espelhado por Paes. Tanto mais que o que leva o

visionário até à escritura de sua fantasia é não apenas o interesse do cientista pelas

particularidades ambientais do ethos amazônico, mas também a preocupação do artista com a

humanidade do índio.

A propósito, como bem relativizou Roberto da Matta (1981, p. 115), esse lugar, “o

inconsciente sociológico”, é um trecho “vazio de compromissos históricos, onde o significado

é dado por posição, o observador pode comparar pelo contraste esses pontos críticos com

outros pontos críticos de outras instituições de sua ou de outras sociedades”. Com efeito, no

encontro com a personagem inca, o narrador que conta a história da A Amazônia misteriosa

ouvirá:

Mas acaso pensavas que até o instante da conquista o nosso indígena se


conservasse um parente próximo dos prótomos de Ameghino, de maxila
vasta e crânio estreito, trôpego nas pernas e ainda mal adaptado à sua nova
posição de bípede, dormindo sob a larga carapaça de um tatu gigantesco  o
gliptodonte, rasgando os alimentos com as presas possantes, e tendo por toda

18
Obs: A nota (3) é do próprio autor: Nome por que são conhecidas, em quíchua, as flores da Habrantus
Chilenses, da família das Amarilidáceas.

86
arma o tosco machado de pedra? Não meu amigo, não foi isso o que
encontraram os descobridores, mas povos perfeitamente constituídos e
organizados, e que, talvez, nada ficassem a dever às civilizações do Oriente
(CRULS, 1958, p. 84).

Situar-se nesse lugar é uma busca constante de uma consciência interessada em

entender e interpretar diferenças. Homem afeito a demoradas e rigorosas reflexões, o narrador

crulsiano não se omite de descrever casos de preconceito e racismo ao longo da extensa

viagem ao encontro dos selvagens amazônicos, seja sob a ótica do mito das “Amazonas”, seja

sob o olhar histórico das observações de leituras memorizadas. Em ponto importante da

entrada, finalmente no romance, no último dia relatado sobre a forma de diário, o narrador

lembra Byron em sua Oração à Natureza, pensando nos estados de tirania por que passavam

as sociedades civilizadas envoltas nos “crimes e castigos” da Primeira Guerra Mundial.

Esse estado de tirania capaz de subjugar humanos sem dogmas, de fazê-los prostrar

naturais à condição de animalidade, sempre se opunha ao estado de sobredeterminação da

Natureza, desejado por J. J. Rousseau, depois por I. Kant e por Johann G. von Herder,

conforme Paes (1995, p. 13). Para o pragmatismo colonizador, consorciado à investida

evangelizadora, não rendia a manutenção da identidade cultural dos índios. Havia a outra

utopia: aquela que perseguia o objeto de uma cultura única que anulasse as diferenças e

construísse, com o passar do tempo, uma raça geneticamente pura. O fastígio dessa ideologia

e sua queda, somados à derrocada de outras ideologias similares contribuíram para uma visão

social principiada no dialogismo, mas não impediu a “cruzada etnocida” (PAES, 1995, p. 13)

que pode ainda hoje ser surpreendida em território da nossa Amazônia, e claro que não só

nela.

Os nossos índios vistos pelo colonizador como selvagens, ao revés do selvático ou

nativo, são vistos como protagonistas de um estado de barbárie por essa mesma sociedade que

consagrou os pensadores modernos, dos quais se destacam Rousseau, Kant, Leibniz, Francis

Bacon, René Descartes, entre outros qui dedit nobis signum. A dicotomia é latente: apregoa-se
87
a defesa da cultura indígena, mas não sem a integração dessa comunidade natural à

comunidade maior, pensada como “civilizada” sob padrão do positivismo, assim assinalado

no Inferno verde de Rangel:

Eu resisto à violência dos estupradores... Mas enfim, o inferno verde, se é a


geena de torturas, é a mansão de uma esperança: sou a terra prometida às
raças superiores, tonificadoras, vigorosas, dotadas de firmeza, inteligência e
providas de dinheiro; e que, um dia, virão assentar no meu seio a definitiva
obra de civilização, que os primitivos emigrados, humildes e pobres
pioneiros do presente, esboçam confusamente entre blasfêmias e ranger de
dentes (RANGEL apud SOUZA, 1977, p. 192-3).

Parece-nos, isso, um retrato miserável da civilização dos nossos silvícolas, surdamente

abatida, já que ainda não havia edificado cidades, mas de ode tão funesta quanto a do

sacrifício dos Incas, dos Astecas e dos Maias. Por outro lado, em uma pintura dos nossos

aborígenes, assim se manifestará o naturalista Alfred Wallace (apud CRULS, 1973, p. 88):

“Suas figuras são soberbas e diante das mais perfeitas estátuas eu nunca senti prazer igual ao

que encontrava admirando esses modelos vivos da beleza a que podem atingir as formas

humanas”. E pensar que esses

(h)omens livres trazidos à escravidão e forçados ao trabalho exaustivo das


minas; mulheres violadas por uns monstros de lascívia; crianças tenras
espostejadas para servir de pasto à matilhas dos perros ferozes e industriados
à caça dos índios... Para se ajuizar o que foi este mundo de flagelos, é
bastante assinalar que, no curto espaço de trinta a quarenta anos, foram
aniquilados para mais de doze milhões de indígenas (CRULS, 1958, p. 92). 19

Entreouça:

[...] essa visão retrospectiva, pelo tempo atrás, é o maior libello que ainda se
escreveu contra a crueldade, a ferocidade, a bruteza dos conquistadores que,
em nome da cultura christianissima do occidente europeu, destruiram, com
requintes de selvageria inenarravel, a obra secular de uma civilisação
ignorada. Só deixaram a ruina e o horror de seus feitos, pelos expedientes
que usaram: a guerra, o perjurio e a traição, antes; a barbarie, a
pusillanimidade e a covardia depois... (MENNUCCI, 1934, p. 197-8).

19
Obs: O narrador não leva nessa consideração os índios exterminados na América do Norte.

88
Note-se que em nome do mesmo evangelho apregoado como salvador, o europeu

destruiu comunidades inteiras, culturas e ciência jamais recuperáveis, como o “Calendário

Zero” dos Maias, inexplicavelmente, pela ciência moderna, mais preciso que o “Calendário

Ocidental”. Conhecedor dessa história, o observador em A Amazônia que eu vi escreve,

pronunciando-se a respeito das palavras de Wallace20:

Deste e de outros conceitos que para aqui não seria difícil trasladar, vem-nos
o justificado pesar de que toda essa gente não houvesse sido melhor
aproveitada na formação da nossa nacionalidade. Infelizmente, não
pensavam assim os colonizadores, afervorados no extermínio do nativo, que
lhes era entrave à posse rápida e total da terra. Agiam deste modo para
depois recorrer ao tráfego dos negros... (CRULS, 1973, p. 88).

Retomando A Amazônia misteriosa, o narrador que conta a história busca um discurso

que transtextualize as dicotomias e as discrepâncias, num “ziguezague de avanços e recuos”

(PAES, 1995, p. 14) que acompanha o jogo de xadrez dos movimentos e ações sem volta ou

sem arrependimento, que caracterizam a sina do homem moderno no tabuleiro do mundo,

incapaz de harmonizar o seu eu com a tese materialista e a antítese espiritualista que o

enredam: como von Martius, em Frei Apolônio, o narrador de Cruls mostra a utopia e a

distopia na Amazônia brasileira.

O primeiro e mais importante interlocutor que o médico naturalista (Seu Doutor, o

protagonista n’A Amazônia misteriosa e narrador que conta a história) recruta para essa

empresa que tem em mente é o Pacatuba, personagem-guia, homem do mato acostumado ao

lugar e profundo conhecedor dos caminhos do rio e das trilhas naturais da selva, o que não

impediu que a expedição se perdesse. Será a essa personagem que o narrador da história mais

se aproximará no desenvolvimento da viagem pela Amazônia desconhecida.

O Pacatuba representa o homem livre, o fruto da frutificação de Adão e Eva antes da

queda original, com efeito, o ideal utópico de Rousseau. Diante do gigantismo amazônico, o

20
Palavras que transcrevemos à página anterior, no corpo do texto.

89
médico-cientista, figurando um narrador-personagem, imagina-se um homem assim como o

Pacatuba, um vivente que estivesse vivenciando o divino ato da criação que começava dali,

daquela selva virgem e pura, de exuberância impossível de ser descrita. Naturalmente, o

Pacatuba representa, na A Amazônia misteriosa, o ideal perseguido pelo narrador-

protagonista.

Nesse ínterim, chamado ao testemunho, também o interlocutor Hartomann, de Frei

Apolônio, dirá, intermediado por Paes, que

(é) precisamente esse despojamento que ele, Hartoman, busca, na medida em


que, a Rousseau, ambiciona ser tão-só “um habitante da Natureza” e não
mais, também palavras suas, “filho do meu tempo, nem membro da
sociedade, nem integrante do Estado”. Contrariamente à paisagem da selva
tropical, cuja virgindade dá ao forasteiro a impressão de estar testemunhando
o próprio “dia da Criação”, a paisagem européia, com seus escombros de
civilizações mortas, suscita “observações sombrias” no espírito de
Hartoman, sensível àquela poesia das ruínas tão cara à sensibilidade pré-
romântica, que se enlevava nos melancólicos “sons da harpa de Ossian” 21
(PAES, 1995, p. 14).

Autóctones indiferentes ao significado da colonização, os índios da Amazônia

constituem a essência do inocente que ignora artifícios como a inveja, a ambição ou a

hipocrisia. Essa essência arrebatadora e ignorante é sintetizada na personagem Pacatuba, no

romance A Amazônia misteriosa. A alegria espontânea e verdadeira que ele irradiava e o

silêncio com que testemunhava os acontecimentos, para só falar com a precisão da hora

acertada, eram as qualidades mais apreciadas e desejadas pelo médico de cultura milenar, que

via aí a natural manifestação da humanidade no aborígene. Em mais essa justificativa para a

idéia de romance de formação na narrativa de A Amazônia misteriosa, sugere-se a tentativa de

rebater os vícios e os males da civilização, fazendo-a notar, talvez, que a felicidade plena,

fantasiada por todas as gentes em todos os tempos, mora nas coisas mais simples. E que

21
Esta última frase entre aspas seria do próprio Hartomann, enquanto as anteriores seriam de Rousseau.

90
depende apenas do que, na passagem abaixo, o narrador que conta chama de “sábio

comunismo”:

Destarte e sob o regime de tão sábio comunismo, a nação vivia coesa e


próspera, na comunhão geral dos seus bens e das suas crenças e sem jamais
ter conhecido os ódios e as paixões que se nutrem das desigualdades sociais
e das oscilações da fortuna (CRULS, 1958, p. 89).

Prosseguindo, ainda paralelos à análise de Paes, além do Pacatuba, outro importante

interlocutor do narrador da história na A Amazônia misteriosa é Malila. A amazona, símbolo

do mito das mulheres guerreiras, revela-se a distopia da homogeneidade cultural pela

miscigenação, idealizada pela utopia: íntima dos brancos, e desejosa de fugir com eles, será

vigiada, perseguida e morta pelos da sua tribo, pois que vista como traidora do sagrado

Totem. Logo, a mestiçagem, enquanto elemento uniformizador de culturas, não passa de

jargão da ideologia aculturadora a serviço do dominador. Na verdade, o sincretismo entre as

culturas não tem qualquer sentido se não tiver caráter inclusivo em vez de exclusivo, como na

possibilidade contemplada pelo narrador d’Amazônia misteriosa:

Turvou-se o olhar de Rosina, que não soube o que me responder e esteve


algum tempo perdida em cogitações. O sol ardia-lhe na cabeleira fulva e
mordia também a pele dourada de Malila, que continuava sentada a seus pés.
Era encantador o contraste entre aqueles dois tipos de mulher, vindos de
raças tão diversas, tão distantes em tudo e por tudo, mas que o destino
reunira ali, para que uma à outra realçasse as graças e seduções (CRULS,
1958, p. 100).

Nesse sentido, a Amazônia como o lugar da utopia de um viver paradisíaco é também

o lugar da distopia da harmonia aclarada na semântica da própria palavra utopia, se esta se

revela sob o revestimento do princípio hegemônico, impossível de ser conciliado e

responsável por “confundir a distopia de um apagamento cultural da autoctonia com a utopia

de uma redenção pela mestiçagem” (PAES, 1995, p. 18).

91
A seu tempo, a experiência do alemão Hartmann na Amazônia misteriosa, seguindo

modelo do Dr. Moreau de Wells, é pano de fundo para outra experiência do narrador-

personagem: a de um primeiro encontro entre naturais e civilizados. Sóbrio, o narrador

crulsiano constrói sua narrativa com o imaginário da Amazônia e sua gente, não tão edênico

como o queria Rousseau, nem tampouco o lugar esquecido de uma cultura “degenerada,

corrupta e fraca” como assinalou De Paw (apud PAES, 1995, p. 16).

Perscrutando a história e a literatura, inclusive as religiosas, o narrador da Amazônia

misteriosa se apressa em atribuir ao imperialismo a conotação profundamente disfêmica22 de

“sopro de loucura” na Europa, cujas ventas arroubaram meio século com duas Grandes

Guerras Mundiais e tantas outras guerras, chamadas locais, mas que continuavam matando em

nome de Deus e dos interesses da civilização em todo mundo. Consciente desse quadro, o

narrador-personagem entra em idílio com a Amazônia brasileira e a esperança de

renascimento de um novo homem que a Natureza ali representa.

Todavia, a distopia, ou, mais precisamente, o pressuposto inviável da miscigenação

enquanto acontecimento harmonizador do homem natural com o civilizado, ainda uma vez

mais se consubstancia na personalidade discriminatória do interlocutor Braulino,

acompanhante branco da expedição, cujo juízo deprecia a natureza do Pacatuba. E também na

caracterização da personagem Rosina, em quem se identifica o puro sangue ariano, portanto,

sangue que não pode ser miscigenado. O médico-cientista,  narrador-personagem de Cruls,

em suas observações, destaca sempre o mérito das diferenças e nunca o que hipoteticamente

possa ser prescrito como melhor ou pior exemplar da raça humana. Nesse sentido, a

diversidade analógica do narrador que conta converge para a diversidade natural do ethos

amazônico, construindo uma visão plural do mundo e das pessoas.

Nesse caso, o romance A Amazônia misteriosa é mais que um romance de formação,

de idéias e de aventura: é romance de tese social que exemplifica a utopia da integração e a


22
Termo antônimo e adjetivado de eufemismo.

92
distopia de uma manutenção canhestra da cultura indígena. Com efeito, o médico aventureiro

confirmará utopia e distopia no relato de narrador autodiegético de uma expedição de verdade

no “coração” da Amazônia, em A Amazônia que eu vi.

Nessa viagem, que fará quase dez anos depois da idealização da A Amazônia

misteriosa, o escritor Cruls tem a oportunidade de confrontar imaginário e realidade por ele

mesmo. Sem nenhuma demagogia é isso mesmo que ele faz no diário de viagem A Amazônia

que eu vi. Nele, o presencismo da diversidade pautada pela ideologia civilizatória e pela senão

inocente, ingênua natureza dos naturais amazônicos, aponta os motivos por que quer a

integração a sociedade que auto proclama-se civilizada, e os motivos por que os naturais

deveriam, caso soubessem, reagir ao aculturamento. Aculturamento que teve seu impulso

decisivo no “ciclo da borracha”, e com a conivência de artistas burgueses, estes, chamados

por Márcio Souza “os meninos-prodígio da exploração”:

Mas no meio desses acabrunhados meninos prodígios, há uns poucos


marginais que encontraram coisas admiráveis no seringal, que se
deslumbraram mais com a selva do que com os salões do Ideal Clube. O
primeiro foi Ferreira de Castro, com seu lúcido e áspero romance A Selva;
depois, o abandonado Raimundo Monteiro, um minúsculo filho pródigo para
quem o retorno foi mais terrível que a partida; finalmente, o cinematografista
Silvino Santos, com seus “filmes naturais” e suas imagens de “reclame”.
Todos eles olharam documentalmente a fatuidade dessa caricatura de
civilização, dessa vida tomada como um vaudeville (SOUZA, 1977, p. 116,
grifos do autor).

De fato, e reconhecendo que Márcio Souza,  autor também de Mad Maria,

respondera seriamente na passagem acima aos protestos do Dr. Djalma Batista,  inclusive,

protestos em forma de provocação no ensaio “A cultura amazônica”, e cujos tons Souza

alinhavra nos seus “Agradecimentos” para o A expressão amazonense, pedimos licença para

inserir, entre aqueles que estremam de uma literatura contorcida na resignação, o nome do

também abandonado Gastão Cruls.

93
A preocupação do artista com a degenerescência da raça indígena por força do contato

com a corrupção branca aparece, ainda que rarefeita, sombreada em muitas passagens em que

o diarista apela às reminiscências do visionário na A Amazônia misteriosa, para argüir-se a

propósito de uma opinião formada, a princípio sua, e que passa, a partir do expediente na A

Amazônia que eu vi, a contribuir, ainda mais forte, para a formação do humano por uma

dialética do humano, capaz de retransmitir, de tempo a tempo, a premissa maior da

preservação como habilidade do homem ser natural para manter viva a Natureza, como aliás

aparece nas páginas e aquarelas de seu último livro publicado sobre a Amazônia, a Hiléia

amazônica, cuja edição princeps conta com pranchas coloridas de Hilda Velloso e Armando

Pacheco e as ilustrações do amigo de Tarsila do Amaral, Luís Jardim:

[...], enfim, pelo bom gosto e apurado acabamento artístico de tudo que
concebem e realizam com a máxima perfeição, que eles não são de nenhum
modo os irmãos bastardos dos Tapajós, Omáguas ou Curizaris, que tantos
gabos receberam de Acuña, Heriarte e outros cronistas que ainda os
conheceram, nem tampouco são filhos espúrios daqueles outros que na foz
do Amazonas nos deixaram tão evidentes provas da sua civilização (CRULS,
1976, p. 276).

Nesse momento, saindo da confluência dessas transleituras, apresentaremos no

capítulo seguinte, ainda em “Busca da Herança Negada”, um diálogo sobre como Cruls,

homem e artista, foi lido por sua crítica. Nesse diálogo, cada crítico aparece em ordem de

chamada cronológica e tem, cada um deles, o seu nome destacado de forma a nos guiar, aqui e

ali, pelas páginas do território da recepção literária.

...

Capítulo 3

94
Diálogo com a Recepção de Gastão Luis Cruls na crítica brasileira de 1933 aos dias de

hoje

Engraçada nossa capacidade de arquivar o


companheiro, logo que ele dobra a esquina; se
vai de jato ou de navio, então, desabam séculos
de esquecimento.
¾ Drumond23

A procura dos textos com os quais dialogamos foi uma empreitada que demandou

tempo e viagens. A ausência de registro da bibliografia crítica sobre Gastão Cruls, a

paralisação de serviços nas Bibliotecas e Universidades e a lenta travessia por certas

turbulências burocráticas, necessárias para aquisição de textos que não podiam ser

fotocopiados e tiveram que ser transcritos à mão; nos obrigaram, por conta do tempo que não

pára e dos prazos que nos vencem, a cessar a procura, a ajuntar o que havíamos encontrado e

a pensar numa forma unificada da organização das informações apresentadas. Assim, ao

transcrevermos as palavras dos críticos aqui reunidos, citaremos as páginas de sua localização

na “Antologia da fortuna crítica de Gastão Cruls”, incluída no “Volume 2”; exceto no caso

das citações recuadas, que trarão a paginação do texto original.

Na antologia, o leitor encontrará as referidas palavras junto à transcrição literal e

integral dos textos, seus respectivos autores e todas as informações essenciais, inclusive, a

paginação de início e fim dos textos originais. Textos que, aliás, se encontram esparsos e, em

alguns lugares, em péssimas condições de conservação. A propósito, nem todos eles são aqui

comentados, mas, acreditamos que os que se encontram amalgamados no diálogo que

doravante se inicia, significam um conjunto substantivo dos recepcionalistas de Cruls.

...

A voz da crítica é mais uma pintura do acontecimento, pela palavra. Mais uma forma

de narração do fato no tempo ¾ uma nova leitura ou comentário. A primeira pintura crítica na
23
Comentário a respeito de Murilo Mendes, publicado no Jornal do Brasil de 24 fev., 1972.

95
recepção de Gastão Cruls inicia-se a partir de 1920 com os primeiros contos publicados e

adquire tons mais intensos, com o sucesso de A Amazônia misteriosa (1925). Neste capítulo,

estaremos dialogando com alguns críticos da biobibliografia crulsiana e solicitando ao

recepcionado o desassombro de eventuais abismos e despenhadeiros do nosso texto que,

justamente por relatar e comentar o equinócio de um diálogo, pode provir o impasse.

AGRIPINO GRIECO

Grieco apresenta, na Evolução da prosa moderna (1933), uma leitura do interland

brasileiro na obra de Gastão Cruls. Segundo esse crítico, Cruls soube perceber os detalhes da

paisagem, das pessoas e dos costumes do nosso interior, especialmente do Nordeste e da

Amazônia, quando a temática na sua obra é o sertão ou a floresta.

Gastão Cruls é apresentado por Grieco como escritor de contos e romances; afirma,

entretanto, que “o romancista nele é bem mais vigoroso” (p. 277), e cita como exemplo, desse

vigor, o primeiro romance de Cruls, A Amazônia misteriosa, apontando a influência de

Rudyard Kipling, Louis Chadourne e Joseph Conrad em sua composição. A propósito,

acreditamos que essa influência pode ser sintetizada à atmosfera fantástica de Kipling, ao

exotismo de Chadourne e à capacidade conradiana de redução do imaginário ao realismo.

Segundo Agripino Grieco, Cruls se distingue dos romancistas de folhetim tão

populares à época, pelo vigor intelectual e sensível, sabendo brindar o leitor mais exigente,

conforme as palavras do crítico, com aquele “sorriso interior” (p. 278) e uma ponta de ironia

quase encoberta na narração dos dramas bizarros e casos trágicos.

Além desses destaques, Grieco parece sugerir que a tecitura d’A Amazônia misteriosa

resulta de experiências anteriores do escritor ao escrever as narrações de Ao embalo da rede ¾

conto de estrato nordestino, que conjuga as lendas e paixões do agreste. Assinala também a

forte presença da temática do nacional na obra de Cruls, explicando-a, por esse prisma, em

96
função do interesse do artista pela Natureza, pelas pessoas e seu modo de vida no dia-a-dia.

Nesse sentido, pois, Cruls é regionalista  assim revelando-se desde a língua que as suas

personagens falam e a descrição dos ambientes em suas histórias.

Conforme entendemos, esse acompanhamento sincrônico fez da Amazônia de Cruls a

Amazônia pululante de Grieco, tão diferente, segundo ele, das florestas da Guiné Bissau, onde

Maurice Maindron, lá estando, disse não ter encontrado  palavras do crítico: “nem pássaros,

nem mamíferos, nem répteis, nem mesmo uma mosca ou borboleta” (p. 278). Esse evidente

exagero de Maindron, na verdade, não deve chegar até nós entendido ao pé da letra. É mais

uma comparação que o crítico Grieco faz entre a descrição das duas florestas, com clara

preferência para a de Cruls.

Paralelamente, às opiniões de Cruls e Maindron, pode-se observar a opinião de Levi-

Strauss que vê, na floresta de Tristes trópicos, particularmente na amazônica, uma “opressão”.

Por assim dizer, um comentário mais apurado sobre esse espaço florestal, comparado por

Grieco, o leitor poderá conferir nos capítulos quatro e cinco.

De todo modo, o nacionalismo de Cruls, já distante do nacionalismo romântico que lhe

é precursor, surge na década de vinte quando a voga modernista era ainda uma posição

extremada de rompimento com a tradição clássica. Gastão Cruls, portanto, é precursor do

moderno nacionalismo ou da atenção maior dos escritores para essa temática contraposta a

particularidades da corrente nacionalista do modernismo inicial, que só aparecerá, decisivo,

em idos dos anos trinta, um nacionalismo com consciência crítica, como o que aparece, por

exemplo, “na mulher de carcanhar no chão”, em Mixuangos de Valdomiro Silveira (1937, p.

207) ou n’A Amazônia que eu vi de Cruls (1973), da qual transcrevo:

Anima-se, então, a paisagem. Tanto à orilha do rio, como nos tesos da ilha
lobrigam-se casinhas humildes, quase todas soerguidas do solo, para fugirem
aos riscos da enchente, e tendo cada qual o seu portinho, por vezes numa
nesga de areia alva, onde descansam as canoas.

97
De novo, espanta-nos a destreza com que tenros curumins cortam as águas
do rio pagaiando sozinhos à proa de frágeis e minúsculas montarias. Não
raro, vem-lhes mesmo o capricho de se afoitarem até a maresia despertada
pelo nosso comboio, onde as casquinhas de noz guinam e cabriteiam sobre
as levadias, para maior gáudio dos seus palinuros. Observando-os em tão
perigoso folguedo, acode-nos a idéia de Rodway, que, no testemunhar a
habilidade com que os indígenas da Guiana pilotavam as suas embarcações,
se recordava do velho mito de uma criatura meio-homem e meio-peixe.
(CRULS, 1973, p. 4, grifos do autor).

É nesta passagem de A Amazônia que eu vi que Cruls apresenta uma visão de análise

da identidade amazônica, cujo contexto histórico é parte significativa de nossa nacionalidade.

Nela diverge bastante, por exemplo, do boêmio Álvares de Azevedo, visto por Machado de

Assis como um dos mortícolas da zarabatana de Byron. Que as visões de Cruls e Azevedo

sejam diferentes em relação ao ambiente da Amazônia não surpreende. É até natural que

assim seja, se considerarmos as escolas literárias nas quais tomaram parte. Mas não cremos

que a divergência quanto ao pensamento sobre o lugar amazônico se justifique nessa questão

de estética. A opinião do autor da Lira dos vinte anos é parte da realidade ainda hoje, apenas

precocemente estampada (se dada como conclusiva), o que não é segredo nenhum, já que ao

extraordinário artista, morto aos 20 anos, foi negado o tempo de amadurecer e colher os

melhores frutos de sua inteligência criadora:

Falam dos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas na
floresta, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido ao menos
uma noite, como se acordassem procurando túmulos, e perguntando como
Hamlet no cemitério a cada caveira do deserto o seu passado. Mentidos tudo
isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que esqueceu-se
talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco há
insetos repulsivos, répteis imundos; que a pele furta-cor do tigre não tem o
perfume das flores... que tudo isto é sublime nos livros, mas é
soberanamente desagradável na realidade! (AZEVEDO, 1998, p. 89).

Ora, uma realidade que o artista boêmio e urbano não conheceu. Seu comentário aí é

pessoal e recriado na forma de poesia: uma poesia que flexiona a passagem das horas no

estado de um espírito notívago, cheio das impressões da mocidade e do pessimismo;

impressões que, aliás, não são exclusividade de uma época, portanto, não refletem uma
98
coerência apenas estética, mas também a sinceridade do homem Álvares de Azevedo naquele

momento.

Prosseguindo... . Vinte e cinco anos passados de seus primeiros comentários sobre a

arte de Gastão Cruls, Grieco – um dos grandes amigos do artista, comenta então, ainda que

sucintamente, a narrativa crulsiana perpassada “da Coivara à Vertigem”, título este de seu

artigo publicado na revista “Leitura”, em 1958.

O crítico chama a atenção para algumas especificidades do estilo de Cruls,

responsáveis pela incorporação de sua diversidade temática. Entre tais especificidades, Grieco

destaca a dualidade campo/cidade nos contos de Coivara, os “espectros do meio-dia” (p. 363)

em Ao embalo da rede, os mitos e as personagens aventureiras da “soberba” (p. 363) A

Amazônia misteriosa, o duplo em Elsa e Helena, o diálogo literal entre o artista e a obra de

arte no A criação e o criador; que nos faz pensar no diálogo entre a obra e o leitor em Se um

viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino. Ainda bordando com esses pontos-cruz da

manta crulsiana, o crítico ponteia a “sequidão esquemática” (p. 363) no diário A Amazônia

que eu vi, e imprime o subgênero costumes para o gênero romance em Vertigem.

Oportunamente, queremos retomar apenas dois aspectos destacados pelo crítico: “os

espectros do meio-dia” de Ao embalo da rede e o “romance de costumes” (p. 363) em

Vertigem. Desfolhando o volume de contos Ao embalo da rede, vamos interromper o balanço

em um dos contos que, por sinal, traz o mesmo nome dado a todo o volume: “Ao embalo da

rede”. Temos aí um exemplo do que Agripino Grieco chama “espectros do meio-dia”, e que, a

seu ver, “não são menos bem vistos [pelo leitor] que os espectros da meia-noite dos discípulos

de Edgar Allan Poe e E. T. A. Hoffmann” (p. 363). Com efeito, um “fantástico do comum” (p.

363), como o do velório da mãe de Elisa:

99
Fôra justamente a um incidente ocorrido durante a noite em que velara o
cadáver da futura sogra, que Otávio atribuía o rompimento. Na câmara
ardente, achando-se por um momento a sós com Elisa, possuira-o de súbito
uma excitação estranha, que o levaria sem dúvida às maiores loucuras, se a
noiva, logo às primeiras carícias, o não houvesse repelido com um gesto de
horror. Datava daí a radical transformação de Elisa, que desde êsse dia se
retraíra e era cada vez mais fria para com êle. Não havia engano: era esta a
única razão do rompimento (CRULS, 1951, p. 218).

Da mesma forma que nos arquétipos inspiradores do sonho e do mito de Jung, As

estruturas antropológicas do imaginário, de G. Durand, nos proporcionariam um delírio

animado, poético e fantástico, junto com os espectros do meio-dia e da meia-noite na

carruagem do guia sem rosto,  o Totem crulsiano d’A Amazônia misteriosa. Tal análise nos

é uma pretensão futura, mas já fica aqui sugerida a quem queira nos acompanhar nessa

cosmovisão do universo crulsiano.

Em poucas linhas, diremos apenas que o conto “Ao embalo da rede” embala, no duplo

sentido ou na ambigüidade desse verbo, um fantástico que se reconduz ao fantástico; isto é,

uma simbologia da transcendência do dia para a noite e desta para o dia, continuamente, como

numa viagem de raios translúcidos por espelhos labirínticos; daí, o efeito do pânico, do

horror, da loucura, da imobilidade e da desrazão. Nesse conto de Cruls, predomina o retorno

da luz à cápsula noturna, no espaço apriorístico do fantástico, em vez da expansão da noite

aluindo o dia, como predominantemente acontece em Poe e Hoffmann.

Quando Grieco quer dizer que o fantástico diúrno de Cruls é tão bem visto quanto o

fantástico noturno de Poe e de Hoffmann, o crítico está entendendo essas duas estacas do

espaço fantástico como formas equivalentes na busca do tempo perdido, na reconquista do

paraíso, no desejo de um lugar ao sol, no encontro com uma felicidade mal iluminada por sua

existência putrefata e mortal,  como no velório do Coronel Antenor Ribeiro, que antecede a

cena do velório da mãe de Elisa e é palco para uma relação inusitada entre Otávio e a viúva

veladora, D. Alzira, ainda em suas primeiras horas de luto:

100
Transportado numa rêde, o corpo do coronel chegara à fazenda pouco antes
de mim e fora colocado assim mesmo no seu quarto, aproveitando-se para
isso os próprios ganchos da rêde em que costumava dormir. Aí o vi pouco
depois, à luz bruxoleante e enfumarada das duas velas de carnaúba, que já
lhe ardiam à cabeceira. Estava totalmente desfigurado e irreconhecível, com
um grande rombo na testa, a cabeça tôda empastada de sangue e duas postas
negras em lugar dos olhos. Depois, a despeito da secura do ar naquelas
paragens, já havia sinais francos de decomposição e mal se podia respirar no
quarto (CRULS, 1951, p. 222).
Não sei onde li, já há muitos anos, certo episódio ocorrido com um caçador
que, transido de pasmo e medo, por uma noite enluarada, no deserto indiano,
foi forçado a presenciar os longos e ferozes amores de dois grandes tigres de
Bengala.
Pois nós nos amamos assim, naquela noite, soltamente, brutalmente, com o
calor dos animais no cio, enquanto as velas crepitavam sempre e o ar era
cada vez mais pesado das podridões do morto.
Agora, há quinze dias, na casa de Elisa...
Otávio tinha de novo a voz embargada pelo pranto e mal podia prosseguir:
¾ Tu dirás que foi o perfume das flores... Eu tenho a certeza, porém, de que
foram os primeiros sinais da decomposição (CRULS, 1951, p. 224).

“Ao embalo da rede” é, pois, um conto tão ao gosto do leitor de literatura fantástica,

para o qual acrescentamos a aproximação com o conto “A morta enamorada”, de Téophile

Gautier. Mas, será com A Amazônia misteriosa, romance que, a nosso ver, sincretiza espectros

do meio-dia e da meia-noite da ficção de gênero fantástico, que Gastão Cruls obterá, assinala

o crítico, “a plena conquista de um grande número de leitores realmente empolgados” (p.

363).

Espairecendo agora a Vertigem, Agripino Grieco nos diz que aí “Gastão Cruls tenta

[...] com pleno êxito o romance de costumes”, a exemplo de “Manuel Antônio de Almeida e

Lima Barreto” (p. 363-64). Chama a atenção para o estilo com que o artista flagra o dia a dia

de uma sociedade burguesa em decadência, daí, a justificativa para enquadrar o texto de

Vertigem no subgênero romance de costumes. Em sua assertiva, o crítico relembra o

sociólogo Frédéric Le Play e a peça Come le foglie, de Giuseppe Giacosa, para frisar ao que

ele chama “dispersão” e “debandada” (p. 364) da família na sociedade moderna. Nessa

101
família, “exatamente como as folhas [...] os corações novos se vão espalhando por todos os

caminhos da aventura, arrastados pelos ventos da inquietação ou rebeldia” (p. 364).

De fato, concordamos com o crítico. Porém, apesar de nem tão novo, o Dr.

Marcondes, protagonista em Vertigem, dá-nos boa mostra de sua inquietação, ao imaginar-se

face a face com a mulher casada Clélia:

Ter de examinar Clélia... Vê-la, talvez, de colo e braços nus... Apoiar a


cabeça sôbre o seu peito... Sentir-lhe as palpitações da carne moça... Tudo
isso, coisas que ele já fizera um sem-número de vezes com relação a outras
mulheres, aparecia-lhe agora como fato inédito, cena que ele antevia cheio
de timidez, no temor de qualquer perturbação que o pudesse trair no
momento (CRULS, 1958, p. 447).

Mas a dispersão de símbolos da ideação casamenteira, hoje quase um mito, ainda

trouxe a debandada dos filhos e um sub-reptício conflito entre as aspirações sexuais ao

mesmo tempo platônicas e marquesãs de Sade, e as aspirações de ascendência espiritual pela

rua dolorosa do decálogo hebreu. Mercedes, filha de uma empregada da família Marcondes,

que fugira com o namorado, representa o que há de novo no coração do velho Doutor:

O Dr. Marcondes sentia-se bastante irritado para não se conter:


¾ Mas se foi da vontade dela? A Mercedes não foi sempre ajuizada?
¾ Ajuizada?! E você chama a isso ajuizada? Uma maluca é o que ela é.
Abandonar a mãe... (CRULS, 1951, p. 449).
“Fugir... Fugir também assim, abandonando tudo...” pensava o Dr.
Marcondes, enquanto D. Alice descia apressadamente as escadas, pois que
ainda queria apanhar a benção no Sagrado Coração (CRULS, 1958, p. 450,
grifos do autor).

Por esse prisma da Vertigem, desponta uma sociedade que se finge desavisada,

vivendo e girando a grande antítese do imaginário humano; da vida, da qual a arte é sempre a

referência para a busca de um antidestino. Uma busca que, em Vertigem, é procurada na

deserção; como é de costume em uma sociedade fragmentada, confusa e em estado de guerra:

quadro este que se correlaciona com a análise de Grieco.

102
SUD MENNUCCI

Mennucci comenta em Rodapés (1934) a estrutura do romance A Amazônia

misteriosa, de Cruls, no que ela tem de mais vivo: o espírito do “Salambôo” (p. 280).

Pelo que entendemos, a palavra “Salambôo” deriva da heroína Salammbo,

protagonista do romance homônimo de Flaubert, de 1862. Esse romance retrata a Carthago

dos anos 240-237 antes de Cristo, em um momento de revolta dos mercenários. No contexto,

Salammbo representa o herói mítico-lendário da decadência do Império Romano, que via

crescer a invasão dos povos bárbaros e a ameça de perda dos territórios conquistados.

De acordo com Mennucci, A Amazônia misteriosa tem tais elementos de reconstrução

histórica, [...] “traz tamanho cunho de vida efetivamente vivida, de episódios e cenas

verdadeiramente realizados, desenrola-se com uma tal riqueza de pormenores, com tal

colorido do ambiente, que o paralelo se impõe” (p. 280).

O crítico tem razão. Os pequenos detalhes da descrição e da narração, destacam todo

um conjunto que diz respeito ao modo de vida bastante singular de uma tribo da floresta

amazônica. Gastão Cruls a narra como se tivesse visto com seus próprios olhos. As

personagens aparecem, entram em cena com desenvoltura e graça; a mesma graça com que se

despedem de cada ato de que participam. É isto: um teatro a céu aberto. Uma representação

que problematiza a idéia do bárbaro e do selvagem, decompondo-a em ritos e quadros de uso

e costume diários dos silvícolas.

E dizemos mais, A Amazônia misteriosa é um projeto ficcional de reparação histórica,

um modo que o artista Cruls escolheu para falar aos seus leitores, buscando a sensibilização

das gerações futuras para com os nossos índios. Das gerações futuras, porque, fora das

páginas da ficção científica não existe uma máquina do tempo capaz de nos teletransportar

para o passado, a fim de repará-lo. O que foi feito, feito está. E é esse feito está que nos

103
permite, a nós aqui do presente, a reavaliação dos acontecimentos passados, do encadeado

histórico que criou o estado atual. Sairá dessa rediscussão a escolha de uma nova perspectiva

de comunhão ou não entre a sociedade dos que já estavam aqui e a dos que vieram depois.

Abrindo uma janela no contexto histórico, vamos avistar a passagem que Sud

Mennucci verbera com “esta certeza deixa-nos tristes” (p. 281). O crítico aí se refere à visão

que Orellana teria tido de umas mulheres guerreiras, e considera essa tal visão, improvável.

Mas, na mesma página em que o autor Cruls (1958, p. 57) diz que as Amazonas foram vistas

por volta do ano 1500, uma “primeira e única vez, por Orellana e seus companheiros”, dirá

também que muito antes dos conquistadores adentrarem as paragens da nossa selva “já os

fabulários enchiam páginas e páginas com várias lendas de Amazonas”. De Amazonas

brasileiras, que como personagens nas histórias verificáveis de Cartago, e ainda (graças aos

conquistadores) nas não verificáveis dos Incas, Astecas e Maias, ¾ viveram na pele de pessoas

que tentaram proteger a si e a seus filhos do genocídio. Talvez, entre elas, um dia houvesse

estado, historicamente, “Pentesiléia e Taléstris” (CRULS, 1958, p. 54), rainhas mais famosas

das Amazonas brasileiras, aqui coloridas no poema “Delenda Cartago” de Olavo Bilac (1997,

p. 104):

...

104
Heróicas, abafando os soluços e as queixas,

As mulheres, tecendo os fios das madeixas,

Cortavam-nas.

Cobrindo espáduas deslumbrantes,

Cercando a carnação de seios palpitantes

Como véus de veludo, e provocando beijos,

Excitaram paixões e lúbricos desejos

Essas tranças da cor das noites tormentosas... Quantos lábios ardendo em sedes

luxuriosas, As tocaram outrora entre febris abraços!... Tranças que tanta vez ¾ frágeis e

doces laços! ¾

Foram cadeias de ouro invencíveis, prendendo

Almas e corações, ¾ agora distendendo

Os arcos, despedindo as setas aguçadas,

Iam levar a morte... ¾ elas, que, perfumadas,

Outrora tanta vez deram a vida e o alento

Aos presos corações!...

Olavo Bilac introniza, com perfeição parnasiana, o quadro das Amazonas brasileiras

como defensoras da etnia local, e como guerreiras contra a opressão do delenda omnia,

ameaça que vinha por parte dos conquistadores: essa, a verdadeira opressão da floresta.

Opressão que, evoluída para a simbiose da fantasmagoria e do cataclisma detratores no ethos

amazônico, consubstanciou o fim de comunidades inteiras.

Retomando Mennucci, vemos que o Salammbo de Flaubert, que recriou a história

cartaginesa, redivive na A Amazônia misteriosa. E, Gastão Cruls, situado pelo crítico como

“romancista de larga envergadura” (p. 286), verbera uma importante e necessária empresa de

(des)construção da história e de construção identitária do ethno amazônico, e de apresentação

de um painel dos vícios e virtudes presentes na Amazônia de então e na de hoje,

acrescentaríamos.

105
Oxalá seja como resolve o narrador da A Amazônia misteriosa, na cena em que o

monstro da opressão é desafiado e triunfa a figura de Malila – representante da solidariedade

entre as civilizações:

De repente: catrapus! Malila jogara-se sobre o jacaré. Mal tive tempo de


desferir um grito, enquanto a água espadanava por todos os lados e ela surtia
a meio busto, abraçada ao dorso do enorme sáurio. A luta era feroz e o
monstro, tomado de surpresa, rabeava enfurecido, de cabeça aprumada e
fauce hiante. Mas foi só um momento e ambos mergulharam rápido,
sumindo-se num turbilhão de espuma. Logo a seguir, já nas minhas
vizinhanças, nova agitação da água e Malila que aparecia outra vez [...]
(CRULS, 1958, p. 143).

TEXTO ANÔNIMO

O colunista não nomeado comenta o romance Vertigem, de Cruls, na matéria “Gastão

Cruls  Vertigem”, em 1934, para o jornal “Gazeta de Notícias”. Compara esse romance aos

romances A Amazônia misteriosa e Elsa e Helena, obras anteriores do mesmo escritor.

Condensando as observações do crítico, verificamos que a alma flamengo-latina de

Cruls constitui um importante veio literário que, a cada criação, como também afirmará

Nelson Werneck Sodré (1995), parece aprofundar o esmero com que o artista constrói suas

narrativas e aquilata seus dramas. Esse constructo, preenchido pelo suspense inesgotável e

pela complexidade temática, nos presenteia com uma arte ao mesmo tempo fluída e

intempestiva, de leitura suave ou aos solavancos, entre a liberdade recalcada e a libertina do

homem descendente de Flandres e nascido carioca.

Da primeira, segundo o crítico anônimo, herdou a acuidade na observação do entorno

por parte do bom romancista, como bem ilustra André Gide:

Le mauvais romancier construit ses personnages; il les dirige et les fait


parler. Le vrai romancier les écout et les regard agir; il les entend parler dès
avant que de les conaître, et c’est d’après ce qu’il leur entend dire qu’il
comprend à peu qui ils sont (GIDE apud CRULS, 1958, p. 345).

106
Da segunda, ganhou o espírito do aventureiro, a pulsação do sangue latino, como

veremos em Silva Melo (1959) nas Recordações de Gastão Cruls. Dividido, precisou de um

entreposto intelectual para ourivesaria de suas peças de arte: nasce-lhe o espírito do

observador arguto e preciso.

Desse modo, não concordamos com o crítico quando ele faz diferenciação entre os

meios que mais influenciaram a composição romanesca de Cruls. Entre outras virtudes, o

povo belga, do qual Cruls descende, é conhecido por sua capacidade de criar palavras a partir

do dialeto flamengo, que consiste em um repertório de palavras no subconsciente e que

acompanha o indivíduo desde o nascimento. Já a vivacidade, a alegria, a pluralidade dos

contornos de sua cidade natal, o Rio, ofertaram ao artista uma visão rica em contrastes, que de

maneira alguma se exprime em modo “baço” (p. 289) e discordante no estilo do autor, mesmo

nas obras anteriores a Vertigem.

Mas falemos um pouco sobre o comentário do crítico a respeito desta última. No

exame de Vertigem, o colunista fala, principalmente, da liberdade das personagens que

conferem, à escritura do romance, um “quê fecundo de imprecisão, rico de conjecturas e de

ressonâncias” (p. 288); um quê, aliás, de ressonâncias tão primas da biologia humana, como

podemos ler nessa passagem densa de uma sexualidade velada entre o Dr. Marcondes e

Clélia, personagens principais da história. A mesma Clélia vista e tratada com os maiores

cuidados do pudor, mas que ele descobrirá ser a amante do fascista Sartori:

¾ Mas sente-se um bocadinho, disse o Dr. Marcondes, oferecendo-lhe uma


cadeira.
¾ Não, não... Nada de importuná-lo ainda mais. Eu vim apenas para
agradecer-lhe mais uma vez toda a sua bondade, o carinho... ¾ Ela fez um
trejeito de amuo e parou perplexa diante do médico: ¾ eu sei que o senhor
não deixa, mas queria tanto beijar-lhe as mãos.
E dizendo isto, tomou-lhe as grossas mãos entre as palmas róseas, apertou-as
bem e trouxe-as, num gesto de ternura, até junto do peito (CRULS, 1958, p.
558).

107
Ainda pensando nas ressonâncias, mas agora trazendo também algumas conjecturas,

podemos dizer que o cotidiano de um casamento que, pelo que se nota na história, apenas

cumpria as convenções, tirou do Dr. Marcondes, um cinqüentão, pai de família, a “misteriosa

sedução do desconhecido, que empresta uma atmosfera de sonho à realidade” (CRULS, 1951,

p. 443). Novamente, como já vimos em Grieco, notamos a influência de Conrad na narrativa

de Cruls. Tal como mencionamos na página 75 a respeito d’A Amazônia misteriosa, há em

Vertigem uma freqüência dramática que nasce no imaginário e cresce no real.

Seguindo com nossa análise, esse real, para o protagonista de Vertigem, nutre-se e vive

a partir do reencontro com Clélia. Reencontro que o faz desejá-la ainda com mais força: com

tanta força que ela já não mais saía de seus pensamentos. Certamente, a química do amor e da

fraternidade supitou no sangue do Dr. Marcondes, ante o gesto inesperado de D. Clélia. Não

sem causa, esse toque provocou-lhe uma daquelas reações químicas que tanto admirou nos

tempos de faculdade, de forma especial, aquelas que tornavam soluções opacas, em coloridas

e brilhantes tonalidades, cuja precipitação mais bela, a seu ver, era a de um “azul intenso, sem

mácula, celestial” (CRULS, 1958, p. 443). Nesse instante tão desejado e tão evitado, tão

libidinoso e tão puro, o Dr. Marcondes era uma vertente do mais nobre êxtase, como se

estivesse no próprio “céu escampo, luminoso e alto, de horizontes nítidos e alegres” (CRULS,

1958, p. 443) depois de uma chuva inesperada e breve num dia de sol. Em suas mãos, os

pequeninos seios internalizando intenções e pudores que, diríamos, em conformidade com o

crítico, explanam uma suave e profunda discrição no estilo Gastão Cruls de lidar com um caso

de sexo em Vertigem. Sabemos, entretanto, que nada dessa discrição existe em Elsa e Helena.

De mais a mais, o crítico acerta quando diz que o verdadeiro drama de Vertigem não é

o caso de amor e sedução entre as personagens do romance, mas “o drama da

impenetrabilidade das almas, umas às outras, das surpresas que nos reservam as criaturas que

melhor cremos conhecer” (p. 290). Assim, em seu empreendimento novelístico, o escritor

108
Cruls clama por suas almas flamenga e latina para tecer seu complexo universo ficcional

através de sua prosa naturalmente bela, envolvente, excelsa e magnífica; capaz de nos

prender, como relata o colunista, “completamente” (p. 288).

JAYME DE BARROS

J. Barros, através de Espelhos dos livros (1936), pendura defronte de nós um espelho

da vertigem reificada, exemplarmente, n’A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Para o

efeito da vertigem, tanto faz olhar a cidade do pináculo da montanha, como o salto no vazio

do cimo de um grande edifício, ou o mergulho do indivíduo no seu eu ou no seu outro.

Discorrendo sobre o romance Vertigem, de Gastão Cruls, o crítico comenta (o que ele

considera) as imperfeições e as perfeições da composição romanesca das personagens.

Exemplos de imperfeições apontados pelo crítico foram: o excesso de espaço

concedido a certas personagens banais e, ao mesmo tempo, o “longo tempo” (293) que as

margeia da narrativa. Tal modo de expor e de retirar os tipos aponta para um certo

ressentimento no estilo do autor; nessas circunstâncias, exposto ao esfumato da ação.

Concordamos em parte com as observações de Barros. É bem possível que uma dessas

circunstâncias, a que o crítico se refere, seja recidiva na personagem Rufina  a mulata que

fôra ama de leite da menina Rute, filha do Dr. Marcondes, e que é a mãe da Mercedes, uma

mulatinha que fugira com um trabalhador de circo e estava morando num morro. Rufina, a

bem da verdade, uma personagem secundária em Vertigem, inconformada com a partida da

filha para uma vida incerta, deseja a interferência do Dr. Marcondes. Era essa a esperança

desenhada no seu coração de mãe, conforme podemos ver na passagem abaixo, em (CRULS,

1958, p. 457) “pormenores mínimos, incidentes sem qualquer laivo de importância, [que]

vinham-lhe constantemente à boca desdentada”:

109
¾ A Emília ¾ Seu Doutor sabe, aquela parda gorda, baixa, que mora lá na
avenida e já veio também aqui por causa de uma dor que tinha do lado – pois
foi ela que estêve com a Mercedes. Não vê que ela tem uma comadre em
Madureira, onde o tal circo está trabalhando? Foi por ela que a Emília soube
que a Mercedes está morando na Piedade, em cima de um morro, e então foi
procurar por ela. Diz que ela está muito satisfeita e que não quer vortá.
Imagine, Seu Doutor, que a Emília encontrou ela de pé no chão, lavando
umas panela no fundo do quintá. Uma menina que foi criada com tanto luxo.
Ainda há pouco tempo, quando ela fez anos, com umas inconomias que eu
tinha e mais um auxílio que me deu Sinhá Rute, eu comprei uma cafêse
[coiffeuse]24 para ela, que tinha muita vontade de ter uma. Eu não sei se Seu
Doutor sabe que o Pedro, aquêle rapaz que já esteve aqui de copeiro, quis
muito se casá com ela. Pois quis. Mas a Mercedes dizia que só se casava
com home que fosse mais branco do que ela. Deus me perdoe, mas pra
arranjá um branco daquela ordem... Seu Doutor não acha que se a polícia
quisesse (CRULS, 1958, p. 457-8)...

O crítico parece sugerir que a prática de igual detalhismo descricionista seja um vício

remanescente do conteur de Coivara e de Ao embalo da rede. A nosso ver, no entanto, até

porque J. Barros fez menção do romance A cidade e as serras, de Eça de Queiroz, pensamos

que o detalhismo, na Vertigem, resulta mais de uma provável vinculação do contexto histórico

desse romance à estética realista, que propriamente ao realismo literário ou mimético; por sua

vez justificável, se pensarmos nas personagens secundárias como protagonistas de uma

segunda história, não por acaso filiada à primeira ou principal, em que as personagens-núcleo

são o Dr. Marcondes e D. Clélia.

Todavia, a construção das personagens principais, como a do Dr. Marcondes, é

comparada por Barros, conforme suas palavras, à construção “de Luciano de Rubempré, de

que Wilde se lembrava com amargura, nos momentos de maior e mais clara alegria” (p. 294).

Segundo o crítico, a caracterização do Dr. Marcondes é tão forte, sintetiza com tal fidelidade

as características de uma personalidade facilmente reconhecida pelo leitor, que nunca é

esquecido.

Acrescentamos, entretanto, que mesmo as personagens secundárias recebem uma

impressão forte do autor. Uma impressão que o leitor atento não esquece, seja pelo sorriso em

24
Esse reparo é do próprio autor.

110
tom de deboche, seja pelo tom lívido ou avermelhado da face numa circunstância um tanto

embaraçosa. A propósito, um exemplo de tom de deboche pode ser visto numa francesinha

que faz companhia ao Dr. Marcondes e seu amigo Dr. Braga  um tipo namorador que

resolvera levar o amigo para afogar algumas mágoas e agora se encontravam ali, numa pensão

da caftina Mme. Jeanne, nessa passagem em que o Dr. Braga tenta atiçar o amigo e é

picantemente chamado pela francesinha de “polisson”, palavra que significa descarado ou

desavergonhado:

¾ Você já reparou que olhos tem essa pequena? Parece uma Madona.
¾ Nossa Senhora de Todos os Pecados, é assim que um rapaz que vem aqui
gosta de chamá-la, disse Mme. Jeanne.
¾ Veja também as mãos. São dois verdadeiros biscuits, insistiu o Dr Braga,
dirigindo-se sempre ao amigo. ¾ O resto eu não elogio porque não conheço.
A rapariga fez um amuo e protestou:
¾ Polisson! (CRULS, 1958, p. 477, grifos do autor).

Portanto, ao ceder voz e liberdade de ação às personagens, o autor lhes confere a

característica de uma personalidade própria enriquecida. Ainda que pouco apareçam,

podemos reconhecê-las. E, ironicamente, esse reconhecimento é justamente possível pela

colocação do detalhe crulsiano, um dos detalhes que o crítico entende como banal. No caso, o

longo tempo em que determinadas personagens ficam ausentes da narrativa. O interessante é

que esse mesmo detalhe cria a identidade da personagem, nos fala dela e nos faz sentir a sua

falta. De fato, então, é uma personagem que existe. Com efeito, é ainda a prática do detalhe

que prenuncia um estado psicológico do protagonista Dr. Marcondes e singulariza o cheiro de

sua amada Clélia, como vemos nesse quadro:

No ar pairava uma fragrância mole e conturbativa, confusão de mil


perfumes: exalações da mata próxima, eflúvio de resinas aromáticas, bafo
acre das mangueiras em flor, cheiro de carambolas maduras... Tudo isso o
predispunha a um estado de contentamento íntimo, antecipada felicidade por
um bem indiscernível, mas que certamente havia de chegar de uma maneira
ou de outra à sua velhice, e cheio das mesmas galas com que aquele

111
crepúsculo se preparava para receber o manto da noite (CRULS, 1958, p.
460).

Quem poderia dizer que o colorido desse anúncio seria ressonante mais de cem

páginas à frente, quando o Dr. Marcondes, novamente absorto nas pensativas proporcionadas

por D. Clélia, ouvindo do imigrante francês, de nome Franz, que as “flôrres” lélias estavam

abertas, abotoou mentalmente: ¾ “Lélia... Clélia...?” (CRULS, 1958, p. 569).

Talvez a mesma lélia da Lélia de George Sand, seguramente lida por Cruls, aqui

(trans)significada em lélias-flor e no mito de “Lilith”, com um trágico reverberado e

representado pela imagética realista do mau caráter,  qualidade negativa nem sempre

escolhida, mas que se pensa dissimulada e que se teme vergonhosa, que se faz em mau juízo e

estigmatiza a personalidade do próprio caráter. Amando Clélia, o Dr. Marcondes teria, apenas

na desgraça da amada, a oportunidade de realizar o seu amor: enquanto Clélia estivesse na

cama, ele a teria só para si. Clélia, acamada, também não desejaria outra coisa que não os

cuidados do médico. E, assim, a vivência de um amor sadeano nas suas profundezas, jamais

se conceberia entre as paredes convencionais da sociedade da época; não se aceitaria, pois,

que o mau caráter na verdade nada tivesse de mal, a não ser o aplacamento das expressões

íntimas que tanto quiseram ser ditas. Este sim, um recato, e considerado por nós o grande mal.

LIRA CAVALCANTI

Lembrei-me de Teócrito em um dos seus Idílios:


“O vinho e a verdade são a mesma coisa.
Estamos embriagados, sejamos verdadeiros. Por
mim, eu direi tudo o que trago no coração”
(CRULS, 1958, p. 220).

Em seu artigo “Elsa e Elena” para a revista “Leitura”, em 1944, Lira Cavalcanti parece

fazer uma lírica, se assim é possível classificar, sobre o metapsiquismo e o campo da

psicanálise no romance Elsa e Helena, de Gastão Cruls. Centra sua análise em torno das

112
personagens principais e, sobretudo, em “Elsa Helena” (p. 294). Isso mesmo: o crítico fatora a

expressão composta para sujeito simples, suprimindo a conjunção aditiva formadora do

sujeito composto. A idéia, provavelmente, é revelar que se trata de uma só pessoa com dupla

personalidade: Elsa, a mulher recatada; e Helena, a mulher libidinosa.

A análise de Cavalcanti até parece a de um psicoterapeuta em busca da compreensão

da mulher em Elsa e da mulher em Helena. Assim, as analisa em dois grupos, com

características bem definidas, segundo os estudos freudianos: “em Helena: [vivem] os traumas

afetivos, o despertar alarmante das forças intempestivas, o affect freudiano nos seus distúrbios

escoantes”, [...] “em Elsa vive tudo em recalcamento sob o guante severo da censura” (p.

295).

Precisamente, retrata duas mulheres representantes da sociedade daquela época. Uma,

a mulher para ser a mãe de família, a esposa devotada e a senhora do lar; a outra, a mulher

para despertar, satisfazer e provocar o desejo irrefreável pelo sexo. Talvez aí, pensamos, a

biopsíquica do sonho, sob as “penas de Hesnard, Laforgue, Alendy, Pichon Saussure e tantos

outros” (p. 295), como indica Cavalcanti, possa dar pistas de uma divisão não

necessariamente da mulher, mas do homem. A mulher, sendo parte de uma sociedade

patriarcal, e sob o estigma de Eva, devia viver sob as condições de Adão e da lei de Moisés.

Era, pois, inaceitável ao homem Alexandre, narrador autodiegético de Elsa e Helena, a

condição da feminilidade na mulher Elsa. Esse homem, em uma evidente demonstração de

ojeriza, e atemorizado pela suspeita de traição que parecia se confirmar, assim descreve as

marcas em sua esposa depois de uma noite de sexo:

[...], horas depois, ao deitarmo-nos, quando lhe lobriguei em uma das


espáduas, as marcas que não enganam: lábios viciosos e dedos em crispação
tinham luxuriado impudentemente sobre as suas carnes, enodoando-lhe a
pele branca e fina, pisada aqui e ali, seviciada em vários pontos (CRULS,
1958, p. 231)...

113
A hipocrisia da sociedade da época é muito bem explorada por Cruls, que deixa claro

o sofrimento da mulher na passagem acima. Lendo Elsa e Helena, assistimos, como diz

Cavalcanti, “ao pansexualismo brasileiro, trepidante, selvagem e ancestral, em Helena; a

suavidade, a carícia terna, o consciente dócil e meigo, em Elsa” (p. 295). O crítico aí nos

chama a atenção para a incoerência que há na tentativa de punir a liberdade sexual em um

ambiente que tão naturalmente convida e estimula a sua prática, como o ambiente tropical

brasileiro. O resultado dessa falsa moral é que a libido toma formas ainda mais

surpreendentes. Não obstante, é o caso da dupla personalidade de Elsa. Fôra tão terrível o

encarceramento a que ela e outras de sua geração passada foram submetidas, que a

manifestação do duplo se auto-representa como uma maldição. Uma maldição que desperta

um desejo irrefreável e sem limites simplesmente em função da liberdade negada, e que vai

fazer de Elsa, por exemplo, a mulher casada que trairá o marido com o cunhado Mário, a

criatura insaciável e dominadora, a outra dela mesma  vinda “dos recessos mais íntimos da

inconsciência” (p. 296).

Como confessa Cavalcanti, “há realmente um encanto sedutor na esfíngica

personalidade de Elsa” (p. 296), que se revelará irresistível e desmoronador. Dessa forma, e

de acordo com o crítico, no enfrentamento da “Esfinge”, a metapsíquica de Richet e a

psicanálise de Freud deram a Cruls farto material para o exame de casos da mente, do coração

e da sexualidade das suas personagens.

Nesse sentido, consideramos também que Elsa e Helena, duas mulheres unidas por

uma “benquerença recíproca”: Elsa, “um lio de sentimentos brandos [...], de graça e recato”

(CRULS, 1958, p. 291); e Helena, um vórtice da volúpia impetuosa e volúvel,  não tinham

que necessariamente ser uma e outra. Bem poderiam ser uma mesma pessoa, a mesma Elsa ou

a mesma Helena, desde que livres dos grilhões da recriminação sexual, cuja efusão era tratada

por muitas famílias, à época retratada pelo romance, à base de morfina e do aprisionamento.

114
Com efeito, a condição na qual Elsa passa a ser declarada assiste um esquecimento

duplamente qualificado: ela é esquecida enquanto mulher e deve acatar os parâmetros da

legalidade familiar.

Assim, compreendemos que na escritura sem magia de Elsa e Helena, a cada palavra,

Cruls interpõe a firmata de uma tatuagem da ironia serena, construindo ao balanço da

metáfora do duplo uma teia astuciosa para envolver a “Esfinge” e enfrentá-la. Constitui-se

assim um labirinto através do símile Elsa Helena em busca da introspecção. Nesse sentido, o

ganho do subjetivo que parece diluir a verdade é um esforço para traduzir a tensão do ato da

criação artística, em essência, potencialmente subjetivo e aberto como um sésamo natural e

tormentoso como o cilício, cujo rosto é o retrato do transbordamento do eu-lírico nos rostos

de Elsa e Helena – duplos também de Alexandre. Esses rostos derramam-se em domínios

híbridos em que o eu se faz verbo e se descobre a descobrir, fragmentando-se no espaço e no

tempo: os quinze capítulos do romance configuram pontos ciclicamente culminantes de um

suplício misto de pânico e de deslumbramento, de negrura e de iluminação a refletir encontros

e desencontros de uma sociedade confusa, para qual efeito muito contribuiu a técnica do corte

francês no romance; técnica que, aliás, é-nos apresentada por Coutinho (1986) com vistas ao

romance crulsiano: além de Elsa e Helena, também aos romances A Amazônia misteriosa,

Vertigem, A criação e o criador, e, a nosso ver, de forma ainda mais significativa em De Pai

a Filho.

ASTROJILDO PEREIRA

Creio que o autor [Cruls] está longe de ser um revolucionário, e


de certo não entraria nas suas intenções compor um livro cujas
conclusões sociais pudessem ser taxadas de revolucionárias.
Porém, objetivamente, assim é, salvo melhor juízo. Ao meu
ver, esse resultado decorre simplesmente da honestidade do
escritor. Ele arquitetou o drama, dispôs os cenários,
caracterizou os personagens – tendo sempre em vista a
realidade que o cerca e que ele conhece de perto.
 Astrojildo Pereira (Interpretações).

115
A. Pereira, em Interpretações (1944), reunindo ensaios e estudos seus de 1929 a 1944,

faz interessantes comentários sobre o romance Vertigem, de G. Cruls, os quais datam de

fevereiro de 1935, conforme informação do próprio autor.

Pereira interpreta esse romance de Cruls como o “espelho da família burguesa” (p.

294). Afirma que se trata de um romance revolucionário, na medida em que apresenta uma

classe em franca decomposição. Nesse expediente, um pormenor interessante a ser destacado

é esse retrato da burguesia, Vertigem, exposto de forma paradoxal, já que as práticas

capitalistas, nesse momento, suplantam as práticas socialistas e parecem ser o símbolo da

ostentação da burguesia enquanto classe dominante. É já, na verdade, o símbolo do caos e da

barbárie social que, a propósito, vivemos hoje em dia. A nosso ver, portanto, a interpretação

de Pereira é um bom exemplo de uma análise que observou as diferenças de tom e de forma

das palavras na maneira de exprimir o conjunto de episódios verossímeis, que forma a trama

da ficção romanesca, sendo esse conjunto, um conjunto de coisas idênticas, já que construído

a partir do conceito da verossimilhança: nas palavras do crítico, “mudados os nomes dos

personagens e feitas algumas adaptações de paisagem e de outros detalhes secundários, a ação

do romance poderia desenvolver-se em qualquer grande cidade do mundo” (p. 300).

Sem a pretensão de ajuizar uma produção literária espremida à linha meridional do

crash da bolsa de Nova York, entre as duas Grandes Guerras Mundiais, o crítico, na

introdução de seu livro, justificou as diferenças no modo de encarar certos problemas da

sociedade, apresentados na forma da narrativa ficcional, pelo fator tempo.

Efetivamente, o tempo é mesmo o fator que desvenda as diferenças insinuadas pelo

intérprete de Vertigem. O seu Interpretações, além de sugerir uma certa ordem cronológica

através da datação dos ensaios e estudos arrolados, indica um pensamento que retoma fatos

históricos para explicar a história ficcional. É assim que, para analisar a sociedade burguesa

116
em desagregação, Pereira utiliza o Manifesto Comunista de Marx (1847) 25, demonstrando

como essa sociedade associava erroneamente socialismo a comunismo, e como a decadência

dessa sociedade levava junto a família. Um comentário, talvez taciturno, mostra-nos a que

vitupérios o desânimo nos pode lançar depois de sucessivas crises, sintoma generalizado da

decadência. Considere-se essa passagem em que Licinha, a filha do Dr. Marcondes,

severamente reprimida pela mãe, depois de acumular um noivado fracassado e o impedimento

de namorar um americano divorciado, está nitidamente entregue à alienação:

Vencida essa crise mais aguda, mas tão grave que exigiu da família uma
longa temporada em Teresópolis, ainda por muito tempo o estado de Licinha
continuou a preocupar o pai. É que a empolgou de vez uma melancolia
irremediável, que só encontrava consôlo na prática de devoções e assídua
freqüência às igrejas e, a pouco e pouco, se ia transformando em verdadeira
mania religiosa (CRULS, 1958, p. 437, grifos nossos).

Ademais, observa-se na posição de Pereira, no parágrafo anterior, que os tipos de

Vertigem, tipos de uma burguesia celerada, coadunam com os tipos burgueses de qualquer

burguesia do mundo, com inverossimilhança apenas para a então União Soviética, naquele

primeiro trino de dez anos do século XX, única sociedade não-burguesa, excetuando-se a

realidade oriental. Tal aproximação acontece porque os motivos que fazem funcionar as

pessoas inseridas nesse sistema são os mesmos em todo o mundo, isto é, a autodoação, sem

alternativa, do homem à produção industrial ¾ mola propulsora que formou a identidade da

burguesia no século XX e que a está desintegrando em nosso século, pelo primado soberano

da sociedade de consumo.

Entrementes, esse problema já era apontado por Gastão Cruls na Vertigem que retrata

os primeiros trinta anos da burguesia industrial do Brasil do século XX. Em sintonia com

outros de seu tempo, como Coelho Neto e Olavo Bilac, Cruls participou ativamente, através

25
O autor deve ter tomado como base o ano em que os comunistas se reuniram na extinta URSS, para apreciar
uma primeira versão do Manifesto ainda não publicada. Como se sabe, a história indica o ano de 1848, data da
publicação do Manifesto em Londres, como o ano do aparecimento do Manifesto Comunista.

117
de sua obra, da vida política e social do Brasil, ao que cabe o balanço de Olavo Bilac sobre os

de sua geração literária:

Aluímos, desmoronamos, pulverizamos a pretensiosa torre de orgulho e de


sonho em que o artista queria conservar-se fechado e superior aos outros
homens; viemos trabalhar cá em baixo, no seio do formigueiro humano,
ansiando com os outros homens, sofrendo com eles todas as desilusões e
todos os desenganos da vida; e isso, porque compreendemos em boa hora
que um homem, por mais superior que seja ou por mais superior que
erradamente suponha ser, aos outros, não tem o direito de fechar os olhos, os
ouvidos, a alma, às aspirações, às esperanças, às dúvidas da época em que
vive: ¾ quem faz isso comete um crime de lesa-humanidade. Assim, não nos
limitamos a adorar e a cultivar a Arte pura, não houve problema social que
não nos preocupasse, e, sendo “homens de letras”, não deixamos de ser
“homens” (BILAC, 1997, p. 893).

E, amiúde, “sendo homens de letras”, não deixaram de ler os jornais, especialmente os

noticiários, nem de perceber, estando ao lado de outros leitores de jornal, os que se

preocupavam mais com o brado da matéria que com o humano. Como se os desgostos, as

mazelas e toda dor que verve de um ser sempre em perigo: o grito de uma gente que morria,

 fossem apenas caracteres para mais uma edição comercial.

Revela-se, pois, a Vertigem de Cruls, em seu aspecto social, nessas palavras de Pereira

“objetivamente revolucionário” (p. 298) e, afirmamos, ainda hoje, contemporâneo.

NEY GUIMARÃES

Lida a quinta edição do romance A Amazônia misteriosa, de Cruls, o crítico Ney

Guimarães, em artigo para a revista “Leitura”, em 1944, estende seu comentário

principalmente pelo plano da narrativa sobre a paisagem amazônica. Oferece-nos uma leitura

de uma tela, cujos corredores isotópicos (BLIKSTEIN, 1995) – veículos dos sentidos da

imagem ou da palavra, não ostentam a análise objetiva a exemplo do que acontece, como diz

Guimarães, “nas obras de Ferreira de Castro e Abguar Bastos” (p. 301); aos quais

acrescentamos o nome de Márcio Souza, entre outros que procuram centrar a atenção do leitor

118
diretamente nos problemas sociais trazidos por suas narrativas. A pintura crulsiana tem

também os mesmos objetivos caros à literatura de cunho social. Difere, entretanto, no modo

de mostrá-los. O autor almeja, com isso, despertar-nos para os acontecimentos, para o que

ainda se passa na Amazônia, mas despertar-nos no tom e no ritmo do ellan e do ethos

amazônico, a fim de que olhemos com merecido e urgente interesse os problemas in loco que

são de todos nós. Nessa ocasião, para nos despertar, o autor nos toca, como no entrecho que

segue, com um canto:

De repente, ferindo a quietação da mata, ouvimos uma escala de sons claros,


apaixonados, musicais. E depois, a sucessão de outras gamas, tons abaixo e
tons acima, mas tôdas em timbres nítidos e que vibravam longamente no ar.
Por fim, na mais suave consonância, rompeu o ajuste de trinos e regorjeios,
florejados aqui de pizzicatos, interseridos ali de longos trêmulos e
imprevistas variações, mais adiante retardando-se em notas quérulas e
harmonias morrentes, ou então subindo aos compassos vivos e às chilreadas
álacres. E havia de tudo naquela música: vocalizações argênteas, notas de
cítara e violino, arpejos, estridências de sistro e suavidades de flauta, o
chocalhar de muitos guizos... (CRULS, 1958, p. 107, grifos do autor).

Essa pintura crulsiana da “imensidão verde brasileira” (p. 300), conforme essas

palavras de Guimarães, é a pintura da alma da floresta. O canto do uirapuru. Nada absurdo,

pensando na estreita relação que nós temos com os pássaros, especialmente depois do dilúvio

e do sair de Jesus das águas do Rio Jordão, enxergar no Uirapuru a alma da floresta. Senão a

alma, ao menos o som anímico, que silva os ares e inebria aos outros pássaros e a todos os

naturais da selva, compenetrados, hipnotizados ou, no mínimo, solidários à estesia que um

canto entoa tão profundo, expansivo e harmônico, em agradecimento pela vida, pela beleza

simples que há em viver.

Guimarães examinou com maior atenção o modelo descritivo de Cruls para a

animação da paisagem amazônica, demonstrando que o artista a pintou em minúcias, com o

mesmo vigor de traços impressivos e pungentes característicos do mundo amazônico.

119
Com efeito, e segundo o que pensamos, a descrição é determinante para o desenrolar

dos acontecimentos ou numa esfera paralisada ou numa órbita dinâmica. N’Amazônia de

Cruls, a descrição é uma área viva que acompanha o movimento da narrativa e que a intui, a

eflui e a influi, gerando uma lente objetiva capaz de surpreender a emoção da floresta-mãe.

Nas letras do crítico: surpreender “a pintura e o sentimento da natureza” (p. 302).

Essa observância consente a aproximação do homem da selva. Mas, há uma ressalva:

desde que ele a sinta “como coisa viva” (p. 302). É nesse sentimento, pois, de interação do

homem com a natureza, logo, da narrativa em harmonia com a descrição, em que reside o

olhar consciente de um autor sensível aos problemas reconhecidos, encontrados e antevistos

na Hiléia.

Naturalmente, em Gastão Cruls desponta um estilo lúcido e sóbrio, sem os exageros

comuns aos que se deixam tomar pelo gigantismo da terra virgem, não levando em conta que

tal gigantismo é apenas relativo (basta olhar a Terra em relação ao Universo), que se não for

cuidada, desaparecerá um dia e, talvez, desse desaparecimento também partilhe o homem

desavisado e extrator, egocêntrico e imediatista; infelizmente, com cada um de nós à sua

esteira.

Porém, apesar de seu estilo “vivíssimo” (p. 302) e de marcante personalidade na

literatura de seu tempo, contrariando a previsão de Guimarães, Gastão Cruls é hoje, quase

totalmente, nome e obra ausentes da literatura brasileira.

ALCEU AMOROSO LIMA OU TRISTÃO DE ATAÍDE

Apesar de publicados somente em 1948, ao menos na versão que tivemos em mãos, os

escritos de Tristão de Ataíde sobre a obra de contos crulsiana datam de 1920, e tracejam um

estereótipo curioso de tempos em que a nossa literatura era considerada por esse crítico, senão

por outros mais, uma literatura em formação. Ao advogar sobre os contos do volume Coivara

120
(1920), que ilustrava para conhecimento do público o nome de Gastão Luis Cruls, Amoroso

Lima sintetiza alguns princípios do dístico na estrutura em prosa do conteur.

Tais princípios, como a alma flamenga e o espírito sertanejo, a confluência dos

motivos temáticos da cidade e do campo, a argúcia em torno da terra e das pessoas, ¾

caracterizam a dualidade sempre presente, marcante, e que viria a se consolidar com primor

no fazer literário de Gastão Cruls. Aliás, não tão somente enquanto escritor de contos, mas

também enquanto escritor de romances, como, a propósito, profetiza Lima no capítulo LIV

dos seus Primeiros estudos.

Acreditamos, conforme a leitura que fizemos de Lima, que a metamorfose natural do

pseudônimo Sérgio Espínola, assinante das suas primeiras estórias, nos populares folhetins,

para o nome Gastão Cruls, faz finalmente espairecer aquela aura nebulosa que pairava sobre a

verdadeira identidade do escritor folhetinesco de 1917. Afinal de contas, quem havia de ser o

escritor daquelas linhas “acre-doces” (p. 306)? Nas palavras do crítico, “não é de hoje a

atenção despertada por certos contos publicados na Revista do Brasil por Sérgio Espínola, que

só agora [1920] desvenda a sua verdadeira personalidade” (p. 306).

Consideramos natural a mudança porque, uma vez despertada a atenção dos leitores, o

pseudônimo havia, pois, seguindo um certo costume comum a artistas da época, cumprido sua

função. Mantido o suspense até 1920, o certo é que o mistério daquela escrita poética, mas em

prosa, apresentava a seus leitores uma arte reveladora dos caminhos percorridos ao rufo dos

tambores, com o assobio das gaitas, o choro da viola e os sons nada indiscretos dos habitantes

da mata do planalto, do agreste e da planície; fazendo reviver o dia e a noite de lugares

exclusivos à memória de paulistas e gaúchos, por exemplo, na epopéia do descobrimento do

Brasil interior.

Esses caminhos, talhados no país-continente pelo conhecimento e pelo trabalho

forçado dos nossos silvícolas, dos negros da terra e, depois, pelos negros escravos, ao baque

121
de facões, machados, suor, fome, sangue e morte; mas também pelo empreendimento

bandeirante inexorável, ¾ são relatados em causos de magnífica exuberância, sem falar na

beleza da expressão poética, tão comum na composição das epopéias. Assim, alguns de seus

contos, de acordo com Herman Lima (1952, p. 94), como “G. C. P. A.”, “Noites brancas” e

“Abcesso de fixação”, “de cruel realismo e sombria originalidade de tema, têm o cunho dos

grandes exemplares do conto universal”.

Consideramos importante ilustrar também que, como na Grécia, berço da civilização e

terra de deuses e heróis, e em Portugal-Rei das Grandes Navegações, no Brasil também havia,

pois, esplendores de Glória encobertos, ainda mais sublimes que a “Aurora Boreal”, e que,

aos poucos, através do batedor da floresta, do abridor de picadas, do caixeiro-viajante, do

pescador, do peão de boiadeiro, mas sobretudo do voyeur, foram e vão sendo reveladas:

Saracuras e frangos dágua entremostravam-se entre os renques da tabua


marginal; esquivas piaçocas iam e vinham sobre as fôlhas das ninféias;
marrequinhas de bico vermelho riscavam o ar em volteios céleres; e um ou
outro martinho pescador rasava a água em vôo baixo e ia depois encarapitar-
se em algum galho bem à mostra (CRULS, 1951, p. 264).

A “Mãe dágua” não é apenas nome do conto acima representado, nem tampouco uma

lenda ou pavonice folclórica. É cientificamente uma mãe para todos os brasileiros: a mãe-

água, que só pode ser de água, e em cujos mananciais mina a maior reserva de água doce e

potável do mundo. Além da espetaculosa beleza exibida por cachoeiras como as de “Itaipu”

no Paraná, a do “Véu das Noivas”, a das “Andorinhas” e a dos “Namorados” na Chapada dos

Guimarães em Mato Grosso; as cachoeiras da Serra do Cachimbo no Pará, ou as águas

termais da “Lagoa Santa” em Goiás, os “Saltos” de Costa Rica e Cassilândia no Mato Grosso

do Sul; e o “Rio-Mar” com seus braços hercúleos, além dos majestosos lagos naturais e

subaquáticos, ¾ a nossa mãe dágua dá água viva e rica em novas esperanças médicas,

nutricionais e econômicas para o Brasil e o mundo.

122
Na leitura de linhas tão frescas e puras, o contista mostra que o estereótipo não é o

real, mas é, num quadro formidável, pintura transparente de uma realidade brasileira que

começava a ser descoberta; nas palavras amorosas de A. Lima,

(p)áginas, a um tempo locais e humanas, em que a sedução, os motivos, ou a


observação do meio, das pessoas, e dos costumes se casam à agilidade de um
espírito agudo e culto, tocado de uma ironia indulgente e serena,
exprimindo-se numa linguagem naturalmente simples (AMOROSO LIMA,
1948, p. 320).

Claro que ele está falando do modo pelo qual Gastão Cruls nos dirige a palavra. A

palavra, esta, a grande coivara de Cruls. Um contêiner, já a esse tempo, de fabulosos filões

lingüísticos do país, materializados em personagens que falam: o Manoel Formiga, de “Cipó

braúna”; a Regina e o Paulo, de “O noturno nº 13”; o Naco, Seo Chico Sabino ou a Natalina,

de “A morte do saci”; além de outras personagens ou gente como nós, eu e você

narrativizados pelo autor Cruls, que anda a nos olhar. Assim como olhou à Regina  uma

morta que, ao som de Chopin, vem buscar o marido Paulo em “O noturno nº 13”:

Ainda os vi mais uma vez, já então muito mais longe, quando desciam, num
terreno limpo, pela fita branca de um atalho que levava ao Paraíba. Iam
ainda abraçados e já se me afigurava que não andavam, tão serena era a sua
marcha.
E com a vista perdida ao longe, acompanhei-os assim por algum tempo, até
que as suas duas sombras se diluíram, de todo e para sempre, na luz hesitante
da madrugada... (CRULS, 1951, p. 24).

De fato, o gosto de contar o acontecimento representando-o, e pela descrição

caracterizada da realidade, aparente ou ilusionista; fê-lo um romancista reconhecido pela

crítica, como se poderá notar nas linhas críticas retomadas e comentadas neste capítulo e no

“Volume 2”. Em tempo, Amoroso Lima não se enganara: a obra crulsiana é revisitada, seus

livros são abertos e nós aclarados como a folha do acanto:

123
Pela escumilha da folhagem, num grenalha imponderável e faiscante, ou
então pelas frinchas da ramaria, em longas tiras de luz, a claridade a pouco e
pouco invadia o recesso da mata, adelgaçando-lhe os contornos e
reacendendo os verdes da vegetação, que ainda se marasmava, perdida em
sombras orvalhadas e espessas (CRULS, 1951, p. 25).

Que o diga seu primeiro romance: A Amazônia misteriosa.

...

Em 1963, quinze anos depois da publicação de seus Primeiros estudos (1948), no

Ébion de lições de literatura brasileira, Amoroso Lima volta a publicar sobre Cruls e destaca

que este “é um dos mais autênticos representantes do conto moderno, não modernista” (p.

407). Basicamente, divide a obra crulsiana em estudos do imaginário amazônico, da dupla

personalidade, dos costumes e da cidade do Rio de Janeiro. Com efeito, concordamos

plenamente com a observação de A. Lima, e poderemos conferir a oposição

modernismo/modernista logo mais à frente, no diálogo com Bernardo Gersen, Massaud

Moisés e Afrânio Coutinho, entre outros.

GASTÃO CRULS

Em artigo encomendado pelo “Jornal de Letras”, em 1949, o escritor G. Cruls fala

com nostalgia da rua do Ouvidor26, no Rio de Janeiro. Conta dessa rua, como e onde tudo

começou, rememorando suas lembranças, reenfeitando as imagens guardadas e saudando

nomes de artistas, comerciantes, amigos, conhecidos e anônimos. E fez ainda mais, recorreu a

todo um conhecimento histórico, que remonta ao século XVI. Citou lugares esplendorosos,

como uma “capela inaugurada em 1628, no lugar em que existira um forte” (p. 308), e onde

esteve, no seu tempo, quem sabe ainda hoje, a Igreja da Cruz dos Militares.

De mais a mais, a cidade do Rio de Janeiro, parecia despertar em Cruls uma saudade

triste, que o amargurava no íntimo, em decorrência das transformações desordenadas e da

26
O mesmo texto encontra-se reproduzido na íntegra em CRULS, Gastão Luis. Aparência do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1952, v. 2, p. 420-5.

124
proliferação urbana conduzida por uma política severamente capitalista. Incomodava-o a idéia

de que um dia toda aquela beleza terminasse; e se é bem verdade que ela, apesar de tantas

agressões sofridas, continua lá, também é verdade que muito se perdeu. De todo modo,

arqueou as sobrancelhas e franziu o cenho, pensando-se inútil e sopezando o sofrimento de

uma agonia solitária que, por outro lado, rendia-lhe a revelação de segredos das pedras, das

madeiras, dos prédios, das árvores, dos hábitos, dos costumes, da cultura, do mar, das

montanhas, dos chafarizes, do bonde, dos morros, dos lampiões... da rua do Ouvidor. Na alma

de Gastão Cruls, lugares e pessoas são desfrutados no mais pequeno indício, transformado

numa palavra, numa frase, num artigo, num livro.

Ao apontar os velhos endereços de mercados, capelas, salões de festas, quitandas,

praças e outros, de balbúrdia ou concentração popular, o escritor parece estar caminhando

pela rua enquanto escreve. Caminhando, ao vivo e a cores, e conversando outra vez com

portugueses, franceses, árabes, holandeses – descendentes dos primeiros moradores – à porta

de hotéis e cafés ou no meio da rua mesmo. Nesse momento, detemo-nos um pouco para

comentar com o nosso leitor, sobre uma curiosidade destacada por Gastão Cruls em nota de

rodapé, no seu Aparência do Rio de Janeiro, a respeito da rua do Ouvidor, que, em 1947,

ainda atendia, num de seus trajetos, pelo nome de rua da Quitanda:

Chamou-se antes rua da Quitanda dos Mariscos e, ainda antes, rua do capitão
Mateus de Freitas. Mais tarde, durante certo tempo, deu-lhe também o povo
nome de origem meio porca, ligada a certo médico inglês, especialista no
tratamento de almorreimas, e que aí teve consultório. De uma feita, no seu
português muito engrolado, disse o esculápio a um cliente, tranqüilizando-o:
¾ Seu c.. sarará. Foi quanto bastou para que a rua passasse a ser rua do
Sucussarará. Diz-se ainda ter sido na rua da Quitanda, numa casa do lado
par, esquina da rua do Sabão, que, em 1711, se contaram os muitos mil
cruzados entregues a Duguay-Truin, para resgate da cidade (CRULS, 1952,
v. 1, p. 143).

Celebrino, Gastão Cruls via a rua do Ouvidor como um hino à amizade, aos bons

papos entre um Rui Barbosa e a gente nem tão intelectual, mas nem por isso inculta, que

125
costumavam se encontrar casualmente, mas nem tanto, já que todos acudiam à rua do

Ouvidor, justo por causa desses encontros não marcados; mas sempre, como de costume,

desejados e realizados não importa a que hora do dia.

Entre a multidão de nomes, destacam-se os de Graça Aranha, Euclides da Cunha,

Olavo Bilac, José Veríssimo, Alberto de Oliveira, Machado de Assis, todos com uma história

para contar da rua, que era muito mais que uma rua. Era como se fosse a casa de todos os

cariocas, do Brasil brasileiro, do brasileiro mestiço, do violeiro e do sambista, das óperas, das

sonatas e outros clássicos musicais, de João do Rio e de cantores boêmios como Orlando

Silva: era, essa rua nossa ladrilhada, encantada, o pulso do nosso coração.

A fascinação sentida pela rua do Ouvidor, fascinação que encontrava correspondentes

no teatro, nos jornais; enfim, em todas as artes, ¾ ainda hoje tinge a nossa razão de uma

utopia: a de cidade do Paraíso. Segurando a custo, um nó na garganta, Cruls termina o artigo

num estalo, num repente, sem abandonar as lembranças de glória ou desalento, trazidas em

grande parte do glamour de uma rua da Capital do Império, Capital dos primeiros anos de

República, cujo canto do poder estava por perder. Ele, já de muito o sabia, e por que temia:

fora de seu pai a missão de demarcar o novo lugar, onde estaria a futura rua do poder

republicano. Então, o Rio, não seria esquecido? O certo, é que a rua do Ouvidor ainda tem seu

charme. Como nós mesmos pudemos ver, durante o tempo que passamos no Rio, (re)

buscando as memórias do autor. Só não sabemos dizer o quanto ainda sobrevive do charme

apreciado pelo escritor, publicado pela primeira vez em 1949, e que dizia de outros

arrabaldes, aparecidos em 1839:

Todos esses veículos, puxados a dois ou quatro muares, acomodavam de oito


a doze pessoas, sentadas frente a frente, em bancos dispostos
longitudinalmente. De acôrdo com França Júnior, nas gôndolas, além dos
doze lugares no carro, ainda havia outros, na boléia, muito disputados pelas
cômicas e pelos dândis, talvez porque uma das suas linhas do centro, com
destino ao Rocio Pequeno, percorria a rua do Ouvidor, sempre na moda
(CRULS, 1952, v. 2, p. 336).

126
Sempre na moda e lugar da conversa ao ar livre, do encontro das turmas. Além disso,

Machado já tinha razão: “Não levarão daqui a nossa vasta baía, as nossas grandezas naturais e

industriais, a nossa rua do Ouvidor, com o seu autômato jogador de damas, nem as próprias

damas” (MACHADO DE ASSIS apud CRULS, 1952, v. 2, p. 589). O otimista incorrigível

vai além: “O tílburi [...] promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar, e entrarem os

cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos, esperando o

freguês do costume” (MACHADO DE ASSIS apud CRULS, 1952, v.2, p. 337).

Todavia, Cruls já via, meio reticente e de soslaio a confirmação de seus temores:

Foi-se também a conversa à porta da Garnier, hoje desaparecida, e que a


Livraria Briguiet não conseguiu alimentar. Alimentar ou renovar, pois que
da velha geração literária que ali fazia ponto, tendo por figura central
Machado de Assis, bem poucos restarão e os “novos” deram preferência,
para a prosa amistosa ou... maldizente, à loja fronteira, onde se instalou a
Livraria José Olympio (CRULS, 1952, v. 2, p. 516, grifo do autor).

GILBERTO FREYRE

A partir de 1949, o artista Cruls passa a contar com a análise de Gilberto Freyre sobre

uma literatura que constitui a presença urbana no escritor da Amazônia e do agreste

brasileiros. Sempre interessado no que a crítica tinha a dizer de sua obra, Cruls agradece:

[...] Dizia Afrânio Peixoto que a primeira edição de uma obra é a sua última
prova. E será porventura a última? Pelo menos, assim se espera e deseja,
quando, à sua leitura, dedicaram olhos atentos alguns amigos e eruditos, a
quem se fazem aqui novos agradecimentos (CRULS, 1952, v. 1, p. 11).

Na leitura de Freyre, do documentário Aparência do Rio de Janeiro, há que se dar

atenção especial à espiritualidade com que Cruls imprime uma descrição da selva de pedra

carioca, deixando brotar dela a natureza sempre exuberante do mar, das praias e das pessoas

que guardavam serenas o convívio afinado entre a civilização e a Natureza em Aparência do

127
Rio de Janeiro. Mas, excepcionalmente, deixemos que o próprio Cruls conte sobre esse

documentário da paisagem carioca, que contém o artigo de Gilberto Freyre, logo na sua

abertura. Espontâneo, Cruls dirige-se ao leitor em páginas que estaremos transcrevendo em

“Outros contos”, na nossa “Antologia” no “Volume 2”.

A seu tempo, Gilberto Freyre segue descrevendo, de um modo que nos parece

romanceado, os lugares, as ruas, as pessoas, a vida e a história do Rio de Janeiro apresentado

por Gastão Cruls. O crítico não esquece de mencionar os contrastes, inclusive sociais, que

aumentavam à medida que a cidade crescia, algo desordenada, mas, no íntimo, uma cidade

redefinida por Gastão Cruls com a mesma harmonia dos “rumores vindos das águas e das

matas e que aqui se misturam fraternalmente aos dos bondes, dos automóveis, dos homens,

dos mercados, das danças, dos armazéns, dos jogos, das ruas, das favelas, dos hotéis, como

em raras cidades grandes do mundo. Como talvez em nenhuma” (p. 325).

A impressão que temos dessa leitura de Freyre, é que o Rio, em sua beleza nunca

esgotada nas descrições, parece ter a força natural e suficiente para continuar vivo e

apaixonante, apesar das ameaças que desde tão longe ameaçam por fim ao que de maravilhoso

ainda existe. Ademais, uma aquiescência das imagens que nos são dadas por Freyre, pode ser

vista no comentário de Joel Pontes, intitulado “O Rio de ontem visto por olhos de hoje”, com

o subtítulo “O livro de Gastão Cruls e as imagens pitorescas ou poéticas que ele revive”,

também transcrito em nossa “Antologia”.

Assim, o documentário de Cruls, Aparência do Rio de Janeiro, que nós aqui

chamamos romance da cidade maravilhosa, é um documentário das anedotas e de notas

diversas sobre a gente, a arquitetura e as transformações na então Capital da República. É

ainda um livro da rua do Ouvidor, a mesma rua do Ouvidor que Crus descreve em seu artigo

para o “Jornal de Letras”, no mesmo ano da publicação da A Aparência, e que nós já

128
comentamos. Como diz Freyre, já no título de sua matéria, é um documentário sobre “O Rio

que Gastão Cruls vê”, “livre para evocar o passado e comentar o caráter da cidade” (p. 320).

Pensamos que vale a pena apontar uma curiosidade: Gastão Cruls, em seu texto sobre

a rua do Ouvidor, fala do Rio como uma cidade mulher. Parece-nos que Freyre partilha a

mesma idéia quando, descrevendo as formas dos morros, afirma que nelas “a paisagem da

cidade parecia arredondar-se em ventres de mulheres moças” (p. 321).

Segundo Freyre, Gastão Cruls foi um artista que amou o Rio de Janeiro. De fato, é

mesmo um sentimento de amor o que podemos perceber na leitura do documentário de Cruls,

e que o crítico nos reporta em seu comentário. De acordo com Freyre, apesar das

descaracterizações que o Rio sofrera com o desenvolvimentismo, ao menos em seu tempo,

contemporâneo de Cruls, continuava a ser “a mais bela das cidades do Brasil” (p. 322). No

nosso modo de ver, apesar da brutalidade capitalista a que a cidade continuou sendo

submetida, ainda hoje é.

Outrossim, levando-se em conta que o Rio era o lugar em que o novo, no Brasil,

chegava primeiro, Cruls anteviu as preocupações alarmantes por que passa a sociedade

carioca hoje. Entre elas, a do crescimento urbano desordenado e os conflitos entre forças de

representação do lugar-Rio como berço e gestor da cultura nacional, e forças de representação

de interesses particularistas – quer coloniais quer neocoloniais. Um dardo oracular dessas

preocupações pode ser apanhado na Aparência do Rio de Janeiro, em um exemplo talvez

banal, mas que nos revela uma alienação do espaço tropical e a preferência por um certo

modismo em valorizar o que vinha de fora. Com efeito, a mesma tradição da qual Cruls fala

na passagem abaixo estava presente na política, na educação e em outras áreas do Brasil desse

tempo, como bem nos informa Antônio Torres em suas cartas a Gastão Cruls, que, inclusive,

comentamos à frente:

129
Ah, a tradição e a linhagem dos egrégios mestres-cucas de outros países! Daí
o não termos um só restaurante genuinamente brasileiro, de comida
tipicamente nacional, que a temos, e muito boa, com os seus variados e
magníficos pratos regionais.
Mas como pensar nisso se até em menus que se estiram por colunas e mais
colunas e onde confraternizam as sauces remoulades e os goulaschen, o
caviar e a olla podrida, a bacalhoada à minhota e o roast-beef, só de raro em
raro há lugar para qualquer vatapazinho, que assim mesmo só aparece por ali
muito ressabiado, e quase sempre também muito mal feito? (CRULS, 1952,
v. 2, p. 576, grifos do autor).

Providencialmente, então, Sales (1950, p. 37) dirá a respeito da Aparência do Rio de

Janeiro, por Gastão Cruls, ou seja, da composição desse documentário como “Guia Prático,

Histórico e Sentimental de São Sebastião do Rio de Janeiro”, “que ninguém estava mais

indicado para a tarefa que o Sr. Gastão Cruls, que é carioca da gema, e que aqui tem vivido

quase sempre”.

LÚCIA MIGUEL PEREIRA

A crítica e escritora Lúcia Miguel Pereira, no seu livro Cinqüenta anos de literatura

(1952), não comenta, propriamente, o artista G. Cruls e sua obra, mas sintetiza e, a nosso ver,

de forma brilhante, um período de cinqüenta anos da literatura nacional, que compreende a

primeira metade do século XX. Acreditamos ser relevante o comentário de seu texto como um

todo, considerando a presença de Gastão Cruls no panorama da literatura brasileira por ela

abordado, especificamente quando trata da geração de 30. As informações que por ela nos

chegam percorrem a retrospectiva dos acontecimentos, que culminaram no evento da Primeira

Semana de Arte Moderna e a literatura e a história literária a partir daí.

Como sabemos, na era moderna, de supremacia dos interesses econômicos, a despeito

do socialismo, do comunismo, do capitalismo e de todos os outros “ismos” instalados no

caldeirão prestes a ferver de novo com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, L. M. Pereira

decanta a literatura dos rincões, das montanhas, das veredas, das novas sociedades urbanas e

rurais emergentes, bem como das novas relações entre essas sociedades. Fornece-nos, pois,
130
elementos da história literária que nos permitem distinguir a poesia, o conto, a canção, o

romance e outros gêneros do regionalismo brasileiro, como “Casa grande & senzala, de

Gilberto Freyre, cujo cunho para logo se imprime na fisionomia intelectual, reforça e anima

os pendores regionalistas” (p.328).

Não debalde, conforme entendimento nosso da leitura de Miguel-Pereira, esconjurar o

regionalismo tradicional, por vezes, apenas folclórico, de um regionalismo real; num claro

movimento de redescoberta do Brasil e de espanto da dormência reinante em nosso interior,

significava “a possibilidade da literatura brasileira adquirir, através da nova expressão do

local, contornos sociológicos, ou ecológicos” (p. 329).

A propósito, gostaríamos de destacar que esses contornos mencionados pela crítica

estiveram por longo tempo exilados do reconhecimento republicano; e as riquezas regionais,

muitas delas insondadas, só hoje em dia aparecem noticiadas e louváveis em toda a federação.

Com efeito, ao romantismo da prosa sentimentalista, ao realismo-naturalismo das narrativas

que desnudaram os exageros românticos, ao parnasianismo da rima rara e perfeita: uma quase

volta ao classicismo, ao simbolismo impressionista/expressionista do eu e do alter ego, ¾ une-

se o grupo da “maior orgia intelectual que a história artística do país registra” (p. 327),

segundo essas palavras de Mário de Andrade, aqui veiculadas por conta de Lúcia M. Pereira.

Finalmente, então, como podemos compreender, nós também temos nosso

“arquipélago cultural” (p. 327), para usarmos a expressão de Viana Moog, também por conta

da crítica. Dessa forma, ter uma literatura que fosse a expressão desse arquipélago,

deliciosamente anárquico, de dialetos e variantes, era o grande desafio para um fazer literário,

em grande parte, ainda viciado no rebuscamento barroco, como se pode ver na Historiografia

literária, na História, na Sociologia, na literatura de Direito e na literatura Política, por

exemplo.

131
Nesse contexto, o “Boletim de Ariel”, fundado e dirigido por Gastão Cruls e Agripino

Grieco, em 1931, conforme Miguel-Pereira, representa a coletivização, ao longo de oito anos

de circulação mensal, de pensamentos que resistiam às mudanças perspectivadas pelo

cientificismo de fins do século XIX, de pensamentos que pregavam a ruptura brusca e

incondicional com os modelos estéticos e de pensamentos condensadores dos dois primeiros:

“havia então lugar para uma revista destinada tão somente à crítica [...] para se verificar

quanto foi rico o surto literário. Poetas, romancistas, ensaístas escrevem com entusiasmo,

quase com paixão, tomam posições, definem-se, apóiam-se reciprocamente ou reciprocamente

se combatem” (p. 328). Felizmente, como podemos avaliar, nem o anacronismo e o

sincronismo totalitários de um e de outro. Vence a arte. E nos são dadas as jóias e grinaldas de

Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Cora Coralina, Lúcio

Cardoso; além de outras, e de outras que estão por serem descobertas, e de uma que estamos

(re) descobrindo: Gastão Cruls, apontado por Miguel-Pereira, ao lado de Dinah Silveira de

Queiroz, como os únicos ficcionistas – entre os da geração de 30 – que tiveram “grande poder

inventivo” (p. 331).

Nessa oportunidade, queremos ainda acrescentar que “O Boletim de Ariel” não se

abria apenas para a crítica, como acima está assinalado. Pensamos que, em seu “Boletim”, não

apenas a crítica mostrava a sua cara, mas, sobretudo, a nova arte despontava, como pudemos

ler nas páginas arquivadas dessa revista, abençoada por um outro sol nascente: mais vermelho

no Sul e amarelo-fogo no Centro-Oeste. Um sol depoente mais avermelhado no Sudeste,

enorme no Nordeste e de arco-íris mais intenso, com o colorido ainda mais realçado, no

Norte. Simulacro congênere nos dá G. Rosa em “A hora e vez de Augusto Matraga”, de seu

“Sagarana”, volume que reúne nove de doze das suas primeiras histórias; ao mostrar à preta,

mulher do preto, chamada por Mãe Quitéria, o “círculo rodeando ao redor da lua cheia”, “o

sapo coachando”, em sinal de que logo se havia de chover no sertão mineiro.

132
Essa sabedoria, pois, que refere o povo e a paisagem brasileiros, pertencente a

estudiosos do léxico e de outras áreas, por esse tempo, mais fechadas e restrita, na literatura, a

um grupo ainda pequeno ganha espaço notável no empreendimento artístico e histórico,

merecendo inclusive constar da coleção “Documentos Brasileiros”, como podemos constatar

nas obras de Guimarães Rosa, de Gastão Cruls e de tantos outros.

Continuando nossas reflexões... de fato, num contexto, em que criar uma arte limitada

pelo plano material e físico perdia força ante o avanço do impressionismo, cujo marco nos

reporta ao quadro “Impression”, de Claude Monet, a arte brasileira esbatia-se também com

amarras da estética naturalista e com a redoma da estética parnasiana. Esse rodopio levantou

acalantos, anedotas, rondós, parlendas e tantas outras espécies líricas e narrativas do interior

que ainda hoje estão nos sendo dadas a conhecer.

Uma olhada em obras de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, Graça Aranha, Antônio

Torres, Lima Barreto, José Geraldo Vieira, Peregrino Júnior, Monteiro Lobato e Gastão Cruls,

por exemplo, nos permite observar traços profundos de uma arte nova, independente e

reanimada, voltada para o social e o psicológico no campo e na cidade, através de uma (re)

visão do regionalismo brasileiro.

Essa (re)visão compunha um panorama sincrético do realismo, do parnasianismo e do

simbolismo, imprimindo-lhes o olhar novo de um artista mais alerta para as questões

humanas, em vista, especialmente, do evento da Primeira Guerra Mundial.

Esses novos olhos da arte buscavam encontrar novos heróis e anti-heróis, novas

matérias para o pensamento e para a espiritualidade: buscavam reencontrar a sensibilidade

arrefecida na alma de gelo do homem dos primeiros quarenta anos do século XX. O

empreendimento dessa busca caracterizou-se por algumas particularidades fundamentais:

como nos nossos dias, os avanços tecnológicos nas áreas das ciências materiais e das

biológicas aconteciam em velocidades cada vez maiores, obrigando a filosofia e as ciências

133
sociológicas a repensarem as relações entre os homens e entre estes e a Natureza; outra

particularidade é o fato bastante relevante de que, se hoje em dia, já nos acostumamos às

novidades diárias apresentadas pelas ciências, como o caso dos transgênicos e a pesquisa com

células-tronco de embriões humanos; no princípio do século XX, qualquer mudança causava

surpresa em espécie. Precisamos lembrar que, para essa sociedade, a referência ainda era o

imagístico de uma sociedade estática e não habituada a presenciar sucessivos eventos que

mexiam suas bases morais, religiosas e materiais. Com efeito, dois sintomas desse contexto

são-nos, hoje, evidentes: a anarquia e a tirania.

Nesse sentido, o voltar os olhos para o interior do ser e da terra, é uma procura por

refúgio, abrigo e esperança. Na ânsia dessa procura a arte se revelará expressionista, um pós-

impressionismo, ou um impressionismo que liquida a aparência do real e sobreleva a

impressão do sentimento do artista, do artista como médium e mago; isto é, como profeta e

consciência calibradora da suspensão de um mundo cartesiano.

Assim, a arte seria um toque de correção de rumos, de correção da realidade

intermediada pelos avisos, pela transposição de experiências e pela exposição de tragédias

pessoais, sociais e espirituais: a recomposição da alma pelo fluxo da consciência de autores

como Franz Kafka, James Joyce e Virgínia Woolf. Naturalmente, essa caracterização da arte

não era novidade, mas talvez ela nunca tenha sido tão necessária, e talvez nunca tantos artistas

tenham sentido ao mesmo tempo as mesmas necessidades, medos e dramas de uma realidade

nitidamente, para eles, sombria. De sua atmosfera cinzenta, a realidade que levou Baudelaire a

questionar, se alguém escreveria poesia depois do holocausto, vê-se refratada em pinceladas

nevrálgicas, como as do surrealismo na pintura, na literatura e em todas as artes.

Uma foto-síntese desse misto de delírio, de homem-máquina, de sociedade desalmada

é encontrada na nossa literatura pelo menos desde Machado de Assis em Memórias póstumas

de Brás Cubas. Se, no entanto, alguns nomes foram marginalizados por conta do escolho de

134
manter uma forma, uma moldura para o espelho da sua arte, cabe-nos lançar as próprias

palavras da crítica Miguel-Pereira, falando no desfecho de seus Cinqüenta anos de literatura:

Poderá alguém vislumbrar nas recentes preocupações estilísticas o perigo de


uma volta à tôrre de marfim, à arte pela arte. E haverá artista sincero que,
enquanto trabalha, não se deixe dominar pela que faz, esquecido de tudo o
mais? A intenção, se existe, de exprimir o meio, de defender postulados ou
concepções de vida, é anterior, da elaboração e não da execução. Esta, se não
fôr predominantemente estética, poderá comprometer a obra. O vaivém entre
o artesanato e a espontaneidade talvez resulte de uma exigência da evolução
literária. Oscilando entre buscas, ora visando à maior permeabilidade às
solicitações do ambiente, ora à maior perfeição do instrumento, é que se
atingirá o ideal de fundir os elementos humanos e os artísticos, cujo
antagonismo, todo de superfície, trai falta de profundeza, de maturidade
(MIGUEL-PEREIRA, 1952, p. 37-8).

Queremos também considerar que: entre o estatuto de dar uma forma ao conteúdo e o

de instituir a anti-forma há uma escolha arbitrária e relativa, posto que uma e outra são linhas

imaginárias e sujeitas ao estado da intuição. Logo, o conteúdo tem, perenemente, a capacidade

de romper as linhas, os estereótipos e dar-nos uma imagem muito maior que a moldura

quando o vetor de mobilização do leitor é a fantasmagoria, ou, em medida exageradamente

desproporcional para menos, dar-nos um ponto ínfimo, mas como sincretizante de uma

realidade que não caberia nem no maior quadro do mundo; seja esse quadro a tela do pintor, a

narrativa poética ou a narrativa em prosa do escritor.

Conforme Miguel Pereira, “um livro de contos regionais, Sagarana, de Guimarães

Rosa, poderá lembrar, pelo colorido verbal, os parnasianos lavores estilísticos”, “mas não há

regresso, não se volta à declamação” (p. 333). Assim, optar por dar uma forma ou por não dar

uma forma não impede o conteúdo de erigir-se forma. Ademais, é preciso objetar-se que a arte

de fins do século XIX e incipiente no século XX, com forma ou sem forma, ela seria para

sempre diferente da arte clássica. A poesia continuou existindo depois do holocausto, assim

como sobrevivera em tempos de guerras santas, remontadas aos tempos de Moisés e Josué,

pelas quais povos inteiros foram exterminados em nome da intolerância. Aliás, a mesma

135
intolerância que rastilhou-se acesa e mortal nas guerras modernas e nas guerras urbanas e

terroristas dos nossos dias; dias historicizados em um quadro da realidade na qual os

corredores isotópicos, dos quais falamos em Ney Guimarães (1944), pontilham um canguru

carregador de extremismos e de violentos preconceitos raciais, entre outros. Além mares, a

Canaã de Graça Aranha reclama a palinódia da Canaã do Oriente, como o “Buriti perdido” de

Afonso Arinos:

Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua, talvez uma


grande cidade se levante na campina extensa que te serve de soco, velho
Buriti Perdido. Então, como os hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que
conquistaram a liberdade enternecendo os duros senhores à narração das
próprias desgraças nos versos sublimes de Eurípedes, tu impedirás, poeta dos
desertos, a própria destruição, comprando teu direito à vida com a poesia
selvagem e dolorosa que tu sabes tão bem comunicar.
Então, talvez, uma alma amante das lendas primevas, uma alma que tenhas
comovido ao amor e à poesia, não permitindo a tua destruição, farás com que
figures em larga praça, como um monumento às gerações extintas, uma
página sempre aberta de um poema que não foi escrito, mas que referve na
mente de cada um dos filhos desta terra (ARINOS, 1981, p. 47).

OLÍVIO MONTENEGRO

Montenegro, em O romance brasileiro (1953), prefaciado por Gilberto Freyre, aponta

o artista Cruls como romancista moderno ao lado de Graciliano Ramos, José Lins do Rego,

Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, Ciro dos Anjos. Munido de uma crítica livre, entretanto,

provoca dizendo que “o escritor Gastão Cruls tem uma fantasia inventiva até o sonho, como a

das crianças, [mas] o artista parece não reproduzir esse sonho com a mesma audácia com que

o concebeu” (p. 337). Nesse sentido, na análise da ficção crulsiana, a exemplo da análise de

outros nomes, feita por Olívio Montenegro, desponta uma crítica “forte”, “ruidosa”, aliás, são

esses alguns dos predicados utilizados por Freyre, ao avaliar o modo de O. Montenegro fazer

o comentário. A Montenegro, pois, interessava a obra e não o autor; e seu instrumental de

análise, apoiado nos métodos histórico e psicológico, favoreceu ao crítico colocar em

136
evidência a qualidade da obra estudada e o poder de expressão e de interpretação artística da

vida, por parte de Cruls.

Nesse sentido, Freyre, no referido prefácio, comenta a extraordinária capacidade de

Montenegro para analisar e para revelar os desajustamentos da personalidade com o meio,

graças a um conhecimento abrangente de fatos determinantes da realidade brasileira. Um tal

alcance da visão crítica de Montenegro lhe permitiu, conforme Freyre avalia, ponderar a

influência inglesa e norte-americana sobre alguns dos nossos romancistas mais ilustres: de

Machado de Assis a Gastão Cruls, de José de Alencar a Jorge Amado ou a Érico Veríssimo.

Ainda de acordo com G. Freyre, o crítico Montenegro esteve entre os mais aptos para o trato e

a análise dos problemas de relação, próprios ao estudioso da literatura comparatista.

Observa-se que Montenegro construiu uma crítica que valorizou os textos literários

que estudou. Inserido na coleção “Documentos Brasileiros”, O romance brasileiro dedica

atenção especial ao romancista Gastão Cruls, com destaque para a narrativa de cunho

fantástico e psicológico do escritor. Conforme O. Montenegro, Cruls se encontra entre nomes

representativos de um interesse dominante da ficção nacional, que é a abordagem dos

problemas nacionais. Retomando Freyre: essa abordagem é o objetivo maior que O romance

brasileiro almeja alcançar, e que certamente o faz, segundo esse prefaciador, “na impressão

nítida desse gênero na nossa literatura e do real das suas tendências”.

Cremos ser importante destacar que, ao estudar a ficção crulsiana, Montenegro

distingue algumas características que formam um conjunto do interesse dominante: a

transcendência para o mundo do degredo humano, a exploração introspectiva das

personagens, a auto-representação, a condição de observador auspicioso das situações e dos

casos estranhos, e ainda a expressão detalhista, desejando a veracidade: “um teatro de tons

claros, suaves e bem nítidos” (p. 337). Com esses recursos, o artista escreveu uma obra para a

137
qual concorreu documentário e arte das paisagens, dos costumes e da memória das pessoas,

tanto em nosso ambiente rural como no urbano.

Com efeito, de nosso ambiente rural, citamos o exemplo de A Amazônia misteriosa,

em que o crítico chama Malila de “a doce bugrinha” (p. 338), e diz que o artista Gastão Cruls

“cinge-se aos flagrantes mais característicos, aos detalhes mais expressivos do caráter daquele

povo indígena, e tudo o que nesse quadro sugere de história de ficção é nos seus traços

essenciais história verdadeira” (p. 339). Por sua vez, de nosso ambiente urbano, citamos

exemplo em Vertigem, romance de Cruls ao qual Montenegro se referiu, certamente se

lembrando das hesitações do Dr. Marcondes, e por isso dizendo dessa “pontinha de algo

extraordinário que teria ficado por dizer” (p. 337), sendo essa, sempre, uma característica da

narrativa crulsiana. Conforme o crítico, porém, apesar desse estilo “cauteloso”, “na fixação de

certas paisagens, na pura narrativa, poucos o excedem [Cruls] em uma prosa mais encantadora

e simples” (p. 337).

De fato, os espaços da Amazônia e do Rio de Janeiro dão a Cruls uma feição dupla tão

serenamente moldada pela perspicácia do autor, que levam o artista para os estratos mais

realmente íntimos das personagens e do mundo, sempre fomentando e ao mesmo tempo

burlando as inevitáveis situações de contágio, advindas do envolvimento com os problemas

sentimentais e morais, conseqüentes dos desajustes da personalidade ao meio. Ainda mais que

esse meio, no Brasil, é um meio em formação, com mudanças profundas nas instituições

político-econômicas e sócio-culturais, ao longo de todo o século XX, e que, no entendimento

apropriado pelo professor Felicíssimo, personagem no conto “O assassinato de Roberto

Flores” 27, tratava-se de instituições que careciam ser saneadas:

¾ O problema do saneamento no Brasil deve interessar a todos os bons


brasileiros, pois que é a pedra angular, sobre a qual assentam os alicerces do
majestoso edifício da nossa nacionalidade.

27
Esse conto está transcrito na antologia “Outros contos” do “Volume 2”.

138
Conheceis o que penso a respeito do complexo problema da assistência
pública, que entendo não se deva limitar apenas às instalações nosocomiais,
mas ao serviço de socorros higiênicos, alimentares, farmacêuticos e médicos
a domicílio (CRULS, 1951, p. 189).

Por isso mesmo toda a literatura de Cruls é arte e documento desse Brasil em busca da

afirmação da sua identidade. Em Cruls, a presença da descrição como detalhe histórico e da

fantasia como materialização do sonho do brasileiro do campo ou da cidade, pontua um

quadro do cotidiano nacional, cuja rotina faz pensar numa narrativa que por vezes imbica um

jogo de paciência e de lugar comum. Mas o desenvolvimento dessas cenas no conto, ou no

romance crulsiano, este, sugerido por Montenegro como quase branco, sonolento, em lugar do

ritmo eloqüente que as tais cenas parecem pedir, pode ter um rumo de análise diferente do

desfechado por Montenegro. A ansiedade pacientemente fomentada e despertada no leitor é

um nó na garganta que não se deixa engolir. O compromisso com a finalidade de causar o

estranhamento, inclusive na própria leitura que o leitor faz ao texto, é uma espécie de

arremate de sua escritura finamente polida, dizendo sempre muito mais do que parece. No

dizer de Massaud Moisés (1997b, p. 442), comentando o contista Cruls, “a emoção preexiste e

subsiste ao exame racional e é isso exatamente que tais narrativas diligenciam oferecer”.

TEMÍSTOCLES LINHARES28

Na virada da primeira metade do século XX para a segunda, Linhares comenta, em

1954, no seu artigo para “O Estado”, “Um teste sobre o romance”, sobre os contornos cada

vez mais complexos que estão enredando o romance. Em virtude disso, pensamos com as

palavras do crítico: “definir o romance é impossível, nem interessa mais hoje” (p. 340).

Linhares defende o argumento de que o romance, para ser um bom romance, deve oferecer

uma narrativa capaz de plasmar o leitor em sua atividade de leitura; isto é, um romance o qual

28
O mesmo texto publicado em 1954 no “O Estado” reaparece em LINHARES, Temístocles. Diálogos sobre o
romance brasileiro. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1978, p. 110-13.

139
“lemo-lo de uma assentada, mergulhamos nas suas páginas sem o saber, devorando-o

pantagruelicamente” (p. 341), diz Linhares.

Comentando o romance De pai a filho, de Gastão Cruls, o crítico afirma que “o livro é

realmente soberbo e não encontra muitos similares em nossa literatura. É quase impossível

apontar uma aptidão maior para jogar com o dom de construir e armar os problemas de um

romance” (342). Linhares observa o estilo com que o escritor trata a sociedade enferma

possuída pelas taras, e, ironicamente, pela impotência sexual.

Nesse sentido, podemos dizer, acompanhando as reflexões do crítico, que, rastreando

conflitos psicológicos a partir de desilusões amorosas, de relações familiares marcadas pela

repressão, do antagonismo entre o credo e o modelo de divisão classista da sociedade; e

rastreando conflitos materiais no saldo de uma espiritualidade cambaleante, murcha,

decadente, tudo isso agravado pela grande tensão por qual passava o mundo, de olho no

espaço europeu, prestes ao início do primeiro confronto bélico mundial da Era Moderna, ¾

Cruls fotografa essa sociedade profundamente sentida por suas chagas e, ao mesmo tempo,

vibrante com a expectativa de lutas ferozes, de corpos humanos despedaçados, de explosões

de minas, de tiros de canhão e; o melhor de tudo: com o invento de Santos Dumont como

arma de guerra. Para uns, um acontecimento entre heróis e vilões; para outros, o início do fim

do mundo. E, entre a tragédia eufemizada como num conto maravilhoso, e a fé convertida em

ignorância apocalíptica: os que tentavam pensar num sentido para a vida, já pensando no

depois. Mas, as contingências seriam de fato indizíveis:

Tudo indicava que a Guerra durasse pouco e a Suíça já declarara que se


manteria em perfeita neutralidade. [...] ¾ Nada, portanto, de precipitações e
medidas desassisadas, como a Sara queria que eu tomasse. Arriscado, sim, e
talvez até impossível, seria pensar em fazê-los voltar agora. Mas a senhora
pode ficar descansada. Tenho lá um bom correspondente, a quem já
telegrafei, e que vai me dar notícias freqüentes (CRULS, 1954, p. 414).

140
Isso dizia, num tempo de um Rio de cavalo e de cabriolé, o Dr. Rocha Sampaio,

personagem em De pai a filho, tentando consolar a personagem Teresa, já tão desarvorada

pelo marido Alberto, acamado, e tendo ela ainda que pensar no filho Betinho, lá na Europa.

Teresa, antes a Teresinha parceira do namorado Alberto em suas paixões ardorosas, agora

apenas amarulhada das loucuras de amor passadas, se verá chamuscada das chamas do inferno

em mareado paraíso carioca. Alberto morre e a Betinho se reserva a herança do pai: um dote

da permissividade e da compulsão sexual visto pela sociedade conservadora (ou hipócrita)

como corrupção terrena, malícia diabólica, possessão do demônio, treva e toda sorte de

adjetivos depreciativos e satanizantes do sexo; cujo perdão improvável na “Oração dos

Agonizantes” parece negado ao morto e, se considerarmos o caráter da herança de Alberto

reincidente em Betinho, as palavras que deveriam curar os males do espírito proferem,

sinceramente, uma maldição:

Afervorava-se a voz do religioso:


¾ Nós vos pedimos, Senhor, esquecei os delitos e ignorâncias da mocidade
deste Vosso servo e pelo efeito da Vossa grande misericórdia, lembrai-Vos
dele, na luz inacessível da Vossa glória (CRULS, 1954, p. 420, grifos do
autor).

Um espírito de inquietude e de tormento camuflado segundo uma estratégia

otimamente calculista: é assim que definimos um bom romance ou um bom livro de literatura.

De acordo com a avaliação de Temístocles Linhares a respeito da personagem Teresa, talvez

possamos corroborar o nosso pensamento sobre o bom romance: “Teresa, a figura de mulher

que sobrenada do livro, encarna a poesia feminina, a vitória do romance, o que ele contém de

mais puro e transcendente” (p. 343). No entanto, Linhares aponta um defeito no estilo

romanesco de Gastão Cruls, em oposição à ação e aos caracteres, segundo o crítico, bem

desenvolvidos e bem construídos. A nosso ver, trata-se do mesmo defeito já apontado pelo

comentarista de nosso “Texto Anônimo”, a respeito de Vertigem, e que será comentado por

141
Wilson Martins, em 1954; isto é, um tempo “baço” para o primeiro, e “morto” (p. 345) para

Linhares. Evidentemente, não concordamos com esses entre-aspas; até porque, já temos

comentado a importância do detalhismo na narrativa de Gastão Cruls, no diálogo com Jayme

de Barros. Fica, para nós, “a isocronia perfeita entre o romance [de Cruls] e as circunstâncias

normais da vida” (p. 342), representada em Alberto, a personagem principal de De pai a filho.

WILSON MARTINS

De um ponto de vista digamos “ideológico” o


[...] romance [de Cruls] revigora a linha
machadiana, que faz da ficção um estudo do
homem como homem, e não como tipo
excêntrico.
 Wilson Martins (“A ficção IV”: conclusão)

W. Martins em seu artigo “A ficção IV: conclusão”, de 01/07/1954, para o jornal “O

Estado de S. Paulo”, faz uma diferença entre narrativa e romance, baseado na prosa de Gastão

Cruls. Examinando o romance De pai a filho, de Cruls, o crítico pontua alguns elementos do

estilo narrador crulsiano, estilo esse, sempre sentinela, segundo suas palavras, “de uma notícia

de jornal bem redigida, e na qual não faltam, como jamais se ausentam, do seu estilo, as

palavras raras, os pronomes bem colocados e os advérbios qualificadores” (p. 347).

Vê-se, portanto, que esse desfio narrativo é, segundo o crítico, mais próprio de um

outro gênero: o jornalístico. Talvez hoje, então, possamos olhar diferente para o que o crítico

chamou de “perfeição formal” (p. 346). Com efeito, podemos acrescentar, Gastão Cruls, antes

de ser romancista, foi um estudante de ciências médicas, observador compulsivo das

paisagens e um registro de detalhes os mais sutís; sem dúvida, devido à influência de seu pai,

o cientista belga Luís Cruls.

142
Paralelamente, desenvolvia, quase que em tom de brincadeira, o gosto pelo fazer

literário que, aliás, precipitou-se das anedotas destiladas durante seu estágio de residência no

Hospital Miguel Couto.

Pensando nisso, sua linguagem não poderia nunca desvencilhar-se de uma erudição

correlata ao modelo informacional e historiográfico da época, no qual situamos, dentre outros,

o “Boletim de Ariel”, ¾ uma voz da crítica que, nos anos 30, circulou oito anos da voga

literária; e Sílvio Romero, com A história da literatura brasileira. Por conseguinte, essa

mesma erudição é ainda acentuada pelos termos das áreas médicas, da botânica e da

psicologia, seus principais canais lingüísticos, ao lado de variantes, dialetos e filosofias

populares que o escritor fazia questão de assimilar, além dos galicismos devant le france,

cultivados por ele.

Como se isso não bastasse, as viagens que Cruls fez pelo interior do Brasil, tendo

contato com as populações ribeirinhas da Amazônia ou com os peões de boiadeiro de Mato

Grosso, ¾ viagens de extraordinário poder informativo da diversidade étnica e lingüística do

nosso país, proporcionaram a Cruls uma prosa, em seu tempo, talvez sem paralelos. Por isso

mesmo, seu estilo tanto fugia ao romancista tradicional.

Retomando Wilson Martins, esse crítico, ainda se referindo à forma da narrativa

crulsiana, chama-a de uma “meticulosidade sintáxica e expositiva”, não sustentadamente

“proustiana” (p. 346). De fato, um quadro proustiano por excelência, só pode ser fielmente

constatado na análise da personagem Teresinha; e isso, para obedecer à curvatura da linha

analítica de Proust, acontece do começo ao fim: da apresentação da personagem Teresinha e

do estudo evolutivo sobre essa mesma personagem no plano da mesma história. Então, talvez

assim seja justificável o descricionismo das páginas 136-144, referidos por Martins:

Por isso tudo, aquêle baile do Clube dos Diários, realizado também num
sábado, fora para ela [Teresinha] uma noite excepcional. Tivera as
preferências de Alberto para várias contradanças, inclusive o cotillon,

143
marcado por êle e de que fôra assim a figura principal. A mais, tendo ido à
festa em companhia dos Camargo, quando êle não dançava, procurava
sentar-se a seu lado, no grupo em que conversava o casal. Faziam parte dessa
roda os Rocha Sampaio, êle o colega de Alberto na Faculdade e ela, por
coincidência, filha de uma antiga amiga de D. Chiquinha coisa que só então
acabavam de apurar, mas bastante para estreitar a simpatia entre ambas. A
moça, que a via pela primeira vez, mostrava-se encantada por Teresinha, e
quis saber quem era Lea. Disse-lhe D. Chiquinha, contando como haviam
conhecido o Dr. Leme Neto, durante a revolta da armada (CRULS, 1954, p.
144, grifo do autor)29.

Notemos então que as oito páginas mencionadas por Martins, nos permitem também a

seguinte leitura: a de que não se tratava tão somente de uma ida de Teresinha ao baile para

dançar com Alberto a valsa de Strauss, assistida por seu pai entre embevecido e acanhado em

presença da viúva Gomes, D. Eponina Gomes, cujo capricho dessas coisas que algumas

pessoas captam no ar não passou despercebido aos olhos da órfã de mãe, Teresa; que viu, é

verdade, o baile como ocasião apropriada para encurralar o pai. De toda sorte, não era só isso,

nem esse, pensamos, o fio principal da narrativa. No entrecho destacado, a cena do baile é o

ponto de encontro que medeia o romance, reúne algumas de suas figuras capitais e, recuando

para as páginas anteriores, até à 136, verificamos um corte à página 140, que marca

sucessivos cortes menores, originando histórias secundárias em torno dos núcleos principais

do romance.

Wilson Martins segue com uma lista de exemplos, sempre a fim de mostrar, segundo

ele, a “maneira tranqüila e exata de narrar” (p. 347) do escritor Cruls, afirmando que o estilo

do artista é o do historiador, exemplificado pelo crítico na retomada de A Amazônia

misteriosa, e em outras passagens em que o fato é, conforme Martins, “particularmente

sensível” (p. 348). Em De pai a filho, por exemplo, a dita de alguns hábitos das personagens,

nas palavras do comentarista, revela-se “uma insistência, talvez demasiada, em pormenores”:

Assim, só mesmo depois que algumas revistas, como o “Tim-Tim por Tim-
Tim” ou a “Capital Federal” tinham alcançado extraordinário êxito e todo o
29
O exemplar utilizado por nós tem a dedicatória assinada por Gastão Cruls, e adereçada a Álvaro Augusto
Lopes em 31/03/1954.

144
mundo dizia que eram uma “fábrica de gargalhadas”, é que êle condescendia
em ir vê-las. Quanto a qualquer representação de ópera, no Lírico, maior
ainda a sua ojeriza. Não era homem para etiquetas e patacoadas. Referia-se à
obrigação da casaca e aos bondes de “ceroulas”, que tanto o irritavam.
Assim, por todo consolo, D. Pepê limitava-se a acompanhar pelos jornais o
sucesso da “Tosca”, levada pela primeira vez no Rio, ou a ver, na porta da
Casa Arthur Napoleão, o retrato dos artistas que compunham o elenco da
Companhia (CRULS, 1954, p. 27, grifos do autor).

O detalhe histórico, construído a partir de uma descrição pormenorizada, é mais um

detalhe na narrativa crulsiana. Ao dar nome aos hábitos da personagem, não está apenas

discursando o figurino, mas construindo-lha uma personalidade que, aos poucos, vai se

tornando própria, peculiar a essa personagem.

Por isso seu estilo não flui ao compasso, segundo Wilson Martins, do “tempo

romanesco” (p. 350), para esse crítico, o principal prejudicado na primeira parte de De pai a

filho, terminada à página 189. Um descricionismo próximo ao de Eça de Queiroz, mas não

necessariamente o mesmo estilo, nem, como já se viu, o estilo propriamente proustiano; quem

sabe, algo entre os dois, ou, algo além dos dois, ou, ainda, nada disso; mas certamente o estilo

Gastão Cruls de fazer pousar na sua narrativa o romance de corte francês.

...

Quase dez anos depois, analisando o regionalismo na literatura brasileira, Wilson

Martins (1965), na A literatura brasileira, afirma que a nova edição d’A Amazônia misteriosa

de Cruls, em 1929, marca o clímax da literatura da Amazônia no Modernismo. Por outro lado,

em 1978, na História da inteligência brasileira, v. 6, o crítico afirma, sobre os volumes de

contos Coivara e Ao embalo da rede, de Cruls,  volumes que antecedem o romance A

Amazônia misteriosa, que a “sugestão regionalista” “promete mais do que cumpre”.

Evidentemente discordamos e ficamos com Afrânio Coutinho (1986) e Massaud Moisés

(1997a), que afirmam que Cruls vai além do regionalismo tradicional, ao explorar a psicologia

das personagens e as nuanças do ambiente; e isso acontece desde os contos de Coivara, como

145
podemos ver na antologia dos “Contos de mistério e assombramento” e de “Outros contos” no

“Volume 2”.

Entrementes, é importante ressaltar que Wilson Martins considerou o “Boletim de

Ariel”, revista dirigida por Cruls e Grieco, o “órgão crítico por excelência da literatura

moderna na década de 30”. Diríamos que não só da literatura brasileira moderna, mas da

literatura moderna no mundo, cujo exemplo podemos verificar nos textos críticos de Gastão

Cruls, publicados no “Boletim de Ariel”, e também reunidos em antologia no “Volume 2”.

MÁRIO DA SILVA BRITO

Em 1955, Brito publica a antologia Histórias de Cristo, para a qual, de Gastão Cruls,

apresenta-nos “O último encontro”,  conto talvez não menos polêmico que O evangelho

segundo Jesus Cristo, romance de José Saramago. Nessas duas obras, o destaque recai sobre a

natureza do relacionamento existente entre Jesus Cristo e Maria Madalena, que atualmente

circula na mídia com grande interesse de teólogos e do público em geral. Afinal, trata-se de

uma história que envolve o homem que dividiu o nosso calendário em duas épocas, o nosso

mundo em dois destinos, e tornou-se a personalidade mais conhecida, temida, respeitada ou

adorada por várias nações há pelo menos 1500 anos.

Jesus Cristo – a almenara de vida ou morte – que salvará os fiéis e julgará os infiéis no

cumprimento do “Apocalipse” é, de fato, nas palavras de Brito, o “fundamentador de uma

nova ordem” (p. 354) da qual, não há dúvidas, fazemos parte. Se, então, o livro de José

Saramago, contemporâneo nosso, causou efervescente polêmica quando de seu lançamento,

quer nas câmaras internas da igreja cristã quer entre os que M. Brito chama de “crentes” (p.

354) seguidores do Cristo, imagine-se o que não se pensou do conto de Cruls, publicado em

1923. Acreditamos que o silêncio a respeito já diz tudo.

146
Nesse momento, consideramos oportuno explorar um pouco mais o assunto sobre

Maria Madalena, especialmente porque ela é a principal personagem nesse conto de Cruls.

Pensando nos acontecimentos do Concílio de Nicéia (325 d.C.), que canonizaram alguns

textos e fizeram apócrifos a outros que diziam respeito ao mesmo Jesus, queremos ressaltar a

contundência da abordagem que Gastão Cruls dá ao tema Maria Madalena, antecedendo em

mais de 80 anos a grande polêmica mundial do momento em torno do mesmo assunto: O

Código Da Vinci, romance de Dan Brown, que fala do casamento de Jesus com Maria

Madalena e de descendentes dessa união.

A visão de Gastão Cruls em “O último encontro”, compacta como requer a narrativa

em conto, nos revela sem a observação de qualquer dogma, que Maria Madalena era a

companheira do Mestre. Na passagem abaixo, em que descreve um dos encontros de Jesus

com a pecadora amada, há pistas de uma hipotética vida paralela de Jesus, no vale do Cedron,

entre a gente boa e simples do campo:

Ainda no vale do Cedron, mas já tão no sopé da montanha que os seus olhos
não poderiam alcançá-lo, Maria Madalena revia o jardim de Getsemani, com
as suas oliveiras prateadas à sombra das quais tantas vezes descansara na
companhia de Jesus, ouvindo-lhe embalada a palavra meiga e persuasiva, até
que a noite caísse e os dois, sempre juntos, de novo voltassem à Betsaida
(CRULS, 1951, p. 163).

A impressão que temos é que os encontros de Jesus com Maria Madalena não seriam

vistos com maldade pelos moradores do Cedron. E é irônico que o Opus Dei (Obra de Deus,

em latim) da igreja católica e algumas outras vozes eclesiásticas exprimam tanta repugnância,

ante a possibilidade da descoberta de que Maria Madalena tivesse mesmo sido uma amante de

Jesus. Utilizando dados da própria lógica canônica, sabemos que Jesus, na Terra, fez-se como

homem sujeito às mesmas paixões. Assim era necessário, para que tivéssemos um exemplo

possível a seguir. Admitindo-se, contudo, o pressuposto da sua divindade, ainda em um corpo

humano, pensamos que há, aí, motivo a mais para justificar a relação que muitos diriam

147
herética. Ora, estando Jesus somente de passagem, peregrino em terra inóspita, e, Maria

Madalena, para sempre condenada à solidão  quer pela suposta incorporação dos sete

demônios de que fala S. Lucas, quer pela hipótese de que ela seria a prostituta a ser

apedrejada  aos dois não se destinou outra vida, que não uma vida em segredo. A mesma

vida em segredo do mito do “Santo Graal” – Gradalis – (Cálice, também do latim) nos

romances arthurianos, que trasladou para o Reino da Bretanha, pelas mãos de José de

Arimateía, mas não sem a ajuda de Maria Madalena, o que sobrou do sangue de Jesus – já o

Cristo, vertido no calvário, e de cujo lado perfurado, pela lança de um soldado romano,

pingaram as últimas gotas do líquido divino, hoje, sagrado. Ou, ainda, a mesma vida em

segredo de Maria, mãe de Jesus, à qual são negadas, pelo cânone, a maternidade dos irmãos

de Jesus e a relação de amizade com Maria Madalena.

Mas, antes de tudo, no conto de Cruls, Maria Madalena é aquela sobre quem não se

deve atirar a pedra, é a protegida do Senhor, aquela que, sutilmente chamada pelo Mestre

quando havendo ficado sentada em casa, lhe saíra correndo ao encontro para dizer a seus pés

que se Ele ali tivesse estado, logo que avisado da doença de Lázaro, este não teria morrido;

repetindo, pois, as palavras de Marta, mas provavelmente com muito mais calor. Nesse “O

último encontro” de Cruls, o Lázaro ressuscitado é irmão da prostituta, a prostituta – a

antífrase da Maria de Betânia, e ambos irmãos de Marta,  os três irmãos amados pelo

homem Jesus. E Maria Madalena não é de modo algum a mulher servil, simbolizada pela Eva

caída em tentação e punida, conforme as leis do “Pentateuco”. Com graça, Maria Madalena é

ainda a duração de um instante heróico, aquela que acompanha Jesus imperfeito à hora do

adeus; que, como na “Paixão de Cristo” (2004) de Mel Gibson, busca o olhar de ternura, esse

sabido consorte do homem que representa o caminho, a verdade e a vida: o próprio Deus, o

próprio amor do “Novo Testamento Bíblico” que não pôde, portanto, lhe ter sido negado. No

“último encontro”, Maria Madalena foi também a primeira a ouvir e a dizer ao mundo inteiro,

148
do Mestre ressuscitado, que Ele vive; e nessas entrelinhas, que o nome dela era talvez a

primeira palavra que o Senhor pronunciava depois da ressurreição:

[...] ouvindo que alguém lhe sussurrava o nome com ternura: “Maria...”
Voltou-se. Como num sonho, imagem incorpórea e logo fugidia, Jesus
paiarava à sua frente na refulgência de um halo luminoso.
E tão doce era o seu olhar, tão suave o seu sorriso, que ainda mesmo que
duvidasse da sua divindade, Maria Madalena já não duvidaria mais do seu
amor... (CRULS, 1951, p. 164).

“O suave Gastão Cruls” (p. 354), como o chama Brito, pareceu-nos mesmo, nesse “O
30
último encontro” , uma metonímia de duas metáforas do Cristo muito conhecidas e

desejadas: leve e suave.

ALMIRO ROLMES BARBOSA & EDGAR CAVALHEIRO

Estes críticos, na antologia Obras primas do conto brasileiro (1957) destacam o

homem de ciência no artista Cruls: não porque é um artista com cultura científica, mas,

dizem, porque é um cientista com “poderosa vocação de ficcionista e de lírico” (p. 361).

Afirmam, pois, que, “pela primeira vez, ciência e literatura se deram as mãos para produzir

uma obra de arte” (p. 361), referindo-se à composição 31 do diário de viagem A Amazônia que

eu vi.

Barbosa e Cavalheiro valorizam a discrição, o equilíbrio intelectual e associam esses

caracteres como produtos “de uma profunda e ampla cultura estética”. Para eles, mesmo

diante de temas alucinantes, como nos contos “Meu sósia” e “G. C. P. A.”, Cruls constrói uma

narrativa sólida à justa medida. Conforme Lima (1952, p. 336), “suas histórias, quase sempre

de intensa dramaticidade, são compostas de maneira harmoniosa, num estilo sóbrio e elegante,

a que não é alheia uma discreta ressonância dos clássicos franceses”.

30
“O último encontro” encontra-se transcrito na íntegra na antologia “Outros contos” do “Volume 2”.
31
Ver mais sobre o assunto no Capítulo 4.

149
Gostaríamos de aproveitar o ensejo e estender o nosso comentário sobre os dois contos

citados por Barbosa e Cavalheiro. Em “Guarde o cadáver para autópsia” – “G. C. P. A.”, a

história fala de Silvino, um internado de hospital acometido da moléstia de Addison, cuja

possibilidade de cura seria excepcional, e de Castro, o estagiário de medicina chamado no

conto de mortícola. Silvino, matéria de aula do professor Rodrigues, numa das lições em que

era versado, descobriu o significado da plaqueta amarrada ao derradeiro leito dos doentes

terminais: a plaqueta das letras “G. C. P. A.”:

Relançando de esconso a vista pela papeleta pouco antes anotada, Silvino


sentou-se dum ímpeto, mãos travadas nos cabelos que se arrepelavam, um
algor eletrizante coando-se-lhe pela nuca abaixo. É que a lápis vermelho, em
um dos cantos da papeleta, lá estava a abreviatura sinistra, a almenara de
morte: G. C. P. A. (CRULS, 1951, p. 38, grifos do autor).

A partir daí o terror se torna um épico da fuga de Silvino da mesa de autópsia. É onde

mais se percebe a sobriedade de Gastão Cruls, diante do tema alucinante. Os dias seguintes

são vazados pelo pensamento único que ansiava a melhor oportunidade de fugir sem ser

apanhado de final tão atroz, como o daqueles que tiveram suas cabeças decepadas e cada osso

do corpo desconjuntado, muitas vezes estacados em figurações bisonhas que mais davam a

idéia de monstros, de terríveis criaturas enxertadas ou de seres alienígenas. Finalmente, não

sem passar por uma tensão nervosa que quase o matou no corredor do hospital, o que poria

em perigo toda a sua saga, alcançou as pedras do quebradouro do mar, ali mesmo nas

proximidades de Niterói, de onde deixou que seu corpo fosse “sumindo-se no crespo das

ondas” (CRULS, 1951, p. 43). Mas, decerto fora rejeitado por Netuno, pois,

(t)rês dias depois, já de calcanhares poídos, o ventre bojante e marbreado, as


órbitas vazias, com a mesma indiferença com que o havia tragado, o mar
devolveu-o à praia; e o futuro mortícola, feliz na inconsciência do seu crime,
farejando a prêsa com volúpias de carnífice, lá foi desviscerá-lo sôbre a mesa
de autópsias, na ânsia de encontrar a absconsa lesão que lhe desse à tese o
cunho de interesse e originalidade (CRULS, 1951, p. 43).

150
Bem, se o tal Castro conseguiu desenvolver sua tese cunhada em originalidade não o

sabemos. Mas que ele representa a multidão de residentes de medicina, não temos qualquer

dúvida. O próprio Gastão Cruls fora um deles. E talvez também por isso sustentasse, mesmo

em momentos que a pressão parece baixar ou subir em disparada, e o coração supitar e dar a

terrível sensação de que está a sair pela boca, ¾ sua indiscutível originalidade quanto ao

alinhamento do tema no plano da narrativa.

Essa solidez não será diferente no jeito do conteur dizer, em “Meu sósia”, que alguém

deseja rivalizá-lo de igual para igual. Aí, o narrador autodiegético confronta-se com o

narrador representado, a propósito de seu livro em fase de escritura: A Amazônia misteriosa.

No “Meu sósia” a história é a história de um duplo. E a provocação também é dupla: De um

lado, seu rival n’A Amazônia misteriosa só poderia ser ele mesmo; talvez, essa, uma resposta

a alguns críticos desse seu romance; de outro lado, assevera a probabilidade de plágio:

Eu devia estar lívido. Era o meu romance que lhe saltava da boca, sem tirar
nem por.
Com um sorriso diabólico, o meu sósia arrematou:
¾ Mas mesmo que assim fosse, a vitória será daquele que o publicar
primeiro: ¾ Paulo de Alencastro, que sou eu ou... Como é o seu nome?
Foi aí, quando ouvi o meu nome, que lhe pulei ao pescoço e rolamos juntos a
escada (CRULS, 1951, p. 297).

SILVA MELO

Melo, um dos amigos mais próximos de Gastão Cruls, nas Recordações sobre Gastão

Cruls (1959), comenta sobre o homem Gastão Cruls. Segundo ele, até mesmo com relação à

glossolalia que Cruls faz soar, murmurar e gemer em suas personagens; foram a honestidade,

a compreensão e a perspicácia, os predicados que mais o caracterizaram no seu propósito de

definir os tipos humanos, próximos ou distantes, no trivial cotidiano.

151
Ao que nos parece, tentado pela palavra, essa ligadura que ora aproxima ora separa aos

homens, Gastão Cruls parece ser sempre A portrait of the artist as a young man, de Joyce,

devido ao vigor com que desbarata as maracucas criadas pela vazão do “temperamento”

“introvertido” do cientista (p. 365), expressão de Melo, na escritura artesanal do verbo.

Homem de uma mente complexa esgrimia o silêncio e inquiria-lhe a respeito de suas

opções para exílio e ousadia no ato de fazer literatura-arte. Taciturno, às vezes alienado do

mundo, era um inconformado com a política de interesses e com o estado de paralisia, que

faziam perpetuar e acirrar as diferenças sócio-econômicas e histórico-culturais, entre os

brasileiros.

Por tudo isso, a Gastão Cruls, era imperiosa a escolha bastante distintiva das rodas de

prosa e dos lugares que lhe fossem cúmplices e testemunhas de um cavalheiro arredio e

amante da terra-mãe. Conforme continua testemunhando Silva Melo, curioso notável, leitor

devotado e viajor incansável, Cruls sustentava um ar contestador e um contínuo desassossego.

Talvez por isso, a diversidade temática e o mergulho na psique tenham feito brotar, em sua

obra, tanta riqueza de conteúdo. Com efeito, e conforme Silva Melo, “quem atentar para a sua

obra literária não terá dificuldade em descobrir traços marcantes desse seu temperamento, de

um lado grave, austero, rigoroso; do outro prenhe de sarcasmo e ironia” (p. 367).

...

Melo, em suas novas Recordações de Gastão Cruls (1967), analisa algumas faces da

ideologia de Cruls, do homem em seu momento de reflexões íntimas, só apreendido nas

entrelinhas que, por vezes, ele próprio se passa invisível. Nesse propósito, o amigo Silva

Mello transcreve e comenta discretamente três textos de Cruls, publicados pela primeira vez

na Revista do Brasil, e mais tarde reunidos no volume Quatuor, de Contos reunidos (CRULS,

1951, p. 241-52).

152
De certa forma, Melo parece colocar esses textos de Cruls em uma sessão de

psicanálise, de qual, evidentemente, tira as suas conclusões. A esse respeito, porém,

deixaremos que o leitor, ao fazer a leitura de “A viagem”, de “Baking-Powder intelectual” e

de “O bom moço” , reserve-se o próprio laudo, não de todo sigiloso.

Para instigá-lo, comentamos a seguir, o conto não comentado por Silva Mello, mas

que está inserido no volume Quatuor, e que, claro, passa pela mesma linha revelatória da

personalidade de G. Cruls.
32
“Conto de Natal” é um prolongamento do conto “A viagem”, e, a exemplo deste,

denota, entre outras possíveis leituras, uma crítica vociferal ao modo de vida consubstanciado

pelas aparências; apesar de ser uma crítica cuidada pelo jeito indireto de acusar. Vimos aí,

com uma ironia urdida pelo mimo muito peculiar de Gastão Cruls, que a ascensão social é

pretendida pelos pobres, através da mesma simbologia artificial representante do poder dos

ricos, em uma determinada época: o fraque, o anel simbólico e o guarda-chuva de cabo de

ouro.

Com o zelo de quem transporta nitroglicerina, e com um sorriso puxado de lado,

sempre maroto, o escritor guardava perfeita ciência de que seu alvo seria atingido em cheio.

Nesse alvo, a hipocrisia e a opulência, repassadas por meio de uma hereditariedade lacônica:

o rico passando ao pobre o veículo que o levaria no percurso da ascensão.

As figuras das personagens e as ideologias por trás delas são impiedosamente

desdobradas, desmitificadas ou deslendadas; a começar do nome aparentemente fabulaico do

texto: “Conto de Natal”.

Em sua exposição, o conteur ataca, com uma ironia a cada linha, todo um sistema

político-social construído e mantido de aparências. Nessas aparências, o conto de Natal, ¾ a

história do menino rico, que ganhou de Papai Noel “uma armadura tão bonita, de peitoral

32
“Conto de Natal” encontra-se transcrito na antologia “Outros contos” do “Volume 2”.

153
reluzente, capacete empenachado e cinturão de espadim à ilharga”, converte-se no sonho e na

noite de Natal do menino pobre.

A simbologia do dia amanhecido, porém, pretende um exorcismo do sonho falso, da

mentira: aí prefigura o “formidável berreiro” do menino pobre, internado nos instantes de

descoberta da verdade que tanto ali lhe doía, mas que o levaria a ver que não existe Papai

Noel para pobres na mesma forma de Papai Noel para ricos. Afinal, pobres não têm casas com

lareira. E ele também descobriria que a vida não é um sonho. Mas isso tudo se o exorcismo

não tivesse sido quebrado pelo pai que, diante da vultosa vantagem prenunciada na

simbologia do fraque, do anel simbólico e do guarda-chuva de cabo de ouro, embora não

sendo rico, resolveu investir no filho, prometendo-lhe a compra de uma armadura de

cavaleiro, igualzinha à do seu vizinho rico. Notório como esse episódio expõe o ridículo da

vida sendo vivida por aparências! Outrossim, o investimento do pai se justificava pela idéia de

que bastaria ao filho ser “jeitoso” e ter “uma certa compostura de maneiras”, apenas artifícios

como se vê, para “alcançar tudo” o que ele quisesse. E aqui cabe uma boa pergunta-dominó:

Será que o pronome ele se refere mesmo a “ele” menino? Não seria a ele pai?

Assim, muitos sapatinhos ainda são postos nas janelas na noite de Natal, e continuam a

não pegar nada além do sereno. Quem sabe um dia, aquele menino pobre também tenha

descoberto que valem a pena o sonho, a fantasia e o ritual; porque há tempo de sermos

pequenos e há tempo de mostrar que crescemos: talvez então, o menino-adulto não se tornasse

uma extensão do pai, que viu no presente deixado por alguém que se fez de Papai Noel, um

presente ainda melhor do que aquele que o filho pedira. Talvez, o menino-adulto haja

descoberto que o Papai Noel que lhe dera o fraque em vez da armadura de cavaleiro, era seu

amiguinho que, sendo-lhe amigo, deu-lhe também o meio de um dia também ser rico.

Mas, como ao futuro emergente ainda competiria juntar ao anel simbólico “a pedra

característica, esmeralda, safira ou rubi, conforme a profissão abraçada”, ¾ talvez o menino-

154
adulto tenha, de verdade, conquistado a pedra característica, e também, de verdade,

descoberto a verdade: como o futuro são outros tempos, no futuro dele, pode ter dado um

grande grito de libertação dos males de tudo que é feito de aparências. Um grande e

lancinante grito, daqueles de quebrar regras como no “Abaporu” de Tarsila do Amaral ou,

antes, na anomia do filósofo neokantiano David Émile Durkheim. O mesmo grito que,

segundo Silva Mello, Gastão Cruls jamais pôde soltar, e “pelo qual tanto aspirou a sua alma”

(p. 416).

BERNARDO GERSEN

Gersen é um dos estudiosos do romance crulsiano, que, ao lado de outros estudiosos

arrolados em nosso levantamento, com os quais o nosso leitor poderá comparar, ¾ adentrou

camadas mais profundas da obra romanesca. De fato, um exame atento de suas linhas nos

permite considerar essa profundidade, já que ela não poderia deixar a cava na estrutura

superficial da narrativa, como o próprio título de seu artigo para o jornal “O Estado”, em

10/10/1959, indica: “Ficção e Realidade”.

O ideário romanesco presente na literatura escrita, pelo menos desde até aonde

conseguimos, daqui, de nossa contemporaneidade, recuar, nos faz pôr ao relevo dessas linhas

os aedos e os rapsodos, ¾ técnicas literárias para expressar, ou talvez devêssemos dizer,

exagerar, os feitos heróicos na Grécia antiga, com a finalidade de condensar, sincretizar num

determinado tipo, ou num tipo construído a partir da soma de partes-tipo de vários tipos

envoltos em núcleos sempre exponenciais da narrativa; a vida normal, o fato ordinário,

transfigurados e cabidos numa imagem que dá, ao leitor, toda a dimensão e o âmbito dos

limites humanos: uma dimensão histórica supra-dimensionada de microcosmos materiais e

psicológicos autônomos e equacionados de modo a serem vistos no que chamamos de tempo

155
forte ou marcha contracta da narrativa, o tempo do romance. Chegamos a isso considerando,

entre outros, Benedito Nunes, um dos que abordam a questão do tempo romanesco.

Com efeito, como lemos algumas teorias e os romances de Gastão Cruls, podemos

dizer, claro que ainda com cautela, que o escopo crítico do gênero romance, essa dualidade

paradoxal, ou passional, do romancista enquanto ser real – portanto histórico, e da obra de

ficção enquanto feito transpositor, transfigurador de uma realidade histórica transbordante

para uma realidade, além de ficcional, também verificável, seria uma célula mater desse

gênero da ficção.

Em Gastão Cruls, pois, temos uma medida irrefutável dessa dualidade, convertida em

unidades mutuamente indutivas no próprio artista, já que, como sublinha Gersen, Cruls

possuía uma identidade dual. E isso não foi sua escolha. Era um destino com o qual tinha que

conviver. Por isso, o conflito entre o cientista e o literato. Não houvesse a dualidade, não

existiria também o conflito, e assim não teríamos o romancista que, em Cruls, será também

intimista. Aficcionado pela arte e pela liberdade desde antes dos tempos de faculdade, ver-se-

á aprisionado pelo lastro a frio da ciência. Para buscar seu antidestino, seu primeiro amor: a

liberdade, Cruls procura encontrar a saída. Ao pôr essa roda em movimento, gera o conflito, o

romance, através do desdobramento de sua personalidade e de suas criaturas; esse o segredo

sutil do ofício do artesão que, como Balzac, sonha acordado.

Mas, não queremos furtar o prazer de se ler a análise que Bernardo Gersen faz

especialmente de A Amazônia misteriosa e de Elsa e Helena. Não aprofundaremos, pois, por

tais temas, os nossos comentários. Só, para mais uma vez virarmos a página ou adentrarmos

novo nome da crítica crulsiana, queremos deixar uma imagem do alter ego de Gastão Cruls 

a personagem Donegal, nessa passagem entre a ficção e a realidade, em A criação e o criador:

O seu primeiro romance!... um mundo de esperanças que deveria ser


convertido em realidade, não a realidade que se lhe oferecia, mas a outra, a

156
que ele queria criar: produto do seu engenho, vida de criação, hausto de
criador, amassada no seu sangue, calcinada no seu cérebro...
Donegal chorava (CRULS, 1958, p. 394, grifos do autor).

Como diz B. Gersen, a partir de A criação e o criador o fazer literário de Cruls “se

torna mais genuinamente romanesco” (p. 382). Interposto, segundo o crítico, “uma espécie de

alter ego” (p. 382) entre o criador e a criação, o artista fá-los diálogo a três em uma

comunicação que não termina, deixando o leitor a escrever o capítulo que não se escreveu: o

de mais uma(s) possibilidade(s).

Quanto a exames da crítica de Gersen, especialmente sobre A Amazônia misteriosa,

um dos romances aos quais o crítico reservou um maior número de linhas, deixaremos a

possibilidade de cotejar as linhas de Gersen, transcritas no “Volume 2”, com as nossas, de A

Amazônia misteriosa, a serem lidas nos “Capítulos 4 e 5” deste “Lendo a Herança

Encontrada”.

...

Catorze dias depois de publicar seu artigo “Ficção e realidade: conclusão”, no jornal

“O Estado”, Bernardo Gersen publica o artigo “O criador e a criação”, a 24/10/1959, no

mesmo jornal e, ainda falando da ficção de Gastão Cruls. Invertidos os núcleos do sujeito

composto, reparemos que o nome do artigo é o nome reverso de A criação e o criador,

romance de Cruls que faz parte do volume Quatro romances, publicado em 1958,  fonte do

comentário de Gersen.

Comentando A criação e o criador, Gersen afirma que esse romance “continua e

amplia a veia intelectualista de Elsa e Helena” (p. 387), em um novo caso de dissociação da

personalidade.

A propósito, podemos dizer que se trata de uma dissociação que refluxa a própria

consciência narradora sintetizada nas epígrafes de A criação e o criador, sendo uma, para

157
cada uma das três partes seguintes nesta ordem: “O criador”, “A criação” e “A criação e o

criador”.

Revirando essas partes, e de acordo com Bernardo Gersen, descobrimos que Donegal é

o próprio Gastão Cruls. Para tanto, partimos do pressuposto de que, na primeira parte, o

ficcionista narra de si mesmo em terceira pessoa. Tal recurso revela-se um subterfúgio para

amainar as dificuldades, as dúvidas e as confusões intelectuais por quais passa o criador no

ato da criação. Essa primeira parte apresenta até mesmo um possível rascunho de

caracterização das personagens, como se pode ver às páginas 307-310 de Cruls (1958). Com

efeito, um rascunho precedido de um prenúncio, ¾ a preciência freudiana, de domínio do

narrador: as linhas gerais e a base inicial da história estão prontas, mas, muito pode mudar na

hora de discursar essa história. Já o primeiro sinal de confusão do narrador aparece nas

primeiras páginas, antes mesmo que o romance comece; aí, o narrador está à frente do

discurso e projetado na história, o que representa uma ansiedade natural quanto a desenvolver

certos acontecimentos, geralmente centrais na história. Desdobrando nossos pensamentos, no

decorrer do discurso, e conforme as dificuldades vão aumentando, a confusão que, na verdade

é condição pré-instalada e de (des)domínio do narrador, alterna circuitos energéticos

gradativos, ¾ pontos em que a imagem do acontecimento no romance surge e apaga-se como

insights and outsights, a ponto de não se saber distinguir qual realidade é a realidade, com

exemplo na invocação de Maurois: “Não se deve pedir ao artista que êle seja fiel à realidade,

mas, sim, à sua realidade” (MAUROIS, apud CRULS, 1958, p. 322). A dificuldade da opção

consiste na justaposição dessas realidades, um “menage à quatre” (p. 389), na expressão

alternativa de Gersen, e numa afirmativa do próprio narrador:

¾ Qual! Por mais que você queira, insistia Jaguarão, não me convence que
êsse entrecho não se apóie em qualquer fato da vida real, algum drama
verídico de que, no mínimo, você teve conhecimento, se nêle também não
tomou parte ativa, como tudo está a indicar. Então a maneira por que você
fala nessa tal Yolanda, o ardor com que a defende... Eu chego a pensar que,

158
além de Brás e Philippe, há um outro apaixonado por ela e que, dentro em
pouco, o seu romance terá de falar num menage à quatre... (CRULS, 1958,
p. 323, grifos do autor).

Na segunda parte, ao contrário da primeira, é a criação que se dirige ao criador: uma

focalização interna através da qual as personagens se manifestam, mostram que estão vivas e

que influem a história. Nesse momento, talvez o momento mais fluídico da composição

romanesca, o criador passa a ser secundário; escreve não o que tinha planejado ou o que

espremia do cérebro, a fim de continuar aquelas páginas, às vezes, a anos entulhadas à espera

da solução: escreve, sim, a história que as próprias personagens discursam. De fato, Donegal,

disfarce ou heterônimo de Cruls, apenas observa:

Donegal, para fugir à torpitude daquele quadro, começou a observar os


outros pares. O baile atingira ao delírio coletivo; a sala era um verdadeiro
pandemônio onde uma multidão ensandecida se premia e acotovelava
fremindo nos mais acerbos paroxismos. A orquestra voltara a atacar uma das
músicas mais em voga, e todos, una voce, repetiam o estribilho famoso:

Dondoca, Dondoca,
Anda depressa
Que eu belisco essa pernoca...

Das pessoas que o preocupavam, quase tôdas tomavam parte na sarabanda


demencial. Yvete desnalgava-se com o dominó prêto. Philippe tinha por par
uma das filhas do Sr. Pais da Rocha. Outra dançava com Rodrigo. Jaguarão
continuava com o pierrô azul. Uma das filhas do Dr. Robespierre se
abraçava a um desempenado highlander. Silvares andava às voltas com uma
graciosa Mimi Pinson, de chapèuzinho prêto atado sob o queixo, e vistosa
saia de rodaça (CRULS, 1958, p. 380, grifos do autor).

O criador, em sua suposta vida real, quando estava perdido e sem saber como retomar

o seu romance teve seus sentidos despertados por um telefonema no qual, numa linha cruzada,

flagrava uma conversa entre uma Yolanda e um Phillippe, justamente, nomes de duas das suas

personagens. Nas palavras de Gersen, “a partir daí nosso romancista passa a participar da vida

de seus personagens e a intervir diretamente nos seus destinos, a realidade mistura-se à ficção,

influencia-a e por sua vez é por ela influenciada” (p. 388). Com efeito, de aí em diante inicia-

se uma caça a personagem, com desvelado interesse por Yolanda: é como se o criador
159
quisesse ver a personagem caracterizada em seu rascunho, em ação. O entrecho anterior é

uma observação espacial que parte de um narrador que retira por instantes o olhar de Yolanda:

é, portanto, um narrador-personagem que vê, um focalizador externo que trasmutou-se

focalizador interno da narrativa.

Na terceira parte, ocorre a interação entre o criador e a criação, e é aí que a confusão

culmina. Depois de criar a criatura e de ver-se nela, de inventar uma história e de ser enredado

por ela, o criador não sabe mais qual é a realidade real:

¾ [...] Agora, o que acontece é que eu mesmo já não sei se os meus


personagens ainda agem e vivem por conta própria, ou se já não foram
influenciados pela idéia de que estão sendo observados para figurar num
romance, e cada qual se esforça por conseguir o melhor papel. Tem
acontecido tanta coisa inesperada nestes últimos dias (CRULS, 1958, p. 416-
17).

Notemos que três linhas ideológicas da vida aparecem em A criação e o criador: a

positivista (“O Criador”), a fenomenológica (“A Criação”) e a dialética (“O Criador e a

Criação”). Todas elas foram importantes para a construção do gênero romance, para

realização da trama envolvendo a personagem Donegal, e, sobretudo para a arquitetura de um

desfecho impensado, destes, que fazem um romance ser um romance: um desfecho segundo o

qual o criador pode, não raro, ser a personagem de um outro criador. Quanto à realidade, se do

criador ou da criação ou da vida e do mundo que pensamos viver, redivive o paradoxo de

Wilde (apud CRULS, 1958, p. 347): “não é a arte que copia a vida, mas a vida é que copia a

arte”.

Finalmente, Bernardo Gersen aproxima A criação e o criador de Os moedeiros falsos,

segundo o crítico, “o maior romance de Gide” (p. 390), e destaca da composição crulsiana

uma formação que corresponderia, nas palavras do crítico, “à tríade hegeliana” (p. 389).

Gersen ainda comenta, no mesmo artigo, os romances Vertigem, Elsa e Helena e, uma vez

mais, A Amazônia misteriosa, cuja passagem pelo crítico destacada, e que o leitor poderá ler

160
em seu artigo que transcrevemos, é, segundo Gersen, maior que qualquer dos romances “de

Gide” (p. 392).

RACHEL DE QUEIROZ

Inesquecível, o primeiro olhar de Gastão Cruls é conservado na memória de Rachel de

Queiroz que, escrevendo a nota “Última Página” para o jornal “O Cruzeiro” em 29/08/1959,

sobre o falecimento do amigo, relembra o encanto de instantes mágicos na companhia dele.

Sensibilizada com sua morte, Queiroz fala de um dos predicados mais preciosos do escritor: o

zelo das amizades. De certa forma, nesse momento de luto, lamenta a pouca atenção que nós,

de modo geral, damos aos nossos amigos enquanto estão vivos; e percebe o contraste desse

(des)cuidado no amigo que se foi: “E tratando-se justamente de uma pessoa como Gastão

Cruls, todas essas omissões cotidianas da amizade ainda parecem mais graves, porque ele não

as cometia nunca. Amizade para ele não era uma palavra à-toa, era um dom, um compromisso

definitivo” (p. 395).

Aparentemente fechado, como pontuou Silva Melo (1959), e não dado a muita

conversa, Gastão Cruls, à primeira vista, segundo compreendemos, mostrava-se uma pessoa

pouco sociável. Essa impressão, porém, parece que se dissipava aos primeiros sinais de

afinidade e confiança. No desprendimento das coisas materiais, preferindo o cultivo de

amizades que vicejaram-se poucas mas leais, pelos anos dos estudos de medicina, de viagens

pelo Brasil e de encontro com a vocação literária, Gastão Cruls revelou-se exemplo de amigo

que não esquece, que não falseia, que se mantém próximo e solícito, como bem nos lembrará

de novo Pedro Nava em 1987.

Rachel de Queiroz ainda recita suas primeiras lembranças da “grande flor flamenga”

(p. 393), e comenta a respeito de uma aflição, certamente comum a todo escritor: a aflição da

“terrível insegurança de quem escreve para os outros lerem”, imaginando que Gastão Cruls

161
“muitas vezes precisou de uma palavra de fé ou de animação” (p. 394). Nessas palavras de

Queiroz desponta a tristeza da sensação, comum de muitos, de que algo muito importante que

precisava ser dito não o foi, apenas por “preguiça” (p. 394). Quase despedindo-se, a amiga e

escritora cita o gesto inesquecível de Gastão Cruls para com a mãe dela: o gesto simples de

perguntar pela “leitora antiga” e de “lhe mandar seus livros novos” (p. 396); mas,

indiscutivelmente, o mais sensível e nobre viria em um momento de dor de Rachel de

Queiroz, o momento da despedida de sua mãe. Nesse momento, segundo Queiroz, o presente

de uma flor plantada e cuidada por ele no seu pequeno jardim, no Alto da Boa Vista, era o

alento que precisava, e que seu coração guardou.

Assim, a nosso ver, não surpreenderia, por isso mesmo, que o acordar de saudade das

suas brincadeiras, do sorriso sincero, da conversa agradável, da companhia rica em

sensibilidade e saber; nos tomasse a nós mesmos de sobressalto, num mundo ainda tão carente

do hábito amigo, feito muitas vezes de grupos fechados, de desconfiança e de infelicidade.

Quando ele se vai, Rachel de Queiroz rememora aquele último riso lateral, sem abrir a boca,

que denota francamente a certeza de mais uma viagem incerta.

...

162
JOEL PONTES

J. Pontes, em O aprendiz de crítica (1960), faz um estudo dos elementos constritores

da narrativa de Cruls, no ensaio “Sinfronismo em Gastão Cruls”. Nesse propósito, destaca a

aplicação literária do termo goetheano “sinfronismo”, que designa, em nossa avaliação, uma

capacidade rara: a de eternizar instantes que comumente passam despercebidos. Nas palavras

do crítico: “resulta que o autor sinfrônico tem que 1º) sentir o tempo que não é o seu e 2º)

transmitir esse sentimento” (p. 401).

A competência com que o autor usa essa capacidade em sua novelística confere,

segundo Pontes, a “originalidade maior” (p. 404) de Gastão L. Cruls nas palavras, na sintaxe e

nos aspectos do enredo. E, a nosso ver, a formação acadêmica na Escola de Medicina do Rio

de Janeiro, e o gosto por conhecer os muitos tipos humanos de seu país, faz da arte de Cruls

um diálogo sincero entre o texto e o leitor.

Em seu ensaio, o crítico retoma a questão da permanência dos clássicos, ou seja, do

caráter etéreo dessas obras, que as fazem continuar vivas e de leitura indispensável para todas

as épocas. Segundo Pontes, a força dos clássicos permanece vital porque a arte neles contida,

e que deles emana a cada leitura ou releitura, é um retrato daquele presente, hoje, tempo

histórico, percebido e interpretado excepcionalmente pelo artista.

Nesse interlúdio, esse passado de Homero, Sócrates, Platão, Ovídio, Ariosto, Sêneca,

Petrarca, Camões, Hugo, Goethe, Nabokov, Dostoievski, Joyce, Unamuno e de Machado de

Assis entre outros, porta as vozes de mensageiros que a todo momento estão querendo dizer

algo aos homens contemporâneos de qualquer época: mensagens que falam de amor, de ódio,

de traição, de injustiças, de guerras e de sonhos; projéteis da ogiva nuclear do bem e do mal,

que, desde sempre, põem o homem em conflito com a Natureza. E o artista, retratando-os

como se os estivesse verdadeiramente sentindo e vivendo, às vezes, a todos eles ao mesmo

tempo, concede-lhes o milagre da transcendência; e isso, de tal forma, que apesar da mudança

163
dos tempos, da vontade dos homens e dos valores da sociedade, a voz que deveras nos fala,

que talvez tenha ecoado pela lacuna de seis mil anos, soa-nos tão profundamente atual e

agora.

Pensando nesse retrato, nessa pintura, nessa música tão real para nós que se nos parece

viva, de dentro de nossa realidade, nossa bruma incerta, podemos dizer que as vozes dos

clássicos são as vozes das almas e da Natureza de seus tempos. Vozes auscultadas pelo artista

e, muitas delas, involuntariamente retransmitidas. Vozes irresistíveis, como se fossem a voz

de Deus de cujo resplendor da Glória ou do Inferno muitos não suportaram: ficaram loucos e

a outros enlouqueceram, suicidaram-se, e os que viveram sãos viveram alienados. Apesar dos

exemplos dessa tragédia do humano nas histórias de Sêneca, Klaus Mann, Nijinsky, Camile

Claudel ou Sá-Carneiro, não acreditamos que tal destino tenha que ser a regra irreversível da

fatalidade.

De toda sorte, o artista sofre naturalmente por um ideal possível, mas tornado

inalcançável pelos modelos conflitivos da sociedade dos homens. Modelos que podem

aprisionar o corpo e a mente, mas nunca a alma. E o artista sabe. E como a alma é o coração

do espírito, e o espírito a força capaz de fazer revoluções, talvez se explique porque nos

regimes totalitários o artista é o primeiro a ser perseguido e calado.

Mas não se cala a voz da alma. Essa agonia metafísica, embora enclausurada em um

corpo tão limitado, continua por aí, nos cantos, nas vilas, nas cidades e nos campos, ¾

pensando nos dizer alguma coisa. Sua presença no tempo e nos tempos, ou seja; no seu

instante de revelação ou de manifestação artística (o presente do artista), de eternidade

galardoada pela transcendência (o presente de todas as gerações), confere ao artista o estatuto

da continuidade, da onipresença, pela qual é capaz de se comunicar com as almas dos

homens.

164
Essa voz é o sinfronismo da arte, segundo Joel Pontes, termo empregado “em relação à

essência literária a Ortega y Gasset” no El Espectador, quando Ortega, segundo Pontes, “se

serve desse termo para explicar as relações entre Azorín e don Jacinto Bejarano, um

desconhecido padre de aldeia. ‘Siento, como se fueran mios tu dolores’, diz o escritor” (p.

399).

Esse exemplo é similar ao exemplo tomado por Carlos Reis (1999, p. 359-61), falando

do poder de impressionar, de qual se reveste a personagem que tem, realmente,

representatividade no discurso de uma história. O exemplo de Reis refere a personagem

Emma Bovary no discurso da história de Madame Bovary, de Flaubert. De acordo com esse

exemplo, confessa Flaubert (REIS, 1999, p. 360): “Cuando escribi el envenenamiento de

Emma Bovary, tuve en la boca el sabor de arsênico con tanta intensidad, me sentí yo mismo

tan autenticámente envenenado, que tuve dos indigestiones”.

Eis aí um autêntico caso do sinfronismo goetheano que, sob outros termos, é tratado

em Carlos Reis (1999, p. 360, grifos do autor) por uma personagem que liga e faz conexão

com o mundo real na presentidade: “Os próprios estudos literários (e nos últimos tempos a

narratologia) regularmente valorizam as potencialidades semânticas da personagem:

manifestada sob a espécie de um conjunto descontínuo de marcas”. Assim,

(a) personagem é uma unidade difusa de significação, construída


progressivamente pela narrativa. [...] é, pois, o suporte das redundâncias e
das transformações semânticas da narrativa, e constituída pela soma das
informações facultadas sobre o que ela é e sobre o que ela faz (HAMON
apud REIS, 1999, p. 360).

Destarte, o que Philippe Hamon chama de “unidade difusa da significação” é uma

personagem enquanto componente, talvez o mais significativo, de um universo diegético 33: de

33
De acordo com Carlos Reis, 1999, p. 358, grifos do autor: “Baseando-se na utilização por E. Souriau (no
âmbito de pesquisas sobre a narrativa cinematográfica) do conceito de universo diegético, como local do
significado, distinto do universo do écran, local do significante fílmico, Genette considera, em Nouveau
Discours du Récit (Paris, Seuil, 1983, p. 10-14), que o termo diegese deve designar o universo espácio-temporal
em que decorre a história [...]”.

165
uma história ficcional que representa vivamente, como a impressão teatral, a história da vida

real. Esse universo diegético, comentado por Reis, é a expressão que substitui o termo

sinfronismo, lembrando que ambos referem a personagem. Ademais, é importante sublinhar

que tanto a personagem balisada por Carlos Reis, quanto a balisada por Ortega e Gasset na

transposição do termo goetheano para a literatura, figura não apenas em discurso direto, mas

no indireto, no indireto livre, no monólogo interior ou em qualquer outra tipologia do

discurso, já que, em essência, todo discurso é potencialmente polifônico. Pelo que nos parece,

isso anula a diferença entre Platão e Aristóteles sobre o fazer narrativo na diegese. Para o

primeiro, na diegese figurariam dois modos de fala: o do narrador esforçando-se para dar ao

leitor a impressão de que é uma outra pessoa que fala, e o do narrador que se expressa em

uma fala originalmente sua. Para o segundo, os dois modos descritos por Platão são mimese,

ou seja, tudo na haplé diegésis é imitação, seja pelo falar característico ou modalizante da

personagem, seja pelo falar peculiar do narrador, mesmo quando esse narrador representa a

consciência do escritor e possui e escreve os lexemas autorais.

Um exame atento de exemplos sinfrônicos na narrativa nos permite, pois,

compreender melhor o requies ab opere de Platão e Aristóteles. Segundo Joel Pontes, o

sinfronismo corresponde, nestas palavras e grifos seus: a “uma totalização do pensar e do

agir” (p. 400) que se encarrega da geração da simpatia enquanto elemento catalisador da

atenção, da irredutibilidade, da coincidência dos espíritos, logo, do caráter atemporal da obra.

Aliás, continua Pontes, há “no livro Qué es literatura?, publicado em fins de 1954, uma

reatualização do termo [sinfronismo]”, na verdade, a segunda reatualização, já que a primeira

fora feita por Ortega y Gasset, como de fato confirmamos na edição em português:

Se cabe a Goethe a paternidade do tecnicismo, a Ortega y Gasset se deve sua


aplicação às reflexões em torno da essência literária, pois no ensaio Azorín
ou Primores do Vulgar (LXXIX) ele o reatualiza ao manifestar que a arte
literária, neste escritor, consiste em reviver a sensibilidade básica do homem
através dos tempos. Tal é o que ¾ recorrendo à velha idéia goetheana ¾ se

166
chamou “sinfronismo”, ou seja, a coincidência espiritual, de estilo, de
módulo vital, entre o homem de uma época e os de todas as épocas, dos
próximos aos dispersos no tempo e no espaço (CASTAGNINO, 1969, p. 41,
grifos do autor).

Joel Pontes, exercitando o sinfronismo aplica-o em relação ao romance De pai a filho,

de Gastão Cruls, dizendo que o sinfronismo literário no escritor justifica-se na direção que o

artista empreende à narrativa, inicialmente realista, e naturalista ao final, coincidindo a

aproximação entre pessoas de um tempo e pessoas de outro tempo. Conforme Pontes, o

sinfronismo crulsiano em De pai a filho revela a busca do artista pela perfeição do ofício

artístico, inteiramente “entregue à criação com intensidade tal que dela participou” (p. 406).

Não comentaremos a análise sinfrônica de Joel Pontes. Mas, deixaremos ao nosso leitor o

convite para lê-la no “Volume 2”. Por hora, fica aqui um pequeno brinde do sinfronismo

crulsiano, em que o narrador imita a linguagem e os modos de então, mais propriamente, do

início do século XX, em De pai a filho:

E foi então que ela se voltara com muitos mimos para uma cria da casa, neta
de antigos escravos do pai, mas que dera naquela mulatinha tapada e
songamonga, sem préstimo para nada e que só servia para apanhar uma coisa
aqui e outra ali (“Ceição, vá ver se o leiteiro já veio!” “Ceição, procure o
meu carretel de retrós que rolou para debaixo do armário!”), e ainda o que
melhor fazia era puxar as botinas do patrão (CRULS, 1954, p. 13).

Nas palavras de Pontes, “o romance brasileiro é, nesse particular [o da linguagem],

bastante deficiente ou apenas anedótico, quer em relação ao tempo em que vivem os

personagens, quer em relação à posição social, grau de instrução, etc” (p. 403). De nossa

parte, em Cruls, como vimos na passagem acima, essa deficiência não existe. Podemos até

dizer que ela não pode ser encontrada em nenhuma parte de sua obra. Enquanto isso,

conforme afirma Pontes, “nossos romancistas, via de regra, têm uma só linguagem, num

desprezo inqualificável pelas peculiaridades lingüísticas do personagem” (p. 403). A nosso

ver, pois, na estrutura do entrecho acima, o sinfronismo de Cruls está fielmente pautado desde

167
os arranjos morfossintáticos engendrados pelo autor, à mimese da narrativa na narrativa, ali

circunstanciada pela frase entre aspas e entre parênteses.

Com efeito, como podemos concluir, De pai a filho, iniciado no realismo, de um

tempo de recém assinatura da Lei Áurea, desenvolve-se ao longo de motivos realistas e

conseqüências naturalistas, como a perpetuação de um destino explicado pela hereditariedade.

Contudo, as investigações sociais, o olhar sobre o mundo e as pessoas nas idas e vindas pelo

tempo, entrevinha imagens ainda mais impressivas, ou edípicas-outonais, do filho Betinho

sobre a mãe Teresa:

No dia seguinte, quando Teresa desceu para a primeira pose, vestia uma
linda blusa lilás. Fôra um presente de Iracema, às vésperas da chegada de
Betinho, quando todos insistiam para que tirasse o luto.
Ao vê-la, mais moça do que nunca, no seu magnífico outono que valeria por
muitas primaveras, o filho contemplou-a com olhos de êxtase:
¾ Só falta o chapéu, para ser a Apparition de Mallarmé (CRULS, 1954, p.
503).

OTTO MARIA CARPEAUX

Carpeaux, em Pequena bibliografia da crítica da literatura brasileira (1964), chama

aos pré-modernistas reveladores da realidade brasileira; mais propriamente, reveladores do

interior do Brasil: os gostos, as crenças, as danças, a culinária, os costumes, a linguagem e

uma infinidade de temas que traduzem uma cultura, até então, muito pouco conhecida dos

brasileiros das metrópoles.

De acordo com Carpeaux, o termo “Pré-modernismo” foi criado por Tristão de Ataíde

(Amoroso Lima), para designar os “escritores contemporâneos do neo-parnasianismo” (p.

408). Trata-se, portanto, de uma literatura mais sociológica no conteúdo, mas ainda

enformada na lâmina clássica do entorno parnasiano.

168
Dentre os escritores pré-modernistas, Carpeaux releva alguns nomes que teriam sido

precursores do Modernismo, embora sem tomar partido no movimento. Entre os nomes

citados pelo crítico está o de Gastão Cruls, cujo estilo excede, na escritura de romances

psicológicos, “os limites do regionalismo”; e continua ainda em suas palavras, “assim como

suas atividades de crítico e escritor sociológico o ligaram pessoalmente a representantes do

modernismo” (p. 409).

Todavia, nessa Pequena bibliografia da crítica da literatura brasileira, a chamada

para Cruls recai sobre o escritor apenas enquanto contista regionalista e, conforme Carpeaux,

à maneira de Affonso Arinos, Simões Lopes Neto, Monteiro Lobato e Peregrino Júnior; logo,

sobre o escritor pré-modernista na acepção do termo de Tristão de Ataíde.

Por sua vez, queremos acrescentar que também o regionalismo nos contos de Gastão

Cruls é permeado pela reflexão psicológica de personagem. Nesse sentido, gostaríamos de nos

estender um pouco mais nesse assunto. Um exemplo considerável pode ser visto já a partir de

um discurso mimético no conto “A morte do saci”, no parte-texto em que a personagem

Raimunda quebra o silêncio ao chegar a um lugar que não queria, e cuja visão a fará mudar de

idéia:

Diante da casinha nova e bem colmada de sapé, a debruçar-se tafula sôbre a


várzea, faceando com um horizonte amplo e alegre, Raimunda, que viera
macambúzia e quieta durante todo o trajeto, viu-se forçada a quebrar o seu
silêncio, e porque nada desse azo a qualquer praguejamento, acabou
elogiando a vizinhança de um riacho que a dous passos de casa, descia
chorosamente entre o cascalho:
 A modos que aqui não teremos mais a inferneira da falta dagua, que tanto
arreliava a gente no Fundão... (CRULS, 1951, 107).

Numa situação como essa, o narrador faz de conta que dá, literalmente, (GENETTE,

1970, p. 170-71) a palavra à sua personagem: Raimunda “acabou elogiando...”. Isso nos conta

o narrador onisciente a respeito da personagem Raimunda naquele instante da narrativa, que

acima se expressa em discurso direto. Palavras atribuídas à personagem como “modos”,

169
“inferneira” e “arreliava” seriam uma tentativa de imitação da parte do narrador. O enunciado,

ao tempo em que prenuncia o discurso direto, modaliza o tom do discurso da personagem. É,

pois, uma fala subordinada ao discurso relatado (reportado) de tipo dramático – uma mimese

caracterizada em dois graus: o narrador que conta imita com voz emprestada pelo narrador-

personagem, quando não é mais a entidade que narra pelo seu ponto de vista, mas já o

fingimento do ponto de vista do outro, até adentrar a instância narrativa em discurso direto.

Notando que esse discurso é desde antes a fala de uma personagem que imita na representação

a fala supostamente original, de uma pessoa naquele campo conversacional, temos então a

capacidade de imitar por parte do narrador que conta, facultada pela imitação que ele próprio

faz a partir de uma outra imitação. A primeira, quando toma para si o modo de dizer de

outrem, ainda em discurso indireto, implica uma mimese simples; mas, a segunda, quando

delega voz a uma personagem que continua a falar em conformidade com a primeira imitação,

e que é ainda o mesmo narrador onisciente, implica uma mimese em escala de dois graus; isto

é, o ato de imitar a própria imitação.

Passando da mimese às luzes da focalização,

Chico Sabino, ainda muito a mêdo, temendo novas recriminações, apontou


mais algumas vantagens que lhes adviriam do novo sítio. [...] E Chico
Sabino, todo entusiasmado, [...] para rematar, alentado pelo modo
prazenteiro com que Raimunda escutava a enfiada de seus projetos, [...] foi-
lhe direito à causa dos aborrecimentos. [...] Não se enganava o velho colono
nas suas previsões (CRULS, 1951, p. 107).

Se quisermos interpretar algumas entradas no discurso da história, que nos abrem

caminho para uma leitura da psicologia de personagens, narrativizada sob circunstâncias

hipotéticas, como quando Chico Sabino adivinha ou conjectura o pensamento de seu

interlocutor (D. Raimunda, no entrecho acima) a partir da expressão do seu rosto: “alentado

pelo modo prazenteiro com que Raimunda escutava a enfiada de seus projetos”,  é

elementar a observância de determinados caracteres da narrativa. Portanto, de uma restrição

170
ou seleção das informações do texto, ou ainda, para usarmos um termo que preferimos, a

observância da constrição dos dados informativos. Com efeito, a observação de índices da

focalização (GENETTE, 1970), a partir do campo de consciência das duas personagens,

privilegia não apenas o que elas pensam (e já isso é diferenciado, de acordo com o que mais

prende a atenção de cada uma delas), mas também as particulares emoções inerentes a

específicas atitudes valorativas perfilhadas por cada personagem: subentendidamente

Raimunda queixava-se do distanciamento. Achava-o (o novo sítio) longe e retirado,

principalmente em face da expectativa do que ela, por certo, teria a perder. Já Chico Sabino,

apaixonara-se pela beleza vista e pelo progresso imaginado daquele lugar.

Assim, as duas personagens, sendo momentânea e sucessivamente agentes de uma

focalização interna (e, por isso mesmo, focalizadores), facultam do espaço focalizado imagens

diversas, em sintonia com a própria diversidade dos posicionamentos ideológicos e afetivos:

Raimunda, com a mudança, sacrificaria o costume da conversa com as “comadres e da sua

assídua devoção à Senhora da Piedade, no oratório da Tia Felisberta” (CRULS, 1951, p. 106),

mas deixaria de sofrer com a falta de água; Chico Sabino, a seu tempo, ganharia com o triunfo

de sua vontade e de seu sonho por quase dez anos, “dois lustros” de “vida feliz e produtiva”

na terra “feraz e benfazeja” (CRULS, 1951, p. 109) que ele mesmo escolhera. Triunfo,

entretanto, que seria ceifado pela morte de Raimunda e a convivência com um certo saci de

suas crendices.

Paralelamente, a psicologia de personagens evolui para uma narrativa na narrativa: a

conversa entre Chico Sabino e o patrão. Daí resulta o destino do saci:

O fazendeiro depois de ouvir, entre incrédulo e curioso, as crendices e


temores de Chico Sabino, perguntou-lhe se as aparições do Saci não
coincidiam com as suas voltas do armazém. O colono compreendeu logo
onde êle queria chegar e retrucou num protesto sincero: (CRULS, 1951, p.
113).

171
Este entrecho é a linha divisória entre uma narrativa de um narrador heterodiegético e

uma narrativa de narradores – um, autodiegético (o João) e outro, homodiegético (o patrão).

Falando dos tipos de relação que podem unir a narrativa metadiegética à narrativa

primeira; e, nas linhas em que fala do, por ele chamado, terceiro tipo de narrativa

metadiegética: “é o próprio ato da narração que desempenha uma função na diegese,

independentemente do conteúdo metadiegético: função de distração, por exemplo, e/ou de

obstrução” (GENETTE, 1970, p. 232).

Parece-nos que a narrativa do parte-texto supracitado de Cruls é uma voz de um

narrador que, do nível extradiegético focaliza um acontecimento na narrativa primeira ou

história principal: o acontecimento de se contar a história (o causo) na diegese. Isto é, o

narrador transporta-se para a diegese e nela conta de novo o que vinha contando para um

leitor fora da história (nós, por exemplo). Esse ato de recontar, realizado na diegese pelas

vozes das personagens, abre outra instância narrativa: a metadiegética.

De fato,

Chico Sabino:

 Não! Patrãozinho sabe bem que seu prêto velho quase não bebe, [...] Mal
assuntei, vi um matinho mais adiante a mexer, e o esconjurado pôs-se logo a
gritar: Saci! Saci-saperê! Saci-saperê! [...]  Meu amo está rindo porque
ainda não topou com êle, nem sabe das suas artimanhas. O negrinho é
mesmo astucioso e mau [...] (CRULS, 1951, p. 113).

O fazendeiro:

E como o fazendeiro desfranzisse os lábios num sorriso cheio de bonomia, ele

prosseguiu com mais calor: [...].

 Pois bem, disse o fazendeiro para pôr têrmo à lenga-lenga do velho


colono, não penses mais em deixar o teu lote, e eu te arranjarei uma
espingarda para liquidares êsse Saci tão aborrecido (CRULS, 1951, p. 113-
14).

172
Com efeito,

(a) passagem de um nível narrativo para outro não pode, em princípio, senão
ser assegurada pela narração, acto que precisamente consiste em introduzir
numa situação, por meio de um discurso, o conhecimento de uma outra
situação (GENETTE, 1970, p. 233).

A idéia é estabelecer uma relação entre o ato narrativo: ação de como contar. E a

situação presente: por que se está contando isto. Temos assim, uma narrativa segunda; logo,

uma outra situação, mas subordinada à primeira.

Note-se que toda a passagem em discurso indireto livre, na qual a história de “A morte

do saci”, em ato narrativo, começa com “Descendo pela estrada velha Chico Sabino

matutava...” (CRULS, 1951, p. 110) é traduzível para a primeira pessoa: Descendo pela

estrada velha eu matutava...

Todas as informações dos parágrafos acima nos são dadas pelo narrador

convencionalmente chamado de tradicional, heterodiegético. Estão, conseqüentemente, em

uma narrativa primeira focalizada da extradiegese. Mas ao que parece, essa entrância vai

reentrando a outra – diegética; e o fato desse conteúdo não ser recontado textualmente na

diegese, pode ser justificado pelo conhecimento da situação, já dado aos possíveis leitores da

história: no discurso quando ainda em instância extradiegética.

Trata-se mesmo de uma opção clara pelo não-repetir textualmente (suposto que já o

repete de forma subentendida e a nível de contexto) e, ao mesmo tempo, por dizer que esse

conteúdo implícito fora dito em instância diegética – portanto, repetido não-textualmente.

Aliás, no plano do texto não há quem conte a história ao fazendeiro. Só sabemos que

há isto: (que posto textualmente seria um recontar) o ato de contar por apreensão de um

contexto introduzido pelo narrador extradiegético e concluído pelo narrador intradiegético.

173
O primeiro está, a princípio, fora da história, mas temos a impressão de que ele se vai

aproximando, entra na diegese (já que não-dizer pode equivaler a dizer mais; como se

quisesse marcar ainda mais forte a sua presença na narrativa).

Já o segundo, quando se mostra, não é mais um narrador da narrativa segunda; mas um

narrador que continua essa narrativa segunda. Porém, e já a partir deste instante, em linhas da

narrativa primeira. Como que num piscar-de-olhos a digese tornou-se metadiegese e voltou a

ser diegese.

Defendemos que entre a narrativa extradiegética das páginas 110-13 de Cruls (1951), e

o presente da narração: “O fazendeiro depois de ouvir...” (CRULS, 1951, p. 113)  há um

vácuo do discurso que serve justamente para situar o tempo entre a narrativa (geralmente de

cunho passadício) e a narração.

Ao situar um marco temporal (o instante entre a narrativa mencionada: os parágrafos

de 2 a 12; e a narração: “O fazendeiro depois de ouvir...”) situa-se uma pausa na narrativa

primeira; e aí se instala ou se instaura um percurso narrativo ou narrativa segunda: uma

narrativa na narrativa.

Fica, porém, muito difícil captar o momento dessas entrâncias e reentrâncias

discursivas no universo diegético; ainda mais que funcionam, cada qual, como um jogo de

luzes e de imagens; e, sob a lente de Genette:

Todos esses jogos manifestam, pela intensidade dos seus efeitos, a


importância do limite que se esforçam por transpor a expensas da
verossimilhança. É que é precisamente a narração (ou a representação) em si
própria: fronteira oscilante mas sagrada entre dois mundos: aquele em que se
conta, aquele que se conta (GENETTE, 1970, p. 235).

Talvez possamos arriscar e articular aqui dois tipos do narrador, pelo seu nível

narrativo e pela sua relação para com a história que, conforme Genette (1970, p. 247) podem

ser:

174
 “Narrador (nível) extradiegético – (relação) heterodiegético: narrador

tradicional que conta do primeiro nível uma história da qual está ausente”;

 “Narrador (nível) intradiegético – (relação) autodiegético: narrador do

primeiro grau (protagonista) que conta a sua própria história”.

Graças também a essas modalidades tensivas do fazer discursivo na narrativa,

podemos ler uma ficção que notabiliza a arte literária e revela um certo sentimento íntimo

(por fim do escritor) no trato conversador de assuntos de seu chão e sua gente. Assim, “cada

personagem [de Cruls] se exprime em sua linguagem, tem o falar característico de sua

personalidade, o que os marca definitivamente em sua psicologia” (GOES, p. 411). A nosso

ver, pois, também no conto, Cruls excede o regionalismo tradicional.

FERNANDO GOES

Fernando Goes, no prefácio de seu O espelho infiel (1966), fala da dificuldade inerente

às atribuições da crítica, já que ela se defronta com definições e práticas diferenciadas. Seja

pelo escopo de um método não marxista ou marxista, seja pela técnica empírica ou dialética

na análise do material factual, afirma Goes: “será sempre a crítica um espelho infiel a refletir

a face do crítico [...]”.

Ao examinar as obras de Cruls, F. Goes percorre um itinerário apodítico do

cronograma histórico do autor. Empreende uma marcha linear e empírica na busca pela

confirmação de algumas críticas já conhecidas por ele a respeito do Sr. Gastão Cruls, como o

chama; entre elas a de Olívio Montenegro, publicada quase 28 anos antes. O espaço

percorrido pelo crítico dá conta justamente daquela fase de transição da crítica, de 1940 a

1960, período em que o olhar crítico no Brasil e nesse momento sofre transformações que o

levam de uma predominância da abordagem extrínseca para a intrínseca e estrutural. Fiel à

175
tarefa que se impôs, Goes vai de A Amazônia misteriosa, passa pela A Amazônia que eu vi,

por Vertigem, e chega em De pai a filho. Nesse caminho, Cruls teria ficado ausente da ficção

por dezesseis anos, ou seja, entre História puxa história (1938) e De pai a filho (1954).

Nesse expediente, o crítico, que reconta parte da história do prosador Cruls, aborda o

enredo de De pai a filho. Com o crivo de leituras acostumadas à narrativa de falas,

especialmente à narrativa de linguajar regionalista, Goes ressalta algumas palavras em

enunciados miméticos – discurso da imitação –, desse romance de Cruls, tais como “tipa” e

“bilontra” (p. 410). Desses vocábulos vale o crítico para situar o autor entre aqueles que se

aproveitam com primor da língua pertencente a cada época, portanto, e distintamente, a cada

personagem. Por causa de ocorrências lingüísticas dessa natureza é que Joel Pontes se referiu

a Cruls como sendo um escritor sinfrônico; um criador que dá liberdade, livre arbítrio a suas

personagens.

Passeando pela prosa de Cruls, o crítico Goes enxerga na superfície dela uma

economia muito próxima do que, podemos pensar, Lotman (1978) reportou de “processo-

menos” no seu A estrutura do texto artístico. De acordo com Lotman, o grau maior de

informatividade implícita revela um alto teor de literariedade. Claro que a descoberta desse

alto teor do fenômeno literário é, nas condições de abrangência do implícito, sempre mais

difícil e necessariamente mais criteriosa. Esse estilo reticente, que F. Goes chama de vigoroso

em Cruls, é que justifica a alta competência do escritor no recurso da construção narrativa,

que resulta numa prosa da mais elevada qualidade, sem “pano de fundos”, como por exemplo,

o poético, tão repetidas vezes tomado pelos nossos escritores, sobretudo os regionalistas

tradicionais. “[Cruls] sabe como se aproveitar da língua e da linguagem de um tempo, com

uma mestria que aumenta de muito o valor de seu romance. De resto, convém acentuar que o

escritor é um dos nossos poucos prosadores que realmente escrevem... em prosa” (p. 411).

176
A limpidez da prosa crulsiana, como já dizia Goes, aparece tácita, como, segundo

entendemos, bem podem demonstrar as técnicas de análise da narrativa, na obra de Cruls, em

sua superestrutura ou, a níveis profundos do plano discursivo, desde as suas primeiras

estórias de 1917, publicadas em folhetim sob o pseudônimo de Sergio Spinola. De acordo

com Goes, esse mesmo estilo notório, mas avaliado como ríspido no A Amazônia misteriosa,

de 1925, reaparece em 1954, quase trinta anos depois. E agora, assim compreendemos,

podendo ser vista de um outro ângulo, essa forma de fazer estesia e catarse na prosa repete-se

em De pai a filho:

Na meia luz do quarto, coada através de um abajur vermelho, Betinho


começava a vestir-se. Vestia-se como um autômato, sem consciência dos
seus gestos. Não dava também nenhuma atenção ao que lhe dizia Germaine:
¾ Você devia ficar. Isso passa, não tem nenhuma importância. É uma
impressão nervosa. Também pode ter bebido demais. Fez tantas misturas...
Fique...
Essas frases não lhe diziam nada, mas as outras, as de pouco antes, unharam-
lhe fortemente o cérebro e eram as únicas que se repetiam aos seus ouvidos:
Você ainda gosta da outra mulher. Fica assim porque está sempre pensando
nela. Mas isso passa.
Nessa noite, Betinho não voltou para casa. Andou por um lado e outro,
vagueando, a esmo, pelas ruas desertas. Entrou em muito botequim. Por fim,
já de manhãzinha, um bonde levou-o a Ipanema.
...
Seu corpo, mancha escura a destacar-se entre golfões de espuma, apareceu
três dias depois, junto às pedras do Arpoador (CRULS, 1954, p. 523).

Com efeito, esse aspecto da ficção crulsiana, delineado pela dosagem dos contornos de

seus arranjos sempre prosaicos, merecerá de Eugênio Gomes o título de “mestre consumado

da prosa” e a opinião de Rubem Braga que o aponta como um autor que se dirige ao leitor em

“tom de camaradagem”. Esses comentários, nas “orelhas” de De pai a filho para crítica de

Aparência do Rio de Janeiro, corroboram a conclusão de Goes a esse respeito: “Gastão Cruls

[...] é um verdadeiro prosador, prosador naquele sentido em que o foram Machado de Assis e

Nabuco, Lima Barreto e Monteiro Lobato, por exemplo (p. 411)”.

177
Repassando as lições deixadas por outros críticos, Goes observa com apontamentos

que marcam acentuadamente sua passagem pela história da composição do estilo prosador de

Cruls que, se não usou a poesia como fundo de suas narrativas, usou-a muitas vezes, feito um

Wyndham Lewis34, como vórtice na sua ficção ¾ sinônimo de rodamoinho da realidade

folclórica, tão comum nos seus contos do folclore nordestino ou amazônico:

A desgraça do pau verde

é ter um seco encostado,

Vem o fogo, dá no seco,

E fica o verde queimado.

(CRULS, 1958, p. 109).

Não é diferente nesse romance de retratos em De pai a filho, como acontece no

episódio em que Dona Pepê é recriminada pelo marido, o Cardoso, a despeito do gosto rueiro

da mulher com a seguinte quadrinha:

A mulher e a galinha

pouco devem passear;

a galinha come bichos,

a mulher dá que falar.

(CRULS, 1954, p. 26).

e ainda no episódio em que Teresinha consegue “desembaraçar-se” de Alberto, gorjeando as

Stances a Manon:

Manon voice le soleil,

C’est le Printemps, c’est l’Éveil,

C’est l’Amour, maître des choses

C’est le nide dans le buisson

Viens éprouver le frisson...

(CRULS, 1954, p. 166).

34
O Wyndham Lewis de que fala Campos (1976).

178
Fazendo coro ao autor Cruls, o crítico Goes não deixa de assinalar um olho no furacão

testemunhado pela narrativa que fala do interesse de Cruls pelos casos mórbidos, denunciando

a transmissão hereditária dos infortúnios do protagonista de De pai a filho, manifestada no

filho como conseqüência do trauma de ter flagrado “a mãe sendo possuída pelo pai”: Les

jambes en l’air, comme une femme lubrique (p. 405) ¾ acena Goes com esses versos de

Baudelaire, finalizando sua crítica de modo a instar-se uma panorâmica da evolução do estilo

de prosa crulsiano. As instalações do comentário de Fernando Goes guiam o leitor da crítica

através de um painel da matéria ficcional de Gastão Cruls. E, De pai a filho, apontado pelo

crítico como “vasto painel da vida carioca no princípio do século XX” (p. 405), dedica suas

últimas cem páginas – 1/3 de sua estrutura – à análise das personagens.

GASTÃO CRULS

O escritor Gastão Cruls comenta a versão em quadrinhos de Le Blanc (1944), para o

romance do próprio comentarista, A Amazônia misteriosa. O comentário transcrito no capítulo

seguinte foi compilado da reimpressão da obra de Le Blanc, em 1977, pela Editora Brasil

América. Coincidentemente, essa versão-figurinha do romance de aventuras, de idéias e de

tese social é publicada no mesmo ano em que se publica também a versão do mesmo romance

em língua inglesa: The mysterious Amazonia.

Em seu comentário, Cruls parece ressabiado com a composição de quadrinhos que

muitas vezes ajuíza a pretensão de substituir a narrativa. A esses quadrinhos, chama

“narrativas abracadabrantes” (p. 419). Há no comentário, o justo receio de que o pictórico

recebesse preferência privilegiada da parte dos leitores em detrimento da letra, especialmente

em razão do nenhum estímulo substancial dado à atividade de leitura; num país de tempos de

altos e vergonhosos índices de analfabetismo. Cruls temia que os nossos jovens ainda mais se

afastassem dos livros, para ele, “única fonte de saber” (p. 419).

179
Entrementes, o autor reconhece que o quadrinho pode ser de grande utilidade para o

ensejo à leitura da narrativa, da poesia, enfim, da obra de arte. Outrossim, pincelando os

quadrinhos de A Amazônia misteriosa, é evidente a transformação: a história de Cruls

rabiscada por Le Blanc reinterpreta a narrativa fantástica do romancista e promove, pelo

ponto de vista do quadrinizante, uma leitura cênica, como dirá Causo (2003) a respeito desse

romance,  do “clássico de ficção científica”.

Contudo, entre as adaptações alongadas do texto original, pode-se dizer que: a

explicitude da paixão entre Rosina e Seu Doutor, e a poção do erotismo flagrante em Malila;

além da cena na qual o protagonista e narrador representado, Seu Doutor, é surpreendido pelo

cientista Hartmann, fazendo espionagem ¾ estão entre as mais distantes do romance.

CELSO PEDRO LUFT

Em seu Dicionário de literatura portuguesa e brasileira (1979), Luft reitera o que

escritores como Otto M. Carpeaux disseram a respeito do conto de Gastão Cruls,

especialmente no que toca o regionalismo, a psique e o drama na estilística crulsiana.

O crítico sobreleva as unidades dramáticas da composição de contos de G. Cruls,

apoiando-se em Herman Lima, e desse apoio ressalta, entre outros, o conto “Abcesso de

fixação”, dedicado por Cruls a Silva Melo, e do qual daremos um pequeno entrecho que

resume a narrativa in totum da técnica do abcesso de fixação. Essa técnica, natural da

Medicina, para fazer frente aos quadros de infecção generalizada, consistia em produzir

artificialmente um foco de supuração dos germes, partindo do princípio de que os germes,

uma vez concentrados em um único tecido ou órgão, são mais facilmente combatidos, com

grande chance de serem erradicados de uma só vez.

Com efeito, uma vez instalado o foco germinal, presumia-se atrair os germes que

poderiam se espalhar por todo o organismo. Nesse sentido, funcionava como antecipação de

180
um quadro real e total de infecção generalizada. A diferença é que esse quadro seria real em

uma pequena parte do corpo, possibilitando a intervenção médica e a cura. Era, assim, uma

armadilha para esses bichos infecto-contagiosos. No conto, Gastão Cruls cria uma

personagem que aplica essa técnica nela mesmo; só que, em vez de destinado ao tratamento

biológico, o abcesso de fixação destina-se ao tratamento psicológico. Nesse caso, a

personagem se auto-receita o cometimento de um assassinato, como forma de juntar todas as

suas perturbações mentais menores. Conquanto, “executando uma impulsão mórbida”

(CRULS, 1951, p. 208), ¾ a atitude de matar, a personagem só haverá que pensar nesse crime,

de sanção muito maior, que nas obsessões e idéias estranhas que lhe tiravam o sono todas as

noites. Estaria, então, curado dessa neurastenia:

Por outro lado, eu tinha agora um motivo real de preocupação, que era o
receio de que me viessem a descobrir e isso já dava bastante trabalho ao meu
cérebro para que êle não achasse mais tempo para ruminar desvarios. [...]
Afinal, eu só visava minha felicidade e não posso ser considerado um
criminoso. [...] O senhor, no meu caso, não faria a mesma coisa? (CRULS,
1951, p. 210).

AFRÂNIO COUTINHO

Coutinho, no volume 4 de seu A literatura no Brasil (1986), comenta que o escritor

Cruls foi um “homem de imaginação solta” (p. 422). Certamente, essa liberdade para o

impulso criador permitiu ao artista pintar a Amazônia com um colorido peculiar àqueles que

dão vazão ao temperamento simples, sem rebuscamentos nem complicações, até porque, a

singularidade do ethos amazônico nada pede de extraordinário: uma vez que em si mesmo já o

é. Foi assim que sem que lá houvesse estado escreveu o romance A Amazônia misteriosa,

reanimando uma imaginação do fantástico brasileiro através de uma transcriação quase

telepática, como mais tarde pôde-se verificar no história-viagem A Amazônia que eu vi e no

documentário Hiléia amazônica.

181
Afrânio Coutinho ainda destaca que com Gastão Cruls, Monteiro Lobato, Simões

Lopes Neto e Afonso Arinos, entre outros vistos em comentários anteriores como Euclides da

Cunha e Graça Aranha,  a “realidade brasileira já havia sido descoberta, e ao Modernismo

coube valorizá-la num tom revolucionário, responsável pela sua definitiva integração” (p.

427).

...

Afrânio Coutinho (1986), agora no volume 5 da coleção já apresentada, construiu um

panorama no qual a realidade e a fantasia aparecem não mais disjuntas, mas intercaladas, na

mesma Amazônia misteriosa comentada por Grieco em 1933. No momento de Coutinho,

decantados os turbilhões modernistas e aparadas as arestas, se podia, finalmente, olhar para

trás com uma consciência histórica dos episódios do evento Modernismo e ter, na corrente

psicológica explorada pelos simbolistas, o campo no qual, segundo Coutinho, Cruls adapta

sua noção do “trágico, do satírico e da ironia” (p. 423).

Essas noções, transportadas para o ponto de vista do analista da obra, revelam um

autor que declinou o imaginário pela transcendência de seus arquétipos, sobretudo no

ambiente e para motivos locais. Como dissera Lima (1952, p. 94), “a ressaltar, ainda, que é

Gastão Cruls, com “A noiva de Oscar Wilde” e “O noturno nº 13”, um dos poucos autores

brasileiros a tratarem o conto de imaginação e mistério, com todo o sortilégio literário dos

grandes exemplares do gênero”. Esse constructo do estético crulsiano mostra mesmo um

escritor que ficou à parte das transformações estéticas levadas a cabo no momento, segundo o

crítico, mais eloqüente do Modernismo. Mesmo porque, um escritor definido por sinfrônico

(PONTES, 1960) não poderia se dar ao luxo de um temperamento mais ardente, ainda que em

circunstâncias de borbulha, como a desenhada na São Paulo das décadas de vinte e trinta,

quando a paulicéia parecia mesmo desvairada, em função da alternativa econômica industrial

que se impunha à do café, e pelos movimentos revoltosos num cenário político que acabou

182
finalizando a chamada “República Velha” e inaugurando o “Estado Novo” de Vargas. Cabia,

ao artista Cruls, manter-se lúcido na apresentação dos detalhes e em suas observações: estilo

que valeu à sua obra, segundo Coutinho, lugar entre as “mais importantes da ficção brasileira”

(p. 429) e, principalmente, a consideração de trânsito livre para a contemporaneidade.

A propósito, o historiador Nelson Werneck Sodré (1995) aponta dois indicadores

importantes: um reitera pontos de vista de autores como Grieco e Coutinho, a respeito, mais

uma vez, da associação ciência/fantasia; outro indica uma particularidade nova: a capacidade

que o artista tem de “apurar seus recursos a cada criação” (WERNECK, 1995, p. 598).

Pensando em apuro do estético, vale colocar lado a lado o conto nove de Sagarana “A hora e

a vez de Augusto Matraga”, e o romance Grande sertão – veredas; ambos de Guimarães

Rosa.

Olhando para essas obras-primas da literatura brasileira, pode-se notar que o estilo tão

experimentado por Guimarães nas suas primeiras estórias é consolidado na “A hora e a vez

de Augusto Matraga” e explorado em toda sua plenitude no Grande sertão – veredas.

Também nas primeiras estórias de Cruls, esse estilo revelador de propriedades das

personagens, situadas no mesmo nível discursivo de seu criador, surge já como uma

fantasmagoria da linguagem35, como certas explorações da língua falada livremente e em

ocasiões muito “matreiras”:

¾ Cansadinho, hein, seu doutor? E pelo que vejo hoje não se arranja mais
nada, disse Manoel Formiga a olhar desconsoladamente para os cachorros. ¾
Só agora foi que eu vi por que é que estes diabos me estão fazendo passar
vergonha e não querem trabalhar. É que a Mutuca está no vício e eles estão
só com sentido nela (CRULS, 1951, p. 26).

Com efeito, a expressão “desconsoladamente” para representar os trejeitos de Manoel

Formiga pondo os olhos nos cães que “estão só com sentido” na Mutuca, e esta última já

35
Fantasmagoria da linguagem: ou “linguagemas”  termo aventado para caracterizar os neologismos tão ao
gosto de Guimarães Rosa.

183
circunstanciada pelas aspas, são uma belíssima pintura de uma aparência e de uma linguagem,

respectivamente, consoante com a forma pela qual se nos apresenta o real, que bem parece o

lugar de interioridade, de cheiro de terra à primeira chuva, de gente que ainda pára para olhar

as cores violeta, azul-turquesa, azul-índigo, verde, amarelo, alaranjado e vermelho dos arcos-

da-velha, aqui colocados no plural, justamente, tendo em vista a presença desse fenômeno nos

céus do Brasil, em número comum de dois e em conformidade com os lençóis abertos com

gotas das nossas chuvas-de-manga.

...

Ainda Coutinho, finalmente no volume 6, o último de A literatura no Brasil (1986),

volta a citar Gastão Cruls, e classifica como “excelentes” (p. 425) os livros de contos do autor

como Coivara, Ao embalo da Rede e História puxa história. Detalhe interessante é pensar que

os contos compreendidos por esses volumes contêm “poderosa dramaticidade” (p. 425), como

afirma o crítico, além de, conforme acreditamos, revelar tipos e lugares pitorescos de um

Brasil ainda hoje estranho para muitos brasileiros. Nesse estranhamento, segundo

entendemos, perspicazmente percebido pelo artista, ganham forte estímulo criador o elemento

inóspito e o insólito, responsáveis, ao lado de outros ícones da dualidade crulsiana, como a

ciência e a fantasia, pela caracterização do ambiente e das pessoas na sua obra de ficção. Não

sem propósito, pois, trata-se de uma obra de contos e romances que superou as fronteiras

tradicionais do regionalismo brasileiro, visto, talvez, junto à edição princeps de uma escritura

não interessada em prejulgar, por um Gastão Cruls visionário e alcunha nata de uma arte, não

só, mas também, profundamente social.

PEDRO NAVA

Em suas memórias (1987), Pedro Nava reencontra o Gastão Cruls de quem fora

vizinho por alguns meses, entre fins de 1938 e início de 1939. Ao lermos o volume de Galo

184
das trevas, fica claro porque Antônio Cândido, na orelha da 4ª edição, diz que esse livro é “o

que de melhor produziu a memorialística em língua portuguesa”. De fato, é simplesmente

fantástico. Uma conversa franca com os mortos e uma auto-reflexão:

Lembrá-los é como se os tivesse invocado e logo eles chegam e me olham.


Espanto de vê-los vinte e um tão cabidos numa mesa de dez lugares.
Olhando bem percebo que eles são imponderáveis, que seus fantasmas se
interpenetram. Sinto que se fossem cem, mesmo assim caberiam à mesa
meus reaparecidos convivas. Hoje eles estão espalhados em cemitérios
daqui, da Europa, do Prata ¾ de onde acodem rápidos ao rebate do meu
pensamento.

Cavalcanti Juscelino Ruiz Moreno


Manuel Lucherini Oswald
Gastão [Cruls] Álvaro Lins Lenoch
Miguel Lichtwitz Omaz
Rodrigo Prudente Marcelle
Virgílio Lievre Deabreu
Emílio Beatriz Mário Braga

Estão satisfeitos de ter tido alguém cujo susto os materializasse, dando a


cada a possibilidade de retomar um instante o efêmero trocado pelo eterno.
Assim eles retornam interinamente suas necrópoles e parecem querer
recomeçar a última conversa que tivemos.

Como podemos imaginar, percorrendo as lembranças de Nava, a figura de Gastão

Cruls surge-lhe espaldeirada na poltrona, de um preto mais uma vez impecável, como se

quisesse dizer que, do outro lado, a noite é límpida e de gala. A cada gesto, Pedro Nava

rememora outro, e mais outro, e assim vai reconstituindo um momento e todos os momentos

em fração de segundos, é verdade, mas com uma perfeição que surpreende pela nitidez dos

acontecimentos e pela fluidez das palavras, soadas o mais natural, como se estivessem sendo

de fato pronunciadas do além-túmulo, redivivas e anulatórias da fatalidade. Por um momento

chega-se a pensar que não se trata de uma ilusão, de uma simulação; mas de que tudo está

acontecendo de novo: o tempo retornou pelo portal mágico da recordação, e a saudade a

rematerializou.

185
De acordo com Nava, se estava em noite inspirada, Gastão apresentava-se brincalhão,

um demônio a pentelhar os amigos e pô-los em polvorosa. Se, em vez disso, cismava ficar em

silêncio, apenas apreciava a conversa e as brincadeiras dos demais, observando-os como se

quisesse analisá-los, prever-lhes os movimentos e adivinhar-lhes a alma nas longas baforadas

de uma sempre providencial piteira, seu cachimbo da paz. Aliás, da forma como

compreendemos, terá sido justamente do ritual indígena de celebração da paz e de saudação a

uma nova amizade, que Cruls alegou o costume.

Mas, mergulhando em nossas reflexões, é curioso como a opinião dos amigos era

importante para Gastão Cruls. Na verdade, os amigos lhe eram muito mais que bons amigos.

Eram de fato a sua família. E não uma família involuntária como as famílias normais o são

para cada qual de seus entes, eram, sim, uma família que ele mesmo escolhera. Assim foi que

esteve a ponto de destruir, segundo Nava, devido à opinião de um amigo, uma de suas

melhores criações. Graças a outro amigo, porém, o romance De pai a filho não foi rasgado e

pode contar também com a crítica desse mesmo grande amigo e, principalmente, para este

caso, de mais um dos grandes escritores brasileiros: Pedro Nava, nosso contemporâneo até

1984, e desde então eternizado em nossas memórias pela importância e pelo primor de sua

arte literária.

RUY RIBEIRO

Ribeiro destaca, a exemplo de críticos anteriores, no artigo “Gastão Cruls: entre a

ficção e a realidade”, de “O Estado de S. Paulo” em 30/04/1988, a marca da dualidade na obra

de Gastão Cruls. Relata o crítico que tal pêndulo entre a realidade e a ficção, adquiriu o artista

de seu pai  o astrônomo e escritor Luis Cruls. Nesse ponto biográfico continua o crítico até

chegar ao comentário das obras do escritor, deixando entrever dois aspectos internos da

narrativa dual do conteur e romancista: a aventura e o estranho.

186
A propósito, penetrando a história de A Amazônia misteriosa, o engano que deixa os

aventureiros perdidos na selva os conduz à vivência do estranho. Está aí o ponto de partida

para o enfeixe dos acontecimentos romanescos no espaço noturno do fantástico. Aos

primeiros sinais de sumiço no mato, qualquer outro que não o mateiro Pacatuba teria voltado

para trás. Seria a única forma de não se perder ainda mais. Mas também a outra forma de

desmoralizar a ciência do mateiro. Uma vez achados perdidos, a noite desce

(t)raz[endo] a trasmutação do cenário. Povoa-se o soboque em detrimento do


dossel de verdura. A bicharada baixa a seus esconderijos. Estalidam galhos.
Sombras esgueiram-se na meia-luz do crepúsculo. As aves aconchegam-se
entre a folhagem. Era o que eu observava agora, ouvindo ao longe o mais
triste dos guaribas, concertando com as outras muitas vozes que me
cercavam: pios flébeis, chilidos, assobios, e até o rechino de algumas
cigarras e a coaxação dos primeiros sapos (CRULS, 1958, p. 21).

Ruy Ribeiro prossegue recontando a história do encontro com os índios e os

estrangeiros no ambiente mito-poético da Amazônia. Nesse espaço, a aventura toma os

contornos de uma lenda que turva e espanta a realidade. De súbito, porém, na noite que

antecedeu o encontro com as flechas dos índios, o narrador representado fala de um sonho que

tivera com gigantescos tentáculos avançando perigosamente sobre eles. Perto dos pés dos

animais  uma floresta antropomorfa e deslignificada do cemento da celulose, ele pôde

contemplar os horrores daquela cena de atos trôpegos na escuridão, culminados com a morte

de Rosina, narrada por Ruy Ribeiro. A história evola paulatinamente do irreal para o

verificável, sem nunca apertar o passo, mas com o ritmo pulsando sem quebrar a freqüência.

Inobstante, é devido a esse ritmo da narrativa crulsiana, que Ribeiro cita Amoroso Lima, a

propósito de outro romance de Cruls: Elsa e Helena.

A nosso ver, o cenário aí nos lembra uma casinha européia no Rio antigo, com portão

estreito, sótão e porão. Lugar ideal para provocar arrepios, reminiscências e reencarnações.

Com efeito, tão logo o pó desses bens e males é levitado e começa a afetar os moradores da

187
casa, a mudança para o campo sugere a passagem de um lugar assombrado para outro ainda

mais: uma casa de campo, com ares de velha mansão abandonada, de lagos com juncos e

águas pantanosas, tudo perfeito para a perturbação das emoções.

Prosseguindo o artigo, Ribeiro fala agora da existência de um trinômio na obra de

Gastão Cruls: “realidade histórica, conhecimento científico e imaginação” (p. 431). Para o

crítico, tal trinômio atinge em De pai a filho, seu “romance maior”, “o ponto máximo do

processo criativo” (p. 431). Passando por alguns contos, como “Um ahasvero moderno”, R.

Ribeiro lembra a tendência de Gastão Cruls para os casos mórbidos, inclusive, auto-

representando-se em figuras como o satírico dr. Uchôa de “Um aasvero moderno” e outros

médicos personificados em seus livros. Todavia,

(o) Snr. Uchôa não sabia bem dos motivos que o levaram a decidir-se pela
carreira médica, e talvez que as razões dessa escolha estivessem mais na
opinião dos outros do que mesmo num aprofundado exame das suas próprias
aptidões (CRULS, 1951, p. 79).

De fato, isso o sabemos, como aconteceu ao dr. Uchôa, não era a medicina a vocação

de Cruls, mas foi determinante a influência do pai. E se não permaneceu cativo nas clínicas e

nos hospitais, curando enfermos e salvando vidas, foi porque o gosto pela aventura e a paixão

pela liberdade lhe foram as maiores aspirações. Sua vocação então, não poderia ser outra que

não a literatura. Com ela, tornou-se não só escritor, mas um artista que incorporou à vocação

uma riqueza ainda insondada de conhecimento científico e espiritual do mundo e das pessoas.

A esfinge de um sagrado feminino, tão bem representada na personagem Nádia do conto “O

segredo da esfinge”, como nessa passagem em que o narrador faz nova tentativa para decifrar

a esfinge Nádia:

Estava uma tarde no Garnier, quando vi Nádia entrar. Dessa vez era mesmo
ela: muito chique, lindas pérolas nas orelhas, dedos fulgentes de anéis...

188
Esteve a examinar por algum tempo os livros expostos. Separou dois ou três
romances, mais algumas revistas francesas. A seguir, passou às mãos do
caixeiro uma lista e este andou correndo as estantes. Consegui ler depois
essa relação, deixada na livraria para que fossem procuradas por outras casas
as obras ali existentes, e pasmei do seu cultivo espiritual: “Evolution Old
and New, de Samuel Butler, Shelley, de Francis Thompson, The Intellectual
Life, de Hamerton, H. Poincaré  Dernières Pensées, The Philosophy of
Humanisme do Viscount Haldane, The Misuse of Mind de Karin Stephen,
Lucien Bourgués et Alexandre Deneréaz  La Musique et La Vie Intérieur,
Dwelshauvers  La Psycologie française contemporaine, Husson 
L’Occitanisme. Essay sur les peuples mediterranée-atlantes, Camis  II
meccanismo delle emozioni, Wilhelm Ostwald  Der Energetische
Imperativ” (CRULS, 1951, p. 230).

FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA

Em artigo para o jornal “O Estado de S. Paulo”, em 23/07/1988, intitulado “Machado

de Assis & Manuel Bandeira, Assis Barbosa comenta o fim de um Rio de Janeiro dos tempos

de Manuel Bandeira, Machado de Assis, Gastão Cruls e de todos os outros que por esse tempo

viveram, quer fossem intelectuais, comerciantes ou operários. A Cruls chama de “historiador

da cidade” (p. 439), referindo sua obra que documenta o Rio, em Aparência do Rio de

Janeiro.

O crítico folheia as páginas de uma época eternizada por Cruls, visitando retratos

principalmente de lugares como “As Laranjeiras, Cosme Velho e Águas Férreas”, e parece

ressentir-se, como Cruls e qualquer um de nós, talvez, da escalada do desenvolvimentismo

desordenado empreendido no Rio de Janeiro após a Segunda Guerra Mundial. De fato, os

morros, por aquele tempo tão atraentes e amigáveis, hoje nos chegam com uma paisagem

triste de violência, miséria, drogas e esconderijos.

Apesar disso, a cidade do Rio ainda é linda e realmente maravilhosa. Imagine-se

quanto mais ainda seria se certos governos que por lá passaram a tivessem administrado com

uma visão de futuro e de respeito às pessoas que lá moram e que lá visitam. Se existe um

paraíso na Terra, não temos dúvidas que o Rio é parte dele. Infelizmente, porém, parece um

paraíso que vive o momento da aura caída.


189
Na visão de Francisco de Assis Barbosa, comparece uma cidade desfigurada. Até a

nostalgia parece que chora a falta dos caramanchões, das pontezinhas, das fruteiras e dos

animaizinhos silvestres que compartilhavam com as pessoas a beleza deslumbrante de um

lugar tão abençoado que ainda hoje impressiona. Como diz o crítico, desse jardim edênico, e

diríamos que esse nosso jardim era ainda mais bonito que aquele do Oriente, “já em 1965”

“tudo se tinha acabado” (p. 437). E quando lemos relatos de uma vida doce, regada a passeios

tranqüilos por paisagens singulares e carinhosas à menina dos nossos olhos, fazendo

piqueniques na orla da mata e desfrutando os frutos e os regalos que uma Natureza rica em

mar, água doce, flores, árvores, passarinhos e um número de tanta vida e beleza que chega ao

céu, só nos resta mesmo pensar, como sugere Assis Barbosa, numa “fantasia do absurdo” (p.

436).

MASSAUD MOISÉS

Todavia, como confirma Massaud Moisés (1997a), o estilo da prosa de Gastão Cruls

não evoluiu da belle époque em conformidade com os “apelos” (p. 444) da Semana de Arte

Moderna. A linguagem simples e fluente, segundo o crítico, apoiado em Pontes (1960),

emana de uma atmosfera do campo ou da cidade, num veículo ainda em trânsito pelo

realismo. Seja como for, Moisés dá pistas do esteticismo de Cruls, situando-o algo próximo

do simbolismo de Augusto dos Anjos e da ficção de João do Rio, indicando a passagem da

temática realista para a temática simbolista. Esta irá cruzar territórios do pré-modernismo e

modernismo brasileiros, para repercutir na corrente espiritualista da literatura contemporânea.

Moisés volta a olhar para os ícones representantes da dualidade em Gastão Cruls,

percebendo-os pelo dado histórico literário, como, por exemplo, nas aproximações com

Coelho Neto e o ponto de vista de Olívio Montenegro (1953) que diz, no seu O Romance

Brasileiro: Cruls “escreve romance como quer fazer história legítima”.

190
...

Em outro comentário, na sua A criação literária, o crítico Massaud Moisés (1997b)

interpreta a mesma matéria dos contos de Cruls, agora pelo prisma do fantástico. Nessa

assertiva, Moisés diz do “espanto”, do efeito “surpresa” (p. 442) e do, emendamos,

estranhamento oferecidos pelas narrativas do autor no conto “Meu sósia”, como na passagem

que segue do duplo Paulo de Alencastro:

E o outro? Ninguém acredita que eu me tivesse atracado com alguém e


rolássemos juntos a escada. Mas como é que se explica a poça de sangue,
que ficou no lugar do acidente, e de que os jornais falaram? Dos meus
ferimentos é que não foi. [...] Podem dizer o que quiser. Falar numa
alucinação. Para mim, o outro está gravemente ferido, e está aqui. Ainda
ontem, quando eu ia para a sala de curativos, num carrinho, ao passar pelo
corredor, ouvi alguém que gritava com a minha voz (CRULS, 1951, p. 298,
grifos do autor).

O duplo Paulo de Alencastro, alter ego de Cruls, personifica um encontro entre o real e

o imaginário, de duas pessoas que desejam a mesma personalidade. Esse encontro resulta, por

um lado, em um conflito entre leis da Física, como aquela em que dois corpos não podem

ocupar o mesmo lugar no espaço; por outro, na dúvida e na incerteza sobre o que é ou não

real, e sobre onde está o espaço da razão. Finalmente, entendemos que os ícones

ciência/fantasia aparecem confundidos em Massaud Moisés, segundo o qual um conto que

sugere a transmissão da emoção para o leitor, “freqüentemente vem mesclado ao de idéia: “La

Derniére Classe”, de Alphonse Daudet, “Without Benefit of Clergy”, de Rudyard Kipling, “A

descent into the Maelstrom”, de Edgar Allan Poe, “O Jogral de Nossa Senhora”, de Anatole

France” (p. 441); através, segundo o crítico, de recursos das “narrativas de mistério ou de

terror”, e exemplificados por Massaud Moisés no “O gato preto”, de Poe e “Assombramento”,

de Hoffmann (p. 441).

191
ANTÔNIO CÂNDIDO & JOSÉ ADERALDO CASTELO

Ainda em 1997, de Cândido e Castelo, cujo texto transcrito no “Volume 2”

compreende um histórico da prosa desde a aura do Modernismo até a década de 30, e a vida

cultural dos anos 30 a 45; chamou-nos a atenção a presença de Gastão Cruls, segundo esses

críticos, já um “veterano” (p. 444) ao lado do qual vieram se juntar nomes como Marques

Rebelo e José Geraldo Vieira. Nas palavras de Cândido e Castelo, esse grupo “se alimentou”

da estética modernista “sem radicalismo”, o que lhes “permitiu aproveitar muitas lições do

passado, com espírito novo” (p. 444).

Ao transcrevermos as referências de Cândido e Castelo, quisemos situar o leitor no

meio literário de qual Cruls também faz parte, depois das metamorfoses da Semana de 22 a

exemplo do comentário que fizemos em Lúcia Miguel Pereira (1952). Nossa atenção então se

volta para o decênio de 1930, período em que o romance, conforme Antônio Cândido e José

Aderaldo Castelo, “teve um grande surto, tão brilhante como o que se verificou entre 1880 e

1910” (p. 444), e destacou-se por tematizar uma das principais cores desse novo romance: a

de um olhar mais colorido sobre as paisagens regionais brasileiras.

Mas queremos, para dialogar com Cândido e Castelo, nos estendermos em uma análise

regionalista, ainda do conto “A morte do saci”, de Gastão Cruls, como fizemos, a propósito da

psicologia de personagens, no comentário de Carpeaux (1964). Temos aí, no espaço sertanejo

de um Brasil interior, um narrador que contra-argumenta:

Da Várzea, em baixo, quem ao longe avistasse a casa do Chico Sabino,


espremida, no sopé de um cerrote entre os troncos de duas velhas e parrudas
paineiras, que todos os anos, pela volta de março, lhe teciam um docel de
sêda rosa, diria um tosco e gigantesco ninho de joão de barro, encravado na
raiz de uma forquilha (CRULS, 1951, p. 106, grifos do autor).

Nesse excerto, a metáfora “a casa do Chico Sabino é um tosco e gigantesco ninho de

joão de barro” é não apenas figura de linguagem, mas um recurso de retórica integrado ao

192
modo narrativo e à enunciação do texto. A possibilidade da contra-argumentação consiste no

fato de que só diria se, como nos traz o parte-texto, “ao longe avistasse” uma casa que não

parecia ser casa de gente, mas casa de joão de barro, um passarinho.

A princípio, então,

(o) material narrativo só se deixa organizar em unidades ao mesmo tempo


integradas numa unidade de nível superior e subtilmente diferenciadas em
unidades mais pequenas, sob a ação de focos de personificação que
trabalham esse material (BREMOND apud REIS, 1999, p. 352) ,

através de um narrador que não se identifica e faz diminuir o fio narrativo até o ponto da

fusão narrador que conta/narrador-personagem e se transformar em uma testemunha que vê

e representa o visto, portanto, em um narrador-testemunha. Com efeito, uma narrativa

sinfrônica como já nos dera estudo Castagnino (1969). Essa atuação dos narradores é

responsável pela dinâmica do discurso e constitui uma estrutura narrativa justificada por uma

narração que desempenha, naturalmente, uma metamorfose que sobraça o real pela

verossimilhança:

Para rematar, alentado pelo modo prazenteiro com que Raimunda escutava a
enfiada de seus projetos, Chico Sabino foi-lhe direito à causa dos
aborrecimentos. O lote ficava, na verdade, um tanto retirado... Mas se êle
não ia mais à turma e o seu trabalho tinha de ser todo pela redondeza? Era
preciso ver além do mais, que havia em tudo muito exagero. Pelo atalho do
mundo novo, em menos de três horas se podia estar no armazem, e, desde
que preciso fosse, uma ou duas vezes por semana, êle até lá desceria com
facilidade (CRULS, 1951, p. 107).

No instante em que termina a primeira introdução, na palavra “aborrecimentos”, segue

o percurso narrativo a consciência da personagem, como numa corrida com revezamento e

passa bastão. Nesse instante estão elípticos os sinais explícitos de discurso direto (segunda

introdução); cuja perspectiva sai de foco pelas reticências. É como se o estilizador (narrador

que conta) recobrasse a sua própria consciência. No quadro imediato surge a terceira

introdução sob a forma de discurso indireto. Contudo, o modalizador daquele discurso


193
indireto sugere algo mais: o operador “mas” é um termo comum aos discursos direto e

indireto.

Este momento marca, pois, a fusão de que falamos. Dela emerge a aparente

incoerência enunciativa: não é o estilista (o narrador que conta) quem pensa com os

pensamentos da personagem, mas a personagem quem pensa com os pensamentos do estilista.

E assim temos do estilista ao retomar o enunciado: “Não se enganara o velho colono nas suas

previsões” (CRULS, 1951, p. 108). De fato, como previsto, Raimunda fora clandestinamente

persuadida. Fora apanhada num momento em que não lhe cabia o revide, e isso foi muito bem

lido nos olhos dela por Chico Sabino. De súbita infelicidade, porém, foi a epifania do engano,

malgrado a intenção do velho colono de tão somente assustar o satã que o espantava:

Chico Sabino agachou-se mais. [...] Era o filho da Natalina, o endiabrado


Naco, que ali estava, já quase sem vida, a escabujar e contorcer-se. De
mistura ao sangue empoçado, o pequeno ainda trazia, atado à cabeça, um
farrapo de baeta vermelha, à guisa do gorro imprescindível às trampolinices
do Saci, conforme as narrações que lhe fizera o velho colono e seu assassino
involuntário (CRULS, 1951, p. 116).

A maneira como o narrador irá reunir as peças do discurso, consiste a estilização, a

magia  a criação artístico-literária. Mais que parte do fabulário de Chico Sabino, o saci era

parte real da sua vida; pois que o tinha, desde a morte da Raimunda, seis meses antes, “em

verdadeira perseguição” (CRULS, 1951, p. 110). Era um levantar e dormir com o diabo do

saci, no mínimo, na cabeça.

Na outra extremidade dessa narrativa, ao resolver protagonizar as histórias de saci que

seo Chico Sabino contava, a personagem Naco apropriou-se de vozes outras pertencentes a

um mundo que ela mesma recriava a cada aparição. Tornou-se um místico da lenda e um

conversor do mito.

Chico Sabino era seu mito! Aquele que sobre em quando era pensado como pai ou

aquele que devia ter morrido em vez do pai (ambos, Chico Sabino e Manoel Estevão, eram

194
velhos conhecidos), ou quem sabe o menino crédulo quisesse dar uma lição no velho

incrédulo, mostrando-lhe, ao vivo e a cores, que sacis existem. Entram em cena, portanto, atos

de um elenco ético, étnico e cultural,  parte próprio, parte instituído pela escuta, pela

observação e pela experiência, e parte fantasiado. Esse elenco denuncia nas artimanhas, nas

estripulias, na escolha do atarantado e na solução do problema, por exemplo,  que questões

o autor quer enfocar: se política, se econômica, se social, se histórica; e nós diríamos que

todas essas, levando-se em conta o ellan regionalista que Cruls começava a descobrir.

A propósito, “Chico Sabino agachou-se mais” para ver o produto de um misto de

medo e ignorância das assombrações e fantasmas: o saci estava ali. Era real. O medo era sua

alucinação, e o menino Naco  o produto atingido por uma bala “calibre 16” (CRULS, 1951,

p. 114) à mira de folhagens remexendo. “O endiabrado Naco” tanto ouviu que acreditou poder

ser um saci. E foi! Mas certamente jamais ouvira ou jamais acreditara nem percebera um

desfecho trágico para o saci, da boca de seo Chico. Nas histórias de saci, um herói a

malazartes, o saci não morre e diverte as crianças fazendo as artes que elas crianças não

devem fazer. Dessa forma, o saci é para elas o herói que arrebenta a convenção do não poder

fazer, e é assim que o ouvir e o divertir-se com suas histórias representam o escape para uma

vivência livre, engraçada e com muita ação, como a do perneta de gorro e cachimbo.

Notoriamente, o ficcional tornou-se real; pois que desdobrou-se em intervalos,

compassos de tempo real para um leitor ou ouvinte que poderiam ser reais. Ao consumir

tempo real no imaginário das pessoas, a ficção deixa de ser só ficção e, dependendo das

circunstâncias (de que circuito) no ambiente dos envolvidos com a história, haverá ou não a

transcendência da ficção para a realidade, ora na forma de assimilação e conversão em fonte

de experiência, ora na forma de transposição literal do acontecimento ficcional para o mundo

das personagens de verdade.

195
Chico Sabino, por sua vez, tanto contou de saci, que, apesar de estar com má visão dos

olhos, suspeitou o suficiente da natureza do que não via para atirar. E não foi muito,  já que

as gentes dos matos, nos matos atiram quase que à toa. Mas não era o caso do Chico Sabino.

Ele nem tinha arma de fogo. E aqui mora o que ambos não sabiam: estrelavam o episódio de

“A morte do saci”. Assente-se que não foi o saci que morreu, mas uma de suas personagens: o

“Saci-saperê” (CRULS, 1951, p. 110), saperê de sapeca e de sapê e de pererê,  que se foi no

“horizonte distante e colinoso”. Porém, “a lua, como uma grande caçoula de prata, muito

branca e redonda” (CRULS, 1951, p. 116), ainda hoje sobe... Trazendo quem sabe, conforme

dissemos de Cândido e Castelo, uma nova lição do passado.

RAUL DE SÁ BARBOSA

Abrimos, no ano 2002, as correspondências de Antônio Torres a Gastão Cruls,

puxando a mesma orelha que Alexei Bueno assina para essa Antônio Torres: uma antologia,

de Sá Barbosa. Tomamos tal iniciativa ao ocorrer-nos que a introdução e as notas com vistas à

seleção de Raul de Sá Barbosa são baseadas no livro de Gastão Cruls, Antônio Torres e seus

Amigos, de 1950. E dizemos mais: Gastão Cruls e o ex-padre Antônio Torres cultivavam uma

amizade cujo vínculo mostrou-se de uma afinidade indestrutível, com certas diferenças

capitais, é claro, como o temperamento geralmente tempestuoso de Torres, fazendo

contraponto aos modos muito serenos de Cruls. Fosse-nos possível cotejar a “Antologia” de

Sá Barbosa com a “Antologia dos textos de Cruls publicados no Boletim de Ariel” (esta

última, ainda neste trabalho ofertaremos ao nosso leitor), veríamos que os dois amigos se

fazem dedo indicador em sinal de verdades que precisam ser ditas.

Expatriado por espontânea vontade, primeiro em Londres, depois em


Hamburgo e Berlim, Torres sentia imensa falta dos amigos. Queixava-se do
isolamento, da míngua de cartas: “Caro Saul, como já há tanto tempo não
tenho recebido letras tuas, recorro hoje ao bem-aventurado Patriarca S. José

196
(cujo é dia) a fim de que, pela poderosa intercessão de tão glorioso santo, me
venha de lá alguma carta que seja pelo menos tão interessante quanto a
última que de ti recebi...” 36 [...]; “O Gilberto [Freyre] é o único que me tem
escrito sempre e não deixa minhas cartas sem resposta. Deixar de responder
a uma carta é uma desatenção. Mas para comigo, é uma profunda falta de
afeto e uma grave injustiça, porque eu só escrevo às pessoas a quem estimo
muito, e eu só estimo a muito pouca gente neste mundo; e como você está
nesse número, estranho o seu injustificável silêncio. É fantástico! Parece que
sou eu o único a amar os meus amigos!” 37 [...]; “Caro Cipriano. Há que
tempo não recebo uma linha sua! Há talvez mais de um mês, o que é
incrível!” 38 [...]; “Meu caro Ramos, é incrível que hajas passado tanto e tão
longo tempo sem me mandar uma linha sequer! Digo tão longo tempo
porque ouço apenas a voz do meu coração. E conhecendo-te, sei que o teu
coração também é sensível. Escreve-me, filho meu!... Onde estão os amigos?
O Agripino Grieco é para mim uma coisa tão distante quanto as nevadas dos
Abruzzos, de onde ele veio por via do sangue paterno e materno...” 39.
Sua correspondência se destinava sobretudo, mas não exclusivamente, aos
membros do grupo que se formara em torno dele no Rio, a partir de 1920, e
que se desfez com sua partida para a Europa. Conhecido como o “Grupo dos
Pilotos” 40, costumava reunir-se ao entardecer na Livraria Castilho; na filial
da Pascoal; ou no Bar Nacional, com suas duas entradas, uma no largo da
Carioca, junto da estação dos bondes de Santa Teresa, e outra na rua Santo
Antônio.
Gastão publicou, além das que lhe foram dirigidas, e que começara a
divulgar pelo Boletim a partir de 1934, i. e., depois da morte de Torres, as
que Torres havia escrito a Saul Borges Carneiro, A. J. Castilho, Miguel
Osório de Almeida, Alberto ramos, Aureliano Brandão, Mário Guaraná, A.
da Silva Melo, Augusto Veloso e Cipriano Lage.
Faltam as cartas a Gilberto Amado, outro amigo dileto. Em depoimento
manuscrito de doze páginas, feito a meu pedido, e enviado de Nova York
para Hamburgo em 1962 [Gilberto Amado foi membro da Comissão de
Direito Internacional das Nações Unidas desde sua primeira sessão, em
1949; e eu servia àquele tempo, no Consulado-Geral em Hamburgo, como
Konsul-adjunckt, mesmo cargo de Torres na década de 30], Gilberto Amado
repetiu, quase ipsis litteris, a explicação que dera para essa lacuna no livro
Presença na política (Rio, 1958, p. 152): “Faltam... as cartas que Torres me
escreveu no decorrer da vida, inúmeras como se pode ver pelas referências
na obra de Gastão” nesse depoimento manuscrito, a que chamou “notas at
random”, o embaixador me dizia que as cartas eram “dezenas e dezenas ou
mais...” “Durante algum tempo”, escreveu ele, “nutri a esperança de
descobri-las. Perderam-se, porém, hoje estou certo, em malas e caixões
extraviados com outros papéis (títulos antigos de nomeação, certidões de
batismo e de casamento, título de sócio do Jóquei Club, mapas de Sergipe
[Gilberto Amado era sergipano, de Estância] preciosos, do tempo da colônia,
romance quase pronto), sem dúvida durante a guerra russo-finlandesa, e a
européia, que se lhe seguiu, em viagem da Finlândia à Suécia, da Suécia à
Itália, e da Itália à Suíça”. As ditas “notas at random” anunciavam uma
36
Carta de Londres a Saul Borges Carneiro, de 19. III. 1929 em CRULS, 1950, p. 192.
37
Carta de Londres a A. J. de Castilho, de 18. VII. 1921 em CRULS, 1950, p. 122.
38
Carta de Hamburgo a Cipriano Lage, de 5. II. 1931 em CRULS, 1950, p. 266.
39
Carta de Londres para Alberto Ramos, de 5. X. 1927 em CRULS, 1950, p. 271.
40
Nota (1) do autor: Efigênio Sales teria contado uma anedota licenciosa, que dava como acontecida com um
piloto do Lloyde. Torres, que achara graça na história, e gostava, segundo Cruls, de pôr apelido nas pessoas,
passou a chamar Efigênio de ‘piloto’ e, depois, a saudar assim, indistintamente, todos os amigos. O nome pegou.

197
última busca no Lausanne Palace Hotel, onde parte da bagagem em trânsito
poderia muito bem ter ficado.
No excelente prefácio à sua coletânea, Cruls faz um justificado paralelo
entre Torres e o planfetário francês Paul-Louis Courier (1772-1825), e a
comparação é ainda mais pertinente pelo fato de que o próprio Torres
costumava citar o outro, chamando sempre “meu mestre” ao autor de Lettres
écrites de France et d’ Italie.
Cruls acentua que, em Torres, o homem e o escritor nunca se separavam.
“Quer se dirigisse ao público pelas colunas do jornal, quer discreteasse com
um amigo sob envelope fechado, o escritor de prosa límpida e pena ágil e
acerada estava sempre a serviço do homem, que só sabia pensar em voz alta,
com a coragem de suas idéias e a severidade dos seus julgamentos”.
O longo período no exterior favoreceu essa copiosa correspondência da qual
se publicam aqui, como amostragem, alguns excertos.
Vem a pêlo observar41 que a vida diplomática nos deu também outro notável
epistológrafo em Ruy Ribeiro Couto (1898-1963), ausente do país por quase
trinta e quatro anos, cuja grandeza se comprovará quando forem reunidas e
editadas suas cartas.
Como Antônio Torres e Ribeiro Couto, um terceiro epistológrafo do
Itamarati, o poeta e embaixador Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1964),
“da geração que fundou a Academia” (ocupou a cadeira nº 9), acabou
esquecido pelos meios intelectuais do Brasil. E, no entanto, “era uma das
maiores culturas e mais finas sensibilidades que já têm produzido as nossas
letras”. Essas observações são do segundo Afonso Arinos, que o conheceu
em Roma42 e via nele a pessoa que mais influência literária e cultural
exerceu sobre a sua mocidade.
Para não perder contacto com o país e, principalmente, com a língua
portuguesa, segundo me confidenciou, Guimarães Rosa ocupou apenas três
postos no exterior: Hamburgo, Bogotá e Paris. Preferia servir na Secretaria
de Estado, onde se deixava ficar pachorrento, na apagada Divisão de
Fronteiras. E me disse que só aceitara a terceira remoção para não fazer
papel de cretino: jamais alguém recusara Paris.
Já Torres sempre sonhara viver na Europa.
Antes da publicação tardia (1950) de Antônio Torres e seus amigos, Amadeu
Amaral Júnior, que tomara conhecimento de parte do material no Boletim de
Ariel, opinou [...] que “reunidas, [as cartas de Torres] dariam talvez o melhor
livro dele”. Com isso concorda Alberto Venâncio, da Academia Brasileira de
Letras: “A correspondência guarda parelha com a obra do polemista” e foi
“uma felicidade” que Cruls a tivesse organizado e dado a lume. Já na opinião
de Otto Maria Carpeaux, ela é decepcionante: “Não se poderia esperar, num
livro editado por Gastão Cruls, qualquer sensacionalismo barato”. Mesmo
assim, a seu ver, as cartas “revelam, senão nas entrelinhas, a personalidade
do missivista. São expressões de um brasileiro tipo 1910 que, profundamente
aborrecido com a vida em sua pátria, observa com admiração algo ingênua a
vida diferente na Europa. E é tudo”. (Otto Maria Carpeaux, “Antônio Torres
e seu amigo [Cruls], O Jornal, 19.XI.1950).

41
Nota (2) do autor: O uso da expressão é uma homenagem ao meu amigo Donaldson M. Garschagen, que gosta
muito de empregá-la.
42
Nota (3) do autor: Magalhães de Azeredo foi representante do Brasil junto à Santa Sé de 1920 a 1934.

198
Acresce que Gastão censurou as cartas, tanto no Boletim de Ariel quanto no
volume da Companhia Editora Nacional. Nem podia ser de outra maneira,
explicou ele a Homero Senna quando o livro estava em preparação: “Torres,
na sua correspondência íntima, era ainda mais sem peias e ferino do que em
seus artigos. Ora, há muitas vezes alusões a pessoas vivas que não podem, de
modo algum, ser divulgadas. Seria arranjar barulho e inimizades”
(República das Letras, Livraria S. José, 1956, p. 283).
Agora, com Gastão Cruls igualmente morto, por que não se faz uma edição
não-expurgada da correspondência? Eu mesmo, que preparo um livro sobre
meu predecessor no consulado em Hamburgo, teria muito prazer em anotá-la
(SÁ-BARBOSA, 2002, p. 251-55)43.

Pois não; mas vamos apenas soabrir algumas cartas.

A carta de Antônio Torres a Gastão, de 17 de agosto de 1922, empenha uma crítica

contundente à sociedade brasileira da época, passiva diante da condição de inferior que lhe

impingia a opinião externa. Uma opinião que ainda hoje custa-nos caro e nos leva a perguntar

que Pasárgada é essa ex-colônia de minhotos e trasmontanos. De brios consumidos, já que

disfórico a qualquer auto-estima, o brasileiro parecia, consideradas as conjunturas

internacionais, criado como a moça bastarda; isto é, como um destinado a obedecer e a acatar,

em continência, as resoluções do grupo dos que se pensam ainda hoje, os verdadeiramente

civilizados.

Amplia-se no horizonte, mais claro hoje, por que o Brasil era chamado pelos alemães

do terceiro Reich de “Colosso Bestício”, e de “Gigante Adormecido” pelos estadunidenses.

Esse grupo jamais acreditou que um país composto por subraças, conforme se dizia, venha a

ser, um dia, uma civilização de quilate. Infelizmente, eles estavam certos. Durante muito

tempo os brasileiros mais que expoliados pela segregação externa, foram roubados e

manietados pelos próprios brasileiros: ultrajados pela corrupção e pelo confinamento a linhas

abaixo do direito à aquisição de saber.

Apenas não contavam que conquanto isso, no decorrer natural de um processo de

mudanças complexas, próprio da miscigenação, estivesse em curso uma tal apuração da

brasilidade que muito ainda tem a provar, mas que decidiu-se a não ser a moça bastarda
43
Grifos e interpolações do autor.

199
idealizada pelos padrastos. Com toda certeza, Antônio Torres, altivo e orgulhoso, deve estar-

se rindo agora, feliz , não plenamente satisfeito ainda, mas certo de que não fora o último

rebelde e de que os novos patricinhos não têm exclusividade na titulação de civilizados.

Na carta de 14 de setembro de 1922, Antônio Torres desafoga uma crítica áspera ao

comportamento do brasileiro. Tão áspera, que ainda agora quando a lemos, têm-se a

impressão de se estar dilacerando as entranhas. O mais triste é constatar que em muitos

lugares do Brasil, o mesmo orgulho que o brasileiro tem de sua ignorância, febrilmente

admoestado por Torres, ainda subsiste mantido por interesses institucionais das mesmas

instituições que pregam a liberdade e a extensão do braço democrático a todo o povo. Essas

instituições insistem na manutenção e aumento de obras de caridade, perpetuando o estado de

carência e se auto-justificando atrás da ideologia conformista. Nenhum povo é

verdadeiramente livre sem educação; e nível de escolaridade não indica necessariamente o

nível educacional. Isso explica por que hoje, a despeito da ação institucional de socorros

sociais, as diferenças entre brasileiros ricos e pobres, em média, triplicou.

Com efeito, visualizar a ignorância no ignorante, milhões de anos depois do homem

das cavernas, é estar diante de um quadro desencorajador; mas visualizar a ignorância nos que

deveriam combatê-la é estar diante de uma cena extraordinariamente bestial. De fato, o Brasil

motivo de “desgostos, tristeza e vergonha” (p. 452), nessas palavras de Torres. Talvez, seja

possível pensar que o que Torres chamou nos brasileiros de “ignorância incurável”, e de

“imoralidade irremediável” (p. 452)  seja em nossos dias uma aflição menos infernal. Nas

palavras do crítico, o ressaibo de uma amargura, mas em cada letra o sofrimento de um amor

profundo e apaixonado pelo Brasil, apesar de não correspondido.

200
Em outra carta, de fevereiro de 1927, Antônio Torres fala de um certo temperamento

do brasileiro da elite e do brasileiro serviçal. O primeiro vive querendo e exigindo ser

chamado de doutor fulano de tal sem o ser. Para tanto, utiliza-se de um anel ao qual não fez

jus e ostenta uma aparência de altivez que, de tão catafalsa, estruge ridícula. O segundo, por

sua vez, curva-se à mera aparência e venera o doutor que não é doutor. Conserva o mesmo

pensamento dos silvícolas que viram nos homens das caravelas os deuses encarnados que por

milênios eles adoravam em espírito e em sacrifícios. Ambos, a tal elite e esse serviçal,

indoutos na natureza do crivo necessário a qualquer que deseje titular-se doutor de verdade,

por muito tempo formaram o quadro paradoxal e patético de um país assim lupado pelo grupo

dos países maiorais. Resquícios desse tempo, entretanto, ainda são encontrados à larga no

bacharel que gosta de ser chamado de doutor e nos prestador de adulação conivente com um

estado que convencionou-se natural, haja vista o discrepante distanciamento salarial, por

exemplo, entre bacharéis de certas áreas e os doutores da educação. Fazendo-se de rogado, e

tomando por base uma sociedade titulada pela influência econômica, dá mesmo para se

perguntar quem de fato é o doutor. E pensar que o dinheiro e a riqueza material sem

conhecimento são tão desperdiçados...

Na carta de julho de 1927, Torres demonstra uma certa descrença na literatura de

autoria feminina. Talvez em função de que ele também ainda cultivava certos valores, sem os

saber discriminatórios. Uma prova de que o ser humano está infalivelmente destinado a erros

e acertos; e, se há razão, que sobressaiam-se o dom de refletir e o poder de tornar atrás,

arrepender-se, retratar-se e só então ir em frente na argumentação das relações entre pessoas.

Tivesse dado tempo, a correção certamente, para Antônio Torres, teria vindo pelo

próprio amigo Gastão Cruls, que não apenas uma vez o presenteara com livros assinados por

mulheres. Na carta em questão, o destaque recai sobre o livro de Clemence Dane, Legend,

201
encomendado pelo Cruls leitor de autorias femininas, o qual Torres diz que leria antes de

enviar. Afinal, não há, nem nunca houve motivo não preconceituoso que avaliasse a qualidade

de uma literatura, ou de outras artes, através da anatomia sexual.

A carta de 1930 difere pelo tom poético com que se refere à Natureza, e metálico com

que se inflama e denuncia as plagas do capitalismo, especialmente as oriundas dos Estados

Unidos. As palavras de Torres são fúria e desconcerto em face de circunstâncias

internacionais que apontavam o avanço do americanismo  a profusão de valores

estadunidenses pelo mundo, e que se irradiava fortemente pelo Brasil das grandes cidades da

época. Antônio Torres louvava a idéia de mudança da Capital Federal do nosso país para o

Planalto Central, mas, não acreditava que isso fosse possível; ao menos não no curto prazo.

A crítica aos Estados Unidos é perturbadora. Fosse hoje e talvez seria considerado

terrorista. Já por aquele tempo comenta com Gastão Cruls questões que nos são totalmente

atuais, como o interesse de gringos pela nossa Amazônia e o intragável acordo que trouxera

militares estrangeiros para o nosso território.

Na carta de agosto de 1931, Torres fala a Cruls de Gilberto Freyre, que viria a ser

amigo dos mais íntimos de Gastão Cruls, dividindo, inclusive, e por um tempo, um

apartamento no Alto da Boa Vista, no Rio. Nessa carta curta, Torres pede a Cruls que lhe

arranje alguns artigos sobre a nossa ortografia, àquela época, em vias de reforma.

Na carta de novembro desse mesmo ano, lamenta os rumos da questão ortográfica e

exprime o temor da ocupação estrangeira. Um temor que ele, fora do Brasil, pôde sentir mais

real, posto que o desejo de invasão era partilhado por muitos, inclusive por gente aqui dentro.

202
Mas talvez, justamente por serem muitos os pretendentes, a ocupação não se haja efetuado.

Era sempre um risco tomar a iniciativa, e imprevisível a reação dos demais concorrentes.

De toda sorte, os mesmos que chegaram a conjecturar probabilidades sobre a ocupação

do nosso território tinham, de um lado, a preocupação com o avanço do nazismo e, do outro, a

preocupação com o avanço do comunismo. Além disso, uma outra questão era mais urgente à

época: a restauração do Estado Judeu a Israel, em pleno curso na década de 30 do século XX,

e que envolvia diretamente interesses voltados para o controle do Oriente, principal fonte de

petróleo e de sustentação do desenvolvimento das potências imperialistas de após a Primeira

Guerra Mundial. Nesse contexto, parece-nos óbvio que uma Segunda Grande Guerra já se

desenhava.

...

Comentamos essas cartas por considerá-las relevantes na relação entre Gastão Cruls e

Antônio Torres. Ademais, não só por isso, mas também por notória ligação entre os muitos

nomes de artistas e críticos internacionais, os quais mantivemos ao transcrever as notas de

rodapés de Raul de Sá Barbosa, no “Volume” seguinte. Esses artistas, e esses críticos, tal

como Gastão Cruls e Antônio Torres, desejaram e lutaram por uma nova ordem mundial,

buscando oportunizar exemplos substantivos de que o sonho de um mundo mais humano e

mais social seria possível se...

E nós estamos vendo o quanto ainda estamos longe de alcançá-lo.

ROBERTO DE SOUSA CAUSO

Curiosamente, e antes que lêssemos o livro de Causo (2003), havíamos já pensado em

uma análise que nos desse um intertexto das obras A Amazônia misteriosa (Cruls) e A ilha do

203
Dr. Moreau. A idéia nos foi apresentada pela Profa. Dra. Ana Luiza S. Camarani, então nossa

professora da Disciplina “Narrativa Fantástica”. Foi justamente por aqueles dias que

encomendamos o livro de Roberto S. Causo junto à Livraria da UNESP, e por indicação da

Profa. Dra. Maria Célia Leonel  nossa professora em Narratologia, Disciplina que cursamos

anterior à acima citada. A professora Maria Célia descobriu o livro lendo um jornal e, o nome

de Cruls, ali mencionado, chamou-lhe a atenção justamente porque, àquele tempo, estávamos

às voltas com o desenvolvimento de uma análise de dois contos de Gastão Cruls.

Assim, foi uma surpresa, e uma grata coincidência descobrir que a análise de Causo

punha frente a frente o mesmo Cruls e o mesmo Wells, com as respectivas mesmas obras que

nos era objeto de análise na “Narrativa Fantástica”, e que de fato tornou-se o “Capítulo 5”

desta Dissertação.

A propósito, a aventura de dois sobreviventes pelo território nefasto da utopia

amazônica, n’A Amazônia misteriosa, erige a figura enigmática de Atahualpa, cuja aparição

simboliza o encontro real do protagonista crulsiano com um dos elementos mágicos do

fantástico: Atahualpa é um fantasma. A materialização dessa personagem transmite a idéia de

uma força metafísica que centraliza uma espécie de energia invisível – uma força criadora –

capaz de superpor passado, presente e imaginação, concretizando um claro efeito da ficção

científica. Em Atahualpa, paira o buraco negro do espírito guerreiro e solitário que cancela na

alma a meditação profunda das horrendas coisas sucedidas ao seu povo:

De repente, vinda não sei de onde, surgiu ao meu lado uma figura estranha e
intimidante. Era um tipo altaneiro e ainda moço, de porte airoso e olhar
dominador e grave. No rosto, bronzeado e longo, o nariz aquilino e a curva
incisiva do mento energizavam-lhe o perfil. Aparatosamente vestido, sobre a
túnica de lã branca, com recamos de ouro e prata e ponteada a pedras
preciosas, trazia um rico manto de penas frouxeladas e multicores. O peito,
chispando jóias, ostentava uma gorjeira de monstruosas e lúcidas
esmeraldas, como esmeraldas lhe manilhavam os pulsos e cravejavam o
couro das sandálias altas. Um turbante de borlas rubras e larga trançadeira de
pérolas e outras gemas encristava-lhe a fronte com duas longas penas
listradas de preto e branco (CRULS, 1958, p. 83).

204
Conforme Causo, Cruls “emprega índices de uma cultura pré-colombiana” para

caracterizar a origem americana do ethos amazônico, esse ambiente naturalmente maravilhoso

e que, por especulação, bem poderia ser parte da Atlântida desaparecida, conforme Platão,

naquela malfadada noite de 9.000 anos antes de Cristo. Destarte, o aspecto de mistério do

romance de ficção científica se reveste de vultos brasileiros do romance de aventuras, dos

quais destacamos a paixão tropical  um ingrediente tipicamente nosso. Por hora,

combinamos com Causo quanto a revelação, em Cruls, de uma identidade brasileira que se

construiu a partir da influência do ambiente no homem  uma incidência, pois,

marcadamente fenomenológica; e diferente do aspecto identitário das regiões Nordeste, Sul, e

Sudeste do Brasil, em que a formação da identidade deu-se, sobremodo forte, a partir da

influência do poder do sujeito sobre o ambiente:

Tive a sensação que fazia um extenso vôo por espaços ilimitados e regiões
completamente desconhecidas. Por fim, foi a miragem.
À minha frente, e vista do alto para que melhor a pudesse contemplar,
estendia-se uma cidade magnífica. Erigida entre canais e cintada por uma
muralha natural de pórfiro, as suas casas de estuque branco e brilhante ou de
barro poroso, e os seus templos e palácios de pedra e com altos torreões,
miravam-se no espelho das águas, bordando de lado a lado as longas e largas
estradas que cruzavam os lagos e iam ter ao continente. Florestas de
pinheiros, bosquetes de carvalhos, plainos cultivados formavam um engaste
verde a esta jóia, que rompia do seio das águas qual uma outra Veneza
(CRULS, 1958, p. 84).

Mas essa outra Veneza, tal como a Veneza da Península Ibérica, que fora a extensão

do inferno de Dante, era, no Meridiano Sul, o inferno onde o Dr. Morte  o Dr. Moreau de

Wells fabricava a insurreição. Se juntássemos o Dr. Moreau ao Dr. Hartmann de Cruls,

teríamos um laboratório que seria um tipo de Hades dos trópicos, povoado de anjos e

demônios de asas quebradas; caricaturas de mortos reanimados pela eterna ambição da ciência

em prol da longevidade do homem, aliás, desse homem sempre em busca de quebrar a regra

da perpetuação, proferida pela maldição divina no Gênesis hebraico:44


44
A versão aqui utilizada é a da nova tradução da Bíblia na linguagem de hoje.

205
 [...] Por causa do que você fez, a terra será maldita. Terá de trabalhar no
pesado e suar para fazer com que a terra produza algum alimento; isso até
que você volte para a terra, pois dela você foi formado. Você foi feito de
terra e vai virar terra outra vez (BÍBLIA, cap. 3, vers. 17c, 19).

E, ainda dirá Deus no mesmo Gênesis: “ Não deixarei que os seres humanos vivam para

sempre, pois são mortais. De agora em diante eles não viverão mais do que cento e vinte

anos” (BÍBLIA, cap. 6, vers. 4).

Figurativiza-se no seio do discurso d’A Amazônia misteriosa e de A ilha do Dr.

Moreau, a lenda dos dois querubins míticos, guardiães do Jardim de Éden, e que eram

representantes em pedra esculpida na entrada dos templos babilônicos. O Paraíso tropical

também é a terra caída em desgraça com a personalidade dupla do homem, representada pelas

personagens do Prof. Hartmann em Cruls e do Dr. Moreau em Wells, ambos alterego da

metade teísta do homem.

Continuando, em um discurso que em certa medida rediscute as muitas formas do mito

de Proteus e do gênero gótico no romance de ficção científica, Causo aponta uma provável

influência do conto “William Wilson”, clássico de Poe, na temática do duplo crulsiano, como

em “Meu Sósia”. Nesse “interessante” (p. 467) conto, como afirma Causo, Cruls realiza uma

intertextualidade com o romance A Amazônia misteriosa, inserindo na ambiência o seu “alter

ego” Paulo de Alencastro. Igualmente interessante, entretanto, é a passagem de A criação e o

criador, quando o protagonista-criador Márcio Donegal, acompanhado da personagem Pedro

Jaguarão, visita como pessoa de verdade o escritor Gastão Cruls:

Coisa estranha! Tive a sensação que já os havia visto, que já os conhecia...


 Os senhores procuram...
 O Sr. Gastão Cruls, respondeu o mais forte, de tez carregada e fisionomia
simpática.
 Sou eu mesmo...
 Ah, sim senhor... Eu vim da parte do Marcondes...
 Pois não. Já sei... O Sr....

206
 Pedro Jaguarão.
Pedro Jaguarão?! Mas que coisa esquisita! Pensava eu comigo mesmo.
Contudo não disse nada (CRULS, 1958, p. 419).

Considerações

Nesse diálogo, percebemos que o estilo vigoroso de Cruls, assinalado por Agripino

Grieco quanto à composição romanesca do autor, é um estilo que evidencia as múltiplas

possibilidades de plasma do romance que, como sabemos, é um gênero que tem se mostrado

inesgotável na representação do imaginário e da realidade. Efetivamente, o vigor crulsiano,

percebido na sensibilidade apurada e em um riquíssimo repertório de conhecimentos da

linguagem, da história e de outras ciências como a medicina e a psicologia, apresenta uma

literatura em que ficcional e real aproximam-se interativamente. O crítico Joel Pontes (1960)

também nos chama a atenção para a arte de Gastão Cruls e nos dá, de acordo com críticos

como Sud Mennucci (1934), Lira Cavalcanti (1944), Amoroso Lima (1948), Gilberto Freyre

(1949), Herberto Sales (1950), Lúcia Miguel Pereira (1952), Silva Melo (1959), Bernardo

Gersen (1959), Afrânio Coutinho (1986) e Roberto de S. Causo (2003), entre outros,

elementos mais que suficientes para afirmar que a obra de Gastão Cruls é uma obra que devia

estar figurando entre os clássicos da literatura brasileira.

O romance A Amazônia misteriosa, por exemplo, é comparado pelo crítico Mennucci

(1934) com o romance Salammbo, de Flaubert; e apontado por Causo (2003) como um

clássico da ficção científica brasileira. Elsa e Helena só encontrou rivais, segundo Lira

Cavalcanti (1944), no Retrato de Dorian Grey, de Wilde, e na Idade perigosa, de Karin

Michaelis. Vertigem, por sua vez, é visto por Astrojildo Pereira (1944), como um romance

revolucionário no modo como trata a burguesia brasileira do início do século XX, narrando a

derrocada econômica e moral dessa classe, quando geralmente se fazia o contrário. Segundo

Gersen (1959b), que destaca as vantagens do romance de Cruls sobre o romance de Gide, A

207
criação e o criador é, ao mesmo tempo, um romance de costumes e de idéias; cosmopolita ao

modo de um Paul Morand. Por último, o romance De pai a filho, de acordo com Pontes

(1960), é um romance perfeito, ressaltando a harmonia entre os tempos passado e presente

integrados na trama. Ainda sobre De pai a filho, romance que amplia o espelho da burguesia

de Vertigem, Coutinho (1986, v. 5) reafirma o vigor dos recursos crulsianos na composição

romanesca, e, tornando para A Amazônia misteriosa, romance que consagrou o autor,

Coutinho destaca a maior marca de Gastão Cruls: a união da realidade com a imaginação e a

filiação do autor à corrente psicológica, que, sabemos, já vinha desde o Simbolismo, passou

pelo Modernismo e segue na hodiernidade.

Mesmo críticos como Jayme de Barros (1936), Olívio Montenegro (1953),

Temístocles Linhares (1954) e Wilson Martins (1954), que fazem ressalvas ao estilo narrativo

de composição da prosa crulsiana, nos fornecem, hoje, com os elementos à época apontados

como inadequados na elaboração do romance, motivos para reafirmar a posição de Gastão

Cruls, como um artista que sempre esteve à frente de seu tempo, como, aliás, prenuncia o

crítico Massaud Moisés (1997a) e destaca Afrânio Coutinho (1986).

A propósito dos contos de Gastão Cruls, Herman Lima (1952) afirma que tais contos

são raros exemplares do conto universal, e Amoroso Lima (1963) nos dá a idéia de que se

trata de contos modernos precursores do Modernismo. Contos que, por nossa vez, avaliamos

em dois gêneros: contos fantásticos que tendem ao trágico moderno e contos regionalistas que

tendem à psicologia de personagens e a um parecer clínico sobre o ambiente. E isso lá em

idos anos 20 e 30. Conforme pontua Massaud Moisés (1997b), os contos de Cruls garantem

uma emoção que resiste à reflexão. Ficamos com a impressão de que a narrativa é a expressão

de uma verdade, ou, ao menos, ficamos a desejar que assim fosse. Como sobreleva Celso P.

Luft (1979), o drama no conto crulsiano nos lança, ainda hoje, do ponto de vista dramático,

um desafio, como acontece no “Abcesso de fixação”. Da superação do regionalismo

208
tradicional, pois, pelo Gastão Cruls conteur, também nos dá importante testemunho o crítico

Otto Maria Carpeaux (1964). Importante ressaltar, ainda, que Gastão Cruls foi um dos poucos

escritores brasileiros a explorar, em seu tempo, a temática do terror em seus contos.

Enfim, a obra de Gastão Cruls romancista e contista é alçada pela crítica que

levantamos, de forma não unânime em todos os fundamentos, é verdade (e se assim o fosse

não seria crítica), às maiores alturas da arte literária brasileira e, em função disso, pensamos

haver chegado a hora do artista ilustre ser honrado com as honras que seus livros merecem,

freqüentando, nova e distintamente, as livrarias brasileiras.

209
SESSÃO II

LENDO A HERANÇA ENCONTRADA

Gastão Cruls, quatrocentos anos depois de Cabral, redescobre o Brasil ao registrar com

letras da antiga ortografia lusa, o sonho de uma viagem pela Amazônia. Ao mesmo tempo,

Silvino Santos, com sua câmera Pathé a manivela, registrava o primeiro contato com os índios

Huyotos, as vastas corredeiras do rio Putumayo e as primeiras imagens aéreas da floresta

amazônica. Inspirados pela vista estonteante de uma Amazônia do começo do século XX, as

vidas de Cruls e Santos, repletas de aventuras e pioneirismos resultaram, de fato, no belíssimo

romance A Amazônia misteriosa, de Cruls, e no igualmente belo, “O Cineasta da Selva”, filme

de Aurélio Michiles.

Para o escritor Cruls, três anos após publicar a sua Amazônia idealizada, a aventura

continua e, desta vez, ela é real. Amigo do Marechal Rondon, Cruls faz parte da expedição às

Guianas, que, embarcada nas canoas de madeira, remava rio acima, saindo do Pará. Essa

aventura, trágica para muitos, foi também importante iniciativa do governo brasileiro, de

reconhecimento das nossas fronteiras e daquela parte do nosso território. Além de mapas e

documentos geo-econômicos sobre a região, dessa viagem Cruls nos deu A Amazônia que eu

vi, um diário de viagem no qual dialoga com A Amazônia misteriosa. Imaginação e realidade

então se encontram, e as vozes do folclore nordestino: da “Mazurca”, da “Barranca”, do

“Toco das Batateiras”, do “Tronco”, da “Barca”, do “Cabaçau”, do “Babassuê”; já gravadas

por Cruls em seus contos, e que tanto marcaram no autor os anos vividos no Nordeste,

misturam-se às vozes da Amazônia crulsiana, cuja textura nos oferecerá, de hora adiante,

pelos próximos capítulos, percussão e sopros que nos levarão para dentro da mata ou para a

rouquidão do agreste, para a beira dos rios da Amazônia ou para as margens do São

Francisco, nosso “Velho Chico”.

210
Mas nossa viagem não ficará só no ambiente da Amazônia selvagem e desconhecida,

ou da caatinga nordestina, ela seguirá também por outros caminhos desconhecidos por onde o

autor se atreveu a andar. Esses caminhos, da mente e do paisagismo urbano, retratados nas

personagens crulsianas, nos levarão às encruzilhadas do trágico-moderno, com mitos re-

significados e transportados para a realidade brasileira. Assim, o discurso da dupla-voz, a

análise metapsíquica, o riso interior, a solidão, os arranha-céus, os rios-mar, a mata, o sertão e

o suspense nos chamam a embarcar, levados pela parte que aqui nos cabe, da herança de

Gastão Cruls.

Boa viagem, vozes dos espíritos da mata e dos “outros” da cidade!

...

211
Capítulo 4

O romance A Amazônia misteriosa e o diário A Amazônia que eu vi: entre a ficção e a

história

4.1 Apresentação

Como um terremoto que confunde a nossa


confiança no próprio solo que estamos
pisando, pode ser profundamente perturbador
desafiar as nossas crenças habituais, fazer
estremecer as doutrinas em que aprendemos a
confiar.
 (Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios)

Gastão Cruls nos oferece, tanto n’A Amazônia misteriosa quanto n’A Amazônia que eu

vi, guardadas as devidas proporções da figuratividade, uma poesia do imaginário. Em sua arte

de escrever, nos anima os sentidos pela animação das belas paisagens amazônicas, cujos mitos

e lendas aglutinam-se numa efusão do estranho, do desconhecido. A Amazônia, na imensidão

de suas paragens de verdume denso, e à noite, de uma negrura ainda mais impenetrável,

oferece caminho aberto por suas águas caudalosas, frescas e em meio a um calor intenso,

tropical e úmido. Diante de esplendorosa beleza, não se curvarão os olhos já turvos da extasia

do seu canto e até do seu silêncio que a todos enfeitiçam por sua magia insinuante, perigosa e

sedutora que nos faz desejar ardentemente desfrutar o prazer de tocá-la, selva virgem e pura,

nas folhagens do orvalho amanhecendo e, enfim, suspirar seu cheiro

[...] nos braços do rio, [...]

Arca de pérola, milhas de silêncio

212
Coxas abertas em mar,

delta desnudo,

onde arisco Uirapuru

 agora e sempre 

recolhe para o ciclo de seus cantos

as espumas da vida

deslizando

entre lábios de ondas e de lendas

no clitóris da selva,

amargo mel... [...] 45

...

Um bom paralelo para introduzirmos a análise de alguns aspectos do romance A

Amazônia misteriosa e da etnografia A Amazônia que eu vi, aspectos que evidenciam o

encontro entre a civilização e a Natureza, e o choque advindo desse encontro, é o filme

“Dersu Uzala” (1975), do cineasta japonês Akira Kurosawa. Nesse filme, as fotografias muito

bem selecionadas, que exibem a beleza excepcional das paisagens siberianas, e a

presentificação do real na ficção, anotada pelo encontro, de fato, entre o capitão Arseniev

(representando a civilização) e o natural Dersu (representando a Natureza) na região do rio

Ussuri, são duas coordenadas importantes para construir a representação daquele tempo

histórico na taiga siberiana.

Esse tempo, implicado nas coordenadas acima referidas (a fotografia e o cinema),

instaura uma dupla visão. A primeira nos mostra dois homens: o capitão Arseniev e o caçador

Dersu, como metonímias de sistemas supostamente antagônicos: a civilização (Arseniev) e a

Natureza (Dersu). Já a segunda, nos dá uma redução simplificada desses sistemas, pois eles,

com todas as suas complexidades, estão reduzidos ao universo de dois homens supostamente

opostos.

45
Poema “Ritual de iniciação” da poemália “Porantim” de Loureiro, João Jesus de Paes (2000, v.1, p. 29).

213
É esse encontro, ou esse embate, entre as representações da civilização e da Natureza,

que tentaremos aproximar nesta leitura do diário e do romance de Cruls. Com efeito,

aportando no cais da A Amazônia que eu vi, sugerimos uma realidade que parece interpretar o

imaginário da A Amazônia misteriosa. Espiando a descrição dos excertos escolhidos,

pretendemos destacar particularidades como “o tucupi, a caamembeca e a valentia;

coincidências, o lar e o Natal; experiência; diferenças; o fabulário” e alguns ícones dessas

particularidades, como a expiação da culpa e a materialização do acaso, em imagens que

parecem repetir, no diário de Cruls, passagens imaginadas por ele no romance A Amazônia

misteriosa.

Assim, através desta análise, palmilhando os métodos históricos e de análise literária,

queremos contemplar a evidência no diário e o jornaleiramento da retórica no romance, a fim

de colocar a história e a literatura, enfeixe da dualidade crulsiana, em uma situação de

reciprocidade.

Em síntese, transitaremos por duas instâncias discursivas: a de discurso lúdico e a de

discurso não-lúdico (sendo este último o discurso histórico-etnográfico dito científico).

Interessa-nos analisar alguns tipos de relações e fatos estruturais – os acontecimentos na

narrativa de ficção e de história – representados no romance e no diário, tentando observar um

ponto de contato entre ambos, para exemplificar a projeção do factual sobre o imaginário

(caso do romance) e a projeção do imaginário sobre o factual (caso do diário).

Antes, porém, de adentrarmos o campo da análise propriamente dita, algumas

considerações entre os gêneros romance e diário se fazem necessárias.

4.2 O Romance

17-XII-191... [...] Como episódio cômico, o Pacatuba, à hora do almoço,


julgando ter descoberto uma porta de abelhas, levou algumas ferroadas de
terríveis cabas. Embora apiedados da sua sorte, não pudemos deixar de dar

214
boas gargalhadas, tal a cara impagável com que ele ficou, de testa toda
encalombada e beiçorra enorme e muito vermelha (CRULS, 1958, p. 3).

Nessa narrativa, o narrador d’A Amazônia misteriosa se aproxima da personagem o

suficiente para extrair-lhe os trejeitos de depois do acontecido. A aparência da personagem

mistura-se com a alteridade do ambiente e se reflete nas aparências que serão geradas a cada

movimento. Repare-se a transferência que se promove do narrador crulsiano para a

personagem que dialoga com Pacatuba. No espaço entre esse narrador que conta a história e

Seu Doutor há uma ponte que constrói-se pela metáfora anafórica: o narrador que conta

transforma-se no doutor que deixa de ser doutor para ser, por instantes, os expectadores do

Pacatuba ao mesmo tempo que é o amigo sensibilizado com o sofrimento imagético da dor.

Enredado pela literatura, o universo do romance nutre visões e efabulações sujeitas ao

imaginário e à história de quem lê, como por exemplo, a opinião de um historiador que

aparece na apresentação do romance A Amazônia misteriosa de Cruls: “Não se me afigura

bem omitir certas coisas, principalmente as que se passam longe do mar, embora a muitos

possam algumas delas parecer prodigiosas e incríveis”. O autor dessa opinião, o historiador

Caio Plínio, fala de uma particularidade muito importante: a da escolha que quem escreve faz

entre omitir e não omitir e o que omitir ou não omitir.

Essa seleção aparentemente natural ganha contornos mais expressivos na medida em

que o objeto escrito reveste-se de algum quilate de cunho científico ou literário, mas,

sobretudo, e no caso do historiador, da expectativa de credibilidade que o texto lido é capaz

de sustentar. Nesse sentido, dois detalhes são complicadores em potencial: a narrativização de

acontecimentos “prodigiosos” e de acontecimentos “incríveis” em texto que se pretenda

científico. Escolhido pelo autor Gastão Cruls para coligir as páginas de seu primeiro romance,

o comentário de Plínio destina-se, pois, a fazer parecer que o romance pode ser a história, ou

que a história pode ser uma narrativa estilizada numa forma do romance.

215
Vamos pensar, portanto, o romance como o evento literário que melhor traduz as

sociedades moderno-contemporâneas; visto que, como o próprio romance, as tais encontram-

se em um estado que já superou as projeções modernistas, e são incipientes a um

elementarismo complexo que, paradoxalmente, concorre, pela extensão do insólito, nas

sociedades e nas civilizações. Assim, os acontecimentos da humanidade são postos de

observação de seu próprio destino, absorvido e coado pela narrativa da indefinição:

O estudo do romance enquanto gênero caracteriza-se por dificuldades


particulares. Elas são condicionadas pela singularidade do próprio objeto: o
romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. As forças
criadoras dos gêneros agem sob os nossos olhos: o nascimento e a formação
do gênero romanesco realizam-se sob a plena luz da História. A ossatura do
romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não
podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas (BAKHTIN,
1988, p. 397).

4.3 O Diário

17 de dezembro.  A viagem correu animada e logo pela manhã vimos


garantida a melhoria do rancho. O Ricardo matou um pato e o Vicente puxou
uma vigorosa traíra. Mas não ficou aí a nossa sorte. À noite, ainda tivermos
quatro traíras e um surubim (CRULS, 1973, p. 141).

Por sua vez, ao imaginarmos um diário pensamos também de acordo com um universo

predeterminado. Um registro de pensamentos e observações pessoais, ou o documento de

descrições do mundo, suas paisagens, pessoas e acontecimentos, escrito por viajantes. Esse

gênero parece ressumir qualquer efeito estético, uma vez que, a princípio, pretende apenas

descrever o observado. Porém, tal limite parece não reconhecer fronteiras. A leitura, mesmo

do diário de um botânico, reconhecendo folhas, flores e frutos, por maior que seja o rigor

dedicado ao fazer científico, se mostrará uma leitura de narrativas que obedeceram ao(s)

mesmo(s) critério(s) de seleção da escritura de um romance.

216
Talvez o diário prime por uma versão da verdade verificável em suas fontes,

constituindo-se material factual para o investigador. Constrói, pois, a estrutura de um romance

acontecido cujos canais discursivos são, todavia, os mesmos do evento passível de acontecer:

o lugar, a aparência, o tempo, o movimento, a matéria, o espírito e a consciência estão sempre

e para sempre no ofício da comunicação. E, sendo assim, a dicotomia, documento e fantasia,

nunca deixará de estar presente.

Não por acaso, portanto, o historiador e romancista Cruls abre as páginas de seu diário

de viagem A Amazônia que eu vi com as palavras de D’Annunzio: “O demônio do perigo me

dissera: vai e goza. Bebe a música dos pássaros e dos ventos, deslumbra-te nas luzes, inebria-

te nos odores”. De fato, a advertência procede. E pensando nela à vista do cenário amazônico

e da identidade de sua gente, é possível depreender que apesar de soar romântica, poética,

evoca uma reação ao estado de opressão e domínio, retrato não só da Amazônia e de outros

lugares brasileiros do tempo de Cruls, mas ainda do nosso. Ouvir a música dos pássaros e dos

ventos é muito bom, o perigo é bebê-la e ficar anestesiado para o que acontece no dia a dia da

vida. Esse não é o caso de Cruls, que experimenta no diário o exercício da reportagem.

Oportunamente,

(n)a compartimentação dos jornais e dos hospitais  duas atividades com


mais coisas em comum do que se possa imaginar  sempre se viveu uma
luta surda entre a burocracia estabelecida, formada pela grande maioria, e
um punhado de sonhadores, poetas e malucos que encontravam ali, no limite
da vida e da morte, um terreno fértil para refazer a vida, arriscar novas
formas de cura e de caminhar, gente que não se conformava com o
preestabelecido, a rotina, a impotência diante do destino (DIMENSTEIN &
KOTSCHO, 1990, p. 67).

Não temos dúvida que esses dizeres podem se referir a Gastão Cruls. Formado em

Medicina e depois Diretor da revista e editora “Boletim de Ariel”, Cruls nos deu uma boa

medida do homem inconformado com a rotina. Além disso, foi, na literatura, artista e crítico

da arte. Com efeito, esses caracteres da dualidade crulsiana se fazem presentes na composição

217
também do diário A Amazônia que eu vi, como destaca, na passagem abaixo, o Marechal

Rondon em carta ao amigo e companheiro, Gastão Cruls, na “Missão Rondon” 46; missão que,

de fato, deu ensejo a esse diário de Cruls:

Permita-me, meu caro Gastão Cruls, duas palavras de entusiasmo pelo seu
livro: A Amazônia que eu vi, crônica literária da Expedição aos lindes do
Brasil com a Guiana Holandesa, caracterizados pelos paredões enflorestados
da cordilheira Tumucumaque, dominante do vastíssimo vergel que o Cuminá
rega e alimenta. É a síntese bem feita com donaire literário, da Excursão
Militar de Estado-Maior, realizada com fins científicos também. Sem ser
trabalho de pura ficção em que o gênio da imaginação construiria as imagens
decorativas do pensamento do autor, sente-se nas narrativas belamente
apresentadas o encanto do estilo do escritor, que prima pela correção e pela
elegância da forma com a rigorosa honestidade peculiar ao seu belo caráter.
O Diário é a narrativa empolgante. [...].
Sem diminuir o galardão literário conquistado pela A Amazônia misteriosa,
de alto quilate artístico, julgo que A Amazônia que eu vi, é complemento real
da ficção bem arquitetada pelo gênio artístico que concebeu a primeira e
segunda obras, precursoras que serão da terceira em elaboração espiritual
(RONDON apud CRULS, 1973, p. xxxii).

4.4 De um ponto qualquer entre a fantasia e o documento

Em termos inequívocos, a distinção entre o diário e o romance implica a distinção

entre a história e a ficção; todavia, para apresentar ao leitor a proposta que ora se define,

abordaremos história e ficção como literatura em sua função lúdica, assimilando e aplicando o

conceito segundo o qual

(t)emos a literatura como participante do “jôgo” da própria vida, de onde sua


natureza figurativa consoante a formulação Kantiana: ‘Toda forma dos
objetos é figura ou jôgo’. Coube, no entanto, a Huizinga em sua obra Homo
Ludens desenvolver essa teoria até suas últimas conseqüências,
coincindindo, ou melhor, ligando por laços irrefutáveis de parentesco com a
teoria do bricolage de Claude Lévi-Strauss. Nesse sentido, a criação artística
se coloca num mesmo plano e a igual distância da ciência, do jôgo e do rito
 e cremos mesmo que ela se confunde com o próprio rito (MACHADO
apud CASTAGNINO, 1969, p. II, grifos do autor).

46
Falamos mais sobre a “Missão Rondon” no “Capítulo 2”.

218
A estrutura do diário estratifica a idéia do materialismo dialético da filosofia

hegeliana: reifica a necessidade que funda a história e justifica sua permanência no tempo, 

a necessidade de sincretizar os opostos, apurando-os pela combinação em vez da implosão e

do conseqüente extremismo. Aproxima-se, nesse sentido, e enquanto função lúdica 47, do

romance de tese, promovendo o realinhamento do novelo histórico. Roda em curso, pois, um

jogo entre a verdade e o modo de narrá-la: belo ou hediondo e científico ou artístico.

A propósito, a própria viagem da “Missão Rondon”  nome de batismo da aventura

transformada em crônicas, no diário de Cruls, é o emblema de uma relação intrínseca e fatal,

pelo ato contínuo irreversível de caminhar sobre as águas sinuosas da única direção possível.

Para a história ser uma história comprometida com a humanização do mundo, ela precisa

cumprir a virtude de chegar ao futuro com uma recordação mais firme e concisa o quanto

possível: como por exemplo, o rito milenar de nossas danças nativas:

Basta uma ligeira olhadela histórica (1)48 ao desenvolvimento dos cultos


pagãos da primavera para encontrar essa relação jôgo-poesia em permanente
presença. Por exemplo: já Plínio na História Natural (III, 18) fala da origem
dos picentinos referindo-os como antigos sabinos sacrificados ao deus
Mamers, durante os “jogos da primavera sagrada”. Esta “primavera sacra”
era o tempo consagrado às oferendas a tal deus, consistindo em cerimônias
figurativas  representações, jogos, recitações etc.  durante as quais se
oferecia à divindade a décima parte do nascido nessa primavera: frutos,
animais, homens. O oferecimento se fazia com canções e textos litúrgicos
(CASTAGNINO, 1969, p. 95, grifos do autor).

Escrevendo crônicas de viagem, Cruls interpreta um momento que se processa: o

canto do uirapuru. Ao trasladá-lo, revigora-o e o retransmite para a posteridade. Isso é fazer

história com escala das notas musicais numa Clave de Sol, como as dos exemplos recordados

pelo escritor nas páginas da A Amazônia que eu vi, cuja sintonia alcandoramos agora:

47
Quando falamos em função lúdica, estamos pensando no efeito da recepção à proposta do romance de tese,
cuja idéia ou teoria é exemplificada pela ficção. Esse mesmo efeito pode ser surpreendido no diário, que, a
princípio, pensando na sua aproximação do gênero ficcional, ligar-se-ia ao subgênero romance de tese.
48
(1) Nota 1 do próprio autor: “Tomada do ensaio de Raúl Castagnino: Primavera, poesia e milícia (XXVIII)”.

219
12 de outubro.  [...] Não sei se em regozijo à descoberta da América, ouvi
hoje, pela primeira vez, cantar o uirapuru. Foi pela manhã, bem perto do
acampamento. Surpreendeu-o o Benjamim, que me chamou a escutá-lo.
Trinos, gorjeios e regorjeios em floreados incríveis. Havia de ser um gênio
da floresta que assim soprava em flauta tão sutil. Mas eu, alhures, já descrevi
o canto do passarinho mágico, e não me posso repetir. Prefiro citar Spruce,
trasladando para aqui a pauta em que o botânico inglês pôde reter um dos
principais motivos das suas inúmeras fiorituras: [o autor transpõe a partitura
de Spruce].
Benjamim, que já o ouviu muitas vezes, guarda de outiva as suas
modulações e assim as reproduz: [o autor transpõe agora a partitura de
Benjamim].
[...], não são pequenas as diferenças entre os dois temas. Mas o uirapuru é
garganteador de tais recursos e gosta tanto de improvisar... Depois, entre
Spuce e Benjamim, medeiam largos oitenta anos e não é para admirar que de
lá para cá ele haja enriquecido os seus processos (CRULS, 1973, p. 44-45,
grifos do autor).

Em síntese, narrando a expedição, o conteur pretende construir a história de um tempo

tal qual ele foi em sua aparência e em sua música. E nesse tempo, há uma infinidade de

elementos (re)construtores de uma realidade verificável e imaginária, de um mundo científico

e também de um mundo idealizado. O processo da narrativização desse todo, desse

acontecimento, segue afinado com a sensibilidade do narrador que, meditando o contexto da

leitura de Levy Bruhl a respeito de Jean Jamés, medita sobre uma escritura que se renovará

por um outro ato de leitura: a leitura do relato trasladado, e a verificação do objetivo e das

sensações imanentes dessa relação naturalmente intrínseca e fatal, entre o homem e o objeto:

Eu acho que nada é mais saudável para o espírito que alguns meses no
campo: para o espírito e para o caráter. Nessa meia-solidão, a gente quase se
cura de todas as pequenas preocupações do amor próprio, a gente não tem
mais ninguém com quem brigar; a gente sonha viver bem, a pensar o bem, a
agir bem por conta própria, sem querer fazer melhor que os outros, a gente
vive de uma maneira ao mesmo tempo mais pessoal e mais desinteressada. A
gente tem para si, para os sonhos, para as esperanças, para as ambições, toda
a amplitude do horizonte, e todos os píncaros do céu. Para mim, que tenho
grande prazer em viver com meus camaradas, tenho um prazer novo ao
recordá-los: os pequenos defeitos e as pequenas vontades inevitáveis que, na
vida em comum, por vezes nos incomoda e nos irrita, desvanecem-se à
distância em um tipo de ar puro e de lembrança embelezada... Eu só guardo
deles o que eles têm de melhor, as qualidades particulares de caráter e de

220
espírito, e me agrada em fazê-los conversar assim na minha memória, com
abandono e sinceridade... (BRUHL apud CRULS, 1973, p. 43).49

Então, se tivéssemos que optar entre as citações anteriores de Plínio ou de

D’Annunzio, e afigurar-lhes uma insígnia de ou romance ou diário (supondo que ainda não

tivessem), estaríamos emboscados: literalmente, as passagens que lemos são marcadas pela

inversão da lógica. Note-se que a ficção assenta-se em uma epígrafe de historiador; e o

documento porta uma epígrafe literária. Analogamente, o efeito produzido (com o que

chamamos inversão da lógica) nos aproxima de um aparente contra-senso: se o escrever da

história prima pela prerrogativa do simplesmente contar o sabido e o visto sem qualquer

estilo, como se imprime em documento uma marca d’água ficcional?

Por outro lado, o mesmo paradoxo não resiste à análise quando posto em relação com

o romance. A explicação é óbvia:

Na composição de um romance o escritor é dono do assunto. Escolhe


devagar os episódios, plasma as figuras, corrige as situações à feição do seu
temperamento e de acordo com as imposições da obra de arte que vai
criando (ROQUETTE-PINTO apud CRULS, 1973, p. xxxiv).

No caso específico da composição de A Amazônia misteriosa, o escritor que ainda não

havia estado lá, criou uma história fundada em três instâncias principais: a floresta, a

experienciação científica e o fabulário das Amazonas. O itinerário complexo de uma narrativa

fantástica e de ficção científica mescla-se com uma Natureza imponente e real, reconstituída a

partir de informações bastante precisas, assimiladas de leituras diversas de literatura e história

da Amazônia. Então, além de plasmar as figuras – quer figuras discursivas, quer figuras do

nível da figurativização – o artista dá vida a essas figuras que assumem, assim, uma função

fundamental: a de gerir os acontecimentos textuais. Esse fenômeno, naturalmente,

influenciará o escritor que exerce o domínio da narrativa, mas é dominado por certos aspectos

49
Tradução nossa para a transposição do original francês de Levy Bruhl, por Gastão Cruls.

221
dela. Pensando nisso, a propósito das intenções deste nosso trabalho, cremos ser pertinente o

que nos fala Antônio Cândido:

Todavia, a marcha da pesquisa e da teoria levou a um senso mais agudo das


relações entre o traço e o contexto, permitindo desviar a atenção para o
aspecto estrutural e funcional de cada unidade considerada. Isto se deu ao
mesmo tempo em que nos estudos críticos a análise descia ao papel das
unidades estilísticas, consideradas chaves para conhecer o sentido do todo; e
em ambos os casos, com absoluta predominância do aspecto sincrônico
sobre o diacrônico (CÂNDIDO, 1967, p. 08).

Nesse sentido, entendemos que a análise da narrativa foi sendo apurada a cada

tentativa de descobrir os imbricamentos das metáforas, da retórica e de outras formas

discursivas, com o objetivo de fornecer ao interpretante material suficientemente seguro para

juízo do texto lido. Conforme o tratamento que o professor Antônio Cândido nos dá sobre a

matéria, pode-se perceber que a análise da narrativa passa a ser mais uma análise da narração,

admitindo-se a predominância do aspecto sincrônico, ou seja, de supostos significados

transpostos e transformados em possíveis re-significações para a recepção atualizada.

Com o teor de tais assertivas, de Roquette Pinto e de Antônio Cândido, combinaremos,

mais à frente, algumas considerações de Durand a propósito do material imaginativo que

compõe as narrativas do romance (A Amazônia misteriosa) e do diário (A Amazônia que eu vi)

de Cruls.

4.5 Alguns tipos de relações e fatos estruturais representados: motivos de aproximação

entre o romance e o diário e, em ambos, do encontro da civilização com a Natureza.

4.5.1 O tucupi, a caamembeca e a valentia:

O imaginário da Amazônia é mesmo um campo fértil para a imaginação criadora. É

nela que ciência e fantasia se encontram e migram ou não para a arte. De toda sorte, as três

222
áreas acima destacadas são campos históricos particulares a uma cultura determinada, de uma

comunidade social  e partícipes da urdidura do texto literário de A Amazônia misteriosa. A

combinação ou o plasma dessas figuras, no entanto, não seria efetuada sem o propósito de

transmitir um ensinamento novo: a caamembeca como remédio para a indigestão provocada

pelo consumo exagerado do tucupi; e a repetição de um certo padrão de comportamento

indicado pela capacidade que algumas pessoas têm para ficarem valentes depois de alguns

“tragos”. A transcrição desses dados é em si mesma um fazer histórico, mas a combinação,

um fazer literário.

Com efeito, os acontecimentos do dia “22-XII-191...” n’A Amazônia misteriosa

(1958), estão imbricados no deslocamento de duas situações que importam um conhecimento


50
de mundo, uma tradição e, portanto, um conhecimento histórico. Nas palavras “tucupi” e

“caamembeca” 51, o narrador autodiegético do romance, plasma experiências da vida real sua

ou de outrem. Ao efetuar o que chamamos de plasma, embora ao romancista não caiba a

obrigação de rigor frente à verdade, a personagem que conta sua própria história demonstra

coerência de espaço-lugar, ou, mais propriamente, coerência pragmática – conforme algumas

correntes lingüísticas. Entre as inferências dessa demonstração, pensamos que a mais simples,

e também mais forte, aparece na indicação do peixe como alimento, no preparo peculiar da

mandioca para molho e no uso da caamembeca como auxiliar digestivo, uma vez que tem o

poder de aliviar as sensações de mal-estar de um possível descontrole da gula. Estes índices,

próprios a lugarejos específicos, reportam, fielmente, um contexto histórico real, ao qual, a

partir do relato, se insere entre outros, um contexto de lugar-amazônico.

Acompanhando o diário, e lendo as linhas do dia 22 de dezembro na A Amazônia que

eu vi, tem-se a impressão de que suas páginas integram a história do romance. A passagem

abaixo parece a reprodução da noite do dia 20 de dezembro na A Amazônia misteriosa, cuja

50
Tucupi: molho de mandioca usado no tempero de peixe.
51
Caamembeca: vegetal da família das Palageáceas (usado como anti-ácido e desintoxicante).

223
cena, no entanto, não foi descrita. No diário, a descrição dos urros da onça e o apontamento de

dois homens, o Ricardo e o Vicente – que saíram à procura da fera numa canoa, em noite

ainda que clara, denotam uma versão muito próxima ao que, no romance, poderia ser

interpretado como disparate, um exagero; mas trata-se de um acontecimento real no diário de

A Amazônia que eu vi:

22 de dezembro.  Ouvimos esta noite uma onça que parecia estar bem à
nossa frente, na margem direita. Os seus urros eram formidáveis e repetiam-
se com grande freqüência. Como a noite fosse muito clara, o Ricardo e
Vicente tomaram a canoa e saíram a procurá-la. Pouco depois ouvíamos dois
tiros, mas, ao que soube, foram dados a esmo e não devem ter atingido o
alvo. Apenas a fera se intimidou, buscando paragem mais remota, pois que
de novo se fez silêncio à nossa volta (CRULS, 1973, p. 144, grifos do autor).

Segundo Antônio Cândido (1967, p. 14), “é preciso ter consciência da relação

arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando

pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de

poiese”. Isto é, representar é também forma de fazer.

O exagero na ficção faz com que o efeito da verdade chegue à consciência do leitor.

Contudo, assim como o documento não tem forças para exprimir no informado um princípio

de reação, também a ficção não embute no destinatário uma reação exagerada. Isso acontece

devido à mediação que o leitor naturalmente faz quando lê – seja documento, seja arte. Dois

organismos distintos, portanto.

Assim:

Contemporizando o romance e o diário de Cruls, citamos novamente A. Cândido que

diz que

(é) justamente esta concepção da obra como organismo que permite, no seu
estudo, levar em conta e variar o jogo dos fatores que a condicionam e
motivam; pois quando é interpretado como elemento de estrutura, cada fator
se torna componente essencial do caso em foco, não podendo a sua
legitimidade ser contestada nem glorificada a priori (CÂNDIDO, 1967, p.
17).
224
Com efeito, olhando para as narrativas do romance e do diário, e levando em conta “o

jogo de fatores que as condicionam e motivam”, podemos situá-las no plano da criação e da

descrição, indistintamente. Observa-se que o diário nos conta de uma passagem que acontece

“à noite” e focaliza a valentia de dois homens à procura de uma fera. Uma focalização até

irônica, pois que a noite estava clara, os homens adentraram poucos passos na mata e deram

tiros a esmo. Já o romance, conta de uma “certa manhã”, pela hora do almoço, e revela

ingredientes típicos de um almoço na selva: peixe regado ao molho de tucupi e, de sobreaviso,

a caamembeca de sobremesa.

Essas imagens: a da noite não descrita no romance, e a da manhã não assinalada no

diário estão, no jogo das probabilidades, com os melhores índices para aparecerem no

(con)texto, ou da ficção ou da ciência. Logo, essas narrativas do romance e do diário

poderiam estar juntas, de mãos dadas, ilustrando os cenários da A Amazônia que eu vi e da A

Amazônia misteriosa  seja enriquecendo o texto literário com o detalhe histórico, seja

fazendo história com a caracterização do sensível, do lúdico.

4.5.2 Coincidências:

O estar perdido na mata muitas vezes suscita a impressão de já haver passado por

certos lugares. Essa impressão, além de aumentar o medo e a incerteza até o ponto de impedir

a explicação racional daquele momento que de verdade está acontecendo, pode,

coincidentemente, revelar visões passadas e materializar visões futuras. A composição de um

presságio, no caso da revelação; ou da expectativa, no caso da materialização é orientada por

leis das quais não temos domínio, posto que a composição de uma ou de outra será conteúdo

de situações que referem o sujeito dominado e até medrado diante de aparições e aparências

que, a certa altura, se confundem. Por isso, é um grande alívio quando em ambiente tão mais

hostil quanto mais desconhecido se consegue seguir em frente e avançar rumo ao que se tem

225
por saída, fuga dos perigos e dos demônios da Natureza que surge para o perdido sempre

como uma fantasmagoria disposta a tragá-lo. Uma possível descrição para esse episódio é nos

dada por Cruls no diário introdutório do romance A Amazônia misteriosa. No dia 24-XII-

191... n’A Amazônia misteriosa o narrador que participa da aventura nos conta:

 Demos hoje um bom avanço na jornada, porque os nossos homens não


querem trabalhar amanhã. [...] à noite, quando já nas redes e sob os
mosquiteiros, O Pacatuba entrou a falar longamente dos seus. Lembro-me ter
adormecido acalentado pelo pio triste do murucututu e recordando-me da
frase pitoresca em que ele me dizia que se por aquelas mesmas horas
estivesse em Mamanguape, andaria “pastorando” igreja onde pudesse assistir
à missa do galo com a família (CRULS, 1958, p. 7, 9, grifo do autor).

Sob esse mesmo pretexto, a expedição chefiada pelo Marechal Rondon e da qual o

escritor ficcionista da Amazônia, Gastão Cruls, fazia parte, também avançou bem naquela

véspera de Natal. Segundo ele mesmo, virando a página do romance e nos encontrando com

as linhas perfiladas pelo diário, ficamos sabendo que, neste mesmo dia de véspera de Natal,

24 de dezembro (1928) n’A Amazônia que eu vi, nossos aventureiros da vida real estão em

águas do Cuminá. São flagrantes nesse entrecho, não somente as coincidências com relação

ao lugar – figurativizado pelo rio caudaloso e a imponência das florestas – mas também pela

expressão calcada no papel: É a mesma do romance, e suscitada pelo mesmo motivo.

Definitivamente, um espaço para a transcendência e a antevisão: todos concordam, no diário e

no romance, sobre a necessidade de se esforçar mais que o “costumeiro”, para obter-se a

recompensa do “poder-estar livre” de obrigações, a fim de festejar uma data que lhes dizia

respeito. De toda sorte, que o visionário de A Amazônia misteriosa tenha antevisto

circunstâncias natalinas não excede o óbvio, mas daí a imaginar praticamente o mesmo

contexto em cenas de tempo real, cerca de dez anos depois, é fabuloso.

226
Lendo as linhas próximas à narrativa deste dia, percebemos, na A Amazônia

misteriosa, um certo preenchimento da história, como o relato na passagem abaixo, que

antecede a véspera de Natal:

23-XII-191... [...] Ao escurecer, depois de quatro horas de viagem, abicamos


numa praia de cambão. Aí, banqueteamo-nos à farta, graças às anhumas e
jandiás. Como sobremesa, o Trindade arranjou-nos um mel delicioso.
Temos tido umas lindas noites de luar, que enternecem os nossos homens e
fazem o Manuel dedilhar a viola, cantarolando modinhas à meia-voz
(CRULS, 1958, p. 7).

Um preenchimento daqueles espaços que significariam o silêncio n’A Amazônia que

eu vi:

23 de dezembro [...]  Viemos dormir na linda praia da Correnteza dos Paus


Secos. Os Pianocotos estavam na barranca e aí paramos alguns momentos.
Dei-lhes contas, anzóis, agulhas, contando obter em troca algumas frutas.
Infelizmente não nos fizemos entender e a índia velha mais uma vez nos
encheu de beijus52 (CRULS, 1973, p. 146).

No livro de ficção, o narrador arma encontros com outros grupos na floresta, forja

situações, porta-se como herói da expedição e por isso mesmo deve mantê-la sob seu controle.

Sob seu controle, significa dizer que o medo e a apreensão – atmosfera flagrante no

diário de viagem: “o rio está nos ossos, e são quase os mesmos os tropeços que se nos

deparam a cada momento” (CRULS, 1973, p. 142) – não devem instar de seu comportamento.

No entanto, uma expressão comum à mesma data do romance e do diário (a véspera de Natal)

chama-nos à atenção.

Ei-la:

N’Amazônia misteriosa: “Demos hoje um bom avanço...” (CRULS, 1958, p. 7). E,

n’A Amazônia que eu vi: “... devemos ter feito um enorme avanço...” (CRULS, 1973, p. 146).

52
Nossa popular “tapioca”: bolo de massa de mandioca. Hoje, dependendo da localidade, assume formas,
recheios e requintes diversos.

227
De modo algum o romance nos desvia da idéia de “viagem pelos caminhos do rio”. E

isso, coincidentemente, é o que o diário também nos descreve. A diferença é que no romance,

o narrador que testemunha narra os acontecimentos por um ponto de vista exterior, mas

sujeito ao plano das expectativas criado pelos níveis discursivos que suportam a história; ao

passo que o escrevente do diário descreve o que se passa apenas muito próximo dele.

Existe, portanto, uma restrição de campo à observação. Enquanto no romance o

narrador que conta a história pode contar com o gênio da criação, no diário o escritor não

escreverá se não ad demonstrandum. Assim, no diário não há preenchimentos do silêncio. E o

silêncio reina, talvez, como meio de evitar os presságios – alimentados pelas situações de

tensão, medo, apreensão e, principalmente, pelo imaginário evocado diante do desconhecido.

Por outro lado, considerações documentais, por exemplo, sobre as condições

climáticas e meteorológicas do tempo, que apareceriam com naturalidade no diário, pois são

dados de referência, acontecem no romance, e de forma, inclusive, na concepção de Lukács,

histórica  porque

(o) romance representa a máxima expressão artística de uma época [no nosso
caso, retratada em uma viagem], mostra as contradições [forma velada no
diário devido à natureza política da excursão] da sociedade sem tentar
soluções conciliatórias arbitrárias [no diário essa solução arbitrária é o
silêncio] – quando penetra na essência das relações burguesas e revela seu
caráter histórico [lembremos o quadro “A liberdade guiando o povo” de
Eugène de La Croix], em outras palavras, quando é [romance] realista
(LUKÁCS apud ANTUNES, 1998, p. 196).

E, na interpretação de Antunes,

(r)omance realista para Lukács, é aquele que, através da representação de


uma ação imaginária, capta as leis sociais fundamentais de uma dada época
histórica, independentemente de seu estilo ser realista ou fantástico
(ANTUNES, 1998, p. 196).

Diante desse quadro, com o qual dialogam as considerações de Antônio Cândido e

Durand, assinaladas neste trabalho, não podemos desacreditar a valia dos dados sócio-
228
culturais referendados pelo romance. Entre os tais, destacamos uma passagem do Natal n’A

Amazônia misteriosa: “Japins do extremo norte, guaxes do sul e xexéus do nordeste é tudo

uma única e mesma coisa, e ambos teriam razão se não quisessem que fossem pássaros

diferentes” (CRULS, 1958, p. 10).

Claro que a motivação para a conversa aqui relatada pelo nosso narrador-testemunha,

foi estimulada pelas doses que ele próprio (narrador) distribuía. Conquanto, é de igual modo

conhecido esse artifício como estímulo aos remeiros das canoas (índios ou não) para deixar

atrás braças e mais braças do rio. Isto, ao que sentimos, é mais real no romance que no diário.

4.5.3 O lar e o Natal:

Desde quando ainda no berço da civilização, o homem pára para pensar ou não pensar

em algum lugar. O recostar da cabeça em algum tronco, pedra ou travesseiro comumente

retorna o bem-estar trazido não pelo apoio físico do corpo e sim pela sensação de descanso

que o homem, a partir do degredo, tem necessidade de experimentar. O mito bíblico descreve

um homem em comunhão com ele mesmo e a Natureza até determinado dia. Como não tinha

conhecimento o homem não avaliava nem a presença nem a não-presença das coisas que

satisfaziam a sua alma e o seu espírito. Conquistando a ciência do saber, o homem aprendeu

que quanto mais se sabe mais se há para saber. O conhecimento constitui-se, pois, rotina

necessária para a valorização do nosso tempo geralmente muito curto por mais extenso que

seja. Por causa disso, até entre os chamados bárbaros o lar tinha um estatuto que já ali o

simbolizava como o lugar de descanso, de segurança, de refúgio da intimidade não

conveniente à exposição pública. O livro Porcos, vacas e bruxas: os enigmas da cultura, de

Morris West, é um belo vestido textual dos muitos lares que existem ou já existiram no

mundo. Descreve cenas do cotidiano de grupos e sociedades anacrônicas e modernas que têm

em comum o já mencionado estatuto de lar. Vencido o sentido de ser nômade; e criadas as

229
condições estamentais de sustentação das famílias, entre as quais destaca-se o monoteísmo, o

dia de Natal é o marco histórico de um acontecimento que dividiu o mundo ocidental em dois

tempos: o mundo no tempo antes de Cristo e o mundo no tempo depois de Cristo. A

instituição do catolicismo no século V depois de Cristo cria o dia de Natal para símbolo da

instauração de um novo tempo. O tempo da família e do estado sob a “benção” do clero. Hoje,

afastados dos motivos iniciais, o lar é ainda motivo de valorização da idéia de lugar íntimo,

familiar; e o Natal, motivo de “guarida” e continuidade desse lar, cuja celebração a todo 25 de

dezembro é o ornamento mais vigoroso da tradição ocidental.

A propósito, no entrecho do dia 25-XII-191... n’A Amazônia misteriosa, imagina-se

um dia de Natal experimentado por homens isolados do mundo. O isolamento, além de fato na

diegese, revela-se um corredor para um pensar lá atrás, um viajar no tempo que faz o

narrador-personagem rememorar “os versos do poeta: Home! Sweet home!” (CRULS, 1958,

p. 9).

Deveras! Ele não apenas rememora esses versos, mas, aí, e nessa ocasião – envolta por

uma situacionalidade criada pelo se pensar “em plena selva amazônica” – o narrador-

personagem chega a compreender os versos que tantas vezes lera e ouvira. Será, quem sabe,

esse mosto de saudade e de lonjura, que o fará levantar-se para tomar uma dose de realidade,

isto é, fazer alguma coisa em vez de voltar no tempo. Assim é, que, entre definhar-se no

saudosismo de outros Natais e o carpe diem daquele seu dia de Natal, o narrador representado

prefere levantar-se, aproveitar a manhã, aproveitar a tarde – seja fazendo coisas, seja

prestando atenção a uma discussão entre o João cearense e o Galdino que disputavam a razão

sobre o nome de uma certa espécie de pássaros.

Tal disputa, relatada no romance, desvela a quantas pode andar o nonsense a respeito

das dimensões espaciais, especialmente, quando esse espaço geográfico é um país de porte

continental, como o Brasil. No exaspero da disputa, um queria que os pássaros observados

230
fossem xexéus – como são conhecidos no Nordeste, e o outro queria que fossem japins –

como são conhecidos na Amazônia. Estes mesmos pássaros são conhecidos no Centro-Sul

brasileiro por guaxes, e será por isso, que o observador da discussão concluirá que “ambos

teriam razão se não quisessem que fossem pássaros diferentes” (CRULS, 1958, p. 10).

Aliás, supondo que tivéssemos de optar por dar razão a um ou outro, seguindo o

princípio da coerência quanto ao lugar, o Galdino ficaria com a razão. Conquanto, a lição que

fica dessa passagem pontua a necessidade de se conhecer o chão que se pisa e também o que

está ao redor: um redor só delimitado pelas fronteiras que, por particularidades históricas, são

traçadas não pelos equipamentos topográficos, mas pelo grau de consciência de um povo.

Já na aventura contada pelo diário, no dia “25 de dezembro” da A Amazônia que eu vi,

a lembrança de Natais vividos, (trans)significados – para compor um romance idealizado na

selva tropical brasileira – reaparece, nesse diário, sob a forma do Natal imaginado no

romance. Na experienciação real, aquele Natal de 1928 passou como um dia qualquer. No

entanto, devido às sanções de algumas valias ostentadas pela tradição, sanções estas, que,

ainda que mudas, muito tocam os sentimentos humanos  há um quê de frustração no ar,

quando o escritor repete a pergunta que faz a si mesmo: “Como se poderá passar um dia de

Natal isolado do mundo, em plena selva amazônica?” (CRULS, 1973, p. 147). A resposta não

deixará de traduzir um certo amargor:

25 de dezembro. [...]  Agora, eu já posso responder. Passa-se como se


fosse um dia igual aos outros, viajando de manhã à noite, sempre em luta
com as cachoeiras e os bancos-d’água, preocupado cada vez mais com a
canoa e também para que não nos venha faltar o alimento (CRULS, 1973, p.
147, grifos do autor).

Aí, o efeito do isolamento, preenchido pelo romance através da recriação de um

presépio de Natal. No Natal de A Amazônia misteriosa não faltaram as flores (apesar de serem

de algodoeiro bravo) nem alguma imagem para santificar aquele dia: o Pacatuba, catequisado,

231
apresentou a imagem sacrossanta de Nossa Senhora da Conceição. Tudo, enfim, como manda

o figurino de católicos mantenedores do rito. Também a tradição de se comer algo diferente 53

no dia de Natal e de se embriagar não foi esquecida. É claro que não poderia faltar a

discussão, a briga – por conta do excesso da ingestão alcoólica e para fazer jus ao estigma do

“pão e circo”, herdado da orientação romana.

Vimos então que o isolamento, o silêncio, o vazio das instâncias discursivas  são

sempre preenchidos pelo romancista. Esse preenchimento está ausente no diário. Comporta-se

como uma lacuna, uma folha em branco. Na verdade, não só lacuna da narrativa, mas também

contêiner daquilo que, em documento, ou não se quer contar, ou não se concebe como

adequado ao gênero. Todavia, a seiva da literariedade responsável pela composição da

matéria de preenchimento não está de todo ausente do diário. Pelo menos, não do diário de

Cruls: sempre que o escritor se acha sem o que falar, reescreve A Amazônia misteriosa.

Nisso entendemos, que através do processo de não-preenchimento a arte, antecipando

palavras da próxima citação, “repercute e atua” no próprio criador e leitor primeiro de sua

obra, oferecendo à literatura e à história motivos para a verificação do fato, para o sonho e

para a imaginação. Na passagem do dia de Natal d’A Amazônia que eu vi, lugar e dia em que

o escritor esteve, Cruls expressa a lembrança que tem sobre o dia de Natal alguns anos antes e

em tempo e paisagem imaginários. Como se vê,

(n)ão convém separar a repercussão da obra de sua feitura, pois,


sociologicamente ao menos, ela só está acabada no momento em que
repercute e atua, porque, sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de
comunicação inter-humana (CÂNDIDO, 1967, p. 25).

Aquele momento do Natal, numa Amazônia de mentirinha, realizou-se no Natal de

verdade e na Amazônia real. Não necessariamente para o criador de A Amazônia misteriosa,

mas sobremaneira especial para o leitor da ficção que neste caso (em particular) é também o

53
Entenda-se por esse algo diferente a ceia de Natal.

232
autor. Vemos a saudade do lar no entrecho de A Amazônia que eu vi, ainda mais viva que na

expressão Home! Sweet home! do entrecho romanesco. Neste, fugiu-se ao gosto de sentir

saudade: levantou-se, aproveitou-se a manhã, embriagou-se aos colegas à tarde e apartou-se-

lhes à noite. Nitidamente, a descrição se pauta em experiências de outros Natais. Natais esses

que transmigraram para o universo daquela narrativa do romance, a qual, oportunamente,

pode-se reportar Lukács, quando afirma que

(a) representação artística de uma ação é o único meio para expressar, em


imagens sensíveis, a substância intrínseca do ser social numa dada fase de
seu desenvolvimento histórico (LUKÁCS apud ANTUNES, 1988, p. 188),

 contrapondo-se à preocupação, muito característica dos seres humanos, frente às

adversidades da vida. No nosso diário, frente ao prenúncio das dificuldades que os próximos

dias reservavam. De fato, no romance o artista tece uma rede de fruição, apegando-se a um

estilo próprio, às metáforas. Enfim, a imagens que lhe permitam sentir o ambiente. Enquanto

que no diário, as linhas parecem trêmulas e, por vezes, vazias, com uma certa tensão e

ansiedade estruturais não preenchidas.

Nesse sentido, a narrativa de ficção nos dá conta de um relato de situações prováveis

(naquelas circunstâncias dominadas pelo narrador que conta a história). Por sua vez, a

narrativa do diário nos dá conta de uma situação que domina o envolvido. Dominado, ele não

pode olhar à sua volta e sentir o ambiente: deixa-se levar pelo pensar “de coração nas mãos”

(CRULS, 1973, p. 147) no vazio do dia seguinte.

...

4.5.4 Experiência:

Bordão do mundo do trabalho, a experiência carrega o semantismo do melhor fazer,

desde os tempos da herança de ofício, do filho ao pai. Em “31-XII-191...” n’A Amazônia

misteriosa, “Depois de percorrido um largo trecho de barrancos e talhadões” (CRULS, 1958,


233
p. 14), era natural que tivessem mesmo de parar e efetuar eventuais reparos na canoa. Além

do mais, não há braço que agüente as manobras a que estão presos os remeiros, mercê dos

rebojos e correntezas – peculiares aos leitos entre “barrancos e talhadões” – sem ter onde

abicar. Entre outras providências, a experiência manda parar à enseada da praia e descansar.

Consorte54, não havia mesmo outro jeito, pois a igarité 55 já começava a encher de água. E isso,

ao lado de ser um perigo, foi também providencial: era véspera de Ano Novo.

Ademais, se na A Amazônia misteriosa eles estavam labutando com o rio, não lhes

será indiferente a experiência no diário de A Amazônia que eu vi. Troque-se, por sinal, só o

dia 31 de dezembro, no romance, pelo dia 01 de janeiro, no diário, o “1 de janeiro (1929)”

n’A Amazônia que eu vi. Fica, no entanto, o trocadilho de que, em um, fecha-se o ano em

labuta; e, no outro, inicia-se. Sobre isso, os oráculos poderiam dizer muitas coisas, e nós, se

pegássemos carona nelas, descobriríamos outras paragens. Para evitá-las, por agora, convém

nos atermos ao vínculo com a experiência. Mais uma vez ela dita: se a verruma está rachada é

bom que seja manuseada com carinho. Como se fossem uma progressão dos acontecimentos

do romance, ou uma digressão dos acontecimentos do diário, as imagens da canoa avariada,

da necessidade premente dos reparos e da prática do calafeto, são alguns ícones do motivo

experiência.

Coincidência ou não, é interessante como a criação artística na verdade não inventa do

nada. Por mais desconexa que pareça, entendemos que coisa alguma pode não-ser reflexo do

não-visto ou do não-sentido. A ficção baseia-se na experiência e opta por centrar-se nela, ficar

aquém ou ir além.

Com efeito, o romance delineia-se por esses três pontos em segmento discursivo. Por

sua vez, o diário mantém-se fixo na experiência in continuum; ou seja, não se narra uma

história, narram-se acontecimentos. Assim temos que: acontecimentos são contidos pela

54
Palavra empregada com o sentido irônico de estar com sorte.
55
Canoinha.

234
história, logo, o romance, que narra uma história, é (arriscamos) um relato mais compacto do

acontecimento (embora acontecimento ficcional).

O problema é que o relato no romance é imaginário e descompromissado com o

fornecimento de matéria exata para a constatação ou aferição. Isso, entretanto, não significa

que essa matéria exata não esteja lá – embaralhada no engendramento das estruturas

narrativas:

Na visão estética de Lukács, as características formais do romance, tais como a


composição, a caracterização das personagens, a narração, a organização temporal e
espacial, a estruturação do enredo, a articulação dos conflitos, etc., não são
estruturas dadas a priori, isentas de história (ANTUNES, 1998, p. 200).

Poderíamos até dizer, e sem medo de errar, que a providência calafetar (ilusória e

imaginada, no romance) realiza-se no acontecimento avaria (real, no diário). Assim

chegamos novamente a um ponto de contato: em algum lugar, ciência e fantasia se

concretizam. E a extasia desse encontro, fincada no imaginário, irradia-se para texturizar a

natureza da arte – em essência, atemporal. A propósito, Lukács, ao abordar uma visão estética

da natureza da arte,

[...] pretende, com sua formulação, explicar a experiência artística nos


termos de uma autonomia relativa [e isso nos leva ao contato entre a história
e a ficção], a fim de evitar uma abordagem mecanicista das relações entre
estrutura [o texto em arranjos e combinações morfossintáticas] e
superestrutura [o conteúdo em planos de sentido, significado e
interpretação], que não daria conta da permanência da obra de arte além da
época em que apareceu (ANTUNES, 1998, p. 200).

4.5.5 As diferenças:

As divergências entre forças do ambiente histórico com repercussão acelerada no

socialmente condicionado, mediadas pelo consolo só encontrado na experimentação da arte

como forma de eufemização do real e da busca de nosso anti-destino, são absorvidas pelo

texto, histórico ou de ficção. São diferenças que, de acordo com as especificidades do gênero,

serão (re)interpretadas.

235
Afinal, “Que nos trará de bom o ano novo?” (CRULS, 1958, p. 14). A referência à

Primeira Grande Guerra Mundial, combinada com a lembrança dos versos não-rememorados

de Lord Byron, nos dão um importante indício da provável unidade que falta em “1-I-191...”

de A Amazônia misteriosa; pois, sabendo que a Guerra durou de 1914 a 1918, e levando em

conta a expressão “ainda perdurará” e o verbo “ensangüentou”, a unidade mais provável é o

número (9).

Em causa aí, está uma expressão que medeia as expressões destacadas acima: estamos

falando do conteúdo ideológico intrínseco (fomento de ideologias separatistas radicais 56), mas

imanente em “o sopro” da pergunta  “Ainda perdurará pela Europa o sopro de loucura que

ensangüentou os países mais civilizados?” (CRULS, 1958, p. 14).

Para Lukács,

(é) preciso demonstrar a ligação entre a obra e seu ambiente histórico


originário e, ao mesmo tempo, explicar a sobrevivência dos valores artísticos
no processo histórico. Trata-se, em suma, de projetar uma solução
materialista que refute a exaltação romântica do fato artístico como mística
atemporalidade (ANTUNES, 1998, p. 200).

Consideramos que essa sanção, consoante a valores de mais-valia, para a apreciação

da história e da literatura, em qualquer que seja o tempo, se cumpre bem em nossa análise e,

com Antônio Cândido, reiteramos:

Portanto, a criação literária corresponde a certas necessidades de


representação do mundo, às vezes como preâmbulo a uma práxis
socialmente condicionada. Mas isso só se torna possível graças a uma
redução ao gratuito, ao teoricamente incondicionada, que dá ingresso ao
mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na
medida em que suscita uma visão do mundo (CÂNDIDO, 1967, p. 65, grifos
nossos).

Pensando nessa dialética capaz de intermediar a linha entre a ilusão e algo empenhado,

recordemos: No primeiro dia do ano de 1929, “iniciamos o ano em luta com um rio”. Dez

56
Essas ideologias constituíram o chamado nazifascismo durante o período de preparação e combates da 2ª
Guerra Mundial.

236
anos antes, no mesmo dia, (pelos nossos cálculos) “fizemos pouso numa ilhota”. Situando as

narrativas em um olhar que se queira onipresente em ambas as dimensões: de sincronia na A

Amazônia que eu vi e de diacronia na A Amazônia misteriosa, teremos um quadro comum e

iterativo:

Uma paisagem é animada. Põe-se viva a cada movimento da embarcação. À orilha do

rio e nos adendos da ilha furtivam-se os casebres sobre toras. O rio faz o arresto das canoas e

homens, vez por outra, surpreendidos por precoces curumins a singrar as águas do rio como se

fossem peixes. A maresia despertada pelo comboio, as casquinhas de noz, os ingás, o barulho

dos pássaros, dos macacos, da água... Há vida na mata! E a sincronia dos movimentos lembra,

no fato e na ficção, o mito velho de uma criatura meio-gente e meio-peixe.

De fato, para Hutcheon

(a) história volta a ser uma questão [e hoje em dia ainda mais fortemente]
problemática, inevitavelmente vinculada ao conjunto de pressupostos
culturais e sociais contestados que também condicionam nossas noções sobre
a arte e a teoria atuais; nossas crenças [cremos em mitos?] em origens e
finais, unidade e totalização, lógica e razão, consciência e natureza humana,
progresso e destino, representação e verdade, sem falar nas noções de
causalidade e homogeneidade temporal, linearidade e continuidade
(HUTCHEON, 1991, p. 120).

Nesse ínterim, enquanto o narrador que conta a história d’A Amazônia misteriosa

especulava sobre a “civilização” em guerra e enternecia-se com a animação da Natureza,

como na cena acima descrita; na página 7 d’A Amazônia que eu vi Cruls nos dá a bela quadra

de Alberto Rangel:

Tem o olhar de quem se vinga

Do lago a pupila insana,

Com sobrancelha de aninga

E cílios de canarana.

237
da qual os versos musicados57 na voz de Silvino Santos (cineasta pioneiro das selvas

amazônicas) são contemporâneos:

É tão linda a fiandeira

Na roca sempre a fiar,

Sempre da mesma maneira

Os inimigos punha a enrolar.

Ai quem me dera esse linho

E os seus vizinhos prestar

E me cortas bem curtinho


...........................................
Silvino Santos (A fiandeira)

bem como o ritual de percussão Auê... Auê... Auê... Pa... Auê... Auê... Auê... Pa... Auê... Auê...

Auê... Pa... Auê... Auê... Auê... Pa...(CRULS, 1958, p. 30) muito comum nos encontros entre

índios e brancos, e descrito n’A Amazônia misteriosa como uma “melopéia” (CRULS, 1958,

p. 31). Vê-se que história e ficção se encontram e viram poesia, música e ritual. E mesmo

quando se espalham no terreno escorregadio das concepções e descrições; como por exemplo,

o pensar um arapari como arbusto em A Amazônia misteriosa e constatá-lo uma árvore em A

Amazônia que eu vi (CRULS, 1973, p. 24) – têm ainda um ponto comum: a mesma pedra que

espraia as águas quando atirada nelas. Mesmo porque, não há uma diferença gritante de

arbusto para árvore. Há, no mínimo, contatos genealógicos e etimológicos. Na súmula fica a

lição de não se divergir com as diferenças, mas de apreciá-las, experimentá-las numa práxis

interativa e fazer uma história na qual a literatura, mais que consolo e eufemização do real,

seja a representação, em verso ou prosa, de uma sociedade plena da sensibilidade artística e,

nesse contexto, cada vez mais humana.

4.5.6 O Fabulário:

57
CD O cineasta da selva. São Paulo, 1997.

238
Nível discursivo da ciência e da fantasia e preâmbulo às nossas considerações finais, o

fabulário é a grande matriz da urdidura do texto, seja texto de narrativa fantástica, como é o

caso da A Amazônia misteriosa, seja texto de uma narrativa não estilística como se propõe,

segundo alguns, a narrativa de diário. No caso do diário de A Amazônia que eu vi, não se pode

dizer que seja uma narrativa absolutamente não estilística e isso devido a diversos motivos.

Entre eles vale a pena citar: o intercâmbio com as passagens d’A Amazônia misteriosa e a

correspondência com outros veios estilísticos, como algumas pistas de Os sertões de Euclides

da Cunha. Em favor da informação de cunho jornalístico, destaque para o conhecimento

histórico amplo e a presença do escritor que, de próprio punho, a tudo registrava.

Quando o protagonista se pergunta de algum lugar, quem sabe se não espremido no

único algarismo romano, da data de “1-I-191...” na A Amazônia misteriosa: “Que nos trará de

bom o ano novo?” (CRULS, 1958, p. 14), ele sai da diegese para dialogar com uma história e

uma literatura que lhe vêm à tona pelo teor da pergunta. Interessante que, nesse caso, história

e literatura aparecem juntas, literalmente de mãos dadas ao combinarem lembranças da

Primeira Grande Guerra Mundial e os “belos versos de Byron, na sua Oração à Natureza”

(CRULS, 1958, p. 14). Ademais, não por acaso história e ficção estão sujeitas aos eventos da

Natureza  e isto, aquele observador de paisagens tão gigantes, tão densas, podia sentir tão

perto naquele momento de reflexão. Apesar de ser essa reflexão conteúdo de um romance, o

intercâmbio do real diegético com uma realidade externa à realidade que se conta, parece

mesmo capaz de provocar aquela sensação de mistura das realidades (ficcional e histórica),

como o que acontece no episódio do envenenamento em Madame Bovary de Flaubert

(conforme notas do próprio Flaubert).

Seja como for, quem estava na guerra tinha medo de morrer ou de ficar louco. Por

outro lado, quem estava lá, na floresta, tinha, naturalmente, medo dos índios, dos selvagens –

enfim, do inesperado (como na guerra) e do desconhecido.

239
Não à toa, portanto, alguns dias depois, os companheiros de aventura, pel’A Amazônia

misteriosa, partem. E aqui fica o último posto de troca, de encontro – entre a história e a

ficção. A continuidade da história, que bem poderia ser a do romance, é marcada pelo diário

de A Amazônia que eu vi. Nele, a vontade de ir para casa, o medo dos índios e do fabulário

indígena e, como se não bastasse, uma viagem de canoa em plena escuridão da noite 

faziam pensar que a “todos estaria fadado ir conhecer o pajé do fundo [do rio], o Sacaca”

(CRULS, 1973, p. 160), segundo a lenda. Porquanto, que alívio quando,

11 de janeiro. [...]  Quase às dezenove horas, já em águas do Amazonas,


bate-me fortemente o coração, quando vejo, a certa distância, um pontilhado
de luzes, que nascem à beira d’água e sobem tremulando pela encosta. É
Óbidos, a cidade que ainda há quatro meses me parecia tão humilde e
pequenina e agora avulta aos meus olhos como um grande centro de
civilização (CRULS, 1973, p. 160).

4.6 Epílogo

Hutcheon (1991, p. 126) escreve que conforme Paul Ricoeur (1984a, p. 162)

demonstrou, é a “redação” da história que é de fato componente da “forma” histórica de

compreensão. São, conclui Hutcheon, as aplicações “explicativas” e “narrativas” que a

“historiografia” dá aos acontecimentos passados que constroem aquilo que consideramos

“fatos históricos”. Continuando, Hutcheon reconhece na “identidade” de construção, de

ordenação e seleção literárias atos historicamente determinados. Este processo é o que

Hutcheon chama de “metaficção historiográfica”:

Muitas vezes ela pode encenar a natureza problemática da relação entre a


redação da história e a narrativização e, portanto, entre a redação e a
ficcionalização (HUTCHEON, 1991, p. 126, grifos nossos).

Nas pistas desse território problemático, de incurso ora da redação, ora da

narrativização – em A Amazônia misteriosa, no capítulo sobre as Amazonas temos:

240
 Los fundamentos que ay para assegurar la
Provincia de las Amazonas en este río, son
tantos y tan fuertes que seria faltar a la fée
humana el no darles crédito.

Padre Cristóbal de Acuña


(CRULS, 1958, p. 57).

Não obstante, e já não se tratará de uma questão de fé, mas de acontecimento, Cruls

narra em A Amazônia que eu vi:

14 de setembro. [...]  Não devemos andar longe do Reino das Amazonas,


pois foi à foz desse último rio [o rio Trombetas – um dos grandes braços do
Amazonas] que as lendárias guerreiras atacaram a Orellana e os de sua
comitiva: “Aqui dimos de golpe em la buena tierra y señorio de lãs
Amazonas”, diz Frei Gaspar de Carvajal, o cronista da viagem, que
conheceu de perto a força das nossas icamiabas, recebendo na ilharga um
valente flechaço (1973, p. 6).

E, mais de dois meses depois:

26 de novembro. [...]  Agora, que já vamos por zona inexplorada, por


vezes eu me pergunto:  E se a uma curva do rio fôssemos aprisionados por
uma daquelas tribos que guardavam o País das Amazonas e de novo eu me
visse levado à presença do Prof. Hartmann? Mas qual! O Reino das Pedras-
Verdes já hoje não me interessaria mais. Rosina norreu; Malila, operada pelo
sábio alemão deve ter esquecido o francês; o Pacatuba, desta vez, não me
quis acompanhar... Aliás, até ao Prof. Hartmann deve ter acontecido
qualquer ocorrência insólita. Se nunca mais se falou nele... Só uma coisa eu
gostaria de ver se pudesse tornar à minha Amazônia Misteriosa: era a figura
do homínido, apenas uma criancinha quando lá estive e agora, caso ainda
viva, já um rapazote de quatorze para quinze anos (CRULS, 1973, p. 113).

Cruls aprecia que, real ou fictícia, a existência remota da ginocracia58 das Amazonas,

aparece (re)significada na zona onde se encontram os famosos amuletos – os muiraquitãs –

que serviam de insígnia à mesma tribo e que têm motivado “quantas controvérsias”.

Interessante que essa (re)significação não vem sem história ou outras visitas literárias; basta

darmos uma certa atenção aos nomes próprios presentes nos parte-textos acima e veremos

repetirem-se nas lendas, na crônica de Carvajal e, anteriormente, n’A Amazônia misteriosa, o

58
O mítico e lendário Reino das Amazonas teria durado enquanto durou a mística Era das rãs.

241
cenário de encontro entre representações de força da civilização e representações de força da

Natureza.

Para essas representações, o fato histórico ou matéria do imaginário, na verdade, (e

nesse caso) forma-se da irrupção do mito: as mulheres guerreiras; e da irrupção da lenda: as

amazonas desaparecem tragicamente. Com efeito, ficam as pedras-verdes – que lhes valiam

símbolo de poder e proteção sobrenaturais. Assim, tanto para a narrativa do romance quanto

para a narrativa do diário o campo é o mesmo: o ethos amazônico que mais uma vez virá por

meio de alguma confirmação ou eco do passado, como no que abaixo transcrevemos:

14 de setembro. [...]  Ainda em Belém, confirmou-me essa asserção o Dr.


Carlos Estevão de Oliveira, autor de memória ainda inédita (grifos nossos) sobre o
mesmo tema e em mãos de quem (com que inveja o escrevo!) pude admirar dois dos
mais belos muiraquitãs que já tenho visto. São eles duas peças zoomórficas, ambas
representando rãs, abertas no mais puro jade, e em tudo iguais a uma que é
reproduzida nas páginas de Barbosa Rodrigues e eu aproveitei para ilustrar a capa de
minha Amazônia Misteriosa, nas suas primeiras edições (CRULS, 1973, p. 6).

O próprio testemunho do autor nos dá aqui conta de mais um ponto de contato entre a

história e a ficção. A crendice e a fé fazem tão parte da história quanto da ficção. Em alguns

casos, mais na história. Basta lembrarmos as grandes guerras. Em qual delas não se conta ou

não se sabe de ideários e exemplos fictícios consumados enquanto fatos históricos?

Reportemos um exemplo clássico: o povo foi movido pelos ideais de liberdade, reagiu

a um estado de tirania dominado pelo clero e pela nobreza; enfim, irrompeu na forma de luta

ao lado da burguesia. É a “Revolução Francesa”. E o ano é 1789. O povo venceu? A

burguesia venceu e passou a portar-se como o novo tirano. Será preciso nova tirania para

buscar os ideais que insuflaram a Revolução e foram enterrados sob os corpos de milhares de

camponeses que tombaram em favor de uma ilusão. Então esse mimetismo tirânico será

empenhado por Napoleão Bonaparte dez anos depois do marco revolucionário.

242
Com efeito, Bonaparte faz cumprir aos camponeses o fado da Revolução. Porém, o

tempo já era outro; e o retrato de A liberdade guiando o povo não comportava a figura de um

tirano. Os camponeses não queriam mais ser camponeses. Queriam agora ser burgueses.

De fato, o idealista tornou-se tirano e imperador ao modo romano, quedou e foi

exilado. Mas não a sua história: o mito e a lenda, o cavalo e o chapéu de Napoleão ou do

Bonapartismo continuam re-contando (hoje aquela parte de) a história.

Em A Amazônia que eu vi, temos um diário que nos conta (ou re-conta as aventuras

d’A Amazônia misteriosa) sobre quatro meses de aventura pela selva amazônica brasileira.

Uma aventura de reconhecimento daquele território, que começa a partir da cidade de Óbidos-

(PA) e termina de volta a Óbidos. Um caminho de “subida e descida” do rio: mesmo

segmento imaginário em A Amazônia misteriosa.

Aqui aportamos em nosso último ponto de contato entre a história e a ficção. A

expedição, no diário, chega a Óbidos, parte e retorna. No romance, a narrativa está em

viagem. Aliás, como a própria viagem, viajando. E se não tem um lugar de partida e chegada,

tem o mesmo veículo que o diário: o rio o mitoa lenda a história dos viajantes dos

historiadores dos visionários.

Se n’A Amazônia misteriosa não há uma Óbidos que se estende como uma

fantasmagoria (humilde e pequenina na partida) – mas que agora (na chegada de volta)

“avulta aos meus olhos como um grande centro de civilização” (CRULS, 1973, p. 160), não

há, por sua hora e vez, na A Amazônia que eu vi, a confissão bastante possível na realidade:

 Beije seu Doutor... Pode beijar! Não se agonie por minha causa...  E
ajudando-me a manter o rosto da morta, com os olhos também amarados
pelo pranto, o Pacatuba concluiu:  E seu Doutor pensava então que eu não
sabia? Sabia de tudo... Paixão de amor não se esconde... É como o mel de
pau lá do nosso agreste, mesmo metido no oco das árvores, ele está
cheirando de longe (CRULS, 1958, p. 170).

243
Assim, no diário avulta a visão. No romance, o sentimento. E ambos avultam na

descida do rio, em A Amazônia que eu vi (p. 137); e em rio abaixo n’ A Amazônia misteriosa

(p. 165). Retire-se o drama do romance, e teremos um diário de viagens ficcional muito

próximo do documento. Insira-se o mesmo drama no diário (suposto documento), e teremos

um romance. E quem pode duvidar que histórias de amor não aconteceram na expedição do

General Rondon? Se de um lado o imaginário produz um acontecimento que suscita a

expiação da culpa – posto que o acontecimento denunciado no olhar não fora verbalmente

manifesto – de outro, introduz uma materialização do acaso. Aquele romance da personagem

Rosina com a personagem Seu Doutor vinha sendo mantido no acaso, estava encarcerado na

ação de não-dizer  daí a sensação de que nem tudo foi dito e de que havia tanto a se dizer.

Não se estranhe, então, as conseqüências dessa fatalidade, como o choro, o pranto e, às vezes,

a vontade de morrer também.

Portanto, com Hutcheon, viramos a página para rediscutir a história, sabendo que

(a) metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso


comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção. Ela recusa a visão de
que apenas a história tem uma pretensão à verdade, por meio da afirmação
de que tanto a história como a ficção [ou A Amazônia que eu vi e A
Amazônia misteriosa] são discursos, constructos humanos, sistemas de
significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal
evidência de verdade (HUTCHEON, 1991, p. 127).

Parece-nos, mesmo, que os princípios da teoria histórica não estão muito distantes do

senso comum. Por sua vez, o senso comum é constantemente (re)modalizado pelo imaginário

de cada tempo histórico. Nesse sentido, os estudos que fizemos, segundo algumas teorias da

antropologia do imaginário, nos permitem colocar problemas sobre os quais, talvez, a tradição

literária não se debruça com muito interesse. Tanto no romance como no diário de Cruls,

estamos diante de uma representação, conforme palavras de Durand, que

244
(p)õe em evidência o processo esquemático da expressão e manifesta a
passagem da projeção imaginária à expressão estilística. A figura expressiva,
e especialmente a figura de retórica, é a redução a uma simples sintaxe desta
inspiração fantástica profunda, na qual o semantismo se despoja pouco a
pouco do conteúdo vivido que o anima, para se reduzir progressivamente a
um puro processo semiológico e, no limite, formal (DURAND, 2001, p.
420).

Essas estruturas, por aspectos de romance ou por aspectos de diário, comunicam

mundos que se encontram no papel e no real. A diferença é que, uma vez no papel, estes

mundos com tudo o que podem fazer, para o bem ou para o mal, preenchem uma estrutura,

por natureza, eufêmica  já que nenhum acontecimento de papel pode nutrir sensações, pelo

menos, não à mesma proporção do aqui-agora do vivido, e cujos detalhes serão relativos à

vista do senso comum. Logo, temos nessa relatividade a busca por uma verdade entre o fato e

a versão pelo lado da história; e a composição de um certo equilíbrio entre o fato e a fantasia,

pelo lado da literatura.

Todavia, a classificação empreendida pelo discípulo de Bachelard é um tanto estática e

esquemática. Ao mesmo tempo, porém, flui como uma leitura poética do denso material

imaginativo que apresenta, sobretudo de sonhos e mitos. Esse material, n’A Amazônia

misteriosa e nA Amazônia que eu vi, revela-se um continente de motivos e temas  ora para

o registro histórico, ora para deglutir a inspiração.

Durand (2001), na sua “fantástica transcendental”, vai além da história, enquanto

“hipotipose” do passado, e da extasia, enquanto “hipotipose” da arte. Esses movimentos,

oriundos de esquemas freudianos e sociológicos, e de cunho histórico ou lingüístico, são

transpostos pelos arquétipos de Durand, na medida em que estes lhes são anteriores e

caminham para além deles.

Desse modo, anotamos que o espaço na A Amazônia misteriosa e na A Amazônia que

eu vi, é o lugar de encontro entre a civilização e a Natureza, entre homens de etnias diferentes

 um eclipse do dia e da noite, como forma de um fantástico que exerce sua supremacia

245
sobre a duração do tempo. Uma duração de eufemismo fantástico no romance, e de

disfemismo no diário, se comparada à simbologia da duração no romance.

Entretanto, desse encontro ou embate entre regimes (supostamente opostos), pensamos

que a virtude humana sobressai-se enquanto essência do não-carecer perguntas e respostas:

um existir do símplice. De um ser espontâneo e sensível aos acontecimentos, cuja harmonia

aflora, preenche o espaço e mobiliza o ambiente  pois que a fantasia é o sonho que dialoga

com o mito, com a lenda e os ancestrais, abrindo caminho para a transcendência e, pela arte e

pela história, para a negação do absurdo e a (re)animação da esperança.

Finalmente, reafirmamos as palavras de Cândido (1967, p. 51), dizendo que “No

homem de hoje, perduram lado a lado o mágico e o lógico”. Isto é, a ciência e a fantasia 

marcas d’água da dualidade na arte de fazer: Literatura e História, por Gastão Luis Cruls.

Realmente, Cruls no diário A Amazônia que eu vi fantasia:

17 de setembro. [...]  Já ao escurecer, passam bandos de papagaios e


curicas sobre as nossas cabeças. Recolhem-se, certamente, aos ninhos,
depois de um dia bem aproveitado na visita às fruteiras prediletas.
Pouco depois, num céu muito azul e ponteado de estrelas, surge o novilúnio
 um crescente luminoso e branco abrochando o seio da noite. (CRULS,
1973, p. 15).

E, no romance A Amazônia misteriosa documenta:

De pé, sobre o banco da proa, Malila empunhava um longo arpão e, alerta


aos mais leves movimentos da superfície líquida, boquejava-me baixinho o
nome dos peixes, que, dentro em pouco, estariam cravados na sua fisga: 
Pirarucu... Peixe-boi... Tucunaré... Tambaqui... Pirapitinga... (CRULS, 1958,
p. 145).

Acreditamos, pois, que assim como o artista apura a arte de criar a cada criação,

também o historiador devia apurar o fato a cada história. Por este prisma, parece-nos que a

metaficção ou a revisão historiográfica deviam ser lindes de natureza simples, principalmente,

246
se considerarmos que a recorrência é marca comum às linhas de pensamento modernas – seja

na literatura de ficção, seja na literatura científica (incluindo-se aí, a história).

Está escrito. Uma escrita que se repete, seja para criar, seja para registrar, corrigir ou

questionar o senso comum. Uma escrita de história (representação da civilização) ou uma

escrita de ficção (representação da Natureza);  ambas, artes (representações do

utiludismo59) de humanização do homem, e campos do imaginário universal.

“Romance”, “Diário de viagem”: A Amazônia misteriosa e A Amazônia que eu vi são

panorâmicas que se completam. Em suas narrativas, as cores60 são ícones de confirmação dos

ritos e, a ausência de som, o som do silêncio. As reentrâncias dos gêneros nos gêneros, o jogo

de cena entre vogais e consoantes, entre unidades sêmicas e fêmicas: Harmonia? Desarmonia?

Ambas fazem parte da arte de criar literatura. Constituem a inarmonia – um ritmo no ritmo –

estilo que enfatiza o efeito de sentido e privilegia a estética da recepção.

Como transcendente metáfora da arte, vimos a estética crulsiana exprimir um

intertexto que faz realidade e fantasia se comunicarem. Sua prosa é sempre construída sobre

um disfemismo poético no qual afloram vozes e visões do imaginário, mas também das ações

e dos acontecimentos. Essa dualidade recorrente, já é em si mesma um modo passional de

escrever e criar o efeito da extasia, cuja leitura nos permitiu o exercício deste trabalho. Na

verdade, tão somente um exercício de breve apreciação das temáticas história e ficção. Com

efeito, esperamos que a densa carga das figuras, signos e reproduções miméticas de algumas

particularidades da natureza-vislumbrada n’A Amazônia misteriosa e n’A Amazônia que eu vi

 seja percebida em nosso trabalho, ainda que de forma subliminar:

Frutos do amor, somos todos gerados.


Pelo desvendar de um segredo pagamos o preço da pressa...
59
Ludismo do não-absurdo.
60
As cores são ícones de confirmação dos ritos. Não são, por si, capazes de construir um acontecimento, a não
ser que molecularmente intensificadas.

247
Somos todos degredados  fortuna da apparição!
E chega o porto, e ali as docas,
remamos rumo aos mistérios do último destino.
É o fim da peregrinação sobre as ondas do mar,
É um mergulhar das sombras na luz  e nós sabemos:
todas as andanças serão rebocadas ao nada,
quando respirarmos o primeiro volume do novo ar.61

61
Versos nossos.

248
Capítulo 5

Do mito e da lenda ao reino do Fantástico em: A ilha das almas selvagens (Wells) e A

Amazônia misteriosa (Cruls)

O cara mais underground que eu


conheço é o diabo
que no inferno toca cover das canções
celestiais
com sua banda formada só por anjos
decaídos
[...]
enquanto isso deus brinca de gangorra
no playground
do céu com os santos que já foram
homens de pecado
[...]
com trombetas distorcidas e harpas
envenenadas
[...].
 Zeca Baleiro (Heavy Metal do
Senhor, 2002)

5.1 Apresentação

Mais que narrativa fantástica, A Amazônia misteriosa do escritor Gastão Luis Cruls

nos revela uma poética do imaginário virginal. Ao cotejar um de seus episódios: a passagem

Revelação – com A ilha das almas selvagens, versão lobatiana para a The island of doctor

Moreau de Wells, nos encontraremos no meio de uma cosmovisão às voltas com mitos,

lendas e o fabulário da gente cabocla e rimanceira62, tão naturalmente naturais à cultura de um

ethos singularmente amazônico, já em si mesmo um espaço para a arquitetura e imanência do

gênero fantástico.

Pour um littérateur il y a de si
cruels moments quand il est Seul devant as
table, em face d’une matière qui n’est rien,
um rêve vague, une nuée dont il fant tirer
quelque chose.
 Jérôme et Jean Tharaud

62
Assim são chamados os trabalhadores dos rios; relaciona-se semanticamente com remanso.

249
E nós? Existimos será?

5.2 O Fantástico com H.P. Lovecraft, Louis Vax, Jean Molino: lugar de criação dos

mitos e das lendas 

Surdindo à flor destas páginas e onerando-nos com sua presença, a teoria de Lovecraft,

a propósito do Fantástico enquanto gênero na literatura, posa para um steeple-chase63 entre a

farsa e o surreal da vida ou não-vida. Aliás, é entre: existir e como viver; e, não-existir e de

que forma se-não-viver, que está uma determinada estação: o equilíbrio  fio de início e fim

da realidade. Lovecraft não hesitou em apontar a atmosfera (o universo e seus fenômenos)

como índice detrator do Fantástico e, em sua compreensão, reconhece que

(a) atmosfera é a coisa mais importante, [porque] o critério definitivo [que


imprime] autenticidade ao fantástico não é a estrutura da intriga, mas a
criação de uma impressão específica [...] e sua intensidade emocional. Há
que estar presente [...] uma suspensão ou derrogação particular das imutáveis
leis da Natureza, que são a nossa única defesa contra as agressões do caos e
dos demônios do espaço insondado (LOVECRAFT apud CAUSO, 2003, p.
105).

Muitas vezes reconhecemo-nos ou reconhecemos personagens deste espaço situado

por Lovecraft. Entrementes, este umvelt64 não é tudo para a iniciação do gênero fantástico, e

certamente, essa havia de ser a opinião de Louis Vax, que define o Fantástico a partir do

preenchimento do espaço e da materialização do imaginário. Ei-nos, aos pés da narrativa:

A narrativa fantástica [...] gosta de nos apresentar, habitando o mundo real


onde nos encontramos, homens como nós, postos de súbito em presença do
inexplicável. [...] o fantástico acha-se ligado ao escândalo, temos de
acreditar no inacreditável (VAX, 1972, p. 8, 13).

Nesse “temos de acreditar” se incende a força da narrativa enquanto aliança

responsável pela formalização do vínculo entre leitor e texto do fantástico. A narrativa


63
Fito de rivalidade.
64
Meio-ambiente

250
articula as unidades do espaço, criando intersignos capazes de (re) significar os sentidos

convencionais. A teia para crivo desse semantismo estranho ao real estende-se a ponto de

envolver a própria realidade, tornando-a fantástica. A ambigüidade é, pois, regra de embate

para os artífices da consciência e da in subconsciência: uma guerra dos mundos de dois

estados neuro-vegetativos particulares ao universo das gentes e da Natureza: o de germes de

vida, o de germes de morte  ambos estreitamente necessários ao equilíbrio da existência

humana na Terra.

Uma tal porção de um sistema arbitrário que não se destina, mas que nos destina a

alguma coisa é talvez a grande noite da qual não conseguimos despertar ainda. Enfim, a

narrativa anima um espaço aparentemente inanimado e o tempo em que decorrem as ações é o

tempo da noite. Nas palavras de Jean Molino65:

Toda uma série de seres que não podem aparecer durante o dia, esperam a
noite para manifestar-se e para agir; à noite, o mundo é abandonado a outras
forças, a outros habitantes e obedece a novas leis. É por isso que a própria
narrativa fantástica adquire todo seu sentido apenas na vigília, precisamente
no momento em que se sente a presença dos seres que são todos atores da
narrativa: a noite, domínio da ação fantástica, é também o quadro
privilegiado de sua narração (MOLINO, p. 38).

Abraçamos aqui a tríade do gênero fantástico: atmosfera-narrativa-noite. Todos os

temas, se fantásticos, serão perpassados por ela em revista aos principais elementos

fantásticos no espaço, na narração e no tempo. Inclusive, a mãe de todos os temas

MITYLENE66 (criogênese dos mitos e das lendas), mantém-se viva e fértil na literatura,

graças à permanência de uma atmosfera e narrativa e noite, fantásticas.

5.3 Instâncias do conteúdo mítico-lendário


65
Tradução de Ana Luiza S. Camarani.
66
Possivelmente é um nome que reúne mito e lenda na poesia lírica grega. Ver mais sobre o assunto, à p. 666 do
Dictionary of the Bible de Grant & Rowley.

251
A Lenda

O Fantástico disse: Haja lenda! E houve lenda.

O Mito

O Fantástico disse: Haja mito! E houve mito.

Não queremos entrar a discutir teorias e conteúdos mítico-lendários, porque páginas e

páginas seriam necessárias para uma argumentação justificável. Outrossim, algumas

considerações se fazem oportunas:

 Mito e lenda ou lenda e mito são formas simples de veiculação dos ensinamentos

de geração a geração, segundo duas estruturas fundamentais: uma baseada no

princípio da sociedade estamental (fixa); outra, no princípio de famílias (et

peregrinus).

 Ambas as formas coexistiam. A distinção só pode ser observada com a verificação

das culturas, também binárias: uma apoiava-se no conteúdo lendário do decor (de

gravar no coração) a fim de preservar a tradição dos pais; a outra tinha, no

conteúdo mítico, o motivo para instauração de ordens não-tradicionais.

 Precedem a forma escrita da literatura. Não têm, portanto, no estar escrito, um

subterfúgio para a atemporalidade. Mito e lenda continuariam eternos, ainda que a

escrita não houvesse sido inventada.

 Primam pelo efeito da expressão e revelam indícios de que a arte de representar

acompanhava o canto.

252
Vê-se logo que tais considerações velam dualidades que se opõem sistematicamente.

São elas resultado de muitas leituras e delas, para prumo desta análise, escrevinharemos (em

nossa tradução) os dizeres de Albin Lesky (1985)67, sobre os começos da literatura grega:

Dois fenômenos anteriores a Homero foram decisivos para a literatura grega:


a invenção da escrita e a origem do mito grego. [...] O conteúdo, as imagens
[grafemas]; porém, devem datar do período conhecido por séculos noturnos
que consta de XII a VIII a.C. [...] ao mesmo tempo, também as lendas se
consolidaram e, de uma forma bem simplista, estariam relacionadas com as
ruínas, tragédias e desventura de uma fratria, tribo ou povo (LESKY, 1985,
p. 23-30).

Logo, as epopéias homéricas são o canto do mito na glorificação dos gregos e o canto

da lenda na ruína comum, sendo que ao mito atribuía-se um herói ou heróis (homens

obedientes aos deuses eram premiados com o nascimento de heróis) e à lenda, os mortos

(homens sem deuses não tinham heróis)  como focos da narrativa principais.

5.4 O mito de Platão e o mito de Aristóteles

É incrível como as parcimônias dos homens metamorfoseiam-se-lhes. O psicodrama

da existência vira uma anedota, uma novela, um romance... todas elas, células

psicodramáticas da condição de viver que naturalmente acarretam a fortuna do homem

quando nascido: flagelo ou glória.

Um exemplo dessa dualidade a que, infalível, destina-se o sujeito, podemos encontrar

no conto “A igreja do diabo” de Machado de Assis. Neste conto, através de oferendas

proibidas o inimigo de nossas almas atrai os fiéis do Deus Altíssimo para a sua própria igreja:

o hades tabernaculus.

Arregimentadas pelas potestades do inferno, as pessoas fiéis enjoadas do desfrute de

deleites antes proibidos, voltam-se de novo para a prática do ocultismo; isto é, praticam às

escondidas as antigas virtudes, fazendo irado o diabo que vai buscar junto ao trono do
67
Versão espanhola.

253
Benedictus Dominus Deus Noster, a explicação para essa, imagine só, heresia. A metáfora é

claro, será a fôrma da resposta divina:

Que queres tu meu pobre diabo? As capas de algodão têm agora franjas de
seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a
eterna contradição humana. (MACHADO DE ASSIS, 1974, p. 374).

Acreditamos que é dessa chamada ao tema da “eterna contradição humana”,

naturalmente irônica porque se trata de um Machado de Assis, que resultam as posições não

por acaso rescisórias de Platão e Aristóteles (ELIADE, 1963) em relação ao mito grego:

Aristóteles, ao tratar o aspecto octogonal do mito, associa-o à conjunção do eterno com o

maravilhoso. Nesse sentido, para o filósofo grego, o mito original, se se pretende original,

nasce com o gênesis da harmonia: Homem, Natureza, Deus. Já Platão anuncia o mito como

produto do degredo humano. Para ele, a corporificação do mito é a substancialização da

tragédia grega, entendida pelo autor de A República como sina da rebeldia do homem. Com

efeito, o mito platônico caracteriza-se por uma narrativa da resposta (em forma de vingança)

da parte dos deuses afrontados.

5.5 A conjunção mito e lenda e a instauração do fado

Paralelamente, expomos outra narrativa de conteúdos rescisórios: estamos falando da

lenda ou legenda. Todavia, e de acordo com Mircea Eliade (1991, p. 126), “a síndrome

escatológica por excelência, o sinal de que o tempo e a história chegaram ao fim é o do

cordeiro ao lado do leão e da criança brincando com a víbora”.

Esmiuçando o texto, notemos que esse chegar ao fim é o retorno ao início. Convém-nos então

reponderar Platão e Aristóteles:

254
Para o mito de Platão, originário com a queda 68, compomos a lenda judaico-persa: “As

criaturas são a causa do mal”. No percurso dessa narrativa, uma crescente sombra negra vai

desfigurando a face da lenda da criação, alongando-se fatidicamente nas narrativas trágicas da

morte de Abel e da maldição sobre Caim, da materialização dos anjos degenerados em forma

de gigantes, da catástrofe diluviana, da confusão de Babel... .

Por sua vez, para o mito de Aristóteles compomos a lenda, também judaico-persa, assinalada

em Gênesis:

O Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o


homem que havia formado. O Senhor Deus fez desabrochar da terra toda a
espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer; a
árvore da vida, ao meio do jardim; e a árvore da ciência do bem e do mal
(BÍBLIA, cap. 2, vers. 8-9).

A este prosaísmo poético, a lenda acrescenta uma narrativa de acontecimentos de

rotina no Paraíso: as crianças Adamah (Adão) e Evah (Eva) brincavam com os animais do

Jardim. E, se é cientificamente comprovado que os animais não falavam, hoje, sabe-se,

também por provas incontestáveis, que os animais falam  não a língua dos homens, mas a

deles.

Ademais, ao tempo em que a narrativa bíblica tem um teor poético, tem no cerne uma

estrutura mítica conforme Aristóteles; o retrato de um ecossistema harmônico e não uma

reportagem histórica. Aliás, reportagem histórica é o que Platão faz ao significar os mitos

gregos. Interessante que, para cada símbolo mítico, haja conteúdos da lenda ou legenda

judaico-persas69.

Conquanto, vasculhando os sinais de semantismo para os signos de mito e lenda,

descobrimos que ambos são derivados do genérico grego phantasia, termo que já cunha seu

68
Ver Gênesis caps. 1-7, “Bíblia Sagrada: nova edição Papal”. Ver também “Dicionário de Mitos Literários” de
Pierre Brunel.
69
Ver novamente MITYLENE à p. 666 do Dictionary of the Bible de Grant & Rowley.
255
apanágio no aramaico esthasie70 [hebraico: mizpeh71]. Notoriamente, as narrativas de mito e

lenda caminham por vias paralelas e sentidos opostos, até instituírem um novo signum

comuni: o fado.

A propósito, o mito talvez seja a revelação de Michel’Ângelo quando concebeu a

pintura do teto da Capela Sistina. Considerada pelo Papa Júlio II, não uma obra de arte, mas

uma maravilha, Michel’Ângelo pinta o dedo indicador do homem apontando sublime para

Deus: o mito, pois, vai para o celeste Jardim; a lenda vem para as selvas brutas da Natureza,

palco em que o homem contracena com seus demônios como, por exemplo, a personagem

Gertrud Von Utrecht da peça In Nomine Dei de José Saramago:

 O Senhor lhe pedirá contas, como mas vai pedir a mim, e a ti, bispo,
quando chegar a tua vez. Mas eu perguntarei ao juízo de Deus por que
permite Ele esta mortandade dos homens que vem desde o princípio do
mundo, Estes ódios de crenças, estas vinganças de povos, esta interminável
dor do mundo, A quem não basta a morte natural (SARAMAGO, 1993, p.
146).

Definidas essas instâncias do conteúdo mítico-lendário, estaremos, nesse ínterim, a

vivisseccionar algumas probabilidades da (re) ocorrência mito e lenda em nosso corpus.

5.6 Nosso texto  nossa ronda no reino do fantástico

Antes, porém...

Tem um mistério o ar. E há uma charada na língua. Diante dos olhos, sempre um

enigma. Em algum lugar, pesadelo e pavor se encontram. Tudo exala um cheiro estranho e

familiar, como cheiro de sangue, de enxofre. Espera-se desesperadamente pelo acontecimento

que espreita: o susto seguido de morte que floresce na repugnância e no asco produzidos pela

saliva – baba escumosa – um fluxo da convulsão do medo que sulca a alma.

70
Sem referência.
71
Lugar do êxtase. Ver p. 667 do Dictionary of the Bible de Grant & Rowley. Ver também “Dicionário de Mitos
Literários” de Pierre Brunel.

256
Essa passagem é a descrição de um cenário, ou de uma atmosfera, se preferirmos. Esse

cenário, essa atmosfera recorrente, é o casulo da grande maioria das narrativas fantásticas:

histórias de vampiros, lobisomens, anacondas e tarântulas gigantescas; e até mesmo as

histórias aparentemente menos horripilantes como as histórias de proteus e camaleões,

concebidas na modernidade freudiana como casos da dupla-personalidade e das multifaces,

respectivamente.

Bem, a análise que apresentaremos não será exceção a essa quase regra. O encontro

entre os textos de Cruls e de Wells não nos furtará da sedução do medo, nem o medo do

insólito nas trevas do desconhecido. Pelas delícias da sobrenatureza, valerá um escrito

entrarmos no pesadelo da A ilha das almas selvagens (1896)72 ou d’A Amazônia misteriosa

(1925)73. Vodu!

5.6.1 A materialização do medo e o espreitamento da morte:

Folheando a página, cremos ser fundamental lembrar uma varredura da mais valia

cultural após a crucifixão de Cristo. Até a instituição da Era Messiânica o homem aceitava

seu destino como fado indissolúvel. A morte era motivo de regozijo e a vida entendida como

peregrinação no exílio. O homem era um desterrado por um mea culpa (sempre obscuro) de

seus ancestrais. Ele devia aceitar, incondicionalmente, segundo o Livro da Lei e o Decálogo –

o Deuteronômio74 – sua condição de flagelado como a via crucis necessária à sua repatriação

(a [re] conquista do Paraíso). Vivia, assim, sob a esfinge do mito; sendo a esfinge, ela própria,

a lenda piramidal de incípios da civilização egípcia e, antes dela, recuando um pouco para

perto de seis mil anos a.C., o ícone oracular  o ocaso fatídico das antigas civilizações

72
1896: data da primeira edição de The island of doctor Moreau.
73
1925: data da primeira edição de A Amazônia misteriosa.
74
Ver “Bíblia Sagrada: nova edição Papal”.

257
mesopotâmicas75 como as dos Medos, Persas, Babilônicos; e também dos povos semitas 76,

conhecidos hodiernamente por árabes.

Em dias de cristãos e mulçumanos77 – de personagens do Pentateuco versus

personagens do Corão, todo o mundo helênico da simbologia mítica e todo o mundo judaico-

persa da simbologia lendária foram definidos por heréticos. E de aí em diante soergueu-se um

outro mundo: o mundo da tensão entre o sagrado e o profano. Um mundo de bruxas e

fantasmas, de zumbis e experiências. Talvez, aqui tenhamos uma diferença interessante entre

motivos fantásticos anteriores a Cristo e motivos fantásticos depois de Cristo: poderíamos

dizer que, sobretudo na Idade Média, e especialmente com o in curso, primeiro das Cruzadas

e depois da Contra Reforma, ocorridos na alta e baixa “Idade das trevas”, a narrativa

fantástica alimentou-se dessa tensão; enquanto que, antes de Cristo, esse gênero (que ainda

não era conhecido como gênero) alimentava-se do fado.

Sumariamente, substitui-se o eufemismo do fado pelo disfemismo do pecado, sendo

ambos – o fado e o pecado – fardos do mesmo sortilégio: o da morte.

5.6.2 Nossa noite no Reino do fantástico:

Suspensas, as sinas do homem morcego (vampirismo), do homem lobo (licantropia),

da viúva negra (aracnofobia), amalgamam-se aos panegíricos dos demônios da noite, aos

rolos sobre estranhas criaturas do Mar Morto e às inscrições rupestres de rituais macabros –

eventos estes presentes na noturnidade dos homens das cavernas. Deveras, a alquimia da

passagem “Revelação” (na A Amazônia misteriosa) com as passagens “No escaler do Lady

Vain, A cara estranha, O canoeiro de má catadura, Os urros do puma, A coisa na floresta e O

homem solitário” (na A ilha das almas selvagens), apresenta um quadro da escuridão interna

75
De Mesopotâmia: Terra entre rios.
76
Semitas: Povos das areias.
77
Porque atualmente são as duas ideologias religiosas dominantes e em conflito.

258
ao homem que, animada pelo medo, povoa-lhe o imaginário de sombras e breu, e o faz

exprimir-se incrédulo e aflito em gritos surdos; como n’ “O grito” de Edvard Munch.

5.6.3 Nossa atmosfera:

O lugar da história é um horizonte de expectativas: A Amazônia de Cruls ou a Floresta

Tropical de Wells. O espaço dos acontecimentos é o desconhecido, o mistério – do hebraico

moriah78 em projeção com myrtle79 ou mysia [do persa mythras: mystérion para os gregos] e

myrtus no hebraico, palavra quase homógrafa muito parecida com o semema grego mythos.

Por outro lado, o tempo não existe: o narrador representado d’ A Amazônia misteriosa ou o

narrador autodiegético d’ A ilha das almas selvagens estão perdidos na floresta. Neste lugar, a

Natureza é ameaçadora, a atmosfera tensa, o ambiente denso – numa palavra – uma existência

carregada. Estamos, no mundo do Fantástico. Somos levados por este mundo (pela narrativa)

já desde a leitura dos títulos A Amazônia misteriosa e A ilha das almas selvagens.

Uma vez nas páginas destes romances, somos teleguiados por vultos entrecortados na

mata e orientados por uivos lancinantes que parecem mesmo gelar a alma. Como se não

bastasse, o ribombar de tambores, marcando mensagens cifradas, pontua a gravidade da

situação: perdidos, não se sabe onde, no ininteligível. Entre a razão e a desrazão

(RODRIGUES, 1988) titubeamos sempre e lutamos sofregamente para não cair na cuia de

ayquec80.

...

78
Visão. Ver Dicionário Bíblico. In: “Bíblia de Estudo Pentecostal”.
79
Ver página 682 do Dictionary of the Bible de Grant & Rowley.
80
Espécie de poção alquímica, um alucinógeno para sonhar no sono.

259
5.6.4 Nossa narrativa fantástica:

JAVE ELOIM, EL-CHADAI81: JEOCHUA, JEOCHUA82!


(Senhor Deus, Deus dos deuses: salve-nos!)

Conforme Todorov (1970, p. 29), “c’ est l´hésitation éprouvée par un être qui ne

connaît que les lois naturelles, face à un événement en apparence surnaturel”. A

ambigüidade, pois, se susterá até o fim da narrativa: realidade ou imaginação, verdade ou

sonho, nosso mundo ou o sobrenatural, razão ou loucura? A oscilação entre os extremos, fé e

incredulidade, consiste a hesitação diante das visões (moriah) na narrativa. Numa primeira

tomada da passagem da “Revelação” (A Amazônia misteriosa), vemos que o narrador

representado situa-se no intervalo entre a incerteza e o explicável. Hesita e se pergunta se o

que está vendo é real ou ilusório:

Macaco? Preguiça? E atentei para o ser estranho que se rojava no chão com
movimentos muito lerdos e hesitantes. Não! Era uma criança? Aquelas
formas não enganavam e eram bem humanas. Mas... então, seria um
monstro? (CRULS, 1958, p. 104).

5.6.5 O marcar do tempo:

Nessa narrativa, as imagens oscilam entre o possível e o não-possível no calco de que

nada é impossível. Em tal marasmo, o próprio ritmo empreendido pelas interrogações no

início e fim, pelas reticências e exclamação entremeadas, nos fala de um ritmo, de uma

cadência que parece natural ao fantástico. Repare-se que esse compasso é marcado

expressamente pelo modalizador “lerdos e hesitantes”, e o conjunto: leitura, texto, imagem do

texto denuncia a atmosfera fantástica. No entrecho que segue veremos que o narrador sai da

diegese e conta:

81
Ver “Bíblia Sagrada: nova edição Papal”. Notas p. 35; e nota 21 p. 976.
82
Ver nota 21, p. 976, cf. título da nota acima [de Jesus como Salvador de todos].

260
Perplexo, a fazer-me mil perguntas... os meus olhos não se despregavam
mais daquele quadro, visão horrífica e atraente, que a um só tempo
despertava sentimentos de piedade, revolta e nojo. E a criancinha continuava
a mover-se, espapaçada de ventre, o corpo languinhento e mole, a cabeça
bamboante fuçando um leito de palha (CRULS, 1958, p. 104).

5.6.6 Conseqüências do efeito surpresa e uma volta pelo imaginário:

O sair da diegese não foi acidental. Fazendo-se de conta de que se está fora da história,

como se ela já estivesse passado, provoca um efeito de duplicação da imagem de referência ao

destinatário do texto: ou se percebe o herói da aventura como aquele que está literalmente

emboscado, e que desatinado, está absorto em seu visionarismo, ou se percebe este herói à

maneira de um superador daquele acontecimento, muito embora ele ainda não tenha se

delineado completamente. Uma ou outra dessas posições (de qualquer forma estamos diante

da hipótese de afastamento do narrador que conta) fornece o argumento para o manifestar-se

“perplexo” e, como que sobre o efeito de um alucinógeno, tudo passasse à sua frente

“languinhento e mole”. Não é de duvidar: se imerso no espaço e na nulidade do tempo dos

acontecimentos tudo não houvesse “bamboante” em sua cabeça; quer cabeça de alguém que

conta a história depois da história (e aí já a história diluída pelo tempo), quer cabeça de um

personagem que vive o real diegético (e aí à mercê da atmosfera evanescente do espaço em

que decorre o contado). Por qualquer que seja o motivo da dispersão, pensamos que um balde

de água fria não foi necessário para que o narrador representado depressa voltasse à narrativa:

Observando-lhe as atitudes e a flacidez das carnes, massa sem sustentação e


que tomava as mais esquisitas posições, dir-se-ia que a mísera não possuía
ossos. E, no entanto, o seu aspecto era perfeito, os membros tinham todos os
segmentos, o rosto, tirante um certo empastamento dos traços, não
apresentava nenhuma anomalia, e os olhos eram até bem vivos e
expressivos. Pelo tamanho, devia ser um indiozinho de dois a três anos. Mas
teria nascido assim? E por que o prendiam numa jaula, como um bicho?
(CRULS, 1958, p. 104).

261
Gostamos de olhar bem de perto tudo o que nos chama à atenção. Em geral

apreciamos a liberdade do ser desabrido e do sonhar acordado. Por causa disso, precisamos

avaliar afinal se o que nos tirou de inebriante enleio da vida merece nossa apreciação. Então,

gostamos de olhar bem de perto. De volta ao seio da história, o narrador “observa”. As

palavras “a flacidez” e “certo empastamento” confirmam para o sujeito lúcido que não há

exagero: Há sim uma criatura languinhenta e mole e bamboante, como sugere o entrecho

anterior ao último lido. A narração busca claramente o efeito da intensidade. Esta, não é

unívoca. Repete-se em intervalos à procura de um estar apreensivo, de uma reação. E quando

se pensa que o mistério foi desvendado...  “Mas teria nascido assim? E por que o prendiam

numa jaula, como um bicho?” A impressão que nos dá é que o irreal é apenas o inimaginável.

5.6.7 No seio da morte:

Alongando-nos no texto de Wells, convém destacar o motivo de nossa escolha pela

tradução de Monteiro Lobato. O título original do texto que estamos comentando ao lado do

texto de Cruls é The island of doctor Moreau (1896). Entretanto, a versão de Lobato está

intitulada A ilha das almas selvagens83 (?). De acordo com o levantamento que fizemos, é a

única, no Brasil, que traz uma versão diferente de outras traduções. Estas deram preferência

pela tradução direta do título original, traduzindo-o por A ilha do doutor Moreau.

No ato da escolha, consideramos que a tradução de Lobato embrulha às avessas o

estatuto literário primeiro que Wells empreende ao título, principalmente com o nome

Moreau, por certo associado ao tema da morte e da reanimação: O Doutor Morte como Deus,

o que institui uma paródia invertida do texto bíblico quando situa a criação e, ao mesmo

tempo, corporifica sobremodo grotesco (como nas lendas africanas dos zumbis) a promessa da

ressurreição. Apesar dessa aversão, a opção que fizemos nos fala de uma grande metáfora: a
83
Embora o livro não traga este dado, acreditamos que sua tradução se reporte à fase de 1920 da literatura
brasileira, que ficou conhecida como fase Monteiro Lobato. O exemplar que utilizamos data de 1962, sendo este
o volume nº 6 da Coleção Sagarana.

262
vida no seio da morte. Essa vida tenebrosa é vista como que vida de almas selvagens em um

mundo também selvagem, já que desconhecido: o mundo da própria morte. Por ter sido

contemporâneo da obra de Wells, e pela criação e experiência que tinha das literaturas

fantásticas, das lendas e dos contos de fada, acreditamos que Monteiro traduziu melhor o

conteúdo da estética elaborada para a The island of doctor Moreau.

Em sua A ilha das almas selvagens, Lobato nos faz mergulhar no evento que nos

ameaça desde o nascimento: a morte. Mergulhados nela, vamos viver um mundo de sensações

estranhas sem muito do bang-bang americano observado em outras traduções, que a nosso ver

beiram o trágico-cômico, quando não o ridículo para uma aventura nos trópicos. O contato

com seres e habitantes esquisitos, o ronco do mar e o silvo do vento convergem para uma

apuração menos naturalista de um estilo que tende para o surreal e nos oferece ganhos

inestimáveis: a versão Lobatiana prima pelo suspense e isto é o que mais nos interessa para

compormos a análise com o texto de A Amazônia misteriosa. Assim, alongando-nos no texto

de Wells, segundo Monteiro Lobato, vemos que genuinamente fantástico é o acontecimento

do episódio de “A coisa na floresta” da sua A ilha das almas selvagens:

Oh, mil anos que eu viva e nunca me esquecerei daquelas impressões! Corri
até a fimbria da água e por ela segui, ouvindo de vez em quando o chape-
chape do vulto a me acompanhar. A luz salvadora estava ainda muito longe.
Tudo mais, negrores. O chape-chape ia-se aproximando. Eu já respirava com
esforço, porque não me restabelecera de todo e não estava afeito a exercícios
violentos. Percebi que a coisa me alcançaria muito antes que eu atingisse a
casa de pedra (WELLS, 1962, p. 50).

5.6.8 O encontro com o medo e a busca de refúgio:

A narrativa aparece no texto sem a introdução bastante comum de quando dei por mim

já estava correndo (em uma disparada sem freios pela mata). A Ausência deste marcador

textual torna mais pujante a sensação de “respirar com esforço”. O efeito é o de mergulhar o

leitor no acontecimento. Repare-se que, instintivamente, o protagonista (narrador

263
autodiegético) aciona um mecanismo de autodefesa. Ele percebera no lapso de milésimos de

segundos que estava lidando com algo – “a coisa” – que não conseguiria enfrentar. Entendeu

que se fosse apanhado não teria escapatória: certamente morreria. Aquém do mais, a menor

idéia de ver-se frente a frente com aquela criatura horrível era assombrosa. Infelizmente para

ele, ao racionalizar tudo isso que até determinado ponto da corrida era reação desencadeada

por instinto, surpreende-se tomado pelo medo: suas forças parecem minguar e seu ser racional

vê-se incapaz de reagir ao que julga inevitável: não chegaria à “casa de pedra” (refúgio muito

peculiar aos ambientes fantásticos) em tempo de salvar-se.

Neste ponto de nossa análise, instaura-se um plasma entre a passagem que estamos

deferindo e a que estaremos a referir em mais um entrecho de “Revelação” (A Amazônia

misteriosa):

Fugir de escantilhão, varando pelo mato adentro, a esgarabulhar por entre a


galhaça, seria talvez denunciar-me pelo ruído que certamente, iria provocar.
Mais valia, portanto, empedrar-me, quedo, onde estava, ocultando-me, de
permeio à soca compacta das bananeiras (CRULS, 1958, p. 105).

5.6.9 Pega-pega e esconde-esconde:

Importante dizer que nas duas histórias o protagonista busca um refúgio, e logo um

refúgio de pedra. O movimento da empresa é que é diferente: um, quando vê, já está correndo

na direção da casa de pedra; o outro persuadiu-se (haja sangue frio) a quedar, cair acantado na

mata feito pedra. Eliminada a possibilidade da denúncia (do “talvez denunciar-se”) de sua

presença ali (entrecho de “Revelação”) em face do não “fugir de escantilhão” e do não

“esgarabulhar” por entre a “galhaça”, o medrado resolveu-se escondido (“ocultando-se”) na

metonímia do hiperônimo84 “pedra”: ele não seria a pedra, mas o continente de estereótipos

atribuídos ao “fazer-se de pedra”. Entre os quais, o de respirar sem mover o diafragma, pois,

mesmo tão leve movimento, seria já suficiente para provocar a denúncia não desejada através
84
Hiperônimo: na Lingüística, designa aos chamados nomes genéricos, aqueles que geram outros nomes.

264
dos ruídos de puxar e soltar o ar dos pulmões e do farfalhar das folhas – posto que estava na

“galhaça”. Por um instante, porém, parece-nos que a imagem refratada pelo quadro narrativo

de que estamos a falar pode ser, justamente, a imagem imediata e anterior ao acontecimento

do “lançar-se em uma corrida louca pela mata” (na passagem de “A coisa na floresta”). Isso,

até a despropósito da citação a seguir, de “Revelação”, que antecede a menção anterior:

[...] vi abrir-se uma das portas do barracão maior e dele saírem o Sr


Hartmann e outro homem que me era inteiramente desconhecido. [...]
Estremeci e, num repente, estive a meditar se deveria conservar-me onde
estava ou se seria melhor procurar outro refúgio. Por fim, optei pelo primeiro
alvitre (CRULS, 1958, p. 104, 105).

“Por fim”, pode servir de indicador para a modalização tanto da atitude do narrador

autodiegético de Wells quanto da atitude do narrador representado de Cruls. Diante da ameaça

que era a mesma, os textos sugerem tomadas de atitudes díspares para um fim comum: o de

estar protegido pela “casa de pedra”. Em Wells, o homem busca por ela, convencido de que se

lá chegar estará fora de perigo. Em Cruls, o homem busca estar envolvido pela atmosfera da

casa de pedra, pois seu primeiro alvitre foi o de “empedrar-se”. Note-se que este mesmo

raciocínio pode ter passado pela cabeça do homem de “A coisa na floresta”. Todavia, ele não

conta com a frieza da qual dispõe a personagem de “Revelação”, logo, temeroso de não

conseguir ficar tão quieto como uma pedra e, com efeito, não conseguir esconder sua

presença, quando deu por si, “já respirava com esforço” (Wells, 50) de tanto que correu.

É possível olhar para este quadro de empedramento do narrador de Cruls pelo ponto de

vista da metáfora. De fato, o sujeito da enunciação naquele nível do discurso logrou

comportar-se como uma pedra; e aí teríamos, no mínimo, uma comparação metafórica.

Entretanto, o fragmento a seguir decompõe uma provável alusão à metáfora:

E aí fiquei, de nervos distensos e coração aos saltos, a espescoçar-me


ansiosamente, acompanhando todos os movimentos do alemão, que
caminhava sempre e vinha cada vez mais perto. [...] O Sr. Hartmann

265
começara a gritar uma, duas, três vezes: “Hans! Hans! Hans!” (CRULS, p.
105, grifos do autor).

Pois sim! Isto é coisa de pedra bem animada. Assim, o sujeito suprime-se o máximo

possível em direção aos valores atribuídos ao estar-se como pedra. Não se transforma,

contudo, na pedra conforme conteúdo semântico de penedo: rocha, imóvel  por causa disso,

e na situação examinada, a condição de empedramento enquanto metonímia pareceu-nos

menos imaginária. De toda sorte, tão forte é esta imagem do “buscar refúgio na casa de

pedra”, que Edward, o protagonista da corrida pela mata em passagem de “A coisa na

floresta” (Wells), parece ainda não ter se desvencilhado dela. A prova é o assinte à página 134

de A ilha das almas selvagens:

[...] um terror ininterrupto supliciou o meu espírito, um terror incessante


como o poderá experimentar um tigre recém-domado. Minha inquietação
assumia a mais estranha forma [diante de criaturas humanas], à espera que
de um momento para outro retornassem à bestialidade de que tinham saído.
Pressinto que o animal vai de um momento para outro [re] tomar a dianteira
e que a desumanização se fará em escala monstruosa (WELLS, 1962, p.
134).

Afora a idéia de pega-pega ao relevo do prefixo re em retomar, e retomando a matriz

analógica para as passagens supracitadas de Cruls e Wells, queremos apartar a conjunção de

dois instantes: o de não-medo e o de medo. Para o primeiro, o clímax será o enfrentamento do

sobrenatural ou a prova de que tal fenômeno não existe (o protagonista de “Revelação”, talvez

porque no seu caso a coisa que lhe metia medo era o alemão e este só veio em sua direção até

certo ponto, não corre). Obviamente, não se admitirá para não-medo o sentido de sem-medo:

trata-se de negação do medo. Para o segundo, o clímax será o pânico: o protagonista de “A

coisa na floresta” sai desembestado.

5.6.10 A tormenta como efeito da(s) metamorfose(s):

266
Em ambos os textos, de Cruls e Wells, o espaço é duplo: ou será a floresta e a casa de

pedra (Wells), ou será a floresta e a aldeia (Cruls). A atmosfera fúnebre vai se desenhando de

forma gradativa, e esta gradação, naturalmente, entorpece a noção de tempo. Na passagem de

“No escaler de Lady Vain” (Wells, p. 10) lemos que naqueles mares, por oito dias derivaram

ao sabor das ondas, “famintos e atormentados pelos horrores da sede”:

Eu arrastei-me para lá com a idéia de agarrar o marinheiro pela perna, mas


não cheguei a tempo; como na luta se houvessem posto de pé, perderam o
equilíbrio e lá se foram atracados para o mar. Afundaram como pedras.
Lembro-me que me ri e depois me admirei de ter rido. O riso empolgara-me
como algo vindo de fora. (WELLS, 1962, p. 11).

Teria, por esta ocasião, Mr. Prendick perdido a anima? Conforme Vax, escrevendo

sobre motivos fantásticos:

Talvez também a metamorfose da vítima em monstro exprima a


ambivalência que reina nos domínios da morte. [...] A vítima deseja o
monstro, facilita a sua ação. [Em] outras palavras, a vítima é o aspecto
passivo e horrificado, o monstro o aspecto ativo e horrificante, do mesmo ser
humano (VAX, 1972, p. 37).

Com efeito, a metamorfose é uma das alegorias que simbolizam (re-significam) a fera

que dorme em cada um de nós. Daí ela causar, ao mesmo tempo, medo e atração.

Encimesmado, o homem do entrecho lido se surpreende rindo-se de sua própria desgraça. Não

seria este um caso de animalização induzida pela experienciação de visões sobrenaturais? O

operador “ao sabor das ondas” oblitera uma ponta de sarcasmo quase irônico, ou finamente

irônico, para derrogar a metáfora do sortilégio, do se estar a bel prazer das ondas em mar

aberto. Claro que isso só pode ter sabor de sal, cuja salubridade tem, nas águas marítimas,

algumas multiplicações que nos remetem à idéia de hipertensão, de exasperamento dos

ânimos, de vertigem, efabulações. Definitivamente, temos um ser “atormentado” por

267
demônios do(s) horror(es), que não serão apenas “horrores da sede” no epílogo de Prendick

(Wells, 134).

N’A ilha das almas selvagens e n’A Amazônia misteriosa, a metamorfose é o grande

tema fantástico que arrola os principais motivos bestiais. Vejamos:

O bestiário enriquece-se, aliás, com seres imaginados, próximos do homem,


como o Hyde de Stevenson, e com animais tão horríveis e repugnantes que a
natureza não teria podido criar; monstros moles, viscosos e grotescos de
Lovecraft e de Kafka (VAX, 1972, p. 34).

Em certo trecho da passagem de “A coisa na floresta” (A ilha das almas selvagens),

(o)uvi longe um gemido. Havia de ser do puma e tomei o rumo oposto. Uma
volta do riacho barrou-me o caminho. Saltei-o e entrei a caminhar pela
margem oposta.
Chamou-me a atenção um fungo vermelho, corrugado e foliáceo qual um
líquen, mas deliqüescente e gelatinoso ao toque (WELLS, 1962, p. 46),

que estranhamente mexia-se na folhagem. Cresce a impressão de estar olhando para um feto

em sua primeira semana e já fora da bolha uterina. É possível imaginar e também desconfiar

que este mesmo fungo virá a ser aquela criatura que eu ou você (pois o narrador personagem

pode ser qualquer um de nós) encontraríamos algum dia numa floresta. Que tal? :

[...] Movi-me um pouco mais à frente para o ver melhor e ao fazer isso
desloquei uma pedra que de lá rolou dentro da água. A criatura ergueu a
cabeça e seus olhos cruzaram com os meus. [...] olhou-me atônito. As pernas
teriam metade do tronco (WELLS, 1962, p. 45).

Olhares cruzados, a criatura olhou-o “atônito”. E a mim ou você também.

Nas fronhas do bestiário de Vax, o asimismo da ciência justifica-se pelas múltiplas

ocorrências do real. Renegar os monstros é o mesmo que negar um quê da nossa essência,

uma vez que monstros existem porque nós os criamos. Nesse extenso e turvo mundo de

laboratório, a realidade não é apenas o agora, mas todo um complexo de experiências que

268
reportam gerações. O contato com os ancestrais e, conseqüentemente, com o que eles

viveram, de algum modo retumba em nosso ser-estar no mundo: as mutações genéticas e a

pluralidade de caracteres divergentes, notórios no cotidiano das relações humanas, são índices

irrefutáveis dessa simbiose do passado no presente. A presença de exemplar

diagonia85podemos acompanhar numa visita a mais uma passagem de “Revelação”:

E vinha-me a lembrança de que em muitas tribos de silvícolas, era de rigor


matar as crianças nascidas com defeito. Entre as Amazonas adotar-se-ia um
tal processo? Mas, então, não se explicaria a conservação desse infeliz,
tratado como um animal e mantido num engradado. E não sei se proveniente
de qualquer leitura passada, ou se do sonho em que Ataualpa me aparecera,
[...] (CRULS, 1958, p. 104).

Envolta nas quimeras que a perturbam, a personagem rememora as coisas de que havia

ouvido falar ou lido. Parece nutrir um certo desejo pelo monstro quanto à curiosidade de

entender o que de verdade está se passando. A leitura do texto descreve um ritual de

espremidura, de aperto dos olhos em favor de uma claridade impossível no reino fantástico. A

fragilidade da vida, da existência, viola de chofre o desprotegido corpo humano. Aturdido e

sempre diante do inesperado, para o narrador que se representa o sem saída da narrativa é

também a porta fechada, um desestímulo à reação, a tramela das pernas e da razão  daí

permanecer arrebatado em voltas:

[...] acudia-me a reminiscência de certo capricho de Montezuma, que


colecionava monstros humanos e os guardava vivos numa dependência
especial de seu palácio. Seria que as Amazonas repetissem o gosto
extravagante do Imperador dos Astecas? E sem detença para reflexões,
dominava-me o desejo de conhecer o conteúdo das outras gaiolas,
infelizmente muito longe e em zona só atingível com grande risco, mas a
tentação era tão grande... (CRULS, 1958, p. 104).

85
Diagonia: Termo aventado para designar as tribulações por que passam as pessoas sem, em geral, compreender
que, baseado no princípio da evolução, somos um conjunto que porta DNAs antecessores, porém, de posse da
faculdade de livre arbítrio, e apesar do meio, optamos por quem seremos.

269
5.6.11Criaturas do medo: a dor, o mal e os monstros:

Alguma dúvida? Uma lembrança leva à outra e a tentação aqui nos traz de novo a

ironia de Machado de Assis, grafada às primeiras páginas desta análise e que nos diz da eterna

contradição humana. Somos sempre tentados pelo proibido. Freqüentemente vemos como

desafio o desvendar o mistério. É o grito da vontade de ser herói, de ser heroína... de sermos

como Deus! Mas para isso, será de havermos com vilões, perigos e batalhas antológicas com

criaturas pré-históricas e mazelas materializadas de nosso próprio ser – transformados em

monstros. Aliás, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo, assistimo-la; romanceada

nas historinhas infantis e aquarelas do mal.

Capricho é o nome assinalado pelo narrador ao referir um dos estranhos hábitos do

Imperador Asteca. No entanto, só a “reminiscência” pode mesmo acudir por “capricho”, ritual

tão macabro. Além do que, a figura de Ataualpa no último entrecho já comentado, relaciona-

se com Montezuma numa nítida afinidade: ambos revelam uma empatia que corta dimensões

do tempo. O primeiro está no real diegético, o segundo é personagem de uma narrativa na

narrativa – e se comunicam, um com o outro, através de um mediador: o narrador

representado que os tem em sonho e em reminiscência. Nada melhor para uma orgia

transtextual! Com efeito, mais uma vez com Vax (1972) eis a divisão do ser em vítima e

monstro, em aspecto horrificado e horrificante. É perfeitamente admissível que as pontas se

invertessem e víssemos Montezuma como o monstro, não? No caso de Ataualpa, teríamos

uma situação mais interessante: ele não seria o monstro, e sim a alegoria do monstro. O

alemão precisava de um monstro (figurativizado) para protegê-lo, para resguardá-lo em suas

monstruosidades. Precisava de um ícone para a necessidade de causar medo em quem ousasse

se aproximar demais. Monstro, mesmo, seria ele próprio. E será essa caricatura de gente – o

monstro travestido em trajes humanos – que “dominará” os desejos do ator em cena, sempre

movido e motivado pela “tentação tão grande” que “era”. Na real, o que faz do alemão um

270
monstro são suas (mórbidas) realizações de experimentos laboratoriais. E conhecê-las no

contexto do fantástico requer de nós estar em zona só atingível com grande risco, como na

passagem de “Os urros do puma”:

O martírio continuava. Tive de tapar os ouvidos. [...] Saí. Saí a espairecer


pelos arredores e notei que o portão principal estava encadeado. Os gritos de
dor eram mais audíveis lá fora, tão lancinantes que me deram a impressão de
serem um resumo de todas as dores do mundo (WELLS, 1962, p. 43).

Atraído por ruídos tenebrosos que cortavam o silêncio, andava de um ponto a outro.

Com efeito, é a recusa ao tédio que mais nos aproxima do mal-estar. É que, para fugir ao que

chamamos de tédio, distraímo-nos; e neste ínterim, somos bestiais: quando nos damos conta,

deparamo-nos enredados por terríveis preocupações. A personagem da cena acima descrita

está como uma pessoa em estado de lassitude, que provavelmente não podia se aperceber das

linhas de relevo, da geografia do lugar – uma razão possível para explicar a impressão de que

estava a ouvir “um resumo de todas as dores do mundo”. Não obstante, estamos olhando para

uma narrativa fantástica e precisamos nos ater ao ambiente fantástico. Portanto, as expressões

“o portão principal estava encadeado” e “um resumo de todas as dores do mundo” arquitetam

a engenharia (entre outras leituras) de um cemitério fechado para a festa das almas-penadas.

Mas poderíamos ainda atribuir ao acontecendo uma explicação pseudo-científica: os gemidos

são inexprimíveis quando se tem a carne latejada pelo espinho da rejeição aos enxertos 86. E

deve haver nisso tudo muito gosto de sangue. Sobretudo se atentarmos para o fato de que

naquele tempo (o tempo de referência para o real diegético) o transplante de órgãos era prática

pouco desenvolvida na medicina e vista pela sociedade com muita resistência. Havia vez em

sempre um naco de antropofagia. Na melhor das hipóteses, o ser remendado pareceria mesmo

um ser remendado. E nada era mais nojento que pensar nas costuras arrebentando e as

86
O Doutor Moreau fabricava monstros, enxertando órgãos os de mais diversa espécie, como de animais em
homens e destes em animais.

271
vísceras vazando de um ser aniquilado. Aniquilamento que não se restringe à forma de vida,

àquele puma de Wells que esvaía-se nas injeções do experimentador:

Aquela mesma dor sem gritos não me teria feito mal. Mas tinha voz – e a
despeito do brilho do sol, do esplendor da vegetação tropical e das brisas
frescas que me vinham do oceano, o mundo me aparecia numa confusão
terrível, como que atravessado de manchas negras e rubras, e povoado de
fantasmas (WELLS, 1962, p. 43).

Uma vez mais o universo da aparição permuta com o desejo de acariar homem e

animal. Seja pelo designar do vocábulo “voz” para os urros do puma, seja pelo

pandeterminismo das expressões “brilho do sol”, “esplendor da vegetação” e “brisas frescas”,

seja pela insensibilidade à dor se não há grito; o contrato literário (texto-leitor) nos coloca

rotos diante do que pensamos que somos e o que fazemos. Nesse incurso, há ainda que lidar

com a rotulagem do senso comum geralmente a preconizar o natural e o não-natural.

5.7 Epílogo

Em síntese, e ainda explorando os textos, notamos que três relações binárias de Jean

Molino (1980) dominam a construção do mistério. São elas: a morte e os fantasmas; o

monstro e a metamorfose; a noite e o sonho. Estes temas, recorrentes nas lendas orais e no

Fantástico então concebido como gênero, formam-se da substância de que Molino chamou de

Vigília. Não sem causa, portanto, a poção de ayquec em Cruls e o resgate em meio à tormenta

em Wells, principiam as seguintes passagens de “Revelação” (A Amazônia misteriosa) e “A

cara estranha” (A ilha das almas selvagens):

 “Revelação”:

Foi por aí que me quedei, emboscado na vegetação e a procurar, cheio de


prudência, qualquer aberta que me servisse de espreitadeira. Favorecera-me

272
o acaso e, pouco depois, eu já era todo olhos para o que começava a
observar, possuído de verdadeiro espanto (CRULS, 1958, p. 103).

 “A cara estranha”:

A visão daquela cara negra impressionou-me profundamente. Um rosto


deformado de modo singular. O queixo saliente lembrava focinho, e a
enorme boca semi-aberta mostrava dentes como eu nunca vira em boca
humana. Os olhos eram vermelhos de congestionamento sangüíneo com
apenas um círculo branco em torno das pupilas castanhas. Seu rosto
denotava extrema excitação (WELLS, 1962, p. 16).

E isso não era nenhum pesadelo. Temos um quadro de Cruls e Wells: Frente a frente, a

criatura e o criador, o aspecto horrificado e o aspecto horrificante, a múmia possuída pelos

demônios da casa do espanto – seu mundo de coisas. Estarrecidos pelo encontro do eu

consigo mesmo, em nada surpreende a “extrema excitação”. De fato, em passagem de “O

canoeiro de má catadura” (Wells) escreveu-se uma advertência que, de certa forma, não

surpreenderia mais o narrador-personagem:

Lamento muito ter de ser misterioso Mr. Prendick, mas não se esqueça de
que não foi convidado. Nosso pequeno estabelecimento encerra um segredo,
ou coisa que o valha, é uma espécie de quarto secreto de Barba Azul. Nada
mortal para um homem como o senhor (WELLS, 1962, p. 36).

5.7.1 Curioso não resiste

O resgate da fábula do “Barba Azul” de Perrault tem a ver com duas declarações do

entrecho acima. Na primeira delas, a curiosidade é atiçada pelo interlocutor (oponente) do

protagonista quando sugere que há um “mistério” numa “espécie de quarto secreto de Barba

Azul”. Na segunda, o desvelamento do segredo aclama a veemência de ser curioso.

Veemência, porque se multiplica o efeito da curiosidade a ponto de despertar um desejo que

será incontido: o de entrar no quarto do “Barba Azul”. A chave do quarto é o estímulo que

eufemiza o medo e estabiliza a sensação de um certo friozinho. Ei-la na fechadura do

273
fragmento: “Nada mortal para um homem como o senhor”. Bem, se foi ou não mortal, que o

diga o próprio Prendick, em carta de “O homem solitário” (Wells):

 Não espero ver-me jamais livre do desarranjo que me causou a tremenda


aventura. O pesadelo da ilha agita-se sempre nas profundezas do meu ser.
Miro e remiro as criaturas humanas e sinto medo. Vejo-lhes nas caras a
animalidade oculta; vejo o que está reprimido; não vejo a serena
tranqüilidade do racional que não teme a regressão. Pressinto que o animal
vai de um momento para outro retomar a dianteira e que a desumanização se
fará em escala monstruosa.

Edward Prendick (WELLS, 1962, p. 134).

Quanto ao narrador representado de Cruls, a solução empenhada pela personagem com

qual ele contracena em aldeia da metadiegese, desenrola:

 É verdade! E o ayquec? Malila me disse que o senhor acordou tão


espantado... [...] Fique certo que o senhor viu tudo como se passou. O
ayquec é mesmo extraordinário. Mas o senhor ainda foi feliz. Teve um
sonho empolgante e cheio de visões magníficas (CRULS, 1958, p. 100,
grifos do autor).

Sonho!? E quem é que sabe? A propósito, há que se fazer eco às palavras de H. H.

Ewers87:

Então, eu sou a criação de um


sonho teu? Não, meu pobre amigo, estás
invertendo as coisas. Quem sonha sou eu: tu
és apenas uma ínfima partícula do meu
sonho.

Boa paga para quem atreveu-se a entrar no quarto de “Barba Azul”. O mais certo é que

eles, persona de A ilha das almas selvagens e persona de A Amazônia misteriosa, ainda

continuem lá. Um, em sua tormenta; outro, em suas cismas – e ambos nesse nicho

aprisionados.

87
Em Cruls, 1958, p. 304: dedicado à memória de Tôrres Viana, inesquecível amigo.

274
De toda sorte, optamos, no exercício deste trabalho, por um Fantástico transcendental

cujas linhas dublam as faces do tempo e produzem na atmosfera do (su) posto real o

desolamento do ser. Pressionado por um certo trobismo88 craniano, o ser desolado tende para

o reverso da razão comum. Envolvido, por novas premissas à busca do continuar existindo,

guia-se pelo instinto da coisa que o habita. A conferir, é que se pensar no tudo; e em todos:

todos os que se encontram no domínio do desconhecido (loucos de manicômio, gênios das

experiências...) são orientados por leis fantásticas (lisuras). Como? Simples! : o estar-fazer da

natureza e dos homens é mediado por soluções não-epistêmicas. E tudo, é nome-fantasia de

realidade nenhuma.

Na contemplação desses eventos, na literatura quer de Wells quer de Cruls, subjazem

as figuras do medo em razão do grantema89 da metamorfose. Coisificadas, essas figuras

tramam os semas da natureza dos sentidos e convertem a morte da vida racional na morte da

própria divindade. Isso é o que vimos chamar de entorse do passional, na medida em que a

paixão termina quando o objeto do desejo é experimentado. Começa, um novo momento da

relação entre o ser e a coisa: conhecidos um do outro, deflagram uma batalha pelo reino da

fantasia, pela aventura, pelo poder de sussurrar frenesis. Liminarmente, tornamo-nos

passionais incorrigíveis: subvertemo-nos à perversão do irascível, sacrificamos o purgatório

das almas, a realidade da(s) matéria(s), e (re) significamos, a cada leitura, o imaginário da

vida, do belo, do profano... . Em fins, ainda fazemos arte. Não é Fantástico?

88
Termo derivado de trobar [trovar], para designar as vozes fechadas que fomentam atitudes repentinas,
desconexas, intempestivas... .
89
Grantema: uma aglutinação para grande tema.

275
Últimas palavras

O diálogo com criador, a criação e a crítica crulsianos chega, nesse momento, numa

pequena pausa. Uma pausa na qual queremos pousar nossas reflexões e recordar a intensidade

da arte de Gastão Cruls. Em nossas recordações, pois, vimos um artista que ignorou os

artifícios e as mesuras de grupos que se estremavam na discussão de estéticas e do direito, no

âmbito do cânone literário brasileiro. Cruls alçou velas à liberdade. Sabia que o exaspero das

grandes euforias é algo efêmero  um transbordo e um efeito borboleta de emoções que

tendem a ser amainadas. Com a paciência e a sobriedade do crítico que nele vivia, G. Cruls

aguardou em silêncio que o calor das primeiras manifestações modernistas fluísse para

veredas de um caminho mais brasileiro, menos estrangeiro; mais coerente, portanto, com os

ideais que lhas deram identidade e expressão nacionais.

Com toda certeza, foi muito difícil a um autor, que sabia estar na liberdade do artista a

justiça à arte, esperar gerações pelo comprazimento da práxis discursiva do Modernismo e o

fazer literário, ou com o fazer artístico como um todo, considerando que as artes em geral no

Brasil passaram a dispor-se mais para o que realmente é e sempre foi importante: o

descobrimento e a revelação artística do Brasil por brasileiros.

A obra de Cruls, diversa em gêneros, profunda na caracterização do drama e

soberbamente impressiva no quadro das paisagens brasileiras do Norte, do Nordeste e do Rio

de Janeiro, nos apresenta um brasileiro genuíno que sonhou e sofreu à espera de um Brasil

que, em vez de lamentar suas diferenças, as visse somadas. Em Gastão Cruls, pois, realizou-se

em forma de arte, a expansão de um gênio que descortinou painéis impressivos do Agreste, da

Amazônia, bem como dos arranha-céus da cidade e da personalidade humana. Lendo sua

diversidade temática, surpreendemos, a cada narrativa, a eminência do novo e o engajamento

do elemento humano com a vida do ambiente.

276
Não temos dúvida: por escrever uma literatura contemporânea sempre, Gastão Cruls

foi rabiscado por aqueles que o queriam conformado na concha fechada de uma tradição que

chegava para substituir a tradição clássica. Tradição por tradição, Cruls preferiu a sua: a de ser

fiel e honesto ao artista livre que morava no seu peito, e que vive, eterno, na obra que criou.

Quer na terragua90 amazônica, quer no severino agreste nordestino, quer na maravilhosa

cidade da garota de Ipanema  Cruls foi, o tempo todo, um anfitrião do pitoresco local

brasileiro. Foi o jardineiro do Alto da Boa Vista e a flor das Laranjeiras, lugares em que

morou por mais tempo. Apontado pela crítica como um dos reveladores da realidade

brasileira, vale lembrar que, ainda hoje, são poucos os escritores das nossas letras que

souberam dar tanta vida e realidade às suas criações. Não por acaso, pois, Gastão Cruls é

apontado por alguns críticos, como vimos, ao lado de um Machado de Assis.

Naturalmente, Cruls projetou a arquitetura excelsa da liberdade criadora. Os primeiros

matizes desacoplaram-se do homem tradicional ainda enquanto assistente do Dr. Miguel

Couto, como podemos ver no texto “Miguel Couto” à antologia dos textos de Cruls

publicados no “Boletim de Ariel”, no “Volume 2”. Aí, Cruls nos conta como fez saber ao

amigo e mestre sua decisão de enveredar-se pela literatura, depois de muito pesar os prós e os

contras e tomar conhecimento de que não poderia esperar o mesmo compromisso de retorno,

em razão, podemos dizer, de seu espírito incapsulável e de serem as suas letras uma roseira

sem redoma.

Assim, de flores e de espinhos preencheu suas mensagens, mantendo-se coerente com

a dualidade da sua natureza ao mesmo tempo científica e fantástica. A propósito, Gastão Cruls

manteve-se coerente também com a diversidade da própria realidade brasileira,

potencialmente dual e que acena hospitaleira e terna ao encontro das raças e à troca de idéias,

tão necessários à realização social ou do “sábio comunismo”, expressão usada por Cruls na

sua Amazônia misteriosa.


90
Palavra composta por aglutinação: terra e água.

277
À leitura dos textos de Gastão Cruls crítico e de Gastão Cruls artista, percebemos o

homem sensibilizado com o sofrimento e a dor do outro, como, a propósito, nos revela a

construção da personagem Pacatuba ainda na Amazônia misteriosa. Aliás, a antífrase na qual

essa personagem é construída é ainda a antífrase de tantos brasileiros excluídos, por uma

desculpa ou outra, de uma participação recíproca da sociedade. Nos contos e romances

crulsianos, entreouvimos tipologias textuais que exteriorizam a visão do artista, as suas

experiências e os seus sentimentos em relação ao próximo. Na sua criação, pois, a prosa e a

poesia, a ciência e a fantasia fragmentam-se e se perdem em favor de uma narrativa única, que

maravilha a própria palavra e sugere a não-dissociação do homem no homem.

Pensando a respeito, o íntimo agitado de Cruls, do qual nos falou seu amigo Silva

Melo, tentava constantemente assimilar o olhar do outro, ver o outro pelos olhos desse outro.

O introspectivo olhar crulsiano, que pode ser verificado em todos os seus contos e romances,

marca a orientação de um discurso em função do interlocutor. Nesse sentido, a dualidade

crulsiana se nos revela não apenas a composição do subjetivismo literário, nem somente a

recomposição da história, mas, acima de tudo, uma relação de vida entre o texto, o autor e o

leitor. Dessa forma, o discurso do artista sai das imagens para o plano da reintegração do

signo que acarreta, em si, a sociabilidade da língua, sendo essa sociabilidade, o primeiro

princípio que deveras nos aproxima  o princípio da socialização do homem com os homens

e dos homens com o meio.

Por fim, somos nós os leitores e os para quem se lê os expoentes do estilo socializador

de Gastão Cruls. Contar prosas e romancear causalidades, promover o lirismo no ciclo das

relações humanas, tornar um épico um acontecimento; são estes exemplos de intervenção na

realidade por meio do utiludismo e de uma leitura crítica do mundo e dos textos, convertidos

em pensamentos e atitudes com práticas sociais e socializantes. Com um discurso orientado

pela presença do outro, a presença de Gastão Luis Cruls é companheira desses autos e

278
cooperadora na função humanizadora do homem. Em síntese, a própria aura do artista

traduzida na coexistência das culturas e pontuada numa retórica de articulação e evocação da

sociedade.

No volume a seguir, oferecemos uma lenda concreta de uma parte de tudo que

apresentamos aqui. Com a palavra, os críticos e o próprio Gastão Cruls em páginas que

certamente reafirmarão o convite de recuperar nossas memórias esquecidas, e de ler de novo

as obras do artista. Esperamos que Cruls volte para ficar, que finalmente se cumpra o

reconhecimento teimosamente tardio, pelo próprio autor condicionado ao valor da sua obra,

como podemos ler em sua entrevista a Raimundo de Meneses (1956), na antologia que abre o

“Volume 2”.

Ao virar esta página, suspiramos nosso primeiro esforço, mas o leitor ainda se haverá

no ar às voltas com tudo que está ainda por dizer: camarinhas em alto mar91. Todavia,

esperamos haver transmitido parte da história de um autor injustamente esquecido, posto ao

largo do reconhecimento e tornado um proscrito da literatura, silenciado, sentenciado e

exilado. Desejamos, conquanto, por essa história que (re)buscamos através do diálogo com a

crítica crulsiana, e através das análises que desenvolvemos, ver apendoada uma nova recepção

capaz de tocar, suficientemente, a sensibilidade e o desejo pela (re)leitura das obras de Gastão

Cruls, a começar agora pelas benvindas, esperamos, linhas da crítica e da arte crulsianas.

91
Expressão figurada com sentido de muitas pequenas coisas ainda não descobertas. Cada pequena coisa em
alto mar pode ser muito grande quando avistada.

279
A obra de Gastão Cruls92

CONTO

1920

Coivara. Rio de Janeiro: A. J. de Castilho, 1920.

Neste Volume:

 O Noturno Nº 13

 Cipó braúna

 G. C. P. A.

 A noiva de Oscar Wilde

 Noites brancas

 Um aasvero moderno

 O caçador de pacas

 A morte do saci

 A neurastenia do professor Filomeno

1923

Ao embalo da rede. Rio de Janeiro: A. J. de Castilho, 1923.

Neste Volume:

 Flor do tabuleiro

 O último encontro

 A eutanásia

92
Não constamos, nesta oportunidade, as obras reeditadas; nem as versões em inglês e em quadrinhos da
Amazônia misteriosa.

280
 No clube

 O assassinato de Roberto Flores

 Antíope e o sátiro

 O abcesso de fixação

 Biró

 Ao embalo da rede

 No templo de Palas

 O segredo da esfinge

1938

História puxa história. Rio de Janeiro: Ariel, 1938.

Neste Volume:

 Contas brabas

 Mãe dágua

 Arrependimento

 Meu sósia

 Carta de outro naipe

 A patativa

 Circuito da Gávea

 Iniciação

 O espelho

 Do outro lado

 Fauna exótica

 Fim de viagem

1951

Quatuor. In: Contos Reunidos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1951.

Neste Volume:
281
 A viagem

 Conto de Natal

 Baking-Powder Intelectual

 O bom moço

1951

Contos Reunidos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1951.

Neste Volume:

 COIVARA

 AO EMBALO DA REDE

 QUATUOR

 HISTÓRIA PUXA HISTÓRIA

ROMANCE

1925

Amazonia Mysteriosa. Rio de Janeiro: A. J. de Castilho, 1925.

1927

Elsa e Helena. Rio de Janeiro: A. J. de Castilho, 1927.

1928

A criação e o criador. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1928.

1934
282
Vertigem. Rio de Janeiro: Ariel, 1934.

1954

De pai a filho. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1954.

1958

Quatro romances. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1958.

DIÁRIO DE VIAGEM

1930

A Amazônia que eu vi. Rio de Janeiro: Tipografia do Anuário do Brasil, 1930.

DOCUMENTÁRIO

1944

Hiléia Amazônica. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1944.

1949

Aparência do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1949.

283
1950

Antônio Torres e seus amigos. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1950.

1968

A arte indígena. Direção e Introdução: Rofrigo de M. F. Andrade. Rio de Janeiro: Tecnoprint,

1968. (As artes plásticas no Brasil).

TRADUÇÃO

Ciúme (romance), de René-Albert Guzman.

A caminho da forca (romance), de T. S. Matthews.

Minha vida, de Isadora Duncan.

Nijinsky (biografia), de Romola Nijinsky.

Luxúria (romance), de J. Kessel.

As grandes expedições científicas do século XX, de Charles Key.

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