Sunteți pe pagina 1din 48

João

Manuel de Oliveira




Desobediências de Gênero







Editora Devires

Conselho Editorial

Carlos Henrique Lucas Lima
Djalma Thürler
Fran Demétrio
Jaqueline Gomes de Jesus
Joana Azevedo Lima
João Manuel de Oliveira
Jussara Carneiro Costa
Leandro Colling
Luma Nogueira de Andrade
Guilherme Silva de Almeida
Marcio Caetano
Maria de Fatima Lima Santos

João Manuel de Oliveira




Desobediências de Gênero
2017, João Manuel de Oliveira
Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.

EDITOR/DIAGRAMAÇÃO | Gilmaro Nogueira

CAPA | Caco

FOTOGRAFIA | Zazo Guerra

OL48d Oliveira,
João Manuel
de
Desobediências de gênero / João Manuel de
Oliveira. – Salvador, BA: Editora Devires,
2017.
124p.
ISBN: 978-85-93646-03-4
1. Feminismo. 2. Identidade de Gênero. 3.
Teoria queer. 4. Feminismo negro. I. Oliveira,
João Manuel de. II. Título.
CDD 140.17
CDU 141.134.3(81)

Índice para catálogo sistemático:
1. Feminismo: 140.17
1. Tipos de pontos de vista filosóficos – Feminismo: 141

Editora Devires
Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA
www.editoradevires.com.br


SUMÁRIO

PREFÁCIO

MARIAS COMO PREÂMBULO

FEMINISMOS NEGROS, DAS DIFERENÇAS E NAS MARGENS

LÉSBICAS, QUEER E TRANSFEMINISMOS: ENCARNAÇÕES FEMINISTAS


TRÂNSITOS E DEMOCRACIAS DE GÊNERO
REFERÊNCIAS

NOTA BIOGRÁFICA




PREFÁCIO

Para não ser obrigada a nada!

Leandro Colling[1]

Conheci João Manuel de Oliveira no início de uma noite meio fria em outubro
de 2013, em um café no Bairro Alto, em Lisboa. Eu estava começando a realizar
as entrevistas para minha pesquisa sobre o movimento LGBT e o ativismo queer
em Portugal, Espanha, Argentina e Chile. João foi a primeira das 35 pessoas que
eu entrevistei nesses quatro países. A entrevista durou umas duas horas e foi
fundamental não apenas para eu compreender um pouco das tensões
portuguesas, mas também por direcionar boa parte da pesquisa que culminou no
livro Que os outros sejam o normal, lançado em 2015 pela Editora da
Universidade Federal da Bahia.

Em junho de 2014, quando eu fazia a pesquisa de campo em Madri, novamente
nos encontramos e foi lá que consolidamos nossa amizade nas atividades do
Orgulho Crítico, que é realizado por vários coletivos dissidentes da Parada
LGBT local. Participamos de vários debates, lançamentos de livros, da própria
marcha do Orgulho Crítico e, é claro, de festas e muitas conversas em bares de
Lavapiés. Depois disso, não desgrudamos mais. Já nos encontramos outras vezes
em Lisboa e em Salvador, cidade onde ele veio para passar o Carnaval e ficou
meses em minha casa...

E por que estou falando disso no prefácio do livro dele? O que uma coisa tem a
ver com a outra? Pois saibam que tem tudo a ver. A nossa amizade se consolidou
porque compreendemos os feminismos de uma forma muito parecida. E é isso o
que João faz neste pequeno-grande texto: ele explica como compreende os
feminismos desde uma mirada pós-colonial e queer.

Logo em nossa primeira conversa percebemos como temos leituras muito
semelhantes e também trajetórias que se afastam de persectivas mais
disciplinares (ele da Psicologia e eu da Comunicação). E o mais importante:
essas leituras mudaram nossas vidas, nossas compreensões sobre ativismos,
militâncias, relações interpessoais, afetivas, sexuais... É por isso que sentimos
saudades um do outro, de nossas conversas, nem sempre amistosas ou em
concordâncias, regadas a vinho na brisa quente de Salvador ou na mais amena
(para ele sempre de um frio insuportável) de Lisboa. E ao ler o texto, matei um
pouco da saudade que sinto do João porque a cada frase que eu lia parecia que
estava a escutar a sua voz, com seu sotaque, suas pausas, seu sorriso sempre
estampado no rosto, olhos bem puxados, quase fechados, sua ironia, às vezes seu
sarcasmo, acompanhados de uma longa risada e a exclamação: “porque eu não
sou obrigada a nada!”

É isso: o feminismo que o João defende e adota é um feminismo que, se pudesse,
faria com que não fossemos obrigadxs a nada. Um mundo sem sexismo,
racismo, machismo, misoginia, heterossexismo, heteronorma. E como fazer
isso? Não há uma só resposta, pelo contrário, existem mil. Mas isso não quer
dizer que o livro não aponte direções: interseccionalidade com vários
marcadores sociais das diferenças, fuga dos binarimos e de qualquer
essencialismo, críticas e alertas aos perigos das rígidas políticas identitárias e
aspirações aos ideiais que nos subalternizam são apenas algumas dessas
direções. E assim João constroi o seu texto quase que como uma aula capaz de
ser compreendida por iniciantes sem com isso simplificar as complexas reflexões
produzidas, em sua maioria, por extraordinárias mulheres.

Se jogue nessa leitura que é rápida, mas não sem consequências.














A Dandara dos Santos, morta por espancamento e filmada por desobediência
de gênero, em Fortaleza.
A ela, que mostrou toda a vulnerabilidade e horror do humano.











“Digo: Chega.
É tempo de se gritar: chega. E formarmos um bloco com os nossos corpos”
(Novas Cartas Portuguesas)
Marias como preâmbulo

Este livro começa com as Novas Cartas Portuguesas em epígrafe. Trata-se
da grande obra do feminismo português, desafiando tudo e todos, evidenciando
uma resistência criativa que há mais de 40 anos inspira fugas à ordem de gênero,
como esta, escrita por três Marias, partilhando um espaço biográfico, pessoal e
político, mas num outro tempo. Três mulheres, Maria Isabel Barreno, Maria
Teresa Horta e Maria Velho da Costa, que desconstruíram noções de autoria, ao
abordarem o continente desconhecido das sensações corporais das mulheres, o
orgasmo, o prazer. Desafiaram a literatura e desafiaram o país cinzento, beato e
fascista que as levou ao tribunal sob acusação de pornografia e atentado à moral
pública. Um momento alto do feminismo global (Amaral & Freitas, 2014), com
a organização de várias atividades em muitos países, desde boicotes,
manifestações, até abaixo-assinados de apoio às três Marias. Uma das primeiras
iniciativas internacionais do feminismo dos anos 70 foi precisamente este apoio,
para além da importante contribuição teórica da obra que permaneceu esquecida
(Oliveira, 2014a). Este livro que tem nas mãos, tem afinidades com as Novas
Cartas, uma inspiração constante.
Com a minha amiga Lynne Segal, aprendi que o feminismo vive em nós
como uma luta de várias gerações e de várias idades, tal como a nossa
autopercepção ao longo de uma vida: ser várias e ao mesmo tempo sermos nós.
Cremos ambas profundamente na intergeneracionalidade do feminismo e assim
acredito que o meu feminismo tem mais relação com as 3 Marias do que com
feminismos liberais de má consciência.
Tenho a memória recente de assistir com a minha sobrinha Inês, de 2
anos de idade, ao clássico de animação Cinderela. A conhecida história da filha
do primeiro casamento do pai que vive com a madrasta e as suas duas filhas, o
convite para o baile onde o Príncipe vai escolher a noiva. A animosidade da
madrasta e das irmãs ou filhas da madrasta, entre outras peripécias, compõem a
história da Gata Borralheira, como também é conhecida em Portugal. Nesse dia,
enquanto aninhava a minha sobrinha Inês, ao colo, desenrolava-se este drama
que termina com um final feliz (será mesmo?). As lentes das teorias do gênero e
do feminismo não me deixavam ver a história sem equacioná-la no plano mais
alargado das relações sociais de gênero e no modo como estas tocam outros
vetores da estruturação social. Senão, vejamos:

1. Cinderela passa a vida a esfregar e a limpar a casa da família, que se
aproveita da sua força de trabalho sem o consequente pagamento da mão
de obra. Cinderela, sendo mulher tal como a Madrasta e as suas filhas, e
com elas partilhando residência, é, no entanto, tratada como empregada
doméstica, assegurando as tarefas de que as outras mulheres não querem se
ocupar, constituindo uma classe à parte dentro daquela burguesia. Portanto,
solidariedade feminista, nenhuma; sororidade, ainda menos. Não fossem a
Fada-Madrinha (fora dos laços familiares) e os animais cúmplices, ainda
hoje a Cinderela estaria a esfregar a louça suja das suas parentes. Comum a
todas, corpos marcados pelo gênero que lhes foi atribuído, ninguém é
trans* nesta estória...
2. O Príncipe organiza um baile para escolher uma noiva. Este mercado de
carne sexista onde as mulheres são trocadas entre homens, do pai passando
para o marido, que, neste caso, implicava uma mobilidade de classe para a
eleita, tem como pressuposto a concepção de que mulheres são tidas como
uma espécie de mercadoria, de bem de consumo, e que estão ali na
expectativa de agradar ao Príncipe e dispostas ao trabalho emocional,
sexual e afetivo.
Esta conjugação revela a dependência econômica que as
mulheres tinham em relação aos homens, nas classes burguesas e
brancas, quando dependiam do modelo do “homem que ganha o pão” e
da mulher que fica em casa e assegura as tarefas do privado. Este modelo
que a análise marxista consagra como fulcral para a emergência do
capitalismo (Oliveira & Amâncio, 2002), assegura que há uma divisão
sexual do trabalho que coloca os homens como responsáveis pela
dimensão da produção, vendendo a sua força de trabalho a quem dispõe
dos meios de produção, e, por sua vez, as mulheres asseguram a
reprodução e cuidado com a mão de obra.
3. A história garante a impossibilidade de identificação e de construção de
alianças entre mulheres. Estas são representadas como uma espécie de
inimigas perpétuas que competem por recursos aqui representados também
pela necessidade de atrair o Príncipe. Ao não permitir esta possibilidade de
proximidade entre mulheres, para além de impossibilitar uma sublevação
de mulheres ou uma revolta feminista, torna impossível a experiência
lésbica, apagando essa possibilidade da história (Rich, 1993). A
heterossexualidade política como forma única de conceber o desejo é
afiançada em Cinderela pela total competição entre mulheres para obterem
a atenção de um homem. Nesta competição, nem todas acedem sequer à
possibilidade de serem escolhidas pelo Príncipe. A mulher mais velha, a
Madrasta, é tida como um corpo que não poderá aceder a esse ‘mercado’,
antes deve coordenar as estratégias para que os corpos, também eles
representados como menos desejáveis, das irmãs de Cinderela possam ser
considerados na competição.
4. Na história de Cinderela do filme clássico de animação, datado de 1950 e
produzido por Walt Disney, não há personagens negras, asiáticas ou com
proveniência indígena. Esta economia racial, típica das produções culturais
da época, é reveladora da invisibilização de quem garantia a força de
trabalho, neste caso da esfera doméstica burguesa (nomeadamente as
mulheres ‘racializadas’) e das comunidades não -brancas.
5. Este filme impõe uma estética imperialista ocidental como modo de vida,
viajando através da colonialidade com valores do ocidente, como o
progresso, por exemplo.
6. Este cinema implica uma comunhão com uma série de valores da época,
em que, após o esforço árduo da heroína ela seria premiada e
recompensada por ser a escolha do Príncipe; acederia ao seu lugar no
mundo da heterossexualidade hegemônica e se transformaria na esposa e
mãe de família que lhe permitiria libertar-se da servidão na casa da
madrasta, passando a ser, eventualmente, uma futura rainha, com todo o
imaginário monárquico. Repare-se como a libertação é aqui entendida
como o alcance de uma posição no seio de uma unidade familiar, posição
esta sempre relativa a alguém: a mulher do Príncipe e mãe que assegurará
a reprodução dos herdeiros e herdeiras. É este o final feliz que espera as
senhoras brancas, qualificadas e burguesas dos EUA dos anos 1950. A
misteriosa glória de ser uma dona de casa, ou como diria Betty Friedan
(1975:9):

“Se uma mulher tinha algum problema na década de 1950 e 1960,


sabia que qualquer coisa não estava a correr bem com o seu casamento
ou com ela própria. Pensava que as outras mulheres levavam uma vida
satisfeita. Que espécie de mulher era ela que não sentia essa misteriosa
plenitude ao lavar o chão da cozinha? ”.

Este livro que tens nas mãos é um texto que visa entender o que significa
desobedecer ao gênero nas suas múltiplas acepções e encarnações. É um trabalho
inspirado numa leitura feminista crítica, antirracista, anti-heteronormativa e de
esquerda, e deve muito a textos e ações que o antecederam. É também um
feminismo que viaja, circula e se detém em vários pontos e espaços.

Gênero - Para as perspectivas marcadas pela reflexão de Judith Butler, existem
normas através das quais determinados corpos e expressões de gênero são lidos
e reconhecidos numa sociedade. Repetimos expressões de gênero, ao longo do
tempo, que citam e reiteram uma maneira de ser de um determinado gênero.
Ora, o gênero é aqui entendido na sua acepção de performatividade (Butler,
1990), ou seja, o gênero é uma construção social que é produzida pela repetição
de determinadas maneiras de fazer o gênero que criam uma série de efeitos que
são tomados como essências. São, contudo, criados por essa repetição e citados
por ela como se houvesse neles uma originalidade do qual todo gênero seria
cópia, de dois modelos distintos: o masculino e o feminino. Pelo contrário, são
as citações, as cópias que criam a ideia de que existe um original a ser copiado.
Essa repetição ao longo do tempo produz a ilusão de que existe uma essência de
gênero e de que ele existe como matéria, expressa no sexo e no discurso
biológico da natureza. Para Butler (1993), o sexo é uma produção do gênero, no
sentido em que o significado social atribuído ao sexo é todo ele gênero. Isto
quer dizer que não há dimensão biológica? Não, pelo contrário. É afirmar que
apesar das dimensões biológicas que possam eventualmente introduzir
diferenciação sexual, serão os sistemas sociais de representação e produção do
gênero que darão significado a essa potência da biologia. Tal como mostra a
bióloga Anne Fausto-Sterling (2013), é preciso pensar a relação com o gênero e
a sexualidade como sistemas dinâmicos complexos, culturalmente construídos,
mas que ocorrem no corpo e na incorporação. Igualmente ser uma construção
social não implica nem negar-lhe efeitos, nem o seu impacto na vida das
pessoas. Implica antes que as expressões de gênero, as masculinidades e
feminilidades e o desejo por outros corpos são lidos e reconhecidos através
destas normas. Assim, vamos falar neste livro de normas de gênero, quando
invocarmos as regulações que dão legibilidade ao gênero e que regem o
reconhecimento deste. Igualmente, falaremos de expressão de gênero, quando
nos referirmos ao modo como as pessoas exprimem o seu gênero e através
dessas performances reiteram identificações e desidentificações. Recusamos a
ideia de uma identidade de gênero estável, essencial e que precede o sujeito fora
destas expressões ou por detrás destas expressões. Pelo contrário, não há
nenhuma identidade de gênero que organize as expressões do gênero. Não há
sequer uma distinção entre processos internos e externos, dado que não há um
processo de internalização da norma: não há um ‘eu’ que anteceda a norma; o
mesmo poder que nos faz conformar às normas, constitui o momento formativo
desse “eu”. Somos sujeitos pelo poder e estamos sujeitos ao mesmo poder
(Butler, 1997a). Assim, a separação entre individual e coletivo é puramente
ficção de uma psicologia marcada pela ideologia neoliberal (Oliveira, 2014a). O
sujeito é sempre o resultado de um processo de subjetivação e não existe fora
desse exercício de poder.
O gênero, no caso deste livro, não implica (apenas) uma divisão do
mundo entre masculino e feminino. Antes, implica que a ordem do gênero
instala uma organização social marcada pela heteronormatividade e pela
normatividade de gênero. A heteronormatividade pode ser definida como a
norma que regula, justifica e legitima a heterossexualidade como uma forma de
sexualidade mais natural, mais válida e mais normal em detrimento das outras,
vistas como negativas e inferiores. Como é patente, uma análise de gênero
implica, não só a atender às relações sociais de gênero, mas também ao modo
como elas se expressam quando intersectadas por outras matrizes de opressão e
privilégio, como é o caso da ‘raça’, sexualidade, posição de classe, entre outras.
E mesmo em contos de fada, mitos de legitimação das sociedades
contemporâneas, é possível, com uma análise mais atenta, encontrar e descobrir
estas conexões aparentemente esquecidas ou confortavelmente invisíveis.
Por outro lado, as normas de gênero implicam uma visão binária dos sexos
vistos apenas como masculino e feminino, sem qualquer outra possibilidade
considerada saudável. Estas normas garantem um consequente privilégio para a
constância do gênero, por expressões de gênero adequadas a essas normas e que
lhe garantem uma aparente sensação de imutabilidade. As performances de
gênero partem dessas normas para se concretizarem ou para ressignificar, no
caso de performances subversivas tais como a drag ou algumas performances
queer. Masculino e feminino, como lembra Lígia Amâncio (1998), são
assimétricos, implicam não só uma diferença hierárquica nas relações sociais,
mas também uma diferença funcional, de definição e representação. Trata-se de
duas espécies de seres, de acordo com o pensamento socialmente partilhado
sustentado na lógica do gênero. Apesar destas regulações, as dissidências sexuais
e de gênero, bem como as chamadas novas políticas de gênero (Butler, 2005),
começam a ser cada vez mais patentes e a reclamar um espaço de
reconhecimento e de representação (Colling, 2015).
Um caso evidente sobre o funcionamento das normas de gênero é o das
mulheres trans*. De acordo com o Relatório da TransgenderEurope (Balmer &
Hutta, 2011), a situação do Brasil é das piores dos países com esta contagem,
sendo o país do mundo com mais episódios noticiados de assassinato contra
pessoas trans*. Com dados atualizados em 2017, em território brasileiro
ocorreram cerca de 50% (938) dos homicídios de pessoas trans* na América do
Sul e Central (1834)[2]. Em 2016, o Brasil foi o país do mundo onde mais pessoas
trans, sobretudo mulheres trans foram assassinadas, de acordo com a
Transgender Europe. Berenice Bento (2014; 2016) descreve a situação do Brasil
como transfeminicídio, isto é, como uma política de eliminação intencional,
disseminada e sistemática desta população e que apresenta características
distintivas: as mortes ritualizadas, que ocorrem no espaço público, em situação
de impunidade por parte do Estado, constituindo uma espetacularização
exemplar que se estabelece como preventiva - para impedir a desobediência de
gênero. No caso português, a morte de Gisberta Salce Júnior, mulher trans
brasileira imigrante, no Porto, às mãos de jovens rapazes institucionalizados
numa organização religiosa, configura um exemplo deste tipo de
transfeminicídio. O caso de Dandara, ainda tão recentemente, morta no Brasil
olhando a câmara que denunciou o crime no Youtube é outra maneira de falar do
preço que muitas pessoas trans pagam pela sua aparente desobediência de
gênero.
Os casos de feminicídio em Portugal e no mundo atingem números
elevados. Entre 2004 e 2014, o Observatório das Mulheres Assassinadas da
UMAR revelou que ocorreram 399 homicídios de mulheres, dos quais 336 se
deu no espaço de relações de intimidade (62,6%), e 464 tentativas de
homicídios, o que perfaz 859 crimes (UMAR, 2014). No contexto europeu, a
Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA, 2014), estima que 13
milhões de mulheres foram vítimas de violência doméstica em 2013 e que no
mesmo período, 3.7 milhões experienciaram algum tipo de violência sexual,
sendo que uma em cada 20 já sofreu violação. 22% das mulheres da União
Europeia sofreram agressões perpetradas por parceirxs.
O gênero apresenta-se como uma ordem social, uma regulação da vida
das pessoas que configura o modo como estas vivem, o que pode expô-las como
vulneráveis e precárias e que as deixa sujeitas a determinadas formas de
violência consoante às suas pertenças, (i)legibilidades/reconhecimento e
posicionamentos. O caso das pessoas trans*, sobretudo manifesto no exercício
de violência contra mulheres trans, permite verificar o preço que determinadas
posições de sujeitos pagam pelo lugar transgressor face às normas. Veja-se como
os corpos das pessoas trans ainda sofrem de uma colonização por parte das
normas de gênero e do modelo biomédico que recorre constantemente às normas
como forma de exercício de biopoder e da necropolítica sobre estes corpos
(Oliveira, 2014b), um transfeminicídio (Bento, 2016) sem fim à vista.
O gênero, enquanto construção e ordem social, implica uma viagem que
recorre a muitas passagens e trânsitos (Oliveira, 2016) e que não se esgota neles.
Não há nenhum domínio da vida social onde o gênero não esteja presente, onde
este não se articule com outros setores. Começaremos por entender que o gênero
é simultaneamente mais vasto do que a identificação com masculinidade e
feminilidade e excede essas categorias, até porque vai se misturar e
interseccionar com outras. Iremos, primeiro, regressar ao século XIX, para
conhecer uma precursora, Sojourner Truth, e depois continuaremos. Procurei
fazer uma genealogia não branca e não heterossexual do feminismo e do queer, a
fim de mostrar o espaço para a dissidência e desobediência face às normas de
gênero. Contar esta história a partir de outros referentes que não as eternas
protagonistas brancas, heterossexuais, é também um ato de procura, com a
finalidade de conferir uma inteligibilidade distinta aos feminismos, ir beber
noutras fontes e buscar viajar dentro dos sistemas de gênero, com atenção à
‘raça’, classe, sexualidades.
Feminismos negros, das diferenças e nas margens

Na Convenção sobre Direitos das Mulheres em Akron, nos Estados Unidos
da América, em 1851, Sojourner Truth, uma ex-escrava, empenhada no
movimento pelo abolicionismo da escravatura, mas também nos direitos das
mulheres, profere um discurso que entrará para a história dos feminismos:
Ali aquele homem diz que as mulheres precisam de ajuda para subir às
carruagens, para passar sarjetas e para ter sempre, em qualquer lado os melhores lugares.
Nunca ninguém me ajuda a subir às carruagens, ou me dá o melhor lugar e não sou eu
uma mulher?
Olhem para mim, olhem para os meus braços.
Eu lavrei, eu plantei, eu armazenei e nenhum homem me passava à frente. E
não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem, e comer tanto
(sempre que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E
não sou eu mulher? Dei à luz treze crianç a s e vi a maior parte delas vendidas para a
escravidão e quando chorei com tristeza de mae, so Jesus me ouviu! E nao sou eu
mulher? (Sojourner Truth, 1851, apud Carmo & Amâncio, 2004: 227).

O discurso de Sojourner Truth (tantas vezes discutido) é uma fonte
importante para se pensar a construção social do gênero presente na ideia de
mulher e inicia um percurso para chegar nos anos 80 do século XX e implodir
esse edifício conceitual a que chamamos mulheres, desintegrador de todas as
diferenças. É como se a definição do que é ser mulher excluísse uma série de
posições/representações que muitas mulheres ocupam, são e se sentem.
Pertinente citar os feminismos pós-coloniais, que mostram como na Índia
Colonial, por exemplo, a instituição da imolação das viúvas na pira fúnebre dos
maridos recém-falecidos (sati, literalmente, a boa esposa) suscitou da parte da
administração colonial uma reação legalista de proibição, mas que, de acordo
com Gayatri Spivak (1993), não teria alterado as posições de sujeito. Os
nativistas, exercendo um jogo de ventriloquismo social, explicavam que eram as
mulheres que queriam ser imoladas junto ao cadáver do marido. E dessas
mulheres não temos voz, nem eco. Assim, entre a representação colonial da ‘boa
sociedade’ trazida pelos ingleses e expressa através dos direitos das mulheres
(“os homens brancos que salvam as mulheres pardas dos homens pardos”) e pela
representação nativista do “são as mulheres que querem”, não sobra qualquer
posição que as subalternas (como mulheres) possam ocupar, e a partir daí, falar.
Trata-se antes de uma determinada representação que ocupa todo um espaço do
que pode ser uma mulher.
Feminismos - O termo feminismo foi usado de forma pejorativa por Alexandre
Dumas Filho para se referir a homens emasculados e efeminados pela
tuberculose (Cova, 1998) e utilizado como insulto para se referir ao movimento
social que começa com o princípio do Estado Moderno, Revolução Industrial e
Iluminismo (Carmo & Amâncio, 2004). O referido movimento tentou atribuir
um estatuto político, social, cultural e econômico que não fosse discriminatório
para as mulheres (Nogueira, 2001). Ao perseguir esse estatuto, os múltiplos
feminismos que foram surgindo alteraram profundamente a forma como o que é
considerado humano foi pensado e problematizado. Desse modo, o feminismo
pode ser entendido como uma ressignificação do humano, abrindo e expandindo
os horizontes desse termo (Oliveira, 2014b), pela problematização que foi feita
da relação das mulheres com esse humano, que sempre foi homem, ocidental e
branco, e que foi se alargando para incluir outrxs.
Teresa de Lauretis (1988) elabora um sujeito do feminismo que é o
movimento entre o que é socialmente representado como gênero e o que essa
representação deixa de fora e torna irrepresentável, não considerando as
mulheres nem a Mulher como esse sujeito. Partilho das suas dúvidas e penso o
projeto feminista como uma concepção que vai tratar o humano como um termo
de exclusão (e daí não ser humanista) que carece de alargamento,
reposicionamento e ressignificação. Trata-se, necessariamente, de um projeto
marcado por uma tensão, uma contradição, “o produto precário de um
paradoxo”, como lhe chama Griselda Pollock (2001: 196-197):
“[...] parecendo falar em nome das mulheres, a análise feminista
desconstrói perpetuamente o próprio termo à volta do qual se encontra
politicamente organizado”.
Ou, nas palavras da mesma Teresa de Lauretis, o feminismo caracteriza-
se pela “negatividade crítica da teoria e a positividade afirmativa das suas
políticas”. Nesse sentido, a negatividade da teoria (Oliveira, 2014b) tem uma
relação com esta acepção de uma definição de gênero sempre androcêntrica, isto
é, centrada na experiência masculina como experiência universal e na
experiência feminina como outra, distinta e particular, como mostra também
Simone de Beauvoir (1949), em O Segundo Sexo, um livro fundamental para
entender os feminismos. A negatividade crítica do feminismo vai encontrar
espaço na crítica a este androcentrismo nas relações sociais de gênero e sua
representação; igualmente, na tentativa de trazer para a luz esse outro
irrepresentável, que não cabe no modo como o gênero é concebido. A teoria
feminista é uma ferramenta essencial para se perceber estes processos, pois
iluminou o modo de percepção de como o poder constrói as pessoas como entes
marcados por uma miríade de diferenças como gênero, ‘raça’, classe,
sexualidades, idade e outras.

Uma tensão histórica e ideologicamente estruturante dos debates
feministas foi a atenção dada às questões de igualdade entre homens e mulheres
e de diferença das mulheres. O feminismo da igualdade, centrado numa
representação igualitária, constitui o projeto político do feminismo liberal. Esta
corrente propõe-se a reformar uma situação de discriminação através do aumento
da representatividade das mulheres nas diversas esferas da sociedade. Assim,
acreditava-se num trabalho em parceria com o Estado para fomentar e ampliar a
participação das mulheres em todas as esferas. Optava-se, portanto, por uma
linha formal e legalista, que é responsável pela introdução de legislação e de
campanhas para a promoção da consciência da discriminação, e da adoção de
medidas resolutivas dessas situações consideradas pouco democráticas. Esta
linha feminista preocupou-se bastante com a introdução de leis para a igualdade
formal entre homens e mulheres e valorizou a importância desta igualdade na
esfera pública. Contudo, como mostra Nickie Charles (2000), essa reivindicação
só cabe no quadro de um Estado liberal e democrático. O feminismo liberal,
pelas suas preocupações legais, pressionou os Estados de forma a obter direitos
legais básicos, e ainda hoje tem impacto junto aos governos, assumindo a forma
de feminismo de Estado, corporizado nas comissões pela igualdade, existentes
em muitos países e nas organizações internacionais. Estas comissões têm um
papel importante na sensibilização da opinião pública e no fomento de
campanhas contra a discriminação. É, contudo, notória a ausência de teoria e
ação feminista enquanto quadro inspirador. São-lhe apontadas críticas pelo
elitismo das propostas, mais preocupado em permitir que as mulheres entrem
num mundo de homens (e claro, as mais qualificadas, com maior acesso a
recursos), e também pela ausência de uma visão transformadora das relações
sociais de gênero (Charles, 2000).
Diametralmente opostos a esta corrente feminista, posicionaram-se os
feminismos socialistas. As influências do marxismo no feminismo fizeram
sentir-se desde os seus primórdios. O espaço de intervenção das mulheres no
marxismo permitiu-lhes a produção de texto e a participação política. A análise
de Engels da situação das mulheres e da sua possível emancipação através da
proletarização da mulher burguesa e do seu acesso ao mercado de trabalho, foi
influente em termos do redirecionamento das preocupações com a situação das
mulheres para a luta revolucionária e para a defesa do proletariado. Esta
perspectiva, ao aliar a luta de classes e as lutas das mulheres (Collin, 1991),
colocou as feministas socialistas na luta contra o capitalismo. Para o feminismo
socialista, o capitalismo é a base da opressão, quer das mulheres, quer do
proletariado, e vai articular-se com o gênero, a ‘raça’ e a classe para produzir
determinadas formas de opressão, como explica Angela Davis (1981). Esta
explicação permite reforçar o papel das mulheres na luta de classes, dado que o
capitalismo também usa o seu trabalho não-pago. Em termos de alianças
políticas, Ana Alvarez (2002) destaca o papel do feminismo socialista na
construção de alianças à esquerda. Aliás, para muito do feminismo socialista,
como mostra a autora, o feminismo é tido como mais um dos movimentos de
esquerda. Esta instrumentalização do feminismo a serviço da esquerda é,
geralmente, tida por outras feministas (nomeadamente as radicais) como uma
subordinação, que deixava o sexismo de esquerda por criticar (Alvarez, 2000).
Contudo, também pode ser vista de outra forma, como, já em 1908, pensava
Alexandra Kollontai:
As feministas declaram estar do lado da reforma social e até algumas dizem ser a
favor do socialismo - no futuro distante, claro - mas não tencionam participar na luta do
lado da classe trabalhadora. O melhor em que podem acreditar, com uma sincera
ingenuidade, é que quando os lugares de deputados estiverem ao seu alcance poderão
curar os males sociais que na sua visão se foram desenvolvendo porque os homens, com
o seu egoísmo inerente, se tornaram os senhores/amos da situação. Contudo, apesar das
boas intenções dos grupos individuais de feministas em relação ao proletariado, sempre
que a questão da luta de classes se colocou, abandonaram o campo de batalha apavoradas.
Elas sentem que não se devem envolver em causas que lhes são alheias e preferem retirar-
se para o seu liberalismo burguês tão confortavelmente familiar” (Kollontai, 1908, s/p).

Se pensarmos em feminismo liberal, não podia ser mais certeira e atual a
crítica. No meu caso, não acredito em feminismos que não sejam de esquerda,
porque, mesmo que sejam feminismos, não sendo de esquerda, não têm serventia
alguma a não ser manter o status quo e intocada a ordem do gênero.
Para Colette Guillaumin (1992), o homem é considerado um ser
independente que mais tarde venderá a sua força de trabalho, mas encarado
como um ser único e irrepetível, enquanto a mulher é apenas uma mulher, um
membro de um grupo, um objeto intercambiável, sem outras características que
não a sua feminilidade, a base da sua identidade enquanto objeto social. A
apropriação da classe das mulheres pela classe dos homens – o processo de
sexage – é uma relação social em que os atores são reduzidos ao estado de
unidade material apropriada. A ideia de natureza, derivada de um universo
simbólico de valores que opõem natureza a cultura, justifica a exclusão desses
atores da história. A utilização que o capitalismo faz das mulheres enquanto
força de trabalho gratuita para a esfera doméstica e para a reprodução,
açambarca a mão de obra destas e as impede de aceder à condição de cidadãs.
Conforme foi possível demonstrar, o feminismo socialista salienta o papel da
experiência de opressão vivida nas sociedades capitalistas, comparando-a com
outras relações de dominação, como as de classe. Esta analogia permite-lhes
salientar o papel da família burguesa e da apropriação do trabalho doméstico
como fundamentais na manutenção de um sistema que oprime as mulheres.
Já no caso do Feminismo Radical, este emerge após a eclosão da
Segunda onda do movimento feminista nos Estados Unidos e integra,
rapidamente, um número de pensadoras que irão produzir teoria feminista, para
além do ativismo feminista. Assume-se que o sistema de gênero é a causa da
opressão feminina (Jaggar & Rothenberg, 1984) e que esta opressão é a matriz
de todas as opressões humanas. Como diz Angela Davis, ser radical quer dizer ir
à raiz, e o feminismo radical identifica o patriarcado como a causa primeira do
sistema de gênero. Daí que a sua preocupação fundamental consista na
eliminação do patriarcado.

Patriarcado - O termo patriarcado foi introduzido na teoria feminista
por Kate Millett (1970), uma das autoras mais destacadas do feminismo radical,
através da obra “Sexual Politics”, e refere-se, essencialmente, a um sistema de
organização social através do qual a esfera pública e a esfera privada são
dominadas pelos homens. Esta dominação exerce-se, portanto, nos vários planos
da vida social e na família, por meio da norma da paternidade. De acordo com
Millett (1970), o patriarcado é o sistema que perpetua a opressão e a
subordinação femininas. Esta opressão não encontra legitimação na biologia ou
na natureza, mas faz parte de um sistema cultural que coloniza as mulheres[3].
Ora, trata-se claramente de um posicionamento no polo social que recusa a ideia
de diferenças biológicas para explicar o modo como as mulheres são oprimidas.
É Millett (1970) quem introduz o conceito de gênero na teoria feminista,
importado dos trabalhos de Robert Stoller (1968), como veremos na seção sobre
o conceito de gênero. A supremacia masculina é construída socialmente, no seio
de um regime patriarcal, que propõe papéis sociais específicos a homens e a
mulheres.

De acordo com Rosemary Tong (2000), o feminismo radical subdivide-
se em duas categorias: o feminismo radical libertário (como é o caso de Millett)
e o feminismo radical cultural (que Nogueira (2001) apresenta como feminismo
cultural), em função do modo como tencionavam erradicar o sexismo. O
feminismo radical libertário opta por uma proposta assente na rejeição do
essencialismo e pela transcendência do regime de sexo/ gênero, que será
aproveitado mais tarde no feminismo lésbico e na Teoria Queer. Para o
feminismo radical libertário, a diferença sexual é pouco importante, na medida
em que essas diferenças ficam circunscritas à sexualidade e à reprodução.
Já para o feminismo radical cultural, a opção é essencialista. A
feminilidade é celebrada, bem como a diferença sexual irredutível. Vejamos o
caso da obra de Mary Daly (1978). Para Mary Daly, os homens, ao longo da
história, oprimiram as mulheres. O patriarcado constitui a instituição em que
essa opressão é perpetrada. Os homens são definidos pela autora como
destrutivos e genocidas, ou seja, tentam destruir o ecossistema feminino, quer
através da opressão, quer através da poluição; ou mesmo através do genocídio de
mulheres, como foi o caso da condenação à morte pela fogueira das “bruxas”
pela Inquisição, lido como um fenômeno de genocídio perpetrado pelo
patriarcado. A gin/ecologia constitui a rede complexa de relações entre as
mulheres e a natureza. As mulheres são definidas em termos da energia biofílica
(a energia da vida e do amor pela vida) e numa proximidade com a natureza, a
que os homens não conseguem almejar. A opção essencialista de Mary Daly
implica, pois, a naturalização e o recurso à homologia entre natureza e mulheres,
mais próximas da Terra e dos animais. O patriarcado e os homens surgem como
opostos a este equilíbrio gin/ecológico. Mary Daly preconiza uma ideologia
separatista entre homens e mulheres, considerando os homens como uma ameaça
a este equilíbrio entre as mulheres e a natureza.
Os trabalhos de Andrea Dworkin (1987) e de Catherine MacKinnon (1993)
ilustram algumas das posições do feminismo radical cultural face à sexualidade e
pornografia. Para MacKinnon (1993), a pornografia corresponde não a uma
representação de um ato sexual, mas ao ato sexual em si. Dado que é punido o
uso de palavras e expressões que constituem atos de assédio sexual, a
pornografia deveria ser igualmente punida. A sexualidade é um dos domínios da
opressão numa cultura masculinizada. Para Dworkin (1987), a pornografia
corresponde ao cerne da dominação masculina e incentiva o abuso sexual e a
violação. Estas propostas salientam e valorizam uma diferença positiva das
mulheres em relação aos homens. Preconizam a diferença sexual de um modo
essencialista e que pressupõe a necessidade de construir alternativas positivas,
que tomem a diferença positiva das mulheres como referente.
O feminismo radical assumiu uma grande importância no seio do debate
e ativismo feminista. A importância atribuída à opressão das mulheres e a um
pensamento teórico que pretende reconsiderar esta opressão, assumindo a sua
centralidade nas sociedades contemporâneas, deu ao feminismo radical as
vantagens de proliferação de discurso teórico e de prática política. E incentivou
um ativismo, centrado na lógica de que “o pessoal é político” (Hanisch, 1970).
Esta atividade permitiu a criação de grupos de consciencialização da opressão
feminina, que foram vitais para a promoção da consciência feminista e que se
revelaram igualmente importantes para repensar uma série de questões,
nomeadamente as que se ligavam à experiência feminina e ao corpo (Boston
Women's Health Book Collective, 1973). É importante frisar o contributo destes
coletivos no tocante à criação de espaços onde as ideias feministas são
discutidas, tais como editoras, cooperativas, livrarias e grupos. Algumas das
feministas radicais preconizavam a necessidade de espaços alternativos para as
mulheres até em termos de sexualidade, como foi o caso de grupos como The
Furies Collective. Nestes coletivos, surgiu uma ideologia separatista, como
modo de criar uma distância dos homens, vistos como inimigos íntimos
(Nogueira, 2001). Em Portugal, o feminismo radical teve expressão na sequência
do apoio de mulheres à condenação em tribunal por ofensas à moral pública das
autoras (Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno) da
obra Novas Cartas Portuguesas, apoio este que deu origem à constituição do
Movimento de Libertação das Mulheres (MLM) em 1974, na sequência da
Revolução (Tavares, 2011).
Na França, surge também uma tendência diferencialista (Alvarez, 2002),
centrada nos contributos da psicanálise lacaniana em articulação com as
propostas pós-estruturalistas e desconstrucionistas. Esta tendência do feminismo
francês dos anos 70 poderia ser, igualmente, categorizada como um tipo de
feminismo pós-estruturalista, mas a centralidade da diferença sexual permite
uma aproximação às tendências do feminismo radical cultural, do qual é
contemporâneo. No seu trabalho teórico, Luce Irigaray preocupa-se com a
introdução da perspectiva da diferença para traçar uma arqueologia da
marginalidade da mulher, enquanto conceito e enquanto corpo (Cavallaro, 2003).
Partindo da proposta de que a mulher é um Outro, já presente no pensamento de
Simone de Beauvoir, Irigaray analisa o modo como a feminilidade é um efeito
do desejo feminino organizado pela libido feminina (Cavallaro, 2003). A
repressão patriarcal do desejo feminino ocultou a multiplicidade da sexualidade
feminina. Para Irigaray (1985), trata-se de uma sexualidade e de uma categoria
sexual diversa e não unificada. Essa lacuna ou falha que o pensamento
psicanalítico freudiano[4] atribui às mulheres é, para Irigaray (1985), um reflexo
do falogocentrismo (associando o falocentrismo e o logocentrismo), da
linguagem significada a partir de uma perspectiva masculina que pensa as
categorias sexuais por meio do binarismo. Para Irigaray, as mulheres
representam uma multiplicidade que o binarismo torna ininteligível. Apesar de
partir da diferença sexual, o pensamento de Irigaray não assume uma perspectiva
essencialista, dado presumir a diversidade dentro da diferença sexual.
Tal como Irigaray, também Hélène Cixous (1976) presume a fluidez da
categoria “mulher”, argumentando a inexistência da mulher em geral, da mulher
típica, e assumindo a heterogeneidade categorial. Apesar desta diversidade, o
trabalho de Cixous celebra a diferença sexual como multitude, apesar de não a
considerar a partir de um substrato biológico. A associação entre a diferença
sexual e a libido permite-lhe considerar o modo como a libido – definida pela
psicanálise como masculina – nega a existência da “jouissance”, o sentido de um
êxtase sem fronteira nem unidade intrínseca, negado pelo falocentrismo da
psicanálise clássica. É Cixous (1976) (e também Irigaray) que proclama
igualmente a existência de uma écriture féminine (escrita feminina), que
inscreve a sexualidade feminina e o corpo feminino no discurso. A escrita
feminina recusa os princípios patriarcais da racionalidade e da lógica, optando
por privilegiar o que é marginalizado e silenciado pelo falogocentrismo.
Esta atenção à linguagem que o feminismo francês começou a dar,
justamente pela sua proximidade com as propostas lacanianas e com a
importância do pensamento de Derrida, na sua constituição, foi também central
na obra de Julia Kristeva. A autora parte do pressuposto lacaniano de que o
sujeito se constitui na fase da aquisição da linguagem. É a partir deste momento
que se dá a separação do/a filho/a em relação à mãe e que entra no real
(falogocêntrico). Com a definição consequente das fronteiras do corpo, dá-se o
fenômeno de rejeição de tudo o que possa pôr em causa esta autocontenção, tudo
o que flui e tenta ultrapassar estas fronteiras. Como mostra Kristeva (1985 :13):
“O abjecto confronta-nos […] com as nossas tentativas iniciais de nos
libertarmos do controle de uma entidade maternal, mesmo antes de existirmos
fora dela”. Kristeva, para além das suas propostas em The Powers of Horror,
obra de culto não só nos Estudos Feministas, mas também nos estudos sobre o
cinema e performance, ilustra a ligação entre as propostas psicanalíticas, o que é
recorrente neste feminismo francês, muito centrado no papel da diferença, na
corporalidade e na linguagem.
Esta pequena amostra das propostas do feminismo francês centrado na
ideia de diferença, permite, contudo, concluir uma distinção fundamental no que
toca ao feminismo radical cultural norte-americano. O feminismo francês da
diferença vai interrogar a diferença conceitualizando-a como um ponto de
questionamento e de reflexão crítica. Ao considerar que a diferença sexual foi
concebida, seguindo uma lógica falogocêntrica, estas propostas reequacionam o
projeto feminista, questionando o feminismo da igualdade. Se pensarmos que a
diferença sexual que é proposta não se trata de uma diferença única, mas sim de
uma multiplicidade de diferenças, o essencialismo teórico da proposta parece ser
menor do que o essencialismo das propostas do feminismo cultural norte-
americano. Contudo, os valores a que ambas as propostas recorrem – como o da
criação de uma escrita que, ainda que metaforicamente, seja feminina, a
positividade de uma cultura alternativa feminina, que revoluciona aquilo que o
feminismo da igualdade apenas quer reformar – configuram um claro apelo ao
feminino como alternativa à ordem patriarcal e também um projeto político de
afirmação dessa(s) diferença(s) primordial(is). A implicação desse projeto
consiste na preponderância explicativa do sexo sobre o gênero como conceito
que permite apreender a diferença. Estas proposições feministas consideram que
a valorização da diferença permite conquistas políticas e sociais que não podem
ser conseguidas num posicionamento do feminismo da igualdade. A
preponderância do corpo sexuado e da linguagem como forma de dar sentido a
essa sexuação permitem um reposicionamento das propostas feministas, a partir
do corpo.
Uma das principais críticas levantadas às feministas liberais tem a ver com
a identificação de um sujeito feminista que para as autoras do feminismo negro
correspondia à mulher branca, heterossexual, burguesa e que, portanto, falhava
no plano de uma representação das outras mulheres. Diz-nos bell hooks

As mulheres brancas que dominam o discurso feminista nos dias de hoje
raramente questionam se a sua perspectiva sobre a realidade das mulheres corresponde
verdadeiramente às experiências vividas pelas mulheres como coletivo. Igualmente não
estão conscientes do ponto a que suas experiências refletem enviesamentos de raça e
classe, apesar da maior consciência sobre isso nos últimos anos. O racismo abunda nos
escritos das feministas brancas, reforçando a supremacia branca e negando a
possibilidade de articulação política de mulheres para lá das fronteiras étnicas e raciais
(1984, p. 3):

Esta frase de hooks ilustra um sentimento de frustração com as políticas
de representação feministas que foi partilhado por vários grupos.
Esta crítica desferida ao feminismo liberal é partilhada por várias autoras
feministas negras e chicanas, que centram a sua atenção no modo como os
feminismos brancos vieram, na sua reflexão, a excluir possibilidades de
representação das outras mulheres não brancas, não heterossexuais e que não
fossem de classe média. Um bom exemplo destas perspectivas, para hooks
(1984), é o caso de Betty Friedan (1975) e da sua preocupação com as mulheres
que não trabalhavam e que ficavam em casa dedicadas às tarefas domésticas e à
educação dos filhos. hooks (1984) aponta que um terço das mulheres nos EUA
eram trabalhadoras, precisamente aquelas que não tinham formação
universitária, muitas delas não brancas e seguramente sem serem de classe
média. Assim, a crítica que o feminismo negro vem desferir inexoravelmente ao
feminismo liberal tem como conclusão a ideia de que a maioria dos discursos
feministas se dirigem a algumas mulheres e não a todas. Ou seja, tomam-se
como ponto de partida os interesses de um grupo específico dentro do coletivo
mulheres como preocupação de todas as mulheres, ignorando ‘raça’, classe
social e sexualidade.
De acordo com Violet Barriteau (2010), o feminismo negro traz consigo
uma série de instrumentos analíticos que vêm alterar o modo como os saberes e
práxis feministas são produzidos e vêm influenciar toda uma nova maneira de
olhar para as questões de gênero. Dessa forma, Barriteau menciona a
interseccionalidade, a problematização da ideia de ‘raça’, reformulações de
conceitos como patriarcado, binarismo do público-privado, o centramento na
economia política (também pela intersecção entre feminismo negro e
socialismo), as identidades múltiplas, mas sobretudo a desconstrução de uma
ideia de sororidade indiferenciada. É nesta ideia de sororidade diferenciada, a
que prefiro chamar desconstrução da ideia de “mulher”, que irei me centrar.


Interseccionalidade - teoria criada a partir dos feminismos negros,
nomeadamente introduzida por Kimberlé Crenshaw (1989), que visa analisar os
efeitos das posições de sujeito em diferentes matrizes de
privilégio/discriminação e as interseções entre estas posições relativas.
Crenshaw (1989) analisa o caso De Graffenreid Vs General Motors, num
despedimento coletivo onde todas as mulheres negras contratadas a partir de
1970 foram demitidas. Cinco mulheres negras processaram a empresa por
discriminação. O tribunal não deu razão às trabalhadoras. A sentença considerou
que a empresa não despediu outras mulheres (discriminação de gênero), nem
outros negros (discriminação racial). Assim o tribunal não reconheceu a
discriminação interseccional dirigida a mulheres negras. Esta invisibilidade
resultante da interseção demonstra o efeito combinado e de interação destas
matrizes e a geração de efeitos que não são acionados simplesmente pelo gênero
ou pela ‘raça’ (Nogueira, 2017).

Uma das feministas que denunciou esta noção de mulher imune às
diferenças entre mulheres foi Audre Lorde. Darei dois exemplos da sua luta
contra esta imunidade e resistência do feminismo às mulheres que não cabiam no
sujeito mulher. O primeiro exemplo é a sua posição na conferência dedicada a
Simone de Beauvoir, organizada em Nova Iorque, em 1979 (Olson, 2000), a
partir de onde vai escrever o famoso ensaio: “As ferramentas do amo nunca
desmantelarão a casa do amo” (Lorde, 1984). Nesse contexto, chocada com a
ausência de feministas negras na conferência, Lorde vai criticar a ausência de
uma verdadeira atenção às diferenças entre mulheres dentro do feminismo, ponto
fulcral da sua versão da teoria feminista em que as diferenças não devem ser
apenas toleradas, mas vistas como polaridades fundamentais através das quais a
teoria feminista pode ser problematizada (Lorde, 1984). Ou seja, o feminismo,
em vez de mascarar ou eliminar a produção de conhecimento sobre a
heterogeneidade da categoria mulher, deve, pelo contrário, assentar a sua prática
política e teórica sobre as diferenças entre mulheres. Para Lorde, esta
inexistência de um pensamento sobre o feminismo que também contemplasse as
diferenças constitui uma fraqueza do feminismo e uma verdadeira capitulação ao
patriarcado, dado que não possibilita um entendimento das diferenças entre
mulheres como uma aprendizagem para, a partir daí, gerar conhecimento e ação
política que permitam uma outra forma de fazer feminismos por meio das
diferenças entre mulheres – como afirma, noutro contexto:

Quando digo que sou uma feminista negra, quero dizer que reconheço que o meu poder
bem como as minhas opressões primárias resultam da minha negritude e da minha
feminilidade e que assim sendo, as minhas lutas em ambas as frentes são inseparáveis
(Lorde, 2009:58).

Ou seja, não se trata de valorizar apenas uma característica, mas sim
atender a todo um jogo de intersecções. A isso poderíamos chamar de
interseccionalidade, como lhe chamou mais tarde Kimberlé Crenshaw.
A marca de Lorde e do pensamento feminista negro fica assim
indelevelmente ligada a uma noção dos feminismos das diferenças. Diferenças
entre mulheres que são usadas como uma fonte para outras práticas feministas
que não as de um feminismo liberal que elege apenas como âmbito de
intervenção a “mulher”. Para este efeito, muito contribuiu também os trabalhos
das autoras dos feminismos chicanos com as suas noções de fronteira e de
identidades híbridas, como Glória Anzaldúa (2004). A destruição deste sujeito
mulher, único, universal e pouco representativo das diferenças e da diversidade
intra-categorial, leva ao alargamento do horizonte da prática feminista; o que é
notório numa série de textos deste período e do início dos anos 90. Em particular
os que se rebelam contra os feminismos culturais, essencialistas e mais
preocupados com a valorização da diferença sexual e do feminino como grande
causa política, mantendo as suas crenças na unidade original da categoria
mulheres. Aludindo a esta emergência de uma série de críticas, é notório como
estas vão transbordar para os anos 90 e a partir daí redesenhar a complexa
paisagem da teoria e da política feminista. A ideia de um feminismo assente nas
diferenças e já não apenas na diferença essencial entre ser homem e ser mulher
permite igualmente reproblematizar a ideia de diferença. Na análise que Teresa
de Lauretis (1987) realiza sobre o gênero enquanto tecnologia, primordial para
este debate, considera que o gênero evidenciado como um feminismo centrado
na diferença entre homens e mulheres serve de obstáculo ao questionamento
sobre as diferenças entre as mulheres e não permite sair de um esquema
heterossexual de pensamento em termos feministas. Desta forma a sua análise
demonstra a importância de contemplar outras diferenças, principalmente as
intra-categoriais.
Avtar Brah (1992) problematiza este tema da diferença equacionando
quatro modalidades possíveis de diferença: experiência, relação social,
subjetividade e identidade. A diferença como experiência implica a ideia da
existência de um espaço discursivo onde se inscrevem, reiteram e repudiam
diferentes posições de sujeitos. As experiências são campos de constituição da
subjetividade, e é através desses campos que se procede à significação não só
dos objetos, mas à nossa própria constituição. A diferença concebida desta forma
implica atender à constituição de biografias e histórias pessoais e à sua relação
direta com histórias grupais e significações coletivas, apelando à
contingencialidade.
A diferença enquanto relação social implica pensar as relações entre
grupos e a sua estruturação mais ampla em termos de assimetrias sociais, ou
seja, em termos de micro e macro relações de poder. Esta perspectiva implica
caracterizar os grupos em questão, a partir das estruturas de poder das relações
sociais, olhando-os de forma integrada, histórica e sociologicamente, sem perder
de vista as relações sociais, políticas e econômicas que se estabelecem entre
estes grupos.
Uma outra maneira de conceber a diferença é encarando-a a partir da
subjetividade. Olhar para a subjetividade tem como consequência pensar que os
sujeitos são sempre construídos. Esta constituição do sujeito deve atender não só
à sua constituição discursiva, mas também à sua fragmentação, ao seu caráter
tanto social como subjetivo, marcado por contradições. Em termos de diferença,
a subjetividade implica atender aos processos de constituição, interpelação e
estruturação dos sujeitos, abdicando da ideia de um sujeito racional, universal e
autodeterminado.
Por fim, a diferença como identidade implica atender à multiplicidade de
posições que constituem os sujeitos, através das suas experiências e das relações
sociais onde estão envolvidos. Isto é, a diferença como identidade elimina, para
Brah (1992), as restantes concepções de diferença, pois as integra como campos
fulcrais para pensar a identidade. Assim, as identidades não são fixas, são
instáveis e contraditórias. Esta concepção da identidade implica considerá-la
como contextualmente construída e não determinada antecipadamente. Esta
problematização das identidades permite igualmente observar o seu caráter
político como mobilização coletiva com um objetivo político.
Estes múltiplos aspectos da diferença mostram como ela não pode ser
tomada como um significado único. Pelo contrário, é necessário, como mostra
Brah (1992), repensar a diferença a partir de múltiplas perspectivas como modo
de analisar quer o seu caráter opressivo, quer a sua potencialidade
emancipatória. Conforme nos foi possível observar nesta análise, a diferença
pode ser ressignificada por meio de uma série de propostas que lhe retiram o
caráter essencialista e a colocam como uma multiplicidade de processos.
Contudo, e tendo em conta, os usos dos feminismos das diferenças
ligando-os a formas de feminismos muito centrados no essencialismo e na
irredutibilidade da diferença sexual, prefiro apresentar estas correntes feministas,
elaboradas a partir das margens e com um forte enfoque na questão da
universalidade do conceito “mulher”, como feminismos das difrações. Donna
Haraway (2004) fala-nos da impossibilidade ontológica da reprodução dos
humanos, recorrendo ao conceito de difração e ao conceito de Trinh Minh-ha de
inappropriate/d others (outrxs inapropriáveis /inapropriadxs). Para Haraway,
este posicionamento implica uma relacionalidade crítica, uma forma de estar de
determinados grupos e objetos que não estão categorizados, que se encontram
em posições não fixadas pela diferença e pelas taxonomias (atores/as
multiculturais, étnicos, nacionais, sexuais, entre outros, num mundo cada vez
mais global e de as múltiplas pertenças). Esta posição não admite a possibilidade
de algo autêntico ou original e, pelo contrário, implica uma outra metáfora que
não a reprodução ou a cópia. A difração (visível no arco-íris que se vê quando a
luz incide sobre um CD ou DVD) consiste, nesse sentido, na possibilidade de
padrões de interferência e não na reprodução ou reflexão do mesmo (para
mantermos a metáfora ótica). Assim, a difração parece-nos a figuração destes
feminismos, não já preocupados com uma pretensa unidade de pensamento, mas
sim com a preocupação de produzir efeitos diferenciados a partir da interseção
categorial.
A difração é a imagem da interseccionalidade, mostrando como o
cruzamento de matrizes de opressão e privilégio conduz a diferentes efeitos. Já
estamos fora do domínio das relações de gênero no seu sentido mais tradicional
como relações entre homens e mulheres; estamos no domínio dessa interseção
entre gênero, ‘raça’, classe, sexualidade, entre outras categorias, e a forma como
são produzidos efeitos difratários destas conjugações. Para Haraway (2004), o
gênero é uma relação social atravessada e entrecruzada com outras. Ou seja, o
potencial crítico desta abordagem implica não só questionar a teoria feminista
exclusivamente interessada no gênero ou nas relações entre os sexos, mas
repensá-la à luz das múltiplas difrações que o próprio conceito de gênero como
relação social invoca.
Lésbicas, queer e transfeminismos: encarnações feministas

Uma outra linha onde é possível observar a emergência desta questão
refere-se aos feminismos que se ocuparão da sexualidade, como é o caso dos
feminismos lésbicos e queer, mormente pela atenção que vêm dar à
heterossexualidade como forma de instituição política e que também introduz a
questão dos modos das normas da sexualidade de uma forma crucial nos estudos
de gênero.
Se atendermos ao trabalho fundador de Gayle Rubin (1975), esta
concepção já se encontrava presente nomeadamente na definição de um sistema
de sexo/gênero, que consiste num processo de atribuição social a uma diferença
biológica, organizada política, social e economicamente por forma a colocar os
homens numa posição de superioridade face às mulheres atribuindo-lhes certos
privilégios. Nesses termos, Rubin vai caracterizar o sistema sexo/gênero como
uma economia política em que a divisão sexual e social do trabalho constrói o
sistema de gênero. Ou seja, refutando as correntes que até ao momento
determinavam que eram as diferenças entre homens e mulheres que iriam
construir uma divisão sexual do trabalho, para Rubin (1975) a causalidade
inverte-se, construindo um sistema teórico que visa compreender como é que as
mulheres são comodificadas, transformadas em mercadoria e por isso passíveis
de troca entre homens, reanalisando as posições de Lévi-Strauss sobre a troca de
mulheres.
Um outro contributo do pensamento de Rubin é a importância dada à
heterossexualidade obrigatória como outra das condições deste sistema. Esta
forma de organização social implica que a unidade econômica mínima e viável
seja um casal homem-mulher, instituindo uma divisão sexual do trabalho que
implica uma dependência entre os sexos. Este sistema normativo da
heterossexualidade obrigatória determina uma supressão da homossexualidade e
discriminação das pessoas homossexuais. Contudo, Rubin (1975) mostra que
estas categorias trans-históricas são organizadas culturalmente de forma
temporal e culturalmente situada; de modo que fornecem evidência de diferenças
culturais nesta expressão. Assim, para Rubin (1975) é fundamental o papel da
divisão sexual do trabalho que configura maneiras específicas do sistema
sexo/gênero corporizado nas relações entre os sexos, na família e na
heterossexualidade obrigatória.
A importância deste ensaio de Rubin (1975) é capital, pois vai reelaborar
as causalidades de outras correntes do pensamento sociológico e antropológico,
demonstrando o modo como o gênero é um produto de uma determinada
economia política e que resulta de processos sociais, criticando assim as
perspectivas essencialistas e biologizantes que olham para os sexos como fatos
irredutíveis e os retiram dos processos sociais. Isto é, Rubin estabelece o gênero
como um processo de construção social, marcado por uma assimetria de poder
no quadro de uma economia política assinalada por uma divisão sexual do
trabalho que é constantemente legitimada pelas relações entre os sexos e pela
heterossexualidade obrigatória. Esta figura da heterossexualidade obrigatória vai
ressurgir no trabalho de Adrienne Rich (1993) sob a forma de
heterossexualidade compulsória, um modo institucional de heterossexualidade
que é produzida e reproduzida socialmente como maneira de construir posições
de sujeito genderizadas e impedir o contínuo lésbico, ou seja, a cadeia de
identificações entre mulheres, eliminando progressivamente a existência lésbica
da história.
A história do feminismo lésbico começa, entretanto antes destes trabalhos.
Marcado pelas tensões com o feminismo liberal, designadamente pelas clivagens
em relação à National Organization for Women (NOW) por parte de ativistas
feministas. O desconforto em relação à existência de lésbicas nas fileiras
feministas é expresso por feministas históricas como Betty Friedan, que
considerava os assuntos lésbicos como uma distração no tocante à libertação das
mulheres, considerando-os uma “lavender menace” (ameaça lavanda). Susan
Brownmiller também acaba por se envolver nesta contenda e desvaloriza
igualmente o papel das lésbicas na luta feminista (Wilton, 1995). A resposta das
feministas lésbicas não se faz esperar e criam-se grupos de feministas lésbicas
como as Radicalesbians, Gutter Dyke Collective, Lesbian Menace e as
Redstockings, inclusivamente com publicações de manifestos como o Woman
Identified Woman (Radicalesbians, 1970), distribuído num encontro da NOW
para o qual não foram convidadas ativistas lésbicas, a tal ameaça lavanda.
Com a emergência destes grupos e destas reações começa a surgir, dentro
do feminismo radical, uma corrente de pensamento muito marcada com a
preocupação de uma identificação política lésbica, como uma forma de
expressão feminista, assente precisamente nas “mulheres identificadas com
mulheres” (women-identified women). Esta linha de pensamento vai marcar a
intervenção feminista lésbica, mostrando que lésbica é também uma forma de
identificação política (Oliveira et al, 2009). No decurso dos anos 70 do século
XX, assiste-se a um movimento dentro do feminismo que vai aprofundar este
caminho de afirmação das mulheres identificadas com mulheres e que encontra
várias formas de expressão. Com efeito, como atesta Tamsin Wilton (1995), as
análises destas feministas lésbicas tomavam a homossexualidade como um efeito
do sistema de gênero.
Em Inglaterra, em 1979, o Grupo Feminista Revolucionário de Leeds
(1979) publicou um manifesto em que criticava a aliança entre feministas
heterossexuais e homens, em termos da coabitação com homens heterossexuais,
apresentando as lésbicas políticas como mulheres identificadas com mulheres
que não tinham sexo com homens. Este posicionamento deu origem a uma série
de críticas de outros grupos feministas que recusaram uma definição centrada
nesta dimensão e a redução da sua experiência heterossexual a uma espécie de
colaboração com o inimigo. Este tipo de movimento encontrou também alguma
expressão em modos mais separatistas do feminismo, com grupos de mulheres
auto-organizadas que viviam em coletivo sem homens. Todavia, é necessário
entender que estas experiências não foram generalizadas e que se constituem
também a partir da ideia de que espaços só de mulheres foram muito importantes
para a discussão de assuntos ligados à sexualidade, maternidade, experiência
feminina, entre outros.
É por meio deste percurso no feminismo que uma autora, Monique Wittig,
vai problematizar o conceito de pensamento heterossexual e analisar a produção
do gênero a partir deste pensamento. O conceito de pensamento heterossexual,
para Wittig (1992), implica a produção de uma diferença entre os sexos, segundo
a qual, homens e mulheres são categorias que visam enformar as relações de
dominação e a reprodução da sociedade heterossexual. Esta garantia ontológica é
vista pela autora como um modo de produzir posições de sujeito opressivas a
priori, localizando as pessoas dentro do sistema de gênero. O desaparecimento
destas posições corresponde a uma destruição das premissas que tornam este
sistema possível e legitimado. Assim, Wittig (1992) afirma que gays e lésbicas
não se devem considerar nem homens nem mulheres, como forma de retirar
legitimidade ao sistema. A sua frase lapidar “As lésbicas não são mulheres”,
reafirma, pois, a necessidade de deslegitimação do sistema.
Uma dimensão importante destas críticas que enumeramos consiste no fato
de serem correntes de pensamento e práxis que surgem das margens. Estes
feminismos das margens (como algumas autoras os denominam, entre as quais
hooks, 1984) apresentam-se, portanto, como uma tentativa de pensar a prática
feminista a partir de outros lugares, que não apenas o espaço das mulheres
brancas, ocidentais, de classe média e heterossexuais.
Queer - Como mostra Butler (1993, 1997b), queer começou por ser tido como
um insulto, “esquisito”, estranho, bizarro, efeminado, bicha, “viado”, uma
palavra destinada a servir de injúria e, como tal, enquanto modo de instauração
e reiteração de um regime heteronormativo. Quando grupos de ativistas
começam a usar esse insulto como modo de autodesignação (como por exemplo,
os Queer Nation), a própria palavra passa a ser ressignificada, rompendo de
forma resistente (lembremos Foucault e a ideia de que o poder implica formas
de resistência) com essas normas. É assim que queer, para Butler (1993), passa
a ter um significado crítico e inesperado. Passa a ser um conceito
indeterminado, capaz de romper com a heteronormatividade, porque implica
ressignificar a injúria e o discurso de ódio (Butler, 1997b), provocando a
reversibilidade dos efeitos da injúria. Este interesse pelas afirmações queer
traduz também uma decorrência das suas teorias no âmbito da identidade. Se
estas afirmações são identitárias, elas não decorrem de uma diferença essencial.
O que une as propostas queer é o desafio e a recusa face à norma (Colling,
2015). No caso das afirmações queer, esta apropriação de um insulto trata-se de
um projeto político cuja finalidade não é inteiramente clara à partida, que recusa
o fundacionalismo e a própria noção de identidade e não antecipa o futuro das
utilizações políticas do termo. A recuperação da figura do abjeto,
nomeadamente via Julia Kristeva (1982), anuncia uma preocupação que Butler
(2005) vai teorizar de outra forma, mostrando processos de exclusão dxs outrxs
para uma zona de abjeção, marcada pela ausência de inteligibilidade como
sujeitos e como humanos. Este processo pode ser extensível a todxs xs outros
abjetxs (Butler, 1993), com particular ênfase naqueles que estão para lá do
inteligível pelas normas de gênero (Oliveira et al, 2009).
A inteligibilidade do humano é analisada, do ponto de vista feminista,
como uma questão de justiça, de possibilitar uma vida “vivível”. Esta questão é
analisada em relação a uma série de questões onde se implicam populações
trans*, intersexo e identificadas como queer na sua relação com direitos
políticos, sexuais e sociais (Butler, 2005). Uso o termo pessoas trans*, como
Lucas Platero (2014), sinalizando a diversidade de experiências, de vidas e de
conhecimentos, tendo em conta que o termo pode e deve incluir corpos e vidas
que são tidas como fora da norma, que não querem a norma, ou que querem estar
noutro gênero sem relação com o gênero que lhes foi atribuído. Identidades,
porque são ao mesmo tempo demasiado vastas, demasiado estreitas, demasiado
fixas. Estes argumentos consideram que este reconhecimento de alguém como
humano consiste na própria produção do humano. Ou seja, só se é humano se as
normas que regulam a inteligibilidade da humanidade incluam esse “modo de
ser” (Amâncio, 1998) nessa categoria de humano. Desta forma, mulheres,
homossexuais, negrxs, trans*, intersexos, e outr@s, viram, durante muito tempo,
a sua humanidade negada. Assim como não acederam a esse reconhecimento,
viram negada uma vida “vivível”, reconhecida e justa. Esta atenção que vem dar
às questões da inteligibilidade é caracterizada por uma preocupação ética que vai
explorar no contexto de uma reflexão também sobre a política.
Butler, no trabalho que dedica ao reconhecimento da humanidade, também
numa luta política pelo reconhecimento de direitos às pessoas trans* e intersexo,
usando como figuras que implicam repensar a categoria do humano, fora das
normas que excluem a possibilidade de variações de gênero. Este trabalho
implica-se mais na dimensão ética, no plano da filosofia moral, do que os
anteriores e apresenta uma faceta que é considerada como mais ligada a um
discurso de universalização e de humanismo. Contudo, é preciso atender às
especificidades de uma filosofia implicada na ideia da vulnerabilidade da vida e
na precariedade desta ideia de humano. A ideia da humanidade como uma
condição precária (Butler, 2015) permite uma crítica aos conceitos neoliberais
do humano e do indivíduo como autossuficiente, eficaz e autodeterminado. A
partilha de uma condição de precariedade que pressupõe uma interdependência é
antagônica com esses projetos político-ideológicos e assenta numa consideração
da inteligibilidade do humano. Nesse contexto, esse projeto teórico que visa
esclarecer o que conta como humano é um projeto ético-político que começa a
ser enunciado em relação às pessoas detidas na prisão de Guantánamo (Butler,
2004), mas que foi também aplicado às comunidades trans*, queer e intersexo.
A análise da constituição e produção das subjetividades permite analisar os
processos de reconhecimento do humano, colocados em termos da possibilidade
de luto por aquelas pessoas que desapareceram, mas cuja vida era encarada de
um modo não reconhecível pelas normas da inteligibilidade. Este processo
implicou uma análise na qual Butler (2005) mostra que as normas de gênero são
constitutivas das subjetividades e que desfazê-las implica, muitas vezes, deixar
de ser inteligível. É precisamente aqui que entronca a discussão sobre as
posições de pessoas identificadas com posições queer e pessoas trans*. O
esforço de descolonização das experiências trans* e os desafios da ruptura
normativa operada pelas perspectivas queer provocaram alterações nos estudos
de gênero que coincidiu com novos projetos teóricos e conceituais, como a teoria
trans (Stryker, 2006), que visa dessubjugar os saberes trans, rompendo com o
discurso médico do corpo errado (Stone, 2006), com a necessidade de promover
‘correções’ de crianças intersexo (Chase, 2006); trabalhos sobre
performatividade de gênero na escola (Pereira, 2012); os projetos de análise dos
ativismos LGBT como o de Ana Cristina Santos (2012); ou com estudos queer
não brancos/negros/decoloniais, como na proposta recente, de Tim Stuttgens
(2014), que mistura a abordagem multicategorial da interseccionalidade com a
abordagem anti-categorial queer, fala do Qu*A*re, tirando o A de black (negro)
e colocando-o no meio de queer. Um caminho de intersecção, de potentes
alianças políticas, condenando racismos, sexismos, homo e transfobias.
Trânsitos e democracias de gênero

Um gênero[5] que nunca se é, mas que se faz por ser. Um gênero ou mais
do que um (podemos ter mais do que um), e daí esses termos identitários me
parecerem uma linguagem muito gasta para falarmos disso. E se funcionarmos,
como algumxs de nós, por desidentificação? Por não me adequar, por não querer
estar, ou por recusar. Como Bartleby, personagem de Herman Melville, “prefiro
não fazer”, a usar uma sagaz expressão que diz muito menos do que a
personagem sente, mas por uma espécie de sarcasmo encontra no “Eu preferia
que não” uma forma de resistência. Uma resistência em potência, condicional.

A opção pelo trans*, termo guarda-chuva e pouco preciso, parece-me ter a


possibilidade de abrir a porta à ideia de multitude. Uma multidão de gente,
desunida na identidade (porque ela é demasiado vasta ou demasiado estreita),
unida no seu desfasamento face à norma, no seu rompimento da mesma, na sua
recusa em ser tão somente um corpo errado. Não há nenhum corpo errado.
Errados são os termos em que esta questão é posta. Há corpos que não
correspondem ao nosso projeto de corpo, ou de gênero, ou os dois. Para isso, se
inventou a tecnologia. Exija-se, altere-se, mostre-se como a tecnologia serve
também para deixar as pessoas a viverem melhores vidas, sem nenhuma
obrigação de se chegar a ser algo. Corpo também projeto do que queremos ser. O
único critério deve ser o de Espinosa (Oliveira, 2016): perseverar na nossa
singularidade, naquilo que queremos ser e que sentimos que somos. Cabe ao
Estado garantir isso. E não necessariamente nenhuma forma de autoridade
externa a dizer-te quem és e como podes ser mais ou menos mulher ou homem,
sem nenhuma base científica, porque até agora nunca definiram mulheres ou
homens ideais, sequer masculinidade e feminilidade. E há mais gênero do que
isso. Muitos mais. Numa estimativa conservadora, uns mil. E mais um: o teu.
Assim o gênero passa a ser não só critério de reconhecimento social, fundamento
para expectativas e para comportamentos. Passa a ser uma potência, aquilo que
cada pessoa sonhou para si e que deve ser acarinhado, reconhecido e valorizado
como diverso, pois que numa democracia não é nem pode ser uma decisão de
médicxs, psicólogxs, psiquiatras, assistentes sociais etc., sobre quem pode ser o
quê. A decisão pertence ao domínio da autodeterminação, que é feita não num
quadro de individualismo, mas no seio de uma comunidade que resiste e luta
contra as normas de gênero.
Dentro desse arco-íris que é o gênero, e a viagem que todxs fazemos
dentro desse arco-íris, sejamos nós autodefinidos como trans* ou não, há muitas
possibilidades, algumas das quais mais reconhecidas que outras de acordo com
critérios estéticos, políticos e certas equivalências entre sexo e gênero. O
problema é que essas equivalências só existem para as pessoas que acreditam em
corpos errados, em fronteiras fixas entre homens e mulheres e na necessidade de
catalogar essas identidades, a que eu prefiro pensar como expressões. Como
explica Judith Butler, (1993), a esse sexo que é visto como matéria é afinal o
gênero que lhe dá sentido e leitura. Obviamente a sociedade que é fundamentada
numa ideologia sexista, genderizada, anti-trans*, conformista do ponto de vista
de gênero e politicamente heterossexual, dá um tratamento diferenciado
consoante à percepção que tem do gênero da pessoa. O gênero lido pelas lentes
da norma implica que quem não seja lidx como apresentando uma suposta
continuidade entre sexo e gênero é tratadx de forma discriminatória, violenta e,
por vezes, não raramente, pode inclusivamente acabar mortx. Brandon Teena,
Gisberta, Diana Sacayan, entre tantxs outrxs, tombadxs nesta guerra do gênero.

Já do ponto de vista de movimento social, como nos diz Leandro Colling


(2015) no estudo que fez entre Chile, Portugal, Espanha e Argentina, o
movimento queer distingue-se do movimento LGBT mais institucionalizado pela
aposta no confronto com as normas de gênero, dado que apesar das mudanças
legais como o casamento ou reconhecimento de famílias, muitas vezes, reforçam
as normas de gênero que acham combater. Assim, a expressão queer e trans*
acontece em performances públicas, nas ruas, performando o “nós, o povo”
(Butler, 2015), nas barricadas do movimento dos indignados, nas lutas contra os
capitalismos, encontrando lutas interseccionais, lutando contra as apropriações
que o mercado faz das identidades LGBT, estilhaçando-as nas micropolíticas do
queer e dos trânsitos de gênero ou recorrendo à lógica da hiperidentidade
(Colling, 2015).

Contudo, este risco, estas guerras, estas necropolíticas precisam de ser


tratados no quadro da democracia que tem que ser estendida às pessoas trans* e
queer, e um primeiro passo é a autodeterminação, inscrita na lei, a necessidade
de descolonizar os corpos, que não sejam definidos por outros, pelos códigos
biomédicos, mas que sejam a sua singularidade. Daí a dificuldade da
terminologia. Por isso prefiro pensar em expressões para que as polícias de
gênero que querem definir quem é o quê, não possam chegar a fazê-lo. Que esses
projetos de corpos sejam perseverar no projeto do quem querem ser, com o uso
ou não de tecnologias de gênero que nos aproximem dessa necessidade.
Autodeterminadxs, livres dentro de democracias que são também democracias
de gênero ou não são democracias. Como diz Haraway, este é um sonho falando
em línguas, muitxs, todxs a sermos democracia. Queer, trans*, multirracial e
feminista.

O gênero vive na sua figura fundo, os feminismos. Não há um sem o outro, um


não se percebe sem o outro, sobretudo a partir da entrada fulgurante do gênero
na teoria e práxis feminista a partir dos anos 70 do século XX. Antes, o gênero
dizia respeito à identidade psicológica derivada de um fantasioso sexo biológico,
que iludia as suas genderizadas condições de produção. No jogo de máscaras que
o gênero propõe, o sexo foi sempre gênero, porque a sua significação
socialmente vazia depende da norma de gênero. O sexo é, pois, uma máscara, tal
como a natureza- construções sociais que operam como se fossem do domínio da
ontologia, de uma coisa que se é, quando derivam de um tal consenso social que
passam a adquirir realidade e força explicativa própria.

Um dos maiores debates na teoria feminista, teoria que é sempre práxis e


não apenas a fantasia anti-intelectual meras discussões filosóficas – como são,
por vezes, vilipendiadas por certos setores de uma pseudo-esquerda com
pergaminhos das lutas únicas que são as lutas de classes –, tem, precisamente, a
ver com a análise do seu sujeito e do seu modo de ação. Quem são estas
mulheres? Os feminismos na sua diversidade e vitalidade poderiam ser como
Teresa de Lauretis os descreveu, negativos na teoria e positivos na ação. A
crítica desferida pelos feminismos interseccionais, a denúncia do feminismo
branco e de classe média, heterossexual, com a concomitante defesa de
interesses de classe e pela sua adesão às regras de uma ‘democracia’ estritamente
representativista e de matriz liberal, fez com que movimentos de mulheres não
brancas, trans e não heterossexuais, de origens não anglo-saxônicas, com um
passado marcado pelo colonialismo ou por uma posição periférica na ordem
imperialista mundial, entre todo o espectro extenso do que são as ‘mulheres’,
denunciassem esta pouca diversidade na teoria feminista e, nalguns casos, a sua
falta de adequação à multiplicidade de posições de sujeitos mulheres. Por outro
lado, os estudos de gênero, precisamente acompanhando esta crítica, vão fazer
uma releitura do conceito de gênero que vai deixar de se referir ao binarismo,
assente na ideia de diferença sexual, como fez Judith Butler. Assim, o gênero vai
passar a ser pensado a partir de outras coordenadas, para lá da estrita identidade,
como um conjunto de normas sociais que visam garantir quer a
heterossexualidade hegemônica, quer as normas de reconhecimento social da
subjetividade de gênero, abrindo o gênero a uma grande amplitude, que passa a
incluir pessoas de gênero não-binários, orientações sexuais e possibilidades
queer. Queer, no sentido de pessoas que estão ativamente a questionar as normas
de gênero. Esta leitura não ignora a dimensão crítica às políticas, biopolíticas e
necropolíticas de gênero que os Estados promovem; nomeadamente, quando
policiam as fronteiras de gênero de forma a mantê-las completamente
impermeáveis e estanques como garrote binário de impedimento à diversidade e
multiplicidade dos gêneros.

Feminismo já não é só questão de homens e de mulheres, o é também,


mas passa a incluir um espectro muito mais amplo, pela sua hifenização (a marca
do hífen, um signo de coligação - Oliveira, 2014a) com outros movimentos e
outras preocupações sociais e políticas, como o movimento antirracista, queer e
de descolonização, ou a própria Esquerda Global, na sua luta contra o
empobrecimento austeritário do mundo e do espírito.

Nos últimos anos, o desenvolvimento de correntes feministas como o


transfeminismo, o feminismo queer, o feminismo pós-colonial e o feminismo
interseccional mostram a adaptabilidade dos feminismos a construírem práxis e
teoria que respondam às questões que politicamente preocupam a esquerda e que
não se resumem às velhas maneiras de colocar as políticas de igualdade, como
são as questões da austeridade. Aliás, a construção de políticas para a igualdade
de gênero começa agora a evitar as armadilhas das políticas não interseccionais e
passam a tentar responder a situações de maior complexidade, dados os desafios
internacionais que se colocam às sociedades contemporâneas. Por outro lado, a
construção das políticas para a igualdade passa a ter em conta diferentes
sexualidades e formas de relacionalidade, familiar ou não.

Como consequência, o conceito de gênero, tal como o feminismo, foi


abrindo o seu horizonte de possibilidades conceituais e analíticas, passando a
tratar não só de forma interseccional, mas analisando os saberes-poderes que
constituíram o gênero em interação com outras formas de diferenciação social,
através de processos históricos, sociológicos e políticos. Ao mesmo tempo, com
estas novas utilizações, coexistem modos mais clássicos de encarar o gênero,
dado que temos que pensar que vários feminismos e diferentes epistemologias
coexistem no tempo e no espaço. As respostas políticas dos feminismos são à
sua imagem: múltiplas, diversas e em aliança contra o empobrecimento coletivo
e do espírito. Não uma resposta única, mil.



Referências

Amâncio, Lígia (1998). Masculino e Feminino: a construção social da diferença. Porto: Afrontamento.

Amaral, Ana Luísa e Freitas, Marinela (2014). Novas Cartas Portuguesas: entre Portugal e o Mundo.
Lisboa: D. Quixote.

Anzaldúa, Gloria (2004). Movimientos de rebeldia y las culturas que traicionan. In bell hooks, Avtar Brah,
Chela Sandoval & Gloria Anzaldúa (Eds.). Otras inapropriables: feminismos desde las fronteras. Madrid:
Traficantes de Sueños. (p. 71-79)

Balzer, Carsten & Hutta, Jan Simon (2012). Transrespect versus transphobia worldwide - A Comparative
Review of the Human-rights Situation of Gender-variant/Trans People. Berlim: Transgender Europe.

Barreno, Maria Isabel, Horta, Maria Teresa & Costa, Maria Velho (2010/1972). Novas Cartas Portuguesas.
Lisboa: D. Quixote.

Barriteau, Violet (2010). The relevance of black feminist scholarship. In Stanlie M. James, Frances Smith
Foster & Beverly Guy-Sheftall (Eds). Still Brave: the evolution of black women’s studies. New York:
Feminist Press.(p. 413-434)

Beauvoir, Simone de (1975). O Segundo Sexo. Lisboa: Bertrand

Bento, Berenice (2014). Brasil, país do transfemínicidio. Artigos e resenhas do Centro Latino-Americano
em sexualidade e direitos humanos. link:
http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf

Bento, Berenice (2016). Transfeminicidio: violência de gênero e gênero da violência. In Leandro Colling
(Ed.). Dissidências Sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA. (p. 43-68)

Boston Women's Health Book Collective (1973). Our Bodies, Ourselves. New York: Simon & Schuster.

Brah, Avtar (1994). Difference, diversity, differentiation. In James Donald and Ali Rattansi (Eds.). Race,
Culture and Difference. London: Sage. (p. 126-145)

Butler, Judith (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge.

Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge.

Butler, J. (1997). The psychic life of power: theories on subjection. Stanford: Stanford University Press.

Butler, J. (1997b). Excitable speech: a politics of the performative. New York ; London, Routledge.

Butler, J. (2004). Precarious Lives. The Powers of Mourning and Violence. London: Verso.

Butler, J. (2005). Undoing Gender. New York: Routledge.

Butler, J. (2009). Frames of War: when is life grievable? London: Verso.

Butler, J. (2015). Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, MA: Harvard University
Press.

Carmo, Isabel & Amâncio, Lígia (2004). Vozes insubmissas. Lisboa: D. Quixote

Cavallaro, Dani (2003). French Feminist theory. London: Continuum.

Charles, Nickie (2000). Feminism, the state and social policy. London: MacMillan.

Chase, Cheryl (2006). Hermaphrodites with an attitude: mapping the emergence of intersex political
activism. In Susan Stryker & Stephen Whittle (eds.). The Transgender Studies Reader. New York,
Routledge (300-313).

Cixous, Hélene (1976). The Laugh of the Medusa. Signs, 1, 875-93.

Collin, Françoise (1991). Diferença e diferendo. A questão das mulheres na filosofia. In Georges Duby &
Michele Perrot (Eds.). História das Mulheres. Porto: Afrontamento.(315-349)

Colling, Leandro (2015). Que outros sejam o normal. Tensões entre o movimento LGBT e ativismo queer.
Salvador: EDUFBA.

Crenshaw, Kimberle (1989). Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique
of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal
Forum, 1989, 139-167.

Daly, Mary (1978). Gyn/Ecology: the metaethics of radical feminism. Boston: Beacon Press.

Davis, Angela (1981). Women, Race and Class. London: Women’s Press.

Dworkin, Andrea (1987). Intercourse. London: Arrow Books.

Fausto-Sterling, Anne (2012). Sex/Gender: Biology in the social world. New York: Routledge.

FRA - European Union Agency for Fundamental Rights. (2014). Violence against women: an EU-wide
survey. Luxemburgo: FRA.

Friedan, Betty (1963/1975). A mística feminina. Lisboa: Ulisseia.

Guillaumin, Collette (1992). Sexe, Race et Pratique du Pouvoir. Paris: Côté-Femmes.

Hanisch, Carol (1970). The Personal Is Political. In Shulamith Firestone & Anne Koedt (Eds.). Notes from
the Second Year: Women’s Liberation. Disponível na internet a 28 de Março de 2016 em:
http://www.carolhanisch.org/CHwritings/PIP.html

Haraway, D. (1991). A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late
Twentieth Century. In Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge (p.
149-181)

Haraway, Donna (2004). The Promises of Monsters: A Regenerative Politics for Inapprorpiate/d Others. In
D. Haraway (Ed.) The Haraway Reader. New York: Routledge.(p. 63-124)

Haraway, D. (2008). When species meet. Minneapolis: Minnesotta University Press.

hooks, bell (1984). Feminist theory: from margin to center. Boston, MA: South End Press.

Irigaray, Luce (1985). This Sex Which Is Not One. Ithaca: Cornell University Press.

Jaggar, Allison, & Rothenberg, Paula (1984). Feminist Frameworks. New York: McGraw-Hill.

Kollontai, Alexandra (1908). The social basis of the women’s question: introduction. Disponível na internet
28 de Março de 2016 em: https://www.marxists.org/archive/kollonta/1908/social-basis.htm

Kristeva, Julia (1985). The powers of horror: an essay on abjection. New York: Columbia University Press.

Lauretis, Teresa de (1987). Technologies of gender. New York: Routledge.

Lorde, Audre (1984). The master’s tools will never dismantle the master’s house. In Audre Lorde (Ed).
Sister Outsider - essays and speeches by Audre Lorde. Freedom, CA: Crossing. (p. 110-113).

Lorde, A. (2009). I am your sister: black women organising across sexualities. In Rudolph Byrd, Johnetta
Bertsch Cole & Beverly Guy-Sheftal (Eds). I am your sister: collected and unpublished writings of Audre
Lorde . New York: Oxford University Press. |(p.57-63)

MacKinnon, Catherine (1993). Feminism unmodified: discourses on life and Law. Cambridge: Harvard
University Press.

Millet, Kate (1969). Sexual Politics. London: Virago Press.

Nogueira, Conceição (2001). Um novo olhar sobre as relações sociais de género. Lisboa: Gulbenkian.

Nogueira, C. (2013). A Teoria da Interseccionalidade nos estudos de género e sexualidades: condições de
produção de “novas possibilidades” no projeto de uma psicologia feminista crítica. In A. Brizola, A.
Zanella, & M. Gesser (Eds.). Práticas Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos (pp.227-248).
Florianópolis: ABRAPSO.

Oliveira, João Manuel de. (2014a). Hyphenations: the other lives of feminist and queer concepts. Lambda
Nordica, 2014, 38-59.

Oliveira, J. M.(2014b). A necropolítica e as sombras na teoria feminista. Ex aequo, (29), 69-82.

Oliveira, J. M. (2016). Trânsitos de género: leituras queer/trans* da potência do rizoma género. In Leandro
Colling (Ed.). Dissidências Sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA. (p. 109-132)

Oliveira, J. M. & Amâncio, Lígia (2002). Liberdades Condicionais: o conceito de papel sexual revisitado.
Sociologia-Problemas e Práticas, 40, 45-61.

Oliveira, J. M., Pinto, Pedro, Pena, Cristiana, & Costa, Carlos Gonçalves (2009). Feminismos queer:
disjunções, articulações e ressignificações. Ex aequo, 20, 13-27.

Olson, Lester (2000). The personal, the political and others: Audre Lorde denouncing the Second Sex
Conference. Philosophy and Rethoric, 33, 259-285.

Pereira, Maria do Mar (2012). Fazendo o género no recreio. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

Platero, Lucas (2014). Trans*exualidades: Acompañamiento, factores de salud y recursos educativos.
Barcelona: Bellaterra.

Pollock, Griselda (2001). A Política da Teoria: gerações e geografias na teoria feminista e na história das
histórias de arte.In Ana Gabriela Macedo (Orga.). Género, Identidade e Desejo: antologia crítica do
feminismo contemporâneo. (pp. 191-220). Lisboa: Cotovia.

RadicaLesbians (1970). The Woman Identified Woman.disponível na lnternet a 26 de Março de 2016 em
http://library.duke.edu/rubenstein/scriptorium/wlm/womid/

Rich, Adrienne (1993). Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In Henry Abelove, Michèle
Barale & David M. Halperin (Eds). The Lesbian and Gay Studies Reader. London: Routledge. (p. 227-254)

Rubin, Gayle (1975). The Traffic in Women: Notes on the 'Political Economy' of Sex. In Rayna Reiter (ed.).
Toward an Anthropology of Women. New York: Monthly Review Press.

Santos, Ana Cristina (2012). Social Movements and Sexual Citizenship in Southern Europe. Basingstoke:
Palgrave-Macmillan.

Segal, Lynne (2013). Out of Time: the pleasures and perils of ageing. London: Verso.

Spivak, Gayatri (1993). Can the Subaltern Speak? In Patrick Williams e Laura Chrisman (eds.). Colonial
discourse and post-colonial theory: a reader. Hertfordshire, Harvester Wheatsheaf (pp. 66-111).

Stoller, Robert (1968). Sex and Gender: On the Development of Masculinity and Femininity. New York:
Science House.

Stone, Sandy (2006). The Empire strikes back: a posttranssexual manifesto. In Susan Stryker & Stephen
Whittle (eds.). The Transgender Studies Reader. New York, Routledge (p. 221-234).

Stryker, Susan (2006). (De)subjugated knowledge: an introduction to transgender stu dies. In Susan Stryker
& Stephen Whittle (eds.). The Transgender Studies Reader. New York, Routledge (p. 1-17)

Stuttgens, Tim (2014). In Qu*A*re Time and Place: Post-Slavery temporalities, Blaxploitation and Sun
Ra’s Afrofuturism between Intersectionality and heterogeneity. Berlin: B_Books.

Tong, Rosemarie (2000). Radical Feminism. In Lorraine Code (Ed.), Encyclopaedia of Feminist Theories.
New York: Routledge.

UMAR (2014). Relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas. Lisboa: UMAR disponível em 26 de
Março de 2016 http://www.umarfeminismos.org/index.php/observatorio-de-mulheres-assassinadas/dados-
2014

Wilton, Tamsin (1995). Lesbian studies : setting an agenda. London: Routledge.

Wittig, Monique (1992). El pensamiento heterosexual y otros ensaios. Barcelona: Eguales.









Nota Biográfica

João Manuel de Oliveira é professor visitante na Pós—Graduação em Psicologia da Universidade Federal


de Santa Catarina, integrado no Núcleo Margens e investigador no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa,
no domínio dos estudos de gênero e das sexualidades. Pesquisa sobre teoria feminista queer pós-
estruturalista, epistemologias críticas e análise dos discursos sociais, mormente sobre discriminação,
cidadania sexual, normas de gênero, heteronormatividade e homonormatividade, áreas sobre as quais tem
publicado em livros e em revistas portuguesas e internacionais.

É doutor em Psicologia Social pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa e fez pós-doutoramentro na


Universidade do Minho, Universidade do Porto e ISCTE-IUL. Foi Investigador visitante no Birkbeck
College da Universidade de Londres e na Universidade Federal da Bahia, onde é colaborador estrangeiro do
CUS-Cultura e Sexualidade.

Agradecimentos
Aimée Lumière – Drag
Caic Tiben | Modelo fotográfico
Dan Rabelo | Asé Editorial
Juniro Almeida | Tritão Performer
Ricardo Santiago | Estúdio Fotográfico
Zazo Guerra | Fotógrafo

[1]
Professor da Universidade Federal da Bahia e coordenador do grupo de pesquisa em Cultura e
Sexualidade (CUS).
[2]
Ver http://transrespect.org/en/
[3]
Esta preocupação com a colonização mostra a permeabilização das ideias feministas com os outros
movimentos sociais da época, nomeadamente o movimento pelos direitos civis, o movimento Negro, e,
mais tarde, o movimento lésbico, gay, bissexual e transgênero (LGBT).
[4]
Patente no conceito psicanalítico da inveja do pênis.
[5]
Este texto foi publicado previamente na Transzine nº 2 das Panteras Rosa e na Revista Vírus, com
adaptações.

S-ar putea să vă placă și