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que tudo modifica: a cultura, o outro in- Transformado e renovado pela experiên-
terlocutor do debate proposto. Sua voz va- cia de busca de compreensão de outras
riada parece mais frágil, sugerindo uma formas sociais, esse olhar é agora capaz
dimensão interior à relação estabelecida de desvendar dimensões inusitadas de
entre o homem e o mundo. Essa fragilida- seu próprio mundo. Em seu desenvolvi-
de é, entretanto, apenas aparente. Escrito mento, a antropologia descobriu algo
no contexto da controvérsia entre o mar- efetivamente novo e autêntico e a dife-
xismo e o estruturalismo que atravessou rença existente entre a sociedade oci-
as décadas de 1960 e 1970, o livro é uma dental e as demais formas sociais des-
veemente defesa de um conceito antropo- venda um ponto conceitual chave.
lógico de cultura. A sociedade capitalista moderna
Com rigor acadêmico e fino senso de pensa a si mesma como organizada em
humor, os argumentos desdobram-se em diferentes esferas de atividades e de re-
dois planos. De um lado, "razão prática" lações que correspondem a ordens dis-
e "cultura" são noções polares, agregado- tintas do mundo humano: economia,
ras de posições diversas dentro da antro- política, direito, etc. Dentre elas, a esfe-
pologia e das ciências humanas em ge- ra econômica impera e impõe-se a to-
ral, num leque temporal que, inau- das as outras. Ora, nos diz Sahlins, essa
gurado no século XIX, atravessa todo o elaborada auto-consciência de nossa
século XX. De outro, busca-se a supera- sociedade, assumida acriticamente por
ção do dualismo proposto como ponto de tantas teorias, produz a cara idéia de
partida. Conforme o debate percorre as que seríamos seres racionais governan-
arenas intelectuais definidoras de seus do nossas ações e instituindo cultura
próprios termos, delineia-se com força sempre em busca da maximização de
crescente a posição do autor, de base es- interesses materiais. Para o autor, essa
truturalista: a razão simbólica é a quali- visão é uma insidiosa manifestação da
dade específica da experiência humana, "razão prática", gerando não só um véu
aquela experiência cuja condição de ideológico que a sociedade moderna
existência é a significação. lança sobre si como um equívoco con-
O fio condutor da argumentação é a ceitual estendido etnocentricamente a
tensão entre essa sociedade, que simpli- toda a humanidade.
ficadamente chamamos de "nós", e as O efeito de estranhamento produzi-
formas sociais "primitivas", "tribais" ou do pelo esforço de compreensão das so-
"camponesas" que operam como "outros". ciedades ditas primitivas tem papel
Em que pesem as limitações dessa pola- heurístico crítico nesse debate. Nelas,
ridade que marcou o surgimento da dis- como Marcel Mauss revelou, o mundo
ciplina, o livro retira dela proveito ana- se apresenta em uma unidade indis-
lítico máximo. O caminho empreendido solúvel de aspectos; as dimensões per-
é valioso, revelando com nitidez a perti- cebidas, vividas e concebidas do mun-
nência da contribuição antropológica pa- do o são de forma radicalmente diver-
ra as ciências humanas e sociais como sas da nossa. Não é outro o motivo da
um todo e também, especialmente, para conhecida resistência das sociedades
a compreensão mais plena da sociedade tribais à imposição do modelo analítico
capitalista e contemporânea. marxista de determinação da super-es-
Incorporando um século de estudo trutura pela infra-estrutura. Nesse pon-
dos "outros", Sahlins retorna o olhar oci- to, o debate poderia enfraquecer-se
dental sobre a sua própria sociedade. diante da solução aparentemente fácil
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