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05/08/2015 Em novo livro, filósofo Jacques Rancière analisa contradições do sistema representativo ­ Jornal O Globo

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Em novo livro, filósofo
Jacques Rancière
analisa contradições do
sistema representativo
‘A democracia que nossas oligarquias defendem é, de fato, o
confisco da democracia’, diz pensador franco­argelino
POR CARLA RODRIGUES, ESPECIAL PARA O GLOBO
06/09/2014 7:00

O filósofo franco­argelino Jacques Rancière, 64 anos, é desses PUBLICIDADE

pensadores contemporâneos resistentes a classificações. Sua
obra é normalmente associada ao campo da estética, mas essa PUBLICIDADE

identificação não é suficiente para delimitar seu percurso,
marcado por tomadas de posição política mesmo quando o
assunto principal parece ser arte, imagem ou comunicação,
temas dos seus principais livros já traduzidos no Brasil, como “O
espectador emancipado” (Ed. WMF Martins Fontes) “A partilha
do sensível” (Ed. 34) e “O mestre ignorante” (Ed. Autêntica).
Pautadas por uma ideia de comunidade em que o conceito de
comum não pretende excluir o direito à diferença, as obras de
Rancière fazem parte de outra forma de pensar a política, para
além de seu modelo moderno, fundamentado em estruturas de
representação dos partidos e instituições estatais de gestão da
vida social. Essas posições estão mais explícitas em seu novo
livro, “O ódio à democracia”, primeiro título publicado pela
Boitempo Editorial, em que ele defende a noção de comunidade
como eixo orientador do seu pensamento político, como ponto a
partir do qual é preciso buscar a afirmação da autonomia popular
em relação ao Estado.

Escrito para influenciar o debate político francês, marcado pelo
avanço das forças de extrema­direita, é de extraordinária
pertinência no momento político brasileiro, como observa o
professor Renato Janine Ribeiro na apresentação à edição
brasileira. É também relevante ao momento político brasileiro
sua crítica à democracia representativa, cujo contraponto é a
democracia direta. “A representação nunca foi um sistema

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05/08/2015 Em novo livro, filósofo Jacques Rancière analisa contradições do sistema representativo ­ Jornal O Globo

inventado para amenizar o impacto do crescimento das
populações. Não é uma forma de adaptação da democracia aos
tempos modernos e aos vastos espaços. É, de pleno direito, uma
forma oligárquica, uma representação das minorias que têm
título para se ocupar dos negócios comuns”, argumenta ele, para
dizer que a necessidade de representação não é resultado do
crescimento populacional, mas uma estratégia de manutenção do
poder na mão de poucos.

Para Rancière, odeia a democracia todo aquele que pretende
mantê­la restrita a uma forma de governo apropriada pelas
oligarquias em nome da promoção de um bem comum para o
povo, mas que mantém uma hierarquia sobre quem detém o
controle de afirmar o que é o bem comum. Em contrapartida,
amar a democracia é defendê­la como forma de organização
social capaz de promover direitos a todos aqueles que nasceram
sem nenhum título particular para exercer o poder, sem riqueza
ou conhecimento, como ele explica nesta entrevista.

O filósofo Jacques Rancière ­ Arquivo/Laura Marques

O que significa o ódio à democracia que dá título ao
livro?

Quis analisar e criticar uma tendência muito forte na França,
cuja particularidade é tomar a democracia não como forma de
Estado, mas como forma de vida em sociedade. Este ódio
denuncia uma pretensa invasão da igualdade e do igualitarismo
em todos os domínios da vida e a relação com uma figura central:
o indivíduo da sociedade de consumo de massa, que o ódio à
democracia acusa de ser destruidor de todos os laços sociais
tradicionais. O que esse ódio expressa é o ódio à igualdade, e está
acompanhado do recuo efetivo da democracia e da igualdade
nesses Estados. A democracia, no estrito senso desse termo, é o
poder do povo, o poder de qualquer um, dos que não estão
destinados ao exercício do poder por nascimento, riqueza,
conhecimento científico ou qualquer qualidade especial.

O senhor afirma que as sociedades, tanto no presente
quanto no passado, são organizadas pelo jogo das
oligarquias. Não existe governo democrático

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propriamente dito?

Insisti no fato de que o “poder do povo” é impossível de ser
contido em uma fórmula constitucional. Há uma contradição
entre esse poder e a forma estatal em geral, que é sempre uma
forma de privatização do poder de todos em benefício de uma
minoria. Por um lado, isso quer dizer que o poder do povo deve
ter seus organismos e suas formas de ação autônomas em relação
às formas estatais. De outro lado, isso quer dizer que aquilo
chamamos de democracia representativa é um modelo misto,
submetido a duas formas contraditórias. De um lado, nossos
Estados se afirmam como emanação do poder do povo. Mas o
poder do povo supõe ou bem um sorteio, ou bem mandatos
eleitorais curtos, não acumuláveis e não renováveis. Nós temos
exatamente o contrário disso: uma classe de políticos
profissionais cujas frações concorrentes governam em
alternância, seguidos de análises e de soluções imaginadas por
especialistas e por comissões refratárias ao controle popular. A
“democracia” que nossas oligarquias defendem é, de fato, o
confisco da democracia.

O senhor afirma que “não vivemos em democracias”,
mas recusa leituras como as dos filósofos Hannah
Arendt ou Giorgio Agamben, que identificam dentro do
estado democrático um estado de exceção. O que são os
“Estados de direito oligárquicos” em que o senhor
afirma que vivemos?

Não vivemos numa democracia porque a democracia não é uma
forma de Estado ou de sociedade, mas um poder que sempre
excede as suas formas. Mas isso não quer dizer que nós vivamos
em um estado de exceção e que a diferença entre as formas
constitucionais seja negligenciável. Nós vivemos em Estados
oligárquicos moderados que são fundados sobre um
compromisso entre o poder das “elites” e o poder de todos. O
sistema eleitoral é, em todos os lugares, um pouco confiscado por
uma classe de políticos profissionais que trabalha em
colaboração cada vez mais estreita com os representantes das
potências financeiras. Em contrapartida, a liberdade de
informação, de associação, de reunião e de manifestação
permitem a existência de uma vida democrática que transborda
as simples formas parlamentares e estatais da representação do
povo. Esse é um ponto fundamental na minha concepção da
democracia: supõe a existência de um poder próprio do povo em
relação à máquina estatal. A democracia não é uma questão de
instituições, mas de atividade, uma questão de imaginação. Foi o
que aconteceu ontem nas ruas, nas fábricas ou nas universidades,
é o que acontece hoje na internet, na circulação de informação e
nas formas de mobilização que passam pelas redes sociais, pela
ocupação das praças e pela sua transformação em espaço
político. A tarefa democrática é dar ao povo uma figura
autônoma, separada da que se encontra confiscada pelo poder
estatal.
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A democracia como um valor a ser preservado a
qualquer custo na vida política pode nos levar a pensar
que quanto mais democracia — no sentido de mais
abertura aos que até ali estavam excluídos da
democracia — mais ameaça a ela?

Esse tipo de análise toma os efeitos como causas e parte do fato
de que populações que são mais ou menos rejeitadas às margens
da sociedade, pela extensão sem limite da lógica capitalista,
alimentam em parte os partidos eleitorais xenófobos, racistas ou
fundamentalistas. Mas esse fenômeno é uma reação ao caráter
disfuncional do sistema eleitoral e à ausência de uma verdadeira
alternativa à lógica dominante. Na França, os partidos oficiais de
direita e de esquerda monopolizam o poder para fazer uma
política econômica igualmente a serviço das grandes potências
financeiras, e a extrema­direita torna­se a única forma a se
apresentar como exterior ao sistema dominante. O que ameaça a
democracia é a ligação cada vez mais estreita entre a oligarquia
econômica e a oligarquia estatal. Os pretensos riscos da
democracia são de fato consequências do confisco da democracia
por essas oligarquias.

A figura do “homem democrático” se sobrepõe ao PUBLICIDADE

consumidor, ao defensor das minorias identitárias, se
resume a meras demandas por direito individual?

A noção de democracia liberal é uma noção equivocada. Sob esse
nome, geralmente se quis designar um sistema em que o poder
coletivo encarnado no Estado seria contrabalançado pelos
direitos individuais. Mas os indivíduos cuja tradição dita liberal
defenderam esses direitos eram em primeiro lugar os
proprietários. É a figura do proprietário esclarecido, consciente
da ligação entre a coisa comum e seus interesses privados, que a
democracia liberal identificou como cidadão, é o governo das
elites que ela procurou para se garantir em nome do “bem
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comum”. A filosofia política moderna impôs uma visão da
política que se concentra sobre a relação entre comunidade e
indivíduos. A filosofia política antiga sabia que se trata de uma
relação entre comunidades: não simplesmente de classes opostas
por seus interesses econômicos, mas entre maneiras de instituir
comunidades. O poder do “demo”, que não é o poder das classes
populares.

Em certo momento o senhor define a democracia como
um processo de luta contra a privatização da felicidade
e do bem­estar, como luta contra a separação entre o
público e o privado. Por quê?

Frequentemente se considerou a separação entre o público e o
privado como uma marca do bom governo, protetor dos
indivíduos contra a empreitada estatal. Mas eu gostaria de
lembrar que essa separação tinha originalmente outra função:
excluir da política a maioria dos humanos, confinando­os à

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esfera privada. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os
trabalhadores, durante muito tempo considerados apenas no
âmbito doméstico. Foi também o que aconteceu
tradicionalmente com as mulheres, consideradas dependentes de
seus pais ou maridos e restritas ao campo do casamento ou da
família. Mas essas lutas não confirmam os “limites” da
democracia. Elas confirmam, ao contrário, as capacidades de sua
extensão. Essas formas polêmicas de extensão da democracia
transbordam ao que se reduz, frequentemente, nas lutas das
minorias defensoras de suas identidades. Trata­se antes de sair
da condição de “minoria” na qual está a grande maioria dos
humanos, confinados numa condição subalterna.

Carla Rodrigues é professora de Filosofia (IFCS/UFRJ)

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