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Lawrence
Ana Maria Leal Cardoso
Universidade Federal de Sergipe, Av. Marechal Rondon, s/n, 49100-000, Jardim Rosa Elze, Sergipe, Brasil.
E-mail: analealca@yahoo.com.br
primitivo do México. Por ocasião do espetáculo de metanóia, que se impõe como uma transformação
uma tourada, ela assiste a um ritual de sangue que a radical da psique. E não só da psique, pois é o
deixa completamente chocada, ante a visão de um indivíduo todo que se transforma. Nesse processo, a
touro gotejando sangue, chifres mergulhados no energia faz o percurso inverso daquele empreendido
ventre de um velho cavalo. Na cultura ocidental, a na primeira parte da vida, no qual o ego tem por
escuridão do mal está associada aos aspectos tarefa se separar do coletivo. Assim, a angústia da
femininos obscuros, em particular à sexualidade protagonista é um sintoma de que algo não está em
reprimida, para onde se encaminha parte da luta da harmonia no seu universo psíquico, e tudo aponta
personagem. Descer às profundezas da escuridão para um confronto com a sombra, abalando a
contém outro fenômeno misterioso, que é a luz persona.
“centro da escuridão”, a qual simboliza um O México desencadeou, em Kate, a descida ao
renascimento. Jung assinala que o Self está oculto no mundo anímico, o que se assemelha a uma “viagem
inconsciente, é preciso buscá-lo. Deste modo, ao inferno”, em proporções psicológicas, agencia
entendemos que os esforços de Kate, para alcançar o uma ruptura na forma de ver e conduzir a vida, o
“centro subterrâneo”, revelam os segredos do Self, que significa um reflexo do seu interior. Começa
que diz respeito à sua natureza essencial. A tourada é um novo ciclo que requer um afastamento do
uma representação dos sacrificados, oferecidos à mundo, na busca do seu eu verdadeiro, da sua
Deusa Mãe. Na verdade, Kate é a vítima sacrificial. personalidade unificada. Consoante Jung, na
Como prática ritualística, o sacrifício manifesta o segunda metade da vida do indivíduo, há um
instinto criativo que implica a destruição/construção encontro com alguns arquétipos que irrompem do
da passagem anímica, em seu fluir incessante. inconsciente, projetados em imagens, o afastamento
Do ponto de vista mitológico, esse retorno ao do mundo viabiliza um voltar-se para si mesma,
passado arcaico inscreve-se como um processo fazendo emergir do seu íntimo uma nova direção
iniciático da trajetória de transformação, que teve para a vida.
seu começo com o deslocamento espacial. Na O Self emite uma espécie de convite para que se
jornada do herói, um dos grandes obstáculos é o resolva uma situação difícil, por meio da reflexão.
medo de enfrentar o desconhecido. Na travessia de Kate parece pressentir o turbilhão em que estava por
Kate, o México se lhe configura uma grande ameaça. ingressar sua psique, de modo que assiste, no
Ainda na primeira fase da trajetória, a personagem México, à sua morte psicológica
recebe um convite da senhora Norris − uma Por que viera àquele alto platô de morte? O México
arqueóloga idosa, que estuda os objetos astecas − tivera no passado um complicado ritual de morte.
para um chá, ocasião em que conhece Dom Ramón [...] inútil perguntar a si mesma por que viera
e Cipriano (o general Viedna), num ambiente (Lawrence, 1989, p. 38).
envolto em mistério. O primeiro é um espanhol de
No fundo, Kate sentia que seu espírito havia sido
aproximadamente 50 anos, que morava no México
consumado na Europa:
há cerca de 20 anos, e pretendia revivificar o panteão
mexicano, por meio de um movimento conhecido Na Inglaterra, na Irlanda e na Europa, ouvira o
como “Homens de Quetzalcoatl”; o outro era um consummatun est do seu espírito. Estava tudo
índio nativo, um general do exército mexicano e terminado, mergulhado numa espécie de agonia
amigo íntimo de D. Ramón. (Lawrence, 1989, p. 38-39).
Uma notícia de jornal, anunciando que “Os
O despertar da consciência Deuses da Antigüidade voltam ao México”, chama-
A segunda etapa da travessia mitológica refere-se lhe a atenção e motiva-a a procurar o sentido do
anúncio e um lenitivo para sua vida. Desejou saber o
à aventura propriamente dita. Começa com o
que estaria por trás daquilo tudo. Releu-a
quadragésimo aniversário de Kate, que ocorreu uma
novamente e sentiu que: “uma luz diferente parecia
semana depois de instalada no México:
iluminar as palavras daquele artigo do jornal. Sentiu
[...] despertou certa manhã com quarenta anos vontade de ir a Sayula. Desejou um deus na sua vida”
completos. Era um golpe. Quarenta anos! (Lawrence, 1989, p. 43).
Atravessava-se uma fronteira. De um lado, estava a Não obstante o lugar lhe parecer terrível, a
juventude, a espontaneidade e a ‘felicidade’. Do outro, personagem decide ficar por mais algum tempo.
reserva, responsabilidade (Lawrence, 1989, p. 37).
Kate vive o seu processo de individuação,
Segundo Jung, em torno dos quarenta anos, a desencadeado por uma série de conflitos, dentre
pessoa vivencia o processo de individuação, ou eles, a morte do marido Leslie. Segundo Jung (2000,
p. 286), alguns conteúdos arquetípicos são morado em Oxford. Era um exímio conquistador de
constelados quando se vivencia a metanóia. Com a adeptos para o movimento religioso, em prol do
irrupção da imagem arquetípica, a libido volta-se deus Quetzalcoatl − D. Ramom encarnado − do qual
para o inconsciente, é como se voltasse para a mãe, se torna o Primeiro Homem, isto é, aquele que
contra o que se opõe também. O espírito europeu de responde pelo deus, quando da sua ausência, além de
Kate estava farto de significados definidos, de encarnar o seu lado negativo. A notícia do jornal era,
normas estabelecidas que a aprisionava, “Queria sair, na verdade, apenas um atrativo, pois ambos
desembaraçar-se novamente” (Lawrence, 1989, p. “desejavam que ela seguisse o plano”. Assim, Kate
45). Na verdade, Kate “sonhava” com a descoberta cai tanto na armadilha dos deuses, quanto na
de si mesma. armadilha do inconsciente.
Um dos problemas da mulher está em integrar o Naquele lugar “sagrado”, a protagonista descobre
arquétipo do animus, a contraparte sexual da que o fluxo de sua vida se rompera, e ela sabia não
identidade feminina. Caso a mulher não consiga poder reatá-lo na Europa. O processo de
fazê-lo adequadamente, o animus pode tornar-se individuação é uma forma de viabilizá-lo, isto é, de
autônomo e negativo, agindo de maneira destrutiva, conciliar-se com uma parte de si mesma. A pressão
sobre o próprio indivíduo, bem como sobre suas psicológica sofrida por Kate não é mais do que um
relações com outras pessoas. Esse processo está quadro do conflito subjetivo que se processa dentro
ligado às noções de ritos religiosos, que tem a função de cada indivíduo. Stein (2002) afirma que o animus
de integrar o indivíduo no seio da sociedade. Assim, corresponde ao instrumento pelo qual a mulher
o despertar da consciência abre os olhos de Kate atinge as partes mais profundas de sua natureza
entre o que ela é e o vir-a-ser. Não obstante o fato psicológica, é o arquétipo da adaptação interior. Em
de estar mergulhada em um turbilhão de conflitos, Kate, processa-se um duplo confronto em que se vê,
ela sabia que primeiro, a luta do ego versus a sombra (evidenciado
era preciso renascer. [...] era preciso conquistar na repulsa de Kate, projetada nos nativos e na terra
aquele suave desabrochar do ser. Talvez fosse aquilo mexicana), e, posteriormente, do ego com animus.
que a trouxera ao México, longe de todo mundo Kate aluga, em Sayula, uma casa à beira do lago
(Lawrence, 1989, p. 44-45). que lhe parecia perfeita: fresca, sombreada, com
todas as peças abrindo para a varanda. Mircea Eliade
Em busca do divino (1992, p. 50) postula que se instalar num território,
construir uma morada, “implica uma decisão vital,
A busca mitológica de Kate corre paralela à
tanto para a comunidade como para o indivíduo;
psicológica, empreendida pelo ego (herói). A viagem
trata-se de assumir o ‘mundo’ que se escolheu para
metaforiza os processos psicológicos do caminho da
habitar”. A cidade também lhe causou boa
individuação, o que significa que seu destino está
impressão, e Kate “Sentiu novamente aquela
guardado no inconsciente e que é chegada a hora de
plenitude feita de paz, baixar sobre ela” (Lawrence,
aspectos diferentes dele se manifestarem. Parte, à
1989, p. 80). Do ponto de vista mitológico, a cidade
noite, num trem que parecia “serpentear, lento, pela
simboliza o “ventre da baleia”, lugar em que se
ribanceira selvagem e rochosa”. A última etapa da
operam grandes transformações na personagem.
viagem é feita de barco, conduzido por um
Campbell (2000, p. 84) entende que:
barqueiro aleijado,
todas as grandes revelações interiores só acontecem
que remava com vigor, demonstrando grande força.
quando se deixa para trás os padrões do passado, pois
O barco adiantava-se lento, no silêncio da noite
instiga as qualidades gêmeas de fé e entrega,
desaparecida, sobre as águas cheias e pardas
fundamentais para o buscador.
(Lawrence, 1989, p. 67).
Juana, a zeladora da propriedade, era uma índia
O barqueiro − uma alusão ao mito de Caronte,
baixa, de 40 anos, que morava nos fundos, com seus
rei dos infernos − metaforiza o auxiliar de passagem três filhos. Kate detestou-a à primeira vista, ao vê-la
na travessia de Kate. Ao longo da travessia, ela viu catando piolhos na filha. Do ponto de vista
homens tomando banho, “a epiderme tinha a cor do psicológico, Juana representa a sombra primitiva da
bronze rosado e o brilho dos nativos. Um deles protagonista. Na concepção da psicologia moderna,
tinha físico musculoso e macio dos índios” trazemos, em nós, o homem primitivo, inferior com
(Lawrence, 1989, p. 70). Este último era uma seus apetites e emoções, e só com grande esforço,
manifestação do animus da protagonista. podemo-nos libertar de tal peso. Mas, a sombra não
Em Sayula, encontra-se com Cipriano, um índio é de todo negativa, pois é por meio dela que a
baixo, pele morena e bastante instruído, pois havia protagonista se reaproxima de D. Ramom, por
Acta Sci. Lang. Cult. Maringá, v. 30, n. 1, p. 37-44, 2008
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informe, onde o ego é confrontado com o arquétipo. rumo ao Self (a divindade). Ao experienciar tal
A invasão pelo uroboro paterno é correspondente a arquétipo, Kate atinge os “altos e baixos” do seu
uma experiência inebriante a ser dominada. Essa universo psíquico, o que se traduz em dificuldade,
força “arrebatadora”, Kate não vivencia em relação a pois o ego estava sendo bombardeado por imagens
um homem concreto, mas sim com um nume do inconsciente coletivo, durante todo o percurso da
transpessoal, isto é, o deus, em forma de serpente. sua travessia mítico-psicológica.
Compreensivamente, é com medo que ela vivencia O desafio de casar-se com Cipriano, tornar-se a
sua incapacidade de conter, dentro de si, o falo da deusa Malintzi, a Primeira Mulher de
divindade serpente – aquele que vai oportunizar a ela Huitzilopochtli (o deus da guerra), caracteriza a
o casamento com o animus. No entender de aceitação, a realização do Eros reprimido que
Neumann (2000), o masculino pode aparecer em estivera, durante toda a sua vida, esquecido na parte
forma de serpente, dragão e monstro, em um grande mais profunda da sua psique. Eliade (1992, p. 149)
número de ansiedades sexuais e comportamentos afirma que o casamento desempenha um papel
neuróticos da mulher, dificultando o seu importante na vida do homem religioso. Por ocasião
relacionamento com os homens. Entretanto, na do seu acontecimento, tem lugar também uma
entrega feminina de aceitação dessa situação, a passagem de um grupo sócio-religioso a outro.
mulher é levada à vitória sobre o medo. Tão logo o Campbell (1993, p. 119) assinala, que o herói que
indivíduo volta a se conectar com o mundo além da segue em busca do pai, abre sua alma além do terror;
escuridão e do medo, o animus surge como uma ele transcende a vida, com sua mancha negra
imagem positiva. peculiar e, por um momento, ascende a um
Ao tomar ciência da verdadeira identidade de vislumbre da fonte. A trajetória mítico-psicológica
Ramón, Kate compreende a atração que sentia por da protagonista descreve rituais coletivos e
ele, pois não conseguia sequer se manter afastada de individuais, pertinentes ao “processo” iniciático do
Jamiltepec, a fazenda de D. Ramon e santuário do herói que contempla a face do pai, e, assim, os dois
deus Quetzalcoatl, conforme podemos observar no entram em sintonia. Kate, finalmente, descobre que
trecho selecionado: “Fiquei tão contente por voltar. “Sozinha, nada era. [...] Como indivíduo isolado
[...] Minhas entranhas anseiam por Jamiltepec” tinha pouco ou nenhum sentido. Como mulher
(Lawrence, 1989, p. 186). Baseada nas palavras de independente era repulsiva” (Lawrence, 1989, p. 287).
Stein (2002), em que este afirma que o animus pode
surgir numa estância mais elevada como Self, que Conclusão
aparece quase sempre em a forma de um
Ao final da nossa análise, entendemos que a
mitologema religioso, somos tentadas a afirmar que
personagem Kate perde a sua individualidade
Ramón metaforiza a projeção do animus positivo da
conhecida para assumir uma identidade arquetípica,
heroína relativo ao aspecto espiritual. Este, por sua
representada pelos deuses mexicanos
vez, é o mediador da experiência religiosa, por meio
“Os anos pareciam afastar-se dela em grandes
da qual a vida atinge novo significado.
círculos. [...] Cipriano facilmente tornara-se o deus
Mas para realizar o sonho de “recompor” o
redivivo. E ela, a deusa-noiva, Malintzi” (Lawrence,
panteão dos deuses mexicanos, Cipriano propõe
1989, p. 290-291). Do ponto de vista psicológico,
casamento a Kate, que, de início, nega-se a aceitá-lo Dom Ramón (Quetzalcoatl) simboliza o Self divino,
como marido. Na verdade, ela esboça um plano de elemento de equilíbrio entre o animus encarnado
fuga. “Precisava fugir, escapar para uma terra de por Cipriano (essencialmente humano) e a anima
brancos. Como seria bom!” (Lawrence, 1989, p. (Sofia), elemento feminino evoluído, personificado
176). Do ponto de vista psicológico, o medo e o por Kate.
nervosismo são sintomas de uma relação não- Compreendemos que este triângulo representa a
compatível com o animus. Emma Jung (1992, p. 23) serpente urobórica, uma vez que aqui se fecha, num
destaca que “trata-se da libido que não encontra todo completo, a interioridade humana do logos, da
nenhuma aplicação adequada e uma vez reprimida força física e da sabedoria, frutos da evolução do
em si mesma, ataca algum ponto físico”. homem. Desta forma, vemos na imagem triádica dos
Instaura-se uma luta com o animus, que surge deuses astecas: Quetzalcoatl (deus da sabedoria),
nas suas polaridades negativa e positiva, projetadas Huitzilopochtli (deus da guerra) e Malintzi (a deusa
em Cipriano e Ramón, respectivamente. O primeiro virgem), respectivamente, Lucifer, Adão e Eva (na
inscreve-se como a possibilidade da realização dos Mitologia hebráica), uma representação simbólica da
instintos sexuais (Eros), o outro, à questão espiritual luz do fogo e do ar. Com Dom Ramón (animus
(Logos) que conduzirá o ego na sua longa travessia, superior), a protagonista firma laços de amor