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Dossiê:

Terras Indígenas

Ñanduty

Volume 1 | Número 1 | 2013

Dourados, MS - Brasil
Dossiê:
Terras Indígenas

Ñanduty

Volume 1 | Número 1 | 2013

Dourados, MS - Brasil
CORPO EDITORIAL
COMISSÃO EDITORIAL (2011-2013):
Editor: Mário Teixeira de Sá Júnior
Editora Discente: Carla Fabiana Costa Calarge
Editores adjuntos: Antônio Hilário Aguilera Urquiza e Rodrigo Luiz Simas de Aguiar.

CONSELHO EDITORIAL:

1. Alban Bensa (École des Hautes Études en Sciences Sociales, França)*


2. Álvaro Banducci Júnior (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil)
3. Angel Baldomero Espina Barrio (Universidad de Salamanca, Espanha)
4. Aryon Dall’Igna Rodrigues (Universidade de Brasília, Brasil)*
5. Bela Fieldman-Bianco (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
6. Eduardo Góes Neves (Universidade de São Paulo, Brasil)
7. Gustavo G. Politis (Universidad de La Plata, Argentina)
8. João Pacheco de Oliveira (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
9. Jorge Eremites de Oliveira (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
10. Klaus Peter Kristian Hilbert (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil)
11. Levi Marques Pereira (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
12. Luís Roberto Cardoso de Oliveira (Universidade de Brasília, Brasil)
13. Simone Becker (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
14. Tania Andrade Lima (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
15. Walter Alves Neves (Universidade de São Paulo, Brasil)*

CONSELHO CONSULTIVO:

1. Antônio Dari Ramos (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)


2. Bartomeu Melià (Universidad Católica “Nuestra Señora de La Asunción”, Paraguai)*
3. Carlos Alberto Steil (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
4. Claudia L. W. Fonseca (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)*
5. Dominique Tikin Gallois (Universidade de São Paulo, Brasil)
6. Graziele Acçolini (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
7. Hernan Salas Quitanal (Universidad Nacional Autónoma de México, México)
8. John Manuel Monteiro (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
9. Jones Dari Goettert (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
10. José María Lopez Mazz (Universidad de La República, Uruguai)*
11. Márcia Bezerra de Almeida (Universidade Federal do Pará, Brasil)
12. Marina Vinha (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
13. Martín Giesso (Northeastern Illinois University, Estados Unidos)
14. Noêmia dos Santos Pereira Moura (Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil)
15. Pedro Ignacio Schmitz (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil)
16. Pedro Paulo Abreu Funari (Universidade Estadual de Campinas, Brasil)
17. Robin M. Wright (University of Florida, Estados Unidos)
18. Roque de Barros Laraia (Universidade de Brasília, Brasil)
19. Silvia M. Schmuziger Carvalho (Universidade Estadual Paulista, Brasil)
20. Sônia Weidner Maluf (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)*
Sumário
6 Editorial

DOSSIÊ: POVOS INDÍGENAS


10 POVO E ESTADO: E A AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
Marco Antonio Barbosa
22 MOBILIDADE, IDENTIDADE E ACESSO A DIREITOS: OS POVOS GUARANI E
AS FRONTEIRAS
Carolina Schneider Comandulli
32 INDÍGENAS KADIwéU E POSSEIROS NA SERRA DA BODOqUENA:
CONFLITOS, IMAGINáRIOS E REPRESENTAÇõES NAS PáGINAS DOS
jORNAIS IMPRESSOS
Aline Maria Muller
46 O DEVASSAMENTO DOS SERTõES DO RIO DOCE E zONA DA MATA:
RESISTêNCIA E ASSOCIAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NOS SéCULOS
XVIII E XIX
Ricardo Batista de Oliveira
70 OS INSTRUMENTOS DE BORDO: EXPECTATIVAS E POSSIBILIDADES DO
TRABALHO DO ANTROPÓLOGO EM LAUDOS PERICIAIS
joão Pacheco de Oliveira Filho

MISCELÂNEA
88 A FALA PÚBLICA E A PALAVRA ESCRITA: ASPECTOS DA INTERVENÇÃO
MILITAR EM TERRAS INDÍGENAS NO RIO IÇANA, NOROESTE
AMAzÔNICO
Fabiane Vinente dos Santos
101 TRADIÇÃO, IDENTIDADE E REGIÃO: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE
OS ASPECTOS TEÓRICOS DO PROjETO DE MAPEAMENTO ARqUEOLÓGICO
E CULTURAL DA zONA DA MATA MINEIRA
Ana Paula de Paula Loures de Oliveira
116 UMA VISÃO ARqUEOLÓGICA DA RELAÇÃO ENTRE CULTURA E
AMBIENTE: A INSERÇÃO AMBIENTAL DOS SÍTIOS ARqUEOLÓGICOS DO
MUNICÍPIO DE SÃO jOÃO DO CARIRI, PARAÍBA
Carlos Xavier de Azevedo Netto, Patrícia Duarte e Adriana Machado Pimentel de Oliveira
RESENHA
131 PEREIRA, Levi Marques. 2009. Os Terena de Buriti: formas organizacionais,
territorialização e representação da identidade étnica. Dourados, Editora UFGD, 170pp
Patrik Thames Franco
134 RUIBAL, Alfredo Gonzáles. La experiencia del otro: una introducción a la
etnoarqueologia. Madri: Ediciones Akal. 2003, 177p.
Luiz Carlos Medeiros da Rocha e Andréa Lourdes Monteiro Scabello

ENTREVISTA
137 “EU EVITO MUITO CRIAR COISAS qUE SEjAM MITOS, NAS CABEÇAS
DOS OUTROS E NA MINHA PRÓPRIA”: ENTREVISTA COM jOÃO PACHECO
DE OLIVEIRA
jorge Eremites de Oliveira e Mario Teixeira de Sá junior

DOCUMENTO
154 RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DA INSPEÇÃO jUDICIAL EM áREAS
DAS FAzENDAS OURO PRETO, CRISTALINA E IPANEMA, E NA
COMUNIDADE INDÍGENA (ALDEIA) TAUNAy-IPEGUE, EM AqUIDAUANA,
MATO GROSSO DO SUL, BRASIL
Noêmia dos Santos Pereira Moura
Editorial
O lançamento de uma revista científica por um programa de Pós-Graduação jovem como
o PPGAnt é sempre uma responsabilidade que devemos abraçar com entusiasmo. Por um
lado, porque a oportunidade se mostra como um espaço de diálogo entre os pares, por outro,
porque oferece em si uma oportunidade de divulgação das pesquisas e conhecimentos
acumulados pelo corpo docente e discente.
Ñanduty, o nome escolhido para nossa Revista Eletrônica é uma palavra que pode adquirir
mais de um significado em língua guarani. O vocábulo ñandu pode ser substantivo, quando
empregado para designar aranha (aracnídeo), mas também pode servir como verbo, no
sentido de sentir, experimentar sensações, averiguar ou pressentir, além denotar ir, ver
ou visitar alguém por cortesia, solidariedade ou afeição. O sufixo ty, por sua vez, cuja
pronúncia é nasal, pode significar suco ou sumo, indicar coletivo, designar grandeza
de alguma coisa ou mesmo ser empregado como no sentido de jogar ou lançar algo em
alguma direção. Mais especificamente, a palavra é usada para significar “teia de aranha”,
também é empregada no sentido de grande rede de relações sociais. Por esses diversos
significados, e por significar essa ampla rede de relações, a Revista Ñanduty se apresenta
como um convite à interação.
O PPGAnt é o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD), que foi aprovado pela CAPES em 2010, em nível de Mestrado,
e que possui área de concentração em Antropologia Sociocultural. Suas três linhas
de pesquisa são: Etnicidade, diversidade e fronteiras, Etnologia, educação indígena e
interculturalidade e Arqueologia, etno-história e patrimônio cultural. O Programa de
Pós-Graduação foi pensado a partir da iniciativa de um grupo de profissionais ligados
às três universidades públicas existentes no Mato Grosso do Sul: UFGD – Universidade
Federal da Grande Dourados, UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e
UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Esses profissionais, pesquisadores
e pesquisadoras, estão voltados para as atuais demandas relacionadas aos contextos de
fronteira e diversidade étnica constituintes do cenário sulmatogrossense.
A periodicidade da revista é semestral, sendo orientada pelo Conselho Editorial que
é renovado a cada período de dois anos. A revista eletrônica Ñanduty tem por objetivo
maior contribuir para o desenvolvimento da Antropologia Sociocultural, Arqueologia,
Linguística Antropológica, Antropologia Física e seus campos afins. Sua política editorial,
portanto, tem a ver com uma proposta de (re)aproximação estratégica e inovadora de
campos clássicos da Antropologia no âmbito nacional e internacional.
O corpo da Revista Ñanduty é composto por cinco seções: Dossiê, Miscelânea, Resenhas,
Documentos e Entrevista. O Dossiê é temático, sendo alterado a cada número busca abordar
um tema de relevância atual para os profissionais atuantes na Antropologia, Arqueologia,
História, Direitos e demais campos relacionados, sempre organizado por pesquisadores
de contribuição reconhecida na área em pauta.
Nesse número, apresentamos o Dossiê “Terras Indígenas”, organizado por Jorge Eremites
de Oliveira e Levi Marques Pereira. Os artigos dedicam-se a discutir questões relacionadas
a presença marcante dos povos tradicionais em movimento de reivindicação de direitos.
A Seção Miscelânea, como o nome sugere, dedica-se a reunir obras sobre diversos assuntos,
que não estão relacionados com o tema do Dossiê daquela edição, mas que afinam-se com
as temáticas da atualidade e com a Política de Publicação proposta pela revista.

Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012


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Em Resenhas, reunimos resenhas de livros, filmes e outras obras que estejam relacionadas
com as temáticas abordadas pela Revista e que possam contribuir no sentido de fornecer
informações introdutórias e observações a outros pesquisadores.
A Seção Documentos, tem o objetivo de tornar público materiais e dados de interesse
aos pesquisadores informais ou acadêmicos, oferecendo espaço para democratização de
dados de pesquisa ou documentos de relevância história relacionados á Antropologia,
Arqueologia, Direito, História e demais áreas relacionadas aos temas da Revista Ñanduty.
Por fim, a Seção Entrevista, procura publicar transcrições de conferências ou entrevistas
que tenham contribuído para as temáticas atuais da Antropologia e suas áreas relacionadas.
Seu objetivo é oferecer divulgação no meio científico para esses eventos, além de funcionar
como uma memória e fonte de referência para outros pesquisadores.
O Dossiê Temático do primeiro número da Revista Ñanduty possui quatro artigos. O primeiro
texto, “Povo e Estado e a Autodeterminação dos Povos Indígenas”, trata com desenvoltura
a questão do Estado e sua relação com a autonomia dos povos indígenas. Inicialmente
aborda a presença do pensamento evolucionista na formação dos Estados Modernos e
as consequências que se darão nos Direitos dos Povos a partir daí. Essas repercussões
ecoam na atualidade, no que concerne ao atendimento de direitos fundamentais dos povos
indígenas.
O segundo texto, de Carolina Schneider Comandulli, “Mobilidade, Identidade e Acesso a
Direitos: Os Povos Guarani e as Fronteiras”, aborda as relações entre Brasil, Paraguai e
Argentina, dada a presença dos Povos Guarani em seus territórios. Mais especificamente,
preocupa-se em analisar os documentos internacionais de reconhecimento de cidadania
diferenciada para estes indivíduos e os movimentos empreendidos pelos indígenas no
sentido de reivindicar o atendimentos de suas demandas perante os Estados Nacionais.
“Indígenas Kadiweu e Posseiros na Serra da Bodoquena: Conflitos, imaginários e
representações nas páginas dos jornais impressos”, traz pela autoria de Aline Maria Muller,
um levantamento documental das matérias publicadas em jornais locais que se referiram
ao conflito de pela posse de terras na região da Bodoquena. As representações construídas
por esses veículos de comunicação contribuem para criar um imaginário equivocado
sobre os indígenas que acaba por alimentar a divergência com os fazendeiros e situação
de violência na região.
O penúltimo último artigo da Seção Dossiê, “O Devassamento dos Sertões do Rio Doce e
Zona da Mata: Resistência e Associação dos Povos Indígenas nos Séculos XVIII e XIX”, de
Ricardo Batista de Oliveira, desloca nosso foco para a Região de Minas Gerais, contribuindo
para o entendimento da territorialidade histórica das etnias da região em análise pelo
autor. O Texto apresenta ainda elementos que permitem compreender a organização
social e as necessárias reelaborações a partir da interferência dos projetos de colonização.
Encerramos com chave de outro nossa Seção especial com a reedição de “Os Instrumentos
de Bordo: Expectativas e Possibilidades do Trabalho do Antropólogo em Laudos Periciais”
de João Pacheco de Oliveira. O trabalho foi originalmente publicado no livro “A perícia
antropológica em Processos Judiciais”. O texto foi mencionado pelo pesquisador em
entrevista concedida para nossa Revista e que está presente sem Seção própria, nesta
edição. Este seria um dos trabalhos mais citados e que tenha tido maior impacto sobre a
Antropologia Brasileira. Registramos nossos agradecimentos ao autor e à então Presidente
da ABA, Bela Feldman Bianco, pela autorização. Consideramos de grande importância
oportunizar o acesso público a texto de tamanha relevância para a comunidade científica.
Em Miscelânea, apresentamos a “A Fala Pública e a Palavra Escrita: Aspectos da Intervenção
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Militar em Terras Indígenas no Rio Içana, Noroeste Amazônico”, de Fabiane Vinente dos
Santos, que aborda a discussão atual entre as concepções e os significados da fala em uma
sociedade indígena e sua relação com o Estado Brasileiro através do exército. O contexto
é delineado principalmente pelo conflito de interesses entre indígenas e a base militar
instalada na região.
No segundo texto da Seção, “Tradição, Identidade e Região: Alguns Apontamentos sobre
os Aspectos Teóricos do Projeto de Mapeamento Arqueológico e Cultural da Zona da Mata
Mineira”, a autora Ana Paula de Paula Loures de Oliveira, apresenta uma discussão em
voga no meio arqueológico e que trata da crítica às “tradições arqueológicas” enquanto
categorias classificatórias. O artigo utiliza como base a análise de alguns sítios localizados
na região mencionada e que possui relevante diversidade cultural.
Por fim, o artigo dos autores Carlos Xavier de Azevedo Netto, Patrícia Duarte e Adriana
Machado Pimentel de Oliveira, “Uma Visão Arqueológica da Relação entre Cultura e
Ambiente: A Inserção Ambiental dos Sítios Arqueológicos do Município de São João do
Cariri, Paraíba”. O artigo apresenta dados relevantes sobre a arqueologia de uma região
ainda pouco conhecida pelos arqueólogos no Brasil, fazendo uma interface com os sítios,
o ambiente em que se encontram e a memória coletiva das pessoas que vivem na região
estudada.
As Resenhas apresentadas nessa seção correspondem aos livros “Os Terena de Buriti:
formas organizacionais, territorialização e representação da identidade étnica” de Levi
Marques Pereira por Patrik Thames Franco e “La experiencia del otro: una introducción
a la etnoarqueologia”, de Alfredo Gonzáles Ruibal por Luiz Carlos Medeiros da Rocha e
Andréa Lourdes Monteiro Scabello.
A Seção Entrevista, como mencionado acima, traz neste número o ilustre antropólogo João
Pacheco de Oliveira, que conta sua trajetória acadêmica e influências ao longo da carreira.
Por fim, na Seção Documentos, temos o Relatório antropológico da Inspeção Judicial em
áreas das fazendas Ouro Preto, Cristalina e Ipanema, e na comunidade indígena (aldeia)
Taunay-Ipegue , em Aquidauana, Mato Grosso do Su l, Brasil. O material foi produzido por
Noêmia dos Santos Pereira Moura enquanto assistente técnica da FUNAI, em 2010.
Como dissemos, é grande a responsabilidade de publicar uma revista científica, Contamos
que os artigos selecionados para esse primeiro número possam ser enriquecimento
intelectual, de descobertas de novos espaços de discussão e avanços para o pesquisas
futuras por parte dos leitores.
No mais contamos com sua colaboração, submetendo textos, na divulgação, com elogios e
necessárias críticas que possam advir desse produto. Visite nossa página e divulgue o link
para acesso: http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty

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DOSSIÊ
Terras Indígenas
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

POVO E ESTADO
E A AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
MARCO ANTONIO BARBOSA*
RESUMO application of the right to self-determination,
Trata-se, com base nas análises críticas da an- set in the UN Charter, initially applied against
tropologia pós-evolucionista, dos temas Povo the cities overseas, but that currently is being
e Estado e suas dialéticas. Enfoca-se a diferen- applied even in situations of internal coloniza-
ça fundamental na gênese dos Estados Oci- tion, being the indigenous peoples of the Ear-
dentais centrais e dos Estados periféricos, em th the last ones to obtain recognition of that
razão de que a instituição, funcionamento e right, thanks to the Declaration on the Rights
estrutura destes últimos ocorreram por obra e of Indigenous Peoples of the United Nations,
para atender aos interesses dos primeiros, ou, 2007.
por mero mimetismo e tudo fortemente in-
fluenciado pela teoria do evolucionismo social Keywords: people, state, evolution, capitalism,
e do desenvolvimento transferido, ideologias self-determination.
francamente ao serviço do capitalismo. Anali-
sam-se o processo de desmonte do colonialis- RESUMEN
mo e o debate jurídico relativo à aplicação do Se basa en el análisis crítico de la evolución
direito de autodeterminação, fixado na Carta post-antropología, la gente y los temas Estado
da ONU, inicialmente aplicado contra as me- y de su dialéctica. Se centra la diferencia fun-
trópoles de ultramar, mas que, contemporane- damental en la génesis de los estados centrales
amente vem sendo aplicado também em situ- y occidentales de los Estados periféricos, por
ações de colonização interna, sendo os povos la institución, el funcionamiento y la estruc-
autóctones da Terra os últimos que obtiveram tura de este último eran para trabajar y servir
o reconhecimento para si desse mesmo direi- a los intereses de los primeros, o por simple
to por força da Declaração das Nações Unidas mimetismo y todo fuertemente influenciado
dos Direitos dos Povos Autóctones de 2007. por la teoría de la evolución social y el desar-
rollo trasladado ideologías francamente al ser-
Palavras chave: povo; estado; evolucionismo; vicio del capitalismo. Se analiza el proceso de
capitalismo; autodeterminação; desmantelamiento del colonialismo en el siglo
XX y el debate jurídico sobre la aplicación del
ABSTRACT derecho a la libre determinación, establecido
Based on critical analysis of post-evolutionist en la Carta de las Naciones Unidas, aplicada
anthropology, the current article discusses the inicialmente en contra de las metrópolis en el
concepts of People and State and its dialec- extranjero, pero que en la actualidad se está
tics. Primary focus is laid on the fundamental aplicando también en situaciones de coloniza-
difference in the genesis of the Western cen- ción interna y los pueblos indígenas de la tier-
tral states from that of peripheral states, since ra el pasado que el reconocimiento obtenido
the institution, operation and structure of the por sí mismo de ese derecho en virtud de la
latter occurred at work and to serve the inte- Declaración de las Naciones Unidas sobre los
rests of the first, or by mere mimicry and all Derechos de los Pueblos indígenas, 2007.
strongly influenced by theory of social evo-
lution and development, ideologies openly at Palavras-clave: personas; condición; evolucio-
service of capitalism. The process of disman- nismo, el capitalismo, la libre determinación;
tling of colonialism in the twentieth century
is analyzed, as well as the legal debate on the
* Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Estudou Antropologia Social na Escola de Altos Estudos
em Ciências Sociais de Paris. Professor do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Mestrado em Direito da Sociedade
da Informação da FMU de São Paulo. mabarbosa@fmu.br

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INTRODUÇÃO do que do jogo de poder estabelecido en-
tre essas potências ocidentais. Desse modo,
São muitos os caminhos para se tratar muitos povos se viram, mesmo depois das
do tema, sendo muito comum e frequente independências dessas colônias, submetidos
enfocar o povo na perspectiva do Estado e à autoridade de um Estado, de um poder go-
não o contrário, ou seja, o Estado na perspec- vernamental, que não os representa, com o
tiva do povo. Outra característica desse tipo qual não se identificam e muitas vezes não o
de análise sobre o tema é a adoção de uma compreendem.
ótica de unidade, ou seja, ressalta ou visa o Os Estados frutos do colonialismo oci-
povo enquanto unidade populacional do Es- dental são bons exemplos da inversão do
tado, como se houvesse uma correspondên- princípio segundo o qual o povo, a nação
cia entre Estado e povo, não no sentido de ,configura o Estado. O próprio Brasil é um
que o Estado e o povo sejam a mesma coisa, bom exemplo disso, pois o Estado brasilei-
mas que o povo conforma o Estado e que o ro, quando rompe com a colônia, não apenas
Estado conforma o povo, sem problematizar adota o modelo estrutural e os limites terri-
essa relação. Não nos parece essa conforma- toriais do Estado do qual diz ter se liberta-
ção assim tão evidente, quanto o tratamento do quanto adota como seu chefe o filho do
totalizante induz a crer. rei deposto. Essa situação da instituição do
Além do mais, os assuntos atinentes ao Estado brasileiro levou antropólogos como
Estado terão respostas diferentes, em virtu- Darcy Ribeiro, por exemplo, a afirmarem
de das situações específicas de cada Estado, que no Brasil tivemos primeiro a institui-
o que atinge, também, o povo, que em certos ção do Estado do que da nação, podendo-se
Estados poderá atender melhor à ideia mais pensar que muitos dos problemas que temos
corrente de vê-lo como o substrato humano possam advir dessa situação (Ribeiro, 1979).
que conformou o Estado do modo que se Robert Shirley, outro antropólogo, co-
apresenta. No entanto, não se pode esquecer nhecedor do Brasil, afirmou que uma vez
que há muitos Estados, sobretudo os Estados proclamada a independência, D. Pedro I to-
dependentes, periféricos, cuja conformação mou a iniciativa de criar os cursos jurídicos
contemporânea decorre em grande medida do Brasil exatamente visando com isso for-
de uma ação externa, a ação do colonizador mar os bacharéis em direito que deveriam
e que foi continuada após as independências assumir papéis de agentes do Estado, em
coloniais, seja em decorrência de ruptura diferentes pontos do Brasil, como juízes, por
completa com o sistema político anterior, exemplo, a fim de se impor ao conjunto do
seja por uma sucessão mais ou menos pací- território o direito oficial, o direito do Esta-
fica. De qualquer forma é duvidoso afirmar do, porque, na verdade, até à época, muito
que esses Estados correspondem em sua gê- embora houvesse uma referência oficial ao
nese à forma de organização política e aos poder do Estado português, isso era bastan-
limites territoriais que o povo, ou, melhor te tênue, de aplicação inexistente ou duvi-
dizendo, os povos, que neles vivem se deram dosa, ou discreta, dada a grande dimensão
dentro do princípio político e jurídico de au- territorial e às realidades que eram também
todeterminação dos povos. diferentes. Havia a prática de mando políti-
Todos sabem que o colonialismo eu- co regional que pouco ou nada se submetia
ropeu dividiu os territórios conquistados ao direito estatal. Isso mostra, muito clara-
de ultramar de acordo com os seus interes- mente, que a unidade no caso brasileiro não
ses políticos e econômicos e certamente as decorre de um sentimento de povo no senti-
fronteiras que foram configuradas pelas co- do de unidade, de identidade entre todos os
lônias européias decorrem menos de razões seus componentes, de um projeto comum de
próprias dos povos que ficaram submetidos futuro, elaborado historicamente pelos com-
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ponentes da nação, mas da ação dos artífices evoluídas as sociedades as mais prósperas
do Estado e dos detentores do poder estatal economicamente, com a produção material
(Shirley, 1987:82). mais intensa. Nessa situação, evidentemen-
Esse é um aspecto relevante que do te, encontravam-se as organizações estatais
nosso ponto de vista deve sempre merecer ocidentais, de modo que foram classificadas
grande atenção e análise, quando se vai tra- como mais ou menos evoluídas as demais
tar desses temas, pois a situação dos países sociedades, de acordo com a maior ou me-
fruto do colonialismo sob múltiplos aspec- nor proximidade com a forma de organiza-
tos é bem diferente da dos países ocidentais ção de tais sociedades ocidentais.
que inventaram o “Estado moderno”. Nesses É importante ter-se claro também o
casos, malgrado também cada caso ser um e fato de que o evolucionismo social, na sua
não se poder nunca generalizar, o fato é que versão preliminar e mais dura, conheci-
terem adotado a forma de organização polí- da como evolucionismo unilinear, parte da
tica que adotaram pode ser encarado como ideia de que a evolução se dá em um único
decorrência de seu processo histórico, apesar sentido para todas as diferentes sociedades
de todas as crises, guerras e violências. humanas, de modo que todas deveriam pas-
sar pelas mesmas etapas de desenvolvimen-
AS IMPLICAÇÕES DO EVOLUCIONIS- to, encaixando-se umas nas outras, de modo
MO SOCIAL igual e sucessivo. Assim, foram estabelecidos
estágios de desenvolvimento pelos quais de-
Outro aspecto que a antropologia social veriam passar todas as sociedades humanas.
costuma não minimizar ao tratar do tema, Para os antropólogos evolucionistas as socie-
sendo mesmo considerado um aspecto pre- dades às quais eles próprios pertenciam fo-
liminar ao estudo da gênese e formação dos ram colocadas como se encontrando no mais
Estados modernos, centrais e periféricos, e alto grau de desenvolvimento, definido tam-
de suas dialéticas é situar historicamente o bém por eles próprios como o estágio de civi-
processo de suas formações e de identificar lização e as sociedades contemporâneas que
sob qual vetor ideológico e científico se cons- conheceram, na medida de sua maior ou me-
tituíram. Pois bem, a principal influência na nor proximidade com a sociedade ocidental,
constituição e desenvolvimento dos Estados foram classificadas como correspondentes a
modernos foi inicialmente o racionalismo estágios anteriores pelos quais a sua própria
que produzirá o evolucionismo social, teoria sociedade deveria ter passado em etapas an-
construída nos primórdios da antropologia teriores. (Panoff &Perrin; 1976:103)
social e mais tarde afetada e reforçada tam- Trata-se na verdade, o evolucionismo
bém pelo evolucionismo biológico (Shir- social, de uma construção de orientação his-
ley,1987:2). tórica, porém, de uma história hipotética, na
Dentre tantas conseqüências para a medida em que esses teóricos (entre os quais
humanidade e para a história dos Estados podem ser lembrados Morgan e Frazer) nun-
modernos, nascentes e em formação, uma ca foram a campo a fim de verificar na reali-
se destaca: a transformação provocada pelo dade as afirmações que faziam. Tanto assim
evolucionismo social na ideia de desenvol- que a nova geração de antropólogos que su-
vimento. Antes do evolucionismo social o cede aos evolucionistas chamou-os de antro-
desenvolvimento era associado com clarifi- pólogos de sofá, pois, preferiam se apoiar em
cação, conhecimento, elucidação. A partir do depoimentos de viajantes, missionários, fun-
evolucionismo social a evolução será identi- cionários coloniais os quais revelavam muito
ficada como elemento das ciências econômi- mais o preconceito do observador do que a
cas, como medida da produção material. realidade dos fatos. O evolucionismo social
Desse modo, passou-se a pensar como é, portanto, uma construção cerebrina com
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forte motivação ideológica e prestou grande exclusiva, ou pelo menos assim pretenden-
serviço ao imperialismo ocidental. Pode ser do, de solução dos conflitos sociais, tornado
compreendido também na perspectiva das independente da religião e das outras formas
relações promíscuas entre o conhecimento tradicionais ou simplesmente anteriores de
e o poder, sobre o que Michel Foucault, tão regulação social, devendo o poder ser exer-
bem falou. cido sobre a sociedade, de modo exclusivo
Emile Brehier em sua “História de la Fi- pelo Estado. Trata-se de uma construção ide-
losofia” (ob.cit.1962) considera o período em ológica que advoga o monopólio do poder e
que floresceu o evolucionismo social com o da coerção do Estado como condição do bem
mais obscuro e menos científico de toda a geral, e pode ser vista, igualmente, como a
história do pensamento ocidental, exatamen- transformação desses valores da sociedade
te em razão de sua falta total de correspon- ocidental moderna em mitos da “civilização”
dência fática com as realidades sociológicas sem nenhuma diferença dos mitos das socie-
sobre as quais pretende incidir a teoria e por dades tradicionais, exercendo o mesmo pa-
ser resultado de mero construto cerebral que pel ideológico e simbólico (Barbosa, 2001).
atendia antes de tudo a uma função ideológi- A contaminação posterior que sofreu
ca de dominação ocidental sobre o resto dos o evolucionismo social por força do evolu-
povos da Terra. Um dos graves e sérios sub- cionismo biológico só veio reforçar todos os
produtos do evolucionismo social aplicado preconceitos e a priori das teorias evolucio-
foi o que resultou no desenvolvimento trans- nistas que também passaram a operar racio-
ferido, ou seja, fazer com que os Estados sa- cínios evolucionistas sobre o social a partir
ídos do colonialismo adotassem a forma de de comparações com as estruturas biológi-
organização política, os valores e mesmo os cas. O Estado é equiparado a um corpo, fala-
sistemas jurídicos dos países “civilizados”, -se, inclusive até hoje, em seus órgãos, suas
como forma de se sentirem ou de provarem funções, evolução, nascimento, fases como
que com isso também eram eles próprios “ci- infância e maturidade, declínio e morte, a
vilizados”. Na perspectiva antropológica o exemplo do organismo biológico. Isso tudo
maior prejuízo do desenvolvimento transfe- só comprova o quanto o evolucionismo so-
rido é o de provocar o subdesenvolvimento cial é contaminado e influenciado pelo bio-
na medida em que adotando por imposição lógico, impondo assim condutas mentais,
externa ou por mero mimetismo as técnicas raciocínios fortemente determinados pela
e os modelos ocidentais, os países dependen- linearidade, sucessão, cumulatividade, es-
tes continuam dependentes por falta exata- sencialidade, unitarismo, em suma, pelo cri-
mente de estarem vivendo o seu próprio pro- tério histórico-temporal-hipotético. Trata-se
jeto de povo, de nação, de futuro, resultante de uma forma de pensamento que privilegia
de sua própria história e consentâneo com a a dimensão diacrônica e que despreza a sin-
sua trajetória sociológica (Rouland, 1990 e crônica. Tudo é visto dentro de uma linha do
Shirley, 1987). tempo uniforme e imaginária, que parte do
A adoção dos códigos, de inspiração na- simples em direção ao complexo, determina-
poleônica, pelos países saídos do colonialis- da à progressão uniforme e sempre positiva,
mo, no campo jurídico, pretende correspon- para o mais e melhor, tendo como o ponto
der à atitude desenvolvida, civilizada, pois mais avançado dessa flecha a forma oci-
esses representavam o símbolo de evolução dental de organização estatal (Lévi-strauss,
jurídica. (ROULAND, ibid.) Assim, quanto 1986:69).
mais desenvolvida uma sociedade, segundo Esse pensamento a propósito da evolu-
os teóricos jurídicos do evolucionismo, mais ção, do progresso, da ordem linear e cumu-
especializado deveria ser o Direito, como lativa, sustenta que a evolução é sinônimo
campo bem delimitado e com competência do bem. O progresso é apresentado como
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inexoravelmente positivo. Assim, funcionará distinto, conceituado no abstrato, desvincu-
como princípio ideológico que legitima toda lado do seu domicílio, e a razão natural para
ação dos Estados ocidentais sobre os diferen- tomar o lugar de Deus.
tes povos e ecossistemas da Terra, voltada à Talvez isso explique em parte o fato do
produção de bens materiais e à dominação evolucionismo apoiar-se integralmente no
da natureza, esta considerada fonte inesgo- unitário e na diacronia e na essencialidade.
tável de recursos, e mero objeto para o de- Todos os homens, todas as sociedades são
senvolvimento e bem estar humano, na pers- assimiladas a um único conjunto, chamado
pectiva, evidentemente, do que o ocidente de humanidade, porém, que é classificada
considerou desenvolvimento e bem-estar. em ordem crescente do simples ao comple-
Essa transformação que ocorre no oci- xo, sendo chamadas de simples as sociedades
dente que desemboca no evolucionismo so- mais estranhas ao modelo ocidental e sendo
cial trata-se de um processo longo, com só- denominadas de complexas as próprias so-
lido fundamento no racionalismo, que vai se ciedades ocidentais e todas, independente-
operando a partir da Idade Média e que cor- mente de sua história e de suas organizações
responde a uma substituição da cosmovisão específicas, tenderiam automaticamente para
bíblico-religiosa pela antropológico-ecume- o único modelo futuro possível, aquele já re-
neizante (Mazzoleni, 1990). Ou seja, o fun- alizado e em desenvolvimento no Ocidente.
damento do poder e da verdade deixa de ser
Deus e passa a ser o homem idealizado e sua TRATAMENTO DOS DIREITOS DOS
razão natural. É bem por isso que é possível POVOS DEPOIS DO SÉCULO XX
compreender e explicar o advento do contra-
tualismo que decorre dessa progressão que Essa forma de abordar a realidade e o
leva o Ocidente a pensar e agir com base no conhecimento que se produzir sobre ela terá
humano universal e com o auxílio da lógi- imensas e profundas conseqüências. Uma
ca, resultante do emprego da racionalidade que nos interessa particularmente ao tratar
(ibid.; 1990:19). do tema proposto é a de que o modelo de Es-
De qualquer forma, nem essa mudança tado ocidental e especialmente a democracia
de cosmovisão se opera sem traumas, nem reinventada pela modernidade serão alçados
significa dizer que exista uma linha divisória ao padrão a ser imposto no mundo, indepen-
que possa ser identificada como separando dentemente do percurso que esta ou aquela
um momento do outro. Tropeços, retroces- sociedade houvesse já feito, ou não, em ca-
sos e concomitância de referências perdura- minho desse ápice: o Estado. Explicando: o
rão por muito tempo. Por outro lado, pode- evolucionismo admitia e incentivava que as
-se dizer que a herança bíblico-religiosa de “sociedades em estágios inferiores” da evolu-
pensamento, mesmo com a adoção do ra- ção fossem ajudadas, empurradas, arrastadas
cionalismo e da substituição de Deus pelo mesmo para estágios mais “elevados”, justifi-
homem universal permanece, na medida em cando-se assim que os mais “evoluídos” não
que o unitarismo e o essencialismo de visão apenas devessem ser copiados como pode-
persistem, e em que o diverso não é aceito. riam e deveriam eles próprios interferir nas
Pelo contrário, é rejeitado a partir da opera- sociedades “atrasadas” a fim de alçá-las ao
ção racional de identificar a “humanidade” estágio superior, chamado de civilização, que
como um só todo, sob a idéia de que todos como já se disse era estágio atingido apenas
os homens disporiam, indistintamente, seja pelas sociedades estatais ocidentais. É nesse
qual fosse o seu pertencimento social, do raciocínio que o ocidente respaldou o neo-
atributo da razão. Nessa perspectiva o oci- colonialismo, sob o fundamento de que iria
dente centrado no seu Deus único, nascido ajudar as sociedades da África, da Ásia e da
no judaísmo cristão, elegeu esse homem in- Oceania a saírem do seu letárgico estado de
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atraso. social. Essa classe será aquela parte do povo,
Valer lembrar também que o raciona- no caso francês, ou que já estava integrada
lismo e a sua progressão o evolucionismo nos aparelhos do Estado monárquico, em
social foram instrumentos muito adequados cargos administrativos ou que já detinha os
aos objetivos dos seus maiores beneficiá- meios de produção econômica.
rios, ou seja, a classe emergente em direção Apenas muito mais tarde, o sistema
ao poder ao fim da Idade Média, que foi a democrático ocidental terá que se deparar
burguesia. De um modo mais simples poder- com o conjunto dos cidadãos, mão de obra
-se-ia dizer que o fenômeno de instalação do do capitalismo, que cansado da exploração a
Estado-Nação, baseado no direito único, na que foi sujeito na primeira fase da industria-
clara identificação da autoridade, do territó- lização, força a abertura de maiores espaços
rio e do povo, também considerados únicos, políticos com repercussões econômicas, o
e que deveria ser apresentado como a fonte que coincide com o surgimento dos partidos
desse mesmo poder, atendia amplamente de massa e do voto universal no ocidente. Se
às necessidades do comércio e da produção isso modifica bastante a situação do povo,
econômica detidos pela burguesia. Ou seja, ou do proletariado - as grandes massas as-
para a progressão da economia de mercado salariadas nos países centrais-, isso também
não interessavam as diversas e diferentes ameaça gravemente o futuro do capitalismo.
identidades parcelares existentes na Idade As ideias socialistas que já circulavam fortes
Média, cada qual com seu sistema jurídico, à época poderiam em tese levar as massas
com seu sistema de poder, com as suas soli- assalariadas, por meio do voto universal ou
dariedades e guerras. Tudo isso era entrave simplesmente por meio do levante revolucio-
para a exploração capitalista emergente já nário a erradicar o sistema político em ope-
prometida e que estará estruturada e plena- ração, destituindo os capitalistas dos meios
mente operante ao tempo do neocolonialis- de produção e da propriedade privada, pedra
mo, quando o evolucionismo social funciona de toque e maior valor visado à proteção pela
como o suporte científico de toda a ação do democracia moderna.
ocidente. Regras claras e seguras, fronteiras, A fim de evitar esse desfecho possível
bem estabelecidas entre os Estados, direito haverá então o início de barganhas no oci-
unificado, autoridade claramente identifi- dente entre a burguesia e os assalariados, por
cada, poder centralizado, evidentemente, já meio de certas concessões, no atendimento a
eram, como são ainda, condições essenciais uma série de reivindicações, surgindo, desse
para a segurança e a progressão dos negócios modo, os partidos de viés social-democrata,
econômicos, prometidos a circular de forma apoiados e mesmo financiados pelos patrões
cada vez mais ampliada atravessando fron- os quais evitaram o radicalismo das massas
teiras territoriais. trabalhadoras dos países do capitalismo cen-
Note-se a respeito do povo que o que tral, neutralizando a disseminação da revo-
vem a ser identificado como tal na França lução socialista ocorrida na Rússia.
pelo movimento revolucionário é um con- A maior conseqüência decorrente da
junto de identidades diferentes entre si con- cooptação das massas trabalhadoras nos pa-
duzidas compulsoriamente a uma identidade íses industrializados foi a transferência da
única representada pela nação francesa. Não exploração que sobre elas era exercida para
nos enganemos, porém, que isso significava, os povos dos países dependentes, sub-de-
de fato, a transferência do poder monárquico senvolvidos, do Terceiro Mundo. Assim, a
anterior para esse conjunto chamado povo. estratégia da produção baseada na desigual-
Tanto isso é fato que a democracia represen- dade social, na troca da força de trabalho por
tativa se sustenta ainda nessa época na ideia salários baixos e na detenção dos meios de
dos privilégios de uma determinada classe produção por uma classe dominante restri-
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ta, exploradora e insaciável, continuará do- tas, refutaram a possibilidade de uma teoria
ravante, só que agora nos países periféricos comum do direito, apresentada como pro-
ao capitalismo central, destinados a exporta- gressão do simples ao complexo, da indife-
rem suas riquezas e sua produção aos países renciação das maneiras de regulação social,
centrais, em troca de uma prometida futura identificadas como ocorrentes nas socieda-
evolução e quiçá equiparação aos padrões de des “primitivas” em direção à especialização
vida existentes nos países centrais. É curioso jurídica praticada nas sociedades ocidentais;
e importante observar que a espinha dorsal das sociedades não estatais em direção ao Es-
do evolucionismo social em ciências sociais tado; do poder discreto ou difuso em direção
só começará a ser quebrada no campo da ao poder político e especializado, este exerci-
antropologia social no final do século XIX e do por autoridade estranha ao parentesco ou
início do XX ao mesmo tempo em que coin- à religião, em razão da grande variedade de
cidentemente os países colonizados iniciam suas manifestações.
a reação contra o colonialismo. Dissemos logo acima que essa mudan-
No campo das ciências sociais Franz ça de perspectiva no campo das ciências hu-
Boas e Bronislaw Malinowski, entre outros manas sintomaticamente opera-se quando
antropólogos, agora podendo denominar-se também os excluídos do ocidente começam
de antropólogos de campo, por ter sido essa a impor-se, a reagir de forma mais aparente
geração a iniciar as pesquisas empíricas em contra toda a forma de dominação e de pre-
ciências sociais, irão questionar os postula- conceito que sofreram pela ação das nações
dos do evolucionismo social e advertir que ditas civilizadas. É o momento em que ire-
a diferença entre as diversas sociedades hu- mos assistir então as revoltas e os movimen-
manas é muito maior do que as suas simi- tos de libertação colonial que desembocarão
litudes. Muito embora não negando que as nas independências das colônias de ultramar.
sociedades evoluem a evolução não se dá de
uma única maneira, cada qual evoluindo ao O RECONHECIMENTO DO DIREITO
seu próprio modo e ritmo, em decorrência DE AUTODETERMINAÇÃO DOS PO-
de seu específico processo histórico, das suas VOS
interações com o meio ambiente, bem como
condicionadas pelas representações mentais Com fundamento no direito de autode-
que fazem de si mesmas. Passou-se a susten- terminação dos povos, já ao fim da I Guerra
tar então não existir qualquer possibilidade Mundial iremos assistir ao início do pro-
científica de se poder afirmar que em razão cesso de descolonização da África, da Ásia
do modo de organização social adotado por e da Oceania, sendo que a Carta das Na-
esta ou aquela sociedade que uma possa ções Unidas, ao final da II Guerra incluirá
ser classificada como mais evoluída do que em seu artigo primeiro o direito dos povos
outra. Além disso, retrocessos evolutivos de autodeterminação. No entanto, os países
também podem acontecer em decorrência europeus não queriam admitir o direito de
de inúmeros fatores. A dimensão sincrôni- autodeterminação desses povos, preferindo
ca passa a fazer parte, portanto, da análise outorgar-lhes tão somente autonomia (Clech
social, de modo que não será mais possível lâm; 1996:73, Barbosa, 2001324).
pretender discorrer sobre o conjunto das di- Esse processo ocorre em meio a uma
versas manifestações sociais a partir de uma profunda crise na comunidade internacio-
perspectiva evolutivo-linear-cumulativa, nal que opunha em campos divergentes de
tendo como modelo as sociedades ociden- um lado os países capitalistas centrais e de
tais e a história como caminho. No campo outro os paises do Terceiro Mundo e os so-
jurídico os antropólogos pós-evolucionistas, cialistas (ibidem). Prevalece nesse embate a
tais como os funcionalistas e os difusionis- posição desses últimos em prol da aplicação
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do direito de autodeterminação às colônias de autodeterminação existia em face de qual-
de ultramar, consideradas como submetidas quer tipo de dominação, fosse interna ou ex-
à exploração estrangeira. terna. No entanto, s países socialistas e os do
Uma observação necessária para a boa terceiro mundo reagiram com muita ener-
compreensão do direito de autodetermina- gia contra essa posição dos países centrais
ção dos povos refere-se à liberdade que tal afirmando que a posição visava tão apenas
direito pressupõe. Ou seja, o direito de esco- desestabilizar os novos Estados, permitindo
lha, de modo que tanto poderiam os povos que houvesse questionamento de suas fron-
no exercício da autodeterminação decidir teiras e, portanto, abrindo as portas para os
por um status político e se integrarem a um separatismos (ibid.).
Estado já pré-existente, ou acordar com um O paradoxal nessa situação é que aque-
determinado Estado uma relação especial les Estados que se beneficiaram do direito de
de associação, ou, por fim, decidir por uma autodeterminação dos povos contra os Esta-
total independência política e territorial. dos colonialistas serão os mesmos a negar tal
Mesmo as duas primeiras situações podem direito aos outros povos que se viram apenas
sempre, a qualquer tempo, ser modificadas, transferidos da opressão estrangeira para a
de modo que o direito de total independên- opressão interna, e exatamente aqueles que
cia estará sempre garantido pelo direito de por tanto tempo exerceram no mundo domi-
autodeterminação, sendo que no processo nação seriam então os que advogavam a tese
de descolonização de ultramar serão adota- realmente mais compatível com o direito dos
das por diferentes povos diferentes soluções. povos (ibid.).
Por exemplo, Samoa americana decidiu-se Se a tese de ultramar foi a de maior
pela integração a um Estado já existente, en- aceitação e a que vigorou nos anos iniciais
quanto que as ilhas Marshall decidiram pela do reconhecimento das independências das
livre associação. A maioria, porém, preferiu colônias européias houve, no entanto, uma
a total independência, como foi, sobretudo, o progressão e alargamento na aplicação do
caso dos novos Estados da África e da Ásia. conceito que passou a atender situações de
(Clech lâm; 1996:80) povos não sujeitos à dominação estrangeira.
Tendo em vista as Resoluções da As- Podem ser referidos os casos do reconheci-
sembléia Geral das Nações Unidas de núme- mento da opressão da minoria branca con-
ros 1514 e 1541 que explicitamente conde- tra a maioria do povo da África do Sul e do
naram a opressão estrangeira exercida pelas direito de autodeterminação dos Palestinos
metrópoles sobre as colônias, os Estados contra o Estado de Israel. Esses são casos de
recém-independentes em conjunto com os opressão estrangeira no sentido que foi reco-
demais Estados do Terceiro Mundo e com nhecido no caso das ex-colônias européias.
os países socialistas passaram a impor uma Além desses, há o reconhecimento de Bengla
interpretação do direito de autodetermina- Desh em detrimento do território do antigo
ção restritiva, afirmando que o exercício do Paquistão. Trata-se de um caso emblemático,
direito internacional de autodeterminação tanto por não ter havido qualquer oposição
apenas se aplicava quando houvesse uma ex- da comunidade internacional, como não po-
ploração estrangeira de ultramar. (ibid.) der ser tipificada a situação em hipótese al-
Nos anos 50 do século XX toma cor- guma como constituindo dominação estran-
po uma nova teoria, que ficou conhecida geira (Clech-lâm, ibid.: 93)
como teoria belga, por ter sido a Bélgica a A decisão da Corte Internacional de
sua maior defensora, que abandonava a pers- Justiça no caso do reconhecimento do direi-
pectiva única de autodeterminação externa to de autodeterminação do povo do Sahara
como as Resoluções 1514 e 1541 faziam crer. Ocidental que se refere não a uma domina-
A tese belga era no sentido de que o direito ção de ultramar, mas contra o Marrocos e
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a Mauritânia - ambos Estados reclamando toda forma, mantiveram a organização do
uma parte do território do povo do Saha- Estado e do território segundo os mesmos
ra ocidental-, é extremamente importante. critérios e modelo do colonizador, sem le-
Importante porque a Corte, apesar dos ar- var em conta a participação e a vontade dos
gumentos de ambos esses países no sentido povos indígenas. Lembremos sempre que o
de que esse povo tinha relações históricas e colonialismo seja aquele iniciado no século
mesmo de fidelidade com os seus respecti- XVI e que atinge as Américas, seja o neoco-
vos governos, decidiu que isso não é motivo lonialismo a partir do século XVIII, estabe-
para negar-se o direito de autodeterminação. leceu fronteiras artificiais, muitas vezes dei-
E mais, a decisão afirma com toda a clareza xando divididos povos, outras incluindo no
que não é ao território que cabe decidir sobre mesmo Estado povos que não tinham relação
o povo, mas sim, ao contrário. É ao povo que alguma ou que tinham relações conflituosas
cabe decidir sobre o território, e que para a ou mesmo de guerra. Em função dessa arbi-
identificação de um povo com direito de au- trariedade e prepotência no estabelecimen-
todeterminação, não é necessária a existên- to artificial desses Estados com a passagem
cia de um governo com tais ou quais carac- do poder do colonizador para os nacionais,
terísticas, como gostariam muitos Estados, veremos inúmeras situações em que o poder
mas, tão somente, que existam relações entre recairá nas mãos de um determinado povo,
os membros do povo capazes de demonstrar não raro minoritário em relação ao conjunto
sua unidade e que seja visível a capacidade e que tiranizará os outros povos que ficaram
do grupo de manter a coesão social e a ob- compulsoriamente retidos nos limites terri-
servância pelos membros do grupo das re- toriais desse Estado.
gras de convivência (ibid.). O movimento internacional de reivin-
O recente, rápido e fácil reconhecimen- dicação de direitos dos povos indígenas data
to pela comunidade internacional dos Esta- hoje de pouco mais de 30 anos, conside-
dos balcânicos e dos Estados que surgiram rando-se como data de início a luta frente à
com a extinção da União Soviética, demons- ONU. Luta, sobretudo pelo reconhecimento
tra o abandono da tese de ultramar adotada explícito de seu direito de autodeterminação,
no passado, porém, demonstra igualmente o que finalmente foi atingido no ano de 2007,
a tendência de se preferir organizações so- como a adoção pela Assembléia Geral da Or-
ciais as mais próximas do modelo do Estado ganização das Nações Unidas da Declaração
ocidental, certamente dado ainda aos efeitos dos Direitos dos Povos Autóctones.
práticos do evolucionismo social (ibid.:93- Os povos indígenas amparados por
4). esta Declaração constituem um conjunto
de povos que somam, segundo estimativas
OS POVOS INDÍGENAS da ONU, mais de 370 milhões de pessoas,
presentes em todos os continentes da Terra
Mais recentemente no palco de reivin- (ONU, 1990).
dicação da autodeterminação dos povos des- A receptividade dos Estados, sobretudo
tacam-se as reivindicações dos povos indíge- daqueles nos quais existe a presença desses
nas, que podem ser definidos como aqueles povos foi muito negativa e para se oporem a
povos que viviam em dadas regiões da Terra tal direito se valeram de argumentos como
quando colonizadores externos se instalaram aqueles utilizados ao tempo da descoloniza-
e constituíram organizações estatais. Esses ção de ultramar, afirmando que não se pode-
colonizadores inicialmente vindos de fora ria falar neste caso de opressão externa.
ou bem foram sucedidos por outros internos Houve até o desenvolvimento de posi-
que mantiveram a ligação com o colonizador ções apresentando uma dicotomia no direito
original ou que com esse romperam, mas, de de autodeterminação a partir da argumenta-
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ção de que antes de tudo é preciso verificar se encontram localizados não aceitam uma
por meio do sistema democrático, indicado autodeterminação subdividida, de segunda
como um dos novos esteios de luta da comu- categoria, destituída de sua mais importante
nidade internacional, não seria possível que característica que é o direito de escolha que
esses povos dispusessem do que chamaram ela implica.
de autodeterminação interna. (Murswick Essas considerações são importantes
apud Lâm, ibid.:103) Segundo essa corrente, para se pensar na realidade dos povos em
que conta entre seus adeptos com a posição perspectiva e historicamente situados, não
de Asbjorn Eide, (apud Lâm, idem) primei- apenas sob o ângulo de interesse dos Esta-
ro presidente do grupo de trabalho sobre dos. Vale dizer, diferentemente do que o dis-
populações autóctones da ONU, apenas de- curso oficial em geral ou de Estado veicula
pois de configurado que por meio do sistema de que povo se trata de um conjunto de pes-
democrático dentro do Estado no qual esses soas, que representaria uma unidade e que
povos estão presentes não podem exercer o encarna a um só tempo a condição de sobe-
seu direito de autodeterminação interna, ou rano e de súdito do Estado, o povo não exis-
seja, que não lhes seja possível gozar de uma te nem no singular nem no abstrato, nem se
ampla autonomia no seio do Estado é que se trata de uma realidade estática e uniforme,
poderia então falar no seu direito de autode- tampouco substancial, mas dinâmica e em
terminação externa, que em última análise, uma relação constante com o outro. O povo
poderia permitir sua independência política existe na diferença com o outro, ou os outros
e territorial do Estado no qual se encontram povos. Ou seja, toda vez que pensamos sobre
localizados. povo estaremos, inevitavelmente, pensan-
Erica Irene Daes, sucessora de Eide na do esse conceito em sua relação com outros
presidência do GT sobre populações indíge- povos. Trata-se, pois, antes de tudo, de uma
nas da ONU, no cargo por mais de 20 anos, categoria relacional, como a categoria de et-
advogou posição diferente à de seu anteces- nicidade, tão bem aprofundada por Fredrik
sor. Entende essa especialista que por ocasião Barth (ob. cit.) já nos anos 60 do século XX
do pacto fundador dos Estados nos quais fo- e utilizada por Darcy Ribeiro (ob. cit.), que
ram inseridos os povos autóctones não foram impõe necessariamente a diversidade, a não
os mesmos consultados e não participaram uniformidade. Seja de um povo localizado
da organização, instalação e do poder do Es- no interior de um Estado em relação a ou-
tado ao qual estão submetidos, de modo que tro povo de outro Estado, seja ainda de po-
não resolveria querer legalmente proibir-lhes vos diferentes dentro do mesmo Estado. O
a autodeterminação, pois, de qualquer forma exemplo brasileiro é bastante esclarecedor,
se revoltariam, queira ou não a lei. Propug- pois o discurso oficial tenta encobrir, negar
nou então que no caso desses Estados deve- ou disfarçadamente tolera a existência de
ria haver um novo pacto, convidando-se os centenas de povos indígenas que vivem den-
povos indígenas a participar, ouvindo-se as tro de suas fronteiras e que não participaram
suas reivindicações e garantindo-se os seus nem participam politicamente nem da insti-
direitos e as possibilidades de determinarem tuição, nem tampouco da gestão do Estado
o seu futuro de acordo com seus próprios instituído.
projetos de futuro (Barbosa, 2001: 337). O mais comum, é tratar o assunto no
absoluto e como se o povo fosse, em geral,
CONSIDERAÇÕES FINAIS um só e que é o Estado inclusive quem deter-
mina os seus direitos individuais e de grupo,
Os indígenas embora em sua grande invertendo-se a equação na qual se susten-
maioria afirmem que não pretendem a se- tou toda a teoria do Estado liberal, segundo
cessão em relação aos Estados nos quais se a qual o Estado nada tem que não venha do
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povo. A soberania, que foi deslocada pelos A despeito disso, vozes abalizadas den-
revolucionários burgueses do soberano para tro do movimento internacional indígena
o povo é facilmente deslocada para o Esta- sustentam que em sendo respeitado pelos
do, muito embora não sendo contestados os Estados tudo o que está contido na Decla-
fundamentos da teoria liberal. ração de 2007 implicará concretamente no
Ora, nos limites da teoria liberal que exercício pleno do direito de autodetermina-
ainda é adotada pelos Estados modernos ção.
ou democráticos, se no mínimo por falta de Desse modo, tudo indica que preva-
rigor, é aceito que se fale em soberania do leceu a ideia da autodeterminação interna
Estado é absolutamente inaceitável falar-se como fase preliminar para a exigência ou
em autodeterminação do Estado (Clech lâm, não em um segundo momento do direito de
ibid.). Apenas os povos detêm o direito de autodeterminação externa.
autodeterminação por meio do qual garan- Significa dizer que caso o Estado não
tem sempre o seu direito de modificar a es- venha a respeitar todos os direitos que es-
trutura do Estado, ou mesmo dele se separar tão previstos na Declaração de 2007 os po-
para poder com total liberdade determinar vos indígenas estão desobrigados por sua
o seu futuro, mesmo que para isso seja ne- vez de respeitar a integridade desse mesmo
cessário dividir o território do Estado pré- Estado. Neste caso, essa ação não pode mais
-existente. ser considerada como ato contrário à Carta
Enfrentar o estudo do tema povo face da ONU, nem à soberania e a integridade do
ao Estado e no âmbito das relações e do di- Estado.
reito internacional implica em questionar a Maivân Clech-Lâm (1996:100) já afir-
correspondência ou não entre o povo e o sis- mava que, em termos gerais, o conceito de
tema político e de poder em cada Estado de- autodeterminação em direito internacio-
terminado, sempre sabendo que o direito de nal poderia tomar as seguintes formas: “um
autodeterminação dos povos deverá deter- princípio jurídico largo que assegura a paz
minará em última análise a conformação do entre os Estados; um direito que põe fim à
Estado e do território, e não o contrário. Não colonização e a injustiças semelhantes, mais
pode ser o Estado que determine o povo. recentemente, um direito a um regime de-
A forma final que tomou a Declaração mocrático no seio do Estado. Cada etapa
dos Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de deste desenvolvimento semântico se acresce
setembro de 2007, revela que houve uma às precedentes, mais do que as substitui”.
acomodação para atender a certas exigências Erica-Irene Daes também já afirmava
dos Estados, sobretudo daqueles nos quais desde 1995 que o direito internacional deve-
há presença de povos indígenas. ria vislumbrar uma “nova categoria” de au-
A inclusão de “povo”, “grupo” e “indi- todeterminação para os povos indígenas, vi-
víduo”, como estando também proibidos, sando promover a reconstrução positiva dos
além dos Estados, de praticar ato contrário à Estados, que devem assimilar as reivindica-
Carta da ONU ou de praticar ato que tenha ções desses povos e estes, por sua vez, agir
por efeito destruir ou diminuir a integridade de boa fé para se chegar ao entendimento.
territorial ou unidade política de um Estado Seria essa uma forma de autodeterminação
soberano e independente mostra que hou- sensível às circunstâncias particulares de nu-
ve uma ampliação dos sujeitos visados pela merosas relações entre indígenas e Estados
legislação internacional. Contra isso muitos (Daes, 1995).
movimentos e personalidades indígenas se Prevaleceu o desenvolvimento semân-
insurgiram, porém, isso foi o politicamente tico de autodeterminação, do qual já falavam
possível no momento da adoção da Declara- Lâm e Daes, sendo o regime democrático,
ção de 2007. na hora atual, a condição necessária para a
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autodeterminação indígena. Regime demo- MAZZOLENI, Gilberto. 1990. O Planeta
crático, nesse contexto, significa o dever de o Cultural. São Paulo: Edusp.
Estado assimilar as reivindicações indígenas
e respeitar todos os seus direitos consagrados ONU. 1990. Le Droit des Peuples Autochto-
na Declaração, ou seja: os povos indígenas nes. Fiche d’information nº9, Genebra.
têm o direito à autodeterminação e quando
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cratique: (Peuples ou populations; égalité, au-
tonomie et autodetermination; les enjeux de
la Décennie internationale des populations
autochtones) n 5, p73-123. Montreal: Centre
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DAES, 1995. Erica-Irene. 3 (21 juin 1995).


Activités Normatives: Evolution des normes
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veaux et debat general sur les mesures a pren-
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LÉVI-STRAUSS, Claude. 1986. O Olhar Dis-


tanciado. Lisboa: Edições 70.

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Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

MOBILIDADE, IDENTIDADE E ACESSO A DIREITOS:


OS POVOS GUARANI E AS FRONTEIRAS
CAROLINA SCHNEIDER COMANDULLI*

RESUMO te de la ayuda de políticas gubernamentales, las


Os povos Guarani ocupam, há séculos, um cuáles, a la vez, están permeadas por un con-
amplo território que foi fragmentado por di- cepto de ciudadanía que no los reconoce como
versas fronteiras nacionais. Imersos involunta- titulares de derechos. Este artículo apunta a las
riamente em um sistema estrangeiro ao seu, ao relaciones de los estados brasileño, paraguayo
largo dos últimos séculos, os Guarani busca- y argentino con los Guaraníes, enfocado a las
ram estratégias para fugir das ameaças ao seu negociaciones que estos últimos vienen ha-
estilo de vida, como o refúgio em áreas inex- ciendo para obtener el reconocimiento de una
ploradas pelos estados nacionais. Atualmente, ciudadanía diferenciada transnacional.
porém, com o aumento do controle dos Esta-
dos sobre seus territórios, há uma precariza- Palabras-clave: Guaraní, Território Transna-
ção do padrão de vida das aldeias Guarani, cional, ciudadanía.
tornando-os crescentemente dependentes do
auxílio de políticas governamentais, as quais, ABSCTRACT
por sua vez, estão permeadas por uma noção The Guarani peoples have been living for
de cidadania que não reconhece quem vem centuries in a large territory that has been
de fora como portador de direitos. Este artigo fragmented across several national frontiers.
busca apontar as relações dos estados brasi- Embedded involuntarily in a foreign system,
leiro, paraguaio e argentino com os Guarani, during the last centuries, the Guarani have
atentando para as negociações que estes têm been searching for strategies to escape from
travado para obterem reconhecimento de uma threats to their lifestyle, such as by establishing
cidadania diferenciada transnacional. themselves in areas unexplored by nation sta-
tes. Nevertheless, at present, with increasing
Palavras-chave: Guarani, Território Transna- state control over their territories, there is a
cional, Cidadania. decrease in the quality of life of the Guarani
villages, making their people increasingly de-
RESUMEN pendent on public policy assistance which,
Los pueblos Guaraníes han vivido por siglos in turn, is driven by a concept of citizenship
en un amplio territorio que ha sido dividido that does not recognize those who come from
por diversas fronteras nacionales. Inmersos abroad as rights holders. This article intends
involuntariamente en un sistema diferente al to point out the relationship of the Brazilian,
suyo, a lo largo de los últimos siglos, los Gua- Paraguayan and Argentinean States with the
raníes buscaron estrategias para huir de las Guarani people, looking at the negotiations
amenazas a su estilo de vida, como refugio en the latter have been doing to gain recognition
áreas inexploradas por los estados nacionales. of their right to a transnational and differen-
Sin embargo, en la actualidad, con el aumento tiated citizenship.
del control de los Estados sobre sus territorios,
se ha precarizado la forma de vida del pueblo Keywords: Guarani, Transnational Territory,
Guaraní, tornándolo cada vez más dependien- Citizenship.
* Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail para con-
tato: carbrasil@gmail.com
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INTRODUÇÃO cidadania3 que não reconhece quem vem de
fora como portador de direitos.
Os povos Guarani1 ocupam, há sécu- Este artigo busca apontar as relações
los, um amplo território que foi posterior- de diferentes países - sendo aqui analisados
mente fragmentado por fronteiras nacionais, Brasil, Paraguai e Argentina - com os Gua-
o qual se situa em vastas regiões no Brasil, rani, atentando para as negociações indíge-
Paraguai, Argentina e Uruguai. Imersos in- nas travadas com os mesmos para garantir
voluntariamente em um sistema estrangeiro o reconhecimento aos seus direitos de ci-
ao seu, ao largo dos últimos cinco séculos, os dadania diferenciada transnacional. Como
Guarani buscaram estratégias para fugir das forma de elucidar as mobilizações realizadas
ameaças ao seu estilo de vida, como o refúgio pelos Guarani na busca desse reconhecimen-
em áreas ainda inexploradas pelas socieda- to, apresentar-se-ão resultados do encontro
des nacionais (Neumann 1996; Langer 1997; “Guarani: direitos e políticas públicas”, ocor-
Chamorro 1999). Atualmente, no entanto, os rido em março de 2007, em Brasília/Brasil,
estados nacionais aumentaram cada vez mais do primeiro “Encontro dos Povos Guarani
o controle sobre seus territórios, munidos de da América do Sul”, ocorrido em fevereiro de
novas tecnologias e movidos pelo avanço de- 2010, no Estado do Paraná/Brasil, bem como
senvolvimentista. Hoje, não há mais florestas do segundo “Encontro dos Povos Guarani
inexploradas, nem terras sem título ou áreas da América do Sul”, ocorrido em março de
desconhecidas dentro do território dos po- 2011, no Paraguai.
vos Guarani (Figura 1).
Dada a precarização do padrão de vida ESTADOS, POLÍTICAS, FRONTEIRAS,
da maioria das aldeias Guarani no mencio- E O LUGAR DOS POVOS INDÍGENAS
nado território em função dos avanços aci-
ma apontados, os Guarani passam a depen- Os diferentes estados nacionais onde
der crescentemente do auxílio de políticas os povos Guarani se fazem presentes têm,
governamentais de saúde, educação, susten- como traço histórico comum, o desrespei-
tabilidade e acesso à terra. No intento de cir- to para com as populações autóctones de
cular em seu território e manter suas práticas seus territórios, caracterizado pela negação
tradicionais de mobilidade, reciprocidade e de sua cultura através da adoção de meios
solidificação de seus vínculos familiares, no- (nem sempre oficiais) para assimilá-los e/
vamente, eles encontram obstáculos. Ao ten- ou excluí-los da sociedade nacional. No en-
tar transpor esses obstáculos, passam a ter tanto, tanto as especificidades culturais dos
que se relacionar não apenas com um Esta- coletivos indígenas quanto as singularidades
do, mas com vários. A circulação dos povos da cultura hegemônica dos estados nacio-
Guarani em seu próprio território de origem nais produziram diferenças na relação entre
é problemática, não só pela passagem na o estado e os povos indígenas em cada caso.
fronteira que requer documentação2, como No Brasil, Argentina e Paraguai, visualizam-
também pela permanência no território de -se diferentes nuances nesse trato. O Estado
outro estado nacional onde o acesso a polí- argentino ignorou a existência indígena em
ticas públicas é permeado por uma noção de seu território até praticamente a década de
1980 (Mombello 2003; Moreira 2009), enfa-
1 Neste artigo, refiro-me aos povos Guarani de forma ge-
nérica, considerando que este artigo discute a reivindicação
tizando o ideal europeu de sociedade e pro-
de um conjunto de subgrupos falantes da língua Guarani 3 Em sentido jurídico estrito, a cidadania é entendida
pela cidadania transfronteiriça, como será demonstrado na como o “vínculo político que liga o indivíduo ao Estado e
seção “Os Guarani em negociação com os Estados”. que lhe atribui direitos e deveres de natureza política” (Ac-
2 Há indicadores de que haja um entendimento informal quaviva 1998: 279). Neste artigo, defende-se que a ideia de
entre alguns agentes em certos pontos das fronteiras de que cidadania precisa também ser pensada em um contexto
os Guarani têm direito ao livre trânsito, mas esse reconheci- de reconhecimento territorial étnico transnacional, como
mento não é institucionalizado (Araújo 2008: 55). aponta Young (1989).
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Figura 1: Território Guarani e subgrupos (Ladeira e Matta 2004: 7).
movendo a imigração branca para o país. Já ção ao reconhecimento e respeito aos povos
Paraguai e Brasil adotaram, formalmente, indígenas. A Convenção 169 da Organização
medidas de estado para sedentarizar e in- Internacional do Trabalho (1989) é um dos
tegrar os indígenas à comunhão nacional maiores pilares desse marco internacional,
(e.g. Meliá 1986). Em 1910, por exemplo, foi lançando os princípios de autodeterminação
criado pelo governo brasileiro, por meio do indígena, do direito à consulta prévia e do
Decreto nº 8.072, o Serviço de Proteção aos respeito à diferença.
Índios e Localização de Trabalhadores Na- Nessa mesma época, Brasil, Paraguai e
cionais, cujos deveres, entre outros, eram os Argentina preparavam suas devidas refor-
de: “attrahir os indios que viverem em estado mas constitucionais, as quais foram consu-
nomade [Art. 14]” e “escolher as localidades madas, respectivamente, em 1988, 1992 e
em que deverão ser installadas as povoações 1994. Os textos constitucionais4 que emer-
indigenas [Art. 50, b)]”. giram a partir das reformas representaram
Todos os três países passaram por dita- um giro, ao menos teórico, na relação entre
duras militares no século passado, as quais estado e povos indígenas. Todas as consti-
tiveram fim na década de 1980, abrindo es- tuições passaram a reconhecer os indígenas
paço para a redemocratização. O proces- como os habitantes originários desses países,
so de abertura política na América Latina sendo-lhes conferido o direito às terras tra-
foi marcado pelo debate acerca dos direitos dicionalmente ocupadas e o respeito às suas
humanos, pela emergência de movimentos
sociais e pelo estabelecimento de um novo 4 A Constituição paraguaia trata dos povos indígenas em
seu Capítulo V, a brasileira no Capítulo VIII e a argentina
marco legal no plano internacional em rela- no Artigo 75, Inciso 17.
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formas de organização social e especificida- prometido8. O INAI – Instituto Nacional de
des culturais. Também, foi-lhes garantido o Asuntos Indigenas (criado em 1989), além
direito à saúde, à educação diferenciada, à de ter recursos financeiros e humanos escas-
participação na vida econômica, social, po- sos, tem seu poder de atuação reduzido em
lítica e cultural nacional e em outros temas função da autonomia provincial (Mombello
de seu interesse. A Convenção 169 foi ratifi- 2002). No Brasil, por sua vez, os problemas
cada pelos três países: no Paraguai em 1993, vêm desde a dificuldade de implementação
na Argentina em 2000 e no Brasil em 2003. de políticas efetivamente diferenciadas – so-
Não obstante, a implementação dessa bretudo com a descentralização da FUNAI
nova política indigenista5 não tem se dado de (criada em 1967) na década de 1990, que
forma homogênea nos referidos países. Re- levou à criação de parcerias com estados e
latos dos Guarani6 que circulam nesse amplo municípios na área de saúde e educação in-
território apontam que o acesso aos direitos dígena -, até o moroso processo de reconhe-
de cidadania que lhes são garantidos pelas cimento das Terras Indígenas.
constituições diferem muito de país para As razões pelas quais as políticas go-
país, indicando que, por exemplo, no Para- vernamentais, à luz dos novos marcos legais,
guai, não há política pública voltada a eles. A não têm sido devidamente implementadas
literatura confirma esse fato, além de indicar ainda não foram abordadas com a devida
que o INDI - Instituto Paraguayo del Indíge- profundidade, quiçá pelo seu curto tempo
na (criado em 1981) é marcado pela inefici- de existência. No entanto, há algumas que já
ência e corrupção7 (Araújo 2008; Brand et al podem ser apontadas, como, por exemplo, a
2009). Já na Argentina, embora haja indica- falta de regulamentação dos princípios cons-
ções de que há mais acesso a políticas de saú- titucionais na legislação paraguaia, o que não
de e de educação, a situação também deixa torna o direito aplicável (Idea 2003). Tam-
muito a desejar. Um dos maiores problemas bém, todos os países continuam a manter
desse país para a efetivação de políticas de regulamentos sobre os povos indígenas que
Estado para os indígenas é o fato de as pro- estão obsoletos à luz das novas constituições,
víncias terem a prerrogativa de interpretar a mas que, de algum modo, continuam a nor-
constituição nacional e redigir suas próprias tear as políticas, como é o caso do Estatuto
leis, o que faz com que o reconhecimento do Índio (1973) do Brasil, o Estatuto de las
de terras tradicionais indígenas fique com- Comunidades Indigenas (1981) do Paraguai,
e uma série de leis provinciais argentinas que
5 Política indigenista, à luz do conceito de Lima (1995 in não foram reformuladas após a promulga-
Baines 1997: 2), refere-se às medidas práticas formuladas
por diferentes poderes estatizantes direta ou indiretamen-
ção da Constituição Nacional. Além disso,
te incidentes sobre os povos indígenas, que concretizam os cada país criou seus próprios mecanismos de
direitos sociais declarados e garantidos em lei. As políticas cobrança internos ao Estado, os quais nem
públicas, por sua vez, são as ações de longo prazo previstas
pelo Estado em áreas específicas (saúde, educação, terra,
sempre são efetivos. Um caso bem sucedido
sustentabilidade) para concretizar os direitos previstos em nesse sentido é o Ministério Público Federal
lei. brasileiro, que tem atuado com vigor na de-
6 Dados coletados em campo, sobretudo em levantamen-
to realizado na aldeia Salto do Jacuí em setembro de 2009. 8 Em 2006 foi promulgada a Lei 26160 de “Emergência
7 Em declaração proferida em reunião em Buenos Aires Comunitária Indígena” com o intuito de realizar os devidos
em setembro de 2009, a antropóloga paraguaia Marilin desalojamentos judiciais para regularizar a situação fundiá-
Rehnfeldt, trabalhando no governo Lugo com os povos ria indígena no país no prazo de quatro anos, sendo que nos
indígenas, declarou estar chocada com os dados que vinha três primeiros anos seria feito o levantamento sobre as ocu-
levantando em campo. Segundo a antropóloga, em 2009, foi pações. Em fins de 2009 o levantamento sequer havia come-
feito um levantamento de terras indígenas por amostragem çado, visto que para a realização do mesmo seria necessário
em uma província da região oriental do Paraguai, onde se um acordo entre as províncias e o governo nacional, o qual
buscou comparar as áreas indígenas oficialmente registra- não se concretizou. O prazo da Lei venceria em outubro de
das com o quadro atual de ocupação, o que levou à consta- 2010. Em palestra proferida na VIII RAM na Mesa Redonda
tação de que a maioria delas só existe no papel, pois foram 29: Direitos indígenas no Cone-Sul: um balanço de duas dé-
tomadas por lindeiros. cadas de re-democratização (2 de outubro de 2009).
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fesa dos direitos indígenas. Já na Argentina, Guarani na atualidade, sendo que uma sessão
como coloca a antropóloga Morita Carrasco inteira foi dedicada ao tema “Guarani Trans-
, nem a Corte Suprema é respeitada. fronteiriços: Políticas Públicas e Cidadania”,
Além das dificuldades acima aponta- na qual surgiu como encaminhamento a ne-
das, tem-se um problema de fundo na apli- cessidade de se realizar um diagnóstico das
cabilidade dos novos direitos indígenas reco- políticas públicas direcionadas à população
nhecidos em lei, que é precisamente o fato de Guarani no Paraguai, Argentina e Brasil a fim
que, no processo de redemocratização desses de propor sua integração. Ao mesmo tempo,
países, o conceito de democracia foi modifi- sugeriu-se que fossem promovidos esforços
cado, não estando mais apenas relacionado multilaterais no âmbito do Mercosul com o
à expressão da maioria, mas também ao res- objetivo de criar um estatuto político para os
peito às minorias e suas diferenças culturais, povos Guarani transfronteiriços10.
em uma sociedade que se pretende plural e Como resultado desse encontro, o
inclusiva9. Tem-se aí um paradoxo, pois o Ministério Público Federal tomou a frente
mesmo Estado que potencialmente ameaça como propositor da realização desse diag-
os povos indígenas na busca de crescimento nóstico, o qual seria produzido em parce-
econômico, concede-lhes direitos diferen- ria com universidades dos distintos países
ciados. Outra questão que surge é a de como e pelos próprios Guarani. O projeto obteve
articular esses direitos diferenciados com o financiamento, a partir de 2008, da AECID –
princípio de igualdade cidadã (Ramos 2003). Agencia Española de Cooperación Interna-
Em suma, a etnicidade desafia as noções dos cional para el Desarrollo. Desde então, uma
estados nacionais de cidadania, desenvolvi- série de ações já ocorreram no âmbito desse
mento e fronteira. projeto, como a realização de um mapa pre-
liminar da localização das aldeias Guarani
OS GUARANI EM NEGOCIAÇÃO COM nesse vasto território (Guarani Retã 2008) e
OS ESTADOS a promoção de viagens de intercâmbio entre
os povos Guarani dos diferentes países.
Enquanto os dilemas e entraves não se O Núcleo de Antropologia das Socieda-
resolvem, os Guarani buscam aliados e com- des Indígenas e Tradicionais da Universida-
põem suas próprias estratégias de organi- de Federal do Rio Grande do Sul (NIT), por
zação política para reivindicar seus direitos exemplo, responsabilizou-se por realizar um
frente aos estados. Trata-se de um novo mo- levantamento preliminar demográfico, geo-
mento na história dos povos Guarani, após gráfico e de políticas públicas para os Guara-
terem permanecido por séculos evitando o ni no Rio Grande do Sul. No dia 29 de setem-
embate direto com as instâncias de estado. bro de 2009, em Buenos Aires, a equipe do
NIT reuniu-se com pesquisadores represen-
ENCONTRO “GUARANI: DIREITOS E tantes das universidades do Paraguai, Argen-
POLÍTICAS PÚBLICAS”: tina e Brasil, junto a membros do Ministério
É nesse novo contexto que ocorreu, Público Federal, para compartilhar o traba-
em março de 2007, em Brasília, o encontro lho realizado até então com pesquisadores
“Guarani: direitos e políticas públicas”, com do próprio Brasil e dos outros países, e su-
o apoio da Escola Superior do Ministério Pú- gerir encaminhamentos. Dentre os encami-
blico Federal brasileiro. Nesse encontro fo- nhamentos, foi identificada a necessidade de
ram debatidas as reivindicações centrais dos realização de uma reunião, com participação
de todos os países envolvidos na discussão,
9 Essa problemática foi debatida pela Procuradora Geral
da República do Brasil, Deborah Duprat, e pela antropóloga
sobre a problemática da documentação indí-
argentina Morita Carrasco, na VIII RAM, em Buenos Aires. 10 Informações obtidas no site do CTI – Centro de Traba-
A literatura pós-redemocratização recente também aponta lho Indigenista: http://www.trabalhoindigenista.org.br/gua-
esse impasse (Mombello 2002) rani_pgr_2007.html#gtfppc (último acesso em 15/10/09).
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gena, e também a participação dos Guarani tro, até as providências na área de segurança
nas reuniões do Mercosul Social. e alimentação, foram por eles estabelecidas e
realizadas. Desse modo, o Encontro foi aber-
“I ENCONTRO DOS POVOS GUARANI to praticamente só aos Guarani. A presença
DA AMÉRICA DO SUL”: de não-índios foi permitida apenas na aber-
O Encontro dos Povos Guarani da tura e no fechamento do evento.
América do Sul11, nomeado pelos indígenas Uma das grandes conquistas do Encon-
de Aty Guasu Ñande Reko Resakã Yvy Rupa tro foi a criação da Comissão de Coordena-
(“uma grande reunião para mostrar com ção Permanente do Povo Guarani no Mer-
transparência nosso modo de ser em nosso cosul, para tratar da implementação de seus
território”), realizou-se na aldeia Añeteté, no direitos. Ao final, na presença dos ministros
município de Diamante d’Oeste, no Estado da cultura do Brasil e do Paraguai, os Gua-
do Paraná/Brasil, entre os dias 2 e 5 de feve- rani entregaram uma carta de reivindicações
reiro de 2010. Foi uma inciativa inédita em resultante dos debates das reuniões, a qual
nível internacional onde estiveram reunidos, foi assinada por ambos. Seguem as reivindi-
pela primeira vez, mais de 800 indígenas cações:
Guarani da Argentina, Paraguai e Bolívia e • Criação e manutenção de uma Secretaria
dos sete estados brasileiros por eles habita- Especial de Representação do Povo Guara-
dos. O objetivo do Encontro foi o de criar ni vinculada ao Mercosul Cultural com 20
uma nova perspectiva de intercâmbio cultu- componentes: 6 indígenas do Brasil, 4 indí-
genas da Argentina, 6 indígenas do Paraguai
ral para fortalecer a relação entre esse povo
e 4 indígenas da Bolívia. Os membros dessa
e reduzir a distância existente entre eles e os
Secretaria serão indicados através de suas
não–índios. comunidades e organizações sociais e polí-
O principal apoiador do Encontro foi ticas tradicionais, conforme a sua represen-
a Secretaria da Identidade e da Diversidade tação territorial e étnica da América do Sul.
Cultural do Ministério da Cultura do Bra- • Criação de um foro permanente de discus-
sil, sendo que também contribuíram com o são em defesa dos direitos dos Guarani, no
evento as prefeituras de Foz do Iguaçu e Dia- âmbito do Mercosul Cultural;
mante d’Oeste; a Itaipu Binacional; a Funda- • Realização de atividades que promovam o
ção Nacional do Índio; a Fundação Nacional intercâmbio cultural entre as diversas comu-
de Saúde; a Organização das Nações Unidas nidades Guarani da América do Sul;
para Educação, Ciência e Cultura; a Organi- • Garantia de realização de Seminários e
encontros do povo Guarani entre Brasil,
zação dos Estados Americanos; e o Mercosul
Argentina, Paraguai e Bolívia, buscando
Cultural. parcerias com as entidades privadas e go-
O Encontro vinha sendo gestado há vernamentais, nacionais e internacionais,
três anos, desde o Fórum de Integração Cul- garantindo o apoio técnico, financeiro e de
tural do Mercosul, e foi precedido de duas infra-estrutura;
reuniões preparatórias, uma em dezembro • Garantia e respeito, a partir de mudanças das
de 2009 e outra em janeiro de 2010. O ponto leis de fronteira, do livre trânsito cultural, de
forte do Encontro foi que os próprios Guara- acordo com as tradições dos povos indígenas
ni decidiram toda a programação, cabendo nas fronteiras entre Brasil, Argentina Para-
aos apoiadores apenas a garantia dos meios guai e Bolívia;
para sua realização. Desde a definição das • Garantia de programas de políticas públicas
como gestão territorial (reflorestamentos,
temáticas e registro áudio-visual do Encon-
projetos agrícolas, outros), saúde, educação
11 Todas as informações sobre o Encontro foram retira- diferenciada, meios de comunicação e ou-
das do Blog lançado pelo Ministério da Cultura do Brasil tros;
(www.blogs.cultura.gov.br/encontroguarani) para divulgar • Garantia de meios de transporte e alimenta-
informações sobre o andamento do Encontro e sobre os ção para participação das delegações Guara-
Guarani e sua história.
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ni do Brasil, da Argentina e do Paraguai na minação de nossos povos que constituem
reunião na Bolivia sobre mudanças climáti- nosso direito coletivo de decidir como viver,
cas em abril de 2010; como aplicar nossas pautas e normas e como
• Garantia de punição contra a discriminação, desenvolvermo-nos;
preconceito e violência praticadas contra o • Reconhecimento político de nossa Nação
povo Guarani. por parte dos países assentados sobre o espa-
ço territorial ancestral guarani e de sua livre
O Encontro teve repercussão em todos determinação;
os tipos de mídia no Brasil, como no G1, • Livre trânsito por nosso território ancestral
Terra, Abril, IG, Estado de São Paulo, Jornal porque as fronteiras não existem para nossos
povos porque preexistimos aos Estados;
do Brasil e Correio Braziliense, além dos no-
• Respeito e proteção do espaço territorial da
ticiários em grandes redes de televisão, como Nação Guarani que inclui não somente a
o SBT, a TV Globo e a Bandeirantes. A TV propriedade da terra, mas também o espaço
Cultura gravou todo o evento para a produ- geográfico onde ancestralmente se desenvol-
ção de um documentário. veu e desenvolve atualmente a cultura gua-
rani;
“II ENCONTRO DOS POVOS GUARANI • Proteção dos recursos naturais, em especial
DA AMÉRICA DO SUL”: o aquífero guarani, que faz parte do subsolo
O II Encontro dos Povos Guarani da da territorialidade de nosso povo, que abarca
América do Sul, realizou-se na comunidade Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai;
indígena Paî Tavyterâ de Jaguatí, do depar- • Indenização pelo uso, exploração e destrui-
ção da terra e de outros recursos naturais dos
tamento de Amambai, no Paraguai, entre
territórios e tekoha guarani;
os dias 24 e 26 de março de 2011, dando se- • Garantia e efetiva demarcação das terras;
qüência ao I Encontro. Estiveram reunidas • Fim da criminalização dos povos originários
diversas comunidades, movimentos e asso- e cessão da perseguição e morte de nossos
ciações indígenas do Paraguai, Argentina, irmãos e líderes;
Brasil é Bolívia. O objetivo do Encontro foi • Justiça em todos os casos de detenção, desa-
o de dar continuidade ao movimento de for- parição e morte de nossos irmãos;
talecimento e reafirmação da contribuição • Julgamento de responsabilidade penal e civil
desses povos na formação da cultura sul- aos assassinos e criminosos que atentaram
-americana. O principal apoiador do II En- ou atentem contra qualquer membro da Na-
contro foi a Secretaria Nacional de Cultura ção Guarani e suas organizações;
• Proteção e respeito ao direito coletivo sobre
do Paraguai.
os saberes, espiritualidade, usos medicinais e
As reivindicações12 do II Encontro são
demais demonstrações e expressões de nosso
as que seguem: patrimônio cultural, material e imaterial;
• Consulta e participação permanente e opor- • Cumprimento das leis sobre proteção am-
tuna de nossa Nação da parte dos poderes biental, com maior rigor nos casos de cul-
do Estado em todos os casos que afetem a tivos com uso de agrotóxicos que destroem
nossos povos originários e em especial para comunidades, envenenam os cursos d’água e
a elaboração, sanção e promulgação de leis; a terra, destroem a biodiversidade, em espe-
• Cumprimento, por parte dos governos na- cial a vida humana;
cionais, departamentais e municipais e dos • Garantia política e social à Nação Guarani
Estados (Poderes Executivo, Legislativo e Ju- sobre seus próprios usos, costumes e tradi-
diciário) das leis, em particular da Conven- ções;
ção 169 e da Constituição Nacional, normas • Respeito e declaração da língua guarani
de proteção e direitos da Nação Guarani; como idioma oficial nos países situados so-
• Respeito pela autonomia e pela livre deter- bre a territorialidade da Nação Guarani;
12 Informações retiradas do site http://acordaterra.word-
• Vigência imediata de educação diferenciada
press.com/tag/encontro/. Tradução da autora para o portu- e específica utilizando nossas próprias lín-
guês.
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guas, e formação de professores com cosmo- o Encontro para da Nação Guarani. Mesmo
visão política, social, econômica, espiritual e assim, assume-se que a partir de agora todos
cultural da Nação Guarani; incluindo como os encontros serão convocados pelo Conse-
professores nossos avôs e avós, depositários lho Continental, denominando o próximo
dos saberes milenários de sua cultura; de III Encontro da Nação Guarani no país
• Cumprimento do direito à consulta prévia ou Estado que este aty guasu defina.
à comunidade ou povo afetado, e em todos
os casos, cumprindo tratados internacionais, O II Encontro trouxe algumas mudan-
para a exploração de hidrocarbonetos e ou- ças significativas em relação ao primeiro,
tros minerais;
sobretudo no que diz respeito à criação do
• Garantia para o acesso das comunidades à
água potável e de qualidade;
Conselho Continental como instância or-
• Cumprimento das sentenças da Corte Inte- ganizadora, articuladora e representativa da
ramericana de DDHH sobre restituição de Nação Guarani e da opção por colocar em
terras ancestrais aos irmãos indígenas do segundo plano a criação e manutenção de
Chaco (enxet) e a solução de outros conflitos uma Secretaria Especial de Representação
existentes sobre reivindicações de terra dos do Povo Guarani vinculada ao Mercosul
povos originários. Cultural. Também, percebe-se que houve
um aprofundamento das reivindicações em
Além das reivindicações, os Guarani relação às demandas por políticas públicas
apresentaram também algumas resoluções diferenciadas e respeito aos direitos sociais,
como resultado do II Encontro: territoriais e ambientais garantidos em lei.
1. O território e todo o que nele existe são di-
reitos fundamentais aos quais não renuncia CONSIDERAÇÕES FINAIS
e nem renunciará a Nação Guarani porque é
parte de sua existência, de sua identidade, de O século XX foi marcado por mudan-
sua vida física, cultural e espiritual;
ças radicais no campo da relação dos estados
2. Reivindicar a territorialidade como parte da
nacionais com os grupos étnicos presentes
extensão física e cultural da Nação Guarani;
3. Ratifica-se o reconhecimento do Conselho em seus territórios. Passou-se, ao longo das
Continental como instância organizadora, décadas, da ideia de assimilacionismo e, con-
articuladora e representativa da Nação Gua- seqüentemente, de desaparecimento paulati-
rani, integrado pelos representantes da Ar- no das sociedades autóctones, ao seu pleno
gentina, Brasil, Bolívia e Paraguai; reconhecimento e direito à diferença (ao me-
4. A Nação Guarani não fará parte da estrutura nos no plano teórico).
do Mercosul e se lançará ao fortalecimento A temática acerca do possível reconhe-
de suas organizações de base e do Conselho cimento de uma “transnacionalidade” Gua-
Continental. O plenário discutiu a proposta rani – como vem sendo reivindicada pelos in-
inicial do I Encontro de criar uma instância
dígenas e discutida com o Ministério Público
em nível de mercado comum e decidiu, no
Federal brasileiro e instituições paraguaias e
momento, não dar curso à proposta;
5. Não considerar o Bicentenário da Indepen- argentinas - é extremamente recente, emer-
dência do Paraguai como aniversário para gindo como resultado do processo de rede-
celebrar porque para nossos povos foram so- mocratização dos países latino-americanos
mente 200 anos de despejo, discriminação, em nível regional, somado ao marco legal
humilhação, avassalamento, perseguição, internacional em defesa dos direitos de au-
saque e morte; todeterminação e autonomia indígena. Além
6. Solidariedade com todos os povos originá- disso, essa possibilidade também se vincula a
rios irmãos, apoio a suas lutas de resistência condições geopolíticas geradas recentemen-
para manter sua terra, sua identidade e sua te, com a formação de blocos econômicos, a
cultura;
exemplo do Mercosul.
7. Ratificar a decisão do Conselho de renomear
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
29
Desse modo, este artigo buscou contri- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
buir - através da análise preliminar compa-
rada da política indigenista em relação aos ARAÚJO, Vitor de Aratanha Maia de. 2008.
Guarani no Paraguai, Argentina e Brasil, e Dinâmicas transfronteiriças entre os Guarani
com alguns exemplos recentes de mobiliza- na tríplice fronteira. Monografia de Gradu-
ção do povo Guarani - com o debate sobre ação em Antropologia Social, Universidade
a implementação dos novos direitos con- de Brasília.
feridos aos Guarani nas constituições dos
respectivos países, bem como dar subsídios BAINES, S. Grant. 1997. “Tendências recen-
para se pensar a negociação desse direitos tes na política indigenista no Brasil, Austrá-
para além das fronteiras dos estados nacio- lia e Canadá”. Série Antropologia, Brasília, n.
nais para afirmação étnica do povo Guarani. 224. In: http://www.unb.br/ics/dan/geri/bo-
Percebe-se que há um movimento, tan- letim/baines_1997.pdf (acessado em 10 de
to da parte dos Guarani quanto de setores fevereiro de 2010).
que apóiam a causa indígena no âmbito go-
vernamental e não-governamental, no senti- BRAND, Antônio et al. 2009. A ocupação do
do de fazer valer os novos direitos indígenas território guarani na região transfronteiriça
e de promover uma cidadania Guarani. Essa Brasil e Paraguay - “a entrada de nossos con-
discussão transborda os limites das frontei- trários”. Buenos Aires, VIII Reunião de An-
ras nacionais, pois traz, como uma possibi- tropologia do Mercosul.
lidade, a proposição de uma política indige-
nista no âmbito do Mercosul. Desse modo, CHAMORRO, Graciela. 1999. “Os Guarani:
o Mercado Comum do Sul, criado em 1991, sua trajetória e seu modo de ser”. Cadernos
estaria ampliando seu escopo de ação para do COMIN, Porto Alegre, n. 8.
a área da integração social e cultural para
além da integração econômica, objetivo esse GONÇALVES, Rosiane Ferreira. 2009. Polí-
já está previsto em seus princípios. O reco- ticas para autonomia e sustentabilidade: uma
nhecimento de uma cidadania Guarani daria relação “nova” entre estado e povos indígenas
corpo ao artigo 32 da Convenção 169 da OIT desde 1988. VIII Reunião de Antropologia
que prega que “Os governos deverão adotar do Mercosul, Buenos Aires.
medidas apropriadas, inclusive mediante
acordos internacionais, para facilitar os con- GUARANI RETÃ. 2008. Mapa de Pueblos
tatos e a cooperação entre povos indígenas e Guaraníes en las fronteras Argentina, Brasil y
tribais através das fronteiras, inclusive as ati- Paraguay.
vidades nas áreas econômica, social, cultural,
espiritual e do meio ambiente”. IDEA – Instituto de Derecho y Economía
Paralelamente a isso, percebe-se um Ambiental. Agencia de los Estados Unidos
novo movimento, resultante do II Encontro, de América para el Desarrollo Internacional.
que propõe que esse reconhecimento ocorra 2003. Mejoramiento del Marco Legal Ambien-
sem, necessariamente, haver uma vinculação tal del Paraguay. In: http://www.idea.org.py/
com uma instância do Mercado Comum do gfx/espanol/descargas/biblioteca/MEJORA-
Sul. Independentemente do modo que essas MIENTO_DEL_MARCO_LEGAL_AM-
negociações tomarem forma, elas emergem BIENTAL_DEL_PARAGUAY.pdf (acessado
como uma tentativa de compatibilizar a apa- em 10 de fevereiro de 2010).
rente incongruência entre os direitos étnicos LADEIRA, M.I.; MATTA, P. (orgs.) 2004.
diferenciados e o princípio de igualdade de Terras Guarani no litoral: as matas que foram
todos perante a lei. reveladas aos nossos antigos avós = Ka’aguy
oreramói kuéry ojou rive vaekue y. São Paulo,
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
30
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____________
Recebido de 27 de Agosto de 2011
Aprovado em 27 de Feveiro de 2011

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Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

INDÍGENAS KADIwéU E POSSEIROS NA SERRA DA BODOqUENA:


CONFLITOS, IMAGINáRIOS E REPRESENTAÇõES NAS PáGINAS DOS jORNAIS IMPRESSOS
ALINE MARIA MULLER*

RESUMO enraizadas en el imaginario popular desde los


O presente artigo aborda o conflito entre in- tiempos coloniales. Para el análisis de los tex-
dígenas da etnia Kadiwéu e colonos na Serra tos periodísticos fue empleado el método de
da Bodoquena que ocorreu entre os anos de división de los contenidos en palabras-clave de
1980 e 1984. Mais que traçar um perfil históri- dos categorías: “palabras-clave que evidencian
co do conflito, a pesquisa buscou identificar as imaginarios despreciativos” y “palabras-clave
representações acerca dos indígenas nas maté- que cambian la percepción del lector”. Los re-
rias jornalísticas em quatro jornais da época: o sultados de esta investigación se presentan en
Correio do Estado, o Diário da Serra, o Jornal este artículo.
da Manhã e o Jornal da Cidade. Constatou-se
que em todos os jornais, em maior ou menor Palabras-clave: indígenas, Kadiwéu, Serra da
medida, havia estereótipos que refletiam re- Bodoquena, representaciones, conflicto.
presentações arraigadas no imaginário popu-
lar desde os tempos coloniais. Para a análise ABSTRACT
do material jornalístico utilizou-se como me- This article is about the conflict between Ka-
todologia a divisão do conteúdo em palavras diwéu Indians and Farmers in lands of Serra
chaves de duas categorias: “palavras-chave da Bodoquena, Mato Grosso do Sul State, Bra-
que evidenciam imaginários depreciativos” e zil. This conflict happened among the years of
“palavras-chave que alteram a percepção do 1980 and 1984. More than to trace a profile of
leitor”. Os resultados da pesquisa são apresen- the historic conflict, the main goal of this rese-
tados neste artigo. arch was to identify the social representation
about the Indians on the newspaper. For this,
Palavras chave: indígenas, Kadiwéu, Serra da I consulted four leading Newspapers in Mato
Bodoquena, representações, conflito. Grosso do Sul: the Correio do Estado, the Di-
ário da Serra, the Jornal da Manhã and the
RESUMEN Jornal da Cidade. The research detected that
Este articulo trata acerca del conflicto entre in all cases those journals, in higher or lesser
indígenas de la etnia Kadiwéu y campesinos intensity, made use of stereotypes that reports
en la región de la Serra da Bodoquena, Brasil, categories of representation crystalized in the
ocurrido entre los años de 1980 y 1984. Más social imaginaries since the colonial conquest.
allá de trazar un perfil histórico del conflicto, As method for the analysis of the journalistic
la investigación ha buscado identificar las re- text I split the content in keywords, organized
presentaciones acerca de los indígenas expre- in two categories: “keywords that reflect preju-
sadas en los textos de cuatro periódicos de la dice” and “keywords that change the percep-
época: el Correio do Estado, el Diario da Ser- tion of the reader”. The research results are on
ra, el Jornal da Manhã y el Jornal da Cidade. this article.
Se ha constatado en todos los periódicos, sea
en mayor o menor medida, la existencia de es- Keywords: Indians, Kadiwéu, Serra da Bodo-
tereotipos que reproducían representaciones quena, representations, conflict.
* Docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

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INTRODUÇÃO Agrícola Nacional e o Programa “Marcha a
Oeste” do Governo de Getúlio Vargas – e os
O presente artigo aborda o conflito conflitos atuais são a continuação do drama
ocorrido entre posseiros e indígenas na Serra de dois mundos que colidem. A questão da
da Bodoquena, cujo ápice se deu no ano de posse da terra que hoje atinge o Estado do
1983, tendo por fonte de consulta as matérias Mato Grosso do Sul é a extensão desse dra-
veiculadas em jornais impressos. As matérias ma, levando a um conflito declarado entre
jornalísticas tinham a função de colocar o produtores rurais e sociedades tradicionais,
leitor a par dos acontecimentos, contudo, em como as indígenas e quilombolas.
muitos momentos houve em meio ao texto Representações depreciativas são re-
escrito a reprodução de um imaginário de- produzidas e se convertem em instrumento
preciativo acerca do indígena. Essa questão político por uma classe que vê nos meios
das representações movidas por um imagi- de comunicação uma forma de fomentar o
nário distorcido teve sua origem ainda nos imaginário. A historiadora Sandra Jathay
tempos coloniais, persistindo ao longo dos Pesavento, ao teorizar os conceitos de ima-
séculos e chegando até nossos dias. ginário, mentalidade e representação a par-
Mato Grosso do Sul é um estado onde tir da historiografia francesa, especialmente
as tensões em torno da terra há muito acom- a partir das ideias de Jacques Le Goff, vai
panham a história de seus povos, sendo que a propor um conceito de representação como
problemática se agravou com as campanhas tradução mental de uma realidade exterior
de colonização das terras interioranas na pri- percebida e ligada a um processo de abstra-
meira metade do século XX. Comunidades ção (PESAVENTO, 1995: 15). A mesma au-
indígenas, que no passado foram expulsas de tora esclarece que os discursos sobre o real
suas terras, agora levantam demandas pela não são expressões literais da realidade, mas
recuperação de territórios tradicionalmente sim o resultado de uma interpretação onde
ocupados. Assim, a territorialidade, enten- os agentes sociais investem seus interesses
dida como sentido territorial do homem, e suas bagagens culturais. Com base nessas
onde o espaço físico está atrelado às variá- colocações, pode se dizer que as representa-
veis culturais e simbólicas, passa a ser uma ções sociais são, prioritariamente, figurações
destacada área de estudo no ambiente acadê- mentais constituídas a respeito de uma rea-
mico. Para o geógrafo Rogério Haesbaert a lidade externa. Ou seja, é a forma como um
territorialidade apresenta suas conexões com grupo ou subgrupo constrói e interpreta as
os processos político-institucionais de cons- realidades sociais, configurando-se em um
trução do território (HAESBAERT, 2010: modelo que por eles é tido como realidade.
21). Entretanto, também está atrelada a uma No Mato Grosso do Sul, os conflitos ter-
dimensão cultural e identitária (ibid: 29), ou ritoriais entre índios e produtores rurais as-
seja, carrega consigo conteúdos simbólicos, sumem formas dramáticas, com acentuados
transpondo a dimensão física. índices de violência física e psicológica, fato
Segundo Levi Marques Pereira (2003), que se repete entre os países colonizados. É
foi a partir da década de 1970 que as lide- indispensável compreender estas frontei-
ranças indígenas passaram a alcançar mais ras interétnicas que se edificam a partir das
efetividade na luta pela recuperação de seus construções sociais e que em parte garantem
territórios tradicionais, aglutinando maior a manutenção de imaginários depreciativos
contingente em torno desses movimentos acerca dos indígenas.
sociais. Mas o conflito entre estes ameríndios O caso do conflito entre posseiros e
e representantes das frentes de expansão eco- indígenas na Serra da Bodoquena pode ser
nômica recua várias décadas na história re- analisado nessa perspectiva, onde as repre-
gional – a exemplo da formação da Colônia sentações são, possivelmente, a base das
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fronteiras étnicas construídas. Para a apreen- HISTÓRICO DE UM CONFLITO
são das variáveis que configuram os limites
destes dois universos étnicos e representa- Nos primeiros anos da década de 1980
cionais opostos é importante compreender o instaurou-se um conflito entre indígenas Ka-
processo histórico do conflito aqui abordado. diwéu e distintas categorias de produtores
Afinal, segundo Barth (2000: 196), a frontei- rurais na Serra da Bodoquena. A referida
ra étnica canaliza a vida social e implica uma contenda foi bastante divulgada e comen-
organização complexa do comportamento e tada na mídia sul-mato-grossense. De certo
das relações sociais. No caso da Bodoquena, modo, as raízes do problema podem ser situ-
a partir das fronteiras do espaço físico rei- adas na Guerra da Tríplice Aliança, quando
vindicado se seguem outras, de caráter étni- o Governo Imperial do Brasil prometeu ter-
co, tornando o diálogo e a tolerância sempre ras como forma de retribuição da participa-
mais difíceis. O caso do conflito entre colo- ção desses indígenas na guerra. Contudo, foi
nos e indígenas Kadiweu acaba por evocar o no processo de arrendamento das terras que
conceito de fricção interétnica proposto por a situação foi se agravando.
Cardoso de Oliveira: Por volta da década de 1980 os Ka-
diweu não tinham sua reserva claramente
Chamamos “fricção interétnica” o contato demarcada, pois as medidas fundiárias ofi-
entre grupos tribais e segmentos da socie-
dade brasileira, caracterizado por seus as- cialmente adotadas pelo governo federal
pectos competitivos e, no mais das vezes, eram diferentes daquelas apontadas pelo
conflituais, assumindo esse contato pro- governo estadual. Tal situação gerava muita
porções “totais”, isto é, envolvendo toda a instabilidade entre os membros da etnia. Pa-
conduta tribal e não-tribal que passa a ser ralelamente, na virada da década de 1970 a
moldada pela situação de fricção interétni-
ca (Cardoso de Oliveira, 2006: 46) 1980 ocorreu um considerável crescimento
do Distrito de Morraria do Sul, que se tornou
As condutas citadas por Cardoso de um reconhecido centro de redistribuição de
Oliveira se materializam na forma de fron- gêneros agrícolas produzidos por pequenos
teiras étnicas. Essas fronteiras imateriais, proprietários. Morraria do Sul experimenta-
consolidadas por meio das representações va um processo de crescimento por conta do
acerca dos povos indígenas, possuem suas volume de gêneros agrícolas negociados pe-
raízes em um passado colonial, quando a hu- los agricultores locais. Estima-se que a popu-
manidade do indígena, tida ora por degene- lação, na época, alcançava cerca de três mil
rada, ora por primitiva (imatura, impúbere), habitantes . Essa situação de prosperidade
aparece como elemento de justificativa para acabou por atrair mais campesinos para a re-
a conquista territorial e espiritual da Améri- gião, que viam nas terras circundantes uma
ca por parte das metrópoles europeias. Des- oportunidade para inserir-se nessa atividade
de então até a contemporaneidade é possível econômica.
visualizar um histórico de violência física e Para suprir as necessidades dos ha-
simbólica nas relações entre uns e outros. bitantes que viviam no distrito, havia toda
Na sequência será apresentado o his- uma infra-estrutura: posto de gasolina, ho-
tórico do conflito entre colonos e indíge- tel, mercado, igrejas e linha regular de ôni-
nas ocorrido entre 1980 e 1984 na Serra da bus com destino à cidade da Bodoquena.
Bodoquena, partindo em um segundo mo- Com o aumento da demanda pelos produ-
mento para a análise dos jornais a fim de tos lá cultivados ocorreu a expansão das
demonstrar como estas representações são áreas produtivas. Uma das alternativas foi
reproduzidas e veiculadas, fomentando o o arrendamento das terras ocupadas pelos
imaginário popular. indígenas Kadiwéus. O impreciso processo
de arrendamento, que segundo os jornais da
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época contou com a conivência da FUNAI, tos agricultores migraram para a região em
foi o elemento principal que levou ao ápice busca de oportunidades, o que torna difícil
do conflito em 1983. reconhecer se os avanços sobre a terra indí-
gena era um ato deliberado ou se na verda-
A DEMARCAÇÃO DE TERRAS E CON- de muitos desses sitiantes acreditavam estar
FLITOS ENTRE INDÍGENAS E PRODU- ocupando terras devolutas.
TORES RURAIS NA SERRA DA BODO- Em matéria publicada no dia 17 de
QUENA junho de 1983 pelo jornal Diário da Serra,
intitulada “Posseiros são os invasores”, o De-
Durante o conflito de 1983, jornais vei- legado da Funai, Carlos Amauri, comentou
cularam várias informações sobre o território que “há 80 anos o ‘dono da terra’ vem sendo
Kadiwéu. Em muitas matérias jornalísticas chamado de agressor, enquanto que os inva-
foi abordada a contradição entre a demar- sores de vítimas e defraudados’. Na legenda
cação sustentada pelo Governo do Estado da foto, o texto versa que “colonos são inva-
e a original, feita pelo Governo Federal. O sores e causadores dos conflitos, diz a Funai”.
Governo do Estado sustentava que em 1.900 Essa matéria vem comprovar a ambiguidade
houve uma demarcação feita pelo Agrimen- com que os próprios meios de comunicação
sor José de Barros Maciel, que estipulou uma classificavam um dos grupos envolvidos, o
área de 373.024 hectares para os indígenas. dos sitiantes ocupantes, que ora eram classi-
Essa extensão de terra estava bem abaixo ficados como invasores, ora como posseiros,
da medida original, teoricamente concedi- e não raramente como ambas as coisas na
da como forma de retribuição pela atuação mesma matéria. Os jornais, em muitos mo-
dos Kadiwéu na Guerra do Paraguai. No ano mentos, não tinham clara ciência destas duas
de 1982 foi realizada outra demarcação des- modalidades de ocupantes, ou, no mínimo,
sas terras pela Funai, que retomou a medida não era de interesse aprofundar tal questão.
original de 538 mil hectares. Evidentemente, Por outro lado, o arrendamento de ter-
o reconhecimento daquela parcela original ras no interior da aldeia constituía, naquela
deixou os fazendeiros e colonos insatisfeitos. época, uma prática comum. Os depoimen-
Os agricultores que se utilizavam de tos dos indígenas nos jornais reiteravam que
terras indígenas para suas lavouras foram os Kadiwéu se consideravam donos dessas
definidos pelos jornais de duas formas: os terras e, sendo assim, se sentiam no direito
colonos e os posseiros. Os colonos represen- de arrendá-las para os sitiantes – não indí-
tavam o grupo de pessoas que haviam rece- genas. Porém, os arrendamentos passaram a
bido títulos do Governo do Estado (desde o ser agenciados por várias frentes, entre essas
antigo Mato Grosso até o atual Mato Grosso estava a Funai, além de existirem os inevitá-
do Sul), de terras que estavam situadas na veis sub-arrendamentos. Logo as “frentes”
margem dos aproximadamente 373 mil hec- perderam o controle das terras arrendadas
tares defendidos pelo poder estadual como e novos colonos passaram a ocupar parcelas
sendo a extensão máxima do território Ka- de terra de modo irregular. Parte dos arren-
diwéu. Com suas terras dentro dos domínios datários era de fazendeiros poderosos que se
do território apontado como legitimamente utilizavam das parcelas de terras arrendadas
Kadiwéu pelo Governo Federal, os colonos para a engorda do rebanho bovino. Os jor-
passaram a defender a demarcação estipula- nais deixam claro que quando houve as inva-
da pelo Governo do Estado, reclamando seus sões, bem como quando os colonos também
títulos como instrumentos que atestavam a estabeleceram arrendamentos nas terras dos
legitimidade de suas propriedades. indígenas, os fazendeiros passaram a esti-
Diante do crescimento da produção e mular os atritos entre indígenas e pequenos
comércio agrícola em Morraria do Sul, mui- produtores, pois tinham o interesse de se ins-
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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tituírem como únicos arren- tocaias feitas aos vigilantes e
datários das terras indígenas aos indígenas por ocasião da
(Correio do Estado, de 11 de cobrança dos arrendamentos
março de 1983). junto aos posseiros da Fazen-
Após um período a situa- da Turumã (onde ocorreram
ção se agravou e a tensa relação as mortes).
entre indígenas e agricultores Tal situação gerou ins-
na Serra da Bodoquena virou tabilidade social na aldeia,
notícia frequente nos jornais levando os Kadiwéu a levan-
do estado do Mato Grosso do Figura 1: Capa do jornal Correio do Estado, de tar armas. As baixas não se
Sul. O clima de tensão se ele- 11 de março de 1983 limitaram às duas apontadas
vou gradualmente, marcado acima. Há jornais que relatam
de ações de ambos os lados: entre colonos, em torno de sete mortes e outras dezenas de
invasores e indígenas. A reivindicação da feridos. Os dados são imprecisos, porém, se-
revisão das terras da aldeia, que apontavam gundo o Jornal da Manhã de 22 de julho de
uma extensão menor para os índios, foi en- 1983, o número de mortos pode ter chegado
cabeçada pelo “coronel” Clovis Rodrigues a quinze. Os invasores e colonos expulsos –
Barbosa, então diretor geral da Terrasul, en- colonos que haviam arrendado terras indí-
tidade responsável por fazer valer os interes- genas ou que detinham a titulação estadual
ses dos grandes proprietários de terra. A atu- - buscaram refúgio no centro comunitário
ação da Terrasul na contenda da Bodoquena de Morraria do Sul. A partir daí se deu um
demonstra que os fazendeiros sempre estive- processo de atritos e reivindicações que, no
ram envolvidos com o conflito, estimulando geral, se estendeu por muitos meses, até que
o reparto de terras indígenas, especialmente colonos e invasores foram definitivamente
àquela correspondente à área Kadiwéu que removidos da região e assentados em outros
o governo estadual distribuiu titulações ao locais comprados pelo poder público para tal
contestar a demarcação original. fim.
Trocas de acusações entre os diferentes Após o período do conflito, os indíge-
órgãos e atores sociais revezavam os culpa- nas continuaram a estabelecer parcerias com
dos. Havia, segundo os jornais, tentativas de os brancos a fim de buscar subsistência a par-
incitar conflitos entre colonos e indígenas, tir do capital ingresso, tão necessário para as
enquanto órgãos públicos, organizações e fa- famílias da aldeia. Sobre as parcerias, Marina
zendeiros faziam o papel de expectadores e, Vinha esclarece que “Esta é uma condição
por vezes, de incitadores. As relações se tor- para a sobrevivência do grupo. Contudo, a
naram mais tensas e os índios procederam primeira condição [parceria] é aceita insti-
com a expulsão de posseiros. O processo de tucionalmente, a segunda [arrendamento] é
expulsão se deu de maneira hostil, marcado institucionalmente punida. Mas ambas sig-
pela destruição de plantações e incêndio de nificam que o “branco” está intermediando
benfeitorias. a sobrevivência do grupo, pois ambos estão
No ápice do conflito, os indígenas assas- agregados, segundo conveniências próprias,
sinaram o posseiro Manoel Ricardo da Silva em funções recíprocas” (Vinha, 2004: 220 e
e seu filho de 16 anos no dia 07 de março de 221). A não aceitação de tudo aquilo que é
1983. Novamente houve trocas de acusações, caracterizado como arrendamento pode ser
onde ambas as partes apontavam os oposi- decorrente das marcas simbólicas que o con-
tores como responsáveis. Para os colonos flito de 1983 deixou no interior da sociedade
havia sido um ato de barbárie sem justifica- Kadiwéu. Como o ingresso de capital é indis-
tiva, como muitos outros anteriores. Já para pensável para a subsistência, se criou novas
os indígenas teria sido uma retaliação pelas formas, novas roupagens para que uma prá-
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tica similar – as parcerias – seja socialmente gerais que são normalmente utilizadas sem
aceita. uso de senso crítico.
O conflito de 1983 foi um marco na Segundo Alcida Ramos (1998: 13-15),
luta pelo reconhecimento oficial do territó- analisar é colocar de lado, é escrutinar o que
rio. Efetivamente, em abril de 1984 a reserva está atrás do óbvio, é tomar os dogmas nas
foi homologada. Entretanto, conforme Jaime suas contradições ou desvelar sentidos en-
Garcia Siqueira Júnior (1993: 262), mesmo cobertos em tratados e ações que são opos-
após a homologação, conflitos menores e in- tas às suas intenções estabelecidas. Assim,
vasões continuaram acontecendo. Siqueira é possível romper com a figuração do índio
Junior apresenta uma cronologia dos confli- no imaginário de grupos em intenso contato.
tos decorrentes das invasões, que se estende- O índio passou a ser caracterizado no ima-
ram por vários anos após a homologação – o ginário popular com palavras de forte teor
autor registrou vários episódios entre 1985 e ideológico, como criança, pagão descrente,
1992. nômade, primitivo e selvagem.
Trazendo as ideias de Ramos para a re-
OS INDÍGENAS REPRESENTADOS NOS alidade do jornalismo, o que em princípio
JORNAIS IMPRESSOS A PARTIR DO parece ser apenas texto informativo de uma
CONFLITO NA SERRA DA BODOQUE- matéria jornalística, pode, por outro lado,
NA revelar intenções camufladas de transmissão
de um conteúdo oculto que será determi-
Desmitificar as representações consti- nante para criar no leitor uma ideia parcial
tuídas acerca dos índios Kadiwéu, com base do fato em questão. Os textos jornalísticos
nos textos jornalísticos, requer um diálogo lidos e analisados no decorrer da pesquisa
com métodos apropriados. O texto escrito revelaram muitos aspectos subliminares, que
é concebido a partir de conceitos, ideias e tinham por função suprir o leitor de conte-
ideais, que expressam os julgamentos e pré- údos parciais ou ainda revelavam elementos
-conceitos do autor do texto jornalístico e da de uma representação preconceituosa a res-
linha editorial do jornal. Similar ao que ocor- peito dos povos indígenas. Dos quatro jor-
re no discurso falado (que as pessoas podem nais analisados, um deles – o Jornal da Ci-
incluir palavras de duplo sentido a fim de dade – mostrou-se inverso à linha editorial
incutir uma ideia no interlocutor), também norteadora dos outros três ao apresentar ma-
no texto escrito é possível encontrar elemen- térias a partir de um discurso mais indige-
tos subliminares que se estendem como uma nista, opondo-se aos concorrentes em vários
teia de significados simbólicos. momentos.
A proposta metodológica aqui é de re-
velar o sentido subjacente de palavras-chave A ANÁLISE DOS JORNAIS
que se encontram em meio aos textos jorna-
lísticos acerca do conflito entre posseiros e Os jornais utilizados como objeto de
indígenas na Serra da Bodoquena. Esse pro- pesquisa foram os seguintes: o Jornal da Ci-
cedimento metodológico foi amplamente dade, o Jornal da Manhã, o Correio do Esta-
discutido por Alcida Rita Ramos (1998: 13- do e o Diário da Serra. A escolha por esses
14), que propõe que as palavras chaves são jornais se deu em razão de serem impressos
significantes, indicativas de certa forma de na capital do estado, onde se supõe ter mais
raciocínio. Ao analisar cuidadosamente um fluxo de informações. As consultas a esses
conjunto de palavras que juntas ou separadas quatro jornais propiciaram a compreensão
contribuem para uma específica formação de do fato histórico do conflito na Serra da Bo-
sentido no discurso, pode-se assim eviden- doquena nos anos 1980 a 1984. A análise
ciar sentidos ocultos por detrás das noções foi feita focando dois objetivos principais:
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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abordar a representação dos indígenas na benefícios da civilização.
mídia impressa e revelar os conteúdos ocul-
tos expressos em palavras-chave carregadas A atribuição do imaginário acerca do
de simbolismos capazes de incutir opinião “selvagem” remete à exclusão e ao silencia-
nos leitores. Neste artigo é apresentada uma mento – ao selvagem não se escuta. Com
síntese dessa análise (a análise completa está efeito, os jornais, por vezes, optaram por
disponível em Müller, 2011). excluir as vozes dos múltiplos atores sociais,
Percebeu-se nos textos a sustentação de substituindo as lideranças sociais por repre-
uma barreira étnica, que distancia o indígena sentantes de classe. Tais matérias talvez se
da sociedade nacional. Essa barreira é per- expliquem pela intenção de não expor di-
ceptível por meio da repetição de termos es- retamente a opinião das pessoas envolvidas
pecíficos, como “silvícola” que aparece com neste processo da questão de terras: colonos,
frequência nas diversas matérias. Segun- posseiros e índios. Ao invés de entrevistarem
do o Dicionário Aurélio da Língua portu- indivíduos pertencentes a esses segmentos
guesa significa: “Que ou quem nasce e vive sociais preferiam “dar voz” aos represen-
nas selvas”. Assim sendo, “silvícola”, aparece tantes das entidades de classe e de órgãos
como um divisor étnico, onde o indígena é governamentais. A literatura teórica sobre o
caracterizado como aquele que vive aparta- jornalismo conhece fenômenos como esse e
do do ideal civilizatório. A origem do termo a presente pesquisa confirma. Sobre esse as-
silvícola aplicado aos indígenas americanos pecto Dalmaso e da Silveira alertam que:
vem do silvaticus, personagem medieval
Esses cidadãos, para os jornalistas e sua
que vivia apartado dos ideais civilizatórios e técnica de manual de produção da notícia,
cultivava hábitos bestiais (Aguiar & Müller, são considerados fontes sem credibilidade,
2010). Wortmann (2004: 123) expõe a opo- sem respeitabilidade, sem garantia de infor-
sição “homem silvestre” (ou agrios) versus mações ‘verdadeiras’, pois não são técnicos,
habitante da polis, nos seguintes termos: não são autoridades no assunto, não são
especialistas, não são ‘produtivos’. Dessa es-
O pensamento ocidental, desde a antigui- trutura resulta um texto monológico, com
dade, partia do princípio de que havia uma uma voz única e pode-se dizer também an-
diferença fundamental e irredutível entre tidemocrático (Dalmaso & Silveira, 2003:
humanos e animais. Entre os dois colocava- 118).
-se o “homem selvagem” das florestas e dos
desertos. Exemplo desse caso é encontrado no
Jornal Diário da Serra de 15 de junho de
A citação acima mostra como o uso do 1982, no texto intitulado “Violência na Bo-
termo selvagem remete a uma longa discus- doquena leva colonos à morte”; matéria esta
são sobre a condição de humanidade deba- que consta apenas a declaração do Presiden-
tida desde a antiguidade. Mesmo tendo sido te do Sindicato dos trabalhadores Rurais de
popularizada, inclusive em termos jurídicos, Bodoquena, Euclides Appel. Ao mencionar
a expressão carrega consigo significados as mortes dos colonos o jornalista deu voz
muito semelhantes. Conforme é lembrando apenas a essa autoridade. No segundo item
por João Pacheco de Oliveira (1995: 78) o ín- da mesma matéria, “Funai investiga índio”,
dio no imaginário constitui: Euclides Appel critica a Funai, porém, em
nenhum momento aparece a outra versão
[...] um indicativo de um estado cultural dos acontecimentos. Nessa publicação fica
manifestado pelos termos que em diferen-
nítida a ausência de outras vozes, como a dos
tes contextos o podem vir a substituir – sil-
vícola, íncola, aborígene, selvagem, primi- indígenas ou a de uma autoridade da Funai.
tivo, entre outros. Todos carregados com Essa perspectiva monologista se repete com
claro denotativo de morador das matas, de frequência nesse e nos outros jornais pesqui-
vinculação com a natureza, de ausência dos
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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sados. de lide, a partir da matéria intitulada “Índios
estariam comprando armas em Bodoquena”:
Para facilitar a análise dos textos se di-
vidiu os resultados em dois tópicos: análise Os índios da reserva de Bodoquena esta-
riam se armando, com parte dos recursos
a partir de palavras-chave que evidenciam que estão com [como no texto] o arrenda-
imaginários depreciativos e palavras-chave e mento de suas terras para a criação de gado.
fragmentos de texto que alteram a percepção A denúncia foi feita em Campo Grande por
do leitor. No primeiro caso, se estabeleceu, a Antônio Vilhalba, agricultor daquela re-
partir da leitura das matérias, uma seleção de gião, que está muito preocupado com esse
problema, que poderá trazer sérias conse-
palavras que contribuem para a manutenção qüências se providências urgentes não fo-
rem tomadas pelas autoridades ligadas ao
assunto (Correio do Estado, 24 de setembro
de 1982, p. 5).

De início, consciente apenas do


título e do lide, o leitor já sabe do que
a matéria está tratando. Mas nesse caso
o lide vai além de situar os tradicio-
nais “quem”, “onde”, “quando”, “como”
e “porque”. Diz que índios estariam
usando o arrendamento para comprar
armas, como se o dinheiro do arrenda-
mento fomentasse uma espécie de “trá-
fico” de armas, arrematando a matéria
com a possibilidade de “sérias conse-
quências”, como se a violência fosse
Figura 2: Jornal Diário da Serra de 15 de junho de 1982, página 03. um processo unilateral e tivesse sua
origem somente no lado do indígena.
de uma representação preconceituosa acerca Ao construir um discurso de que o di-
dos indígenas. Já no segundo tópico, foram nheiro do arrendamento alimenta compra de
elencados palavras e fragmentos que distor- armas, o jornal – talvez sem propriamente se
cem o fato, seja por meio da magnificação dos dar conta disso – expõe o que grupos orga-
episódios ou pela tentativa de impor opiniões nizados reivindicam: uma ação de repressão
ao leitor. contra os índios, dando início a um jogo de
No jornalismo existem recursos que os poder pelo usufruto das terras. De fato, em
profissionais utilizam para dar impacto ou matéria do dia seguinte, o jornal atesta que
dramatização em suas matérias. Entre estes a Funai identificou que Antônio Vilhalba era
está o lide, que nada mais é que o primeiro filho de Julião Vilhalba, que estava sendo pro-
parágrafo cuja função é introduzir o leitor no cessado pelo órgão indigenista por invasão
texto e prender sua atenção. Nos jornais pes- de terras indígenas. Percebe-se que o confli-
quisados percebeu-se que os jornalistas, em to teve sua raiz em disputas políticas que se
alguns casos, utilizaram o lide para sugerir desenrolavam a quase dois anos antes de sua
uma opinião ao leitor antecipadamente à lei- eclosão. Múltiplas manobras e estratégias de
tura da matéria. Assim, ao passar o primeiro manipulação política, encabeçadas principal-
parágrafo o leitor abordaria o restante do tex- mente por grandes proprietários, somadas ao
to já com a tendência a uma opinião prévia, total descontrole das áreas arrendadas (que
opinião esta indicada pela própria linha edi- chegaram a 104) geraram todo o clima de
torial. Segue abaixo um exemplo desse tipo instabilidade que culminou o conflito. Com

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base na avaliação do caso através das fontes Nacional do Índio – FUNAI – é fazer com que
históricas e jornalísticas, entende-se que a cessem de vez ‘as guerrilhas primitivas’ provo-
irresponsabilidade do Estado de Mato Gros- cadas por esse litígio de terras naquela área”.
so também foi determinante para o conflito, O uso de palavras que carregam sentidos
pois este, durante décadas, distribuiu títulos ocultos, ou seja, que guardam significados su-
para colonização de terras em uma área per- bliminares, é frequente nos jornais pesquisa-
tencente aos indígenas. Dessa forma, colonos dos. A mídia ocupa um importante papel na
que detinham títulos de propriedade se viram constituição do imaginário popular. A aura
ameaçados pela reivindicação dos indígenas. de veracidade que se atribui especialmente
A palavra-chave “primitivo” também aos jornais impressos faz com que muito do
aparece com frequência em meio aos textos que neles é publicado acabe se incorporando
jornalísticos. O termo “primitivo” reflete o às representações coletivas. Por outro lado,
pensamento do evolucionismo social do sé- não se pode negar que existe uma predileção
culo XIX, que estabelece escalas evolutivas, quase obsessiva pelas matérias sensacionalis-
situando como primitivos aqueles povos clas- tas, que cativam a atenção do leitor, sendo que
sificados por Morgan nos estágios de selva- os temas mudam de tempos em tempos, pois
geria e de barbárie (ESPINA BARRIO, 2005: são influenciados por tendências de épocas.
74-75), considerados por ele mais atrasados Assim, conferir magnitude ao fato é também
dentro do ideal civilizatório da humanidade, uma estratégia sensacionalista.
que teria na Europa sua máxima expressão. A reprodução de representações de um
Diante dessa classificação preconceituosa, o modelo de índio selvagem também é estimula-
termo “primitivo” foi banido do meio acadê- da pelos jornais entre as crianças. Na edição de
mico, mas, ao que tudo indica, segue em uso e 23 de abril de 1983, bem em meio à intensifica-
com força em outros segmentos, que se apro- ção dos conflitos entre indígenas e posseiros na
priam do termo para fins políticos. Serra da Bodoquena, o Jornal da Manhã publi-
Bem nos lembra Alcida Ramos (1998: cou o desenho abaixo na Folha de Variedades.
40-45) que o conceito de “primitivo” foi em Na imagem acima – o jornal se utiliza
um primeiro momento fornecido pela antro- de um personagem similar ao popular “pa-
pologia por um de seus maiores tratados nar- pa-capim” de Maurício de Souza – é possível
rativos. Entretanto, autores contemporâneos entender um discurso inerente, que trata do
têm insistido que primitivo é essencialmente índio como reflexo de uma representação:
um conceito temporal, uma categoria e não só é índio o que tem flecha e anda trajado “a
um objeto; uma categoria do pensamento oci- caráter”; o índio aqui perdeu sua flecha, que
dental de que os primitivos são feitos e não
encontrados, que os primitivos não são um
fato, mas uma interpretação.
No Jornal Diário da Serra, também apa-
rece o termo “guerrilhas primitivas”, se refe-
rindo aos conflitos da Bodoquena. Além da
palavra “guerra” ser usada como meio de dar
magnitude aos conflitos, o termo primitivo
leva a imaginar uma situação de selvageria
na perspectiva do evolucionismo social, onde
homens embrutecidos munidos de tacapes
guerreavam entre si em batalhas francas e
sangrentas. Conforme matéria do dia 11 de
maio de 1983: “O interesse maior do Incra que
trabalha hoje com o apoio direto da Fundação Figura 3: Jornal da Manhã, 23 de abril de 1983, pg. 5.

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simboliza sua cultura; está em busca de seus gratuito e que se tratava de uma conspiração
laços com aquilo que o converte em “índio (confabulações entre dois ou mais agentes)
de verdade” – a sua flecha. Ao perder sua fle- para desterrar os “posseiros”. Consolida-se
cha o índio perdeu sua cultura. No contexto aí a estratégia de já no primeiro parágrafo
conflitivo a que veio à luz, esta caricatura é extrair uma opinião do leitor, conduzindo-
uma ironia (disfarçada de inocência) da su- -o a uma interpretação parcial dos fatos, que
posta perda de identidade dos indígenas que coloca os indígenas na condição de culpáveis
agora “precisam da nossa ajuda”. e maldosos.
Outro ponto polêmico é a barbarização O jornalista destaca na matéria: “Ocor-
do indígena. O Jornal da Manhã, em matéria re que pela lei, os indígenas são considerados
do dia 23 de abril de 1983, utiliza-se de uma menores e relativamente incapazes e, por-
estratégia de linguagem para compor uma tanto, não se concebe que possam andar com
imagem do índio bárbaro. Ao redigir o texto rifles, pistolas e até mesmo Berettas”. Após
o jornalista faz uso de palavras que conferem colocá-los na condição de mentalmente in-
magnitude ao evento, além de impor uma vi- capazes (infantis por natureza), acrescenta o
são unilateral como factível. Primeiramente, jornal que estes indígenas não podem portar
identifica-se a inserção de passagens dramá- armas de fogo, contrastando com os colonos
ticas (ou melhor, dra-
matizadas) para sen-
sibilizar os leitores em
relação aos posseiros.
O texto “abusos pra-
ticados pelos índios”
deixa claro que o jor-
nal pretende situar os
kadiwéu na condição
de culpados. Apesar
de muitas vezes in-
tercalar a culpa en-
tre Funai e Governo,
constantemente edifi-
ca um quadro do ín-
dio cruel que impele
medo aos “posseiros”
e “colonos” (termos
empregados pelo jor-
nal). Figura 4: Jornal Correio do Estado de 17 de abril de 1980
Essa matéria é
muito importante para a pesquisa desenvol- como sendo legítimo entre estes o porte de
vida, pois reflete claramente uma estratégia armas. A questão da infantilidade do indíge-
de sugerir uma opinião ao leitor. Já no lide, o na é importante observar, foi uma das justifi-
jornal coloca que “todos puderam saber, de cativas utilizadas pelo conquistador colonial
maneira até mesmo chocante, os atos prati- para tomada do território: “A ‘infantilização’
cados pelos Kadiwéus” e segue destacando do ameríndio resolveu a questão do domínio
que esses “atos” ocorreram “(...) com total espanhol e, ao mesmo tempo, permitiu a in-
apoio dos funcionários do órgão indigenis- clusão dos novos selvagens na ‘grande cadeia
ta”. O leitor, já no primeiro parágrafo tem a do ser’ numa modalidade mais piedosa de
ideia de que os índios partiram para o ataque inferioridade [...]” (Woortmann, 2004: 140).
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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A questão do produtivismo também com baixas e guerra ainda há uma grave dis-
foi tema de grande predileção nos jornais. A tância. A edição do Diário da Serra publica-
relação “produtivo” versus “improdutivo” é da no dia 09 de março de 1983 é exemplo:
abordada de maneira sobressalente em uma “Voltou ‘guerra’ entre indígenas e posseiros”,
matéria publicada no jornal Correio do Esta- no dia seguinte 10 de março, o jornal anun-
do de 17 de abril de 1980. No título da maté- cia na capa a seguinte manchete: “‘Guerra’ de
ria aparece um personagem como “defensor” posseiros e índios vai para Brasília”.
dos colonos: “Miranda vai pedir a Figueiredo Aparecendo o termo entre aspas, revela
demarcação legal da terra dos Kadiwéus para que o editor está ciente de que seu emprego
beneficiar colonos”. Na sequência, a matéria não é de todo apropriado. O leitor, que evi-
veicula que “constantemente os colonos, que dentemente não presenciou o ocorrido, aca-
produzem significativas quantidades de ar- ba por ser conduzido a um raciocínio parcial
roz, feijão, café e banana, são molestados por e depreciativo, tomando por suas as ideias
grupos de indígenas semi-aculturados”. O monologistas sustentadas pelas respectivas
repórter mergulha fundo na tentativa de des- linhas editoriais. Neste momento os jornais
tacar esta representação do índio improduti- acabam por ferir a principal regra do jorna-
vo que se levanta para “molestar” os colonos, lismo: a de ouvir todas as partes envolvidas
que são figurados como os únicos que plan- e dar direito de expressão aos diretamente
tam: representação reiterada “índios moles- afetados pelo texto publicado. No caso, o si-
tam e colonos plantam”. Outro termo utili- lêncio desses jornais acaba por dizer muito
zado pelo repórter que tem função política sobre a política editorial, que desconsidera
é “semi-aculturados”, aplicado no sentido os indígenas indignos ou incapazes de ex-
pressar suas opiniões a respeito do
que é publicado. Pior que anônimos,
os indígenas são classificados reitera-
damente como únicos culpados do
conflito, condenados pela mídia sem
julgamento ou direito de resposta. A
regra é a seguinte: silêncio = culpabi-
lidade = barbarismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Figura 5: Jornal Diário da Serra, de 09 de março de 1983. A pesquisa desenvolvida permi-


tiu trazer a tona uma discussão sobre
daqueles que perderam sua essência cultural, representações mantidas no imaginário co-
vivendo apartados da cultura tradicional, ou letivo acerca dos povos indígenas no Brasil.
seja, deixando de ser “índios de verdade”. Conforme argumentado no início do arti-
As matérias eram montadas tendo nos go, essas representações são sustentadas por
conflitos o fio condutor. Como estratégia jor- uma raiz longínqua, cujas origens remontam
nalística, os conflitos foram redefinidos nos a idade antiga, perpassam a idade média e
textos, assumindo feições que os aproxima- são reavivadas na idade dos descobrimentos
riam a uma condição de guerra. A estratégia e da conquista, chegando até a contempora-
obviamente servia para capturar a atenção neidade. O conceito do “silvaticus” aparece
do leitor, porém, o uso da palavra “guerra” para dar imagem ao conflito humano: uma
acaba por transmitir ao leitor uma imagem luta entre a razão do ser civilizado em opo-
talvez um pouco diferente do real estado das sição ao seu lado mais animal e irracional.
coisas, pois entre as concepções de conflito As representações mentais da antiguidade
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clássica foram reformuladas e projetadas momentos da leitura do jornal. O ideal civi-
para o contexto colonial, tomando os ame- lizado ligado à atividade agrícola aparece no
ríndios como a prova material da existência discurso jornalístico como uma possibilida-
do “selvagem”. Com base nisso muitas ideias/ de de tirar os índios de uma condição tida
imagens depreciativas se impregnaram no por “selvagem”. A produção agrícola, dessa
imaginário social, permanecendo em diver- forma, seria o que aproximaria os indígenas
sas formas até os dias atuais. Neste sentido, das qualidades desejáveis pela sociedade.
é possível perceber que inúmeras represen- Percebeu-se claramente um discurso
tações depreciativas são reproduzidas nas pejorativo, que coloca em contraste os dois
escolas, perpetuando um imaginário euro- opostos da tensão rural: os agricultores que
cêntrico e depreciativo acerca dos indígenas produzem em oposição ao índio que molesta
brasileiros. e que é improdutivo. O termo aculturado ou
Entende-se que as representações que semi-aculturado é repetido como argumento
traduzem o outro são historicamente cons- dos produtores rurais e entidades ligadas ao
tituídas e que o mesmo objeto pode ser pos- setor agrícola para reivindicar uma condi-
suidor de imagens mentais muito díspares. ção de não indígena ou de semi-indígena, ou
Constitui-se, dessa forma, um campo de tra- seja, aquele de quem se deveria retirar todos
balho extremamente fértil para o historiador, os direitos constitucionais por representa-
permitindo que as análises das representa- rem uma “farsa”.
ções sejam um veículo para melhor compre- Os textos por vezes davam uma dimen-
ender o outro e a nossa própria relação com são bem maior do conflito, aproximando-o
este outro. É indiscutível que a sociedade na- de uma guerra ao usar precisamente este ter-
cional guarda uma imagem distorcida acerca mo ou o de “guerrilha” associado à palavra
dos indígenas, calcada em estereótipos. “refugiados” para definir os colonos fugidos.
Existe sempre uma expectativa dos não Isso eleva a dimensão das ideias incutidas,
indígenas acerca do que seria o “verdadeiro” pois a mídia ocupa um importante papel na
indígena. Sempre que a realidade entra em constituição do imaginário popular. A aura
choque com essa imagem pré-concebida e de veracidade que atribuímos especialmente
estereotipada, grande instabilidade se instau- aos jornais impressos faz com que muito do
ra nesta relação entre indígenas e represen- que neles é publicado acabe se incorporando
tantes não indígenas da sociedade nacional. às representações coletivas.
A análise dos textos pesquisados trouxe A análise do texto jornalístico seguiu
evidências da manutenção dos estereótipos a metodologia proposta por Alcida Rita
mais comuns, com suas origens históricas Ramos (1998), que parte da decomposição
antigas, mas que trazem efeitos devastadores do texto em palavras-chave como forma de
em termos de relações interétnicas. A repe- rastrear conteúdos ideológicos subjacentes.
tição de termos específicos, como silvícola Desta forma, identificou-se nos jornais pes-
remete a um divisor étnico, onde o indíge- quisados a existência de duas categorias de
na aparece como aquele que vive apartado palavras chave: “palavras-chave que eviden-
do ideal civilizatório. A grande maioria das ciam imaginários depreciativos” e “palavras-
matérias nos diversos jornais remete a um -chave que alteram a percepção do leitor”:
modelo monologista, em que apenas um dos Palavras-chave que Palavras-chave que alteram a
evidenciam imaginá-
lados envolvidos é retratado. O outro lado, rios depreciativos percepção do leitor
o silenciado é aquele que sofre opressão po- • Guerra
• Preguiçosos • Guerrilha
lítica, aquele que não fala, mas é falado. O • Imbecis • Abusos
• Mato •
lide foi muito empregado nas matérias como • Primitivo •
Aculturado
Posseiros (referindo-se a
forma de incutir uma ideia do conflito (nor- • Selvagem invasores)
• Silvícola • “Armados até os dentes”
malmente monologista) já nos primeiros • Incapazes • Intimidação

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No caso dos jornais analisados, o leitor, jornalismo. In: SILVEIRA, Ada Cristina M.
que evidentemente não presenciou o ocorri- da. Jornalismo além da notícia. Santa Maria:
do, acaba por ser conduzido a um raciocínio UFSM.
parcial e depreciativo, tomando por suas as
ideias monologistas sustentadas pelas res- ESPINA BARRIO, Angel B. 2005. Manual de
pectivas linhas editoriais. Antropologia Cultural. Recife: Massangana.
Mudar as mentalidades a fim de dissol-
ver tais imagens depreciativas que a popu- HAESBAERT, Rogério. 2010. O mito da
lação guarda é um processo longo. A tarefa desterritorialização: “do fim dos territórios”
se torna ainda mais difícil se considerar que à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Ber-
desde que a criança passa a frequentar a es- trand Brasil.
cola é ensinada a ver o índio como persona-
gem folclórico, presente em contos e mitos. MÜLLER, Aline Maria. 2011. Índios Ka-
Dessa forma, ao desfolhar os livros de his- diwéu e Posseiros na Serra da Bodoquena: re-
tória, representações preconceituosas são re- presentações na mídia impressa acerca de um
plicadas e perpetuadas. A obrigatoriedade da conflito. Dissertação de Mestrado. Programa
inserção de conteúdos de história indígena de Pós-graduação em História. Dourados:
nos currículos escolares é uma medida que UFGD.
objetiva mudar esta situação.
Trabalhar o imaginário e as represen- PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1995. Mui-
tações negativas constituídas acerca dos ta terra para pouco índio? Uma introdução
indígenas nas sociedades nacionais, como (crítica) ao indigenismo e à atualização do
lembra Paulo Suess (1997) é um imperativo preconceito. In Aracy Lopes da Silva e Luis
pedagógico, pois só assim será possível vis- Domizete Benzi Grupioni. A temática indí-
lumbrar mudanças significativas nas atitudes gena na escola: novos subsídios para profes-
da sociedade brasileira diante das alteridades sores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/
e diálogos interétnicos visando a construção UNESCO.
e consolidação de políticas de tolerância.
PEREIRA, Levi Marques 2003. O movimen-
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sentações acerca do indígena americano na PESAVENTO, Sandra Jatahy. 1995. Em
iconografia europeia do século XVI. Clio - busca de uma outra história: imaginando o
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fônica da linguagem: uma alternativa para o
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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Novo Mundo: Ameríndios, humanismo e es-
catologia. Brasília: UNB.

____________
Recebido de 17 de Novembro de 2011
Aprovado em 05 de Março de 2012

Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012


45
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

O DEVASSAMENTO DOS SERTõES DO RIO DOCE E zONA DA MATA


resistência e associação dos povos indígenas nos séculos XVIII e XIX*
RICARDO BATISTA DE OLIVEIRA**

RESUMO also possible to highlight how indigenous occupied


Este artigo analisa um novo aspecto dos povos in- an important role in the establishment thereof, in-
dígenas do Vale do rio Doce e Zona da Mata, desta- serting it as active subjects in the historical process
cando a perspectiva de suas fronteiras étnicas, e não of the aforementioned captaincies. However, more
os usuais limites administrativos que circunscrevem important than including these peoples, often for-
as capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio gotten, by studying the indigenous history, one re-
de Janeiro. Fundamentado em fontes historiográfi- alizes that the very interpretation of history takes
cas e documentais, o trabalho repensa as estratégias new directions.
de resistência e associação, bem como as imagens
forjadas sobre o indígena, a partir do rearranjo do Keywords: Indians, Resistance, Association
processo migratório ocasionado pelo acirramento
do contato com os neobrasileiros. Sendo tais fron- RESUMEN
teiras um fenômeno móvel, também foi possível Este artículo analiza un nuevo aspecto de los pue-
destacar como o indígena ocupou importante papel blos indígenas de la región del Vale do Rio Doce, y
no estabelecimento das mesmas, inserindo-o como la Zona da Mata, destacando la perspectiva de que
sujeito ativo no processo histórico das capitanias sus fronteras étnicas, y no el habitual límites admi-
mencionadas. Não obstante, mais importante do nistrativos que delimitan las capitanías de Minas
que incluir esses povos, muitas vezes esquecidos, ao Gerais, Espírito Santo y Rio de Janeiro. Basado en
se estudar a história indígena, percebe-se que a pró- las fuentes historiográficas y documental, el traba-
pria interpretação da história toma novos rumos. jo pensa acerca de las estrategias de resistencia y de
asociación, así como las imágenes forjadas en los
Palavras-Chave: Indígenas, Resistência, Associação pueblos indígenas y de la reordenación del proceso
de migración causada por el deterioro del contac-
ABSTRACT to con los neobrasileiros. Se trata de un fenómeno
This article examines a new aspect of the indige- de fronteras móviles, pero también es posible poner
nous peoples in Rio Doce valley and its “Zona da de relieve cómo los indígenas ha ocupado un papel
Mata” (forest area), highlighting the prospect of its importante en la creación de la misma mediante su
ethnic frontiers, not the usual administrative limits inserción como sujeto activo en el proceso históri-
that circumscribe the Minas Gerais, Espírito Santo co del capitanias mencionado. Sin embargo, lo más
and Rio de Janeiro captaincies. Based on historio- importante de los cuales incluyen estos pueblos, a
graphical and documentary sources, the work re- menudo olvidados, cuando se estudia la historia in-
thinks the strategies of resistance and association, dígena, se percibe que la propia interpretación de la
as well as fabricated images on the indigenous from historia toma nuevos rumbos.
the migration process rearrangement caused by the
worsening of the contact with neo-brazilians. Sin- Palabras-clave: Pueblos Indígenas, Resistencia, aso-
ce such frontiers are a mobile phenomenon, it was ciación
* Este artigo é uma versão reduzida do quinto capítulo (O devassamento dos sertões: resistência e associações dos
povos indígenas) de minha Dissertação de Mestrado, defendida em junho de 2009 no Departamento de História
da Universidade Federal de Ouro Preto, com o título: POVOS INDÍGENAS E AMPLIAÇÃO DOS DOMÍNIOS
COLONIAIS: resistência e associação no Vale do Rio Doce e Zona da Mata, séculos XVIII e XIX, sob orientação
do professor Dr. Renato Pinto Venâncio.
** Doutorando em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia.
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INTRODUÇÃO que torna problemático estabelecer uma lei-
tura cingida pelas atuais fronteiras adminis-
Quando tratamos do tema “fronteira”, trativas.
sobretudo das fronteiras coloniais e daque- Pretendemos analisar a evolução dos
las que se estenderam até meados do século povos indígenas das capitanias de Minas Ge-
XIX, somos colocados diante da questão in- rais, Espírito Santo e Norte fluminense a par-
dígena, da violência enfrentada, tanto pelos tir da perspectiva de suas fronteiras étnicas, e
“naturais” das regiões de fronteira, quanto não pelos limites administrativos atuais dos
pelos não-índios no momento do contato. respectivos Estados. Aliás, cabendo lembrar
Contudo, nem sempre os estudos contem- que a região de fronteira circunscrita a essas
plaram esse aspecto da história da forma- capitanias estava indefinida até os anos ini-
ção de nossa sociedade e, em menor escala ciais do século XIX – para não mencionar
ainda, consideraram as complexas redes de ainda as questões relativas aos limites entre
sociabilidade exercidas por índios, brancos, Minas e Espírito Santo, que se arrastaram até
negros e demais mestiços. É esse o tema que o século XX (Lima 1904).
trata nossa pesquisa. A fronteira aberta possibilitava a expan-
A temporalidade deste trabalho se jus- são do território a partir de qualquer uma
tifica pela verificação de que, diferentemente das mencionadas unidades administrativas.
do que as informações oficiais podem apre- Se no espaço intermediário a Minas Gerais e
sentar, a intensificação dos conflitos entre Rio de Janeiro ocorreu um adensamento da
indígenas e os não-índios – na incorporação população ao longo do Caminho Novo, ins-
da fronteira circunscrita entre os pólos de talado ainda em 1707, o mesmo não foi ob-
exploração aurífera de Minas Gerais, a capi- servado entre a capitania mineira e o Espírito
tania do Espírito Santo e o Norte fluminen- Santo. O sertão do Rio Doce, circunscrito a
se – tem início com o declínio da produção essas duas capitanias, foi lentamente ocupa-
aurífera na segunda metade do século XVIII do por eixos migratórios originários tanto de
(Langfur 1998: 3-4). Portanto, antes da pro- uma quanto da outra capitania. Desse modo,
mulgação da Carta Régia de 1808, decretan- a fluidez desses limites sinaliza para a pos-
do “Guerra Justa” aos Botocudo1. sibilidade de novas abordagens, sendo uma
Em nossa pesquisa, a temporalida- delas a verificação de um espaço que extra-
de corresponde aos séculos XVIII e XIX. O pola as atuais fronteiras administrativas.
estabelecimento de uma unidade de espaço Ao analisar as fontes e a bibliografia
não diz respeito simplesmente às capitanias pertinente, sem nos atermos aos atuais li-
mencionadas, pois o Vale do Rio Doce in- mites das unidades da federação, notamos
cluía, no período colonial e boa parte do Im- que, na verdade, os Botocudo – desde os
pério, porções da capitania de Minas Gerais séculos XVI e XVII – foram vitimados por
e do Espírito Santo, ao passo que a Zona da pressões impostas pelo avanço colonizador,
Mata pertencia a Minas Gerais, como tam- não lhes restando alternativa se não resistir
bém a parte da região Norte fluminense. A ou deslocar-se para outras regiões, visto que
escolha desses espaços deve-se à fluidez de sua associação com os não-índios foi tardia
seus limites e à difícil tarefa de determinar em comparação a outros indígenas da região
onde começa e acaba um dado domínio, o observada. Não seria impróprio lembrarmos
1 Em 1953, a Associação Brasileira de Antropologia es-
que, no século XVIII, a multiplicação de ata-
tabeleceu que os nomes de povos e de línguas indígenas ques indígenas no Espírito Santo e Minas
fossem empregados como palavras invariáveis, sem flexão Gerais coincidem com as novas atitudes do
de gênero nem de número. Optei, – mesmo sabendo que
hoje pode-se usar as variações e flexões da Língua Portu-
governo colonial, no que tange às formas de
guesa para o nome de povos indígenas–, pelas normas da exploração econômica pautadas, além de na
referida revista. Ver: Revista de Antropologia, 2(2), 1954, prospecção mineral, na exploração agrícola e
pp. 150-154.
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dos recursos naturais, como madeiras e dro- também nota-se um grande progresso nos
gas do sertão. estudos da etnohistória, sobretudo, como os
Dada a grande dificuldade de nos va- trabalhos de John Monteiro (1999), Regina
lermos de fontes genuinamente indígenas, Celestino (2000) e Maria Leônia Resende
fomos obrigados a recorrer a registros que (2003).
são produzidos, na maioria das vezes, pelos Esta pesquisa está pautada na discus-
“opositores” dos índios. Crisoston Terto Vi- são da bibliografia pertinente, acrescida da
las Bôas, em um trabalho que discute a bi- leitura sistemática de fontes primárias que
bliografia, as fontes e as possíveis abordagens se entrecruzam, possibilitando o desvendar
no campo da história indígena em Minas de aspectos importantes das relações sociais
Gerais, chama a atenção para as dificuldades vivenciadas no universo da América Portu-
em se fazer uma Etnologia Histórica, ou seja, guesa do século XVIII e XIX.
“[...] um discurso a partir do oeste”, na pers- Após discutirmos, algumas das refor-
pectiva dos povos indígenas, dos vencidos, mas pombalinas e seus reflexos no que tange
portanto, “do outro” (Bôas 1995: 55). Depa- à questão indígena, incidiremos nosso olhar
ramo-nos, então, com problemas de cunho no processo de intensificação dos esforços
teórico-metodológicos. Pedro Puntoni jus- voltados para a redução indígena e seus des-
tamente sublinhou que, sendo os indígenas dobramentos, quais sejam: a resistência e as-
ágrafos, não temos como “escrever com su- sociação indígena, acreditando ser esse um
cesso uma ‘história ao inverso’, recuperar uma importante aspecto da fronteira ora analisa-
visão dos vencidos, uma vez que nos faltam da. Será feita uma articulação entre os even-
fontes autenticamente indígenas”. Embora tal tos ocorridos nas capitanias de Minas Gerais,
observação justifique a leitura da documen- do Espírito Santo e no Norte fluminense,
tação administrativa e, no caso do trabalho despindo-os do recorrente atrelamento à
ora apresentado, igualmente os relatos mui- forma ainda usual de se pensar as fronteiras
tas vezes preconceituosos dos viajantes na- indígenas pautando as pesquisas dentro de
turalistas do século XIX, acreditamos poder um recorte que obedece às atuais fronteiras
avançar para além dessa perspectiva. Apesar administrativas. Pensar as fronteiras indíge-
de Puntoni assinalar que uma leitura crítica nas a partir dos limites administrativos atu-
“nos fornecerá, apenas, uma reconstrução dos ais acarreta problemas de ordem heurística,
acontecimentos do ponto de vista do conquis- uma vez que, para o índio, essas fronteiras
tador” (Puntoni 2002: 79), percebemos que não faziam sentido algum. Essa hipótese é
novas abordagens, como, o estudo das ri- facilmente comprovada ao checarmos a mul-
validades interétnicas e a complexa rede de tiplicação das migrações inter-capitanias/
sociabilidades existente no universo colonial províncias propiciada pela política de ocu-
podem descortinar um novo aspecto da his- pação da região de mata atlântica.
tória indígena, não mais limitado à ótica do
conquistador. ORGANIZANDO A FRONTEIRA: A AD-
A escassez de testemunhos diretos so- MINISTRAÇÃO POMBALINA E O “DI-
bre o comportamento dos indígenas coloca RETÓRIO DOS ÍNDIOS”
os pesquisadores que tratam a etnohistória
diante de alguns obstáculos e, provavelmen- Os aldeamentos conduzidos pelos pa-
te, a visão distorcida estabelecida pela pers- dres jesuítas, que reuniam o poder espiritu-
pectiva do “outro” venha ser um dos maio- al e temporal, tiveram um importante papel
res. No entanto, trabalhos como os de Bruce no que diz respeito à “pacificação” e redução
Trigger (1987) e Tzvetan Todorov (1993) já de grupos indígenas em várias capitanias na
avançaram rumo à superação destes obstá- América Portuguesa. O governo colonial
culos. Dentro da historiografia brasileira, desde cedo passou a se empenhar na redução
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indígena “do lado neo-europeu da fronteira”, gravíssimas consequências”2.
pois, sendo os índios em sua grande maioria Se por um lado, o ouvidor da capitania
volantes e “carentes do sentido de proprieda- do Espírito Santo, Pascoal Ferreira de Veras,
de, se serviam com freqüência das despensas incentivou a sublevação dos índios, – infe-
do branco”. Desse modo, os índios aldeados lizmente não identificamos os motivos do
sob a tutela dos padres estariam, portanto, ouvidor – por outro, o medo de um grande
diante de “um campo de treinamento para levante indígena assolou as autoridades co-
aprender o respeito à propriedade e também loniais. Ainda de acordo com Castro, mesmo
a aceitação da definição européia de traba- os obedientes índios aldeados pelos jesuítas,
lho e reverência para com o deus cristão” “forão esão ainda hoje os anteriores do Gen-
(Dean 1996: 88). No Espírito Santo, desde a tio Barbaro que antes do seo estabelecimen-
chegada dos missionários (1549) até meados to, infestarão todos aqueles dellatados con-
do século XVIII, muitos indígenas vinham tornos, com mortes, roubos, einsultos...”. Se
assegurando, sob a administração dos jesu- a sublevação continuasse, avisava Castro, os
ítas, importantes pontos ao longo do litoral e índios antes sob a tutela dos jesuítas pode-
outros com poucas léguas rumo ao interior. riam se unir “com aquelles bárbaros”, [e en-
No Rio de Janeiro também não foi diferente. tão], “experimentaríamos [os portugueses]
Contudo, as agressões cometidas contra os outra guerra ainda mais arriscada do que foi
índios, as epidemias e, sobretudo, o choque ados Palmares em Pernambuco”3.
de valores culturais ainda faziam com que A solução apontada por Castro consis-
muitos deles voltassem a viver nos matos, tia na imediata prisão dos envolvidos, “Ca-
abandonando os aldeamentos. beças da sublevação atte seus dos mesmos e
No Espírito Santo, na aldeia de Reriti- Índios, edos outros que onão são...”4.
ba, os indígenas aldeados vinham apresen- Como indica o documento, não se tra-
tado resistência ao trabalho dos jesuítas na tava de uma sublevação exclusivamente in-
primeira metade do século XVIII. Em carta dígena. A existência de brancos envolvidos
datada de 31 de março de 1744, André de não se resumia ao incentivo do ouvidor Fer-
Melo e Castro, Conde de Galveias, vice rei e reira de Veras. Fica evidente que os brancos
Governador Geral do Estado do Brasil, in- participaram ativamente quando Castro diz:
formou o Rei D. João V, das ordens que os “atte seus dos mesmos”, – portugueses, como
índios desta aldeia tiveram do ouvidor da o Rei D. João V, a quem Castro dirigia o ape-
capitania do Espírito Santo para expulsar os lo. Não obstante, “edos outros que onão são”
jesuítas. De acordo com Castro, os índios aponta para a participação de indivíduos de
estavam pouco satisfeitos com a administra- outras “qualidades”, como negros e demais
ção dos padres. Mesmo tendo sido atendidos mestiços.
com a substituição dos religiosos presen- A sublevação na Aldeia de Reritiba ain-
tes por novos padres, os índios invadiram a da se arrastou por muitos anos. Numa con-
igreja durante uma cerimônia, dizendo “que sulta do Conselho Ultramarino ao Rei D.
tinham ido aos Goitacazes falar ao Ouvi.or João V, sobre um pedido do padre Manoel
daquella Cappn.a Pascoal Ferreira de Veras Siqueira para o devassamento da dita suble-
que ali seachava em correyção [e] publicarão vação em 15 de fevereiro de 1746, o padre
trazer ordens dod.to Ouv.or para expulsar os apelava para o incremento da violência a fim
[...] padres”. Ao assenhorearem-se da aldeia, de sufocar o levante. De acordo com o do-
os índios, segundo Castro, dariam “exemplo,
econtágio dispostos para amesma subleva- 2 CARTA do [Vice-rei e Governador-geral do Estado
do Brasil, André de Melo e Castro], Conde de Galveias, ao
ção os Índios das Aldeyas dos Reys Magos, Rei [D. João V], a informar... , Bahia, 31 de março de 1744.
e Cabo Frio, econsequentemte, os hirão se- CT:AHU-ACL-CU-007, cx. 03 doc. 241.
guindo os mais, e resultarão deste distúrbio 3 Ibidem.
4 Ibdem, “grifo nosso”.
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cumento, deveriam proceder “exterminando de oposição, solicitando punição exemplar
os cabeças do lugar...”. Contudo, o mais in- aos lideres do levante. Mais do que isso, o ma-
teressante no documento é a presença de “... nuscrito mencionado permite um novo olhar
hum Mulato por nome José de Passos Solda- sobre a mobilização da coletividade indíge-
do desertor da Bahia que vive refugiado na na. Ao expulsar os jesuítas e impedir o aces-
aldea dos Guarulhos da administração dos so dos bispos à nova aldeia, o índio Manoel
Padres Capuchos nos Goitacazes...”5, como Lopes e seus seguidores não reconheceram a
um dos cabeças da sublevação, evidenciando autoridade do governo colonial. Essa ação re-
a associação de indivíduos de diversas “qua- flete muito mais do que um ato de rebeldia,
lidades” com os índios. apontando para um importante aspecto das
Quatro anos depois, em carta ao Rei D. experiências vivenciadas por esses indígenas.
João V, datada de 1750, o ouvidor Geral da Liderados por Manoel Lopes, brancos, mesti-
capitania do Espírito Santo, Bernardino Fal- ços e demais indígenas associaram-se contra
cão de Gouveia, descreveu como um índio a ordem vigente, apontando para a existência
de nome Manoel Lopes, estabelecido no sí- de uma complexa rede de sociabilidades den-
tio de Orobo, “há mais de seis annos” exercia tro do universo colonial.
uma espécie de direção sobre outros índios, Na mesma aldeia de Reritiba viveu o
“que separados da Aldeya Reritiba, e admi- índio Miguel Pestana, cujo processo (1737-
nistração dos Religiosos da Compania de 1744) foi estudado por Luiz Mott. Trata-se de
Jesus, estão vivendo debaixo [do seu] man- um indígena acusado de praticar feitiçaria.
do e regência...”. De acordo com o ouvidor, O texto de Mott torna-se muito importante,
Manoel Lopes não permitia a entrada dos não só quando o autor penetra no imaginá-
bispos no sítio de Orobo, o que fez do local, rio popular da demonolatria, mas, sobretu-
“ponto de muitos criminosos desta Comar- do, quando revela a mobilidade social e os
ca; sendo estes [os índios sob as ordens de intercâmbios que o índio Miguel Pestana de-
Manoel Lopes] talvez osque lhes persuadem senvolveu com os brancos e negros. Em seu
aquela dezobed.a”. Não nos resta dúvida de processo, revela que foi “... Capitão do Mato
que Gouveia impregnou sua carta com certo na freguesia de Nossa Senhora da Piedade do
exagero, sobretudo, ao atribuir a responsabi- Inhomirim, no caminho das Minas...”, tendo
lidade aos indígenas agremiados a Manoel também desenvolvido atividades de carpin-
Lopes pelos atos criminosos de indivíduos teiro. Embora a prática de rituais de feitiçaria
anônimos. Para as autoridades coloniais, a fosse mais recorrente entre os negros, Miguel
questão deveria ser resolvida de forma cate- Pestana era acusado de ensinar “mandingas
górica. Necessitava ordenar aos negros”, fascinando-os com seus supos-
V. Mg.e que desta Com.Ca seja extermina- tos poderes demoníacos (Mott 2006). Ao que
do odito Índio Manoel Lopes, e seus prin- parece, a aldeia onde o padre José de Anchie-
cipays cabeças dadita separação, e ruína,
eos mais índios obrigados aviver nasua al- ta pregou a fé até a data de sua morte passou
deya, ou em outra qualquer das muitas; que por várias ebulições no século XVIII.
há neste estado administradas por pessoas O governo – ou às vezes, desgoverno –,
Relligiosas, que lhes sabem alingoa...6 que os padres exerceram sobre os índios não
O que é interessante no documento não se alargou para além da década de cinquenta
é a referência à maneira que o ouvidor do Es- do século XVIII. Em 07 de junho de 1755,
pírito Santo receitava para dar fim a esse tipo um Decreto Régio criando o “Diretório dos
5 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao Rei D.João V Índios” deitou fim na administração tem-
sobre o pedido do Padre Manuel de Siqueira..., Lisboa, 15 de poral que os padres detinham sobre os in-
fevereiro de 1746. CT:AHU-ACL-CU-007, cx. 03 doc. 253.
6 CARTA do Ouvidor-geral da Capitania do Espírito San-
dígenas aldeados no Pará e Maranhão. Três
to, Bernardino Falcão de Gouveia, ao Rei..., Vila da Vitória, anos mais tarde as mesmas determinações
25 de junho de 1750. CT:AHU-ACL-CU-007, cx. 03 doc. estenderam-se a toda a América Portuguesa.
300.
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O então Marquês de Pombal se esforçou para para os índios; o incentivo ao processo de
colocar os interesses da Coroa acima das am- mestiçagem; a transformação progressiva de
bições particulares, numa clara tentativa de muitos aldeamentos em povoações e vilas
sanar o longo embate entre colonos e os re- (Freire & Malheiros 1997: passin).
ligiosos (Chaim 1983: 133). De acordo com Com o fim de deslocar a tutela dos je-
o Decreto, suítas sobre o indígena para um processo
“emancipador” proposto por Pombal, – o
[fica] sendo prohibido por Direito Canônico a
todos os Ecclesiasticos, como Ministros de Deos, qual visava imiscuir econômica e cultural-
e da sua Igreja, misturarem-se no governo se- mente os indígenas entre os luso-brasileiros
cular, que como tal he inteiramente alheio das –, a escravização indígena foi declarada ilegal
obrigações do Sacerdócio; e a que ligando essa
prohibiçao muito mais urgentemente os Paro- e os casamentos entre brancos e índias esti-
cos das Missões de todas as Ordens Religiosas; mulados. Os índios antes aldeados passaram
e contendo muito maior aperto para inhibirem, a ser declarados como administrados, e o
assim os Religiosos da Conpanhia de Jesus...7
esforço de assimilação do índio teria, sobre-
Era a primeira intervenção do período tudo, o escopo de fazer dele um agente po-
pombalino nas obras que os jesuítas empre- voador dos fundos territoriais ainda apenas
endiam nas aldeias. A partir de então, seriam assinalados pela cartografia da época, bem
nomeados pelo Governador e Capitão-gene- como adequá-lo à lógica produtiva de então.
ral de cada capitania os “Diretores” responsá- Não obstante, pretendeu-se atenuar a pre-
veis pela administração dos índios. Dentre as tensa inferioridade indígena, imiscuindo-os
várias medidas contidas nesse Decreto, não aos brancos (Mattos 2004: 389-391).
se pode deixar de mencionar o esforço do Empenhado em centralizar e aperfei-
governo no sentido de suprimir a língua in- çoar a administração colonial, o que pos-
dígena, tornando o idioma português exclu- sibilitaria animar a metrópole portuguesa
sivo e obrigatório em todos os aldeamentos. bastante abalada naquela época9, o governo
Tal medida afirmava o domínio português pombalino tomava várias medidas, dentre
sobre os seus súditos pela imposição da lín- as quais o acirramento do controle sobre as
gua do colonizador. Quatro anos depois, em áreas de mineração. Com o fim de dar maior
03 de setembro de 1759, o Marquês de Pom- proteção à região das minas, a administração
bal expulsa os jesuítas da metrópole e das co- pombalina ainda transferiu a capital da Co-
lônias, confiscando todos os seus bens8. lônia de Salvador para São Sebastião do Rio
Entre as principais diretrizes do Dire- de Janeiro, em 1763.
tório estavam: a proibição do uso nos alde- O encerramento da direção jesuíta so-
amentos de qualquer língua que não fosse o bre os aldeamentos causou um grande abalo
português; a obrigatoriedade de todo aldea- no já há muito agitado sistema organizacio-
mento possuir uma escola, com um mestre nal indígena. Buscando assimilar estes po-
para os meninos e outro para as meninas; vos, o governo incentivou a ampla presença
a proibição da nudez e das habitações cole- de brancos, negros e pardos nos Aldeamen-
tivas; a criação de sobrenomes portugueses tos Régios, “modificando dessa forma sua
7 Decreto Régio de 07 de Junho de 1755 visando a criação
composição e interferindo na própria posse
do Diretório dos Índios em substituição do ensino jesuíta. Ex- da terra” (Freire & Malheiros 1997: passin).
traído de: Ius Lusitaniae. Fontes Históricas de Direito Por- Por outro lado, a ação dos novos Diretores
tuguês. <http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/index.php>
acessado em: 07/02/2008. Ver também: ALMEIDA, Rita
nem sempre foi uma garantia para os índios,
Heloísa de. O Diretório dos Índios: Um Projeto de “Civiliza- 9 Em primeiro de novembro de 1755, um terremoto atin-
ção” no Brasil do Século XVIII. Brasília: UnB, 1997. giu Lisboa, destruindo-a quase completamente e ainda ar-
8 Lei de 03 de setembro de 1759, expulsando os Jesuítas e rasando o litoral de Algarve. Esse episódio gerou grandes
proibindo a comunicação com os mesmos. Extraído de: Ius reflexos nas colônias portuguesas, pois a reedificação da
Lusitaniae. Fontes Históricas de Direito Português. <http:// metrópole contou com recursos advindos dos seus domí-
www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/index.php> acessado em: nios no ultramar. Para tanto, foi criado o Subsídio Voluntá-
07/02/2008. rio com prazo previsto de dez anos.
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visto que muitos colonos eram estimulados a nial. Os indígenas não estavam isentos de
se fixarem entre os indígenas “mansos”. Não serem movidos por interesses particulares,
demorou muito, passaram a usurpar as ter- onde a associação com o branco podia ser
ras dos índios e submetê-los a trabalhos for- percebida como uma forma de lhes render
çados. Diante dessa situação, muitos índios algum tipo de vantagem. Considerando o
revoltaram-se, abandonando os aldeamen- interesse das autoridades coloniais, uma vez
tos. que os indígenas diretores dos aldeamentos
Para sanar esse problema, fazia-se ne- acima mencionados eram de procedências
cessária uma aproximação de forma mais étnicas diferentes, não seria estranho se ima-
habilidosa. A saída encontrada pelas autori- ginássemos que eles poderiam estar sendo
dades baseava-se no relativo restabelecimen- designados, também, com o fim de estabe-
to da autoridade nominal dos Principais de lecer a mediação cultural entre os brancos e
uma tribo. Diferentemente dos aldeamentos os diferentes grupos indígenas envolvidos.
jesuítas, nos Aldeamentos Régios, os indí- Contudo, o que parece mais provável é que,
genas Principais assumiram, – e em vários já que em cada aldeamento referido o Dire-
casos, pode-se dizer –, a direção dessas uni- tor indígena era do mesmo grupo que habi-
dades. Respeitados entre sua parentela, os di- tava a região, serviria este, portanto, como
retores índios prestaram um grande papel no um pacificador dos índios locais.
que tange à aproximação de seu povo com os Conforme Maria Hilda Baqueiro Para-
ditos “civilizados”. íso, a partir do século XIX, existiu “ [...] uma
Em um roteiro de viagem (do Rio de Ja- política indigenista calcada na valorização
neiro ao Espírito Santo) datado de 8 de outu- dos aliados e na demonstração explicita dos
bro de 1802, Manoel José Pires Silva Pontes, benefícios e do bom tratamento que era dis-
sobrinho de Antônio Pires da Silva Pontes pensado àqueles que se dispusessem a parti-
Leme, aponta uma nota estatística referente cipar do processo de conquista e do domínio
à “civilização” dos índios nos aldeamentos de outros grupos indígenas” (Paraíso 2005).
que existiram desde a foz do Rio Casca para Ainda com todos os esforços, a maioria
o Sul. Segundo Manoel Pontes, são: dos aldeamentos não logrou êxito por mui-
to tempo. As constantes usurpações movi-
1.0 O do Pomba Director foi o Cel Silvestre de das pelos colonos e o despreparo de alguns
Nação Coropo;
2.0 O do Porto Sto Antônio Director Cel Manoel diretores que, muitas vezes, empenhavam-
Carlos de Almeida – Pury; -se em sujeitar os índios à própria vontade,
3.0 O de Manoel Burgo. Di.or Constantino José mesmo contra as determinações da Coroa,
Pinto – Pury;
4.0 O do Presidio – diretor Cel Gonçalo – Cro- acabou provocando o malogro desse sistema.
ato; Curioso é que, passados mais de duzentos e
5.0 Abre-Campo – Alf.s Jose Caetano; cinquenta anos, a discussão envolvendo a es-
6.0 Pão de Assucar – idem;
7.0 Villa do Principe – idem (RAPM 1904: 127). colha entre tutela e emancipação dos povos
indígenas ainda se faz presente.
Dos sete aldeamentos indicados, quatro Após contínuos deslocamentos, muitos
eram dirigidos por índios, revelando a asso- indígenas passaram a morar junto às popu-
ciação de indígenas com a administração lações rurais e, no caso da capitania minei-
colonial. Essa situação não pode ser ingenu- ra, urbanas, que há muito se firmaram, não
amente entendida como um mero mecanis- sendo, portanto, simplesmente extermina-
mo de aniquilamento da cultura e identidade dos como aponta a historiografia tradicional.
indígena, mas, por outro lado, mais uma vez Essa análise permite romper “com a ideia
estamos diante de estratégias de sobrevivên- de que tivessem desaparecido e perdido sua
cia, em razão das quais os índios tiveram que identidade ou que tivessem [simplesmente]
valer-se de instrumentos de controle colo- fugido para o interior da colônia no final do
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século XVII e início do XVIII, época do po- dos matos”, como o caso que veremos mais à
voamento do território mineiro” (Resende & frente do índio Miguel da Silva, que fazia in-
Langfur 2007: 8). cursões a partir da capitania do Espírito San-
to rumo ao Vale do Rio Doce (Cunha 1849:
A RESISTÊNCIA INDÍGENA NA FRON- 511-518).
TEIRA Cabe lembrar que os indígenas da re-
gião circunscrita a Minas e Espírito Santo
A partir do século XIX, aceleraram-se não estavam apenas sujeitos a um movimen-
as mudanças nas deliberações da metrópole. to centrípeto, a ondas migratórias que apon-
O período foi marcado por inversões nas po- tavam sempre para o interior dos matos. Na
líticas que diziam respeito às comunicações realidade, tais movimentos comportaram-se
entre as capitanias/províncias, às doações das mais variadas formas, recuando rumo
de sesmarias e outros assuntos referentes à ao interior em algumas áreas, resistindo em
questão agrária e, por conseguinte, à ques- outras e, até mesmo, avançando sobre regi-
tão indígena. Segundo Maria Odila da Silva ões distantes do interior, como nos desloca-
Dias, “preocupou-se a Corte em abrir estra- mentos do grupo Botocudo rumo à capitania
das e, fato quase inédito, em melhorar as co- do Espírito Santo, que se multiplicaram com
municações entre as capitanias, em favorecer o avanço dos mineiros sobre os sertões do
o povoamento e a doação de sesmarias. Ti- Rio Pomba e, posteriormente, rumo ao Rio
nham como fé obsessiva aproveitar as rique- Doce, especialmente após meados do século
zas” (Dias 1968: 105-170). XVIII11. Trata-se, portanto, de uma fronteira
O acesso ao mercado mundial por meio multidirecional, e não de um avanço linear
da navegação do Rio Doce, a ocupação dos que se desloca do Leste para o Oeste. O pro-
espaços conhecidos como sertões e a guer- cesso de alargamento das fronteiras coloniais
ra contra populações indígenas ganharam da América Portuguesa não pode ser com-
destaque na pauta do governo central e dos preendido pela maneira como é vulgarmente
governos de Minas Gerais e Espírito Santo10. representado na cartografia de meados do
Diversos quartéis e destacamentos foram século XVIII e, muito menos, pela caricatu-
estabelecidos a fim de proteger e animar a ra da ideia de “progresso” ainda presente em
navegação dos rios, sobretudo do principal nosso imaginário.
deles, o Rio Doce. Pressionados por todos os lados, vários
Se, por um lado, os quartéis erigidos em grupos indígenas − sobretudo os Botocudo
pontos estratégicos nas matas serviam para − tiveram sua organização territorial e social
afugentar grupos indígenas hostis, princi- desarticulada e, ao evitarem os colonizado-
palmente os Botocudo, por outro, o efetivo res, acabavam entrando em choque uns con-
nestes postos tinha, em muitos casos, a com- tra os outros. Com isso, as guerras intestinas,
posição de indígenas associados aos brancos já existentes em períodos anteriores à pre-
“civilizadores”. Em muitos casos os indíge- sença dos portugueses, ganharam uma nova
nas chegaram a dirigir divisões de “soldados dinâmica. Além das pressões que poderiam
10 Ver: Carta Régia de 02 de dezembro de 1808, Junta
colocar diversas tribos lutando pelo domínio
de Civilização e Conquista dos Índios e Navegação do Rio de um dado território, a aquisição de escra-
Doce, emitida pelo Príncipe Regente D. João ao Governa- vos indígenas capturados nesses conflitos
dor da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro Maria Xa-
vier de Ataíde e Mello. <http://www.brown.edu/Facilities/
também contribuiu para tornar as guerras
John_Carter_Brown_Library/CB/general.html> acessado
em: 10/ 09/2007. Carta Régia de 04 de dezembro de 1816, 11 A ocupação dos sertões do Rio Pomba teve início ain-
ao Governador, e Capitão General da Capitania do Espírito da em meados do XVIII com a ação de Francisco Pires Fe-
Santo dando várias providências sobre a abertura de estra- rinho, que abriu espaço para o trabalho de catequização do
das pelo interior da dita Capitania. < http://www.brown. padre Manoel de Jesus Maria e, posteriormente, a ação de
edu/Facilities/John_Carter_Brown_Library/CB/general. Guido Thomas Marlière que atingiria o Vale do Rio Doce
html> acessado em: 10/ 09/2007. na segunda década do XIX.
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inter-tribais praticamente contínuas. Apro- te a agricultura e dividindo-se em pequenos
veitando-se desses conflitos, os colonizado- grupos de caçadores, seja demonstrando
res buscavam alianças com grupos indígenas uma ferocidade tão terrível que os portu-
que os aceitavam como coligados contra um gueses receavam entrar em seu território”.
inimigo, às vezes, ancestral. Por sua vez, tais Destacaram-se, entre esses sobreviventes os
alianças nem sempre significaram uma pers- indígenas Aimoré (Dean 1996: 79), também
pectiva positiva para essas comunidades. identificados como Botocudo.
Ângelo Alves Carrara, ao tratar da re-
gião que hoje leva o nome de Zona da Mata INTENSIFICAÇÃO DOS ESFORÇOS NA
Mineira, discorre sobre a região de frontei- OCUPAÇÃO DA FRONTEIRA: ESTRU-
ra do Vale do Rio Doce. Segundo o autor TURAS DE COMUNICAÇÃO E CON-
– referindo-se a essa área como sub-região TROLE
norte da Zona da Mata Mineira –, embora já
tivesse sido iniciado o processo de ocupação Prosseguiam os esforços rumo a ocupa-
desde meados do século XVIII, a presença ção dos sertões. Em um ofício, datado de 26
dos indígenas Botocudo vinha atravancan- de fevereiro de 1811, ao Conde de Linhares
do o avanço econômico da região. O Vale do sobre a capitania do Espírito Santo, Francis-
Rio Doce, desse modo, permaneceu numa co Manoel da Cunha lamentava a morte do
situação periférica; era uma área de econo- diligente Silva Pontes e pedia providências
mia praticamente inexpressiva para Minas para o desenvolvimento da navegação no
Gerais até 1880. Para evidenciar isso, Carra- Rio Doce, referindo-se a esse rio como “Nilo
ra assinala: “Durante boa parte da Primeira Brasiliense”. Cunha assinalava um verdadeiro
República esta sub-região norte continuou retrocesso econômico em função do descaso
recebendo verbas estaduais para coloniza- com a navegação do rio naquele momento e
ção indígena” (Carrara 1993: 57). Embora demonstrava um imenso descontentamento
do lado da capitania/província mineira, Gui- com o governo Tovar (1804-1811). Também,
do Thomas Marlière tivesse desempenhado atribuía ao pouco empenho das divisões que
grande trabalho no que tange à incursão a se encontravam ao longo do rio o êxito dos
essas áreas desde 1819, a pacificação dos in- ataques dos Botocudo, que estavam a “atacar
dígenas Botocudo ainda vinha se mostrando os lugares mais vizinhos da Vila da Vitória
tarefa por demais penosa. O caráter nômade [...], chegando a última até mesmo Carapi-
desses indígenas dificultava a instalação de na, distante duas léguas da vila capital, onde
aldeamentos e, por conseguinte, a sua paci- se acham refugiados os habitantes daqueles
ficação. sítios”.
Outro fator que explica a irredutibilida- Para Manoel da Cunha, as estradas cha-
de dos indígenas do grupo Botocudo advém madas intermédias, construídas ao longo do
do temor que estes tinham dos surtos epi- sertão com despesas da Real Fazenda, quan-
dêmicos que devastaram vários aldeamen- do desguarnecidas, não tinham serventia aos
tos, chegando até mesmo a se propagar nas propósitos do governo, ao contrário, torna-
aldeias de formação espontânea no interior vam-se “o meio mais pronto e eficaz para que
dos matos, quando índios reduzidos “escapa- o gentio facilmente fizesse as suas incursões,
vam de volta para suas famílias”. Os índios mostrando-se-lhe como com o dedo o trilho
do litoral foram as principais vítimas, ocor- que deviam seguir”. Ele ainda justificou o so-
rendo grandes devastações no Espírito Santo, bredito expondo o fato de que
desde os primeiros anos de colonização. De
[...] sucedeu no Piraquê-Mirim, onde foram
acordo com Warren Dean, os poucos sobre- devorados alguns índios que por ali residiam e
viventes evitavam todo tipo de contato com laboravam a terra, logo que nesse lugar se abriu
os europeus, “seja abandonando inteiramen- há mais de dois anos uma das ditas estradas:
prova-se ainda mais pela conduta de um chefe
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das divisões chamado Miguel da Silva, índio que a abertura de estradas nas áreas de mata
de nação, que marchando pelo interior do ser-
tão, e devendo sair defronte de Linhares, ao sul
não ofereceu ao indígena apenas a “desestru-
do rio Doce, tendo ao mesmo tempo ordem de turação do seu mundo”. Pelo contrário, tais
abrir uma das sobreditas estradas pelas cabecei- estradas configuravam-se, literalmente, em
ras da lagoa do Campo, foi atacado na sua reta-
guarda, vendo-se na necessidade de fazer fogo
vias de mão-dupla para as investidas, tanto
avulso toda a noite, o que dantes não acontecia dos brancos, quanto dos índios. Não obstan-
(Cunha 1849: 511-518)12. te, os deslocamentos pelas estradas que iam
cortando os matos também serviram, como
Mais a frente, sugeria Cunha: “Se o veremos, não só para levar a guerra, mas
governo atual aumentasse de distancia em também para propiciar associações entre
distancia pequenas povoações, certamente brancos e índios. Esse registro documental
a horda botocuda estaria mais alongada, e a descortina uma situação muito interessan-
domesticação das tribos Pataxo e Manaxo se- te, na qual dispositivos coloniais de controle
ria de grande vantagem para atraí-los.” Indi- eram também utilizados pelos indígenas em
cava assim a possibilidade de pacificação os seu favor.
Botocudo do vale do Rio Doce, ainda resis- Com a ascensão de Francisco Alberto
tentes ao avanço colonizador (Cunha 1849: Rubim ao governo do Espírito Santo (1812-
511-518)13. Como bem salientaram Chaves e 1819), aconteceram os esforços de maior vul-
Langfur, tanto indígenas quanto colonos não to no sentido de alargar a fronteira espírito-
agiram apenas em defesa própria, -santense rumo às áreas de mata. E, claro,
não se pode esquecer que a conjuntura era
principalmente no caso dos Puri e dos Botocu-
do, eles repetidamente iniciaram ataques em ter-
propícia. Como já apontamos, nesse contex-
ritórios recentemente ocupados e, em alguns ca- to a ocupação dos fundos territoriais era al-
sos, até em territórios considerados firmemente tamente incentivada pelo Príncipe Regente.
controlados pelo poder colonial. Os índios, em
suma, eram ao mesmo tempo vitimas e perpe-
Por Carta Régia datada de 17 de janei-
tradores da violência (Resende & Langfur 2007: ro de 1814, o governo espírito-santense ficou
10). autorizado a conceder sesmarias. Em conse-
quência, as concedeu em número de cento e
Concordamos com Chaves e Langfur, sessenta e quatro em toda a capitania. Des-
é certo, sobretudo quando eles tratam da tas, oitenta e duas estavam na região do Rio
importância das bandeiras, mesmo que de Doce, revelando o interesse do governo do
forma indireta, no processo de resistência Espírito Santo em ocupar a região. No en-
indígena. Não obstante, mais uma vez, subli- tanto, até o ano de 1828 apenas duas foram
nhamos que as pressões exercidas sobre os efetivamente ocupadas e cultivadas (Vascon-
índios os colocavam, em muitos casos po- cellos, 1828). Os Botocudo rechaçavam os
demos concluir, em choque com núcleos de poucos colonos que se atreveram a embre-
colonização. nhar em suas paragens, tornando essa fron-
Analisando a correspondência de Fran- teira tão penosa para os espírito-santenses
cisco Manoel da Cunha, podemos concluir quanto para os que se aventuravam partindo
12 Em outro documento, datado de 23 de Junho de 1811,
de Minas Gerais. Tome-se como exemplo as
Francisco Manoel da Cunha levava informações ao então impressões de William John Steains em sua
ministro de Estado Antonio de Araújo Azevedo sobre “... exploração ao Rio Doce em 1885:
os obstáculos que dificultam a intentada navegação...” do
Rio Doce. CUNHA, Francisco Manoel da. Informação que Não existe em todo o Brasil um território mais
Francisco Manoel da Cunha deu sobre a província, então ca- rico que aquele situado entre os rios Mucuri e
pitania, do Espírito Santo, ao ministro de Estado Antônio de Doce, e todavia aquilo é, metaforicamente falan-
Araújo Azevedo, 23/6/1811. In Revista do Instituto Históri- do, um deserto. Quase 25.000 milhas quadradas
co e Geográfico do Brasil. Rio de Janeiro, VI, 1844: 461-466. de terra rica e habitável jazem ali inaproveitadas
“grifo nosso” devido ao pavor que aos moradores do Espírito
13 Os índios Pataxo e Manaxo pertencem ao grupo Jê e Santo, como também aos de Minas Gerais, os ín-
também foram chamados de Botocudo.
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dios inspiram (Steains 1984: 109). do matas e montanhas da cachoeira da San-
ta Maria a Vila Rica e até Souzel [onde] se
Em função da forte resistência indíge- levantaram quartéis, ou ranchos de três em
na, o território hoje correspondente ao Vale três léguas” (Rubim 1844: 461-466).
do Rio Doce teve uma população bastante Do rio Santa Maria, em Vitória, até o
rarefeita, o que se manteve até as primeiras rio Pardo na margem oriental da Serra-Ge-
décadas do século passado. Segundo a ob- ral, ponto divisor entre as capitanias do Espí-
servação de um padre salesiano em visita rito Santo e Minas Gerais15, foram estabeleci-
à região, Aqui em Minas não passaram de dos “os quartéis de Braganca, Pinhal, Serpa,
10 mil os que habitaram as faldas da serra Ourem, Barcellos, Villa Viçosa, Monforte e
dos Aymores, a bacia do Mucury, as mattas Sausel, de distância em distância de três em
do Baixo-Rio Doce (no Cuyethe, Laranjei- três léguas, para a guarda, segurança e co-
ras, Manhuassu) e do Baixo-Jequitinhonha modidade dos viajantes, e para facilidade das
(RAPM 1908: 169). recíprocas communicações commerciaes...16”
Ainda no ano de 1814, em um acordo Embora considerada a Estrada Nova
com o governo da capitania de Minas Ge- do Rubim uma grande obra daquele tempo,
rais, o governador Rubim empenhou-se em fruto das despesas da Real Fazenda e, sobre-
“abrir uma estrada para Vila Rica a partir tudo, das vidas de muitos indígenas – tanto
da cachoeira do rio Santa Maria na Vitória” daqueles que possivelmente trabalharam em
(Lima 1904: 13-14). Tratava-se da Estrada sua construção, quando dos que ficaram no
Nova do Rubim, que ligava Mariana a Vitó- seu caminho –, ela não se conservou por
ria. Mais tarde, por ocasião da independên- duas décadas. Em função dos baixos resul-
cia, a estrada ficaria conhecida por Estrada tados comerciais alcançados e de uma série
de São Pedro de Alcântara, em homenagem de obstáculos em seu curso – dentre esses, a
ao Imperador. resistência de grupos indígenas –, os quartéis
Em Carta Régia datada de 181614, Dom ao longo da estrada foram desativados em
João VI determinava ao governador do Es- 1830, quando ela já não era tão frequentada.
pírito Santo, Alberto Rubim, as diretrizes re- De acordo com a Carta Régia de 1816
ferentes à viação entre os dois governos. De ao governador espírito-santense, a estrada,
acordo com as determinações régias, cabia às que partia de Vitória, chegara à área próxima
respectivas capitanias cuidar da competên- aos limites da capitania mineira. Contudo, o
cia da abertura da estrada em sua jurisdição, encarregado da estrada por parte da então
sendo então essa via de comunicação fruto província do Espírito Santo, Ignácio Pereira
de esforços de ambas as capitanias. Seguia a Duarte Carneiro, ao atingir a área sob juris-
lógica de aproveitamento do solo − explora- dição mineira, se deparou com uma estrada
ção agrícola, prospecção mineral, extração intransitável, “fechada de matto e paus que
de madeira, etc. −, proteção dos colonos e com o tempo tem cahido”. Acontecia que a
viajantes e, sobretudo, da tentativa de paci- estrada havia sido abandonada por parte de
ficação (escravização ou extermínio) de gru- Minas, pois, segundo Guido Thomaz Marlie-
pos indígenas resistentes ao avanço coloni-
zador.
15 Ponto divisor estabelecido pelo Auto de Demarcação
Nas palavras do governador espírito- de 1800.
-santense, [tinha] “essa estrada setenta e uma 16 Carta Régia de 04 de dezembro de 1816, ao Governa-
léguas e foi feita de machado e foice, cortan- dor, e Capitão General da Capitania do Espírito Santo dan-
do várias providências sobre a abertura de estradas pelo in-
14 Carta Régia de 04 de dezembro de 1816, ao Governa- terior da dita Capitania. < http://www.brown.edu/Facilities/
dor, e Capitão General da Capitania do Espírito Santo dan- John_Carter_Brown_Library/CB/general.html> acessado
do várias providências sobre a abertura de estradas pelo in- em: 10/ 09/2007. No Dicionário topográfico da província
terior da dita Capitania. < http://www.brown.edu/Facilities/ do Espírito Santo (citado neste texto), também de autoria
John_Carter_Brown_Library/CB/general.html> acessado de Rubim, são apontados mais quatro quartéis na referida
em: 10/ 09/2007. estrada.
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re17, escrevendo a Saint-Hilaire, os mineiros naquele contexto, e, sobretudo, do assédio
não conseguiam vender “seus animais e [...] por parte de colonos que os submetiam ao
outros gêneros que transportavam”, tornan- trabalho. O Ministro e Secretário de Estado
do o comércio com os habitantes de Vitória dos Negócios do Reino, Thomaz Antonio de
desanimador (Lima 1904: 21-22). Villa Nova Portugal, em 1830, dando respos-
Por outro lado, a viação entre Minas ta à informação de Duarte Carneiro sobre a
Gerais e Rio de Janeiro mostrava-se mais es- aproximação dos Puri, sugeria que fossem
timulante desde a segunda metade do XVIII. beneficiados “o mais que puder os índios e
Ao se estabelecer na freguesia do Presídio18, as suas aldeiações.” Esses Puri que vinham
o padre Manoel catequizou e “civilizou” mui- “deixando os quartéis das divisões de Minas”
tos dos índios que ali se encontravam19. Tam- certamente seriam bem aproveitados pelos
bém se esforçou para que se abrissem cami- espírito-santenses, sobretudo como agricul-
nhos ligando o Arraial do Presídio ao Rio tores e soldados nos quartéis que se distan-
Pomba e “... através dele ao mar, na foz do ciavam da sede da província (Lima 1904: 74-
Paraíba do Sul”. Essa via se mostrou impor- 75).
tante, pois era através dela que se escoavam Outro tipo de deslocamento de indíge-
os poucos produtos da nascente freguesia nas de Minas Gerais para o Espírito Santo, já
rumo aos empórios comerciais fluminen- na segunda metade do século XIX, consistia
ses. Também por esse caminho térreo-fluvial na condução compulsória dos mesmos. Du-
entravam mercadorias advindas do litoral, rante a construção da estrada que ligava Ma-
como “[...] sal, tecidos, pequenas ferramen- nhuaçu à província espírito-santense, vários
tas, bebidas, carne salgada, medicamentos e indígenas que se situavam em Minas Gerais
quinquilharias” (José 1982: 39-40). foram forçados a se estabelecer em solo capi-
xaba – pelo menos é o que diziam as autori-
A FRONTEIRA ENTRE O ESPÍRITO dades mineiras. Tal situação gerou embates
SANTO E MINAS GERAIS: entre o governo de ambas as províncias, pois,
POSSIBILIDADES NA EXPLORAÇÃO estes indígenas seriam aliados essenciais na
DE RECURSOS NATURAIS E USO DA manutenção dos territórios ocupados, como
MÃO-DE-OBRA INDÍGENA interpretes e no auxílio à catequese e civili-
zação dos índios errantes da região. Embora
Como havia acautelado Francisco Ma- existisse um discurso em defesa dos índios,
nuel da Cunha, em carta já mencionada, a – salienta Paraíso –, pelo menos no caso da-
estrada tornava-se uma possível via de aces- queles de Manhuaçu, os responsáveis pela
so de índios do interior ao litoral espírito- sua exploração eram os construtores das es-
-santense. Contudo, alguns indígenas que tradas, ou seja, a administração provincial
se deslocavam por aquela via não tinham tanto mineira quanto capixaba.
intenção de promover ataques. Agindo de Essa região circunscrita entre Minas
modo bem diferente, famílias de índios Puri Gerais e Espírito Santo foi foco de sérios
buscaram os quartéis instalados ao longo da embates envolvendo os Diretores dos alde-
estrada, desejando fixar suas aldeias ao lado amentos indígenas que, sedentos pelas pre-
dessas unidades. Provavelmente estavam à ciosas drogas do sertão conhecidas como
procura de alimentos e proteção contra o poaias, não respeitavam os frágeis limites das
ataque dos Coroado, seus conhecidos rivais respectivas províncias, buscando índios com
o fim de utilizá-los na cata da referida raiz.
17 Marlière era então Diretor Geral dos Índios e respon- Essa atividade que desde meados do
sável pela fundação de aldeamentos para índios Puri nos
sertões do Muriaé. Também inspecionou o caminho do
XVIII passou a ocupar papel central no pro-
lado mineiro. cesso de redução indígena e na conseguin-
18 Hoje Visconde Do Rio Branco. te ocupação de suas terras em Minas Gerais
19 Principalmente os Coroado e Coropó.
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começava a se destacar também no Espírito A coleta da poaia era tarefa quase que
Santo. A extração de poaia foi observada em exclusiva dos índios, que a permutavam
1828, pelo então presidente da província do com o branco, geralmente por aguarden-
Espírito Santo, Inácio Acioli de Vasconcellos. te. Na província mineira, de acordo com o
Na Memória estatística da província do Espí- Mapa dos Aldeamentos Indígenas em Minas
rito Santo, Vasconcellos ponderava: “A poaia Gerais feito em 1828, os Puri eram os úni-
há pouco se emprega neste ramo [de expor- cos índios aldeados que realizavam a coleta
tação] e se pode exportar muito mais” (Vas- de poaia (RAPM 1907: 498). Sabendo disso,
concellos 1828). as autoridades espírito-santenses poderiam
Descrevendo as matas da província, empregar tais indígenas nesta atividade que
Vasconcellos julgava que, com exceção da Fa- prometia bons lucros.
zenda de Muribeca, no Rio Itabapoana, que Se os Puri, ao final, mostravam-se afei-
possuía nove léguas de costa de mar e apro- tos à associação com os brancos, o mesmo
ximadamente seis de largo; do Campo da vila não pode ser dito sobre os Botocudo.
do Espírito Santo, (atual Vila Velha) possuin- Na tentativa de estabelecer aproxima-
do um baldio de duas léguas de extensão em ção com os indígenas Botocudo, o governo
comprimento e uma de largura usado para a espírito-santense construiu, em 1824, o al-
criação; Carapina, com um baldio de três lé- deamento de São Pedro de Alcântara. Lo-
guas por uma de largura também usado para calizado na “margem direita do rio Doce,
a criação; do Rio Doce ao São Mateus, com [continha] três léguas de costa de mar e [era]
um Baldio de vinte léguas, sendo que nenhu- compreendido pelo lugar Comboios e rio
ma é explorada na agricultura ou criação; e Doce”. Em aldeamento estabelecido para a
o Campo do Riacho, possuindo um baldio “residência dos índios botocudos que se iam
de duas léguas quadradas, de que se valem domesticando,” não obteve sucesso. Os indí-
os índios para suas plantações e agricultura, genas deixaram o lugar deslocando-se para
“quase tudo o mais são matas virgens, e ri- Linhares e posteriormente para o Porto de
quíssimas em madeiras de toda a qualidade Souza, nos limites com a província mineira,
e de outros mil produtos incógnitos até esta “donde se retiram e tornam a aparecer quan-
época, e só habitadas por feras e selvagens” do querem, e se destruíram as suas casas”
(Vasconcellos 1828). (Vasconcellos 1828), confirmando a grande
Ao apresentar as potenciais riquezas relutância que estes índios tinham com rela-
ocultas nos sertões do Espírito Santo, Vas- ção a sua associação com os brancos.
concellos deu demasiada ênfase à poaia, su- Mesmo com o incentivo da Coroa e
gerindo que essa droga do sertão pudesse dos esforços de Silva Pontes em tornar o Rio
propiciar muitas divisas para a então provín- Doce navegável e de Rubim, em ampliar as
cia do Espírito Santo. comunicações entre Minas e Vitória, o Espí-
Ainda de acordo com o trabalho de rito Santo ainda permanecia circunscrito ao
Vasconcellos, o volume de poaia exportado litoral, tendo poucos povoados e vilas que se
nos anos de 1826 e 1827 foi de cinquenta ar- afastavam da orla marítima. A efetiva ocupa-
robas para cada ano mencionado, sendo que ção do seu interior só se daria a partir da se-
o preço médio (em arrobas) para esse pro- gunda metade do século XIX, com a progres-
duto era de 30$000 (trinta mil réis), contra siva introdução de imigrantes estrangeiros20.
1$720 (mil setecentos e vinte réis) alcançado Ao que parece os atrativos oferecidos
pelo café (Vasconcellos 1828). Sem dúvida,
a exploração de poaia apresentava-se como 20 Sobre aspectos importantes da ocupação do interior do
Espírito Santo na segunda metade do século XIX ver: CA-
uma atividade bastante promissora, sobre- MILO, Tiago de Araújo. 2006. Entre febres e feras, o imigran-
tudo devido ao alto preço negociado nas ex- te vai à floresta: a saúde e o meio ambiente na formação da
portações. colônia de Santa Leopoldina-ES – 1856-1900. Dissertação
de Mestrado em História, Universidade Federal de Viçosa.
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pelo Espírito Santo não foram capazes de se- contra índios hostis e animais ferozes. Desse
duzir significativo número de colonos. Mes- modo, o governo se esforçava para colocar
mo com os esforços do governo imperial, a América Portuguesa na rota do comércio
que assumiu grande parte dos encargos com internacional e, nesse contexto, o litoral es-
a imigração e colonização, o Espírito Santo pírito-santense ocupava um papel de suma
permanecia fracamente povoado. importância.
No segundo quartel do século XIX, Para a efetivação da posse e domínio
Saint-Adolphe avaliava que, dos espaços coloniais e sua respectiva ex-
ploração, era necessário “humanizar”, ou
A província do Espírito Santo pode dizer-se “civilizar” − como se lê frequentemente nos
que so é povoada na vizinhança da costa, documentos da época − os indígenas “selva-
onde se acham a cidade da Victoria, e as
villas de Almeida ou Reis Magos, de Barra gens”. O corte e extração das tão preciosas
Secca, Benevente, [Anchieta], Espírito San- madeiras, a agricultura, a coleta de drogas
to, Guarapari, Itapemirim e S. Matheus. No do sertão, os intérpretes – conhecidos como
interior se vem as novas villas de Linhares, línguas – e, principalmente, a proteção con-
Serra e Vianna, creadas pela assembléia le- tra índios que faziam oposição ao avanço
gislativa provincial, as quais por sua impor-
tância podem se considerar como pequenas dos brancos só poderiam ter resultado com
povoações (Saint-Adolphe 1845: 351). o apoio de índios aliados. Além do mais, o
princípio do povoamento de várias localida-
Embora o governo de Rubim tenha sido des foi muitas vezes engrossado pela compo-
uma referência da fase próspera no Espírito sição de indígenas, chegando estes, em mui-
Santo, já era tarde “para o alargamento alem tos casos, a representarem a grande maioria,
da serra geral, [...] o auto de medição de 1800 como nos importantes aldeamentos que se
e a carta regia de 1816, que o confirmou, ha- estabeleceram e constituíram-se em vilas. Ao
viam lançado a barreira legal a conquista tratar dos primeiros momentos da ocupação
permitida pela carta de doação de 1534”21. de Minas Gerais, Renato Venâncio diz que,
Com esse tímido avanço rumo às áreas
Dada a ausência de caminhos, os cabras
interioranas, ao lado de alguns quartéis que da terra deviam percorrer as íngremes tri-
surgiram nos sertões, nasceram povoações lhas que uniam as lavras ao núcleo urbano,
que, em certos casos, se firmaram, consti- transportando mercadorias essenciais para
tuindo vilas. Em outros, o fracasso econômi- a sobrevivência do garimpo. A caça, a pesca
co e/ou o confronto com grupos indígenas e a coleta, em virtude da irregularidade das
linhas de abastecimento, também parecem
obrigou os colonos a recuarem para áreas ter tido bastante importância nos primeiros
livres da resistência indígena. Estes quartéis tempos da colonização mineira. Enquanto
tinham como fim ampliar, ou pelo menos os homens encarregavam-se destas tarefas,
assegurar os pontos alcançados no proces- as mulheres ocupavam-se do artesanato do-
so de expansão da fronteira agrícola; servir méstico ou então trabalhavam na agricultu-
ra de subsistência (Venâncio 1997).
em alguns casos como unidades aduaneiras
e facilitar a dinâmica econômica entre as É provável que nenhum avanço pudesse
capitanias, dando proteção aos transeuntes ser feito sem a contribuição de alguns grupos
21 Sobre questões de limite entre as províncias de Minas
indígenas. O percentual de índios em relação
Gerais e Espírito Santo ver: LIMA, Augusto de. Memória aos brancos, sobretudo ao se tratar de arre-
Histórica e documentada sobre a questão dos limites entre os gimentações militares, era esmagador, che-
estados de Minas Gerais e Espírito Santo. RAPM. Volume IX;
fascículos 1,2; ano 1904. p. 17; Carta Régia de 04 de dezem-
gando a corresponder a dez vezes ou mais ao
bro de 1816, Carta Régia ao Governador, e Capitão General número de brancos.
da Capitania de Minas Gerais dando várias providências Tomemos como exemplo o Mapa da
sobre a abertura de estradas para o interior da dita Capita-
nia. < http://www.brown.edu/Facilities/John_Carter_Bro-
população da província de Espírito Santo para
wn_Library/CB/general.html> acessado em: 10/ 09/2007. o ano de 1824, que registra na Vila de Nova
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Almeida um total de 3011 índios, enquanto posição econômica logo iria se tornar peri-
o restante da população, somados brancos férica. Diante de tal quadro pode-se pergun-
pardos e pretos, incluindo os cativos, era de tar: por que não se desenvolveu, a exemplo
516 “almas”. Em Benevende [Anchieta], dos de São Paulo, uma sociedade composta por
2007 habitantes, 848 eram índios. Na aldeia mamelucos, dotados das qualidades necessá-
de Linhares, dos 532 habitantes, 261 eram in- rias para o esquadrinhamento, a prospecção
dígenas. Já no censo de 1827 − salvo algumas e devassamento de suas fronteiras subjacen-
possíveis irregularidades que o próprio Vas- tes? Ora, São Vicente era um entreposto que
concellos desconfiava ofuscar as observações atendia os navios vindos da Europa desde o
−, nota-se uma emigração da população, so- século XVI. Os primeiros europeus chegados
bretudo entre os índios e pretos forros, que ali haviam deixado uma geração de mestiços
diminuíram o seu número, “podendo-se que serviu de apoio 30 anos depois22. Tais
atribuir quanto aos índios ao recrutamento mestiços foram fundamentais para a resis-
para a Força de Terra, Arsenal e Marinha da tência dos portugueses posteriores a Martim
Corte para onde se têm remetido por vezes Afonso de Souza. Como já visto, de maneira
não poucos” (Vasconcellos 1828). distinta do ocorrido na capitania paulista, os
Essa observação de Vasconcellos é mui- espírito-santenses foram desde o início acos-
to esclarecedora no que tange à verificação sados por ferozes ataques indígenas, tendo
de um aspecto importante da história indí- sua população reduzida e a sua economia
gena. No que diz respeito às arregimentações emperrada. Aqui cabe mais uma pergunta:
militares, os indígenas não foram utilizados por que aqueles primeiros moradores de São
como soldados apenas em alguns destaca- Vicente não foram atacados pelos indígenas
mentos ou na composição de bandeiras e como os do Espírito Santo? Enquanto os pri-
armações durante o período colonial. Foram meiros habitantes da região que viria a ser
também largamente utilizados pelas forças São Vicente eram uns poucos, não causan-
militares do então Império do Brasil. do nenhum dano à organização social tribal,
A historiografia do Espírito Santo, du-
22 “É preciso saber que esses paulistas são um amontoado
rante muito tempo, atribuiu aos povos in- ou mistura de todos os povos e raça...” Relato de Guillaume
dígenas boa parte do malogro (se é que este François de Parscau durante a invasão francesa de 1711, In:
existiu) na ampliação das fronteiras da ca- FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de
Janeiro Colonial: antologia de textos (1582-1808). Rio de
pitania. Não desconsiderando os diversos Janeiro: José Olympio, 2000, p. 135; “Estes primeiros colo-
fatores de ordem econômica e política subli- nos que ficaram no Brasil, degradados, desertores, náufragos,
nhados neste texto, pode-se dizer que o ele- subordinam-se a dois tipos extremos: uns sucumbiram ao
meio, ao ponto de furar lábios e orelhas, matar os prisioneiros
mento indígena ocupou, sim, grande impor- segundo os ritos, e cevar-se em sua carne; outros insurgiram-
tância na dinâmica da fronteira do Espírito -se contra ele e impuseram sua vontade, como o bacharel de
Santo. Contudo, isso não quer dizer que os Cananéia, que se obrigou a fornecer quatrocentos escravos a
Diogo Garcia, companheiro de Solis, um dos descobridores
indígenas foram apenas um entrave. Muitos do Prata”. ABREU, João Capistrano de. 2000. Capítulos de
deles, associando-se aos brancos, foram de História Colonial (1500-1800). Belo Horizonte, Itatiaia, p.
suma importância para o domínio e susten- 40; Warren Dean, ao tratar sobre a necessidade da aquisi-
ção de cativos indígenas em meio à grande depopulação dos
tação dos espaços coloniais. mesmos nas proximidades de São Paulo e São Vicente em
Embora descrita por Capistrano de meados de 1580, aponta a intensificação das atividades bé-
Abreu como uma capitania que ocupava si- licas: “Os próprios colonos, nesse ínterim, haviam aprendido
a fazer guerra ofensiva na floresta quando sua segunda gera-
tuação privilegiada frente às demais (Abreu ção nativa atingiu a maturidade”. Após mencionar a adoção
2000: 54), parece que isso não foi suficiente dos modos indígenas pelos europeus, Dean ponderava: “...
para despertar o interesse dos colonos em se os proprietários de terra em São Paulo referiam-se aos nativos
que retinham para eles a posse não como rendeiros mas como
fixarem no Espírito Santo, sobretudo quando frecheiros (sic)”. DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e
estavam quase sempre debaixo de investidas a devastação da Mata Atlântica brasileira. Trad. Cid Kni-
dos indígenas que habitavam a região. Sua pel Moreira. Revisão técnica José Augusto Drummond. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 75, 85,86, 105.
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o Espírito Santo recebeu habitantes que se- de açúcar na Zona da Mata, o comércio en-
guiam uma lógica de exploração de maior volvendo aguardente e raízes medicinais
vulto determinada a partir da Carta de Doa- foi acelerado. O introdutor da nova prática
ção das Capitanias. Pode-se inferir que essas agrícola, Padre Campos, tinha originalmen-
diferenças no padrão de ocupação da terra te como intenção oferecer aos índios aldea-
foram decisivas no que diz respeito às possi- dos e demais habitantes daquelas áreas mais
bilidades de alianças entre índios e europeus uma atividade agrícola e comercial. Campos
e, por conseguinte, no posterior desenvolvi- preocupou-se em obter “o açúcar, então sob
mento do perfil de sua população. a forma de rapadura (...) que custava elevado
preço quando trazido do distante litoral flu-
O AVANÇO NA ZONA DA MATA: IN- minense” (José 1982: 35).
TRODUÇÃO DA AGUARDENTE NA Contudo, os adventícios logo percebe-
MATA DA POAIA ram que a aguardente era um produto bem
mais vantajoso do que o açúcar grosseiro.
A fim de obter trabalho, favores e, so- Diversos engenhos responsáveis pela produ-
bretudo, aproximarem-se do indígena da ção da aguardente surgidos em Minas Gerais
Zona da Mata – a exemplo de outras áreas desdobraram suas atividades em direção às
há muito verificadas na historiografia – fo- áreas de fronteira da capitania. Para se ter
ram empregadas várias bugigangas como uma ideia da importância que ocupou a fa-
“presentes” e, depois, também na forma de bricação de aguardente em Minas Gerais nas
permuta. Contudo, o produto que parece ter últimas décadas do século XVIII e nas pri-
despertado maior interesse entre aqueles foi meiras do século seguinte, basta sublinhar
a aguardente. Por isso essa bebida tornou-se a existência de quarenta engenhos de cana
o principal artigo de que os comerciantes de somente na Freguesia de São João Batista do
poaia valeram-se para obter suas procuradas Presídio23, Termo da cidade de Mariana, no
raízes. ano de 1822 – área em que se localizava um
A prática do escambo era extremamen- importante aldeamento indígena24. Nesses
te necessária aos adventícios e, às vezes, de- engenhos encontravam-se 245 escravos e 65
sejada pelos indígenas. Porém, quando estes empregados. Embora não sejam descritas as
se viam supridos das quinquilharias, de ar- “qualidades” desses escravos e empregados,
tigos que tinham uma vida útil um pouco é muito provável que entre eles existissem
mais longa, sem dúvida, o escambo deixava índios, sobretudo os que passaram por um
de exercer poder sobre a sociedade indíge- processo de sedentarização. Para Ângelo Al-
na, pois a demanda de produtos provenien- ves Carrara,
tes dos adventícios era bem limitada. Com
a introdução da aguardente, o processo de A convivência entre as duas culturas pro-
moveu principalmente a sedentarização
permuta sofreu uma profunda alteração. Di- dos índios. Em troca de roupas, rapadura,
ferente das outras quinquilharias, a aguar- feijão, farinha, açúcar, machados, facas,
dente não se avolumava e, ao mesmo tempo, pregos, pólvora, chumbo, os índios se fixa-
gerava um vínculo de dependência social. ram, receberam terras, e dispuseram delas
Saint-Hilaire relatou a reação dos índios da (...) Ao lado daqueles ex-índios que de al-
gum modo conseguiram sedentarizar-se,
Zona da Mata que, diante da possibilidade aculturando-se, permaneceram existindo
de adquirir a aguardente, se dispuseram a índios semi-nômades, que se tornariam
dançar: “...e para levá-los a isso foi necessário agregados das fazendas, caboclos com per-
prometer-lhes aguardente, licor que já lhes missão de terem sua morada nas terras dos
fora distribuída ampla ração” (Saint-Hilaire proprietários rurais... (Carrara 1993: 51)
1975: 31). 23 Atual Visconde do Rio Branco.
Com a introdução do cultivo da cana 24 Lista de Habitantes do Presídio e Ubá – 1819,
AHCMM, códice: 398.
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Apesar de Carrara, nesse trecho, não fa- de cedo passou a ser um produto de impor-
zer menção à aguardente como um produto tância em Minas Gerais, sobretudo nas áreas
largamente oferecido ao indígena, isso fica próximas e naquelas que compreendiam a
evidente nas inúmeras reclamações de Gui- Zona da Mata, refutando a ideia de que esta
do Thomaz Marlière sobre a oferta de aguar- bebida ocupava papel secundário dentro dos
dente ao indígena. Segue uma reflexão de engenhos de cana.
Marlière sobre os efeitos maléficos da refe- Dentre as diversas drogas do sertão, a
rida bebida, datada de 07 de março de 1826: poaia ou ipecacuanha tornara-se a mais im-
portante no quadro de exportações voltadas
Hé a peste das Aldeias, [a aguardente] o para o comércio exterior. No início do século
meio infallivel de introduzir os Índios a
todo equaq.r exesso de se matarem huns aos XIX, o Rio de Janeiro exportava aproximada-
outros q,do estão inebriados, e de perderem mente quatro toneladas dessa raiz por ano.
o resp.to e subordinação a q.m os governa. Contudo, a técnica de coleta empregada pe-
São immensos os exemplos dos funestos los “caboclos” na capitania fluminense aca-
eff.tos desta perniciosa droga. — Os Índios bou por eliminar “as ocorrências facilmen-
a troca della dão mulheres, e filhas aos in-
dignos Contractadores. (...) p.r experiência te encontradas da planta” no seu território.
própria, visto 30 Indios Jornaleiros meus, Com isso, a procura pela poaia passou a se
largarem o Serviço p.a irem beber agoar. concentrar em Minas Gerais (Dean 1996:
te em Caza de hum viz.º, q.’ a vendia clan- 147).
destiname.te, isto não sem prejuízo delles, Paralela à ação dos missionários que
e meu; p.r q.’ não tendo dinhr.º, vendem p.r
beber as ferramentas próprias, e as alheias, adentraram na Zona da Mata, e até mesmo
o q.’ tudo se lhes aceita, e se esconde. Em antes dela, comerciantes de poaia ruma-
os Arraiaes frequentados pelos Índios natu- vam para o referido local, embaraçando o
raes da paragem como Prezidio de S. João trabalho, tanto dos catequizadores, quanto
Bap.ta, e Pomba, duas Sodomas, q.’ vivem daqueles que visavam “civilizar” os índios.
de roubos feitos aos Índios, q.’ p.a satisfa-
zer aos preceitos da Religião, em os dias Na fase do devassamento, os indígenas, es-
festivos bem vestidos, e sahem nus despi- pecialmente os do Pomba e do Chopotó dos
dos pelos Taverneiros, q,’ são hum em cada Coroados, mantinham contato com comer-
caza, e os lanção depois de bêbados na rua ciantes de poaia. A intensificação da procura
aonde morrem apopleticos, ou esmagados por essas raízes em território mineiro acabou
pelos Carros, e Cavallos dos passageiros...
(RAPM 1906: 81). por contribuir com o devassamento e a pos-
terior ocupação de áreas de floresta ao Leste
No Termo de Mariana foram produzi- da região mineradora, ocupando, portanto,
dos, no ano de 1781, 8250 barris de aguar- papel central na constituição da fronteira
dente25. Essa produção caiu para 6399 no ano jurisdicional do atual território de Minas
de 1786, retomou seu crescimento em 1796 Gerais. Podemos entender que esse comér-
com a produção de 8035 barris e atingiu, no cio acabou por aproximar índios e brancos,
ano de 1804, a quantia de 10455 barris26. Es- pois, se por um lado os indígenas desejavam
ses números mostram que a aguardente des- a aguardente, por outro, a atividade de co-
25 Encontram-se no ACMM os seguintes códices referen-
leta necessária para a obtenção dessa bebida
tes à tributação de aguardente: 77, 95, 177, 179, 187, 196, não era conflitante com os valores indígenas
197, 204, 272, 336, 337, 338, 340, 353, 362, 401, 491, 559 e relacionados à divisão sexual do trabalho.
657.
26 Códices: 77, 95 (coleta de subsídio literário das aguar-
Contudo, esse tipo de aproximação não si-
dentes), 177 e 401 (Manifesto das aguardentes). ACMM. nalizava algo positivo, pelo menos para as
O Subsídio Literário foi criado para custear as despesas do sociedades indígenas.
ensino na colônia após a expulsão dos jesuítas – principais
responsáveis pelo ensino de até então – a partir da segunda
Esta atividade comercial já era pratica-
metade do século XVIII. Estes números representam ape- da por alguns indivíduos que desrespeitavam
nas o volume de aguardente taxado pelo governo colonial, as determinações que visavam impedir o li-
desconsiderando as possíveis sonegações de impostos.
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vre trânsito de pessoas entre as capitanias e, particulares e despertava interesse de muitos
como vimos, também despertou o interesse negociantes. Em data de 24 de abril de 1822,
do governo do Espírito Santo desde o início relata Marlière: “[...] huma pacificação total
dos oitocentos. reinava desde Belmonte ate os Campos de
Ao que parece, com o passar de alguns Goitacazes, e em toda a provincia de Minas
anos, a coleta de poaia deixou de ser uma Geraes que tirou hum dinh.º immenso na
atividade desempenhada quase que exclu- negociação da poaia com elles [os índios]....”
sivamente pelos índios e permutada com (RAPM, 1905: 425). Ainda segundo Marliè-
os comerciantes. No ano de 1821, Antônio re, a poaia seria um “Artigo de que os Missio-
Francisco do Espírito Santo, no ato de seu nários poderião tirar vantagemem em bene-
casamento com a escrava Eugênia, assinava ficio dos Indios animando este Comemercio;
um contrato no qual se comprometia a pres- e no Rio Doce há abundancia deste genero”
tar 12 anos de serviço gratuito a Moutinho, (RAPM 1906: 87).
senhor da escrava, em troca da liberdade Devido à sua grande utilização pela
dela. Entre as atividades que cabiam a Antô- medicina da época, a poaia ocupou destaca-
nio do Espírito Santo constava a internação do lugar no quadro de exportações da pro-
no mato na cata de poaia27. víncia de Minas Gerais, podendo superar vo-
Os indígenas da Zona da Mata tiveram lumes de outros produtos exportados como
que se adequar às necessidades dos colonos a farinha de mandioca e o fubá. No ano de
e, especialmente, da empresa de exploração 1839, as quantidades exportadas foram as
das novas áreas. Não bastava a criação de seguintes: 39 alqueires de poaia, 17 alqueires
um ambiente menos hostil aos colonos, os de fubá e 14 alqueires de farinha de mandio-
índios ainda tinham que ser úteis aos bran- ca (Almeida 1995: 110-111).
cos e à lógica do Estado. O relatório sobre a Se, por um lado, as ditas poaias eram
situação dos aldeamentos indígenas em Mi- fonte de divisas para as capitanias/províncias
nas Gerais, apresentado ao Diretor Geral das que exploravam esse gênero e para comer-
divisões em 1827 (RAPM 1907/1908: 498 et ciantes particulares, por outro, o desloca-
seq), comprova o supracitado. Nele são men- mento dos indígenas que rumavam para as
cionados os “melhoramentos” que os Sub- matas a fim de explorar essas raízes passou
-Diretores fizeram entre os índios aldeados. a gerar dificuldades no processo de aldea-
Entre os “benefícios” estão: mento. Assim relata um Sub-Diretor de al-
deamento indígena: “No meu tempo, aldéa-
[...] de os dedicar á agricultura outros á mentos inteiros, seduzidos p.r Brazileiros
extracção da poálha p.r conta dos Sub-Di-
rectores não assalariados: Os Puris, e os Bo- ambiciozos de poalha tem desapparecido...”
tocudos vão trabalhando progressivamente (RAPM 1907/1908: 526).
nos Rios, Doce, e Giquitinhonha, e mesmo Entre os grupos indígenas aldeados
40 dos Índios dissidentes do Sargento Nor- na Mata mineira, os conhecidos como Puri
berto da 5.a Divisão ja trabalhavão, e aju- eram aqueles que mais praticaram a coleta
davão os Soldados nas plantaçõens de 1827
(RAPM 1907/1908: 526). de poaia. Isso pode ser verificado pela análi-
se do Mapa dos Aldeamentos Indígenas em
Fica manifesto que a exploração de Minas Gerais, cuja data é de 20 de janeiro de
poaia não representava um problema em si 1828. Dos vinte aldeamentos descritos, cin-
– pelo menos para alguns interessados nos co eram de índios da nação Puri; um era dos
lucros provenientes dessa prática. Por outro Coropó; um era dos Coroado; cinco eram
lado, essa atividade era provedora de divisas dos Botocudo; cinco eram dos Naknenuck;
para a capitania/província de Minas Gerais e um era dos Malali; um era dos Macone e um
27 Ação de Liberdade, Cód. 386, ACSM, 1858. Agradeço composto pelas nações Naknenuck e Mala-
à professora Andréa Lisly Gonçalves pela indicação deste li (RAPM 1907/1908: 498 et seq). Curioso é
documento.
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que, nesses aldeamentos, onde os índios já se os Fazendeiros daquella estrada, e vendem
encontravam imersos no processo de redu- poalha, e outras drogas do Sertão” (RAPM,
ção, a extração da poaia era ocupação exclu- 1907/1908: 498 et seq). Os viajantes Spix e
siva dos índios Puri. Nenhum outro grupo Martius observaram, por sua vez, o escam-
acima mencionado praticava tal atividade. bo entre indígenas e comerciantes de poaia
Tal observação sugere que realmente os Puri e perceberam que “... os índios não aceitam
ofereciam certa dificuldade em se fixarem dinheiro, porém permutam com cachaça,
em aldeamentos estáveis e, assim sendo, ru- utensílios de ferro, panos de algodão, etc”
mando para as matas, mantinham seu traço (Spix & Martius 1976: 222).
nômade. Também indica a dificuldade de A desorganização da sociedade indí-
aproximação entre Puri e Coroado e/ou Co- gena foi, sem dúvida, um meio eficaz para
ropo, uma vez que estes dois últimos já se en- sua conversão, redução e em alguns casos,
contravam em franco processo de associação até eliminação, e a introdução da aguardente
com os brancos da Zona da Mata. acelerou esse processo.
A abundância das poaias na mata mi- O escambo observado no século XVIII
neira e seu amplo mercado faziam dessas adquiriu novas dimensões. Os índios que
raízes um negócio promissor para aqueles supriam os comerciantes de poaia alteravam
aventureiros que iam à sua procura. “Esses a práticas herdadas do modo pré-colonial. Em
adquiriam geralmente pelo processo da tro- razão da coleta da referida raiz, deixavam,
ca, permutando-a pela aguardente, que, uma por exemplo, de distribuir de forma equili-
vez conhecida do indígena, tornava-se sua brada seu tempo de caça, pesca e coleta. As
perdição...”, como escreve Oiliam José (José exigências do escambo também alteravam
1982: 34). O mesmo é verificado por Mar- o calendário da prática ritual, além de criar
lière: tensões no interior das aldeias e aldeamen-
[...] Há pouco o Cobradór, ou aferidór da tos.
Câmara de Marianna vendeo Licença a to- A extração de poaia, ao servir como
dos os Fazendeiros, e Poalheiros28 da Matta
do Prezidio a Serra da Onça cheia de Aldeãs elemento para o índio ter acesso a bebidas
de Coroados, q.’ eu tinha livrado da Praga alcoólicas, acelerou o processo de desor-
dos Taberneiros p.a a venderem publicam. ganização de sua sociedade. Como se vê, o
te [a aguardente] dizendo que com tal Li- escambo não pode ser entendido como uma
cença, eu não podia mais embaraçar a Pes- prática não desestruturadora da sociedade
te, que introduzia legalm.te confr.e o seu
dizer, e illegalmente conf.e a Ley (RAPM indígena – como queria Florestan Fernandes
1906: 81). (1981), em seu texto Antecedentes indígenas,
ou mesmo Alexander Marchant (1980), em:
Conforme se pode notar, o documen- Do escambo à escravidão. Essa foi uma prá-
to acima faz referência aos comerciantes de tica eficaz que perdurou ao longo do tempo.
poaia como importantes fornecedores de Existente desde os primeiros contatos entre
aguardente aos índios. europeus e indígenas, o escambo cruzou os
Aldeados em Meia Pataca – na estrada séculos e espaços geográficos sendo consta-
do Presídio de S. João Batista aos Campos tado até meados do século XX.
de Goitacases, existente desde 20 de setem- O impacto causado pela busca da poaia
bro de 1822 –, um grupo de Puri representa na região da Zona da Mata em meados do sé-
bem a imagem dos indígenas alcançados por culo XIX não teve antecedentes. A multipli-
aqueles que levavam “as graças da civiliza- cação das rotas e caminhos para atender essa
ção”. Assim eles são descritos: “Elles [os Puri] atividade gerou uma grande incitação à imi-
por ora não tem terras próprias para a sua gração e, desta vez, bem maior do que a es-
cultura – trabalhão como jornaleiros para timulada pelos lavradores itinerantes (Dean
1996: 177). Contudo, foi somente a partir da
28 Comerciante de poaias.
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segunda metade do XIX que a fronteira pas- Digo curioso relato, pois o medo cau-
saria a ser alargada numa velocidade nunca sado pela morte epidêmica, como a ocorrida
vista. O advento da locomotiva destinada ao entre as crianças mencionadas no documen-
transporte do produto que assumiria a maior to, era um dos principais fatores que condu-
importância nas exportações, o café, inaugu- ziam os índios para longe do contato com os
rou um novo ritmo de avanço fronteiriço e, brancos. Provavelmente os indígenas Goita-
por conseguinte, no processo de expropria- cá vislumbraram na aliança com os brancos
ção do território indígena. a possibilidade de ampliar seus poderes para
fazer frente a outros grupos indígenas que
A ALIANÇA GOITACÁ: ASSOCIAÇÃO lhes fossem opositores.
INDÍGENA E REFORÇO CONTRA OS Enquanto o Sertão do Rio Doce podia
BOTOCUDO figurar tanto para Minas quanto para o Espí-
rito Santo, o Sertão dos Goitacases ou Cam-
Em fins do século XVI, alguns dos in- pos dos Goitacases estava situado em uma
dígenas homônimos da região de Campos região que abrangia as capitanias do Espíri-
dos Goitacás encontravam-se em paz com os to Santo e Rio de Janeiro e, posteriormente,
colonos portugueses que para ali rumavam. aproximou-se da região das Minas Gerais
Segundo o relato de um marujo inglês apri- (Barros 1995: passim). Ou seja, mais uma
sionado pelos portugueses no Rio de Janei- vez estamos diante de uma região de frontei-
ro na virada do referido século, por meio da ra, cujos limites, como se vê, eram bastante
permuta os brancos conquistaram a confian- imprecisos.
ça dos índios que, em troca de instrumentos Habitado por índios Goitacá que resis-
de ferro, como facas e machados, vendiam tiram à pressão dos Tupi, dando origem aos
até mesmo suas mulheres e filhos (França índios identificados como Coroado, Coropó
2000: 27). e Puri, o sertão dos índios Goitacá teve ainda
Nas primeiras décadas do século XVII, no início do século XVII o princípio de sua
os Goitacá, mesmo diante da imensa mor- colonização (BARROS 1995: 37)29. A pecu-
talidade ocorrida entre suas crianças, fruto ária era então a principal atividade voltada
provavelmente do choque microbiano, vi- para o mercado Rio de Janeiro. No século
nham sujeitando-se ao cristianismo. O jesuí- XVIII, desenvolveu-se a atividade açucarei-
ta Luís Baralho de Araújo deixou um curioso ra. Em 1753 a então Vila de São Salvador dos
relato no qual consta o batismo das crianças Campos, hoje Campos dos Goitacases, era
Goitacá – pelo menos da pequena parcela anexada à Capitania do Espírito Santo. So-
que sobrevivera ao contato – e a maneira da mente em 1832, por determinação de uma
qual os jesuítas se valiam para convencer os Carta de Lei, a vila foi transferida para a Ca-
índios a entregar seus filhos e se associarem pitania do Rio de Janeiro (Reys 1997: pas-
aos cristãos. sim).
Além da presença dos jesuítas, outras
Dissemo-lhes, [aos índios] com o intuito de ordens religiosas estiveram presentes na re-
induzi-los a colaborar com o batismo, que
aquelas [crianças] que morreram, como gião dos Campos dos Goitacases. Em 1652 se
tinham sido ungidas com água batismal, estabeleceram os beneditinos. Também des-
poderiam interceder por seus pais junto de 1672 chegaram os missionários capuchi-
ao Senhor. Determinamos, em seguida, nos, contudo não conseguiram grande êxito
que um dos nossos desse sepultura a elas entre os índios nessa época. Em 1780 outros
[...] Os bárbaros impressionaram-se muito
com essa cerimônia [cerimônia fúnebre] e, padres capuchinos fundaram um aldeamen-
desde então, passaram a entregar-nos mais to a fim de reduzir os indígenas Coroado re-
facilmente suas crianças (França 2000: 45). 29 De acordo com a autora, os Tupinambá haviam chega-
do há pouco no litoral na época da colonização. Com isso,
expulsaram tribos antigas que antes ocupavam a área.
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manescentes (Reys 1997: 62). Uma vez pres- início da corrida do ouro, como poderia se
sionados, muitos indígenas da região, como imaginar, mas durante a segunda metade do
os Coroado, Puri e os remanescentes Coropó, século XVIII na região oriental da capitania”
vinham se deslocado para a região do Arraial (Resende & Langfur 2007: 8).
do Presídio do lado de Minas Gerais, região É importante sublinhar que o ano de
que nessa época contava, como vimos, com 1767, data dos ataques dos Botocudo de
os “prósperos” trabalhos de redução indíge- acordo com Magalhães, coincide com a che-
na desenvolvidos pelo padre Manoel de Jesus gada do padre Manoel de Jesus Maria nos
Maria. sertões ao Leste das Minas. Pressionados pe-
O processo de migrações indígenas so- los Goitacá que se associaram aos mineiros,
freu, portanto, profundas alterações com a os Botocudos foram obrigados a se retirar
presença dos brancos. A concentração dos em direção da capitania do Espírito Santo,
Coroado na região presidiense acabou con- uma vez que nesta direção ainda existia um
tribuindo para que os Puri, – segundo diver- grande território, praticamente indevassado.
sos relatos, naquele contexto seus inimigos – O mesmo aconteceu com os índios Puri. Até
fossem empurrados em direção da capitania fins do século XVIII, eles mantiveram re-
do Espírito Santo. A partir daí multiplicam- sistência ao processo de associação com os
-se os ataques às minas do Castelo registra- brancos, o que lhes rendeu fama de índios
dos na segunda metade do século XVIII, e, agressivos, como fica ilustrado nos docu-
posteriormente, buscando ajuda dos brancos mentos como o mencionado ataque às minas
no momento da construção da Estrada Ru- do Castelo e nos relatos de viajantes, como o
bim, época em que certamente suas forças já de Freyreiss. Contudo, como foi observado,
estavam muito debilitadas. acabaram buscando a associação como úni-
Em 1757, o padre Ângelo Peçanha fir- co recurso à sua sobrevivência. Já os Botocu-
mou uma aliança entre os povoadores de Mi- do continuaram resistindo tenazmente até as
nas Gerais e os indígenas Goitacá. Segundo primeiras décadas do século XX.
Manoel Ignácio Machado de Magalhães, tal Segundo Joaquim José da Rocha, um
aliança foi fundamental dez anos mais tar- militar de origem portuguesa, os Puri alia-
de, durante o governo de Luiz Diogo Lobo ram-se aos Botocudo na região fronteiriça do
da Silva, quando a capitania mineira sofreu Espírito Santo na segunda metade do século
ataques dos indígenas Botocudo. Magalhães XVIII, e então passaram a mover contínua
lembra que, “tendo sido chamados os Goyta- guerra contra os Manaxo, Malali, Maxacali,
cazes pelo Padre Ângelo Peçanha em auxílio Capoxo e Tambacuri, causando-lhes imensa
dos mineiros, correram em defesa dos seus destruição em suas aldeias e culturas. Ainda
aliados e caíram sobre os Botocudos, e, fa- de acordo com Rocha, sob ataque dos Boto-
zendo nelles grandes estragos forçaram-nos cudo, tais indígenas buscaram associações
a retirar para além das matas do baixo Rio com os “ [...] povoadores de Minas, os quais
Doce” (Magalhães 1926). se lhes têm unido algumas vezes, por peque-
Como já apontamos, os ataques dos Bo- nas escoltas, enviadas pelos Exmos Generais,
tocudo correspondem ao período de devas- que têm governado as mesmas Minas, para
samento da Zona da Mata empreendido pelo que juntos destruíssem aquelas bárbaras na-
deslocamento de colonos que se multiplica- çõe (Rocha 1995: 77-78).
vam rumo aos sertões do Pomba e Arraial O relato de Rocha demonstra o quanto
do Presídio. Não fomos os primeiros, é certo, as guerras intertribais intensificaram-se com
a verificar tal processo. Maria Leônia e Hal as pressões desencadeadas pelo avanço da
Langfur já disseram que o “ápice da violência fronteira sobre os povos indígenas na segun-
que colocou soldados e posseiros contra os da metade do século XVIII.
índios no sertão mineiro aconteceu não no
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas.
Tendo em vista a discussão apresen-
tada, reafirmamos o ponto central de nossa BARROS, Clara Emilia Monteiro de. 1995.
pesquisa: a análise da evolução do processo Aldeamento de São Fidelis: o sentido do espa-
de territorialização dos povos indígenas de ço na iconografia. Rio de Janeiro, Ministério
Minas Gerais, Espírito Santo e Norte flumi- da Cultura/IPHAN.
nense ao longo do processo de colonização,
entendido como processo que se prolonga BÔAS, Crisoston Terto Vilas. 1995. A ques-
desde o período definido por trabalhos his- tão indígena em Minas Gerais: um balanço
toriográficos como colonial até os dias atuais, das fontes e da bibliografia. Revista de Histó-
deve levar em conta as territorialidades étni- ria. Ouro Preto, LPH. no. 5,
cas e não aquela definida pelos atuais limites
administrativos das respectivas unidades da CAMILO, Tiago de Araújo. 2006. Entre fe-
Federação. Tal abordagem possibilitará des- bres e feras, o imigrante vai à floresta: a saúde
fazer alguns equívocos, como a ideia estere- e o meio ambiente na formação da colônia de
otipada de agressores violentos e selvagens Santa Leopoldina-ES – 1856-1900. Disserta-
construída sobre muitos grupos indígenas, ção de Mestrado em História, Universidade
quando, muitas das vezes, estavam eles sen- Federal de Viçosa.
do vítimas de pressões – das mais variadas
formas – que os conduziam a grandes deslo- CARRARA, Ângelo Alves. 1993. A Zona
camentos, e por sua vez, facilitavam os con- da Mata Mineira: diversidade e continuísmo
flitos. Isso fica evidente quando cruzamos re- (1839-1909). Dissertação de Mestrado em
latos dispersos nas três capitanias/províncias História, Universidade Federal de Juiz de
mencionadas e (re)significamos nosso espa- Fora.
ço de análise levando em conta a complexa
dinâmica étnico-social. Tentamos então, evi- CHAIM, Marivone Matos. 1983. Aldeamen-
tar possíveis anacronismos ainda recorrentes tos indígenas: Goiás, 1749-1811. 2a Ed. Rev.
quando do uso de metodologias que vertica- São Paulo, Nobel; [Brasília], INL, Fundação
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Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

OS INSTRUMENTOS DE BORDO
EXPECTATIVAS E POSSIBILIDADES DO TRABALHO DO ANTROPÓLOGO EM LAUDOS PERICIAIS*
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA FILHO

A colaboração entre antropólogos e a seram este Seminário vêm a ilustrar clara-


Procuradoria Geral da República têm sido mente a fecundidade dessa cooperação. Mas
muito positiva. Estimulou um debate mais a minha intenção nessa sessão de encerra-
direcionado e atual entre os juristas e os an- mento não é de recapitular os avanços reali-
tropólogos, deixando para trás as categorias zados, mas sim refletir sobre, os perigos, di-
do evolucionismo e os esquematismos do ficuldades, desvios e armadilhas que podem
formalismo, instaurando um canal de in- ser encontrados pelo caminho ainda a per-
tercomunicação onde as novas temáticas e correr. Pois nem sempre a junção entre pes-
os procedimentos mais modernos puderam quisa antropológica e ação judicial, movidas
estabelecer um novo patamar de diálogo, ambas pelo desejo de viabilizar a aplicação
certamente mais profícuo e criativo. Vitórias dos direitos indígenas, resultará. nas mais
importantes para os povos indígenas resulta- felizes soluções para as duas, cada uma das
ram dessa colaboração, o que gerou grandes quais movida por uma lógica própria, com
expectativas quanto a ganhos futuros. Juízes, doutrinas e interesses diferenciados.
advogados e procuradores têm demonstrado Foi apenas a relativa novidade desse
uma nova disposição para ouvir índios arro- encontro que desencadeou expectativas ex-
lados em processos e mesmo ler e pesquisar cessivamente otimistas e despropositadas.
em trabalhos etnológicos, confiantes assim Ao invés de praticar uma exploração ana-
em estarem contribuindo para uma melhor lítica das virtualidades dessas articulações,
aplicação das leis e um aperfeiçoamento da absolutizou-se alguns casos e naturalizou-se
ação do judiciário. Por fim os próprios antro- o contexto histórico em que concretamente
pólogos, algumas vezes criticados pela pe- esta colaboração se iniciou. Contexto, aliás,
quena reversibilidade que seus prolongados marcado com nitidez por uma conjuntura
estudos possuiriam para os grupos humanos de redemocratização e extensão dos direitos
por eles pesquisados, vêm demonstrando de cidadania, na qual advogados e cientistas,
grande eficiência e crescente responsabili- através de suas associações representativas,
dade com o fato de que os conhecimentos tiveram um papel importante e convergente.
por eles acumulados possam vir a fornecer Mas as dificuldades não se limitam de
evidências e argumentos que tenham papel maneira alguma ao exame das conjunturas
destacado no reconhecimento dos direitos e das convergências políticas. Ao contrário,
indígenas (especialmente os territoriais). tratando-se com disciplinas como o Direito e
As diversas comunicações que compu- a Antropologia, com métodos e corpos dou-
* Artigo originalmente publicado nas páginas 115 a 139 do livro “A perícia antropológica em Processos Judiciais”,
editado pela Editora da UFSC, numa co-edição entre a ABA e a Comissão Pró-Índio de São Paulo.
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trinários bem delineados, cristalizados em buído um elevado grau de exatidão técnico-
códigos escritos e saberes específicos, trans- -científica. A comparação, algumas vezes
mitidos, ampliados e corrigidos por canais lembrada, com a chamada “perícia de pa-
institucionais bem regulados, deve-se duvi- ternidade”, feita através do exame de DNA,
dar que a simples vontade política determi- é assustadora.
ne as ações concretas dos atores individuais, As Ciências Sociais, lidando com sím-
fazendo tábula rasa sobre as disposições e bolos e práticas de uma sociedade, operam
tradições anteriormente vigentes. necessariamente em uma escala de abstração
Para ser bem direto, a minha preocupa- muito diferente, onde o objeto do conheci-
ção é com o conjunto de tarefas e expectati- mento não é independente do sujeito cog-
vas que estão sendo atribuídas aos antropó- noscente, nem peritos e juízes são totalmente
logos. Sem dúvida há um grande avanço na estranhos ou indiferentes aos sentimentos e
etnografia dos povos indígenas que habitam opiniões suscitadas pelos fatos por eles con-
no território nacional, bem como importan- siderados. Ademais, as Ciências Naturais
tes teorias explicativas da dinâmica do con- tratam com sistemas fechados, enquanto as
tato interétnico, das formas de organização direções de um processo social podem ser
e do simbolismo dessas sociedades. Mas é mudadas pelos atores que o integram, até
preciso ter em conta que as questões que lhes mesmo em virtude do conhecimento ou das
são dirigidas no contexto judicial são bas- expectativas face a essas tendências.
tante específicas e exigem um conhecimento Nesse quadro as inferências não podem
aplicado, com conclusões bem circunscritas ser unívocas nem ser construídas de forma
e respostas supostamente exatas. simplista. O que não significa que inexista
O antropólogo pode efetivamente asse- rigor em suas análises, mas sim que as suas
gurar que um determinado grupo humano é generalizações são de outra ordem. E tam-
(ou não) “indígena”, isto é, mantém relações bém que é imprescindível um alto grau de
de continuidade com populações pré-co- controle sobre os instrumentos e a situação
lombianas? Ou ainda, pode o antropólogo da pesquisa de modo a vir a ser possível atin-
estabelecer, tendo em vista tal grupo étnico, gir o desejado rigor.
qual é precisamente o território que lhe cor- A elaboração de laudos periciais não
responde? responde a interesses ou questões colocados
O antropólogo certamente dispõe da pela teoria antropológica, nem tais atividades
competência específica para discorrer e ana- de peritagem são financiadas ou promovidas
lisar tais assuntos. Mas é importante indagar por iniciativa da comunidade acadêmica.
se o seu pronunciamento estará sendo in- Solicitada e viabilizada por outras instâncias
terpretado como legitimamente o permite a – seja por diferentes esferas do judiciário ou
pesquisa antropológica, ou se inversamente, pelo próprio órgão tutelar – os laudos peri-
as injunções e expectativas contidas no con- ciais implicam claramente na aceitação tácita
texto de um laudo pericial, o transformam de certas regras e expectativas que não são
em algo estranho à própria Antropologia. definidas no contexto estrito da prática an-
Estas são questões muito complexas tropológica.
do ponto de vista antropológico, mas para A preocupação aqui manifestada é jus-
as quais juízes, procuradores e advogados tamente o quanto o antropólogo pode – ou
aguardam por respostas precisas. É por isso deve – avançar na resposta a tais questões
que qualificam como “perícia” as investiga- sem abandonar o rigor conceitual e a vigilân-
ções (que o antropólogo chamaria de “pes- cia metodológica próprios a sua disciplina.
quisa”) empreendidas para a elaboração de Porque se o antropólogo afastar-se radical-
“um laudo”, ao qual é intrinsecamente atri- mente de seu solo privilegiado, o que ainda

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existirá de “antropológico” no laudo por ele não são tão claramente recortadas, descon-
produzido? E qual seria então a validade pro- tínuas e permanentes como os gêneros e
batória e a confiabilidade de uma tal perícia? espécies naturais. E, principalmente, as uni-
Longe de ser essa uma comunicação dades sociais mudam com uma velocidade e
triunfalista ou apologética, o seu tom geral com uma radicalidade sem precedentes no
é de problematização, operando como uma âmbito do processo de evolução natural. As
espécie de “mauvaise conscience” desse en- unidades sociais abandonam velhas formas
contro entre a Antropologia e o Direito. O culturais, recebem (e reelaboram) algumas
exercício ora proposto é o de retomar, a luz de outras sociedades, e ainda criam formas
das contribuições e dos impasses da moder- novas e distintas. Nesse quadro de mutabi-
na pesquisa antropológica, as perguntas di- lidade e instabilidade, como seria possível
rigidas ao antropólogo no âmbito de laudos assegurar que as unidades de que se fala são
periciais. Assim o seu objetivo é de explici- ainda as mesmas?
tar os instrumentos de investigação que sua Tendo em vistas as finalidades práticas
disciplina lhe fornece, circunscrevendo com dos laudos periciais, a questão não é saber se
nitidez as áreas de efetiva positividade e os uma etnia mantém-se como unidade apesar
limites (inclusive éticos) do trabalho antro- de suas variações, mas sim de afirmar (ou
pológico face a expectativas muito amplas e não) que, considerando o momento presente
nem sempre justificadas que se lhe contra- e as alterações que sofreu, ela ainda continua
põem. a ser uma etnia indígena? Não importa sa-
A primeira questão que focalizarei inci- ber aí se os Maku atravessaram um profundo
de sobre a problemática da definição de um processo de tukanização, os Txukharamãe
grupo étnico. De acordo com as concepções passaram por um processo de xinguanização
mais antigas do evolucionismo e do funcio- ou se os Tapeba são ou não descendentes dos
nalismo, as unidades sociais em que vivem Potiguares, o que conta é saber se tais etnias
os povos indígenas são pensadas de um podem ser caracterizadas como indígenas.
modo naturalizado (vide Oliveira, 1988:25- Em algumas situações o trabalho do
35), segundo o modelo das ciências naturais. antropólogo é relativamente mais simples.
As expectativas do senso comum relativas à notoriamente quando focaliza grupos que
atuação dos antropólogos nos laudos peri- mantêm uma forte distintividade face a pa-
ciais caminham igualmente na mesma dire- drões culturais da sociedade nacional (ou
ção. Tal como os estudiosos da natureza são ainda de seus segmentos com os quais esteja
capazes de, através da morfologia de animais em contato direto). Um aspecto privilegiado
e plantas, produzir a identificação e classi- dessa distintividade cultural é quando um
ficação de um exemplar do mundo natural, grupo possui e conserva o uso de sua própria
também o antropólogo deveria ser um espe- língua, tomando-se muito mais fácil demar-
cialista capaz de identificar e classificar, pelas car os limites dessa unidade sócio-cultural.
formas culturais que adotassem, os homens Também nos casos, hoje já bastante raros, de
concretos dentro das unidades sociais a que grupos que vivem em situação de marcado
pertenceriam. Talvez a tarefa pudesse até ser isolamento, a caracterização como indígena
substancialmente simplificada, pois como passa por critérios do senso comum, dados
um animal falante, o próprio homem seria como absolutamente consensuais, como a
capaz de auto-classificar-se. posse de uma tecnologia bastante simples ou
Mas nada se passa conforme tais ex- o nomadismo.
pectativas. As formas culturais não revelam Em muitas outras situações a investiga-
a mesma homogeneidade e regularidade que ção pode ser bem mais complexa e conduzir
a transmissão genética, as unidades sociais a resultados que estão longe de ser consensu-

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ais. Assim grupos étnicos que já perderam a bros e os não membros daquele grupo. A
língua e cuja cultura não é visivelmente con- metáfora utilizada é de um vaso (uma forma
trastante com a regional, têm sua condição organizacional ou padrão”de interação), que
de indígenas passível de ser questionada em aceitaria líquidos de diferentes cores e textu-
duas linhas (em parte completamentares). ras (os elementos da cultura) sem no entanto
De um lado o senso comum argumen- mudar sua natureza básica.
ta que o elo de continuidade histórica já foi Tal recapitulação é bastante conhecida
rompido e que tais grupos com a aceleração pelos antropólogos brasileiros, seja pela con-
do processo de aculturação, acabam por to- sulta direta aos autores estrangeiros, seja via
mar-se inteiramente assimilados, e, portanto, as apropriações pioneiras feitas por Rober-
indistintos do restante da população brasilei- to Cardoso de Oliveira (1971 e 1976) ou de
ra. Tratar-se-ia então de “descendentes” ou Manuela Carneiro da Cunha (1979, 1981 e
“remanescentes”, que ainda que conservas- 1983, reunidos em uma publicação de 1986).
sem elementos de memória ou fragmentos As referências bibliográficas – quase obri-
(folclorizados) de costumes não poderiam gatórias e exclusivas – contidas nos laudos
mais ser caracterizados como “índios”. apresentam porém duas distorções, relativas
De outro lado. argumenta-se também, respectivamente aos autores estrangeiros e
a cultura originária de um dado grupo foi de nacionais.
tal forma modificada, sofrendo um tal des- Por um lado registra-se uma inibição
virtuamento, que já nada lhe resta de típico no que toca à bibliografia mais ampla e espe-
ou autêntico. Tratar-se-ia então de uma sim- cializada sobre etnicidade, circunscrevendo-
ples manipulação da identidade étnica, onde -se aos textos mais conhecidos (como Barth,
em decorrência de vantagens materiais bem 1969 e Cohen, 1974), deixando de lado não
definidas surgiriam “falsos índios” e culturas só as próprias reelaborações teóricas poste-
indígenas “inautênticas” ou “forjadas”. riores (como Barth, 1984 e 1988), como re-
Para sair de tais impasses é necessário legando ao esquecimento autores não vincu-
retomar a conceituação antropológica de lados à linha “instrumentalista” (ver Cohen,
grupo étnico. Já Max Weber ponderava que 1978; Bentley, 1987 e Williams, 1989 para um
os fatores que compõem o fenômeno étni- mapeamento dos estudos sobre etnicidade).
co, como descendência comum (lugar de Por outro lado nota-se que os artigos
origem, consangüinidade ou raça), visão de dos autores nacionais (especialmente Car-
mundo, língua própria ou religião, não expli- neiro da Cunha, 1983), descontextualizados
cam por si só a formação das comunidades das preocupações teóricas e das circunstân-
étnicas, cuja unidade de ação só pode resul- cias específicas que os geraram, passam a ser
tar de uma unidade em termos de vontade utilizados como um verdadeiro manual prá-
política. Desde Barth (1969) que os antropó- tico para pareceres, laudos periciais e mesmo
logos vêm operando com uma definição bas- relatórios de grupos de trabalho na FUNAI.
tante precisa do que seja um grupo étnico, É importante, portanto, face às amplas
muito distinta da acepção do senso comum. e contraditórias expectativas sociais que sus-
Os elementos específicos de cultura (como citam, bem como considerando as distorções
os costumes, os rituais e valores comuns) po- que apresentam, discutir três aspectos da
dem sofrer grandes variações no tempo ou utilização desse quadro teórico nos laudos
em decorrência de ajustes adaptativos a um periciais.
meio ambiente diversificado. O que impor- O primeiro ponto a destacar é um di-
ta, contudo, é a manutenção de uma mesma
recionamento próprio, onde a investigação
forma organizacional, a qual prescreve um
conduzida pelo antropólogo deveria voltar-
padrão unificado de interação entre os mem-
-se para encontrar uma identidade étnica
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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(freqüentemente entendida como urna au- ceituação antropológica de grupo étnico e
to-classificação), enquanto por outro lado a definição nominalista dada por um semi-
deveria explicitar como a sociedade regio- nário promovido pelo Instituto Indigenista
nal envolvente continua a distingui-la de si Interamericano (1954), e depois incorpora-
própria (o que usualmente se dá através da da pela legislação de diversos países latino-
manipulação de preconceitos e estigmas). -americanos. Nela se diz que é índio quem se
Assim diz Carneiro da Cunha (1986:118): considera enquanto tal e assim é considera-
“a identidade étnica de um grupo indígena do pela:sociedade envolvente, sendo daí que
é, portanto, exclusivamente função da auto- procede a caracterização contida no artigo
-identificação e da identificação pela socie- 3 do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73). Mais
dade envolvente”. adiante, no ponto três, voltarei a falar sobre
Cabe notar que essa é uma apropriação os riscos de identificar um grupo concreto
pouco fiel das formulações de Barth (1969), como indígena tendo em vista as representa-
que apenas afirma que um grupo étnico SÓ ções coletivas existentes sobre o índio.
pode ser definido segundo critérios de per- A meu ver na realização dos laudos
tencimento e exclusão por ele mesmo ela- periciais o antropólogo deve privilegiar a
borados. Ou seja, que um grupo étnico deve pesquisa sobre as categorias e práticas nati-
existir enquanto um conjunto de categorias vas, pelas quais o grupo étnico se constrói
nativas, utilizadas pelos próprios atores so- simbolicamente, bem como as ações sociais
ciais. O que chama a atenção de Barth (1969) nas quais ele se atualiza. O agente classifica-
não é a definição de uma identidade étnica, tório e o objeto primário de sua etnografia
mas a busca de fatores (positivos e negativos, devem ser o próprio grupo investigado. As
os estigmas estando entre esses últimos) que classificações (étnicas, de classe, etc.) utili-
levam ao fenômeno da manipulação da iden- zadas por outros agentes sociais devem ser
tidade étnica. consideradas na medida em que afetam os
Se uma identificação étnica correspon- circuitos de interação de que participam os
de a um ato classificatório praticado por um membros daquele grupo, possibilitando a
sujeito dentro de um dado contexto situacio- definição por estes de várias e diversificadas
nal, não faz sentido supor que as auto-clas- estratégias simbólicas e sociais. Ao invés de
sificações e as classificações por outrem de- trabalhar com classificações étnicas opera-
vam necessariamente coincidir. É justamente das genericamente pela sociedade regional,
o contrário que demonstra Moerman (1966) o antropólogo deve explorar as incongruên-
em uma análise situacional das atribuições cias internas aí verificadas, percebendo que
étnicas na península da Tailândia, indican- elas constituem parte de um campo de luta
do que os Lue só constituiriam um grupo em que estão envolvidos todos esses atores.
distinto segundo sua própria visão, sendo Partindo dessa análise é que poderá vir a
classificados conjuntamente com outros (e descrever o conjunto de símbolos e práticas
diversos) subgrupos Thai por estes mesmos sociais (primordialmente os preconceitos.
e pela população de origem chinesa. O que estigmas e censuras) pelas quais os diferen-
esta e outras análises situacionais (vida Na- tes atares não-índios, de modo acumulativo
gata, 1974) têm apontado é que classifica- mas também concorrencial. barreiras sociais
ções realizadas por diferentes sujeitos sociais que demarcam negativamente àquele grupo.
podem variar não apenas no valor atribuído O segundo ponto é a natureza da con-
aos termos, mas também no próprio recorte tinuidade atribuída a um grupo étnico. Ao
desses elementos e na definição da natureza ler os quesitos elaborados por juízes, pro-
dos níveis de inclusão. motores ou advogados de defesa, a impres-
É muito grande a distância entre a con- são que se tem é de que a identidade étnica é
algo substancial, cristalino, permanente, que
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independe de conjunturas e divisões inter- procura mudar o sistema anterior de auto-
nas. A bibliografia sobre etnicidade contém ridades Ngoni. Passando depois ao domínio
muitos exemplos de como não é assim que britânico, as autoridades Ngoni voltam a ser
as coisas efetivamente se passam. Para exem- reforçadas. Profundas diferenças religiosas
plificar vou pegar um registro etnográfico também ido marcar essa população, pois na
não-brasileiro, o caso dos Ndendeuli, descri- década de 1930 se expande uma organização
to magistralmente por Joseph T. Gallagher político-religiosa de base islâmica, com a
(1974). construção de mesquitas em diversas partes
Para uma breve localização cabe dizer da região. Um censo ali realizado em 1955-
que os Ndendeuli são hoje cerca de 12 mil 56 aponta no entanto que mais da metade da
pessoas, localizados no atual distrito de Son- população é católica, em função de atividade
gea, no sudoeste da Tanzânia. Antes de 1840 educacional e econômica desenvolvida por
existiam apenas nomes para os diferentes missionários beneditinos. A partir de 1950,
grupos locais, enfatizando a vizinhança de com o sucesso obtido na produção de tabaco,
rios, montanhas ou fragmentos de sua his- e o surgimento de um forte movimento coo-
tória específica. Não havia qualquer nome perativista, os Ndendeuli ocidentais começa-
comum que englobasse todo o grupo, mas ram a marcar seu interesse em distinguir-se
existiam tradições comuns que asseguravam dos Ngoni. O relato de Gallagher pára na dé-
a reciprocidade entre os diferentes grupos cada de 50, quando os moradores de distritos
locais, inclusive com mecanismos específi- recém-construídos recusam ser governados
cos para a resolução de conflitos. Por volta por autoridades Ngoni, desejando possuir
de 1840 sofrem uma invasão por parte dos uma representação própria, eleita por eles
Maseko, um subgrupo Ngoni, sendo daí ori- mesmos.
ginado o próprio etnônimo. Os nativos, ater- O exemplo citado mostra claramente
rorizados, gritavam uns para os outros “O como são equivocadas as expectativas usu-
que vamos fazer?”, que os invasores enten- ais do senso comum face ao processo de
diam como “Ndendeuli” e passaram a usar o definição de uma identidade étnica. Existir
termo para designar os nativos. Mas a domi- uma identidade que unifique e singularize
nação dos Maseko não durou muito, pois em uma população não é de maneira alguma
1860 os Mahuhu, um outro subgrupo, apos- uma necessidade cultural, o que obviamen-
sou-se da região. Uma parte dos Ndendeuli te também é verdade para povos indígenas
juntou-se aos Maseko derrotados e migrou (inclusive do Brasil) que ainda não passaram
para a atual Malawi, onde ainda hoje são co- por um processo de territorialização (vide
nhecidos como os Gomani Maseko Ngoni. Oliveira, 1993). Longe de ser uma profun-
Após a saída dos Maseko, os Mahuhu divi- da expressão da unidade de um grupo. um
diram-se em duas chefias distintas, os Nje- etnônimo resulta de um acidente histórico,
lu e os Mshope, sendo os Ndendeuli igual- que freqüentemente é conceitualizado como
mente divididos dessa forma. Especialmente um ato falho, associado a um jogo de pala-
nessa segunda divisão o termo Ndendeuli vras e com efeito de chiste. Muitas vezes um
era freqüentemente usado como sinônimo grupo dominado não é mantido como uma
para a palavra Ngoni “sutu”, que quer dizer unidade isolada, mas é incorporado a outras
povo subjugado. No início da década de populações (igualmente dominadas ou, in-
1880 começa uma guerra entre os Mshope e versamente, frações da população dominan-
um outro povo não Ngoni, os Hehe, que se te), sendo dividido, subdividido e somado a
mantêm em relativo equilíbrio face à ameaça outras unidades de diferentes tipos. Esquar-
de invasão alemã. De 1897 a 1916 a região tejado, montado e remontado sob moda-
fica sob a administração alemã, que estabe- lidades diversas e em diferentes contextos
lece um sistema de designação de chefes e situacionais, qual a continuidade histórica
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e cultural que um tal grupo dominado pode cífica de sociabilidade se modifique bastante,
ainda apresentar? expandindo-se ou contraindo-se em diferen-
Em um texto dirigido contra as tenta- tes contextos situacionais.
tivas aroitrJrias da FUNAI de definir “cri- Em uma avaliação das tentativas de es-
térios de indianidade”, Manuela Carneiro tabelecer uma continuidade histórica entre
da Cunha (J 979) retoma uma formulação os atuais habitantes da parte indígena da ci-
da legislação indigenista, conceituando que dade de Cape Cod e a tribo Mashpee, James
as comunidades indígenas são aquelas que, Clifford chega a conclusões semelhantes: “a
além de se considerarem distintas da socie- história dos Mashpee não é a de instituições
dade nacional, mantêm uma “continuidade tribais ou tradições culturais que não foram
histórica com sociedades pré-colombianas” partidas. É de uma luta longa e relacional
(1986: 111). O exemplo etnográfico dos para manter e recriar identidades (...). Os
Ndendeuli deve inspirar cuidados quanto à índios em Mashpee fizeram e refizeram a si
incorporação pelos antropólogos do critério próprios através de alianças, negociações e
de continuidade histórica com populações lutas específicas. É tão problemático dizer
nativas. Como argumenta Gallagher. em de- que o seu modo de vida ‘sobreviveu’ como
corrência de guerras, conquistas, migrações dizer que ‘morreu’ ou ‘renasceu’ ”, (1988:338-
e da ação de diferentes agências colonizado- 339).
ras, “pelo meio do século 20, muito poucos A utilização de metáforas biológicas
Ndendeuli atuais poderiam reivindicar uma para descrever processos sociais pode con-
descendência (matri ou patrilinear) dos ha- duzir a grandes equívocos e acarretar expec-
bitantes originais da região” (1974:4). tativas improcedentes e despropositadas. A
É preciso prevenir-se contra a sedução modalidade de existência de grupos étnicos
de tentar recompor a continuidade histórica ou de culturas não é de maneira alguma a
dos povos indígenas do presente, pois ain- mesma que a de um indivíduo. Equipará-las
da que utilizando técnicas antropológicas significa abstrair aspectos fundamentais, ho-
(como a pesquisa genealógica e a história mogeneizar o que é ontologicamente diver-
oral) ou também lançando mão de recursos so, favorecendo o surgimento de interpreta-
arqueológicos ou lingüísticos, pode revelar- ções perigosas e questões falsas.
-se inteiramente infrutífera a busca de uma As metáforas biológicas, especialmente
suposta continuidade histórica, os resultados as mais negativas, como as de morte. ocaso,
obtidos podendo servir inversamente como ou sobrevivência, estimularam investigações
uma perigosa contra-prova. Ao abordar a e políticas já de início distorcidas sobre os
questão da definição do território ainda vol- povos indígenas, nicho onde vicejaram ter-
tarei a focalizar esse ponto. mos mais técnicos e aparentemente distantes
A única continuidade que talvez possa – como integração, assimilação ou destriba-
ser possível sustentar é aquela de, recuperan- lização. Tentar combater tais conseqüências
do o processo histórico vivido por tal gru- apenas invertendo a valoração, de negativa
po, mostrar como ele refabricou constante- para positiva, enfatizando o renascimento,
mente sua unidade e diferença face a outros a revivescência ou a continuidade histórica
grupos com os quais esteve em interação. A dos povos indígenas, significa buscar solu-
existência de algumas categorias nativas de ções já de antemão comprometidas com a
auto-identificação, bem como de práticas in- problemática que está justamente obstaculi-
terativas exclusivas, servem de algum modo zando o avanço da pesquisa. É neste sentido
para delimitar o grupo face a outros, ainda que em uma publicação recente (Oliveira,
que varie substantivamente o conteúdo das 1994) sobre os povos indígenas do nordeste,
categorias classificatórias e que a área espe- optei por evitar as metáforas biológicas, ser-

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vindo-me de imagens exclusivamente sociais do Índio) ou o “povo indígena” (como seria
(como a da migração), tentando recuperar uma expressão sociológica mais convenien-
a problemática da invenção de culturas e da te).
construção ou emergências de identidades Na segunda acepção “índio” constitui
(Hobsbawn, 1983; Wolf, 1982), ambas cla- um indicativo de um estado cultural, clara-
ramente vinculadas a processos coletivos e mente manifestado pelos termos que em di-
situações sociais específicas. ferentes contextos o podem vir a substituir
O terceiro ponto que gostaria de focali- – silvícola, íncola, aborígene, selvagem, pri-
zar é mais específico do que a caracterização mitivo, entre outros. Todos carregados com
de grupos étnicos ou culturais. Trata-se de um claro denotativo de morador das matas,
indagarem que medida um grupo humano de vinculação com a natureza, de ausência
atual, que configure uma unidade distinta e dos benefícios da civilização. A imagem tí-
se reconheça enquanto tal, poderia vir a ser pica, expressada por pintores, ilustradores.
classificado como indígena? A resposta de- artistas plásticos, desenhos infantis e char-
veria ser tentada em duas linhas, uma dirigi- gistas, é sempre de um indivíduo nu, que
da à aplicação de uma definição legal, a outra apenas lê no grande livro da natureza, que
voltada para o convencimento de um públi- se desloca livremente pela floresta e que ape-
co leigo e bem mais amplo. nas carrega consigo (ou exibe em seu corpo)
Como observei num artigo acima cita- marcas de uma cultura exótica e rudimentar,
do (Oliveira, 1994), a dificuldade de legiti- que remete à origem da história da humani-
mar-se perante a opinião pública uma visão dade.
mais moderna e teoricamente embasada do Nessa linha a carga semântica já está
que seja “índio” decorre da completa discre- dada – o “índio” é efetivamente um exemplo
pância de significados atribuídos ao mesmo de ser primitivo e, como tal, é de natureza
termo. De um lado pelo discurso jurídico-ad- pretérita e está fadado a desaparecer. É pos-
ministrativo (construído e desvendado con- sível articular um discurso romântico e in-
juntamente pela ação de organismos e pesso- verter os preconceitos do evolucionismo; os
as que têm uma responsabilidade específica próprios índios podem utilizar tais represen-
sobre os índios, como FUNAI, PRG e justiça tações para deflagrar a consciência culpada
federal, associações profissionais como ABA dos brancos, ou incorporar ainda o salva-
e OAB, organizações não-governamentais cionismo do discurso ecológico na virada
relacionadas a direitos humanos, étnicos e do milênio. A ficção pode até promover um
ambientais, líderes e entidades indígenas, enorme deslocamento e fazê-lo encontrar o
etc.). De outro lado, pelas representações co- mundo moderno, como ocorre com o índio
letivas que alimentam o senso comum (do que no romance de Antônio Callado ridicu-
qual o sentido do dicionário constitui uma lariza as fantasias protecionistas de um velho
expressão temporariamente consolidada, sertanista. De todo modo isso só reforça a
mas sempre re-trabalhada pelas artes, pela representação geral de que o seu lugar apro-
mídia e pelas atividades cotidianas). priado é o passado, que sua distância para o
Na primeira acepção “índio” indica mundo moderno é talvez maior que a deste
um status jurídico dentro da atual socie- para outras galáxias, que o único meio legíti-
dade brasileira, dotando o seu portador de mo de realizá-los é passando pela coletivida-
direitos específicos, definidos em uma legis- de a que pertence, resgatando as normatiza-
lação própria. Seus direitos apenas existem ções e sentimentos pelos quais o grupo avalia
enquanto remetidos a uma coletividade da a performance de um de seus membros.
qual é reconhecido como membro, isto é, a Não há subjetivismo na definição aci-
“comunidade indígena” (como diz o Estatuto ma citada de comooidade ou povo indígena,

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somente o reconhecimento do caráter social sustentado apenas por ele. A função do so-
e coletivo da identidade étnica. Negar ou ciólogo, lembra Bourdieu (1989) não é a de
ocultar lealdades básicas, aderir ou simular fornecer uma classificação verdadeira, mas
adesão a outros grupos e valores, apostar em sim descobrir a lógica de constituição das
estratégias ou identidades que não corres- classificações e os jogos que se estabelecem
pondam aos próprios interesses e sentimen- entre elas. Pretender substituir os atores so-
tos – todas essas são ações de atares indivi- ciais, elaborando mais uma classificação e
duais que convergem para o fluxo da vida entrando no jogo das classificações em dis-
social, onde são corrigidas e adequadas aos puta, seria um equívoco inclusive ético, se
cânones e desejos prevalecentes no grupo. A auto-atribuindo uma autoridade para definir
manipulação de identidades, símbolos e ex- fronteiras que é reivindicada pelos próprios
pectativas fazem parte da dinâmica da vida sujeitos históricos.
social e devem ser por ela avaliados e corri- O principal ponto para o qual conver-
gidos. gem as atenções no entanto na realização
A preocupação manifestada por alguns de um laudo pericial antropológico é a de-
advogados e administradores de que, em vir- finição de qual é efetivamente o território
tude de possíveis vantagens auferidas possa indígena. Como é aí normalmente que se
haver um uso indevido da identidade indíge- encontra o nó de toda a disputa judiciária,
na, não faz sentido se for deslocada do plano esse é sem sombra de dúvidas o ponto mais
estrito das condutas individuais para o pla- sensível, onde o perito irá sofrer todo tipo de
no das práticas e representações sociais. No questionamento pela parte que se conside-
plano do social as formas de recrutamento ra prejudicada por seu parecer. Não apenas
e exclusão, bem com os símbolos e práticas a sua manifestação efetiva, mas também os
legítimas dentro de um grupo, constituem critérios utilizados, a sua competência pro-
uma questão que deve ser regulada pelo pró- fissional ou até a relevância de sua disciplina
prio grupo. Para agir coletivamente os ata- se tornarão objeto de suspeição e crítica.
res sociais têm que partilhar certas crenças Nesse quadro de pressões e questiona-
e valores, que ainda que não sejam originais mentos. o antropólogo é como um navega-
e inteiramente consensuais, acabam sendo dor em mar encapelado, devendo guiar-se
internalizados e passam a ocupar uma po- exclusivamente pela força dos instrumen-
sição central em suas vidas. A condição de tos. Pretender seguir orientações colidentes
indígena, enfim, não poderá nunca ser pos- ou não integradas, obedecendo a um duplo
tulada ou representada com sucesso por um comando, pode fragilizar seriamente os seus
conjunto de pessoas se elas não acreditarem atos e opções, fazendo soçobrar a tarefa es-
que possuem uma origem indígena comum e pecífica que lhe foi atribuída. Para evitar essa
não aceitarem conformar o horizonte de sua hipótese é imprescindível aclarar previamen-
vida futura às decisões do grupo ao qual se te quais são esses instrumentos, se são aque-
sentem como pertencentes. les que a Antropologia lhe forneceu, ou se
Na investigação empreendida pelo an- correspondem a uma mistura confusa desses
tropólogo há ainda uma questão de natureza com preceitos indigenistas e categorias jurí-
ética a considerar, a qual deriva da própria dicas?
concepção da especificidade dos fenômenos Não se trata de exigir um “purismo” na
sociais. Diversamente de outros especialistas, qualidade tio trabalho antropológico. Como
ao atuar como perito o antropólogo não pode já disse antes, a necessidade de um laudo pe-
ceder ao mito cientificista da autoridade pro- ricial não provém do universo acadêmico,
fessoral, passando a substituir classificações mas de questões práticas, colocadas por um
sociais, defendidas por atores históricos con- contexto jurídico ou administrativo. O con-
cretos, por um recorte objetivo e científico,
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junto de finalidades, regras e recursos colo- se dispõe para cumpri-la e o modo mais ade-
cados à disposição do antropólogo configu- quado de interpretá-la.
ram uma moldura dentro da qual ele deverá É importante não deixar de lado uma
executar o seu trabalho, que evidentemente reflexão sobre as dificuldades próprias da in-
deverá pautar-se pelos cânones de sua disci- vestigação etno-histórica, A documentação
plina, partilhando de suas potencialidades e compulsada pelo pesquisador para recons-
limitações. O que não faz sentido de maneira truir o “território tribal” é freqüentemen-
alguma é, levando ao extremo um proces- te incompleta, inconsistente e carregada de
so de mimetização com o contexto jurídico preconceitos contra os indígenas. As fontes
da peritagem, abandonar o caráter técnico- históricas disponíveis – crônicas de viagens,
-científico específico da perícia. relatórios de militares, religiosos e adminis-
É preciso alertar contra os riscos de tradores, memórias de intelectuais e comer-
surgimento de uma espécie de “etnologia es- ciantes – prestam-se muito melhor à recons-
pontânea”, derivada de normatizações e ca- trução do processo de colonização do que a
tegorias presentes nos diplomas legais e atos fornecer dados confiáveis sobre os povos in-
administrativos, reelaborada e explicitada dígenas e os territórios por eles ocupados, É
pelos quesitos formulados por juízes e advo- uma tarefa extremamente penosa distinguir
gados, operacionalizada através das condi- grupos étnicos – quando os documentos
ções de trabalho (com destaque para o fator homogeneizam autodenominações, com no-
tempo) propiciadas ao antropólogo. Um tal mes atribuídos por vizinhos ou inimigos, ou
conjunto de expectativas e injunções infusas ainda, com nomes de aldeias, acidentes na-
no contexto jurídico ao qual se destina a ati- turais ou da região. Dadas as complexidades
vidade de peritagem. pode vir a constituir- da cartografia da época, a alteração de cursos
-se quase que em um quadro de orientação d’água e a mudança de nomes dos aciden-
autônomo, que passa a nortear a investiga- tes geográficos, torna-se bastante difícil até
ção do antropólogo, sem ter sido no entanto mesmo proceder a uma correta localização
objeto de uma maior atenção e reflexão por de povos, aldeias, antigas missões e povoa-
parte da Antropologia. dos. Com tal fundamentação é uma tarefa
Assim procuro discutir a seguir os três muito espinhosa passar por um crivo critico
mais importantes obstáculos que vejo com a documentação existente, chegando a esta-
relação à definição de uma terra indígena belecer, com um mínimo de credibilidade, o
pelo antropólogo no âmbito de uma perícia famoso “consenso histórico”.
judicial. Freqüentemente a investigação es-
O primeiro ponto que devo abordar são barra na ausência de dados (quem naquele
as enormes e ingênuas expectativas quanto momento estava interessado em tais ques-
ao caráter comprobatório que pudesse vir tões?) ou até mesmo na destruição de fontes
a ser assumido pelas reconstruções históri- importantes, seja por descaso na sua con-
cas do contato interétnico. Grandes esforços servação, seja por intenção de omiti-las ou
são dirigidos no sentido de caracterizar a censurá-las. Um fato recorrente é a busca
área em disputa como o território de onde por registros específicos encerrar-se com a
são “originários” aqueles índios, ou ainda notícia de um incêndio nos arquivos do SPI,
que constitui parte do seu “habitat imemo- no Posto Indígena ou nos cartórios locais.
rial”. Embora a intenção seja legítima – a de Em conseqüência o pesquisador termina
tentar verificar a aplicabilidade do artigo do por servir-se de fontes genéricas, que falam
Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), que trata da presença de índios em uma região muito
das terras de “posse imemorial indígena” – é ampla (e não só na área específica que é obje-
necessário discutir melhor os meios de que to da disputa). Algumas vezes os documen-
tos tratam dos índios que habitavam aquela
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área atribuindo-lhes nomes ou procedência crita disponível. De qualquer forma o risco é
étnica absolutamente distinta da identida- que numa situação de enfrentamento no tri-
de que acionam atualmente. Dentro de uma bunal tal história seja vista como fortemente
contenda judicial tais limitações – bastante ideologizada e pouco fundamentada em um
corriqueiras na documentação sobre a histó- inquérito efetivamente científico.
ria dos povos indígenas – pode abrir flanco É para um perigo desta ordem que ad-
à crítica de que tal investigação só conduziu verte James Clifford (1988) ao mostrar, no
a conclusões triviais, que no limite afiança- caso dos Mashpee, que o tribunal do júri
riam apenas que o índio chegou ao Brasil an- ficou muito mais impressionado pelo arra-
tes dos portugueses. zoado de documentos compilados por um
Os interesses e concepções que afluem historiador profissional – que pretendia as-
nos documentos expressam sempre as pers- sim comprovar que os Mashpee abriram
pectivas dos colonizadores, diferentemente mão de suas terras em tratados e transações
por exemplo da extensa documentação ana- comerciais com os brancos – do que com as
lisada por Nathan Wachtel sobre a destrui- alegações genéricas sobre expropriação fun-
ção do Império Inca, onde de algum modo diária e destruição cultural brandidas por
surgem autobiografias, relatos e correspon- etno-historiadores e antropólogos. A plura-
dências escritas por nativos cristianizados. lidade de fontes e a massa documental reu-
As tentativas de superar tal impasse através nida permitiu ao perito da parte oposta aos
da coleta de informações orais de nativos vi- Mashpee um exercício muito mais rigoroso e
vos (Vansina, 1965) tomam-se caudatárias de persuasivo de suas habilidades, fazendo com
dois tipos de objeções. De um lado permitem que seu relato histórico parecesse aos mem-
um limitado recuo no tempo, circunscrito bros do júri muito mais correto e profissional
ao período de vida do informante, os povos do que as intervenções dos peritos da defesa.
indígenas no Brasil não possuindo a mesma Em que medida, pergunto eu, essa não seria
memória genealógica ou elaboradas tradi- uma situação típica, representativa da escas-
ções narrativas sobre a história como ocorria sez de fontes para a história indígena, indica-
com as sociedades africanas. De outro lado dora também de sua fragilidade em contex-
os depoimentos são necessariamente cole- tos judiciais, com a apresentação de provas e
tados no momento presente, muitas vezes contraprovas por peritos opostos?
sendo até posteriores a violentas eclosões de Não estou de maneira alguma dizen-
conflito, sendo relativamente fácil aos advo- do que com os povos indígenas os esforços
gados da parte oposta aos índios lançar sus- de reconstrução histórica são inúteis ou que
peição sobre a autenticidade dos fatos des- serão inteiramente desprovidos de positivi-
critos, bem como sobre possíveis intenções dade, mas sim que a situação de tribunal re-
manipulatórias do informante ou do próprio comendaria a cada disciplina apresentar-se
perito. na seara que lhe é mais propícia, estando o
Dada a ausência de fontes escritas algu- parecer do perito apoiado em metodologias
mas vezes a alternativa que se apresenta ao e teorias dentro de sua esfera mais reconhe-
pesquisador é utilizar-se dos registros exis- cida de conhecimento. E ocorre que muitas
tentes como verdadeiras “atas da conquista”, vezes o antropólogo – independentemente
construindo uma história indígena quase de sua vontade – é empurrado para o terreno
que como uma imagem em negativo, sina- da investigação histórica pela formulação de
lizando para o que ficou de fora da história quesitos que supervalorizam a reconstrução
oficial. O apelo aos depoimentos atuais de histórica em detrimento da análise da situa-
informantes vivos pode ilustrar ou mesmo ção atual. A mesma tendência pode ser en-
dar um certo colorido às interpretações his- contrada em alguns atas que normatizam as
tóricas baseadas na parca documentação es- perícias administrativas para a identificação
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de terras indígenas, como ocorre no decreto cas) quanto as variações internas ao próprio
22/91, que classifica genericamente as ativi- grupo (e concebidas em termos de gênero,
dades a serem executadas pelo antropólogo geração, posição de parentesco, status ritual.
como “estudos etno-históricos”, e não como vínculos faccionais, ajustamentos ecológi-
seria mais correto e natural, como “estudos cos, etc.). Por esta via o antropólogo estará
antropológicos”. efetivamente contribuindo para o processo
O que me parece preocupante é que a de definição do território de um grupo étni-
contribuição mais importante que um antro- co, operacionalizando – dentro de sua esfera
pólogo pode dar ao processo de definição de própria de especialização – categorias legais,
uma terra indígena é usualmente desvalori- como as de terras de “ocupação tradicional”
zado face à sedução (algumas vezes marca- ou de “posse imemorial” dos indígenas.
damente ideológica e simplificada) de fazer O segundo ponto que vou focalizar é
história. Estou me referindo ao que anterior- o da natureza do território indígena, usual-
mente chamei de “uma identificação positi- mente entendido sob formas etnocêntricas e
va” (Oliveira & Almeida, 1988) – isto é, um inteiramente equivocadas.
inquérito, conduzido através do trabalho de Em uma primeira linha de concep-
campo e das técnicas próprias da Antropolo- ções, alguns imaginam o território indíge-
gia, sobre os usos que os índios fazem do seu na segundo o modelo da terra como fator
território, bem como sobre as representações de produção, isto é, como uma mercadoria,
que sobre ele vieram a elaborar. O que inclui que possui um valor e que pode ser quanti-
desde as práticas de subsistência (como co- ficada para os seus possuidores individuais.
leta, caça e agricultura) até atividades rituais Nessa perspectiva – que reflete as práticas de
(como o estabelecimento de cemitérios ou órgãos fundiários e de colonização – seria
outros sítios sagrados), passando por formas errôneo estabelecer uma relação substanti-
sociais de ocupação e demarcação de espa- va entre um dado grupo étnico e uma certa
ços (como a construção de habitações e a de- parcela do território nacional. A questão re-
finição de unidades sociais como a família, a levante não seria propriamente a localização
aldeia e a “comunidade política” mais abran- das áreas indígenas, mas sim o seu tamanho.
gente). Por sua vez as representações sobre Para dimensioná-las o fator tomado corno
o território devem ser investigadas em todas decisivo seria o contingente demográfico, o
as dimensões e repercussões que possuem, que – considerado um certo nível tecnológi-
isso atingindo não só o domínio do sagrado co e as exigências de uma produção agrícola
(onde entram as relações com os mortos, as – reverteria em um volume de terras julga-
divindades e os poderes personalizados da do necessário para atender as suas supostas
natureza), mas também as classificações so- necessidades econômicas. O indicador que
bre o meio ambiente e suas diferentes formas permitiria esse cálculo seria a criação de um
de uso e de apropriação, ou ainda as concep- coeficiente – o número médio de hectares a
ções sobre autoridade, poder político, rela- que cada índio teria acesso dentro da terra
ção com outros povos indígenas e a presença atribuída a sua coletividade – que poderia
colonial do homem branco. variar de acordo com as características cli-
Todos estes são aspectos onde o antro- máticas e de solo, mas que deveria chegar a
pólogo – e apenas ele – têm efetivamente prescrever uma relação ótima entre as duas
condição de encaminhar urna pesquisa cien- variáveis.
tífica, que venha a embasar um laudo peri- São evidentes os equívocos dessa con-
cial. Ao assim proceder ele não estará rei- cepção, que já critiquei duramente em um
ficando a situação atual, mas partindo dela trabalho anterior (Oliveira, 1987). As neces-
para pensar tanto as mudanças ocorridas ao sidades projetadas em tal cálculo circuns-
longo do tempo (ciclos e conjunturas históri-
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crevem-se não só ao domínio do econômico metendo-se ao meio ambiente com o qual
– deixando totalmente de lado as atividades uma espécie viva (de animais ou plantas) de-
que concorrem para a reprodução social e senvolve relações entrópicas. Algumas ver-
cultural dessa coletividade – mas ate mesmo tentes teóricas, como a geografia humana, a
dentro do econômico limita-se à esfera da sociobiologia e a ecologia cultural, fornecem
produção voltada para o mercado, descar- respaldo científico a esta perspectiva, dando
tando inteiramente as atividades destinadas posição central à conceituação de territoria-
ao auto-abastecimento (como as roças de lidade, entendida esta quase que como uma
subsistência, as áreas de coleta, de caça e de qualidade essencial de todas as sociedades.
criação). Há um nítido favorecimento quan- O segundo problema decorre de uma
to à agricultura, os módulos rurais estabe- freqüente associação entre a idéia de “ha-
lecidos em tais ocasiões revelando-se como bitat” ou “território indígena” e a crença de
inadequados para o extrativismo ou o criató- que esse seria o lugar de onde seria “originá-
rio. E sobretudo as demandas territoriais de rio” aquele povo indígena, ou pelo menos de
um povo indígena não podem ser fixadas se- onde desde tempos muito recuados exerceria
gundo o modelo de produtores rurais inde- sobre aquela terra uma “posse imemorial”.
pendentes, uma vez que configura um grupo
É preciso conduzir urna crítica mais
étnico, que partilha tradições culturais e que
detalhada dessa segunda perspectiva, que se
freqüentemente mantêm uma relação sim-
aninhou com certa comodidade nas defini-
bólica específica com um dado território, ções legais e se alimenta também das repre-
que conceitua como seu. sentações genéricas do índio como primitivo,
Uma segunda linha de concepções par- pois apesar de alguns méritos (se comparada
te da idéia de uma indissolúvel conexão en- a primeira) têm implicado no surgimento
tre um grupo étnico e um certo território, de de expectativas inteiramente improcedentes
tal maneira que mudanças em uma dessas face ao processo político de definição das
variáveis ameaçariam drasticamente – ou terras indígenas.
mesmo inviabilizariam – a continuidade da A definição de uma terra indígena – ou
outra. A postura em geral é de simpatia pelos seja o processo político pelo qual o Estado
povos indígenas enquanto coletividades di- vem a reconhecer os direitos de uma “comu-
ferenciadas da sociedade nacional, diferente
nidade indígena” sobre parte do território
portanto da linha anteriormente criticada, nacional – não pode ser pensada ou descrita
que as reduz a um conjunto de produtores segundo as coordenadas de um fenômeno
agrícolas isolados e apenas os vê enquanto
natural. Longe de ser imutáveis, as áreas in-
futuros não-índios. Há também uma louvá- dígenas estão sempre em permanente revi-
vel intenção preservacionista, que se expres-
são, com acréscimos, diminuições, junções
sa na discussão de mecanismos de proteção
e separações. Isto não é algo circunstancial,
às culturas indígenas e ao meio ambiente, o
que decorra apenas dos desacertos do Estado
que faz com que esta linha utilize constante-
ou de iniciativas espúrias de interesses con-
mente a legislação indigenista, pretendendo
trariados, mas é constitutivo, fazendo parte
inclusive aperfeiçoá-la, contrastando assim da própria natureza do processo de territo-
fortemente com a linha anterior, que se lhe rialização de uma sociedade indígena den-
contrapõe e que chega mesmo a postular sua tro do marco institucional estabelecido pelo
extinção. Estado-Nacional (Oliveira, 1993).
Existem no entanto dois sérios proble-
É imprescindível recordar que a noção
mas envolvidos. Em primeiro lugar porque de território não é de forma alguma nova no
o território indígena é usualmente pensado discurso das ciências humanas, constituin-
através da categoria de “habitat”, muito co-
do-se em peça central para a classificação
mum no discurso das ciências naturais, re-
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dos sistemas políticos e para a definição de os interesses, as ideologias e as conjunturas.
unidades políticas. Diferentemente dos Es- Ou seja, as práticas e representações de um
tados-Nações, cujos limites são rigidamente povo indígena sobre o território (isto é, o que
fixados, pois permitem distinguir a aplicação alguns chamam de territorialidade) não po-
da lei do exercício da guerra, os povos indíge- dem ser avaliadas senão dentro de um preci-
nas possuem fronteiras territoriais bem mais so contexto situacional.
fluídas, que oscilam regularmente em função Ainda que fosse possível estabelecer
de variações demográficas, expedições guer- qual o território ocupado por um povo in-
reiras ou movimentos migratórios de vários dígena há centenas de anos atrás, isso não
tipos. Para elas a demanda sobre a terra não significa necessariamente que esse seja o
é fixada a priori na constituição da própria território reivindicado pelos seus membros
unidade política, mas pode sofrer grandes atuais. Só a pesquisa antropológica poderá
mudanças em decorrência da convergência dizer como o território é pensado pelo pró-
circunstancial de interesses e da capacidade prio grupo étnico no momento presente.
de mantê-la face à pressão de outras socieda- Colhidos pelas frentes de expansão, os povos
des vizinhas, também portadoras de caracte- indígenas freqüentemente foram deslocados
rísticas análogas. centenas de quilômetros das áreas que habi-
É um fato histórico – a presença colo- tavam anteriormente, passando por proces-
nial – que virá a instaurar uma nova relação sos de reterritorialização em missões religio-
com o território, deflagrando transformações sas, fazendas, cidades, seringais, etc. Como
em múltiplos níveis de sua existência sócio- fazer para definir o seu território se persis-
-cultural. A própria proposta de território tirmos em pensar as terras indígenas como
que um grupo étnico elabora não pode ser imemoriais, pretendendo dar realidade ao
examinada independentemente das lideran- mito da primitividade?
ças que a veicularam, da geração que a con- Por fim tocarei brevemente em um últi-
cebeu, das alterações no sistema produtivo e mo ponto, relativo ao contexto onde são ge-
na disponibilidade de recursos ambientais, rados os dados utilizados nos laudos, ou seja,
expressando também uma apreensão especí- a situação de perícia .
fica da correlação de forças frente aos bran- Os laudos periciais procedem de uma
cos em nível local, bem como da conjuntura
situação de pesquisa bastante singular, quan-
histórica mais ampla em que se articula o do os conflitos sobre a definição da terra
campo de ação indigenista. Para marcar o indígena já atingiram os tribunais e se to-
caráter histórico e político-progressivo desse
maram de amplo conhecimento dos índios
fenômeno preferi trabalhar com a noção de e não-índios. A grande maioria dos infor-
“processo de territorialização”, desenvolvida
mantes tem uma visão relativamente clara do
em outra ocasião (Oliveira, 1993), afastan-
trabalho do pesquisador, sabendo que o que
do-me portanto da idéia de uma qualidade
disserem a ele poderá ser usado na contenda
imanente consubstanciada na noção de ter-
judicial para fortalecer ou inviabilizar suas
ritorialidade. Não seria oportuno esquecer
demandas sobre o território. Os não-índios
o alto custo a pagar pelo uso de metáforas freqüentemente escondem os seus precon-
biológicas, como anteriormente se verificou ceitos e omitem violências e arbitrariedades
na própria definição de grupo étnico. seculares, apresentando-se ao pesquisador
Na linha de raciocínio aqui apresenta- como vítimas de “falsos índios” e de deman-
da não faz sentido julgar que um laudo pe- das territoriais inteiramente infundadas e ar-
ricial possa estabelecer com exatidão e de tificiais, na maioria das vezes atribuída a ter-
uma vez por todas qual é o território de um ceiros. As lideranças e as entidades de apoio
povo indígena. As propostas dos próprios também buscam esclarecer os membros do
índios mudam porque também se alteram
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grupo étnico sobre as finalidades do traba- se destina) a contextos exclusivamente aca-
lho, recomendando certas atitudes e opini- dêmicos. Isso no entanto não autoriza a que
ões para os possíveis entrevistados. se classifique a investigação e os resultados aí
Conduzir a investigação em outras di- atingidos como mera aplicação de conheci-
reções, consideradas não prioritárias ou até mentos já existentes, ou que se conclua pre-
mesmo perigosas; gerar dados novos e signi- viamente que a interpretação aí apresentada
ficativos quando os informantes apenas que- das sociedades indígenas é trivial ou pouco
rem reiterar suas opiniões; evitar envolver-se relevante.
nas pendências faccionais ou intrometer-se Certamente o caminho não será o, de
em assuntos internos ao grupo, não deixar limitar nesse gênero narrativo a contribuição
de acumular dados significativos sobre a his- da Antropologia a um simples acervo de in-
tória e as relações interétnicas apesar das fal- formações etnográficas, reunidas para aten-
sidades e ameaças acionadas pelos poderes der a finalidades exclusivamente práticas.
locais – todas essas são tarefas bastante com- Também não tem sentido apelar para uma
plexas que exigem da parte do perito uma vaga experiência indigenista, nem tampouco
formação integral em Antropologia. subvalorizar a atividade de feitura de laudos,
Trabalhar em situações de pesquisa considerando-a como algo menor, enclausu-
que estão muito próximas de um contexto rando-a como uma simples técnica, que seria
de decisão sobre coisas vitais para o infor- aplicada por um conjunto de especialistas,
mante não é algo simples, exigindo do perito distinto dos antropólogos de carreira.
um grande controle sobre as metodologias Não teria cabimento algum reeditar a
e técnicas de investigação. Um pesquisador distinção, atualizada no contexto britânico
pouco treinado dificilmente conseguirá reu- do pós-guerra, entre antropólogos “práticos”
nir dados etnográficos que lhe permitam re- (vinculados ao Collonial Office) e “teóricos”
colocar as posições divergentes, tomando-se (vinculados às universidades). Ainda que a
prisioneiro das ideologias diretamente vei- FUNAI e a PGR venham a manter quadros
culadas pelos informantes. específicos de especialistas – o que considero
Tendo em vista as considerações pre- muito positivo pardo o exercício regular de
cedentes sobre o caráter conjuntural de uma suas atividades – os laudos periciais tocam
proposta de criação de terra indígena, o an- em assuntos de grande relevância teórica e
tropólogo precisa descrevê-la e avaliá-la jun- exigem cuidados metodológicos que apenas
tamente com a situação social que a gerou. um antropólogo com formação em nível de
Tal orientação não abrange apenas as pro- pós-graduação será capaz de lidar com a ne-
postas feitas por lideranças indígenas ou pelo cessária competência. Ou seja, pela comple-
órgão indigenista, mas devem ainda incluir a xidade dos desafios que colocam os laudos
descrição do relacionamento do antropólogo periciais devem continuar a ser feitos apenas
com o grupo pesquisado e com os diferentes por antropólogos com uma formação inte-
informantes utilizados. Explicitar a base de gral, se possível indicados por sua entidade
suas observações e indicar a sua própria po- profissional.
sição quanto ao território indígena constitui
um fator muito importante para uma correta REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
avaliação dos limites e da confiabilidade de
sua própria pesquisa. BAREL, Yves. Le social et ses territoires in
Concluindo, eu lembraria mais urna Espaces, Jeux & Enjeux. F. Auriac et R. Bru-
vez que um laudo pericial não é realizado net (eds.). Paris: Fayard, 1986 (p. 129-139).
para responder primordialmente a questões
teóricas, nem decorre de uma motivação (ou BARTH, Fredrik. Introduction in Ethnic
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86
MISCELÂNEA
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

A FALA PÚBLICA E A PALAVRA ESCRITA


ASPECTOS DA INTERVENÇÃO MILITAR EM TERRAS INDÍGENAS NO RIO IÇANA, NOROESTE AMAzÔNICO*
FABIANE VINENTE DOS SANTOS**

RESUMO deline for the analysis of the different pers-


pectives involving the Brazilian Army milita-
Tomando como ponto de partida as reflexões ry and the Koripako Indians from the upper
de Veena Das, este artigo faz uma reflexão so- Içana River, up above the Negro River.
bre as limitações do conceito de equidade de
direitos em contextos culturais específicos e Key-words: Koripako people, upper Negro
sobre as ambivalências da “fala pública” e da River, critical event, military, violence.
palavra escrita entre brancos e índios e sua
relação com a categoria “evento crítico”como RESUMEN
fio condutor para a análise das perspectivas
diferenciadas envolvendo militares do Exér- Tomando como punto de partida las refle-
cito Brasileiro e índios koripako do alto rio xiones de Veena Das, este artículo refleja las
Içana, Alto Rio Negro. limitaciones del concepto de la igualdad de
derechos en algunos contextos culturales es-
Palavras-chave: Koripako, alto rio Negro, pecíficos, y también las ambivalencias del
evento crítico, militares, violência “hablar en público” y de la palabra escrita
cuando los testigos son personas blancas o
ABSTRACT indias, y su relación con la categoría “evento
critico” (situación crítica) como alambre con-
Departing from Veena Das’s ideas, this article ductor para el análisis de las perspectivas que
reflects about the limitations of the concept tendrían los indios koripako Içana del Alto
of equality of rights in specific cultural con- Río Negro, cuando sufren abuso de los mili-
texts and about the ambivalence of the public tares del Ejército Brasileño.
oral speech and the written word between the
White and the Indians, and their relationship Palabras-clave: Koripako, Alto Rio Negro,
with the category of “critical event” as a gui- evento crítico, militares, violência.

* Esta versão é uma síntese do trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia realizada entre os
dias 1 a 4 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil no GT 20 - Etnografias de Eventos Críticos e Conflitivos no Brasil
plural. Agradeço aos comentários dos participantes, que foram muito úteis para o aprimoramento do texto.
** Mestranda do PPGSCA da UFAM.

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SOBRE TESTEMUNHOS E CONFIS- ve no trabalho da instituição jurídica e, se
SÕES olharmos para práticas como as dos “grupos
de autoajuda”, cuja metodologia passa pelo
A noção de evento crítico foi utilizada compartilhamento de experiências individu-
por Veena Das ao referir-se a fatos ocorridos ais através das narrativas de tom confessio-
na história recente da Índia que promoveram nal, tem-se um quadro no qual a confissão
rupturas importantes não apenas no plano e o testemunho assumem uma centralidade
cotidiano, mas que também alteraram as di- específica no mundo contemporâneo.
retrizes que orientam as relações dos grupos O aspecto político e social do testemu-
envolvidos (sihks, hindus e mulçumanos) nho ganha contornos diferenciados entre
com o Estado. Recusando a concepção de outros povos. Aqui me reportarei aos kori-
homogeneidade e privilegiando as descon- pako1, que junto com os baniwa, habitam a
tinuidades que permeiam as identidades so- calha do rio Içana e que por vezes aparecem
ciais, Das denuncia a debilidade de noções na literatura etnográfica como constituindo
universalistas como a de direitos humanos um único grupo com estes e com vários tra-
no Estado Indiano, articulando dimensões ços em comum como a organização social
tidas como irreconciliáveis como a indivi- formada por fratrias compostas de cinco a
dual e a coletiva, sem perder de vista o Es- seis sibs, que funcionam como a base social
tado e suas metodologias de ação pautadas e política da divisão econômica e do uso dos
por diretrizes e valores elaborados em níveis recursos. Journet (1988:48) estabelece, com
globais, demonstrando o quanto “valorizar alguma dificuldade, algumas diretrizes de
indevidamente a comunidade como unida- pertencimento aos sibs como a referência ter-
de orgânica e autêntica” pode ser prejudicial ritorial e a variante dialetal praticada. Além
para a análise “já que esta também tem seus desta dificuldade inerente de categorização, a
meios de opressão” (Peirano 1997). Provoca- violência dos assassinatos, os deslocamentos
do por Das, este escrito tenta refletir sobre forçados e a escravização dos indígenas ao
os limites da noção de equidade de direitos longo dos séculos alteraram drasticamente a
em contextos culturais específicos utilizando reconfiguração dos sibs, chamados de inaiki
a categoria evento crítico como fio condutor (“gente”) com a extinção de alguns e recon-
para a análise de uma situação envolvendo figuração de outros. Ao listarem os sibs, os
militares do exército brasileiro e índios kori- koripako quase sempre fazem referência ao
pako do alto rio Içana, Alto Rio Negro. desaparecimento de vários desses grupos –
Categoria importante nesta discus- por deslocamentos forçados, epidemias ou
são é a da “fala pública”, cuja compreensão escravização decorrente das políticas co-
aqui requer um mergulho breve no estatuto loniais e, mais tarde, da inserção da região
da confissão e do testemunho no Ocidente no capitalismo transnacional da economia
através dos escritos de Foucault (1976; 2002), extrativista do látex, processo abordado em
que elabora sua “arqueologia” como recurso várias pesquisas (Meira, 1996; Wright, 2002).
para obtenção da “verdade”, capilarizando-se A aparente naturalidade com que esses
em diversas disciplinas como a filosofia, di- “desaparecimentos” - que contêm na verdade
reito, medicina e psicologia e atuando como processos genocidas – são narrados, eviden-
base da ciência moderna por possibilitar a cia que, entre os koripako, a forma de lidar
obtenção da “verdade científica neutra”. Uma 1 Baniwa (no baixo e médio rio Içana e rio Aiary) e Ko-
ampla tradição de usos das confissões e teste- ripako (no alto Içana) fazem parte do “sistema” cultural do
munhos estabeleceu-se com consequências Alto rio Negro e mantêm, ao longo de séculos, relações de
comércio, aliança ou guerra com outros grupos, como ates-
sociais importantes. Para citar alguns exem- tam as fontes de história escrita e oral (Wright, 2005), ha-
plos, o testemunho e a confissão nos inqué- bitando territórios na Venezuela e Colômbia e perfazendo
ritos policiais constituem-se em peças-cha- uma população total de aproximadamente 15.000 pessoas
(Weigel, 2000).
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com o testemunho é diferente; poderíamos argumentar, responder (a uma pergunta)
falar de uma ausência de “narrativas de viti- reclamar, etc. A multiplicidade de sentidos
mização”, o que não significa que tal memó- dessa palavra pode ser explicada pelo peso
ria não provoque sofrimentos, mas sim que que a palavra dita possui.
não foi articulada na forma de um discurso Os koripako configuram-se dentro do
de implicações políticas frente ao Estado2. A que Joanna Overing (1989), ao referir-se
memória dos desaparecimentos não foi se- aos Cubeu e aos Piaroa, chamou de “estéti-
pultada, mas ela não é enfatizada, ao contrá- ca da produção”: o papel central que a va-
rio de outros casos como os judeus vítimas lorização da harmonia na vida comunitária
do Holocausto, cuja memória da tragédia possui para alguns povos amazônicos. Falar,
constituiu-se em importante ferramenta po- aconselhar e convencer são ações importan-
lítica. A fala pública é evocada em contextos tes para manter a tranquilidade e o conforto
específicos de reforço da solidariedade cole- psíquico, mas dentre os elementos disrupti-
tiva. vos com potencial para destruir tal harmonia
O rio Içana foi evangelizado por uma também figurariam ações relacionadas com
missionária nova-iorquina chamada Sophie a fala como a fofoca e as acusações de feiti-
Muller, que em 1948 chegou ao Brasil vin- çaria.
da do Guainia (nome do rio Içana em terras O potencial das palavras possui ainda
colombianas), traduziu o Novo Testamento relações profundas com a religiosidade. A
para o idioma koripako e converteu os po- conversão maciça ao evangelismo na déca-
voados baniwa e koripako até voltar para a da de 50, como lembra Wright (2004), pode
Colômbia como foragida das autoridades ser em grande parte atribuída ao papel que a
brasileiras da época. A atuação de Müller “palavra de Deus” (Deo Iako), ou seja, a tra-
conseguiu grande aceitação em toda a bacia dução da bíblia para a língua indígena por
do Içana, e apesar de seu ataque sistemático Sophie Muller5, exerceu: enfim os koripako
às práticas xamânicas, ao uso do caxiri3, ta- podiam contar com um instrumento que
baco e ao catolicismo, conseguiu disseminar lhes auxiliasse a lidar com os desafios estabe-
o evangelismo com ampla aceitação dos in- lecidos pelo contato e que, de várias formas,
dígenas (Wright 1999; 2004 e 2005). ancorava-se com sua própria visão de mun-
do. Xavier (2008) acertadamente denomina
O FALAR PARA OS KORIPAKO “religião social” a forma como estes viven-
ciam a experiência cristã: além de ser orien-
Na língua koripako o verbo -kaite4, tada fundamentalmente pela cosmologia e
quando traduzido para o português, pos- visão de mundo dos indígenas, é partilhada
sui uma miríade de sentidos de acordo com como um valor comunitário, inclusive em
o contexto: falar, informar, contar, avisar, suas sanções, só fazendo sentido no quadro
aconselhar, apelar, convencer, admoestar, de referências coletivo, que a distancia das
noções individualistas de conversão pessoal
2 A justificativa para a demarcação das terras indígenas estabelecidas pela ética protestante ociden-
em 1997, por exemplo, que poderia ser um momento para
esta articulação política da memória dos massacres, ensejou
tal.
outras estratégias, como o protagonismo político e a auto- A forma tímida como os koripako cos-
-determinação a partir do associativismo. Vale lembrar que tumam se relacionar com os brancos é no-
os koripako mantém uma participação política no movi-
mento indígena organizado ainda muito recente e tímida.
tória no Alto Rio Negro. O retraimento face
3 Bebida feita de mandioca brava fermentada (Manihot à chegada de estranhos nos povoados, com
sculenta).
4 Os verbos, então, são sufixos que dependerão do sufixo 5 No alto e médio Içana a influencia de Sophie Muller é
pronominal para fazerem sentido. “Eu falo” é “nokaite”. Para muito presente e alguns povoados são enfáticos na recusa
traduzir os verbos infinitivos em português utiliza-se a fle- de práticas xamânicas. Outros, notadamente no médio, gra-
xão com o sufixo da terceira pessoa masculina do singular: ças a projetos auto-geridos de valorização cultural nos últi-
“Li” (Pronuncia-se “Ri”, como em “carinho”): Likaite. mos anos, concebem tais práticas positivamente.
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mulheres e crianças escondendo-se para criados junto com os koripako na cachoeira
observar de uma distância segura os recém- de Uapuí (o umbigo do mundo), no rio Aia-
-chegados virou uma cena comum e os ko- ry, foram agraciados por Amaru, a primeira
ripako atribuem tal comportamento ao seu mulher, que de acordo com o mito de criação
fraco domínio do português. Com efeito, ao fugiu para o sul (de onde vêm os Ialanai) le-
contrário de outras áreas como àquelas pró- vando as flautas sagradas e a capacidade de
ximas às missões católicas, nas quais houve produzir mercadorias (Xavier, 2008).
um grande investimento na escolarização
formal por parte destas e onde as pessoas A PRESENÇA MILITAR
dominam além de sua língua o português,
no alto Içana o uso do Ialanai Iako (“língua Como observa Wright (2005), a pre-
do branco” que pode ser o português ou o sença militar no Alto rio Negro inaugura-se
espanhol) é circunstancial e, na maioria das ainda no século XVIII, com a entrada das
vezes, são os homens que se aventuram nos chamadas “tropas de resgate” cujo objetivo
centros urbanos de São Gabriel e Manaus era a obtenção de escravos indígenas. Após a
(Brasil) ou Mitú (Colômbia) que podem en- derrota dos Manao e seus aliados, os Maya-
tregar-se a diálogos mais espontâneos com pena do médio rio Negro pelos portugueses
os forasteiros. Entre as mulheres, as prerro- (1723-1727) o caminho para os escravagis-
gativas sociais que franqueiam aos homens tas ficou aberto e o período que se seguiu foi
a atribuição de negociar com as demais alte- de intensa atividade dos traficantes que tro-
ridades (brancos ou não humanos) deixam cavam escravos por machados, anzóis, mi-
poucas oportunidades para o uso de uma çangas e estimulavam a guerra entre grupos
língua que não seja a sua própria, tornando indígenas com o objetivo de obterem mais
seu domínio do Ialanai Iako ainda mais res- escravos para levar ao Pará e a Manaus (Bar-
trito. ra), o que é confirmado por relatos como o
A palavra dita possui um valor diferen- do naturalista Alexandre Von Hunboldt, que
te daquele atribuído pela confissão foucaul- assinala a maior intensidade das tropas a
tiana: a utilização do que podemos chamar partir de 1737. Nesse período, paralelamen-
de “palavra pública” só encontra sentido na te às tropas do governo, estavam em ação os
contribuição para o equilíbrio social, en- missionários católicos que através dos “des-
quanto a confissão ocidental pretende exa- cimentos” de indígenas atingiam também a
tamente uma suposta neutralidade. Poderia um número considerado de pessoas, modi-
arriscar dizer que o fraco domínio do por- ficando permanentemente a dinâmica popu-
tuguês deixaria os koripako, em seu modo lacional local.
de ver as coisas, mais vulneráveis frente aos No Içana, Wright (2002; p. 435) mos-
brancos e mais propensos a desentendimen- tra que a guerra foi a mais marcante forma
tos com estes, uma vez que não contariam de contato com os brancos. Foram prova-
com a principal forma de mediação que fun- velmente os militares os primeiros a ter
damenta as relações sociais, no caso, a fala contato com os índios baniwa, inicialmente
pública. pelas tropas de resgate na primeira metade
A alteridade do Ialanai (o “Branco”) é do século XVIII e a partir do século XIX pe-
quase sempre tida como perigosa: este não los contatos intermitentes com grupamen-
está submetido às mesmas limitações e fragi- tos militares em São Gabriel, Marabitanas e
lidades comuns aos koripako, não tem neces- Cucui. Entretanto, pode-se dizer que a mili-
sidade de jejuns especiais, de couvade e não tarização sistemática da fronteira só começa
é acometido facilmente por ataques mágicos realmente no século XX, sob os auspícios do
de humanos ou não humanos. Outro atri- Estado Brasileiro republicano consolidado,
buto importante dos Ialanai é a sua riqueza: ainda no período da ditadura militar.
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A ocupação da fronteira por unidades tituiu numa grande ofensiva técnica e estru-
militares a partir da década de 70 revela a tural em nome da segurança nacional, cons-
maneira como a Amazônia e seus povos são truindo quartéis e provendo os pontos mais
representados dentro da ideologia militar e extremos das fronteiras com unidades mili-
do próprio Estado nacional. A região aparece tares, os PEFs (Pelotões Especiais de Frontei-
como caracterizada pelo pensamento militar ra). Alvo de investimentos militares intensos
por algumas constantes que acabaram sen- desde então, o Alto rio Negro atualmente
do adotadas como pressupostos até por se- conta com várias bases militares: o Hospital
tores da academia e pelas políticas públicas, Geral de Guarnição (HGGu), Comando de
dentre as quais se destacam as imagens mais Fronteira do Rio Negro (CFRN), o Batalhão
usuais como o “vazio demográfico”, a de no de Engenharia e Construção (BEC), a Bri-
man’s land dominado pelo signo da natureza gada Ararigbóia, o 5º. Batalhão de Infanta-
(foco de doenças endêmicas), a magnitude ria da Selva, com sete Pelotões Especiais de
(associada à ideia de maior floresta do mun- Fronteira (PEFs).
do) e a riquezas incomensuráveis (madeira, Os PEFs são unidades táticas do Exér-
minérios etc), que seriam as principais moti- cito Brasileiro com contingente variável en-
vações das nações “desenvolvidas” quando se tre 35 a 66 homens, instalados em posições
preocupam com os destinos da região. Pouca consideradas estratégicas na chamada “faixa
atenção é dada ao aspecto humano dos po- de fronteira”, definida pela Lei n.º 6.634, de
vos que habitam a região e as ações do Es- 02/05/1979, que estabelece como área de se-
tado caracterizam-se ainda em grande parte gurança nacional a faixa interna de 150 qui-
pelo “campanhismo”, ou seja, ações pontuais lômetros de largura, paralela à linha divisó-
e de notabilidade tão grande quanto a sua ria terrestre do território nacional. Os PEFs
efemeridade. do Alto rio Negro estão localizados em Pari-
Como consequência desse sistema de -Cachoeira, Iauaretê e Tiquié, (áreas de gru-
representações, a Amazônia aparece ainda pos Tukano), em Querari, (área Cubeo), Tu-
hoje para o Estado brasileiro como alvo de nuí e São Joaquim (área baniwa-koripako),
ações “civilizatórias” com pouco ou nenhum Maturacá (na área Yanomami) e Cucuí.
comprometimento em garantir o bem-estar Keradarho (nome koripako de São Jo-
das pessoas de forma contínua e estruturada, aquim), distante 360 quilômetros em linha
relegando-as dessa forma ao papel de “parte reta da sede do município, São Gabriel da
do cenário natural” e, portanto, sem necessi- Cachoeira, além de Makaloanan e Wariram-
dade dos serviços públicos mais fundamen- bá, os demais povoados do qual trato aqui,
tais que são oferecidos em grande parte da localizam-se no alto rio Içana, do lado brasi-
região esporadicamente e de forma descon- leiro; o primeiro conta com uma população
tínua e descoordenada por diferentes agên- de aproximadamente 350 pessoas e, apesar
cias. A presença do Estado se dá de forma de ser território tradicional do sib Komadaa
mais efetiva nos grandes centros urbanos e Minanai (Filhos do Pato), abriga famílias de
em algumas localidades mais populosas. A diferentes grupos e foi o local de implanta-
Amazônia é vista eternamente como uma ção de um dos primeiros PEFs instalados na
“questão militar”. posição de Motivos no. 0l8/85 da Secretaria-Geral do Con-
A década de 70 do século XX repre- selho de Segurança Nacional da Presidência da República
que cria um Grupo de Trabalho Interministerial destinado
sentou no alto rio Negro e em várias áreas a subsidiar a ação governamental na “região ao norte das ca-
amazônicas o ápice desse pensamento com lhas dos Rios Solimões e Amazonas”, a fim de proporcionar
a implantação do PIN (Plano de Integração meios para a superação das “grandes dificuldades impostas
pelo meio ambiente ao desenvolvimento”, promovendo a
Nacional) pelo governo ditatorial. Em 1986 sua “efetiva integração no contexto nacional”. Embora esse
o Projeto Calha Norte (PCN)6, que se cons- GTI no ato de sua criação fosse coordenado por vários ór-
gãos, suas ações acabaram por configurá-lo como um pro-
6 O Projeto Calha Norte (PCN) tem sua origem na Ex- jeto militar (Oliveira Filho, 1990).
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região, em 1988. ta disso, eles questionavam a validade de tal
A presença do Pelotão garante em Ke- prisão.
radarho alguns equipamentos sociais im- Apesar de saber pouco, tentei explicar-
portantes como duas escolas, uma munici- -lhes que embora o que os meninos tinham
pal, que atende às crianças do pré-escolar e feito fosse errado e contra a lei, não era atri-
as turmas de 1ª. a 4ª. séries do ensino fun- buição do Exército prender civis nessas cir-
damental, e uma estadual, mantida a partir cunstâncias e que para apuração caberia
de um convênio entre a Secretaria Estadual ao órgão indigenista (FUNAI) e às lideran-
de Educação com o Comando Militar, que ças. Mais tarde uma das lideranças da área
fornece ensino de alfabetização, de 5ª. a 8ª. me disse que eles reconheciam a culpa dos
série e um curso de ensino médio, recém- jovens no “problema”, mas que não concor-
-implantado, com dois professores oriundos davam com a maneira arbitrária com a qual
de outras regiões do alto rio Negro e por mu- eles tinham sido presos
lheres de militares do Pelotão. A presença do Já em São Joaquim a reação das pessoas
quartel também garante que mensalmente a quando eu falava sobre a pesquisa e busca-
aeronave que abastece o pelotão com víveres va autorização para permanecer era muito
e combustível seja utilizada para transporte vaga, até que no dia seguinte à minha chega-
de civis em direção à sede do município e da recebi a visita de um dos líderes indígenas
vice-versa. que tinha sido incumbido pelos demais a fa-
lar sobre o “problema” comigo. Com o passar
O “PROBLEMA” dos dias fui procurada por outras pessoas,
mas foi somente durante a conversa “oficial”
São Joaquim localiza-se no alto curso com seu Antonino7 que tive um vislumbre da
do rio Içana e os únicos modos de chegar estória toda. A conversa deu-se pela tarde,
até lá é pelo rio ou por uma das aeronaves num horário em que a aldeia fica quase de-
militares que mensalmente abastece os pelo- serta, com a maioria das pessoas trabalhando
tões com víveres e combustível. Para iniciar o nas roças. Apesar da aparência de esponta-
campo optei pela primeira opção, que daria a neidade, seu tom de voz e o cuidado com que
oportunidade de parar em alguns povoados abordava o assunto não deixavam dúvidas de
para conversar sobre a pesquisa e nos infor- que o tema era polêmico e sua abordagem
mar sobre os acontecimentos. Ao parar em com uma estranha não era fácil. A conversa
Heerikanan, povoado há alguns quilômetros quase secreta com seu Antonino deu o tom
de Keradarho, uma reunião foi marcada pelas das demais que eu teria com moradores do
lideranças para a apresentação da pesquisa povoado durante minha permanência em
para a comunidade, como parte do processo campo em ocasiões intempestivas como no
de obtenção do consentimento esclarecido. caminho para o porto durante meus banhos
Mais tarde soube que na verdade os koripako diários ou quando eu saia para lavar roupa
queriam minha opinião sobre algumas ques- e era inesperadamente abordada por algum
tões “legais”, dentre elas um certo “problema” morador.
ocorrido em Keradarho. Eles queriam saber As informações colhidas forneceram
objetivamente se o Exército tinha poder para um quadro do fato que também foi relatado
“prender” os indígenas. Após muita discus- em documentação a qual eu tive acesso pos-
são em koripako, na qual pareciam debater teriormente na Federação indígena e no Pro-
o que poderiam ou não me contar, surgiu a cedimento Administrativo (P.A.) registrado
seguinte versão: alguns jovens indígenas ha- sob o número 1.13.000.001698/2008-32 na
viam “agarrado” (estuprado) uma menina 6a. Câmara do Ministério Público Federal do
e o comandante anterior do Pelotão de São
Joaquim teria mandado prendê-los. Em vis- 7 Pseudônimo, como os demais que aparecem ao longo
do texto.
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Amazonas8. Uma análise desse material e de A partir daí tem-se outra versão dos
outros relacionados e reunidos ao longo da fatos, dada pelos indígenas presos naquela
pesquisa será feita a seguir. noite e disponibilizada em cartas de próprio
punho e num relatório, anexados a um do-
UM EVENTO CRÍTICO NO RIO IÇANA cumento de denúncia ao Ministério Público
através de carta de 17 de março de 2008, ex-
No dia 29 de setembro de 2007 fora pedida pela Federação das Organizações In-
realizada em Keradarho uma grande festa dígenas do Rio Negro – FOIRN [17]. Acom-
envolvendo torneio de futebol – uma das panham o documento da FOIRN seis cartas
paixões dos koripako, com a participação de próprio punho redigidas por cinco dos
de várias comunidades do quadrante do alto alegados doze jovens koripako presos en-
Içana. Por volta das 23 horas, um grupo de tre os dias 29 e 30 de setembro de 2007, nas
cinco militares pertencentes ao PEF des- quais são relatadas a invasão das residências
ceu o pequeno desnível de areia que separa pelos militares da “patrulha” que realizou a
a aldeia do pelotão e começou a perguntar prisão dos rapazes, ameaças, coação e várias
por alguns dos jovens indígenas. A lista nas formas de humilhação e um relatório elabo-
mãos do Sargento que liderava a patrulha rado pelos indígenas e datado de 31 de se-
indicava o nome, mas como ele não conhe- tembro de 2007 (dois dias depois da soltura
cia as pessoas, a solução era fazer com que o dos rapazes). O relato possui os contornos de
primeiro “capturado” indicasse as casas dos um “drama social”, como o chamaria Turner
demais. Alguns foram pegos no terreiro, ou- e, em seus próprios termos não figura como
tros dentro de suas casas. Os militares, arma- uma denúncia criminal, mas como um pedi-
dos de fuzis e com uniforme de campanha do de respeito aos líderes de cada povoado,
efetuaram revistas na casa e nos moradores que os indígenas revelam não terem sido avi-
e em seguida os acusados eram levados para sados da ação militar.
a sede do Pelotão, onde eram colocados de O relato também revela que a turma
joelhos com as mãos na cabeça e em seguida dos que foram apreendidos depois, na comu-
obrigados a deitar no chão. nidade de Warirambá, teriam sido coloca-
Uma segunda patrulha que havia sido dos juntos numa gaiola de felinos de grande
enviada para as aldeias vizinhas de Wari- porte que o quartel possuía10. Os relatos nas
rambá e Makaloanan retornou trazendo cartas dos presos confirmam esses detalhes e
mais alguns suspeitos que foram interroga- citam inclusive que o confinamento durante
dos e liberados sem maiores transtornos no muitas horas, somado ao pânico pela situa-
dia seguinte. Dias depois foram novamente ção, teria provocado descontrole fisiológico e
intimados a ir ao quartel gravar em vídeo alguns deles teriam urinado dentro da gaiola
suas “confissões” sobre um suposto consumo e no pátio, ganhando banhos de água gelada
de entorpecente. Essa é a versão do Exérci- então.
to para os fatos, como se pode conferir pela Outra ordem de informações do rela-
leitura do Informe Nr. 178-S/2-CFRN e 5º. tório não se refere aos prisioneiros, mas ao
BIS de 23 de junho de 2008, que sintetiza as relato transcrito de um idoso de 95 anos,
oitivas dos envolvidos, quatro militares: dois Márcio Mandu, morador de São Joaquim
sargentos, um cabo e um soldado, três mem- que foi acusado de ter traficado drogas, apa-
bros da comunidade e um dos acusados9. rentemente tendo sido confundido com um
8 Os P.A.s são a etapa preliminar que pode ou não de- morador de Makaloanan também chamado
mandar uma investigação formal. A função de investigação
do Ministério Público está fundamentada no Artigo 11 da 10 Alguns Pelotões e quartéis da Amazônia conseguem
Lei Complementar n. 75/93 e nos artigos 127 e 129, III, da capturar felinos de grande porte como onças pintadas que,
Constituição Federal. quando conseguem sobreviver em cativeiro, são mantidas
9 Também faz parte desta peça o já citado Informe Nr. como mascotes da tropa ou remetidas para o zoológico do
178-S/2-CFRN e 5º. BIS de 23 de junho de 2008. Centro de Guerra na Selva (CIGS), em Manaus.
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Márcio. Seu Márcio encerra sua carta com “autorizando” a revista.
um pedido de apuração de responsabilidades As discrepâncias maiores podem ser
por parte da comunidade, reforçando o cará- ilustradas pelo depoimento do Sargento Cal-
ter conciliatório do documento: “Esperamos das, que cita como denunciante principal do
que a comunidade continue tendo o bom re- alegado tráfico de drogas uma mãe da comu-
lacionamento como PEF. Só não queremos nidade de São Joaquim, que teria sido agre-
que fatos iguais a esses ocorram novamente. dida por seu filho adolescente quando este
Queremos que busquem meios pra que isso fazia uso de cocaína e que esta teria procu-
não ocorra”. rado a ele, que estava de guarda no dia, para
Outros documentos encontrados na 6a. pedir ajuda. Tal pedido de ajuda, no entanto,
Câmara dizem respeito à resposta do Coman- parece que foi ignorado pelo Sargento, que
do de Fronteira Rio Negro (CFRN) ao MPF e só mobilizou-se a partir de uma suposta se-
compõem o Ofício n. 067-S2 de 25/11/2008, gunda denúncia, a do sr. Carlos Santos, mo-
na qual consta vários depoimentos colhidos rador da comunidade de Warirambá, que
entre os dias 20 e 22 pelos próprios militares depois de ser convidado a jantar no quartel
entre os participantes da “patrulha ”(quatro [sic], teria conduzido os militares pelo rio,
militares, sendo dois sargentos, um soldado em sua canoa, até as casas dos acusados nesta
e um cabo) e entre “testemunhas” koripako, comunidade, que fica alguns poucos quilô-
seis moradores das comunidades de Kerada- metros de São Joaquim pelo rio Içana. A des-
rho, Makaloanan e Warirambá, dos quais so- peito da forma vaga como o pedido de ajuda
mente dois deles haviam sido parte do grupo da suposta mãe foi descrito, essa informação
detido. Dada a riqueza de detalhes dessas pe- figura no relatório que o Exército redigiu ba-
ças, achei por bem comparar e ordenar algu- seado nos depoimentos colhidos, dentre os
mas constantes nas falas dos quatro militares quais os de seis civis, inclusive de uma das
ouvidos. mães, apontada como a delatora, e que nega
Algumas informações divergem absur- ter feito qualquer denúncia.
damente de um relato para o outro como a Não há espaço suficiente aqui para ana-
composição da patrulha que efetuou as pri- lisar todas os aspectos contraditórios dos
sões em Warirambá e a presença ou não dos depoimentos entre os próprios militares, en-
pais dos acusados acompanhando as prisões. tretanto, alguns aspectos serão destacados. À
Em outros pontos há unanimidade sob a in- primeira vista a inclusão da informação do
formação dada, mesmo quando esta contesta Sargento Caldas de que recebeu a denúncia
veementemente a versão dos presos (como o primeiramente de uma mãe zelosa serve-se
uso de violência, coação e o uso de uma gaio- muito mais para fins de justificativa do que
la de felinos para prender os acusados). se deu posteriormente, afinal uma mãe afli-
Outros pontos chegam a ser anedóticos ta interessada em livrar os filhos das drogas
da forma como os militares por vezes trans- teria muito mais peso que o ato solitário de
põem para as relações civis a terminologia um delator, talvez motivado por sentimen-
da caserna. Em seu depoimento o Soldado tos não muito nobres contra os acusados.
Geraldo, ao ser indagado se a revista das re- São várias e gritantes as divergências entre
sidências dos acusados tinha contado com os depoimentos dos militares, mas o objeti-
autorização destes, respondeu que sim, rele- vo aqui não é apurar “a verdade” dos fatos,
vando, porém, mas adiante, que antes de cada mesmo por crer que estes são extremamen-
revista uma ordem de comando era dada em te voláteis nestas circunstâncias, mas refletir
cada uma das portas abordadas: “Exército sobre os princípios que orientam as ações
Brasileiro, saia com as mãos na cabeça!!” e a dos koripako e a dos militares e o porquê de
revista se daria após a saída dos moradores passados dois anos daquele episódio funes-
nestas condições, mas sempre, para o militar, to, as lideranças de São Joaquim, cujos filhos
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não aparecem como autores de nenhuma domesticação dos ialanai em sua área, o que
das seis cartas escritas de próprio punho que só é possível por conta de sua superioridade
acompanham o relatório, silenciam sobre o moral e retidão, além de levarem adiante a
episódio ou quando muito falando através de meta de aperfeiçoamento pessoal através da
sussurros em tardes desertas. absorção do que os brancos lhes oferecem:
Quando visitei São Joaquim em 2009, escolas onde seus filhos aprendem o portu-
pelo menos dois dos militares citados conti- guês e os valores do “mundo do branco”, tor-
nuavam servindo no Pelotão. Meses depois nando sua identidade como brasileiros algo
da denúncia chegar ao Ministério Público incontestável.
um general vindo de Manaus visitou a aldeia Lembro que acima relatei que numa das
e publicamente perguntou do líder da comu- comunidades anteriores a Keradarho o even-
nidade se havia algum problema no relacio- to me foi narrado de forma totalmente diver-
namento entre a comunidade e o quartel. Ele sa: ao invés de consumo de coca, o delito ale-
respondeu que não. gado foi violência sexual. Por que os koripako
consideram que o estupro seria uma forma
RELATIVISMO OU IGUALITARISMO mais “aceitável” de crime que o consumo de
JURÍDICO? drogas? A resposta pode estar no que me
disse num ancião de Heerikanan que sempre
Entre os Koripako de Keradarho há um começava nossos diálogos se desculpando
grande apreço pelas conquistas obtidas no por não saber muito o português: “três coisas
trato com os Ialanai. A condenação do xama- os militares nos disseram quando chegaram
nismo e o envolvimento com a religião cris- (na década de 80): se quiserem ficar aqui vo-
tã imprimiram-lhes um sentido de evolução cês não podem ajudar guerrilheiro, não usar
social muito semelhante ao preconizado pelo droga e falar português, porque antes a gente
ideologia militar. Esse sentido de elevação falava mais espanhol”. Aparentemente a vio-
social proporciona às relações de Keradarho lência sexual contra as garotas indígenas é
com os demais povoados situações inusita- vista como um problema que ofende aos ko-
das. Um exemplo disso foi a polêmica em ripako, enquanto que o consumo de drogas
torno da proposta da prefeitura municipal ofenderia a ideia de nacionalidade que foi
que há alguns anos implantou na região um estabelecida ao longo da história do pelotão,
projeto de “educação culturalmente diferen- e, portanto colocaria em cheque a estabilida-
ciada” que previa o ensino relacionado à pes- de das relações dos koripako com os Ialanai.
quisa das chamadas “tradições culturais”. Os Nada mais racional, então, que perguntar so-
pastores indígenas de Keradarho foram in- bre a questão da legalidade das prisões sob
cansáveis opositores da ideia de uma “escola termos que não os indispusessem comigo,
indígena”, afirmando que queriam a educa- uma Ialanai.
ção do branco e que tal proposta iria fazê- Michel Taussig (1993), em seu experi-
-los regredir ao “tempo em que moravam em mento etnográfico sobre o “espaço de morte”
malocas e tomavam caxiri”. no terror e na cura na região do rio Putu-
É possível a partir daí arriscar que uma mayo, Colômbia, traça um abissal e caórdico
das principais motivações para a permanên- panorama do imaginário colonial a respeito
cia dos koripako próximo ao quartel é a tarefa dos índios – que oscila pendularmente en-
árdua a que eles se dispuseram de lidar com tre a ferocidade, a periculosidade e o poder.
os sempre perigosos e imprevisíveis Ialanai, Toda esta construção acaba por convergir
tarefa esta que embora cobre um preço caro, a um ponto, não importa onde se originem
os habilita como aqueles que estão “evoluin- seus fluxos: a promoção de um “reencanta-
do” como cristãos e brasileiros. Seus líderes mento” das relações entre os homens a par-
religiosos teriam tomado para si a missão de tir da colonização e a confirmação por esta
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via do papel redentor da empresa colonial. relações coloniais, agudizaram-se a partir
Interpretando o evento crítico do alto Içana daquele dia, como mais um elemento da re-
sob esse prisma encontro várias justificativas lação entre índios e militares. Um exemplo
dentro do quadro de referências do milita- é o uso do telefone público do Ministério
rismo para a ação dos militares: a ação de das Comunicações. Quando perguntei aos
“fiscalização de ilícitos” nas fronteiras teria homens da aldeia se eles tinham alguma de-
sido justificada e realizada “dentro dos pro- manda que eu pudesse ajudar a encaminhar,
cedimentos padrão” para os casos, conforme os koripako sempre me falavam sobre o for-
afirma o informe do Exército. O caráter hu- necimento de energia elétrica e sobre o ore-
manitário da instituição revelada justamente lhão. O telefone, instalado graças à antena de
na “benevolência” com que os indígenas te- satélite do mesmo sistema Gesac11 e embora
riam sido tratados, afinal, tudo não passou fosse de uso aberto para os civis, foi instalado
aparentemente de um “susto”, como as pal- na área do PEF, o que inibia o uso pelos alde-
madas que uma criança levada pode receber ões. Quando eu perguntava qual era o pro-
dos pais quando faz alguma travessura. Nin- blema de usar o orelhão, só me diziam que
guém saiu prejudicado e não se falou mais não gostavam de ir ao Pelotão e sempre me
no assunto e a resposta do líder indígena à pediam que escrevesse uma carta para que
pergunta do general sobre problemas com o instalassem um orelhão na aldeia. Em geral
quartel foi a que nós vimos acima: “não”. eles preferiam utilizar para comunicação ex-
Não aparece nos relatos militares ne- terna a radiofonia do pólo de saúde indígena,
nhuma menção à droga apreendida, e fora cuja freqüência principal é boa parte do dia
a denúncia de Carlos Santos e as “confis- falada em baniwa e koripako.
sões”, obtidas de formas questionáveis, não O Exército não exagera quando diz
há provas dos delitos alegados. Nenhuma que é a única instituição brasileira a “levar
diligência foi feita pelo Ministério Públi- a sério” a Amazônia. Os investimentos em
co e nem por nenhum outro órgão público infra-estrutura para as unidades militares
a São Joaquim. O evento crítico no alto rio na região, além do aumento do contingente
Içana poderia comportar a mesma discussão humano nos últimos anos, são realmente as-
tão apaixonadamente abraçada por Geertz sombrosos. Entretanto é fato que os Pelotões
(2001) e Richard Rorty (2002) sobre o papel dependem dos indígenas bem mais do que
do relativismo etnográfico e as possibilida- estes dependem dos Pelotões. Além da mão-
des da diversidade nas sociedades burgue- -de-obra barata, utilizada especialmente na
sas? Dificilmente. abertura de áreas para pistas de pouso, mi-
Enquanto Geertz defende o relativismo cro-usinas elétricas e na construção dos pe-
como forma de compreensão intercultural, lotões, os soldados indígenas garantem para
Rorty afirma que o igualitarismo jurídico a inteligência militar o domínio da língua lo-
das sociedades burguesas modernas (nota- cal, sem o qual eles pouco saberiam do que
damente a norte-americana) supriria a de- se passa na área, já que a radiofonia, como
manda de diálogo, estabelecendo “condições já foi dito, é boa parte do tempo operada na
iguais” para os “diferentes”. No evento crítico língua indígena. Quando as aeronaves com
do alto Içana nem relativismo nem equida- suprimento atrasam, as famílias militares e
de jurídica transparecem, simplesmente por o próprio Pelotão eventualmente recorrem
que não há Estado de direito nem diálogo 11 O Gesac foi um programa articulado pelo Ministério
cultural; todo o fato foi resolvido como uma das Comunicações para a inclusão digital através de ter-
questão “doméstica” e o único apelo para a minais com conexão de internet via satélite em lugares de
difícil acesso. Em São Joaquim, a antena conecta pontos de
legalidade foi feito pelos próprios indígenas acesso e um orelhão público, instalado nas dependências do
que não obtiveram resposta, contudo. pelotão. Na Amazônia o Comando Militar da Amazônia é
O medo e a desconfiança, marcas das um dos parceiros do Gesac, abrigando os telecentros e fa-
zendo parte de sua manutenção.
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às trocas com o povoado para obter comida. problema entre a comunidade e o Pelotão,
Por outro lado, os indígenas vêm a presen- ao que o líder indígena responde da única
ça do Pelotão como uma importante fonte forma possível frente a esta situação de coa-
de prestígio da aldeia frente às comunidades ção mascarada de diálogo, negando. Lembro
vizinhas e uma fonte de recursos do mundo o trecho do documento que afirma o desejo
dos brancos como gasolina, roupa e víveres, dos koripako em manter um bom relaciona-
mas a relação está longe de se estabelecer sob mento com o Exército. Esse desejo sobrevi-
bases simétricas ou simbióticas. veria sem essa negativa, tendo em vista uma
Se na década de 60 e 70 os grupos in- convivência tão estreita?
dígenas foram considerados um problema Seria fácil dizer que evento crítico no
estritamente “militar”, conseqüência da dita- rio Içana pautou-se por uma série de desen-
dura instaurada no país, a década de 90 foi contros que inviabilizaram a ação da justiça
palco de grandes conquistas para os povos e da cidadania: se por um lado os Koripako
indígenas que viram a maior parte de suas não estariam dispostos a pagar o preço de
terras reconhecidas e demarcadas. Algumas uma acusação oficial dos vizinhos militares,
áreas como alto rio Negro, entretanto, guar- por outro a justiça não comporta o silêncio.
dam ainda componentes fortes da influência Tal equação é equivocada, uma vez que hou-
militar, onde o investimento em postos mili- ve uma tentativa de diálogo por parte dos
tares é notadamente mais acentuado que em indígenas. Eles escrevem cartas, fazem rela-
outras áreas também fronteiriças, contexto tórios, se expõem, se arriscam por meio da-
no qual a ausência da noção de igualdade ju- quilo que aprenderam como sendo a forma
rídica transforma indígenas em estrangeiros preferida pelos brancos: o documento. Não
em sua própria terra. encontraram resposta. Apenas o Exército en-
Seu Márcio Mandu fala pouco o por- viou representantes.
tuguês e sua carta foi traduzida do koripako Num contexto em que o Estado brasi-
por uma das netas. Nela não aparecem co- leiro faz-se quase ausente e o desrespeito à lei
branças legais, apenas o desejo de um pedido é tratado como assunto “doméstico” de de-
de desculpas – uma fala pública – que colo- terminada instituição, parece uma consequ-
caria fim ao sentimento de agressão instau- ência quase natural que não haja outros ar-
rado pelo evento do dia 29 de setembro de ranjos possíveis que não o da banalização de
2007: determinadas formas de violência. O evento
[Os militares estavam] Procurando cocaína crítico no Rio Içana revela que o marco de
por engano, por outras pessoas. Esta sur- relacionamento entre Estado e povos indíge-
presa que aconteceu na minha casa causou
muitas preocupações como tristeza, desâni- nas no Brasil necessita de mais reflexão so-
mos na comunidade, até capaz de ficar ado- bre a assimetria de seus sujeitos. Embora seja
entado tanto de preocupação sobre este as- um país democrático, as Forças Armadas no
sunto que aconteceu dentro de minha casa. Brasil gozam de um estatuto diferenciado
Ainda aguardo desculpa dos militares. Pelo que suponho ser resquício dos vinte anos de
contrário, eu Márcio Mandu Gregório, com
muito carinho, eu desculpei a todos pelo regime de exceção capitaneado pelos milita-
que aconteceu comigo. res a partir de 1964.
A despeito do que estabelece o artigo
Os koripako tentaram num primeiro 6º. da Convenção 169 da Organização Inter-
momento se comunicar com os Ialanai utili- nacional do Trabalho sobre a necessidade de
zando a linguagem favorita destes: a palavra consulta às comunidades atingidas por pro-
escrita. A ineficácia dessa estratégia revela- jetos e ações administrativas do poder pú-
-se quando os brancos insistem no uso da blico que incidam sobre suas áreas, da qual
palavra pública através da chegada do Gene- o Brasil é signatário, temos hoje uma legis-
ral que pergunta publicamente se há algum lação que ampara a instalação de unidades
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
98
militares em áreas indígenas à revelia de seus jeto Calha Norte: militares, índios e fronteiras.
moradores (Decreto 4.412 de 2002 e Decreto (Antropologia e indigenismo, 1). Rio de Ja-
6.513 de 2008). Tal situação estabelece que a neiro: UFRJ; PETI-Museu Nacional.
governança dos povos indígenas sobre suas
terras parece ser cada vez mais estrangulada OVERING, Joanna. (1991) A estética da
no Estado Brasileiro. Torço para que esta não produção: o senso de comunidade entre os
seja uma tendência. Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia,
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de Janeiro: Museu Nacional.

____________
Recebido de 30 de Agosto de 2011
Aprovado em 08 de Novembro de 2011

Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012


100
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

TRADIÇÃO, IDENTIDADE E REGIÃO


ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE OS ASPECTOS TEÓRICOS DO PROjETO DE MAPEAMENTO ARqUEOLÓGICO E
CULTURAL DA zONA DA MATA MINEIRA
ANA PAULA DE PAULA LOURES DE OLIVEIRA*
RESUMO gical sites, related with Tupiguarani tradition and
No presente artigo problematizaremos o concei- detailed study of at least 6 settlements and their
to de tradição e as associações estabelecidas com collections. In this context, we will seek to analyze
identidade étnica e particularismos regionais, uti- the effectiveness of the general category Tupigua-
lizando como pano de fundo os desdobramentos rani tradition, in view of the cultural diversity that
do Projeto de Mapeamento Arqueológico e Cultu- seems to have characterized the pre-colonial past
ral da Zona da Mata mineira. Trata-se de pesquisa of the area.
desenvolvida desde o ano 2000 pela equipe do Mu-
seu de Arqueologia e Etnologia Americana/UFJF, Keywords: Tradition, Tupiguarani and Zona da
que já permitiu a identificação e registro de mais Mata of Minas Gerais
de 20 sítios arqueológicos relacionados à tradição
Tupiguarani e o estudo pormenorizado de pelo RESUMEM
menos seis assentamentos e seus respectivos acer- En el presente artículo problematizaremos el con-
vos. Nesse contexto, buscaremos analisar a opera- cepto de tradición e sus relaciones con identidad
cionalidade da categoria geral tradição Tupiguara- étnica y particularismos regionales, utilizando
ni, tendo em vista a diversidade cultural que parece como ejemplo los desdoblamientos del Proyecto
ter caracterizado o passado pré-colonial da área. “Mapeamento Arqueológico y Cultural de la Zona
da Mata mineira”. Tratase de investigación desar-
Palavras-chaves: Tradição, Tupiguarani e Zona da rollada desde el año 2000 por el grupo de inves-
Mata mineira. tigadores del Museu de Arqueología e Etnología
Americana/UFJF, que ya permitió la identificación
ABSTRACT y registro de aproximadamente 20 sitios arqueoló-
In this paper, we discuss the concept of tradition gicos relacionados con la tradición Tupiguarani,
and the associations established with ethnic iden- además de los estudios pormenorizados de seis
tity and regional particularities, using as back- asentamientos y sus respectivos conjuntos mate-
ground developments the Projeto de Mapeamento riales. En ese contexto, intentamos analizar el ca-
Arqueológico e Cultural da Zona da Mata mineira rácter operativo de la categoría general tradición
(Project of Archaeological and Cultural Mapping Tupiguarani, considerándose la diversidad cultural
of the “Zona da Mata” Region, Minas Gerais, Bra- que ha caracterizado el pasado pre colonial de la
zil). This research is conducted since 2000 by team región.
of the Museu de Arqueologia e Etnologia Ameri-
cana/UFJF, which has already allowed the identifi- Palabras-clave: Tradición, Tupiguarani y Zona da
cation and registration of more than 20 archaeolo- Mata de Minas Gerais.

* Universidade Federal de Ouro Preto. Departamento de Museologia. Pesquisadora do Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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Não são poucos os conceitos que sus- que estabeleceram convênios de colaboração
citam controvérsias na arqueologia brasileira bilateral com o MAEA-UFJF, que viabiliza-
desde sua institucionalização, mas sem dú- ram a permanência da equipe nos diversos
vidas o de tradição é o mais cotado. Desen- municípios abarcados pelo projeto. Ao lon-
volvido inicialmente no âmbito das reflexões go dos mais de dez anos de desenvolvimento
histórico-culturalistas e mais tarde reelabo- das pesquisas foram vários os apoios rece-
rado pela ecologia cultural no contexto nor- bidos das agências de fomento a pesquisa e
te-americano, foi transposto para o cenário extensão2. No que tange à sua constituição,
brasileiro por conta da atuação do Programa a proposta pode ser situada em um lócus in-
Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRO- terdisciplinar, visando o desenvolvimento da
NAPA) na década de 1960. Esse foi o início Arqueologia aliada ao instrumental da An-
de uma história marcada por debates exalta- tropologia, da Etno-história, da História e
dos e críticas muitas vezes fundamentadas outras disciplinas afins. O principal objetivo
em mal entendidos, que atingiram o seu ápi- do projeto desde sua elaboração tem sido a
ce nos movimentos revisionistas que emergi- identificação, registro e preservação do pa-
ram no final da década de 1980 e, mais espe- trimônio arqueológico e cultural, através dos
cificamente, nas discussões travadas a partir diversos subprojetos que visam: a) a valori-
de 1990 (Barreto 1999/2000)1. zação da memória e da oralidade; b) a cons-
Neste artigo, objetivamos discutir o cientização para o patrimônio de um modo
conceito a partir de uma perspectiva críti- geral; c) a criação de museus regionais; d)
ca, tendo em vista sua adoção nas pesquisas a caracterização florística e faunística da
desenvolvidas pela equipe do Museu de Ar- região; e) o georreferenciamento; f) a pro-
queologia e Etnologia Americana/UFJF (do- moção das potencialidades locais através da
ravante MAEA-UFJF). Em suma, abordare- elaboração de programas especiais para de-
mos as relações estabelecidas entre tradição, senvolvimento sustentável e, g) a formação
identidade e particularismos regionais, refle- de profissionais qualificados, entre outros
tindo acerca da utilização da categoria geral (Loures Oliveira & Monteiro Oliveira 2001)3.
“tradição Tupiguarani”, levando em conta as No desenvolvimento das pesquisas,
interpretações que o registro arqueológico maior atenção foi dispensada ao exame do
da área vem suscitando. contexto histórico e etno-histórico em ques-
tão. Foram consultados os textos produzidos
O CONTEXTO ABORDADO: AS PES- pelos viajantes naturalistas que percorreram
QUISAS DO MAEA-UFJF NA ZONA DA as Matas Mineiras nos séculos XIX e XX4,
MATA MINEIRA a documentação referente à administração
colonial e imperial, e as fontes secundárias
O projeto de Mapeamento Arqueo- produzidas por historiadores e linguistas,
lógico e Cultural da Zona da Mata mineira que discutiram as origens dos diversos gru-
teve início no ano de 2000, com o apoio fi- pos indígenas que habitaram a região (Lou-
nanceiro e institucional de prefeituras locais
2 Referimo-nos fundamentalmente ao apoio conferido
1 Vale mencionar, nesse cenário, a realização do XIII pela FAPEMIG, pelo CNPq, pelo Programa de Bolsas de
Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira no ano Iniciação Científica da Universidade Federal de Juiz de Fora
de 2005, ocorrido em Campo Grande, no Mato Grosso do (BIC-UFJF) e pelo Programa de Extensão da Universidade
Sul. As problemáticas inerentes à atribuição de identidades Federal de Juiz de Fora.
ao registro arqueológico se tornaram o destaque do simpó- 3 Esta é uma síntese dos objetivos do citado projeto, da-
sio intitulado “Fronteiras territoriais e identidades socio- tado de 2000, que estão presentes no Projeto Executivo do
culturais: as causas e os significados da variabilidade arte- MAEA-UFJF
fatual dos registros arqueológicos”, organizado por Fabíola 4 Trata-se fundamentalmente dos textos de Freireyss
Andrea Silva e Adriana Schmidt Dias. As reflexões gestadas (1982), Wied-Neuwied (1958), Debret (1978), Spix e Mar-
na oportunidade foram publicadas dois anos depois, em ar- tius (1979), Rugendas (1979), Eschwege (1818), Burmeister
tigos de Dias (2007), Schaan (2007), Silva (2007), Monticelli (1980), Ehrenreich (1886) e Noronha de Torrezão (1889)
(2007), Hilbert (2007) e Oliveira (2007). entre outros.
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102
res Oliveira 2003). geral, os vestígios estão localizados a pouca
Com o exercício, foi possível verificar profundidade (de 20 a 30cm) e com estrati-
que a maioria das interpretações históricas grafia perturbada pelo uso do arado (Loures-
tradicionais sobre o passado da Zona da -Oliveira 2007).
Mata mineira, condiciona o início de sua
Tabela 01 – Sítios pré-coloniais da Zona da Mata mineira
colonização à abertura do Caminho Novo
(adaptado de Loures-Oliveira, 2007)5
por Garcia Paes Lemes, no início do século
Sítio Município UTM Altitude
XVIII (Mercadante 1975; Castro 1987; José
Rio Novo 693099 481m
1965). Foi durante a devassa do território Santa Rosa
7622591
para a implementação do empreendimento Rio Novo 690224 440m
que aconteceram os primeiros contatos com Mata dos Bentes
7620010
os índios denominados Puri, Coroado e Co- São João 702618 590m
ropó, amalgamados sob a designação genéri- Primavera Nepomu- 7617899
ceno
ca de Tapuia (Ibid).
São João 713452 493m
Trata-se de grupos relacionados pela Poca Nepomu- 7615863
maioria dos pesquisadores ao tronco linguís- ceno
tico Macro-Jê (Rodrigues 1986). De acordo São João 704452 415m
com Monteiro (1995), Tapuia foi o termo Goiabeira Nepomu- 7619650
ceno
utilizado pelos colonizadores para denomi-
Juiz de Fora 643259 678m
nar os índios pouco afeitos aos contatos, que Teixeira Lopes
7591633
habitavam o interior da colônia, em oposição Juiz de Fora 643391 691m
aos Tupi, que residiam na costa. De modo Emílio Barão
7591053
geral, populações pertencentes ao tronco Carangola 796001 780m
C. Maranhão
linguístico Macro-Jê e Tupi-guarani são etni- 7704594
camente distintas e essa diferença seria bem Córrego de Areia
Mar de 710869 366m
Espanha 7576992
marcada na sua produção material (Ribeiro
Mar de 704130 482m
1983). Enquanto os Tupi possuiriam cultu- Vista Alegre
Espanha 7579562
ra material relacionada pelos arqueólogos à Chiador 704513 270m
tradição Tupiguarani, os Macro-Jê poderiam Verônica
7564914
ser vinculados à tradição Una (Luft 1999). Lima Du- 633980 720m
Coqueiros
No entanto, a despeito da configuração arte 7588374
histórica atestada para a região, os primei- Estiva
Guarani 701957 490m
7635715
ros resultados do Projeto de Mapeamento
Guarani 701957 488m
Arqueológico e Cultural da Zona da Mata Novo Horizonte
7635717
mineira trouxeram dados que permitiram
Guarani 701470 430m
pensar em uma diversidade bem maior no Capela
7636695
tocante à ocupação indígena. Os sítios iden- Guidoval 728484 295m
Cemitério
tificados (Tabela 1) são, em sua maioria, pré- 7651729
-coloniais, localizados em topos de colinas, São Felipe
Belmiro 655736 480m
com altitudes entre 200 e 700m, declivida- Braga 7559199

des variáveis, classificados como sítios a céu Leopoldina 0736510 259m


Vargem Linda
7624540
aberto colinares, lito-cerâmicos e unicom-
ponenciais. Eles são ainda congruentes na
Dos mais de 30 sítios identificados até o
sua inserção em relação à rede hidrográfica,
momento, seis já foram efetivamente escava-
com declividades mais suaves voltadas para
dos e tiveram seus dados sistematizados. São
cursos d’água navegáveis. Além disso, apre-
eles: Emílio Barão e Teixeira Lopes, situados
sentam cultura material que pode ser rela-
cionada à tradição Tupiguarani. De modo 5 Vargem Linda é um Sítio registrado pela Profa. Lina
Kneip, na década de 1990.
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no município de Juiz de Fora; Primavera e rem sido ocupadas por grupos ancestrais dos
Poca na cidade de São João Nepomuceno, Tupinambá, tendo em vista a presença dessas
Mata dos Bentes no município de Rio Novo sociedades na região já na época do conta-
e, por fim, Córrego do Maranhão no muni- to. Contudo, junto com tal constatação veio
cípio de Carangola (Loures Oliveira 2006a). o seguinte questionamento: até que ponto o
No contexto desses estudos pode-se observar conceito de tradição Tupiguarani nos per-
que, se os documentos escritos raramente mitiria operacionalizar interpretações desse
admitiam a possibilidade de grupos perten- tipo e, nesse caso, se poderíamos conjecturar
centes à família linguística Tupi terem ocu- a respeito da presença de falantes de línguas
pado a Zona da Mata mineira, os trabalhos Tupi na região em um passado ainda mais
arqueológicos conduzidos suscitavam outras remoto, tendo em vista as datações apresen-
interpretações (Mageste 2008). tadas pelos sítios Mata dos Bentes e Córrego
Isso porque nos sítios abordados foi evi- do Maranhão, algo em torno de 1300 ± 150
denciada uma cultura material que apresenta AP e 1750±200 respectivamente.
muitas congruências com aquela pesquisada Essa problemática foi o ponto de parti-
por Buarque (2002, 2009) em sítios ocupados da para as reflexões acerca da utilização do
por grupos ancestrais dos Tupinambá no es- conceito de tradição na Arqueologia Brasi-
tado do Rio de Janeiro. A similaridade ficou leira, buscando desse modo contextualizar a
ainda mais evidente com a análise detalhada posição adotada pela equipe do MAEA-UFJF
da cerâmica do sítio Córrego do Maranhão, em suas pesquisas. O que percebemos é que
que revelou uma semelhança notável no que falar de tradição inevitavelmente demanda
diz respeito às formas e motivos decorativos analisar o histórico do conceito bem como as
(Prous 2006; Buarque 2009; Loures Oliveira associações que são feitas entre categorias de
2009). identidade étnica e mais recentemente, com
Essa configuração instou os pesquisa- os particularismos regionais.
dores a examinarem os relatos produzidos
por autores quinhentistas e seiscentistas, O HISTÓRICO DE UM CONCEITO
que descreveram as sociedades habitantes da
costa, à época dos primeiros contatos. O ob- O ponto de partida para a elaboração
jetivo foi detectar alguma referência sobre a do conceito de tradição foi o trabalho de
presença de tais populações nas regiões mais McKern (1937). Depois de anos de debate,
interioranas do país (Mageste 2008). as reflexões iniciais foram incorporadas ao
Com o exercício, foi possível verificar as trabalho de Gordon Willey & Philip Philips
informações fornecidas pelo padre Antônio (1958), que desenvolveram um guia prático
Vieira (1928), que no século XVI escreveu para a condução de pesquisas arqueológicas
sobre grupos locais Tupinambá6, com hábi- comprometidas com o corpus teórico-meto-
tos e costumes semelhantes aos habitantes do dológico do histórico culturalismo. Tendo
litoral e que se localizavam muito longe da em vista a ênfase conferida por esta abor-
costa. Por sua vez, Anchieta (1933) afirmou dagem aos procedimentos tipológicos, com
que populações Tupinambá, que povoaram a vistas à elaboração de uma seriação cultural,
região do Rio de Janeiro, mantinham contato foram definidas unidades arqueológicas que
frequente com grupos fixados entre 13 a 300 permitissem articular, a partir da cultura
km para o interior, distância que abarcaria a material, três dimensões fundamentais na
Zona da Mata mineira. elaboração de uma história cultural de uma
Nesse sentido, não seria de todo impro- sociedade pretérita: espaço, forma e tempo.
vável a possibilidade das Matas mineiras te- Nesse sentido, a ideia de fase acabou
6 A designação Tupinambá é utilizada para se referir a um por ser enquadrada como pertencente a uni-
grupo étnico básico, que revela em seu sistema sociocultu- dades arqueológicas básicas. Foi definida
ral os mesmos traços fundamentais (Fernandes 1989:17).
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104
como o conjunto de traços que poderiam ser o enquadramento de sítios arqueológicos em
distinguidos de todas as outras caracterís- fases e tradições passou a constituir o objeti-
ticas similarmente concebidas. Por sua vez, vo final e muitas vezes principal das pesqui-
o conceito de tradição referia-se a unidade sas desenvolvidas (Schaan 2007; Dias 2007).
integradora, sendo, portanto, uma “conti- Sobre esse assunto, Dias (2007: 63) nos
nuidade temporal representada por configu- oferece informações mais detalhadas. No
rações persistentes em tecnologias únicas ou cenário brasileiro, a definição de fases des-
outros sistemas de formas” (Willey & Phillips considerou premissas relacionadas à compa-
1958: 37; Dias 2007: 62). Não é, pois, difícil ração de aspectos cronológicos, “que deveria
concluir que fase e tradição foram pensadas reger sua integração em uma tradição”. Já o
inicialmente enquanto ferramentas metodo- conceito de tradição cada vez mais se afas-
lógicas. De caráter eminentemente classifica- tava de sua concepção original, destinado a
tório, promoveriam a sistematização neces- “descrever fenômenos de continuidade tem-
sária para a integração histórico-cultural. poral relacionados a aspectos de natureza
No cenário brasileiro, a divulgação dos tipológica”. Isso, porque, as fases passaram a
conceitos de tradição e fase ocorreu devido ser correlacionadas a comunidades autôno-
à atuação do Programa Nacional de Pesqui- mas ou semi-autônomas, enquanto tradições
sas Arqueológicas (PRONAPA), coordena- representavam entidades tribais ou linguís-
do pelo casal de americanos, Betty Meggers ticas.
e Clifford Evans. Os objetivos pretendidos Para todos os efeitos, não podemos
pelo Programa já são mais que conhecidos deixar de comentar que as críticas feitas ao
pelos pesquisadores e quase sempre são cri- PRONAPA e a aplicabilidade dos conceitos
ticados por supostamente estarem relaciona- de fase e tradição não podem ser encaradas
dos a uma forma tradicional e antiga de se como um consenso entre os arqueólogos
fazer arqueologia (Hilbert 2007). brasileiros. Nesse sentido, os dois exemplos
Críticas à parte, o que o PRONAPA mais representativos são as postulações de
queria de fato era entender a dinâmica do Alves (2002) e Hilbert (2007), que chegam
povoamento pré-colonial no território bra- ao ponto de questionar a própria vinculação
sileiro. Por isso, se dedicaram a prospecções do PRONAPA a tendências histórico-cultu-
sistemáticas de amplas áreas, coleta de ma- ralistas, relacionando-o muito mais ao neoe-
terial para seriações, de modo a evidenciar a volucionismo e a ecologia cultural.
mudança cultural. De forma semelhante ao Ao contrário do alegado por Dias
que tinha sido exposto por Willey & Phillip (2007) e Schaan (2007), Hilbert (2007) não
(1958), definiram tradição como sendo “gru- acredita que os pesquisadores do Programa
pos de elementos e técnicas que se distri- estabeleciam relações diretas entre vestígios
buem com persistência temporal” (Chymz arqueológicos e etnias a partir do conceito
1966: 35). Por sua vez, fase seria uma catego- de tradição. Para ele, Meggers e Evans de-
ria menor, que incluiria “qualquer complexo fendiam a associação entre tradições e fases
de cerâmica, lítico e padrões de habitação, arqueológicas a troncos linguísticos e grupos
relacionados no tempo e no espaço” (Ibid: étnicos somente quando a cultura material
14). estudada fosse associada de modo inques-
O diferencial entre a utilização dessas tionável a populações indígenas conhecidas
ideias em nosso contexto refere-se à aplica- historicamente.
bilidade prática que ela acabou adquirindo. Em termos práticos, a denominação
Se no cenário norte-americano, fases e tradi- fase deveria ser adotada por se encontrar
ções relacionavam-se respectivamente a ca- isenta de qualquer conotação etnográfica,
tegorias metodológicas capazes de promover permitindo a avaliação de “entidades arque-
a sistematização histórico-cultural, no Brasil ologicamente reconhecíveis”, não implicando
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em nenhuma “significação tribal ou linguís- foram listadas todas as tradições, com suas
tica” (Meggers 1970 apud Hilbert 2007:128). respectivas fases constituintes, evidenciando
Por sua vez, no contexto das ideias evolucio- o desejo de promover uma padronização dos
nistas, a definição de uma tradição arqueo- termos arqueológicos utilizados pela comu-
lógica teria muito em comum com o estabe- nidade acadêmica. Desse modo, definiu-se
lecimento de uma espécie biológica, onde os a tradição a partir de elementos tecnológi-
tipos cerâmicos atuariam como equivalentes cos quantitativos, conferindo grande ênfa-
de populações biológicas. se à decoração pintada e ao tratamento de
De toda sorte, é fato que no âmbito do superfície corrugado. Os pesquisadores do
PRONAPA foram definidas as grandes tradi- Programa levaram também em conta a rela-
ções ceramistas, onde cada uma contava com ção da cerâmica com grupos fixados na faixa
um número significativo de fases. Para os costeira, pertencentes ao tronco linguísti-
propósitos desse estudo, dedicaremos maio- co Tupi-guarani (Oliveira 1991; Schiavetto
res atenções às considerações tecidas sobre a 2003).
tradição Tupiguarani. Como visto, não é possível afirmar
que associações linguísticas entre o registro
IDENTIDADE ÉTNICA E A TRADIÇÃO arqueológico e grupos historicamente co-
TUPIGUARANI nhecidos não era um dos objetivos do PRO-
NAPA. De fato, uma consulta aos relatórios
A definição mais difundida para a tra- produzidos é suficiente para demonstrar que
dição Tupiguarani foi elaborada pelo PRO- os pesquisadores amalgamaram em uma
NAPA (1969), no final da década de 1960: única classe, um conjunto de grupos étnicos
que habitavam a zona litorânea, desde o nor-
Após a consideração de possíveis alternati- te ao sul do país. Através de características
vas, não obstante suas conotações lingüísti-
cas foi decidido rotular como “Tupiguara- muito gerais da cerâmica, foram integrados
ni” (escrito numa só palavra) esta tradição diferentes grupos étnicos, que até onde se sa-
ceramista tardia amplamente difundida, bia, só compartilhavam de uma mesma pro-
considerando já ter sido o termo consagra- dução material.
do pela bibliografia e também a informação Devemos mencionar que essa associa-
etnohistórica estabelecer correlações entre
as evidências arqueológicas e os falantes de ção não foi inaugurada pelo PRONAPA. Na
línguas Tupi e Guarani, ao longo de quase verdade, ela já vinha sendo realizada no Bra-
todo litoral brasileiro. sil muito antes do estabelecimento de uma
arqueologia propriamente científica. Des-
Outra elaboração conceitual para a tra- de o final do século XIX, os pesquisadores
dição foi proposta por Igor Chmyz (1969: 8), já tinham percebido as semelhanças entre a
que na II parte do Manual de Arqueologia a cerâmica produzida por grupos relacionados
definiu como: falantes de línguas Tupi, conhecidos histori-
camente, com a cultura material evidenciada
Uma tradição cultural caracterizada prin-
cipalmente por cerâmica policrômica (ver- em sítios arqueológicos da costa brasileira,
melha ou preta sobre engobo branco e ou em locais onde as fontes etno-históricas ates-
vermelho), corrugada e escovada, por en- tavam a ocupação por grupos Tupinambá,
terramentos secundários em urnas, macha- Guarani, Tamoio, Tupina, entre outros. Na
dos de pedra polida, e, pelo uso de tambe- verdade, o que os envolvidos no Programa
tás.
fizeram foi delimitar o alcance conceitual do
O termo acabou por ser definitivamen- termo, padronizando a sua grafia e principais
te consagrado em 1972, com a publicação do características, de modo a torná-lo inteligível
“Índice das Fases Arqueológicas Brasileiras”, e operacional de Norte a Sul do país (Olivei-
pelo Museu Paraense Emílio Goeldi. Nele ra 1991; Scatamacchia 1990; Noelli 1993).
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Para todos os efeitos, em um cenário (1997). Para a autora, a apreensão de catego-
teórico mais amplo, estudos desenvolvidos rias como identidade cultural e etnicidade
no âmbito da etnoarqueologia e etnologia só é viável na Arqueologia quando se tem
levantaram críticas severas às associações uma compreensão bem ampla de contextos
entre cultural material, tronco linguístico e culturais pretéritos, construída a partir de
grupo étnico (Viveiros de Castro 1996; Jo- dados de diferentes naturezas, que permi-
nes 1997; Lima 2011). Atualmente afirma- tam o reconhecimento das organizações so-
-se que tais associações se fundamentam em ciais que tiveram lugar no passado. Somente
um conceito normativo de cultural, típico do dessa forma é possível examinar a dinâmica
histórico-culturalismo, que na prática acaba que caracterizou tais sociedades e se libertar
por impor duas premissas às pesquisas ar- de explicações que acabam por cristalizar o
queológicas. A primeira é a de que as seme- comportamento humano.
lhanças detectadas na cultura material são Retornando ao contexto brasileiro,
sempre fruto de grupos sociais portadores de apesar da penetração dos trabalhos produzi-
uma mesma identidade cultural, linguística dos no exterior, as associações diretas entre
e étnica. A segunda é que pessoas diferentes, cultura material, identidade étnica e tronco
vivendo em lugares diferentes e em tempos linguístico continuam a ser realizadas. Em
diferentes, e que porventura apresentem boa medida, essa postura não deixa de ser
uma cultura material semelhante, obrigato- confortável, na medida em que contamos
riamente devem ter o mesmo tipo de com- com uma vasta documentação descrevendo
portamento (Lima 2011). Nesse sentido, as os hábitos e costumes dos grupos falantes de
variações no registro arqueológico são expli- línguas Tupi. Desse modo, a partir da identi-
cadas em termos de fase e tradições e nunca ficação entre cultura material e famílias lin-
a partir do conceito de inovação (O’Brien & guísticas, é possível recorrer às informações
Shennan 2009). disponíveis, pelo menos para os grupos Tupi,
Nas últimas décadas, no contexto inter- vislumbrando, assim, a possibilidade de se li-
nacional, os perigos de se relacionar cultura bertar de uma abordagem puramente tecno-
material, língua e identidade étnica foram lógica da cultura material.
amplamente discutidos em livro editado Um dos trabalhos mais representati-
por Shennan (1994), “Archaeological Ap- vos nesse sentido é o doutorado de Brocha-
proaches to Cultural Identity”, que reuniu do, “An Ecological Model of The Spread of
os artigos de pesquisadores comprometidos Pottery and Agriculture Into Eastern South
com a temática. Um dos trabalhos mais em- America”, de 1984. No estudo, Brochado in-
blemáticos é a etnoarqueologia desenvolvida centivou abertamente a construção de ana-
por Ann Osborn (1994), com os U’Wa das logias entre populações indígenas pré-colo-
encostas orientais dos Andes colombianos. niais e aquelas conhecidas historicamente.
A autora percebeu uma grande variabilida- Para ele (1984: 565)
de na produção material, que poderia ser
facilmente interpretada por um arqueólogo Se não forem estabelecidas relações entre as
manifestações arqueológicas e as popula-
como o produto de tradições distintas ou ções que as produziram, o mais importante
quem sabe de diferentes fases. Porém, em terá se perdido. Assim as conotações etno-
contexto etnográfico, a pesquisadora verifi- gráficas das tradições e estilos cerâmicos
cou que tal variação foi gestada no interior não devem ser evitadas, mas, pelo contrá-
de uma única sociedade, sendo compartilha- rio, deliberadamente perseguidas.
da ao mesmo tempo pelo grupo.
Na prática, o autor desmembrou a tra-
Outro estudo de repercussão foi o livro
dição Tupi-guarani em duas subtradições,
“The archaeology of ethnicity. Constructing
“Guarani” e “Tupinambá”, relacionando-as
identities in the past e present”, de Sian Jones
aos grupos étnicos que receberam essa de-
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nominação. As definições foram baseadas 2001). Não podemos esquecer a variedade
na predominância de determinados tipos de estudos relacionados com a Arqueolo-
cerâmicos, tais como acabamentos plásticos gia Preventiva, principalmente no tocante a
e pintura. Por sua vez, os elementos menos empreendimentos lineares, que acabou por
chamativos da cultura material foram relega- instar os arqueólogos a entenderem a con-
dos ao segundo plano. Essa premissa orien- formação arqueológica de vastos recortes
tou a construção de modelos para explicar geográficos.
migração e dispersão da cerâmica, sempre Nesses estudos, é possível observar que
fundamentados nas datações disponíveis e o regionalismo emerge como uma espécie de
presença/ausência de elementos decorativos. panacéia, capaz ao mesmo tempo de sepultar
O aspecto mais interessante do traba- ou corroborar todas as críticas que o concei-
lho de Brochado é o fato do pesquisador en- to de tradição e sua associação com identida-
tender a Arqueologia como uma forma de se de étnica possam vir a suscitar. Aqueles que
perceber a História Indígena. Desse modo, defendem o conceito de tradição como uma
buscou se afastar dos trabalhos descritivos e categoria classificatória de caráter geral, bus-
quantitativos que foram produzidos no âm- cam encaixar as coleções arqueológicas em
bito do PRONAPA e identificou os processos modelos pré-concebidos, ratificando as ana-
culturais que foram responsáveis pelas rup- logias diretas, na medida em que evidenciam
turas e continuidades entre o passado pré- apenas aquelas características que tornam
-colonial e o histórico. Não seria errado dizer possível essa inserção.
que o trabalho de Brochado se aproxima em Já para os que acreditam que o conceito
muitos pontos da Arqueologia Social desen- é insuficiente para abordar identidade étnica
volvida nos outros países da América Latina, e linguística, os estudos regionais se prestam
principalmente México, Colômbia, Chile e a função de mostrar na cultura material tudo
Venezuela, que apresentaram uma concep- aquilo que é excepcional e que não pode
ção bem particular do conceito de tradição. ser relacionado a concepções gerais e muito
Não nos estenderemos muito sobre esse menos a grupos historicamente conhecidos.
assunto, porém devemos mencionar as pre- Ambas as situações configuram um círculo
missas que orientaram a perspectiva: o re- vicioso, que em nada contribui para o avanço
conhecimento da Arqueologia como ciência teórico-metodológico da questão. Isso, por-
social; a possibilidade de evidenciar linhas que, o conceito de tradição é sempre reifica-
de mudanças e permanências entre o pas- do ou rebatido, sendo raramente refletido.
sado e o presente; e, principalmente, a per- Outro problema refere-se à própria uti-
cepção de que a história dos grupos passados lização da noção de regional. Não é de hoje
só poderia ser obtida através do uso de cate- que a Arqueologia vem se valendo do ter-
gorias analíticas gerais, como por exemplo, mo sem nunca se deter em discutir as suas
a de tradição, que é imbuída de implicações origens e implicações. O que não deixa de
étnicas e de identidade cultural (Lumbreras ser curioso, já que o conceito de região tem
1974; Patterson 1994). evocado profundas discussões teóricas des-
Digno de nota é o fato do trabalho de de meados século XVIII, que culminaram na
Brochado ter incentivado o desenvolvimento criação de uma disciplina específica, a Geo-
de estudos regionais, comprometidos com o grafia. Desse modo, existem diferentes con-
ideal de evidenciar as especificidades locais ceitos de região, cada um deles relacionados
das tradições arqueológicas. Essa perspecti- a correntes específicas do pensamento geo-
va se tornou mais visível nas décadas de 1990 gráfico (Carvalho 2002).
e 2000, com a profusão de trabalhos acadê-
micos abarcando extensos territórios e, em O QUE OS ARQUEÓLOGOS ENTEN-
muitos casos, complexos regionais (Araújo DEM POR REGIONAL?
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próprios para abordagem regional: o método
Para entender o significado do termo ideográfico, que se pautava numa análise sin-
regional adotado nas pesquisas arqueológi- gular de determinado território, buscando
cas é preciso primeiro compreender, ainda evidenciar os vários elementos que o tornava
que brevemente, como esse conceito se con- específico; e o método nomotético, de cará-
formou no âmbito da Geografia. Uma das ter generalizante e que tinha como principal
primeiras concepções de região é a de região objetivo permitir comparações entre regiões
natural, que emergiu de forma sistematizada distintas de modo a evidenciar possíveis re-
no final do século XIX, principalmente por gularidades (Lencioni 1999).
conta dos incipientes estudos geográficos Essa concepção de região foi suplan-
elaborados na França e Alemanha. Logo o tada em meados da década de 1950, com a
termo se expandiu, ganhando outros países. ascensão do enfoque conhecido como Nova
Trata-se de definição pensada por Friedrich Geografia, perspectiva imbuída de um ca-
Ratzel, que entendia região como uma por- ráter positivista. A região foi definida como
ção da superfície terrestre, dimensionada de um conjunto de lugares, que apresentassem
acordo com escalas territoriais diversificadas menos diferenças internas, do que exter-
e caracterizada pela uniformidade decorren- nas entre si. Para mensurar as diferenças,
te da combinação dos elementos da natureza, os pesquisadores defenderam o uso indis-
tais como a vegetação, o relevo, a geografia, criminado de técnicas estatísticas, tornando
entre outros. O determinismo ambiental é a delimitação de uma região, um problema
evidente na concepção, o que acabou por an- matemático (Fonseca 1999).
gariar críticas severas (Fonseca 1999). A Nova Geografia apontou ainda a
Um dos principais críticos foi Vidal dificuldade de se trabalhar com uma úni-
de la Blanche, francês que encabeçou uma ca definição, criando novas categorias, que
corrente do pensamento geográfico deno- deveriam ser usadas de acordo com os inte-
minada de Possibilismo. A perspectiva foi resses da pesquisa desenvolvida. Assim, esta-
responsável pela elaboração do conceito de beleceu-se a região homogênea, relacionada
região geográfica. De acordo com a verten- à similaridade apresentada por uma área no
te, a concepção não deveria abarcar somente tocante aos seus aspectos ambientais e pro-
o aspecto natural, mas também as relações dutivos; região funcional, definida a partir
estabelecidas entre os homens e o seu meio. das influências de um local sobre outro; re-
A região geográfica comportaria não só a gião polarizada, que estabelece um recorte
extensão territorial de uma paisagem, mas a partir das atividades humanas que são de-
também os componentes humanos que ali senvolvidas em um local; e por fim, região
se distribuíam. Esses aspectos deveriam ser plano, que se fundamenta nas estratégias
relacionados de modo harmonioso pelo ge- econômicas empregadas em um determina-
ógrafo no seu esforço de delimitação (Claval do lugar (Carvalho 2002).
1981). A partir da década de 1970, com os ata-
A partir da década de 1950 o conceito ques cada vez mais ferozes ao positivismo, as
de região é novamente colocado a prova no concepções elaboradas pela Nova Geografia
âmbito da Geografia. Richard Hartshorne saem de cena, dando lugar às formulações
defendeu que as diferenciações de regiões desenvolvidas no âmbito de uma geografia
não deveriam se calcar apenas nas relações mais crítica e humanista. As três definições
harmoniosas estabelecidas entre o homem mais populares são interconectadas e con-
e a natureza, mas a partir da integração dos tinuam sendo utilizadas pelos geógrafos até
fenômenos heterogêneos, que tiveram lugar hoje. Definiu-se a região de vivência, pen-
em uma determinada porção da superfície sada como o resultado de articulações, em-
da terra. Desse modo, estabeleceu métodos bates e reivindicações de atores sociais em
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busca de poder e dominação. Isso pode vir que teria diminuído de intensidade em pe-
a configurar também uma região de poder, ríodo histórico para dar lugar aos denomi-
que é delimitada pela dinâmica de acumula- nados Tapuia, provavelmente Macro-Jê e ini-
ção capitalista, que é por essência desigual e migos dos falantes de línguas Tupi (Monteiro
combinada, o que culmina na caracterização 1995). Contudo, o que os estudos nos têm re-
de uma região do capital (Fonseca 1999). velado é que a ocupação das Matas mineiras
Frente a este cenário, fica mais do que por diferentes grupos étnicos foi um proces-
evidente que a adoção da ideia de região e so muito mais complexo.
consequentemente a defesa por particula- Os dados empíricos nos informam que
rismos regionais nas pesquisas arqueológi- tecnologias associadas a diferentes tradições
cas é algo deveras complexo. Provavelmente foram contemporâneas, muitas vezes no
devido ao fato da Arqueologia permanecer mesmo recorte geográfico. Esse é, por exem-
em descompasso com as proposições da Ge- plo, o caso dos municípios de Carangola e
ografia, apesar de beber constantemente de Rio Novo. A menos de 20 km do sítio Cór-
seu manancial teórico-metodológico, pelo rego do Maranhão, interpretado como per-
menos desde meados do século XVIII. Nos tencente à tradição Tupiguarani, encontra-se
trabalhos arqueológicos, o termo região é situado no distrito de Ponte Alta de Minas,
usado para se referir ao espaço natural, defi- o sítio Toca dos Puri, que apresenta elemen-
nido pelo binômio território e elementos da tos têxteis e um arranjo funerário típico de
natureza. Uma concepção que já foi criticada grupos Jê conhecidos etnograficamente. Os
e soterrada pelos geógrafos há mais de 100 dois sítios apresentam datações por C14 que
anos. os inserem no mesmo período cronológico,
Podemos explicar essa defasagem a algo em torno de 650 +- 90 AP (Loures Oli-
partir da constatação de Dunnell (2006). veira 2008:91-96). No caso do município de
Para o pesquisador, as pesquisas arqueológi- Rio Novo temos a mesma situação, onde mais
cas carecem de uma expressão mais explíci- de um sítio pertencente à tradição Tupigua-
ta de teoria. Isso, porque, os arqueólogos se rani se encontram a poucos quilômetros da
esmeram em debater histórico-culturalismo, Pedra da Babilônia, onde foi encontrado um
processualismo e pós-processualismo, mas conjunto funerário nitidamente relacionado
se esquecem de discutir as diversas concei- a grupos Jê. Todos muito próximos no tempo
tuações que suas unidades mais básicas de e no espaço (Loures Oliveira 2006b:197).
análise suscitam. Na maioria das vezes, elas Frente a esse cenário, a utilização do
aparecem na bibliografia de forma contradi- conceito de tradição como o resultado da
tória, desvinculadas de seu sentido real. associação entre cultura material, identidade
étnica e tronco linguístico acabam por mas-
CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRADIÇÃO carar a diversidade que parece ter caracteri-
E IDENTIDADE ÉTNICA NAS PESQUI- zado o passado de ocupação da região. Visto
SAS DO MAEA-UFJF que seria muito mais fácil isolar as diferentes
manifestações arqueológicas, associando a
No tocante ao processo de ocupação da grupos étnicos específicos, do que admitir a
Zona da Mata mineira, esse panorama teóri- possibilidade de um passado dinâmico, mar-
co é o suficiente para nos alertar dos perigos cado por contatos entre grupos portadores
que são inerentes ao emprego de associações de tecnologias diferentes. Ou, quem sabe,
ente cultura material, tronco linguístico, pensar na hipótese de grupos semelhantes
identidade étnica e particularismo regional. produzirem uma cultura material diferente e
É verdade que seria muito confortável ates- de grupos distintos compartilharem o mes-
tar, a partir dos dados arqueológicos dispo- mo tipo de produção material.
níveis, uma ocupação inicial de grupos Tupi, É por reconhecer a complexidade do
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assunto e por acreditar que se constitui uma um assunto encerrado que o prosseguimento
“violência interpretativa” (Lima 2011: 18) de- dos estudos podem nos conduzir por outra
nominar de Tupinambá ou Guarani grupos direção.
que talvez recusassem categoricamente esse
etnômio é que em nossas pesquisas conce- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
bemos tradição como pensada originalmen-
te no cenário norte-americano. Como um ALVES, Márcia Angelina. 2002. “Teorias,
marco metodológico classificatório podero- métodos, técnicas e avanços na arqueologia
so, que nos permite transitar com segurança brasileira”. Canindé, Xingó, 2:9-52.
pelas tipologias que estabelecemos. Quando
nos referimos especificamente à tradição Tu- ANCHIETA, José. 1933. Cartas, Informa-
pi-guarani, é certo que estamos nos referin- ções, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de
do a uma cultura material que apresenta um Janeiro, Livraria Civilização Brasileira.
conjunto de características tecnológicas re-
correntes em toda a América Latina e não ra- ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello. 2001. Te-
tificando possíveis implicações étnicas e/ou oria e método em Arqueologia Regional: um
linguísticas (Loures Oliveira 2006b, 2010). estudo de caso no Alto Paranapanema, Estado
Na verdade, essa postura vem sendo si- de São Paulo. Tese de doutorado em Arqueo-
nalizada nos estudos mais recentes desenvol- logia, Universidade de São Paulo.
vidos no Brasil. Uma expressão concreta é a
publicação da série “Os Ceramistas Tupigua- BARRETO, Cristiana. 1999/2000. “A cons-
rani”, editada por André Prous e Tania An- trução de um passado pré-colonial: uma bre-
drade Lima (2008). O desejo de se libertar de ve história da arqueologia no Brasil”. Revista
associações diretas se encontra expresso no USP. São Paulo, 44:33-48.
próprio título da série. O termo Tupiguarani
é utilizado como instrumento classificatório BROCHADO, José Proenza. 1984. An ecolo-
para se referir aos responsáveis por uma pro- gical model of the pread of pottery and agri-
dução material específica. Se estes são Tupi- culture into Eastern South America. Tese de
nambá ou Guarani, é outra história, já que se doutorado em Antropologia, University of
tem a noção de que o alcance do conceito de Illinois.
tradição é bastante limitado quando o obje-
tivo é a atribuição de identidades ao registro BUARQUE. Ângela. 2000. “A Cultura Tupi-
arqueológico. nambá do Estado do Rio de Janeiro”. In: TE-
Nos estudos desenvolvidos na Zona NÓRIO, Maria Cristina. Pré-História da Ter-
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foi ocupada por grupos ancestrais dos Tu- pp.307-320.
pinambá não se sustentou meramente em
correlações diretas (Mageste 2008). Pelo BURMEISTER, Hermann. 1980. Viagem ao
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114
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____________
Recebido de 29 de Setembro de 2011
Aprovado em 06 de Outubro de 2011

Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012


115
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

UMA VISÃO ARqUEOLÓGICA DA RELAÇÃO ENTRE CULTURA E AMBIENTE


A INSERÇÃO AMBIENTAL DOS SÍTIOS ARqUEOLÓGICOS DO MUNICÍPIO DE SÃO jOÃO DO CARIRI, PARAÍBA
CARLOS XAVIER DE AZEVEDO NETTO*
PATRÍCIA DUARTE**
ADRIANA MACHADO PIMENTEL DE OLIVEIRA***
RESUMO terial and symbolic appropriation of the environment,
A arqueologia produzida na região Nordeste possui revitalizing the dichotomy between nature and culture.
um volume considerável de trabalhos nas mais dife- Thus, this paper intends to present the archaeological
rentes temáticas, mas sempre concentrados em pontos occurrences in a unit of this region, the municipality of
específicos do território, sendo o Estado da Paraíba um São João do Cariri, by discussing the region’s environ-
dos locais com um pequeno número de pesquisas. O mental configuration, the historical record of the eth-
presente estudo reflete a proximidade crescente entre nic groups that inhabited the region before and during
os estudos arqueológicos e ambientais, com especial colonization, as well as on Serrote dos Letreiros, Lajedo
atenção para as questões documentais das memórias do Eliseu, Pedra do Jacó, Muralha do Meio do Mundo
coletivas de parcela indígena da sociedade nacional, (Picoito) and Serrote da Macambira sites, to discuss its
que podem ser observadas nas formas de ocupação modeling possibilities.
a apropriação dos espaços, configurando a temática
denominada de arqueologia da paisagem. No caso do Keywords: Landscape Archaeology, Society and Envi-
Cariri Paraibano, região de clima semi-árido, as estra- ronment Relations, São João do Cariri.
tégias de ocupação por parte dos grupos indígenas que
ali habitaram podem indicar elementos materiais e RESUMEN
simbólicos de apropriação do ambiente, relativizando La arqueología producidos para la región Nordeste
a dicotomia entre natureza e cultura. Assim, o presente tiene un considerable volumen de trabajo en los más
trabalho pretende apresentar as ocorrências arqueo- diversos temas, pero siempre se ha concentrado sobre
lógicas em uma unidade desta região, o Município de puntos concretos del territorio, y el Estado de Paraíba
São João do Cariri, através da discussão da configura- uno de los lugares con un pequeño número de estu-
ção ambiental da região, o registro histórico das etnias dios. Teniendo en cuenta la creciente estrechamiento
que habitaram a região antes e durante a colonização de relaciones entre los estudios arqueológicos y del
europeia e dos sítios Serrote dos Letreiros, Lajedo do medio ambiente, con especial atención a las cuestiones
Eliseu, Pedra do Jacó, Muralha do Meio do Mundo del documental memorias colectivas indígenas parce-
(Picoito) e Serrote da Macambira, para discutir suas la a la sociedad nacional, que pueden ser observados
possibilidades modelares. en las formas de ocupación la propiedad de los espa-
cios. En el caso de Cariri Paraibano, región de clima
Palavras-chave: Arqueologia da Paisagem, Relação So- semiárido, las estrategias de ocupación por parte de
ciedade e Meio Ambiente, São João do Cariri. los grupos indígenas que habitaban allí puede indicar
elementos materiales y simbólicos incorporación del
ABSTRACT medio ambiente, relativizando la dicotomía entre la
Archaeology in the Northeastern region has produced naturaleza y la cultura. Por lo tanto, el presente trabajo
a considerable amount of work in many different the- tiene como objetivo presentar las apariciones sitios ar-
mes, but always focused on specific points of the ter- queológicos en una unidad de la región, la Ciudad de
ritory, of which the State of Paraíba is one of the sites São João do Cariri, mediante el debate sobre el entorno
presenting the lowest level of research. Considering de la configuración de la región, el registro histórico de
the increasing closeness between the archaeological los grupos étnicos que habitaban en la región antes de
and environmental studies, paying special attention on y durante la colonización sítios Serrote dos Letreiros,
documentary issues related to the collective memories Lajedo do Eliseo, Pedra do Jacó, Muralha do Meio do
on the portion of the Indian national society, which Mundo (Picoito) y vio el y ríos Macambira, para discu-
can be seen in the forms of appropriation and space tir sus posibilidades modelado.
occupation. In the case of Paraiba Cariri, semi-arid
climate region, strategies of occupation by indigenous Palabras-clave: Arqueología del Paisaje, Relaciones con
groups who lived there may indicate elements of ma- la Sociedad y el Medio Ambiente, São João do Cariri.

* Coordenador do projeto – NDIHR/CCSA/UFPB.


** Mestre em Ciências das Religiões/UFPB – Pesquisadora do NDIHR.
*** Mestre em História/UFPB – Pesquisadora do NDIHR.
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116
INTRODUÇÃO apresenta alguns dos resultados alcançados
pelo projeto Arqueologia do Cariri, proje-
Atualmente, a abordagem dos fenôme- to este financiado pelo CNPq, vinculado ao
nos ambientais vem ganhando uma atenção Programa Arqueológico do Cariri Paraibano
especial nos mais variados estudos realiza- – PARQCP e ao Programa de Pós-graduação
dos no meio acadêmico, devido à busca de em Ciência da Informação – PPGCI, do Nú-
um maior entendimento das relações destes cleo de Documentação e Informação His-
elementos com a sociedade em que neles es- tórica Regional – NDIHR, da Universidade
tiveram inseridas. Essa importância pode ser Federal da Paraíba – UFPB.
exemplificada pela publicação da Resolução
Nº 1 do Conselho Nacional e Meio Ambien- O AMBIENTE DO MUNICÍPIO DE SÃO
te – CONAMA, em 1986, onde estabelece JOÃO DO CARIRI
como áreas de estudos ambientais os meios
físico, biótico e antrópico. No tocante a este A região Nordeste tem como um de
último, pode-se relacionar toda uma preocu- suas características principais a conformação
pação com a preservação e dinamização do ambiental de seu interior, visto que se trata
patrimônio cultural, como meio de constru- de um clima semi-árido, denominado gene-
ção e manutenção das memórias coletivas. ricamente de Caatinga, notadamente frágil e
No que diz respeito à questão das me- de equilíbrio precário. Esses ambientes pos-
mórias coletivas relacionadas com determi- suem um número reduzido de estudos, o que
nado ambiente, parte-se das considerações faz deles muito mal conhecidos, quer seja
de Certeau (1994) quando se considera o es- no tocante às suas peculiaridades, quer seja
paço como uma forma de ver e referenciar as quanto ao potencial de abrigar grandes con-
ações cotidianas de uma determinada comu- tingentes populacionais. E em se tratando da
nidade. Agrega-se a isso o alargamento da preservação de bens culturais, a dificuldade
noção de documento (Le Goff 2003). Pode- de entendimento, já que quando falamos em
-se considerar que o ambiente, enquanto es- ambientes do semi-árido, a preocupação se
paço de relações entre elementos integrados torna maior devido à dificuldade que o ho-
incluiria a ação do homem, nos seus mais mem desta região encontra para manter
variados meios de adaptação e sobrevivên- a sua sobrevivência, em virtude do pouco
cia. Com isso, o ambiente é um atributo a ser conhecimento que se tem desses ambientes
considerado na reconstituição de qualquer e as possíveis estratégias de exploração, em
evento histórico, em qualquer período, com especial no Cariri Paraibano, onde se situa o
especial ênfase para as populações indígenas. município em questão.
Não esquecendo de que se insere nessa dis- Nessa região, a Bacia do Rio Taperoá,
cussão o perspectivismo, como foi salientado observa-se que atividades predatórias do meio
por Viveiros de Castro (2002), incluindo as ambiente, como a exploração das rochas lo-
formas de perceber e identificar o mundo cais, a extração de argila para olarias caseiras e
a partir da perspectiva de uma cultura, que o assoreamento dos rios, causam um impacto
provocaria a diluição dessa dicotomia entre no local e isso faz com que afete, diretamente, o
cultura e natureza. patrimônio arqueológico existente, em especial
Assim, o presente trabalho tem como a arte rupestre, pois sofrem sérios riscos quanto
objetivo principal apresentar a situação am- à sua conservação, como foi observado por Lax
biental dos sítios arqueológicos no Muni- & Almeida (apud Watanabe et al. 2002).
cípio de São João do Cariri, no Estado da São João do Cariri, município do Estado
Paraíba, situado no Nordeste brasileiro em da Paraíba (Brasil), está localizado na microrre-
um ambiente semi-árido, inicialmente pes- gião do Cariri Oriental. De acordo com o IBGE
quisados por Almeida (1976). Este trabalho (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
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117
no ano 2003 sua população era estimada em RIRI PARAIBANO
4.777 habitantes, e sua área territorial de 702
km², sendo cortada pela BR 412, principal via de A maioria dos estudos sobre povos in-
acesso. S. J. do Cariri encontra-se na região mais dígenas do Nordeste, tradicionalmente, se-
seca do Brasil localizada no Cariri Paraibano, e gundo a literatura examinada, se dá com os
seu território era bastante vasto, abrangendo as registros das etnias que eram encontrados
atuais cidades de Monteiro, Sumé, Serra Bran- no litoral. Mas, segundo Ricardo Medei-
ca, São João dos Cordeiros, Cabaceiras, Boquei- ros (2002), a utilização de novas fontes e a
rão, Campina Grande e outras cidades do Cariri proposta de novas metodologias e a incor-
Velho, como era chamada a região. poração de outras áreas de saber, como a
Sua vegetação característica é a Caatinga Antropologia, a Linguística e a Arqueologia,
que ocupa uma área de 734.478 km2 por todo permite um maior avanço dos estudos cultu-
Nordeste do Brasil e é o único bioma exclusiva- rais desses povos que, na maioria das vezes,
mente brasileiro. Isso significa que grande parte não mais estão presentes no nosso território.
do patrimônio biológico dessa região não é en- Todo esse movimento se deu a partir
contrada em outro lugar do mundo além de no dos anos 1980, demonstrando uma nova
Nordeste do Brasil, a qual ocupa cerca de 7% tendência da historiografia brasileira através
do território brasileiro. Esse tipo de vegetação de uma renovação no estudo das fontes de
estende-se pelos estados do Maranhão, Piauí, pesquisa, onde os estudos sobre o período
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernam- colonial se renovaram e aumentaram, dando
buco, Sergipe, Alagoas, Bahia e norte de Minas maior visibilidade a atores sociais até então
Gerais. Ela tem uma fisionomia desertificada, esquecidos pela história. Autores como Ma-
com índices pluviométricos muito baixos, em nuela Carneiro da Cunha (1992), Cristina
torno de 500 a 700 mm anuais (IBGE, 2003). Pompa (2001) e Beatriz G. Dantas (1992),
dentre outros, procuram sempre colocar a
história dos povos indígenas numa visão
menos estática, de forma que esses povos
fossem descendentes de populações que se
instalaram por aqui há milhares de anos e
ocupavam todo o território brasileiro.
A falta de informações relacionadas às
populações que viviam no interior, em mui-
to contribuíram para que ocorressem inter-
rogações sobre os próprios grupos que por
Figura 1: Vista geral do ambiente da região.
lá viviam. Essa generalização não se limita
apenas ao topônimo, mas a uma indefinição
quanto a alguns aspectos das fronteiras cul-
turais desses povos. Nas observações de Ro-
dolfo Garcia publicadas no prefácio da obra
de Mamiani sobre os indígenas que eram
denominados Tapuias, apresenta o seguinte:

Sob o nome genérico de Tapuias andaram


nos primeiros tempos confudidos com ou-
tros índios que infestavam a região de seu
domínio. Por isso mesmo, ainda hoje torna-
Figura 2: Detalhe do ambiente da região. -se difícil saber, com absoluta certeza, entre
tantas alcunhas tribais, quais eram o de ori-
UMA BREVE ETNO-HISTÓRIA DO CA- gem Quiriri, que eram os Caraíbas e os Gês.
Quiriri alterado em Cariri, é qualificativo
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tupi, que significa – calado, silencioso – e Tarairiú apresentavam uma homogeneidade
que indica, sem dúvida, uma característica em seu aspecto cultural e idiomático seria
etnográfica tanto mais notável quanto se um pouco complicado, porque, sobre esses
sabe que os outros índios eram palradores
incoercíveis. Quiriri aplicar-s-eia propria- povos que viviam no interior paraibano, não
mente às tribos da Baía: Cariri às tribos do encontrados documentos escritos que fos-
Norte. (Garcia 1968: 21-22) sem possíveis agrupá-los de forma a consi-
derá-los como se fossem apenas uma única
A descrição utilizada para o que expli- unidade. Essa afirmativa demonstraria uma
caria o termo “Tapuia” incluía a todos os po- contradição relacionada aos aspectos cultu-
vos que não falassem a língua Tupi. Segundo rais e históricos dos mesmos. Como é obser-
Lima, ao analisar Gabriel Soares de Souza: vado em Borges (1993) e Mello (1994), pois
nestas visões, os Tarairiús são divididos em
Corre esta corda dos tapuias toda esta terra
do Brasil pelas cabeceiras do outro gentio diversas tribos, como Janduís, Ariús, Pegas,
(os povos túpicos), e há entre eles diferentes Panatis, Sucurus, Paiacus, Canindés, Geni-
castas, com mui diferentes costumes, e são papos, Cavalcanti e Vidais.
contrários uns dos outros (...) são tantos e Para Borges (1993), a necessidade de
estão tão divididos em bandos, costumes e novos estudos sobre os indígenas da Paraí-
linguagem, para se poder dizer deles muito,
era necessário de propósito e devagar tomar ba dificulta a possibilidade de se estabelecer
grandes informações de suas divisões, vida uma classificação que procure explanar so-
e costumes. (Lima 2003: 35) bre os índios que viveram no sertão paraiba-
no. Seria preciso estudar os grupos indígenas
Alguns historiadores, quando falam Cariris e Tarairiús, pois foram de extrema
sobre as populações que viviam no interior importância para que se entendesse o po-
paraibano, dividem esse território como voamento do interior e que hoje em dia se
ocupado por dois grandes grupos indígenas: encontram praticamente extintos, de acor-
a nação Cariri e a nação Tarairiú. Sabe-se, do com dados oficiais. Isso é percebido pelo
ao analisar a diversidade de grupos existen- mapa por ele apresentado e, em sua análise
tes nesta região, que esse topônimo Tarairiú consta apenas esses dois grupos indígenas
compreende uma complexidade de popula- para o interior da Paraíba, chamando os Ta-
ções que se apresentam dispersas e possuem rairiús de “verdadeiros tapuias do Nordeste”
aspectos culturais distintos. (Borges 1993: 22).
Dizer que as populações denominadas Medeiros (2003) elabora uma tabela a
Quadro 1: Relação de Aldeias da Capitania da Paraíba sujeitas ao Bispado de Pernambuco em 1746.
Região Aldeia Missionário Povos
Paraíba Jacoca Beneditino Caboclos de língua geral
Paraíba Utinga Beneditino Caboclos de língua geral
Mamanguape Baía da Traição Carmelita da reforma Caboclos de língua geral
Mamanguape Preguiça Carmelita da reforma Caboclos de língua geral
Mamanguape Boa Vista Religioso S. Teresa Canindé e Xucuru
Taipu Cariris Capuchinho Tapuia
Cariri Campina Grande Hábito S. Pedro Cavalcanti
Cariri Brejo Capuchinho Fagundes
Piancó Panati Religioso S. Teresa Tapuia
Piancó Corema Jesuíta Tapuia
Piranhas Pega Sem missionário Tapuia
Rio do Peixe Icó Pequeno Sem missionário Tapuia
Fonte: Medeiros (2003).
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119
partir de suas pesquisas com os documen- (Joffily 1977: 119).
tos do Arquivo Histórico Ultramarino e da Observando o mapa de Curt Nimuien-
Biblioteca Nacional, mostrando os etnôni- dajú (2002), a região do Cariri paraibano de-
mos e topônimos que pudessem identificar monstra a presença de índios Sucuru, Ariú,
os grupos indígenas que viviam no sertão da Canindé, considerados Tarairiús, por alguns
Paraíba. autores, e os próprios Cariri. A partir desse
Os Tarairiú, pela barbárie a eles impu- dado, podemos colocar a hipótese de que o
tada pelos cronistas coloniais, foram classifi- etnômio Tarairiú é utilizado em relação aos
cados como tapuias que não se apresentam Cariri do mesmo modo que o Tapuia é re-
dentro dos denominados Cariri, mas que, ao lacionado aos Tupi, ou seja, elementos de
mesmo tempo, fazem parte do sertão Nor- classificação que se constroem em oposição
destino, pelo aspecto inóspito considerado ao outro. Essa denominação Tarairiús colo-
nos relatos históricos para essa região. Esses ca todos os grupos indígenas que não se de-
grupos apresentam uma grande capacidade nominavam Cariri como uma única etnia, o
de mobilidade dentro do espaço semi-árido, que não se enquadrava na realidade desses
onde a Caatinga e a seca castigam seus ha- grupos que apresentavam uma grande diver-
bitantes, mesmo os que já se adequaram ao sidade cultural. A questão do etnômio Tarai-
ambiente hostil. riús ainda é fruto de discussões na literatura
histórica específica.
Os índios de Corso, caçadores-coletores Cariri é a designação da principal fa-
nômades, também conhecidos como bár-
baros, andantes, ocupavam grandes regiões mília de línguas indígenas do sertão do Nor-
– áreas de perambulação – uma vez que a deste, onde vários grupos locais ou etnias
economia extrativista exigia migrações foram ou são referidos como pertencentes
mais extensas a fim de atender as deman- ou relacionados a ela. O Mapa Etno-Histó-
das de abastecimento grupais. Não possu- rico De Curt Nimuendaju (2002) mostra o
íam mais que instrumentos de pedra, osso
ou madeira, úteis na caça e coleta. Estes deslocamento desses índios e os divide em
grupos, muitas vezes, eram formados por Kipea-Kariri e Dzubukua, que ocupam es-
largos contingentes, divididos em peque- paços distintos geograficamente. Os muitos
nos subgrupos, estratégia necessária como grupos Cariris existentes ao norte do Rio
forma de distribuir mais eficientemente as São Francisco, principalmente nos atuais es-
áreas de coleta. (Lima 2003: 44)
tados do Ceará, Rio Grande do Norte e Pa-
Outros índios tapuias que ocuparam raíba, enfrentaram a epopéia de uma guer-
a região do atual Cariri paraibano eram os ra de extermínio que se seguiu a expulsão
índios Sucurus. Eles ocuparam o sul da Ca- dos holandeses e que durou toda a segun-
pitania, formando uma área triangular entre da metade do século XVII. Eles ocuparam,
as serras de Jacarará e Jabitacá e o rio Sucuru, preferencialmente, as áreas próximas ao rio
onde hoje está localizada a cidade de Mon- São Francisco e seus principais afluentes, se-
teiro e algumas cidades circunvizinhas. Suas guindo em direção setentrional em busca de
aldeias se localizavam entre os rios Curima- outros locais adequados para sobrevivência.
taú e o Araçagi. Durante os conflitos existen- Isso é percebido quando Beatriz G. Dantas et
tes a partir do contato, eles foram levados ao al. relata, ao se referir aos povos indígenas do
norte da Capitania para combater com os ín- sertão nordestino, analisando os índios Cari-
dios Janduys, denominados Tarairiú, que se ri como presente em várias localidades além
encontravam na fronteira com o Rio Grande. da região do rio São Francisco. Segundo ela:
Os índios Janduys estavam devastando esta Reconhece-se, porém, sem dificuldade,
região, causando medo aos habitantes do a predominância da família Kariri, presente
local, oriundos dos processos de expansão desde o Ceará e a Paraíba até a porção seten-
das fronteiras de ocupação colonial européia trional do sertão baiano, mas não se definem
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120
bem os seus contornos já que apenas quatro
de suas línguas – Kipeá, Dzubukuá, Kamu-
ru e Sauyá – chegaram a ser identificadas e DESCRIÇÃO DOS SÍTIOS NO MUNICÍ-
apenas a primeira delas suficientemente bem PIO DE SÃO JOÃO DO CARIRI
descrita, ainda no período colonial, graças
ao trabalho de Mamiani (1968). (Dantas et A região do Cariri foi inicialmente pes-
al. 1982: 432) quisada na década de 1970, em trabalho pio-
As informações contidas no Mapa neiro de Ruth Trindade de Almeida (1979),
etno-histórico de Curt Nimuendaju (2002), definido o Estilo Cariri Velhos, filiado pos-
principalmente as que revelam os diferentes teriormente à Tradição Agreste. Em virtude
etnônimos encontrados no sertão nordes- da baixa pluviosidade e da rede de drenagem
tino, de leste a oeste, se observa a presença muito superficial, essa região apresenta perí-
dos índios Cariri em vários locais do interior odos acentuados de seca regularmente. Essa
paraibano, como no Agreste, Borborema e regularidade, de acordo com estudos arque-
no atual Sertão. No mapa, ele coloca esses ológicos realizados para regiões similares, no
índios como uma família linguística, procu- que diz respeito à vegetação hidrologia e de-
rando demonstrar sua distribuição geográfi- mais componentes ambientais a esta (Martin
ca, assim como faz com as outras famílias e 1997), é presente desde o início do holoceno.
línguas isoladas. Esse mapa, além de distin- Em tais condições, espera-se que as popula-
guir as sociedades indígenas segundo a clas- ções pré-históricas tenham encontrado situ-
sificação linguística, as situa em mais de um ações semelhantes às atuais, em que pese a
local, conforme seu deslocamento ao longo interferência da exploração econômica que
do tempo, anotando sob seu nome, e em al- vêm sofrendo. Para a descrição desses sítios
guns casos, o ano em que ali se encontravam. foi levado em conta o seu suporte, a ocupa-
Observando uma superposição entre o mapa ção do suporte, posição do suporte e tipo de
de Nimuendaju e dos municípios paraibanos sinalação.
abaixo, pode-se inferir a distribuição espa-
cial desses grupos.

Figura 3: Cronograma etno-histórico na Paraíba – 1944. Fonte: Oliveira (2009), baseado em IBGE (s/d) e Nimuendaju (1987).

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SÍTIO SERROTE DOS LETREIROS

A vegetação e o relevo do local onde se


localiza o sítio se mostram característicos da
região dos Cariri. As pinturas e gravuras fo-
ram feitas sobre blocos de rochas que, mui-
tas vezes, se encontram bastante desgastados
pelo intemperismo que é comum na região.
O local onde se encontram os painéis é de
difícil acesso por se encontrar no meio da ve-
getação típica da região semi-árida, a Caatin-
ga, e por apresentar uma grande quantidade Figura 6: Exemplo de gravação polida (mão).
de painéis distribuídos em locais altos como
blocos de rochas, com o conjunto de painéis
apresentando uma disposição semi-circular,
formando um anfiteatro. Esses painéis estão
distribuídos de forma aleatória seguindo o
critério de sequência de seu feitor. O sítio
mostra gravações com frequência de sinais
geométricos (circulares e lineares), apresen-
tando apenas no painel 21 pintura rupestre.

Figura 7: Exemplo de gravação polida (pegada).

Figura 4: Vista geral do sítio.

Figura 8: Painel com pinturas com associação com gravações.

Figura 5: Exemplo de um dos painéis de gravações picoteadas. Figura 9: Presença de polidor nos sítios.

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As gravações em sua grande maioria estão
colocadas sobre as rochas horizontalmen-
te, com raros casos verticais, já a pintura
encontra-se em face vertical do suporte. As
gravações e a pintura apresentam-se muito
desgastadas, com bordas muito tênues, devi-
do à ação de intempéries.

SÍTIO LAJEDO DO ELISEU

Está localizado em local acidentado, ao


longo de uma subida íngreme, com vegeta- Figura 12: Detalhe de aproveitamento dos acidentes da rocha.
ção típica da região do Cariri, mostrando um
cenário árido e não apresentando facilidade
de acesso. As gravações foram executadas so-
bre um lajedo granítico coberto por um tipo
de fungo que dá umas colorações douradas,
distribuídas horizontalmente. O sítio apre-
senta-se com gravuras em motivos geomé-
tricos lineares e circulares, com interferência
atual nas gravações (ação antrópica), e com
as gravuras que se limitam à região do córtex
da rocha.
Figura 13: Detalhes com gravuras de pés picoteadas.
Há vários locais em que o sol e a chuva
agiram diretamente sobre a rocha, pois eles
se encontram a céu aberto, fazendo com que
as camadas superficiais dessas rochas estejam
prejudicadas, favorecendo a ação da erosão
nas gravuras, aumentando o seu desgaste.

SÍTIO PEDRA DO JACÓ

Encontra-se um pouco mais acima do


Lajedo do Eliseu continuando uma subida
Figura 10: Vista geral do painel. íngreme e com uma vegetação relativamen-
te fechada, típica da Caatinga, formada por
cactáceas das mais variadas espécies. O sítio
apresenta-se apenas com dois painéis de pin-
turas. No painel um a pintura mostra dese-
nhos figurativos, com forma de mão humana.
Já no painel dois, as pinturas estão dispostas
de forma semicircular. É um local de difícil
acesso e as rochas se mostram muito desgas-
tadas, intemperizadas pela ação do sol, vento,
chuvas e deposição de sais de rocha, forman-
do uma pátina. Devido a esse fator as pinturas
Figura 11: Detalhe do painel. não se apresentam muito visíveis.
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123
por se apresentar em local de passagem de
veículos. As pinturas encontram-se do lado
oposto da via de acesso, o que ajuda na pre-
servação do mesmo, por não deixar visível
aos transeuntes da via de acesso o local onde
se localizam as pinturas, ocupando a face
vertical do mesmo. A vegetação do local é
típica da Caatinga mas, em função da ocu-
pação, encontra-se bastante alterada. Este
sítio apresenta dois estilos distintos de gra-
fismos, um sobreposto ao outro. Trata-se de
grafismos puros, em cor vermelha, em duas
tonalidade e texturas, os grafismos circulares
e curvilíneos são mais líquidos e de tonalida-
Figura 14: Detalhe do painel – motivo linear.
de mais fraca estão recobertos por grafismos
mais lineares, com tonalidade mais forte e de
textura pastosa. Existem casos em que a ocu-
pação mais recente recobria um determina-
do grafismo curvilíneo em toda sua forma,
como se estivesse apropriando-se deste sig-
no.

Figura 15: Detalhe do painel – figura bastante alterada.

Figura 16: Vista geral do sítio.

SÍTIO MURALHA DO MEIO DO MUN-


DO (SÍTIO PICOITO)

Apresenta apenas pinturas, com moti-


vos geométricos. Alguns painéis se encon-
tram em melhor estado que outros e, tam-
bém, apresenta algumas pinturas sem uma
identificação concreta. Por ter sido um local
de exploração de granito, acredita-se que
muito tenha se perdido na implosão das ro-
chas, restando apenas os painéis descritos
Figura 17: Vista geral de sobreposição em um dos painéis.
acima. Este sítio encontra-se em fácil acesso
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124
quatro bocas, ou seja, quatro locais de en-
trada/saída, e, no seu interior, há pedras que
estavam deslocadas como se, anteriormente,
cobrissem os corpos que lá se encontravam
enterrados, segundo depoimento dos mora-
dores locais.
Nesse sítio não se encontra a presen-
ça de arte rupestre, mas foram encontrados
dois artefatos líticos ressaltando, dessa for-
ma, a suspeita citada anteriormente, de ser
um cemitério indígena. A vegetação e o rele-
vo do local apresentam-se de acordo com o
Figura 18: Detalhe de sobreposição no painel. clima semi-árido do Cariri e o lugar onde se
localiza o sítio é relativamente alto e muito
distante da estrada de acesso. Tivemos que
contar com a permissão do morador da fa-
zenda onde ele se localiza para que tivésse-
mos acesso ao sítio. Trata-se de um cemitério
onde os restos diretos foram retirados, sem
intervenção de arqueólogos, por peritos da
polícia local após a denúncia do proprietá-
rio das terras. O estado de conservação do
material é precário. O numero de indivíduos
encontrados foi de 17 indivíduos, sendo 15
adultos e duas crianças, com algumas pato-
Figura 19: Detalhe de apropriação de sinal no painel.
logias associadas a esforços físicos e prática
culturais. Entre os vestígios analisados foi
SÍTIO SERROTE DA MACAMBIRA observada a presença de pintura (ocre) em
alguns fragmentos de crânio (infantil) e apa-
O Sítio apresenta-se já bastante reme- ra e polimento em epífises distais de alguns
xido pelo pessoal da polícia civil, que fez ossos, indicando a ocorrência de sepulta-
averiguações sobre o local, não descartando mentos secundários, como pode ser visto
a hipótese de ele ser local de crime, retiran- nas fotos abaixo.
do os restos ósseos sem o devido cuidado e
registro estratigráfico e contextual. Em um
levantamento posterior no sítio foi percebi-
do outras evidências, especialmente material
lítico e material ósseo de animais, que não
consta do acervo deixado pelos policiais. Foi
possível perceber que através das feições des-
te local, que se trata de um possível cemité-
rio indígena e foi encontrado por moradores
do lugar. A ação de um dos integrantes do
Instituto Histórico e Geográfico do Cariri –
IGHC, evitou que o material fosse encami-
nhado para as análises policias, sendo enca-
minhado após alguns anos para o NDIHR,
da UFPB. O sítio cemitério é um abrigo com Figura 20: Vista geral do sítio.

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125
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As observações iniciais sobre o conjun-


to de sítios arqueológicos, até o momento
localizado, possibilitam inferir algumas re-
gularidades entre essas ocorrências e as for-
mas ambientais que foram escolhidas para
ocupação. Em primeiro lugar cabe apontar
a constatação de três conjuntos distintos de
evidências arqueológicas, os painéis com
pinturas, com gravações e os sítios com se-
Figura 21: Exemplo de artefatos encontrados.
pultamentos. A cada uma dessas ocorrências
pode-se indicar um tipo de situação ambien-
tal específica. Vale salientar que as diferentes
formas de ocorrência de sítios arqueológicos
nessa região estão inter-relacionados, con-
forme apontam Costa et al (2000) e Martin
(1997), o que pode indicar pesquisas futuras
para evidenciar essa relação.
Para os sítios com gravações, foi obser-
vado que sua ocorrência encontra-se asso-
ciada, de modo geral, a lajedos, ou mesmo
a afloramento, horizontais, com figurações
geométricas lineares, com raríssimos casos
de pontos e círculos, com sulcos muito ra-
sos, sempre a céu aberto. Os suportes dessas
gravações encontram-se nos sopés das serras
da região, não sendo identificados, até o mo-
mento, outros vestígios em contas mais altas.
Para os sítios de pinturas, estes se en-
contram em afloramentos graníticos, ocu-
pando várias fácies verticais dos mesmos,
não sendo observada nenhuma determina-
ção de orientação magnética dos painéis. Os
seus motivos são mais abrangentes que os das
gravações, desde geométricos lineares, circu-
lares até figuras que lembram antropomor-
fos, ocupando paredes verticais ou mesmo
pequenos abrigos. Esses sítios encontram-se
em cotas mais elevadas que os de gravações,
embora sejam ainda próximos aos sopés das
serras, não sendo observada nenhuma rela-
ção de continuidade entre esses sítios, com
exceção do Serrote dos Letreiros, onde um
de seus painéis é de pintura.
A terceira forma de ocorrência de sítio
Figuras 22 e 23: Ossos de crânio de criança com pigmentação arqueológico neste município que foi ob-
avermelhada (ocre). servada é exemplificada pelo sítio Serrote
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
126
da Macambira. Esse sítio é um abrigo-sob- AZEVEDO NETTO, Carlos Xavier de. 1988.
-rocha, formado por afloramentos graníti- “A natureza da informação da Arte Rupestre:
cos que forma um salão com três aberturas. a proximidade de dois campos”. Informare –
Esse sítio não possui pinturas ou gravações Cadernos do Programa de Pós-graduação em
rupestres, mas foram encontrados restos hu- Ciência da Informação. Rio de Janeiro, 4(2):
manos diretos e material lítico e cerâmico. 55-62.
Com respeito a esses restos diretos, cabe in-
formar que foram enviadas para Laboratório AZEVEDO NETTO, Carlos Xavier de et al.
de Arqueologia da Universidade Católica de 2005. “A inserção ambiental dos Sítios Ar-
Pernambuco para as devidas análises. Esse queológicos do Município de São João do
sítio encontra-se no cume do Serrote da Ma- Cariri”. In: Anais do XXIII Simpósio Nacio-
cambira, ocupando uma das extremidades nal de História. Londrina, ANPUH Nacional
de sua crista, com evidências de enterramen- (CD-ROM).
to secundário, uma forma de rito funerário
que não é rara para a região. Assim, pode-se BORGES, José Elias. 1993. “Índios Paraiba-
considerar que os sítios de pinturas são si- nos: classificação preliminar”. In: OCTÁVIO,
tuados na cota intermediária entre os sítios José & RODRIGUES, Gonzaga (org.). Para-
de gravação e os de sepultamentos, cabendo íba: Conquista, Patrimônio e Povo. João Pes-
a questão: Existiria alguma determinante soa, s/ed., pp. 21-42.
ritual nessa distribuição de sítios? Que mo-
tivação seria determinante para essa forma BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. 1977. Di-
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129
RESENHAS
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

RESENHA
PEREIRA, Levi Marques. 2009. Os Terena de Buriti: formas organizacionais, territorialização e representação da
identidade étnica. Dourados, Editora UFGD, 170 pp*
PATRIK THAMES FRANCO**
Falar e escrever sobre os Terena é recu- um trabalho de investigação pericial desen-
perar um importante capítulo da história da volvido na Terra Indígena Buriti em razão
antropologia brasileira, como certa vez pon- de litígio fundiário envolvendo um coletivo
derou Roberto Cardoso de Oliveira (2002). Terena. Trata-se de uma tentativa de revisão
Os Terena, representantes mais meridionais do produto etnográfico do autor que, em par-
dos povos de língua e cultura aruaque no ceria com o historiador jorge Eremites de
Brasil, aparecem na literatura antropológi- Oliveira, visitou aldeias Terena localizadas
ca especializada a partir do final dos anos nos municípios de Sidrolândia e Dois Irmão
40, embora os relatos de cronistas, literatos do Buriti, Mato Grosso do Sul. Dividido
e viajantes sejam anteriores a este período. em cinco capítulos, esse livro se inclui de
A primeira grande referência que se tem dos modo muito bem vindo a um “movimento
Terena, esta anterior ao século XX, dá con- de renovação na etnografia Terena” (Pereira
ta da sofisticação agrícola e da disposição à 2009:32).
convivialidade e ao associativismo com os No capítulo inicial, Pereira realiza uma
povos que lhes são estrangeiros, atributos breve revisão bibliográfica das principais
coextensivos à estrutura social indígena. etnografias sobre os Terena, enfatizando
A literatura e a própria oralidade in- os trabalhos de Kalervo Oberg e de Rober-
dígena sugerem que no passado os Terena to Cardoso de Oliveira. O autor aponta as
teriam se confederado aos aguerridos Guai- principais lacunas deixadas pelos clássicos,
curú, a fim de evitar as invasões inimigas às dentre elas a inclusão dos Terena na rede de
aldeias e o saque dos roçados. Em troca de povos de língua e cultura aruaque, e a des-
proteção militar os Terena, que se autodeno- crição adequada da organização social e da
minam Poké’e (gente da terra), abasteciam sociocosmologia indígena, tópicos ofusca-
os Guaicurú com mandioca, milho e outros dos pelos temas de aculturação e mudança
produtos da lavoura. Sensível a essas carac- cultural. Na segunda parte, realiza uma críti-
terísticas, que aliás são anteriores ao even- ca à hipótese sustentada pelos clássicos que
to do contato, é possível até mesmo avistar, inadmite a presença Terena na região como
ainda que a título de hipótese, o interesse dos fato anterior ao século XIX.
Terena pelo mundo dos brancos como uma O segundo capítulo se destaca pela crí-
transformação estrutural, embora não seja tica nativa ao conceito ocidental de aldeia,
esse o propósito de Os Terena de Buriti. cujo debate recai sobre o conceito Terena
O Livro Os Terena de Buriti, do etnólo- de tronco. Inspirado na crítica do material
go Levi M. Pereira, recupera as reflexões de melanésio ao problema geral dos conceitos
* Texto completo disponível em: http://www.ufgd.edu.br/editora/catalogo/os-terena-de-buriti
** Doutorando em Antropologia Social (Unicamp)
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
131
proposta por Strathern (1988), e auxiliado remete às redes de relações mantidas com os
pelo método genealógico de Rivers, Pereira Guaicurú no Chaco, para mostrar que a faci-
sugere que a aldeia aparece como uma con- lidade dos Terena em contrair boas relações
figuração de troncos. O tronco é uma clara com o exterior é anterior ao contato com os
expressão da chefia hereditária. O tronco, brancos, e que por isso não se explica apenas
ou kurú, se aplica a uma parentela bilateral por esta via.
reunida por relações de consangüinidade em O quinto capítulo atende a dois grandes
torno do Big Man, e cuja relação com outros debates: a construção da identidade em ce-
troncos configura uma aldeia. nário interétnico, e a sociocosmologia indí-
O terceiro capítulo, o mais importan- gena. A primeira parte fica por conta de uma
te do livro, ou pelo menos o mais citado, reflexão sobre o problema da tradição a par-
é apresentado pelo autor como um “ensaio tir do contexto da modernidade. Mas o pon-
exploratório” (Pereira 2009:85) sobre os to forte do capítulo se concentra na segunda
componentes essenciais do ethos Terena. parte, onde o autor recupera importantes ele-
Pereira sugere que os Terena possuem uma mentos da sociocosmologia Terena. O dis-
“feição típica, facilmente identificável pe- curso de Dona Senhorinha, uma especialista
los integrantes desse grupo étnico” (Pereira religiosa, revela uma sofisticada cosmologia
2009:83), cuja explicação se daria fora do povoada pelos Natiacha [naati: chefe; acha:
paradigma interétnico. A inclinação à flexi- mato], uma categoria de seres espirituais que
bilização e adaptação frente a outras sociali- gerenciam a caça e a relação com o animal,
dades e outros atributos relacionados a uma uma interessante teoria indígena da natureza
estética social do cotidiano, para lembrar jo- e da cultura infelizmente ainda pouco explo-
anna Overing (1999), explica a primazia da rada pelos etnólogos.
convivialidade e diplomacia sobre a preda- Os Terena de Buriti é antes de tudo sen-
ção e o conflito enquanto princípios básicos sível ao mundo vivido indígena. Sem dúvida
de ordenamento da vida social. um importante incentivo para a nova etno-
A inspiração para a formulação do con- logia Terena, cujo foco tem se voltado cada
ceito de ethos curiosamente não procede de vez mais para temas pouco explorados pe-
Gregory Bateson (1958), mas do sociólogo los clássicos, tais como a noção de pessoa,
Norbert Elias e seus estudos sobre a socie- a onomástica, o parentesco e a produção dos
dade de corte francesa. Pereira sugere que a corpos e das substâncias. À guisa de conclu-
“formação social” dos Terena (hospitalida- são, entretanto sem a pretensão de esgotar o
de, cordialidade, fino trato, maneira amena assunto, saliento que além de contribuição à
de falar) se aproxima, enquanto tipologia, etnologia sul americana, Os Terena de Buriti
da sociedade de corte (Pereira 2009:96). O é também boa literatura. O leitor encontrará
conjunto desses componentes daria forma ao não apenas importantes insights, mas tam-
ethos, cujo lócus estaria no plano do gesto e bém o rigor e a sensibilidade do trabalho de
da etiqueta (Pereira 2009:103). um etnólogo bem (in) formado.
O quarto capítulo também explora ou-
tro tema de fundamental importância: a re- BiBliografia Citada
lação com a exterioridade. Os Terena nunca
negaram o interesse por uma vida integrada BATESON, Gregory. 1958. Naven. Califor-
ao mundo dos brancos, fato que chamou a nia, Stanford University Press.
atenção de muitos antropólogos interessados
nos paradigmas de aculturação. Mais uma OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. 2002. Os
vez Pereira se afasta dessas formulações, Diários e suas Margens: viagem aos terri-
buscando possíveis respostas não na nação, tórios Terêna e Tükúna. Brasília, Ed. UnB.
mas no mundo vivido indígena. O autor nos
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
132
OVERING, joanna. 1999. “Elogio do Coti-
diano: a confiança e a arte da vida social em
uma comunidade amazônica”. Mana, Rio de
janeiro, 5(1).

STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender


of the Gift: problems with women and pro-
blems with society in Melanesia. Berkeley,
University of California Press.

____________
Recebido de 30 de Agosto de 2011

Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012


133
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

RESENHA
RUIBAL, Alfredo Gonzáles. La experiencia del otro: una introducción a la etnoarqueologia. Madri: Ediciones Akal.
2003, 177p.
LUIZ CARLOS MEDEIROS DA ROCHA*
ANDRÉA LOURDES MONTEIRO SCABELLO**
O livro “La experiencia del otro: una muitas vezes, leituras prévias.
introducción a la etnoarqueologia”, de au- O primeiro capítulo, “Teoría y Méto-
toria de Alfredo Gonzáles Ruibal, apresen- do”, além de trazer um panorama sucinto da
ta muito mais do que o título propõe, tendo etnoarqueologia, apresenta também a função
em vista a amplitude das abordagens e dis- deste subcampo de pesquisa, que tradicional-
cussões a respeito da etnoarqueologia. Essa mente dedicou-se a estudar grupos étnicos
obra apresenta uma linguagem clara e didá- prestes ao desaparecimento, investigando
tica, dedicada aos profissionais que buscam a produção da cultura material desses gru-
conhecer melhor o objeto de estudo deste pos. Esse olhar para a produção da cultura
subcampo da Arqueologia. Embora o autor material – da origem à morte – auxiliará os
tenha se dedicado a estudar a Idade do Ferro, arqueólogos no entendimento dos processos
na Península Ibérica (pesquisa de doutora- de formação dos registros arqueológicos.
do), atualmente preocupa-se com a arqueo- Ruibal, ainda nesse capítulo, apresenta
logia contemporânea e com temas como: as algumas das tendências teórico-metodológi-
guerras, as migrações em massa, entre ou- cas pelas quais a etnoarqueologia passou e
tros, realizando pesquisas na Espanha, Etió- vem passando, sobretudo na perspectiva da
pia, Guiné Equatorial e Brasil. arqueologia processual e a pós-processu-
Ao longo das 177 páginas, divididas em al, citando os seus maiores representantes
quatro capítulos, são apresentadas questões (Lewis Binford e Ian Hodder, respectiva-
de cunho teórico-metodológico e reflexões mente), e as pesquisas etnoarqueológicas re-
sobre o futuro da etnoarqueologia. Mesmo alizadas por eles. Cita, também, os trabalhos
de forma modesta, o autor ressalta as interfa- teóricos de etnoarqueologia de autoria de
ces entre a etnoarqueologia e outros campos Gustavo Politis, Nicholas David e a Susan
da arqueologia, como a arqueologia histó- Kramer. No entanto, o autor não se prende
rica, a arqueologia experimental etc., mos- às pesquisas do chamado mundo anglo-sa-
trando uma ampliação das pesquisas. xônico, mas aborda igualmente aquelas de
O tema central do livro abrange as autoria de pesquisadores franceses (dando
perspectivas do pensar e fazer etnoarqueoló- um pequeno destaque a estas), belgas, su-
gico. Por se tratar de uma obra em espanhol íços, alemães e latino-americanos. Segundo
e ainda não traduzida, o leitor poderá encon- ele, nesses últimos anos a investigação et-
trar dificuldade de compreensão requerendo, noarqueológica mostrou-se promissora, es-
* Mestrando – PPGAArq - Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia (PPGAArq) Universi-
dade Federal do Piauí – Bolsista CAPES
** Bacharel em Arqueologia e Conservação de Arte Rupestre - Universidade Federal do Piauí

Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012


134
pecialmente através do estudo da variedade Não obstante, ainda estão presentes
cultural no continente sul-americano. questões que demonstram a amplitude que
Finaliza o capítulo chamando a aten- os estudos em etnoarqueologia podem al-
ção para a natureza dos projetos etnoarque- cançar, a partir das perspectivas de análise
ológicos e aos aspectos como a ausência das paisagens, dos espaços, do tempo, do
de consenso metodológico; a natureza das gênero, além das próprias etnias, isso tudo a
generalizações e analogias e das descrições partir da cultura material.
densas, dando destaque as suas experiências Finalmente, no último capítulo o autor
na Etiópia. apresenta as perspectivas dessa disciplina
Os segundo e terceiro capítulos abor- ou subdisciplina, chamando atenção para a
dam na verdade uma única temática, a da possibilidade do fim iminente, em função do
“La Práctica Etnoarqueológica” sob duas processo de globalização.
perspectivas: a “Vida y muerte de la cultura Particularmente, apontamos como um
material”, e da “ Sociedad y mundo mate- dos pontos fortes dessa obra as reflexões,
rial”. perspectivas e abordagens que possibilitam
No segundo capítulo, a discussão cen- um novo pensar, mais ampliado e não limi-
tra-se especificamente sobre a cultura mate- tador sobre o registro arqueológico.
rial estudada pelos etnoarqueólogos, como Este livro é sem dúvida uma referência
os materiais líticos, cerâmicos e os metais. para iniciantes, que almejam realizar traba-
O autor faz uma crítica a maneira como a lhos bem estruturados e uma contribuição
maioria dos arqueólogos se debruça sobre a para os profissionais que já vêm se dedican-
cultura material, analisando os aspectos tec- do a este fazer arqueológico.
nológicos e os funcionais, deixando a mar-
gem o restante da biografia destes objetos ____________
juntamente com suas relações sociais. Apon- Recebido de 28 de Novembro de 2011
ta, com isso, a necessidade de que sejam in-
vestigados os vários episódios da vida de um
artefato, desde o seu nascimento, uso e até
sua morte (apropriando-se aqui do conceito
de cadeia operatória).
Nesse livro, os estudos tecnológicos
apontam para uma compreensão de que não
se devem descrever puramente as atividades
de micro-escala, mas entender os processos
sociais que ocorrem no seio das mesmas.
Deve-se analisar inclusive a forma como os
objetos foram abandonados, para permitir o
entendimento do processo de formação do
registro arqueológico. Para desprendermos
das intuições sobre o descarte e abandono
dos objetos recomenda-se fazer o uso da ta-
fonomia.
No terceiro capítulo, o autor vai deta-
lhar aspectos da análise da cultura, envol-
vendo a sociedade e o seu mundo material,
trazendo exemplos de vários lugares. A uti-
lização da etnografia nos trabalhos arqueo-
lógicos e etnoarqueológicos ganha destaque.
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ENTREVISTA
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

“EU EVITO MUITO CRIAR COISAS qUE SEjAM MITOS, NAS CABEÇAS DOS
OUTROS E NA MINHA PRÓPRIA”
ENTREVISTA COM jOÃO PACHECO DE OLIVEIRA*
JORGE EREMITES DE OLIVEIRA**
MARIO TEIXEIRA DE SÁ JUNIOR***
No final da tarde do dia 8 de dezembro de 2011, Suas experiências como etnógrafo dos
após prévio agendamento, realizamos uma Ticuna do Alto Solimões, na Amazônia,
entrevista com o antropólogo joão Pacheco extrapolam a conclusão de uma dissertação
de Oliveira em seu gabinete de trabalho, de mestrado e de uma tese de doutorado
no Museu Nacional, órgão da Universidade em Antropologia Social, respectivamente
Federal do Rio de janeiro. Desde 1988 defendidas na Universidade de Brasília
ele ali atua como professor e pesquisador (1977) e na Universidade Federal do Rio
vinculado ao Programa de Pós-Graduação de janeiro (1986). Exemplo disso é o fato
em Antropologia Social, o mais antigo do de ter sido um dos fundadores do Museu
país, criado em 1968. Também atuou como Magüta, localizado em Benjamim Constant,
professor visitante em várias instituições Amazonas, com passagens pela sua direção
sediadas no Brasil e em alguns outros países, nas décadas de 1980 e meados da de 1990,
como Argentina, Itália e França. o qual no momento está sob a administração
direta do Conselho Geral da Tribo Ticuna.
Longe de querermos aqui apresentar uma
biografia exaustiva sobre o antropólogo, A entrevista ora divulgada faz parte do dossiê
cumpre registrar que no Museu Nacional “Terras Indígenas”, cuja publicação inaugura
joão Pacheco de Oliveira foi chefe do o número 1 da revista eletrônica Ñanduty,
Departamento de Antropologia (1988-1990), periódico oficial do Programa de Pós-
coordenador do Programa de Pós-Graduação Graduação em Antropologia da Universidade
em Antropologia Social (1990-1992) e Federal da Grande Dourados, criado em
chegou ao cargo de professor titular em 1997. fins de 2010. Ao planejarmos previamente
A partir dali tem coordenado vários estudos a entrevista, tomamos o cuidado de fazê-la
sobre povos indígenas no Brasil e é bolsista o menos formal possível, mais próxima das
de produtividade em pesquisa do CNPq. No interlocuções abertas e descontraídas que
momento também responde pela curadoria por vezes realizamos em nossos trabalhos
das coleções etnológicas do Museu Nacional, de campo. A ideia foi tratar da história
onde tem desenvolvido estudos sobre museus, de vida de um dos maiores antropólogos
expedições científicas, patrimônio cultural e brasileiros da atualidade, ao mesmo tempo
memória indígena, dentre outros temas. em que questões relativas a sua trajetória
acadêmica e à atual realidade dos povos
Em seu currículo consta ainda a orientação indígenas e da Antropologia no Brasil
de dezenas de dissertações de mestrado e pudessem ter certo destaque. Por isso na
teses de doutorado, bem como a supervisão entrevista aqui apresentada constam apenas
de vários estágios de pós-doutoramento, as perguntas feitas por um de nós, embora
a maioria tratando de povos indígenas na seu planejamento tenha sido resultado de
Amazônia e no Nordeste do Brasil. Foi um trabalho a quatro mãos. Trata-se, em
presidente da ABA - Associação Brasileira última instância, de um documento sobre o
de Antropologia (gestão 1994-1996) e nela indigenismo, o trabalho do antropólogo e a
por várias vezes tem coordenado a CAI - própria história da Antropologia Brasileira
Comissão de Assuntos Indígenas. sob o olhar de um dos seus protagonistas.
* Transcrição de Jorge Eremites de Oliveira e Rafael Allen Gonçalves Barboza.
** Universidade Federal de Pelotas/CNPq.
*** Universidade Federal da Grande Dourados.
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Feita a gravação da entrevista, muito longo, eu faço. Eu recupero um pouco
providenciamos sua transcrição o mais esse contexto político etc. Agora, é claro que
próxima possível das falas registradas no indo mais direto eu até me surpreenda um
gravador digital. Além disso, ao longo do
texto incluímos notas explicativas que pouco com essa constatação. Mas é, eu não
auxiliam o leitor não iniciado no assunto imagino que seria. Talvez eu não praticasse
a melhor conhecer certas questões e a um romance tão grande ao dizer que já ao
se interar de referências bibliográficas e nascer eu pretendia estudar índios ou que eu
autores citados pelo entrevistado. sentia um fascino nato pela Amazônia, ou
Esperamos, enfim, que este trabalho seja um qualquer coisa do tipo. Não seria verdade.
marco na trajetória de um novo periódico Eu acho que isso foi sendo construído. Eu
brasileiro dedicado à Antropologia e seus acho que o fascínio pelas culturas indígenas
campos afins. foi sendo construído através da bibliografia
antropológica e conhecer essas sociedades,
Boa leitura!
através da pluralidade de soluções que elas
jORGE EREMITES DE OLIVEIRA (jEO) tinham, e depois a vivência nas aldeias,
– A gente queria começar esta entrevista, contato direto com as pessoas, com
joão, se você pudesse explicar primeiro por bibliografias, com as vidas, com as lutas. E
quais caminhos decidiu ser antropólogo? eu acho que foi uma trajetória bem diferente.
Foi de certo modo interessado na temática
jOÃO PACHECO DE OLIVEIRA (jPO) – social e não no sentido de produzir mudança
Bom, eu acho que um pouco pelo contexto. social. Uma temática sociológica. Interessava
Às vezes as decisões são muito conjunturais. os problemas sociológicos. Eu achava que
Eu estudei Ciências Sociais e estava me era importante compreender a sociedade,
formando no período militar, no período de também pensando em transformar, evidente.
repressão muito forte. Então eu acho que havia Mas eu acho que era importante compreender.
uma série de motivações para fazer estudos E eu acho que dentro do contexto
sociais. Mas, em certo momento, me pareceu universitário isso tem sido comentado por
que um dos estudos que seria possível fazer vários professores daqui. A Antropologia
seria o estudo talvez daquilo que não estava nos anos 70 era uma espécie de “ilha de
sendo mais diretamente observado pelo segurança” para você fazer os estudos na
Estado e pelo poder. quer dizer, trabalhar um concepção dos militares. Eles perseguiam os
pouco nas margens, produzir conhecimento sociólogos, cientistas políticos, mantinham
sobre o que é considerado irrelevante, sem sob suspensão historiadores e eles achavam
significação. Então foi isso. Eu acho que que os antropólogos faziam outros trabalhos.
não via muita condição, ou não via muita Então, curiosamente, eu me lembro como
utilidade, se eu fosse me dedicar a outros num dos períodos que voltei a campo, tive
estudos de assuntos que eram altamente que passar por um coronel da FUNAI. Um
políticos na sua natureza. Então eu acho coronel de triste memória chamado zanoni
que isso me levou a trabalhar em situações [...]2. Mas é, enfim, e ele em certo momento
bem recuadas no Brasil. Ir para Amazônia, perguntou: “O que eu vou fazer em campo?”
trabalhar com índios, uma temática que Eu falei: “Vou fazer pesquisa antropológica”.
aparentemente não seria política, mas que Ele disse: “Sim, o que exatamente?” Aí eu
permitiria assim um grau de compreensão, comecei a explicar, mas acho que expliquei
um grau de continuidade em relação aos alguma coisa um pouco abstrata demais que
estudos. Eu acho que talvez até eu vendo
2 Ivan zanoni Hausen, coronel da Aeronáutica e espe-
isso hoje me surpreenda um pouco. Eu já cialista em Estratégia, já falecido, participou da direção da
disse isso até em meu memorial de professor, FUNAI (Fundação Nacional do Índio) durante a presidência
num concurso para professor titular, que do também coronel joão Carlos Nobre da Veiga, cuja ges-
depois foi publicado no livro Ensaios em tão foi no período de novembro de 1979 a outubro de 1981.
À época ele foi diretor do então DGPC – Departamento Ge-
Antropologia Histórica1. Num memorial
ral de Planejamento Comunitário do órgão indigenista (cf.
1 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1999. Uma trajetória
em antropologia (depoimento). In: PACHECO DE OLI- http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/
VEIRA, João. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de orgao-indigenista-oficial/galeria-dos-presidentes-da-funai
Janeiro, Editora UFRJ, pp.211-263. [acesso em 24/01/2012]).
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ele não entendeu. Ele disse: “Sim, vai estudar três fazendo pesquisa e um dos professores
os potes, os artesanatos, essas coisas que indígenas chegou e veio me abraçar de
eles vão fazer, né?” Fiquei meio surpreso, manhã, e estava muito triste. E ele disse
mas antes que eu dissesse alguma coisa, ele que tinha sonhado que nós tínhamos sido
arrematou: “Não, nada de você trabalhar com presos, levados presos por uma comissão
terra e nem com a ação da FUNAI dentro da do Exército, que tinha entrado lá e tinha
área. Isso não faz parte do seu objeto!”. quer prendido etc. é engraçado. A preocupação
dizer, exatamente o meu projeto de pesquisa dele com a coisa. Claro que nós tínhamos
era esse. é claro que era esse porque aqui a mesma preocupação. Sabia que corria o
dentro a gente trabalhava com essas questões, risco real de ser qualificado como elemento
dentro do Museu. Então não houve muita... perigoso, um insuflador dentro da área. Eu
Acho que a idéia socialmente vigia em estive presente no momento em 88, quando
relação à Antropologia ajudava exatamente houve um massacre dos índios Ticuna5.
a que se pudesse fazer estudos sem que esses Eu tive lá. Eu tive, estava em Benjamin
estudos estivessem tão ameaçados assim, Constant. Não fui à área exatamente por
como considerada coisas tão perigosas. saber dos riscos envolvidos, como depois
Isso não quer dizer que a gente não fizesse fui ameaçado por coronéis, que se diziam
estudos fora de uma redoma de cristal, ao do Conselho da Segurança Nacional, que
contrário. A gente sempre. Na prática, os foram lá investigar o assunto. Enfim, são
estudos eram muito difíceis. Uma parte da situações extremamente complexas, que a
minha pesquisa com os Ticuna, que durou gente vive junto com índios, mas que, enfim,
muito tempo, foi realizada sem permissão é delicado. Mas eu acho que se a gente não
da FUNAI. é, uma parte do período foi feito preservar um pouco da continuidade do
durante o período Calha Norte3, lá dentro, nosso trabalho, pelo menos do ponto de vista
e era proibida a presença dos militares lá do objeto do conhecimento, nós estamos
dentro. Eu nunca pedi autorização a não perdendo um lado aí nosso, profissional,
ser uma autorização. Essa vez que estive e acabamos sendo objeto das pressões
com esse coronel, foi um pedido formal via políticas. Eu nunca fiz isso. Eu sempre
CNPq, Ministério da Ciência e Tecnologia, mantive em qualquer situação que seja. Eu
porque a FUNAI não dava resposta aos posso atuar politicamente, mas eu tenho um
nossos pedidos. Então, foi a única vez que compromisso de produzir teorias, produzir
eu pedi autorização. Depois disso, sempre Antropologia, de fazer etnografia. Eu sempre
pedi autorização e acatei o que o “capitão” me ocupo das duas coisas e sempre produzo
da aldeia me dizia. Ele era autoridade e eu das duas coisas. Então, eu acho que o Museu,
tinha que respeitar a autoridade dele, e agir voltando à coisa e fechando, terminando
de acordo com aquela autoridade. Mas eu
Oliveira era graduado, mestre e doutorando em Geografia
nunca voltei a pedir autorização à FUNAI. pela Universidade Federal do Rio de janeiro. Realizava es-
Sempre trabalhei com a autorização dos tudos no campo da Geografia Humana, precisamente sobre
índios. E isso levava a situações complexas. identidades étnicas e territorialidades na região Nordeste,
Eu me lembro durante o período Calha Norte. e modernização dos sertões e suas relações com a história
[...] Estava com a minha mulher lá dentro, da Geografia.
5 Segundo consta no sítio eletrônico do Instituto So-
criança, meu filho Tomas4. Estávamos lá os cioambiental, o massacre dos Ticuna, também conhecido
3 O Projeto Calha Norte se refere a um programa de de- como massacre da Boca do Capacete, local onde ocorreu,
fesa da região Norte do país, inicialmente dirigido à faixa de foi feito por madeireiros em 28 de março de 1988, durante
fronteira, contando com quatorze bases militares e concebi- uma reunião dos Ticuna das comunidades de Bom Pastor,
do a partir de 1985, na época do governo José Sarney (1985- São Leopoldo, Porto Espiritual e Novo Porto Lima, em Ben-
1990) (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Calha_Nor- jamin Constant, estado do Amazonas. Foram assassinados
te [acesso em 24/01/2012]). Desde 1999 o programa está quatro indígenas, dezenove sofreram lesões corporais e
subordinado ao Ministério da Defesa e sobre o assunto há nove desapareceram. Em 2001, treze dos quatorze acusados
uma publicação oficial, intitulada Calha Norte 25 anos: a foram condenados por crime de genocídio, com penas que
Amazônia desenvolvida e segura, disponível na Internet variavam de 15 a 25 anos de prisão, com direito a recorrer
(cf. https://www.defesa.gov.br/index.php/publicacoes/ca- da sentença. O massacre teria sido ordenado pelo madeirei-
lha-norte-25-anos-a-amazonia-desenvolvida-e-segura.html ro Oscar Castelo Branco, que à época da entrevista se en-
[acesso em 24/01/2012]). contrava em prisão domiciliar (cf. http://pib.socioambien-
4 À época da entrevista, Tomas Paoliello Pacheco de tal.org/pt/noticias?id=2977 [acesso em 24/01/2012]).
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essa questão, eu acho que o Museu era um mais da Antropologia do que do próprio
ambiente bastante propício para isso. Era Lévi-Strauss, porque ela me parecia mais
um ambiente um pouco de estudos sérios, interessante. Então, quando durante os cursos
de estudos condensados, dirigidos. Então foi que eu fiz: Evans-Pritchard, Malinowski,
uma coisa muito propícia. Acho que o Museu Gluckman, Forde etc. Foram, sobretudo,
neste sentido. Brasília também com Roberto os ingleses. Foram leituras fundamentais
Cardoso de Oliveira era o mesmo circuito. para mim, muito interessantes. Leach...
Na verdade, eram lugares diferentes, mas Foram leituras que fizeram a minha cabeça,
havia uma conexão de pessoas. me mobilizaram profissionalmente a ir a
investigar. Então, eu acho que sempre essa
JEO – Quais foram suas principais influências etnografia foi muito interessante. Depois,
em termos intelectuais desde a graduação? O em certa medida, quando dentro dessa
que você leu, enfim, o que lhe influenciou? tradição, eu acabei definindo meu projeto de
Autores? pesquisa na área de sociedades indígenas. Aí
comecei a fazer uma virada no sentido das
JPO – Jorge, a minha influência foi muito
leituras, das monografias sobre o Brasil. E
variada. Eu, em certo momento, quis estudar
aí eu acho que a figura do Curt Nimuendaju,
também Filosofia. Eu fiz várias incursões em
uma figura muito importante de ler e seguir
vários lugares. Então eu acho que influências
e acompanhar a trajetória dele7. David
assim, para chegar à Sociologia, poderia ser
Maybury-Lewis... Eu acho que é uma grande
Marx, sem dúvida, weber, Nietzsche – que
influência. Roberto Cardoso8, claro, foi meu
pra mim foi uma leitura muito importante.
professor, foi meu orientador na pesquisa
Antes de ter lido Durkheim, eu era um leitor
sobre Ticuna e quem, de certa forma, insistiu
muito interessado em Nietzsche. Então, eu
para que eu trabalhasse com os Ticuna.
acho que talvez foram essas, assim, as leituras
Embora ele não tivesse continuado a ter
mais fortes para levar para Antropologia.
pesquisa com os Ticuna, mas os contatos dele
Depois, dentro da Antropologia, no curso
com a FUNAI propiciaram que eu fosse até
de Sociologia, influência grande foi aqui
a área, e fizesse o trabalho mais fácil. Enfim,
do professor Luiz Costa Lima6, que era de
foram esses os contatos, assim. Mas talvez
pensamento muito ligado ao estruturalismo.
numa direção, chegando aqui no Museu
Profundo conhecedor de Lévi-Strauss.
Nacional, sobretudo, a referência maior seria
Então, na época, eu li muita coisa com ele.
o professor Otávio Velho, com os trabalhos
Fui monitor da cadeira dele lá na PUC do
dele sobre fronteira. Campesinato: Moacir
Rio de janeiro, onde eu estudei. E, de certo
Palmeira, Lygia9 também. Mas, enfim.
modo, quando eu vim para cá, para o Museu,
eu já conhecia quase toda a obra de Lévi- 7 O teuto-brasileiro Curt Unkel Nimuendaju (1883-
Strauss, pelo menos até aquele momento a 1945) foi um dos maiores etnógrafos que trabalharam no
que eu já tinha discutido. Porque o Costa Brasil. Dentre as suas publicações consta o livro As lendas
Lima, ele escrevia, ele produzia isso. Ele da criação e destruição do mundo como fundamentos da
religião dos Apapocuva-Guarani, escrito originalmente em
deu cursos na PUC só sobre o Mitologie. 1914, sob título Die Sagen von der Erschaffung und Ver-
Então, ele era um leitor, ele utilizava a nichtung der Welt als Grundlagen der Religion der Apa-
categoria do método estrutural para a pocúva-Guaraní, resultado de pesquisas realizadas a partir
análise literária. Então era uma discussão de 1906 (cf. http://biblio.etnolinguistica.org/autor:curt-ni-
muendaju [acesso em 24/01/2012]). Sobre o assunto, ver
profunda, envolvendo semiólogos etc. Eu ainda: PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1999. Fazendo
acho que se isso me aproximou de certa etnologia com os caboclos do Quirino: Curt Nimuendaju
maneira da Antropologia, pela bibliografia. e a história Ticuna. In: PACHECO DE OLIVEIRA, João.
Mas ao mesmo tempo à medida que eu Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro, Editora
começava a estudar teoria antropológica, UFRJ, pp.60-96.
8 Sobre a vida e a obra de Roberto Cardoso de Olivei-
essa teoria me fascinava muito mais do que ra (1928-2006), acessar o link http://pt.wikipedia.org/wiki/
o estruturalismo. Descobri que eu gostava Roberto_Cardoso_de_Oliveira e ver, dentre outras publi-
cações, o seguinte livro: AMORIM, Maria Stella. 2001.
6 Ver relação de obras do autor em http://pt.shvoong. Roberto Cardoso de Oliveira: um artífice da antropologia.
com/books/biography/1659987-luiz-costa-lima-vida-obra/ Brasília, Paralelo 15 Editores.
(acesso em 24/01/2012). 9 Lygia Sigaud (1945-2009) foi da primeira turma de
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Lygia foi minha professora na PUC. Então ouvir o que eles queriam me contar. Eu não
eu conto isso, sempre. Eu a conheci antes podia invadir outras áreas. Então, foi essa a
de conhecer os antropólogos. Li, sobretudo, minha relação. Eu acho que o meu projeto
uma influência grande aqui no Museu, de pesquisa foi redesenhado no campo, quer
também de certa forma o decano, o Luiz dizer, eu comecei a estudar Antropologia
de Castro Faria10, que era o professor mais Política voltando do campo! Eu tinha ido
antigo da casa. Foi tudo: foi arqueólogo, foi com uma bibliografia de outra natureza. E aí
antropólogo físico. Ele fazia de todas. Tocava eu disse: “Não, eu vou refazer o meu objeto
todos os instrumentos dentro desse Museu. de estudos porque eles querem falar sobre
Foi uma influência muito grande a discussão isso”. E a minha dissertação do mestrado
com ele sobre pensamento social brasileiro. teve como tema mais ou menos a questão do
Infelizmente não tem continuidade muito faccionalismo, dos conflitos internos à aldeia
essa linha de pesquisa aqui no Museu. Ele e coisa11. Era isso o que aparecia porque
não deixou muitos continuadores dessa era esse o grande desafio. Quem visitava
linha. as aldeias diziam que elas eram como se
fossem favelas, sem qualquer ordem. Os
jEO – E como que foi o seu encontro com os índios brigando entre si, enfim. E eu acho
Ticuna e a influência deles na sua formação que trabalhar um pouco com essa ideia das
de antropólogo? unidades políticas, das facções, dos grupos
familiares, a influência das religiões etc., foi
jPO – Ah, eu acho que eu fui rebatizado
um instrumento fundamental, muito difícil.
no campo, quer dizer, eu defini um projeto
Mas foi a pesquisa do mestrado, enfim, foi o
de pesquisa sobre os Ticuna a partir da
que me moveu. Nessa altura o meu orientador
bibliografia, sobretudo de trabalhos na época
do mestrado foi o Roberto Cardoso. Eu fiz o
muito formados pelo chamado totemismo,
mestrado em Brasília. Depois no doutorado
pelo sistema de classificação. Meu projeto de
já foi a uma outra direção12. quando eu voltei
pesquisa era sobre isso. Envolvia um pouco
à área, o movimento messiânico estava mais
o parentesco também. É, mas, enfim, a ida
fraco e eu pude me mexer mais também
ao campo foi outra coisa. Os Ticuna queriam
em outras direções. Então, as experiências
falar de política, de terra, de conquista de
foram um pouco diferentes. Pude encontrar
terras. Eles queriam falar sobre religião
mais a história dos grupos, a mitologia,
também, mas não a religião do yo’i e do Ipi,
ouvir muitos mitos, participar de alguns
mas queriam falar, no momento, da Santa
rituais. Enfim, foi uma outra condição que eu
Cruz, que era um movimento messiânico
encontrei dentro deste retorno. Mas também
que estava muito forte. Então, eu tive que
– eu acho que entre uma coisa e outra estou
mestrandos do PPGAS – Programa de Pós-Graduação em falando do acadêmico. Mas também teve
Antropologia Social, do Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, criado em 1968 (cf. http://www.
uma ação política porque mesmo enquanto
ppgasmuseu.etc.br/museu/pages/homenagem-lygiasigaud. investigador do mestrado, eu também, quer
html [acesso em 24/01/2012]). Sobre sua obra, ver ainda o dizer, na realidade o convite feito ao Roberto
seguinte artigo: LOPES, José Sérgio Leite. 2009. Lygia Si- Cardoso não era só para fazer uma equipe
gaud (1945-2009). Revista Brasileira de Ciências Sociais, de estudantes que fizesse um levantamento
24(71): 5-8. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0102-69092009000300001&script=sci_arttext sobre os Ticuna. Era para que agendasse
(acesso em 24/01/2012). um programa de desenvolvimento lá dentro.
10 Luiz de Castro Faria (1913-2004) foi um antropólo-
go de formação holística que chegou a presidir a Associa- 11 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1977. As facções e
ção Brasileira de Antropologia nos períodos de 1955-1957 a ordem política em uma Reserva Tükuna. Dissertação de
e 1978-1980 (cf. http://castrofaria.mast.br/trajetoria.htm Mestrado em Antropologia Social. Brasília, PPGAS/UnB.
[acesso em 24/01/2012]). Ele participou, na condição de Orientador: Roberto Cardoso de Oliveira.
brasileiro e representante do Museu Nacional, da missão 12 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1986. “O Nosso Go-
científica Vellard/Lévi-Strauss, em atendimento às exigên- verno”. Os Ticuna e o Regime Tutelar. Tese de Doutorado
cias do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísti- em Antropologia Social. Rio de Janeiro, PPGAS/MN/UFRJ.
cas e Científicas, criado desde 1933. Sobre o assunto, ver, Orientação de Otávio Guilherme Alves Velho. Este trabalho
dentre outras publicações, o seguinte artigo: PEIXOTO, foi publicado sob forma de livro: PACHECO DE OLIVEI-
Fernanda. 1998. Lévi-Strauss no Brasil: a formação do et- RA, João. 1989. O Nosso Governo: Os Ticuna e O Regime
nólogo. Mana, Rio de janeiro, 4(1): 79-107. Tutelar. São Paulo, Marco Zero/CNPq.
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Na época eram aquelas grandes coisas da ele foi trabalhar nas frentes de atração, se
Perimetral Norte13, aquelas estradas que tornou o segundo homem das frentes de
seriam construídas em todo o Brasil. E a atração, colaborador do Sidney Ponsuelo,
FUNAI achava que iria capturar recursos, uma figura notável. Mas eu acho que foi
talvez até internacionais, para criar uma uma ação extremamente importante porque
estrutura na área. Então foram grandes o posto indígena é colocado a cem metros
projetos que foram feitos. quer dizer, da casa do barracão do patrão. Era um com
feitos nem tanto, mas foram elaborados por a bandeira nacional, era uma manifestação
professores, sobretudo da Universidade de de que aquilo ali fazia parte do Brasil, não
Brasília: David Price, lá com Nambiquara; era uma propriedade privada. Então, eu
o meu, com Ticuna; o do Peter Silverwood, acho que foi um período muito... Foram
no Rio Negro; e o com yanomami, com resultados importantes nessa coisa. Claro
Kennedy Taylor, que é marido da Oscila, que eu não participei de todos os momentos.
escocês que era professor da UnB. Eram Eu acho que... Eu evito muito criar coisas
esses. Todos doutores, estrangeiros, bem que sejam mitos, nas cabeças dos outros e
mais velhos e, eu, jovem brasileiro sem na minha própria. Então, muitas horas eu
doutorado, ainda, mas brigando dentro de acho que estava distante, mas eu acho que
uma situação complexa lá que a gente teve. o trabalho foi fundamental, e o projeto todo
Mas, enfim, conseguimos fazer um pouco fomos nós que assinamos, nós que criamos e
da coisa. A FUNAI imaginou programas viabilizamos para que existisse. Não existiria
rocambolescos, sempre para capturar sem o wellington, sem dúvida. Também não
verbas, durante planos gigantescos, por existiria sem os líderes indígenas, que foram
cinco anos. Foi um sacrifício enorme, para buscar o apoio da gente em outros lugares para
nós, todos, mas eu acho que acabou tendo pedir a ação lá dentro. Na verdade, a gente
alguns resultados, porque saiu um projetinho pensou nesse projeto não só como um ato
emergencial, que nós aplicamos na área. Eu assim, mas como alguma coisa que também
descrevo isso num texto também, chamado respondia a demanda deles. Eles queriam
“Projeto Piloto Vendaval”14. E aí eu boto isso. Nessa época eles queriam. Depois
como foi a implantação do posto indígena eles passaram à reivindicação, na década
na área e que foi a nossa experiência, quer a seguir. Na década de 70, a reivindicação
dizer, dentro da implantação do posto eram postos indígenas. Eles queriam afastar
indígena no meio da área Ticuna, no que os patrões e ter área de liberdade. Nos anos
era o seringal mais forte. De certa forma a 80 mudou. Eles queriam ter áreas indígenas
gente acha que, enfim, libertou os Ticuna definidas, as terras indígenas. Então,
da relação patronal que eles tinham. Tinha houve uma mudança radical e aí para isso
um excelente chefe de posto. Foi conosco, precisavam organizações indígenas para
era um colaborador etc. Um jovem técnico mobilização. E eu acho que nós também
indigenista, wellington Figueiredo15. Depois tivemos um outro perfil de intervenção, aí
13 A Perimetral Norte, isto é, a rodovia federal BR-210, através de uma ONG. Isso criada em 85,
foi concebida durante o apogeu econômico do regime mili- chamada Magüita, que é a autodenominação
tar (1964-1985) e fez parte do Plano de Integração Nacional. deles: Centro de Documentação e Pesquisa
A ideia era cortar toda a região amazônica, desde o Amapá
até a fronteira com a Colômbia, no estado do Amazonas, do Alto Solimões16. Era uma ONG que nós
o que causou uma série de impactos negativos a diversas criamos. Como a que nós estudantes... Eu,
comunidades indígenas estabelecidas em sua área de influ- professor, era o único, e alguns estudantes,
ência direta e indireta (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/BR- nós que trabalhávamos lá, criamos essa
210 [acesso em 24/01/2012]).
14 PACHECO DE OLIVEIRA, João & ROCHA FREI-
ONG e fomos criando uma espécie de apoio
RE, Carlos Augusto da. 2006. A presença indígena na possível aos indígenas dentro da região. Na
formação do Brasil. Brasília, MEC/UNESCO/LACED- época, quando começamos, não tinha nem
-Museu Nacional. Disponível em http://unesdoc.unes- CIMI atuando lá dentro. Depois teve, teve
co.org/images/0015/001545/154566por.pdf (acesso em
24/01/2012). indigenista oficial.
15 O sertanista/indigenista Wellington Figueiredo, atual- 16 Maiores informações sobre o Museu Magüta cons-
mente aposentado pelo Ministério da Justiça/FUNAI, che- tam em http://www.museumaguta.com.br/ (acesso em
gou a dirigir o Departamento de Índios Isolados do órgão 24/01/2012).
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uma atuação importante. Então, a ONG foi mais que você fizesse uma avaliação da
fundamental. Essa ONG evoluiu. Hoje é o Constituição passadas várias décadas.
Museu Magüita.
jPO – é, a movimentação para a Constituinte.
jEO – Primeiro museu indígena? Ela foi uma coisa de várias mãos, de várias
entidades, várias coisas. O CIMI teve presente,
jPO – Museu indígena, exatamente. Mas muito, nessas atuações. O CIMI organizou
tem, ele tem uma história bem diferente. As várias caravanas, organizou pressões. Atuou
pessoas ficam às vezes falando: “É, primeiro nas comissões parlamentares, levou bispos lá.
museu indígena etc.” Não é a questão Foram organizadas muitíssimas comissões
de ser indígena. Ele é o museu do povo indígenas indo ao Congresso Nacional.
indígena! Ele é o museu de afirmação da Acho que várias ONGs também colaboraram
cultura Ticuna, dos direitos Ticuna à terra, nisso. Os Kaiapó eram fregueses de lá, dos
à língua, à assistência diferenciada. Então corredores do Congresso. Enfim, foi uma
ele tem um papel político primordial. Não coisa muito bonita o período da Constituinte,
é um museu estético, de fazer pelos artistas porque de certa forma para parlamentares que
indígenas, pelos museólogos indígenas. só pensavam, talvez em fazer – os melhores,
Isso foi uma coisa. Foi uma ficção criada né? –, em fazer acabar com os resíduos do
em certo momento por uma assessora que, autoritarismo militar, eles mostraram um
vamos dizer, “aparelizou” um indígena lá Brasil diversificado, um Brasil colorido, um
dentro para virar um museólogo indígena. E Brasil indígena que a maior parte não tinha
o cara não tinha nenhuma... Na verdade não a menor idéia do que aquilo era. Então, eu
era liderança política, não estava sintonizado acho que o capítulo da Constituição reflete
com isso e era vendido nos contextos como também isso, uma surpresa. O Congresso
o indígena que é o museólogo e que está Nacional foi meio “tomado de assalto” pelos
organizando o museu. Até o momento que os índios. Não era uma ocupação violenta. Era
“capitães” se reuniram e botaram essa turma uma ocupação alegre e exótica, que deixava
para fora. O museu era deles. O museu não as pessoas surpresas. E eu acho que isso foi
era de artistas, nem de assessores. O museu muito importante. Não é que tivesse grandes
era do movimento político que tinha como lobes. Era questão de convencimento mesmo
aquela finalidade. Então foi um processo dos parlamentares e até dos funcionários que
bastante complexo. Agora, isso foi em apoiavam e achavam interessante aquela
momentos muitos diferentes a essa minha coisa. Muitos índios iam lá, nem sequer
trajetória de atuação política. quer dizer, em falavam o português. Estavam ali como
certo momento coordenando esse projeto da autômatos levados pelos chefes. Mas era
FUNAI, fornecendo planos para a atuação uma coisa interessante. Não era uma coisa
da FUNAI. E até esses planos, quer dizer, artificial, orquestrada, entendeu? Eu acho
muitos não foram executados no momento que isso foi interessante. Naturalmente
que a FUNAI tinha vínculo comigo, depois houve idas e vindas etc., e coisas muito
já não tinha nenhum vínculo, ao contrário. complexas em relação a isso. Não dá para
Eu e outros antropólogos estávamos na avaliar dentro de um pedacinho de uma
lista negra dos coronéis da FUNAI. éramos conversa. Mas eu acho que a ABA teve uma
considerados os inimigos da política presença muito importante nesse processo.
indigenista, que falam mal etc. e tal. Havia Enfim, foi uma luta grande que acabou sendo
uma lista negra. Depois é que eu pude vitoriosa porque o texto constitucional em
encontrar essa lista negra fazendo estudos relação aos índios é bom. Não é bom em
sobre a FUNAI no período de 84 a 85, relação à reforma agrária, por exemplo.
período da transição, da entrada de Tancredo Então, na parte fundiária o texto é um
Neves. retrocesso, mas a Constituição teve esse lado
assim positivo em relação aos indígenas,
jEO – E você teve uma participação na época,
e ela é uma marca muito importante. E
ao lado de lideranças indígenas, movimentos
essas marcas são até atualizadas pelo povo
indígenas, na Constituinte de 88? Gostaria
brasileiro, por segmentos do povo brasileiro,
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sobretudo do povo rural, para abrir espaço quantificar. Eu acho que até o artigo Uma
dentro da sociedade. Então hoje não há etnologia dos “índios misturados?”, como ele
dúvida que uma das válvulas para você foi uma conferência de professor titular feita
obter terra no Brasil é a condição étnica. é aqui no Museu, e como na época os editores
você ser indígena ou você ser descendente da Mana me procuraram e falaram assim:
de quilombo e ou você ser população “Você quer? quer publicar na Mana?” E eu
tradicional. Então essa luta na medida em logo encaminhei para eles; eles publicaram.
que as alianças, o conjunto de alianças Então aqui a gente tem através do SciELO19
existentes pelas forças progressistas, nunca e pode fazer contagem. Efetivamente é um
tomou de... Nunca foi contra os interesses dos artigos mais acessados. Até a última
rurais e contra o latifúndio. é isso que a vez que eu vi, ele tinha mais que trinta
gente está vendo na continuidade histórica e quatro mil acessos, o que é uma coisa
dos governos do PMDB, PSDB, PT hoje. impressionante considerando o que são os
quer dizer, sempre a grande propriedade no acessos, inclusive da própria revista. quer
Brasil, o grande capital, estão preservado da dizer, é o artigo mais... Dos docentes daqui
mudança democrática. E então dentro desse do Museu é o artigo que foi mais acessado.
quadro, obter terra é uma via, via étnica. é, é coisa que eu coloco delicadamente para
às vezes os recursos não saem através dos não criar vaidades. Então, mas realmente
ministérios adequados, mas saem através ele é um trabalho muito acessado em função
da Fundação Palmares, através de... São dessa bibliografia. Agora, o outro eu acho
lutas por... Em outros contextos poderiam que talvez seja o trabalho... que eu não teria
ser reforma agrária, o que não anula, em como dizer qual foi. Mas eu acho que todas
nenhuma medida, a condição étnica dessas as pessoas que fizeram laudos deste de 91,
pessoas. é questão de qual é a janela que o que foi a época do artigo, utilizaram aquilo
Estado abre pra eles. Não quer dizer que a como espécie de roteiro. Pelo menos as
identidade verdadeira deles. Não se coloca preocupações ou corrigiram. Então eu acho
a identidade verdadeira, deles. Identidades inclusive o pessoal da FUNAI. Foi uma
são sempre coisas que podem ser puxadas de coisa, uma referência muito importante.
acordo com o contexto. Eu acho que um outro trabalho também
foi muito importante, para a coisa, foi [...]
[...] o livro Indigenismo e territorialização20.
Esse trabalho, ensaio sobre a FUNAI, é
jEO – Bom, feito isso, eu queria que você
um trabalho que foi muito lido, inclusive
falasse um pouco de como é que você avalia
dentro da FUNAI. Ele foi concebido dentro
o impacto do seu artigo Uma etnologia
da FUNAI. Nós fomos convidados numa
dos “índios misturados?”17, porque me
época, por um presidente da FUNAI, que
parece ser de todos os seus trabalhos o mais
entrou lá muito rapidamente, a fazer tipo uma
citado, talvez o que mais marcou, impactou
consultoria. Ele, não sei por que. Ele tinha
positivamente a Antropologia Brasileira.
muito pouco tempo. Ele não era uma pessoa
jPO – é, não sei. O ponto de vista do autor da área indigenista; convidou para fazer uma
talvez seja um pouco diferente. Eu acho pesquisa dando subsídios para modificar
que talvez é para a Etnologia. é, tenha sido, a FUNAI. E a gente fez uma proposta,
talvez sim, mas eu acho que não é o trabalho mentos de bordo: expectativas e possibilidades do trabalho
mais citado. Eu acho que talvez o trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SAMPAIO SILVA,
Orlando et al. (Org.). A perícia antropológica em processos
mais citado que eu tenha, é um trabalho judiciais. Florianópolis, Editora da UFSC/ABA/Comissão
sobre laudos, chamado Os Instrumentos de Pró-Índio de São Paulo, pp.115-139. Com a devida auto-
Bordo18. Eu acho que sim, eu não saberia rização do autor e da ABA, a revista Ñanduty trás em seu
primeiro número uma publicação fac simile desse trabalho.
17 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1988. Uma etnolo- 19 Scientific Electronic Library Online (http://www.scie-
gia dos “índios misturados”? Situação colonial, territoriali- lo.br/).
zação e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, 4(1): 47-77. 20 PACHECO DE OLIVEIRA, joão (Org.). 1998. Indi-
Disponível em http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426. genismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes co-
pdf (acesso em 19/03/2012). loniais no Brasil contemporâneo. Rio de janeiro, Contra
18 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1994. Os instru- Capa Livraria.
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então, que eu não queria consultoria. Não Indígena no Brasil?
queria ganhar dinheiro. Eu queria fazer
uma pesquisa sobre a FUNAI. E acesso aos jPO – Olha, eu acho que a Antropologia
arquivos e acesso livre a conversar com as Brasileira, a Etnologia, são muito boas
pessoas. E ele concordou. Então, realmente em termos internacionais. Elas têm uma
a gente... Eu na época chamei para me produção muito respeitada, muita conhecida.
ajudar, porque nós tínhamos pouquíssimo Eu acho que as várias vezes que eu saí... é,
tempo para fazer isso. Ele entrou e ia – embora eu acho que eu não sou... Existem
estava acabando o governo, né? –, ele ia sair. alguns antropólogos que vivem mais tempo
Então, o Alfredo wagner. Trabalhamos os fora do que aqui. Eu acho que as minhas
dois juntos e alguns dos artigos foram feitos ações estão muito direcionadas ao Brasil:
em conjunto e esse material... Reproduzimos ensino, pesquisa no Brasil e ação também
uma pilha de coisas. Trouxemos material dentro do Brasil. Mas é eu acho que há muito
aos montes da FUNAI e isso foi a origem conhecimento em relação à Antropologia
do projeto de estudo “Terras Indígenas”, Brasileira, inclusive em relação a essa
que a gente fez aqui no Museu com o Antropologia mais histórica ligada ao
financiamento da Fundação Ford. Então, contato e eu acho que há um reconhecimento
aquele foi um outro trabalho também que eu interessante em relação a isso. A gente tem
acho que teve um impacto enorme dentro da visto aqui no Museu Nacional aparecerem
área indigenista. Talvez até hoje o pessoal... muitos estudantes de todos os países do
Criou muitas simpatias, muitas antipatias mundo, inclusive da Europa: Itália, França,
também, a idéia de que um crítico sempre Inglaterra... Assume coisas para finlandeses,
muito forte da FUNAI. Mas ao mesmo para americanos, para... Agora mesmo
tempo, curiosamente várias pessoas da quando você chegou tinha um estudante aqui
FUNAI chamaram para que nós fossemos lá peruano conversando. Enfim, eu acho que é
discutir com eles o livro, o relatório. é, essa uma referencia importante. A Antropologia
coisa. Porque eles achavam que era muito Brasileira é boa! Ela teve uma contribuição.
duro na crítica, mas que era exatamente Não é boa agora. Ela foi boa na origem, com
aquilo mesmo. E eles citam até hoje isso, Darcy, com Roberto Cardoso. Ela foi boa.
desde Apoena Meirelles, Isa Rogedo, enfim, Ela teve contribuições significativas. Ela
Pacheco [Isa Maria Pacheco Rogedo] e coisa. continuou no sentido de ter alguns resultados
Uma série de pessoas – André Vilas-Bôas –, inovadores. Eu acho que, eu não consigo
todos chegaram e: “é, isso mesmo! Você fez muito... Não caberia fazer uma avaliação de
é o retrato duro e real do que é a FUNAI!”. uma outra área de trabalho, dessa qual é a,
Pode-se discordar um pouco das soluções, vamos dizer, a contundência, a eficácia de
do ponto de vista. Vocês adotam o ponto de uma outra área de trabalho. Agora, eu acho
vista das organizações indígenas, que é o que pelo menos dentro desses estudos sobre
índio quem vai criar uma outra organização. situação colonial, situações históricas, sobre
A gente pensa dessa maneira, mas o problema Antropologia Histórica. A Antropologia
é esse. Então foi um trabalho realmente Brasileira vem, os antropólogos brasileiros
muito lido e muito estudado. Eu acho que foi vêm produzindo uma série de coisas
uma síntese. Eu me envolvo com assuntos muito interessantes, muito originais. E,
meio polêmicos, então às vezes isso ajuda francamente, é o contrário, quando a gente
a que as coisas sejam lidas [risos]. Eu acho compara os materiais, as elaborações etc.
que no caso da Etnologia também não foi Aqui as coisas estão muito mais avançadas.
diferente, porque eu acho que na época era Realmente uma dissertação de mestrado,
essa Etnologia do Nordeste. As outras áreas um trabalho de doutorado para ele passar e
eram consideradas muito menores, então o ele ser considerado um bom trabalho dentro
artigo tentou redefinir as coisas. dessa área, é preciso suar. Em outros lugares
você vê trabalhos serem aprovados, as
jEO – E como é que você, pela sua pessoas serem consideradas especialistas, e
experiência longa, como é que você avalia os trabalhos seria muito mais preliminares
hoje, digamos, o estado da arte da Etnologia em termos de informação, em termos de
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conclusões. Então, eu acho que os nossos de GT, porque a FUNAI nunca nos pediu
padrões de exigências são altos e a nossa que indicasse ninguém, com exceção do
contribuição é grande. é, acho que é isso. caso dali porque era uma arapuca que eles
Naturalmente há uma limitação aqui dentro armaram pra ABA. Com exceção daquele
do canal pela... Em relação aos nossos caso, a FUNAI jamais pediu. E a resposta
vizinhos, que é o uso da língua portuguesa, que a ABA deu para eles foi ainda usada
enquanto os outros já estão todos unificados de modo absolutamente ilegítimo, como
através do espanhol. Eu acho que é um se ABA tivesse feito uma fofoca, como
problema que está se tornando menor. Eu se... Porque houve circulação nas redes da
sempre me incorporo à língua do lugar. Internet, dizendo que a ABA não indicou os
Então, eu logo me adaptei nas idas à antropólogos que estavam lá. Então, era uma
Argentina e à Bolívia [...] a falar o espanhol. coisa. Realmente a ABA não indicou e fez
Então não é uma coisa que me limite e que uma carta dizendo que não poderia indicar
eu tenha necessidade de fazer isso. Mas eu porque não existia um convênio como existe
vejo nos congressos, até que alguns colegas com a Procuradoria, no sentido de indicação
nossos que vão, fazem as apresentações em regular. Então, nós estranhávamos que a
português. Elas são seguidas com muita FUNAI tivesse pedindo uma indicação,
atenção e são compreendidas! Então, eu porque não existe um instrumento de relação
acho que há uma tendência crescente a e não houve pedidos anteriores. Então é de
valorizar o português, a entender. Porque a se estranhar, não é? Mas nós dissemos que
produção brasileira é importante. Eles têm todos os nomes elencados eram qualificados
que ler o livro porque eles querem teorias. etc., para o período. Nada a indicar. Então,
Depois essa revista Mana, eu tenho ouvido nossa resposta foi legítima. [...] E até... Só
em todos os lugares pedidos mesmo que a que quem leu o negócio... [...] Nós estamos
revista fosse circulada por via eletrônica, dizendo que se for estabelecido um termo
versão espanhola etc. Têm tido muito pedido de articulação, nós podemos colaborar e
nessa direção. E eu acho que é uma coisa indicar pessoas, sim. A ABA não tem medo
para a gente estar considerando até. Porque de indicar antropólogos, porque ela indica
eu sou o editor ainda dela e aí seria uma coisa pessoas boas. Então, não se indica uma
interessante. Mas ainda não temos recurso pessoa, [...], não se indica uma pessoa com
para fazer isso. Então, eu acho que é por aí. problemas. Você vê, cada vez uma indicação,
né? Até se o cara não trabalhou com aquela
jEO – E em relação ao papel da CAI, área, a preocupação que tem, mas ele vai ter
sobretudo nos inúmeros casos de violação capacidade. Ou se é um pesquisador novo. Se
de direitos dos povos indígenas? ele resiste a pressões etc. Então, a ABA tem
um maior critério ao indicar pessoas e teria,
jPO – Pois é, a CAI. A ABA é uma associação
também, a indicar coordenadores de grupo
cientifica. Não é uma ONG, não é um
de trabalho. Acontece que nunca houve esse
organismo do governo, não é um sindicato.
pedido. Então, na conversa com o Márcio
Então isso a gente tem que dizer a cada
[Meira], o Márcio achou ótimo: “Pô, mas
momento. No momento, nessa reunião com
seria maravilhoso se a FUNAI fizesse. Se a
a FUNAI, que eles resolveram desancar os
FUNAI tivesse essa cooperação da ABA”.
antropólogos, e falar mal dos antropólogos
Talvez isso seja só conversa formal. Na
que receberam e entregaram o material,
realidade, eles queriam continuar a escolher
a nossa decisão foi o seguinte: “Olha, a
de outra maneira, através de outros processos.
ABA não é um sindicato. Nós estamos aqui
Agora [...], lá dentro pegaram aquilo só pra
representando os nossos associados. Nós
fofocar e dizer que a ABA, então, não tava...
estamos aqui discutindo política indigenista
Nem nas redes sociais; rede que correu era
e a ação que a FUNAI está fazendo junto
isso. Era coisa [...] dizendo: “Não, a gente
com a um dos grupos, Guarani. é isso que
não entende porque a ABA não indicou as
nós estamos fazendo! Então vocês estão
pessoas. E depois a ABA avalizou o relatório,
equivocados em relação à isso!” Quer
dizendo que o relatório estava consistente.
dizer, nós não indicamos os coordenadores
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Defendeu o relatório.” Entendeu? Para de outras áreas, com umas posições absurdas
mostrar a contradição. Não tinha contradição em relação à ABA, entendeu? Assim, tipo,
nenhuma, não é? Não houve contradição. como se nós tivéssemos uma infraestrutura.
Acontece que a ABA não... É, bom, enfim, Saiu uma manifestação, sei lá. D..., não sei o
voltando: a ABA é uma associação científica. que. Escreve artigos idiotas.
A finalidade dela é – vamos dizer – ter efeitos
importantes sobre a difusão da Antropologia jEO – Lá do Rio Grande do Sul?
dentro da sociedade, a melhora do ensino
jPO – Não é? Aí, a gente tem que
da Antropologia, a melhora da pesquisa
responder a cada um artigo daquele. A uma
e contribuir também para a sociedade
imbecilidade que foi produzida por aquele
democrática, igualitária etc. Então, eu acho
sujeito, ou por outros que têm. “A ABA
que entre essas atribuições que o antropólogo
tem que responder!” Então, eu vou fazer o
enxerga como parte do seu métier, está
que? Ao invés de produzir o meu trabalho
também o bem-estar, o reconhecimento dos
de antropólogo, vou estar respondendo a
direitos dos índios. E isso já vem de 30 anos
um cretino, um vendido, uma coisa sem
que a ABA tem feito isso. Aliás, tem feito
maior... Não é a função da ABA. Então, a
desde sua fundação. Nas manifestações com
ABA é importante. Os presidentes da ABA
Darcy, com Roberto, com Galvão etc. Eles
sempre tiveram essa consciência. Nós não
já estavam preocupados com a preservação
estamos para aquele dia-a-dia político, nem
dos índios, do bem-estar dos índios, e não
para uma questão de rebater ou discutir, ou
só com a pesquisa no sentido isolado. Então,
fazer denúncias, coisas assim. A gente faz
ela tem essa linha de continuidade. Agora,
algumas vezes, e encaminha as denúncias
é claro que ela não pode ter nem eficácia,
lá para o Ministério, à Secretaria de Direitos
nem time, nem a capacidade, a continuidade
Humanos. Até – e no caso de Belo Monte
de ações que tem uma ONG. Nós não temos
– a instâncias internacionais. No caso
quadro pra isso. quer dizer, eu recebo
Guarani também vai nessa direção. Agora,
uma informação dessa natureza – eu como
a gente não tem instrumentos de ação, não
coordenador, com as centenas de atividades
temos advogados, por exemplo. No caso da
que eu tenho como professor titular do
Veja21, fui eu. Recomendei que houvesse
Museu e em outros lugares etc. –, eu tenho
uma ação contra a Veja, no sentido de
que preparar notas. Eu tenho que sair para
qualificar. Pelo meu artigo, ele desmonta
as redes para fazer uma coisa que é absurda.
tudo aquilo. A nota que foi feita. é uma
Não tem nenhuma estrutura. Ela não é uma
quadrilha realmente envolvida, envolvendo
ONG. Um diretor de uma ONG é um pós.
comunicadores, advogados etc. São caras
Realmente, ele tem gente lá: advogados,
profissionais que agem e recebem para fazer
antropólogos, sociólogos que escrevem etc.
essas coisas contra os índios, não é? Então,
Não! Eu tenho que pegar o telefone, e se eu
a gente tem que acionar judicialmente essas
preciso indicar alguém, falar com o jorge
pessoas. Mas a ABA não tem estrutura pra
[Eremites de Oliveira], vendo que o jorge
tenha ido assistir o jogo do Vasco não sei 21 Trata-se da matéria intitulada “A farra da antropo-
em que cidade distante e ninguém consiga logia oportunista”, publicada em Veja, ano 43, nº. 18, de
05/05/2010, disponível em http://veja.abril.com.br/050510/
localizar ele, né? [risos]. Mas eu tenho que farra-antropologia-oportunista-p-154.shtml (acesso em
ligar para o jorge, eu tenho que ligar para a 20/03/2012). Em resposta ao conteúdo da reportagem, a
Alexandra [Barbosa da Silva], tenho que ligar CAI/ABA produziu nota exigindo dos editores da revista
para o Levi [Marques Pereira] etc. Para saber que publicassem matéria em desagravo pelo desrespeito
generalizado aos profissionais e acadêmicos da área. A res-
alguma coisa, entendeu? Porque, não tem. posta foi intitulada “Nota da Diretoria da ABA sobre maté-
quer dizer, usar a rede dos colegas. Agora, ria publicada pela revista Veja”, disponível em http://www.
tudo isso é uma coisa que têm horas que a abant.org.br/conteudo/005COMISSOESGTS/quilombos/
gente consegue, têm outras que não consegue NotaDiretoriaABAMatPublicadaRevVeja.pdf (acesso em
no mesmo ritmo. Então, a eficácia da ABA, 20/03/2012). A nota foi divulgada em vários meios de co-
municação, como no Jornal da Ciência, órgão da Socieda-
ela tem que ser um pouco otimizada. E às de Brasileira para o Progresso da Ciência, disponível em
vezes a gente vê uns colegas, principalmente http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=70689
(acesso em 20/03/2012).
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isso. Pagar um advogado é muito caro, não A gente pagou o deslocamento do Tonico
é? Em outros momentos até entramos uma [Benites] para a área, com os recursos da
vez, não sei como, em ação, combinado ABA, com os recursos dos associados. é
com a OAB, porque você pega um nome uma passagem, não é uma coisa. Então,
da OAB que vai indicar. Mas não podemos eu acho que é uma sensibilidade a tentar
entrar em um escritório, dentro do cara, e mobilizar. No caso de Belo Monte, sentimos
contratar. Com que dinheiro? Com dinheiro uma reação quase como uma parede na nossa
dos associados? Não tem verba para isso. frente. Uma dificuldade muito grande de...
Então é uma coisa incrível. A situação é Até alguns interlocutores para ouvir podiam
de fragilidade muito grande. A entidade aparecer, mas responder não, porque parece
consegue fazer grandes “estragos” e, na que a posição do governo era totalmente
realidade, a estrutura é deste tamaninho. é fechada. Eu acho que quanto ao caso
uma pessoa que tem uma responsabilidade Guarani, foi o resultado dessa ida lá, que eu
e que atua ligado ao presidente. E sei lá, um estou para fazer uma nota aí sobre isso para
secretário que tem como função fazer, sei ir para o site da ABA, mas eu vou ter que
lá, coisa com dois mil, três mil associados. acondicionar o meu tempo em defesas de
é uma situação muito precária. Não é uma tese, de aula e de não sei o que. Porque eu
estrutura. E a ideia também não é também não posso fazer agora, que estou te dizendo.
de criar uma profissionalização como ONG, Estamos conversando. Foi o resultado bem
entendeu? A idéia é manter essa coisa. é diferente e mais interessante. Eu acho que
uma coordenação de antropólogos, uma não é a mesma postura do governo em relação
articulação de antropólogos. quer dizer, o a Belo Monte, em relação ao caso Guarani.
quão o antropólogo vai dizer, o que eu posso Eu acho que há mais sensibilidade. Há uma
dizer como presidente da ABA é o que eu vou pressão enorme do outro lado etc. Mas há
pegar com você, com o jorge, com o Levi, dentro desse governo gente que tem uma
com o Fabio [Mura], com não sei o que. é história de um envolvimento com causas
isso, entendeu? Nós não podemos fazer populares, com movimentos populares, e que
nada. As nossas observações vêm dali. Se for se mobilizam mais facilmente em relação a
o caso de Ticuna, eu posso falar. Agora, em isso do que eu acho que em relação ao caso
outras não. quer dizer, em um caso eu posso de Belo Monte.
falar, em outros eu dependo que os colegas
me mandem. E às vezes as reações são muito jEO. E como é que você avalia a situação
lentas também. Às vezes você sente isso, das terras indígenas no Brasil? Tivemos a
porque naturalmente quem está agindo até decisão do STF para a Raposa Serra do Sol
a ordem de eficácia é um pouco diferente. e agora parece que Mato Grosso do Sul é o
Você vai investir, sei lá, numa ação de... estado em que há o maior foco de tensões
Com outros meios ou numa ação só da ABA. por conta dessa questão, especialmente para
Então eu acho que têm essas limitações. A os Kaiowá e Guarani?
gente faz um pouco das notas de protestos,
jPO – é, eu acho que hoje a situação variou
as notas vão para as autoridades, vão para
muito no correr dos anos, das décadas. Eu acho
o site etc. é um pouco inócuo? é, mas é um
que partir de 92 e até o final do ano 2000, as
registro que a gente pode fazer, entendeu?
grandes áreas indígenas foram demarcadas.
jEO – Esse foi o caso de Belo Monte? De alguma forma foram protegidas. Então,
eu acho que em termos de números,
jPO – é o caso de Belo Monte. Eu acho que vamos dizer, a ação indigenista chegou
esta gestão atual da ABA, com a professora_ muito próxima do universo das demandas
Bela Bianco [2010-2012], ela tem uma indígenas. Agora, existem nessa diferença
visão bem mais proativa que outras gestões que ainda existe, existem coisas muitíssimas
anteriores. Nos dois casos mais graves importantes, como o caso Guarani, como
existentes, caso do Belo Monte e esse caso muitos outros casos ainda. Mato Grosso até
Guarani, que são os dois que eu reputo. tem caso Xavante lá: Maraiwatsede, uma
Houve uma mobilização direta da diretoria. área terrível, com conflito enorme. Existem
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as áreas do Nordeste, as áreas do Sul do muitos empreendimentos: portos, turismo,
Brasil, que ainda estão sem resolução. Não condomínios, principalmente essas áreas
são áreas talvez com... quer dizer, isso de litoral. E quase todo lugar no litoral do
não vai mexer muito com a estatística em Nordeste tem índio ou quilombola. E essas
termos do número de terras indígenas. Você populações estão sendo expulsas por grandes
não vai ter nenhuma área como yanomami empreendimentos, por governos que não
ou Parque do Javari, com oito milhões necessariamente são de direita. Aliás, têm
de hectares, para mexer com essa conta. poucos governos de direita, manifesto aqui.
Mas em termos de atendimento real, de O DEM só tem no Rio Grande do Norte e
instrumentalização de uma assistência e de Santa Catarina. Os outros são PT, PSB e
uma vida correta para essas populações, outras soluções aí. Mas a política prossegue
essas ações são fundamentais. E passam de abrir para grandes empreendimentos,
pela terra em todos esses casos, inclusive no e não têm muita sensibilidade para os
Nordeste com coisas de uma dramaticidade produtores de recursos, os ocupantes diretos.
impressionante. Então, essas ações precisam
ser executadas e estão cada dia mais difícil. jEO. Isso passa também pelas demandas que
Eu acho que está tramitando no Congresso existam aí para as comunidades indígenas
Nacional uma PEC 215, que é para e mesmo quilombolas, mas vivem em
transferir as responsabilidades do processo contextos urbanos ou mais próximos?
demarcatório da União, da FUNAI, para o
jPO – é, acho que sim. Mas a questão
Congresso Nacional22. Então, significaria
urbana é muito complexa. Eu acho que ela
que nenhuma área indígena se demarca
ainda é uma questão a ser abordada. Eu acho
sem a aprovação do Congresso, como se
que, digamos, o indigenismo brasileiro...
fosse um projeto de lei. quer dizer, então
Nós ainda estamos em um universo de
é o que... Não passa a ser um problema de
tentar romper com a tutela. E esse é o nosso
viabilização de direitos dos índios. Passa a
universo. Eu acho que chegar a pensar o
ser uma negociação em relação aos direitos
índio até em contexto urbano, talvez já seja
dos índios. Vai depender das bancadas,
um outro contexto, não é? O momento em
dos órgãos etc. Do que os índios conseguir
que você chega e você quer, simplesmente,
fazer junto à mídia a seu favor, enfim. Vai
dizer que você... Sei lá? é descendente de
ser enquanto o processo atual envolve
Bororo! Você quer marcar isso. é importante
isso também, mas tem um lado técnico
para você. Você quer botar ao lado do seu
fundamental, que é o trabalho antropológico,
nome. Você quer botar mato-grossense
a identificação das áreas reconhecidas, enfim.
etc., casado, não sei o que. E Bororo, ou
Eu acho que seria um avanço, assim, jogado
descendente, enfim. Este tipo de liberdade
no lixo. E o risco enorme em relação a isso,
precisa ser criada em algum momento.
eu acho. O motivador pelo que eu ouvi em
Agora, por esse momento, que é da historia
Brasília é o Mato Grosso do Sul, mais do que
brasileira, eu ainda imagino que tudo passa
o Nordeste, porque os interesses lá são mais
pela questão da terra. Ainda o centro é a
visceralmente contra. Mas não é só, também,
questão da terra. E o centro é romper com
isso. Não pensem que é só o Mato Grosso do
a condição de marginalização que o Estado
Sul. As áreas do Nordeste estão envolvendo
criou. Essa ideia de que... é como que de
22 A proposta da PEC – Proposta de Emenda à Consti-
tuição nº. 215/2000 é a seguinte: “Acrescenta o inciso XVIII
certa maneira – você vê, né? –, o Estado
ao art. 49; modifica o § 4º e acrescenta o § 8º ambos no sempre excluiu o povo. Sempre o considerou
art. 231, da Constituição Federal”. Está assim explicada: nessa margem. quer dizer, o Estado
“Inclui dentre as competências exclusivas do Congresso representa a civilização branca, católica. E
Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicional- depois também não é só católica. Começa a
mente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarca-
ções já homologadas; estabelecendo que os critérios e pro-
ser evangélica, presbiteriana, filhos budistas
cedimentos de demarcação serão regulamentados por lei”. etc. Mas é uma civilização branca, e que
Maiores informações sobre sua tramitação no Congresso não tem nada haver com a “escória”, com o
Federal estão disponíveis em http://www.camara.gov.br/ povo, com aquela coisa. é como se algumas
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562
(acesso em 20/03/2012).
lutas sociais nos últimos trinta anos – a
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150
Constituição, alguns avanços importantes –, mais adiante esse processo, ele vai acabar
criassem um pouco uma área de respiração criando uma coisa de grandíssima dimensão.
para esses “condenados da terra”, essa E eu acho que, quer dizer, são aí os desafios
população. E os índios entram dentro disso, para o futuro, para coisas, para aqueles
os quilombos, as populações tradicionais, políticos futuros. Mas eu acho que agora,
para ver como que é que eles conseguem para a questão indígena é essa PEC aí que
escapar desse mecanismo repressor de está sendo colocada como o terror, a ameaça.
dominação, de marginalização etc. Eu acho Inclusive porque nada garante, por exemplo,
que em certa medida têm escapado. Então, que o entendimento do Supremo, do não sei
é um pouco o rumo da sociedade em que o que, não venha fazer coisas retrospectivas.
a gente vive. O ideal, o desafio, também, Avaliar que precisa se repensar processos.
não vai ter limites possíveis para resolver O próprio processo Guarani, eu cheguei a
os problemas da população brasileira, da perguntar explicitamente para o presidente
reforma agrária, da marginalização, através da FUNAI: “Se essa PEC for aprovada, vai
de mecanismos étnicos ou mecanismos de ter que começar o processo de novo?” Acho
outra natureza. Em algum momento precisa que vai porque se a FUNAI não é o lugar para
ter políticas voltadas para aquelas pessoas, fazer isso, se os antropólogos não são os que
independente da cor, da etnia etc. Precisa têm que fazer a definição de terra indígena...
ter. Então eu acho que é o momento que Se é o Congresso? Até o Congresso criar uma
precisa ser vencido, mas enquanto esse competência, uma assessoria antropológica,
momento não aparece... Enquanto não botando sabe lá quem lá dentro. Até ele
aparece alguém que bote uma plataforma ter capacidade operacional para fazer
eleitoral – “Vou fazer reforma agrária!” – e demarcação, muito tempo vai passar. E aí,
se eleja. As pessoas que assumem, assumem será que eles vão refazer tudo isso? Então, a
com outros compromissos, com ruralistas, situação é de uma ameaça muito grande. As
com outros interesses. Então, a única coisa expectativas de algumas pessoas na área do
são as migalhas, as coisas paralelas dadas Congresso são as piores possíveis.
para essas populações que se mobilizam. Eu
acho que é o retrato que a gente tem desse jEO – Você poderia falar para nós sobre os
sistema, assim. quer dizer, é um sistema seus projetos, trabalhos mais recentes, como
pior do que existia? Não. Eu acho que não é o caso do seu livro A presença indígena no
porque tem algumas brechas. Agora, acho Nordeste?23
que ele não tem viabilidade. Ninguém vai
jPO – Olha, eu estou envolvido desde
segurar essa “bomba” aos limites. As áreas
alguns anos nesse trabalho, vamos dizer,
indígenas – tá legal! – já estão relativamente
de publicização da questão indígena no
contempladas. Mato Grosso do Sul
Nordeste. quer dizer, de derrubar alguns
provavelmente vai mexer um pouco com a
preconceitos, derrubar uma visão de que o
contabilidade das terras indígenas, talvez.
índio na medida em que absolva qualquer
São áreas mais extensas. No Nordeste não
padrão da língua portuguesa, da cultura
vai mexer muito. Se resolver não vai. Outras
branca, ele deixa de ser índio. Então, esse
áreas também não. Mas de qualquer maneira
tipo de situação, que é muito forte dentro do
é uma solução. Agora, os quilombos, por
Nordeste – e que é forte dentro da agência
exemplo, são uma coisa enorme dentro do
indigenista também –, explica um pouco
Brasil. Em qualquer lugar – você vê – onde
da morosidade em relação às demandas do
se fala de quinhentos, se fala de cinco mil,
Nordeste dentro das áreas, dentro do trafegar
se fala de dois mil, não é? quer dizer, é
na FUNAI. Eu acho que isso tem sido objeto
uma coisa muito mais difícil. Em termos
de preocupação minha, dos estudantes daqui
de Amazônia, as populações tradicionais.
do Museu, de teses feitas. O primeiro livro,
Dentro do rótulo população tradicional,
A viagem de volta24, reunia uns dez artigos,
eventualmente pode ter que colocar quase
23 PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org.). 2011. A pre-
tudo dentro dessas populações. Então como sença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro, Conta Capa.
é que vai ser? Eu acho que se for levado 24 PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org.). 1999. A via-
gem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural
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a maioria deles de teses ou dissertações de que é esse o desafio que se tem: sair de uma
mestrado daqui do Museu. Eu acho que visão muito polarizada de Brasil, com ideias
depois disso se ampliou bastante. Acho que de índios, quer dizer, uma ideia pobre como
hoje não é mais assim. Têm uns poucos esse mapa aí da FUNAI: os índios estão ali,
estudantes aqui trabalhando com o Nordeste. naquelas ilhas. Eu acho que o mapa do Brasil
A maior parte dos que estão estudando o não é isso. O mapa do Brasil teria que ter os
Nordeste, já estão nas unidades regionais, índios que aparecem em todos os municípios,
já estão em Campina Grande, Natal, em todos os lugares que vão espocar aí,
Pernambuco, Bahia, enfim, já trabalham que vão reclamar da terra, ou vão reclamar
lá, dentro dessas áreas. E eu acho que, de assistência, ou vão reclamar a identidade.
certa forma, a nossa mobilização foi um Enfim, o Brasil não foi objeto. Isso aí é uma
pouco para dar, através do livro, subsídios visão militar da conquista, quer dizer, como
para, vamos dizer, novos enfoques, novas se você fosse conquistando com o exército
formas de pensar o indígena e inserindo alguma coisa. A ocupação do Brasil não
esse indígena na história. Então, por isso foi feita por um exército. Ela foi feita por
que este livro tão complicado, tão difícil de bandeirantes, por mamelucos, por gente que
fazer, com mais de vinte autores, procura infiltrou nas famílias, capturou os índios,
dar conta aí, da presença indígena dentro do envolveu as lideranças. Então, a história é
Nordeste. Eu acho que esse, de certa forma completamente... Não é um exército que vai
esse desafio, poderia ser aplicado a outras empurrando para a faixa de floresta, onde
regiões do Brasil, porque acho que a história eles permanecem. é o caso do Xingu. Um
do Brasil tem sido muito mal contada, caso natural, pelos formadores do rio Xingu
principalmente a partir do preconceito que etc. Lá não é o caso das outras regiões.
os pesquisadores têm. E naturalmente têm Então, você tem... Os índios não estão
porque o pesquisador não é alguém imune aos apenas nas terras indígenas, os índios estão
preconceitos de classe, de idade, de região em muitos outros lugares. Em que forma de
etc., mas enfim. E a historia do Brasil precisa presença, em que forma de atendimento você
ser contada na perspectiva mais próxima dos vai dar a essas populações, que têm nomes
índios. quer dizer, os índios precisam ser diferentes, têm características diferentes
considerados como atores sociais, locais, de acordo com a região, têm propostas de
que ajudaram a construir o Brasil, ocuparam cidadania diferente. Enfim, o Brasil não
o interior. Eles foram os que construíram os pode ser pensado em modelo único, não. Eu
fortes, as igrejas, as cidades, os que andaram acho que o antropólogo historiador tem uma
nas trilhas abrindo o país, os que fizeram tarefa enorme a cumprir, das muitas caras do
os campos de gado, os que ganharam a Brasil, e recuperar um pouco dessas muitas
Guerra do Paraguai contra outros índios. E caras do Brasil.
os índios estão em todo o lugar, mas eles
estão sempre recusados dentro da história. JEO – Eu queria que você finalizasse a nossa
E se está sempre se trabalhando com coisas entrevista. O que você deixaria de mensagem
genéricas, identidades genéricas que seriam para os colegas antropólogos, principalmente
supostamente portugueses ou africanos etc. os mais novos, e historiadores também, que
Enquanto, de fato, os índios são dissolventes acompanham a sua produção intelectual e se
de tudo isso, dentro da sociedade nacional. posicionam em defesa dos direitos de povos
Eles são aquela parte das famílias que se e comunidades tradicionais, tanto no Brasil
desaparecem. E você só vai ter origem, ter como em outros países da América Latina?
conhecimento, quando você vai empreender
jPO – Olha, eu acho que há um terreno
uma busca específica. Elem deixam de existir.
muito grande a ser conquistado do ponto de
Então, é uma forma muito mais suave e, ao
vista de conhecimento. Eu acho que se vive
mesmo tempo, muito mais perigosa para, do
um momento muito importante dentro da
ponto de vista da formação do Brasil, para se
Antropologia, dentro da História, dentro de
recuperar. Mais difícil de recuperar. Eu acho
várias outras áreas do conhecimento. Acho
no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.
que os anos 80 não foram revolucionários
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somente na Antropologia. Foram em a nova geração assuma posições. E isso vai
várias outras disciplinas. Eu acho que hoje ser cobrado por cada vez mais, mais cuidado.
se pensa na Arqueologia, inclusive, em Eu acho que não há caminho de volta. Eu
que se descolonizaram muitas práticas e acho que tem que ir ao caminho, seguindo.
se procura pensar em outras formas de E é claro que até os desafios são muito
produção científica. Outros compromissos grandes e muito interessantes para quem
do pesquisador com os objetos pesquisados, está dentro, iniciando a vida profissional,
outras atenções em relação ao uso dos nossos ou quem está buscando objetos de pesquisa,
produtos, que não nossos no sentido de: “Eu objetos de trabalho, objetos para dar direção
fiz isso. Ele é meu, eu estudei. Sou dono à vida. Eu acho que há tanta coisa aí dentro
disso, posso vender do jeito que quiser”. que a questão é se sintonizar um pouco com
Não, não entendo assim. Nossos produtos esses problemas em vários lugares. E são
não são assim. Nós não podemos vender. muitíssimos em cada área indígena, em cada
Eles são produtos que foram produzidos área do Brasil, que pode ser refletido e pode
em conjunto com os índios. Eles são donos ser objeto de uma ação intelectual bastante
daquilo. Há uma co-propriedade em relação importante e inovadora. é isso aí!
àquilo. Não pode ser utilizada contra eles.
Então, eu acho que há um continente novo jEO – joão, a gente agradece a entrevista.
em relação ao fazer da ciência. Vai ser uma Vamos fazer a transcrição dela.
outra ciência, uma outra Antropologia,
uma outra História, uma outra Geografia.
E vão produzir elementos novos, talvez até
vão operar mais sintonizadas. Vão operar
mais articuladas enquanto ciências e não
tão díspares, e tão competitivas e isoladas.
Eu acho que esse é um desafio importante.
E eu acho – como eu acredito muito nas
exortações, mas eu acho que também é
bom no sentido de realidade –, eu termino
da mesma forma que como eu disse ontem.
quer dizer, para os jovens eles terem ideia
de que talvez alguns ganhos eles podem
fazer adotando essas posturas tradicionais,
coloniais etc. Talvez eles podem conseguir
algum reconhecimento em certos lugares, em
certos nichos etc., mas o movimento caminha
nessa direção. E se eles não seguirem por
essa linha nova que está sendo aberta. Se
eles não quiserem fazer uma ciência nova,
uma ciência dialógica, uma ciência de outra
natureza, pensada sobre moldes diferentes,
eu acho que eles vão ser atropelados pelos
índios, pelos intelectuais indígenas, pelo
movimento da sociedade e pelas demandas
sociais. Eu acho que atrás de nós existem,
atrás de cada um de nós, e da nossa lealdade
com os indígenas, existem pessoas que nos
ensinaram coisas. Pessoas mesmo, famílias.
São essas pessoas a que nós devemos, na
qualidade de gênero humano, iguais a eles,
lealdade. Eu acho que essas pessoas, seus
filhos, seus netos, estão empurrando aí, a que

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DOCUMENTO
Revista PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD

DOCUMENTO
Relatório antropológico da Inspeção judicial em áreas das fazendas Ouro Preto, Cristalina e Ipanema, e na
comunidade indígena (aldeia) Taunay-Ipegue, em Aquidauana, Mato Grosso do Sul, Brasil*
NOÊMIA DOS SANTOS PEREIRA MOURA**
resumo resumen
O presente trabalho corresponde a um relatório El presente trabajo es un informe antropológico
antropológico de inspeção judicial, produzido de inspección judicial, producido en 2010
em 2010 para a justiça Federal na cidade de a la justicia Federal en la ciudad de Campo
Campo Grande. O estudo incide sobre a área Grande. El estudio queda centrado en un
reivindicada por uma comunidade terena para área reclamada por una comunidad indígena
a ampliação dos limites da Terra Indígena Terena para ampliación de los límites de la
Taunay-Ipegue, localizada no município de Tierra Indígena Taunay-Ipegue, ubicada en
Aquidauana, estado de Mato Grosso do Sul, Aquidauana, estado de Mato Grosso do Sul,
Brasil. Brasil.
Palavras-chave: Laudos antropológicos,
Índios Terena, Terra Indígena Taunay-Ipegue. Palabras clave: Informes antropológicos
judiciales, Indios Terena, Tierra Indígena
aBstraCt Taunay-Ipegue.

The present article represents an No presente relatório, elaborado na condição


anthropological report de judicial inspection, de assistente técnica da FUNAI (Fundação
produced in 2010 to the Federal Court in Nacional do Índio), apresento considerações
Campo Grande city. The study focuses gerais sobre a Inspeção judicial coordenada
on the area claimed by Terena indigenous pela juíza federal substituta Raquel
community to expand the boundaries of Domingues do Amaral Corniglion, no qual
Taunay-Ipegue Indian Reservation, located in respondo aos quesitos do juízo e da FUNAI na
Aquidauana County, State of Mato Grosso do Ação Ordinária nº. 3009-41.2010.403.6000.
Sul, Brazil. O texto consta desenvolvido em três partes:
1) Considerações gerais sobre a Inspeção
Keywords: Reports anthropological to judicial; 2) quesitos da juíza federal substituta
Federal Court, Terena Indians, Taunay-Ipegue Raquel Domingues do Amaral Corniglion, de
Indian Reservation. 13/08/2010; e 3) quesitos da FUNAI.

* O presente trabalho foi elaborado em 2010, sob forma de parecer para Justiça Federal em Campo Grande, Mato
Grosso do Sul, na condição de assistente técnica da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), referente à Ação
Ordinária nº. 3009-41.2010.403.6000, na qual Nilton Lippi e outros são Autores e a FUNAI ré. Os trabalhos de
campo foram realizados no período de 20 e 23/09/2010 no município de Aquidauana, estado de Mato Grosso do
Sul.
** Professora Adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados, onde atua nos cursos de graduação em
Ciências Sociais e Licenciatura Indígena, e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt). Email:
noemiamoura@ufgd.edu.br.
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Primeira Parte e muito mais tempo para ser desenvolvido.
Considerações gerais sobre a inspeção “Índios, assim, tão pouco indígenas”, como
Judicial diria Darcy Ribeiro, precisam de uma
atenção maior dos etnólogos, historiadores
[...] quem viaja pela Estrada de
Ferro Noroeste do Brasil que corta a e arqueólogos, para desnudarem as
região, pode vê-los de enxada à mão singularidades de sua cultura e demonstrar
trabalhando nos roçados, montados
a cavalo cuidando do gado de
porque os Terena reivindicam a ampliação
algum fazendeiro, nas turmas de de seu território para continuar reproduzindo
conservação da própria estrada ou, seu modo de ser e de existir.
mais raramente, vendendo abanicos
de palha de carandá nas estações. Neste sentido, a Inspeção judicial apresenta-
O difícil é identificá-los como
se como um instrumento jurídico importante,
índios, uma vez que se vestem, se
penteiam, trabalham e vivem como porém a tensão e a ansiedade produzidas
os sertanejos pobres da região. nessa situação, principalmente para os
[...] Para saber que são indígenas
é preciso falar-lhes ou ouvir a
indígenas, é muito intensa. Além do mais,
gente da região, sempre pronta a os caciques que acompanharam os trabalhos
identificá-los e a apontar múltiplas são relativamente jovens e, por isso, a todo
singularidades negativas que, a
seus olhos, os fazem apartados [...]. o momento nos remetiam aos mais velhos
(Darcy Ribeiro, julho de 1959 in de suas aldeias, como aqueles que guardam
Cardoso de Oliveira, 1976) o conhecimento mais profundo sobre a
A situação de Inspeção judicial possibilitou cultura, a composição e a organização de seu
um breve olhar sobre as Fazendas Ouro território tradicional e de sua territorialidade.
Preto e Cristalina, bem como a respeito da A territorialidade é concebida aqui como
Terra Indígena Taunay/Ipegue, localizada a forma de configuração da espacialidade
no município sul-mato-grossense de destinada à reserva e ao seu entorno, e o
Aquidauana. Na ocasião, a juíza substituta relacionamento dos Terena com o território,
Raquel Domingues do Amaral Corniglion o qual para eles não foram recortados por
e os seus acompanhantes puderam falar fronteiras tal como os concebe os não
aos Terena, ver como se vestem, se indígenas. Feita essa breve consideração
penteiam, trabalham e vivem, tal como diz da situação produzida por esse instrumento
ser necessário o autor da epígrafe acima judicial, traçarei uma visão panorâmica do
destacada, escrita na década de 1950. que foi feito nos dois dias de campo e em
Contudo, apesar de tamanho esforço para seguida passarei a responder cada um dos
falar e ouvir ambas as partes – autores e réus quesitos elaborados pela referida juíza
–, esta situação é rasa em comparação com federal e pela Procuradoria da FUNAI.
um estudo mais aprofundado de estudo para No primeiro dia, 20/09/2010, segunda-feira,
a produção de relatório de identificação de todo o grupo se reuniu no Posto Pioneiro,
uma terra indígena, onde haveria um grupo ponto mais próximo do local de Inspeção,
técnico composto por diferentes estudiosos próximo à cidade de Aquidauana. Fomos
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orientados que primeiro seriam visitadas as Lagoinha – Alsery Marques Gabriel; Aldeia
fazendas e, posteriormente, a terra indígena. água Branca – Isaias Francisco; Aldeia
Os dois primeiros dias seriam para as Morrinho – Agostinho Francisco; Aldeia
fazendas Ouro Preto, Cristalina e Ipanema, Bananal – Carlos Hortêncio; Aldeia Ipegue
e o terceiro para Terra Indígena Taunay/ – Alvisuri Gonçalves; Aldeia Colônia Nova
Ipegue. Fomos para a sede da Fazenda – Oto.
Ouro Preto. A juíza federal substituta Em seguida, iniciamos a verificação da
Raquel Domingues do Amaral Corniglion, infraestrutura da fazenda Ouro Preto (sede:
responsável pela Inspeção judicial, reuniu
casas, mangueiros, cercas, galpões, pasto
a todos e deu liberdade para falar, gravar,
formado). Esses locais foram fotografados e
filmar e fotografar o que fosse do interesse
filmados, enquanto os diálogos se davam entre
de cada um. Solicitou que, ao final dos os presentes, sob o acompanhamento da juíza
trabalhos, todo o material produzido fosse federal substituta. Nessa primeira fazenda
entregue a sua assistente para ser anexado ao
percebe-se que o mangueiro é bem recente
Processo. Acompanhando a juíza estavam
e foi construído pelos atuais proprietários
dois assistentes técnicos, Prof. Dr. Andrey e Autores da Ação. A juíza foi informada
Cordeiro Ferreira (antropólogo) e Prof. pelo cacique jurandir Lemes, 40, da Aldeia
Hidelbrando Campestrini (historiador).
Imbirussú, que o mesmo acompanhara seu
Da parte dos Autores, estiveram presentes pai, quando tinha aproximadamente uns
o advogado Guilhermo Ramão Salazar, o doze anos (mais ou menos 28 anos atrás),
Prof. MSc. Hilário Rosa, que se apresenta quando foi construída aquela cerca para o
como mestre em História e Antropologia, atual proprietário josé Lippi. A informação
josé Lippi, Nilton Lippi, bem como um foi confirmada pelo fazendeiro. Outra
casal da família Lippi representando os lembrança do cacique Terena foi que antes
atuais titulares das terras. Da parte da Ré de construir o mangueiro novo era usado
estavam os procuradores federais Adriana um antigo mangueiro (apontou o local onde
Rocha e Tiago josé Figueiredo Silva, a se situava a construção), feito pelos Terena
assistente técnica Profa. Dra. Noêmia na época do gaúcho Antônio Bueno, casado
dos Santos Pereira Moura, o engenheiro com a Terena Paulina jatobá, cuja família
Ricardo Hadadd, o Coordenador Técnico morava e ainda mora na T.I. Taunay/Ipegue.
local Reinaldo Martinez e o funcionário da O senhor José Lippi também confirmou esta
FUNAI jornalista Geraldo Duarte Ferreira. outra informação.
Pelo Ministério Público Federal estavam Essas informações demonstram que,
presentes o procurador da república Emerson possivelmente, quando a fazenda Ouro Preto
Kalif Siqueira e o assistente técnico Dr.
pertencia ao proprietário anterior aos Lippi,
jankley (antropólogo). Representando as
as divisas existentes não eram demarcadas
comunidades estavam os sete caciques:
por obstáculos físicos, ou seja, as cercas. As
Aldeia Imbirussú – jurandir Lemes; Aldeia
incursões dos Terena entre a reserva indígena
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e as fazendas eram constantes. Segundo o reserva de mata na fazenda Cristalina na
cacique jurandir, os Terena se banhavam em parte que limita com a Aldeia Imbirussú e
uma vazante que passava no meio do pasto a fazenda Esperança 2. Acompanhando as
da fazenda Ouro Preto e interligava as aldeias cercas que limitam as fazendas Ouro Preto e
Imbirussú e água Branca. No momento da Cristalina, seguimos até a divisa das fazendas
Inspeção judicial, o fazendeiro josé Lippi Cristalina, Esperança 2 e a Aldeia Lagoinha,
informou que fora mantida a mata no entorno onde está localizado mais um marco de
da vazante, mas a mesma desaparece na Rondon, na margem da vazante Tumiku,
época da seca. O cacique Alvisuri, da aldeia segundo informou o Cacique Alsery da
Ipegue, informou que a vazante recebia o Aldeia Lagoinha. A vazante está localizada
nome de água Branca quando passava por na área da Fazenda Cristalina. Tumiku em
aquela aldeia. A juíza questionou se tinha um português significa domingo. Corresponde
nome Terena para a vazante, mas nenhum também ao nome de uma das aldeias Terena
dos presentes soube responder a pergunta. descritas pelo antropólogo Altenfelder Silva,
Outra pergunta feita pela juíza ao cacique em sua obra Mudanças Culturais Terena,
jurandir foi sobre uma cerca que separa publicada pelo Museu Paulista em 1949. Em
uma área da aldeia de outra, na divisa com seu texto o autor destaca:
a fazenda Ouro Preto. Essa referida área está Pouco após a campanha do
na posse do Terena Evandir jatobá, porém Paraguai, habitavam os Terena,
segundo eles próprios informam,
pertence à T.I. Taunay/Ipegue. É dividida, as seguintes aldeias: Ipegue (em
segundo jurandir Lemes informou, para área compreendida entre as atuais
evitar que o gado passe para o outro lado aldeias de Ipegue e Bananal);
Imokovookoti (nas imediações
e estrague a lavoura de feijão ou de milho, da atual aldeia de Cachoeirinha);
conforme o período. Sobre a diferença Tuminiku (nas proximidades da
atual aldeia de Bananal); Coxi
entre a cerca indígena e a não indígena, o
(próxima ao córrego de Taquarí);
cacique jurandir explicou que os Terena não Naxe-Daxe (nas proximidades
possuem as máquinas para industrializar os do córrego do mesmo nome);
Háokoé (nome Terena para a fruta
postes e por isso os utilizam tal como são do pindó; situava-se a aldeia a uma
encontrados na natureza (sem lapinar e por légua de Tuminiku); Moreira e
vezes um pouco tortos). O arame ainda é Akuleá (ambas nas proximidades
de Miranda); Kamakuê (próxima
farpado, pois o liso é mais caro. à atual aldeia de Duque Estrada);
Brejão (próxima a Nioaque); Limão
Em boa parte da divisa entre a Aldeia
Verde (próxima a Aquidauana);
Imbirussú e as fazendas Ouro Preto e Cerradinho (na área do atual
Cristalina, observa-se do lado da aldeia Município de Campo Grande).
Nessa época estimavam-se os
a conservação de mata de cerrado, que
Terena entre 3 e 4 mil. (Altenfelder
apresenta vestígios de fogo na forma de Silva, 1949: 281)
incêndio, enquanto do lado das fazendas o
A área da Aldeia Imbirussú, anteriormente
solo é coberto por pasto. Há uma pequena
a sua fundação, pertencia a Aldeia Bananal.
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A Aldeia Tuminiku recebia o nome do benfeitorias da fazenda (sede, mangueiros,
córrego ou vazante, que hoje é lembrado cercas, galpões) que foram documentadas
como Tumiku pelos anciãos Terena. pelos presentes em fotografias e filmagens.
Possivelmente, Altenfelder Silva tenha O cacique jurandir, pedindo a atenção da
registrado incorretamente o nome da aldeia. juíza, informou que o mangal – plantação
Essa informação nos leva a deduzir que a de mangueiras – (apontou na direção do
Aldeia citada pelo autor esteja em terras da mesmo) por todos vistos, fora plantado por
fazenda Cristalina. Cristalina é conhecida Aparício Bueno, um dos filhos de Antônio
pelos Terena como Pokoó, segundo Evandir Bueno, que continuou na fazenda após a
da Silva, 58, e Ignêz Jatobá Bueno, 70 (filha venda do comodato para outro fazendeiro.
registrada em cartório por Antônio Bueno e A juíza questionou o que o cacique entendia
Maria jatobá). Pokoó e Mangava pertenciam por comodato. jurandir respondeu que era a
a Antônio Bueno. área que segundo Ignez venda da posse pelo Aparício Bueno daquele
Bueno e Evandir da Silva era toda povoada lugar. jurandir lembrou também do cemitério,
pelos Terena de sua família. Os Terena o qual citamos anteriormente na fala de Ignêz
supracitados se lembraram do cemitério que jatobá Bueno (depoimento de Ignês Bueno
havia em Pokoó. Nesse cemitério estavam Castro, arquivo 27, 23/09/2010) e seu meio
enterrados seus parentes: josé jatobá e irmão Evandir Silva (Aldeia Imbirussú). josé
Poekcho (pai e mãe de Paulina e Maria Lippi reconheceu a existência de algumas
jatobá); Andrelina jatobá (irmã de Paulina cruzes no pátio da fazenda, mas afirmou não
jatobá e tia de Ignêz jatobá Bueno) e seu se lembrar de nenhum Cruzeiro. Admitiu
marido Totó; as crianças Bruno e Carlos da ter gradeado todo o pátio, afirmando que os
Silva (irmãos do ex-cacique de Imbirussú Terena não visitavam o referido local. A juíza
Evandir da Silva). Afirmaram ir cultuar questionou aos caciques sobre a lembrança
seus familiares mortos a cada ano no Dia de de algum ritual de culto aos mortos naquele
Finados. Iam acender velas naquele local, local. Os presentes não se recordaram,
mas há uns cinco anos atrás o cemitério foi mas afirmaram que os anciãos das suas
destruído pelo fazendeiro josé Lippi e tudo aldeias possivelmente se lembrariam. O
virou pasto. O ex-cacique Evandir diz saber cacique jurandir lembrou que o Dourival
a localização exata do referido cemitério Bueno, filho de Antônio Bueno, residente
(depoimento de Evandir Silva, Arquivo 21, no Distrito de Taunay, poderia confirmar
22/09/2010). o relato, bem como o Terena Luiz Bueno,
filho de Aparício Bueno. A juíza manifestou
Concluída a vistoria dos marcos de divisa
interesse em conversar com Dourival Bueno
entre as fazendas dos Autores e a Terra
no dia seguinte, quando fossem na Terra
Indígena Taunay/Ipegue o grupo foi
Indígena Taunay/Ipegue e pediu para ser
conduzido pelos fazendeiros até a sede da
conduzida ao local do referido cemitério.
fazenda Cristalina, que para os Terena é a
Nenhum dos presentes soube identificar com
antiga Pokoó. O Autor josé Lippi mostrou as
exatidão o local, mas apontou-se o entorno
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da localização. Ao final da tarde, nos reunimos novamente
Naquele momento o advogado Salazar, no Posto Pioneiro para que fosse lavrada
representante dos Autores, solicitou ouvir e aprovada a ata daquele primeiro dia de
trabalho. Ficou registrado em Ata a retirada
dos assessores técnicos informações sobre
da Fazenda Ipanema da Ação movida pelos
a presença Terena na atual área de Taunay/
Autores e o acatamento da solicitação pela
Ipegue. A juíza abriu espaço para algumas
falas. Hilário Rosa fez um longo discurso, Procuradora representante da FUNAI,
seguido pelo antropólogo Andrey Cordeiro Adriana Rocha. O Ministério Público Federal,
representado pelo procurador Emerson Kalif,
Ferreira e pela assistente técnica da FUNAI,
também acatou a solicitação de retirada. A
Noêmia dos Santos Pereira Moura. Foi dada
juíza ficou de encaminhar o assunto para a
a palavra aos caciques, porém somente um
deles reafirmou em linhas gerais que toda a União, que não estava ali representada por
extensão reivindicada pertence aos Terena seu Procurador. Todos os presentes ouviram
a leitura da ata, procederam às correções e a
desde antes da Guerra do Paraguai (1864-
assinaram reconhecendo seu conteúdo.
1870). Afirmou ser tudo aquilo que está no
relatório do antropólogo Gilberto Azanha, O segundo dia, 21/09/2010, foi destinado a
produzido para a FUNAI. Inspeção judicial na Terra Indígena Taunay/

Após a inspeção das benfeitorias realizadas Ipegue. Foram visitadas apenas quatro
pelos proprietários, anteriores e atuais, das sete aldeias atualmente reconhecidas

foram anotados em ata os dados referentes pela FUNAI e pela FUNASA (Fundação
Nacional de Saúde). Salientamos que a
ao período em que foram construídas as
mesmas, que tipo de material foi usado, Terra Indígena Taunay/Ipegue no início do

entre outras informações. Os fazendeiros século XX, 1905, era denominada Reserva.
apresentaram ao grupo os limites das fazendas Naquele contexto de primeira República o

com a terra indígena. Os limites foram sul do estado de Mato Grosso era povoado
por várias etnias – Guató, Guaikuru, Terena,
identificados como “marcos de Rondon”
Kinikinao, Bororo e Xamacoco, entre outras
(aqueles confeccionados em madeira do tipo
aroeira) e “marcos recentes” (aqueles de (Sganzerla, 1992) e por bem poucos nãos
indígenas. A partir da territorialização Terena
concreto que foram aviventados na década
nas primeiras reservas – Cachoeirinha e
de 1990). O percurso foi realizado de carro
Ipegue – as lideranças indígenas começaram
e em cada parada abria-se o diálogo entre a
a se reorganizar no novo território. As
juíza e os fazendeiros, a juíza e os indígenas
e os demais presentes entre si e com os aldeias foram fundadas à medida que
demais. Dessa forma, foram vistoriadas as os indígenas sentiam a necessidade de
consolidar um outro assentamento dentro
duas fazendas no primeiro dia. As fazendas
da reserva. Geralmente as aldeias nasceram
Ouro Preto e Cristalina fazem divisa com a
no local onde algumas famílias destacadas
Aldeia Imbirussú e a Aldeia água Branca,
socialmente (troncos velhos) plantavam
pelo que pudemos constatar em campo.
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suas roças. Com o tempo o tronco velho se Posto Indígena de Taunay e o Posto Indígena
mudava para mais perto de suas roças e ali de Ipegue. Sob o controle e estrutura do
ia aglutinando seus filhos e demais parentes. Posto Indígena de Taunay estão as aldeias
O antropólogo Levi Marques Pereira (2009) Bananal, Lagoinha, água Branca, Morrinho
aprofunda mais o estudo de formação de e Imbirussú, enquanto o Posto Indígena de
aldeias Terena na Terra Indígena Buriti, Ipegue atende as aldeias Ipegue e Colônia
conforme consta em Os Terena de Buriti: Nova.
formas organizacionais, territorialização Retornando à Inspeção, após o fechamento
e representação da identidade étnica, desse parênteses, os caciques nos conduziram
publicado pela Editora da UFGD. até a Terra Indígena de Taunay/Ipegue.
Segundo Pereira, a denominação aldeia para A primeira aldeia visitada foi Imbirussú
os agrupamentos Terena, possivelmente, que limita com as fazendas Ouro Preto e
surgiu de uma necessidade dos não indígenas Cristalina. Em seguida, visitamos as aldeias
(governantes e fazendeiros), uma vez que Lagoinha, Bananal e Ipegue. As demais
as lideranças indígenas se referem aos seus aldeias água Branca, Morrinho e Colônia
territórios como setores ou ainda por um Nova não foram objeto dessa Inspeção.
nome na língua terena (Pokoó, Tuminiku, Duas situações foram marcadas pelos
Naxe-Daxe), sem nenhum outro adendo. caciques: 1) a falta de água corrente na Terra
A categoria aldeia é usada pelos caciques Indígena Taunay/Ipegue e o abastecimento de
somente na comunicação com os não água feito totalmente pela FUNASA, através
indígenas. Para o autor, “O mais provável de poços artesianos, que não cobrem mais as
é que várias dessas localidades nomeadas necessidades da população de cada aldeia;
como aldeias fossem ocupações de grupos 2) a falta de espaço para reproduzir o modo
locais, que os Terena denominam de tronco, de ser e existir Terena. A juíza concentrou
ou em certos casos reunissem um grupo sua atenção e suas perguntas em duas
de troncos aproximados por relações de situações: 1) o que se produz e o que pode
parentesco e aliança política” (Pereira, 2009: ser produzido dentro da área atual da Terra
52-53). Dessa feita, em 1915 o Serviço de Indígena Taunay/Ipegue; 2) o que os Terena
Proteção ao Índio (SPI) se estabelece na fariam com a Terra Indígena ampliada. Na
Terra Indígena Taunay/Ipegue através do Aldeia Imbirussú, o cacique jurandir Lemes
Posto Indígena Taunay, na Aldeia Bananal. apresentou a Escola Indígena, na qual leciona
As lideranças da Aldeia Ipegue também professores Terena e funciona um posto de
reivindicaram um Posto Indígena para sua saúde. A juíza perguntou quantos alunos e
comunidade. turmas têm na escola e qual é a população
Naquele contexto, os cargos de capitão e da Aldeia. O cacique remeteu as perguntas
de chefe de posto eram fontes de prestígio ao professor, pois o agente de saúde estava
para os Terena. Internamente, os Terena ausente. São duas turmas, uma em cada
constituíram as fronteiras entre o território do turno, com aproximadamente 37 alunos,
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pelas informações prestadas pelo professor. algum órgão. Respondeu negativamente.
Segundo os dados da FUNASA, pesquisados O procurador da República, Emerson,
pela assessoria técnica da FUNAI, a informou a juíza federal que o governo
população atual da Terra Indígena Taunay/ do estado entregou ao município 8 (oito)
Ipegue é de 4.161 habitantes, sendo que a tratores destinados às aldeias de Bananal:
Aldeia Imbirussú possui 207 habitantes; Bananal, água Branca, Morrinho, Imbirussú,
A Aldeia Lagoinha possui 634 habitantes; Lagoinha e às aldeias de Ipegue (Ipegue e
Aldeia Bananal possui 1.145 habitantes; a Colônia Nova) e para a Terra Indígena de
Aldeia Morrinho possui 288 habitantes; a Limão Verde, e que nenhum deles estaria
Aldeia água Branca possui 714 habitantes; nas respectivas aldeias. O cacique Alsery
a Aldeia Ipegue possui 944 habitantes; a informou à juíza que na Aldeia Lagoinha
Aldeia Colônia Nova possui 189 habitantes encontra-se um trator que está servindo
(FUNASA, set./2010). As mais habitadas àquela população. Todavia, os outros seis
são também os assentamentos mais antigos, tratores não se encontram na T.I. Taunay/
como, por exemplo, Ipegue e Bananal. Ipegue. Nosso coletivo deslocou-se para
Todas as aldeias possuem um núcleo urbano um mangal próximo à divisa com a fazenda
composto por escolas, igrejas, posto de Cristalina (Pokoó), dentro da Terra Indígena
saúde e habitações. e da Aldeia Imbirussú, no qual morou a
Os caciques foram questionados pela juíza: família Terena de josé jatobá e Poekcho, pais

sobre a técnica das queimadas para limpar de Paulina jatobá, que havia estabelecido
relações de parentesco consanguíneo com o
o solo para o plantio; sobre a técnica de
construção das cercas indígenas; sobre as fazendeiro Antônio Bueno e por muito tempo

necessidades básicas da população da Terra morou nas fazendas Mangava e Pokoó.


Indígena Taunay/Ipegue; sobre o porquê Em atividade de campo, a assistente técnica
estavam solicitando a ampliação territorial; da FUNAI voltou ao local com os Terena
sobre a forma de cultivo na atual área de Luiz Bueno, filho de Aparício Bueno e
6.641 hectares; sobre a necessidade de neto de Antônio Bueno e Paulina jatobá e
inovação tecnológica e assistência técnica Evandir da Silva, filho de Maria Jatobá e
para o desenvolvimento da agricultura; sobre julião da Silva, sobrinho de Paulina jatobá.
a assistência prestada pela FUNAI, pela Os dois Terena observaram que as mulheres
Prefeitura de Aquidauana, pelo governo do e as crianças ali assentadas utilizavam o
estado de Mato Grosso do Sul, pela FUNASA açude da fazenda Pokoó para lavar roupas
e por outras instituições e órgãos; sobre e se banhar, além de fazer coleta de frutos
projetos e programas que poderiam estar (guavira, jabuticaba, goiaba, entre outras),
sendo desenvolvidos na Terra indígena. O caçar e pescar (depoimento de Evandir Silva,
cacique jurandir foi mostrar os locais de roça arquivo 21, 22/09/2010). O açude pode ser
de sua aldeia para o grupo e foi questionado avistado da cerca da divisa entre a Aldeia
sobre o recebimento de apoio técnico de Imbirussú e a fazenda Cristalina.
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Voltando à Inspeção Judicial, passamos ambos Terena. Manoel joaquim faleceu
por esse açude quando fazíamos o aos 92 anos de idade, segundo nos contou
reconhecimento dos marcos de Rondon e Silvério Francisco. Nascido e crescido
de aviventação, no primeiro dia. No retorno naquela Terra Indígena, ele pode nos contar
do mangal fomos para outras aldeias, dessa como os fazendeiros foram cercando os
vez de uma forma mais rápida, pois o Terena e proibindo os mesmos de transitar no
tempo passava rapidamente. Ao final, foram entorno, como era de costume dos indígenas.
visitadas somente quatro das 7 (sete) aldeias. Na situação etnográfica ou de trabalho de
Em Lagoinha, o grupo assistiu a tradicional campo, um dia é um tempo muito curto e
Dança do Bate Pau e foi apresentado à por isso centramos nos depoimentos que
comunidade da aldeia. As dezesseis horas do ampliariam as respostas aos questionamentos
segundo dia voltamos a nos reunir no Posto realizados durante a Inspeção judicial e que
Pioneiro para a redação, leitura e assinatura nos auxiliariam a responder os quesitos do
da Ata. juizado e da FUNAI. Recolhemos ao todo
quatro depoimentos em Imbirussú e água
Como a Inspeção judicial estava marcada
para três dias e os caciques manifestaram Branca no dia 22/09/2010.

o interesse da assistente técnica da FUNAI No dia 23/09/2010, na quinta-feira,


voltar à Terra Indígena Taunay/Ipegue realizamos mais uma entrevista com Ignez
para ouvir outras pessoas que podiam Bueno de Castro, 70, meia-irmã de Evandir
contribuir no relatório, voltei no dia da Silva com quem havia falado no dia
22/09/2010, no período matutino, para a anterior. O último depoimento foi agendado
Aldeia Imbirussú, juntamente com Reinaldo por telefone e o responsável foi o ex-cacique
Martinez, coordenador técnico da FUNAI de Evandir da Silva, que afirmara ter sua irmã
Aquidauana. O cacique jurandir nos levou mais detalhes sobre a genealogia de Antônio
a casa de um neto (Luiz Bueno) e de um Bueno. Ignez é filha de Antônio Bueno e
sobrinho (Evandir Silva) da Terena Paulina Maria jatobá. Antônio Bueno aparece na
jatobá, casada com o fazendeiro Antônio cadeia dominial da fazenda Cristalina no
Bueno, onde coletamos os depoimentos aos período de 1943 a aproximadamente 1970.
quais já nos reportamos acima. Descendente de gaúchos, trabalhou na
fazenda Cutape, atual Santa Cruz de Roberto
Na Aldeia água Branca, o cacique Isaias
Dittiman, antes se instalar nas fazendas
Francisco nos apresentou seu pai Silvério
Pokoó e Mangava, com a família constituída
Francisco, nascido em 1918, que nos relatou
sua história de vida na Terra Indígena ainda em Cutape.
Taunay/Ipegue. O ancião fez seu relato em Segundo o depoimento de Ignez Bueno de
Terena e foi interpretado pelo professor e Castro, filha de Maria Jatobá com o cunhado
diretor Estevão, da Escola Indígena da Aldeia fazendeiro, Antônio Bueno conheceu Paulina
água Branca. Os pais de Silvério Francisco jatobá na fazenda Cutape, atualmente
foram Manoel joaquim e Lourença Cândida, fazenda Santa Cruz. Paulina trabalhava
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como cozinheira, o que era muito comum pretendeu se aldear com seus patrícios
nas fazendas do entorno das reservas: (Moura, 1994). A situação de Antônio
homens trabalhavam no campo lidando Bueno e Paulina jatobá transformou-se após
com o gado e nas roças, e as mulheres a aquisição da fazenda Pokoó e Mangava.
eram cozinheiras e empregadas domésticas. De acordo com as informações de Ignêz
Casaram-se, tiveram filhos: Aparício, Bueno, as relações entre os habitantes de
Aluisio, Altivo, joão Santana, Antonio Taunay/Ipegue e o fazendeiro Antônio
Filho, Dourival, Durval, Leonídia, Darci e Bueno eram muito boas. Naquela época não
Filhinha. Na primeira metade do século XX, havia impedimento algum para os Terena
as relações de trabalho no campo passavam entrarem e saírem de suas fazendas. quem
pela afetividade, pela confiança e pelo morria nas aldeias e na fazenda era enterrado
compadrio. Segundo escreve um cronista no cemitério que existia na sede da fazenda.
pantaneiro e herdeiro da fazenda Taboco, Os Terena tinham livre acesso para coletar
de propriedade da família Alves Ribeiro: guavira, jabuticaba, goiaba, para caçar e
“Era comum termos na fazenda Taboco pescar. Na época da guavira, as famílias
pequenos criadores, quase que em regime de saiam em grupo para coletar. O gado da
patriarcado, ou melhor, de comunidade, que fazenda de Antônio Bueno se alimentava
iam crescendo, aumentando sua criação, e do pasto nativo. O desmatamento ocorreu
depois o próprio patrão legalizava para eles após a venda da fazenda para os atuais
ou os auxiliava na compra de glebas para se proprietários.
tornarem fazendeiros” (Ribeiro, 1984: 33). Quando ficou doente, Antônio Bueno
Referindo-se aos Terena, registra o cronista: arrendou a fazenda Pokoó para o genro
“Nas fazendas, oitenta por cento da peonada
casado com sua filha mais velha. Arrendou
era de índios, sendo os serviços de casa a parte atualmente pertencente à fazenda
sempre exercido por moças índias que eram Cristalina, enquanto a parte pertencente à
criadas pelos brancos [...] Era tão intimo o fazenda Mangava foi repartida entre os seus
contato com eles que muitos fazendeiros
filhos. Na época de sua doença, pouco tempo
aprendiam a falar a sua língua” (Ribeiro, antes de falecer, o casal de velhos – Antônio
1984: 73-74).
Bueno e Paulina jatobá – se mudaram
Alguns Terena têm uma memória positiva do para a chácara que atualmente encontra-
convívio nas fazendas da região. O Terena se no nome de Dourival Bueno. A chácara,
josé da Costa, que ajudou seus irmãos e segundo conta Ignêz Bueno, foi doada em
sua mãe a comprar 33 hectares na margem vida por Paulina Jatobá à filha Leonídia, que
esquerda do rio Aquidauana para fundar a a conserva até hoje. Ignêz Bueno salienta
aldeia Aldeinha, ele foi apadrinhado pelo não ter tido direito à herança de seu falecido
fazendeiro Manoel Aureliano Costa Filho, pai, apesar de ter sido por ele registrada
conhecido como Manequinho, antigo em cartório. Lembra-se que sua tia Paulina
campeiro da fazenda Taboco, e nunca jatobá foi buscá-la na casa de sua mãe ainda

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bem pequena, em obediência ao marido, Taunay/Ipegue.
para que ficasse morando definitivamente B) 23/09/2010. 4) Prof. Estevão, 58,
com seu pai Antônio Bueno, que queria (Diretor da Escola Indígena de água
todos os seus filhos ao seu redor. Cresceu,
Branca) – nascido e criado nessa
estudou e se casou naquela família, porém
Aldeia; 5) Ignêz jatobá Bueno,
no momento de partilha da herança de seu
70 (fez questão de mencionar que
pai ficou fora. guarda o registro para provar a
A maioria dos filhos de Antônio Bueno foi paternidade de Antônio Bueno. Após
estudar em São Paulo, inclusive Dourival o casamento passou a assinar Ignêz
Bueno, com quem a juíza conversou no Bueno Castro) – residente na cidade
distrito de Taunay. Segundo Ignêz, Dourival de Aquidauana gerencia a Pousada
Bueno conhece muito pouco a história da Recanto da Figueira de propriedade
Terra Indígena, pois passou a maior parte de uma de suas filhas, juntamente
de sua vida em Campinas, São Paulo. Os com um de seus filhos.
herdeiros de Antônio Bueno foram aos
poucos vendendo seus lotes. Provavelmente,
não havia uma divisão cartorial da área
herdada pelos filhos, mas cada um sabia a segunda Parte
parte que lhe pertencia. Quesitos da Juíza federal substituta
Ao todo recolhi cinco depoimentos nos raquel domingues do amaral Corniglion,
dias 22 e 23 de setembro de 2010 junto aos de 13/08/2010:
Terena: a) marco temporal de ocupação: a data
a) 22/09/2010. 1) Luiz Bueno (filho de verificação do fato em si da ocupação
dos Terena Aparício Bueno e zonir fundiária é o dia 05 de outubro de 1988, e
Botelho e neto de Antônio Bueno nenhum outro.
e Paulina jatobá). O depoente fez
A.1) Em 05/10/1988, os índios de etnia
questão de mostrar o local em que terena da comunidade taunay/ipegue
sua família morou na época em que
habitavam, ocupavam ou perambulavam
Antônio Bueno era o dono de Pokoó; as áreas abrangidas fazendas Ouro Preto,
2) Evandir da Silva, 58 (filho de Cristalina e ipanema?
Maria jatobá e julião da Silva; irmão
de Ignez jatobá Bueno por parte de Os Terena da Terra Indígena de Taunay/
Ipegue sempre mantiveram a mobilidade
mãe) – visitou o mangal conosco
nas áreas abrangidas pelas fazendas Ouro
e agendou o depoimento de Ignêz
Preto e Cristalina, bem como pelas demais
jatobá Bueno; 3) Silvério Francisco,
92 (pai do Cacique Isaias Francisco fazendas do entorno de seu território. Ocorre
e ancião da Aldeia água Branca) – que foram sendo paulatinamente impedidos
nascido e criado na Terra Indígena de transitar pelas mesmas ao longo do
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século XX. Mesmo assim, correndo riscos, a família de josé jatobá e Poekcho (pais de
continuam atravessando as cercas. Segundo Paulina jatobá e sogros do fazendeiro) para
o ancião Silvério Francisco, 92, nascido e morar na Mangava, hoje fazenda Mangava
criado nessa T.I., residente atualmente na (propriedade de Irineu), enquanto Antônio,
Aldeia água Branca, todo o entorno da área Paulina e os filhos moravam em Pokoó. Os
hoje fechado por cercas dos fazendeiros Terena da Terra Indígena Taunay/Ipegue
era mata. Os Terena pescavam, caçavam e tinham livre passagem para coletar frutos
coletavam frutos nativos nessas áreas. A silvestres, caçar e pescar naquelas terras.
partir da década de 1970, mais ou menos, Quando faleceu Antônio Bueno, seus filhos
é que seus patrícios foram impedidos Altivo e Aparício Bueno ficaram cuidando a
de atravessar as cercas da divisa da área fazenda para Paulina jatobá, sua mãe.
de Anhumas (hoje fazenda foi retiro da
Paulina Jatobá morava com a filha Leonídia
fazenda Taboco). Foram impedidos não só
na Chácara que hoje se encontra no nome
verbalmente, pela lei, mas também por força
de Dourival Bueno (filho de Paulina
bélica (depoimento de Silvério Francisco, nº
jatobá e Antônio Bueno), entrevistado pela
25, 22/09/2010).
juíza federal na Inspeção judicial do dia
O Diretor da Escola Indígena de água 21/09/2010, no distrito de Taunay. Destaco
Branca, Prof. Estevão, 58, relatou o a seguir trechos do depoimento do ex-
assassinato de dois Terena por peões do cacique Evandir da Silva: “Ali era só mata.
Retiro de Anhumas, na década de 1970: Só matagal. Ali a gente caçava, pescava [...].
“Dois patrícios foi matado aqui na região Dona Paulina, minha tia plantava arroz, milho
de Anhumas. Foi caçar, pegou um tatu e e nós acompanhava ela. Dava um pouco pra
fazendeiro pistolou ele. Um guri, lá em cada um. [...] pagamento, pouquinho de
Lagoinha [Aldeia] tem neto dele ainda.” arroz, macarrão [...] banana era a vontade
(depoimento Prof. Estevão, nº 25 e 26, [...] comia graxa de vaca, pois banha de
22/09/2010). Depois desse fato registrado porco era só pra fazendeiro [...] fazia tarefa
na memória dos indígenas ninguém mais a noite com candieiro. [...] o pessoal daqui
entrou na fazenda e se recolheu no território catava guavira. [...] Hoje a gente só pesca no
indígena por receio de novos conflitos e tanque [açude]” (depoimento de Evandir da
mortes. As relações de trabalho, changas e Silva, nº 21, 22/09/2010 – informações entre
empreitas, também cessaram. colchetes da assistente técnica). Evandir da
Na Aldeia Imbirussú, os Terena Evandir da Silva nos contou que até recentemente, uns
Silva (ex-cacique) e Luiz Bueno (filho de cinco anos mais ou menos, na época que o
Aparício Bueno e neto de Antônio Bueno) fazendeiro josé Lippi gradeou o cemitério
nos informaram que até a venda da fazenda para transformar em pasto, os seus parentes
Pokoó, assim denominada a fazenda Cristalina iam acender velas no Dia de Finados (02 de
pelos indígenas, não havia cercas entre a novembro) para os mortos. No momento da
reserva e a fazenda. Antônio Bueno colocou Inspeção judicial, o fazendeiro josé Lippi

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confirmou a existência de um cemitério na cemitério foi destruído há uns cinco anos
sede da fazenda Cristalina, porém informou atrás, por volta de 2005 mais ou menos.
à juíza que eram umas três cruzinhas e que Com isso, podemos afirmar a partir dos
os índios não visitavam seus mortos. A depoimentos que os Terena da família de
juíza perguntou aos presentes se os Terena Paulina jatobá, ex-proprietária de Pokoó,
faziam algum ritual naquele lugar e se atual fazenda Cristalina, continuaram se
algum deles sabiam exatamente onde era o deslocando da Terra Indígena de Taunay/
cemitério. Nenhum respondeu. Na verdade, Ipegue para a sede da fazenda Cristalina para
cada família Terena cultua os mortos de sua cultuar seus mortos até bem recentemente,
parentela e na ocasião da Inspeção judicial ou seja, posterior a data de promulgação da
não havia nenhum jatobá Bueno ou jatobá Constituição de 1988. O cacique jurandir
da Silva para responder o questionamento. Lemes, 40, da Aldeia Imbirussú, relatou
Ignêz Bueno de Castro, 70, Terena residente durante a Inspeção, dia 20/09/2010, que
trabalhou na fazenda Ouro Preto, quando essa
atualmente na cidade de Aquidauana, onde
já pertencia a josé Lippi, fazendo as cercas
gerencia a Pousada Figueira, de propriedade
de uma de suas filhas, meia irmã de Evandir com seu pai a mais ou menos uns 28 anos

da Silva, relatou que o cemitério de Pokoó é atrás, quando tinha uns 12 anos de idade e
trabalhou também na fazenda Cristalina, para
indígena e que lá estão enterrados alguns de
seus familiares. Ignêz e Evandir afirmaram o mesmo fazendeiro, por volta de seus 18 a

que seus parentes continuaram cultuando 19 anos, catando raiz e plantando semente
seus mortos em Pokoó enquanto existia o de braquiária. Ambas as informações foram

cemitério. Tinha um cruzeiro de aroeira e confirmadas pelo fazendeiro.

as cruzes das covas. Ali foram enterrados os Ignêz Bueno de Castro mostrou duas
Terena josé jatobá, Poekcho (pais de Paulina fotografias tiradas na fazenda Ouro Preto
jatobá e sogros do fazendeiro Antônio em 1982 [a data se encontra na própria
Bueno), Mikilino jatobá, apelidado de fotografia] de seu rancho. Permaneceram na
Mikimbá, Andrelina jatobá (irmã de Paulina fazenda plantando roça ela, o marido e os
jatobá) e seu marido Totó, dois outros irmãos três filhos. O cacique Isaías Francisco disse
de Evandir da Silva e Ignêz Bueno de Castro à juíza que quando era criança tomava banho
ainda crianças – Bruno e Carlos da Silva. na vazante que ligava as aldeias Imbirussú
Evandir salienta: “Todo ano nós ia lá acender e água Branca, que atualmente está seca
velas [...] acabou cemitério. O fazendeiro e interrompida no campo da fazenda Ouro
patrolou tudo lá.” (depoimentos de Evandir Preto. O fazendeiro josé Lippi argumentou
da Silva e Ignêz Bueno de Castro, nº 21 e 27, que mantém as árvores em torno da vazante.
22 e 23/09/2010). Todavia, o desmatamento que transformou
o entorno da vazante em pastagem para o
De acordo com a informação que obtivemos
gado contribuiu para o desaparecimento da
na Inspeção judicial, do cacique jurandir
vazante, segundo observamos in loco.
Lemes e do fazendeiro josé Lippi, o
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Os depoimentos recolhidos durante a A partir da venda da fazenda, os Terena
Inspeção judicial e o trabalho de campo da agregados tiveram que se estabelecer na
assistente técnica da FUNAI, comprovam área da Terra Indígena de Taunay/Ipegue, na
que as relações do fazendeiro Antônio região do mangal (plantação de mangueiras),
Bueno com a família de josé jatobá e que pôde ser avistado da cerca que limita as
Poekcho iam além das relações trabalhistas fazendas Ouro Preto e Cristalina da Aldeia
e de afinidade. Foram estabelecidas entre os Imbirussú: “Os que são mais espertos vão
Terena e o fazendeiro relações de parentesco fechando e os mais medrosos vão recuando. E
consanguíneo. Antônio Bueno desposou nós fomos recuando” (conforme depoimento
Paulina Bueno com quem teve os seguintes de Evandir da Silva, nº 21, 22/09/2010).
filhos: Aparício Bueno, Aluisio Bueno, Todavia, o relacionamento com as áreas das
Altivo Bueno, João Santana, Antônio filho, fazendas dos Autores continuou por parte dos
Dourival Bueno, Durval Bueno, Leonídia Terena através de empreitas, arrendamentos,
Bueno, Darci Bueno e Filhinha Bueno. visitas ao cemitério da Cristalina no dia de
Trouxe toda a sua família para agregar-se Finados e a pescaria no tanque da Cristalina.
em suas terras e estabeleceu uma relação O fato é que os Terena de Taunay/
de parentesco por afinidade com todos os Ipegue vêm ao longo dos séculos XIX
demais Terena da Terra Indígena Taunay/
e XX convivendo com vários contextos
Ipegue, os quais tinham total mobilidade nas sócio-políticos-econômicos-culturais e a
áreas de suas fazendas. constante mudança das paisagens interna
Antônio Bueno teve uma filha com Maria e externamente a sua Terra Indígena. No
josé jatobá – Ignêz jatobá Bueno, que momento da demarcação da reserva Ipegue,
após se casar passou a assinar Ignêz Bueno em 1905 a população Terena era de mais
de Castro. Uma filha com a cunhada que ou menos 5.000; hoje somente em Taunay/
foi recolhida na família do fazendeiro por Ipegue a população totaliza 4.161 habitantes.
Paulina jatobá, a qual foi por nós ouvida no Enquanto naquela época puderam continuar
dia 23/09/2010, na cidade de Aquidauana- se relacionando com a natureza do entorno
MS. Portanto, concluímos que enquanto o de sua reserva caçando, pescando, coletando
fazendeiro Antônio Bueno esteve à frente frutos silvestres, plantas medicinais, lenha,
das fazendas Pokoó (atual Cristalina) e madeira para suas habitações, hoje se
Mangava, para os Terena não havia nenhum vêm pressionados pelos fazendeiros para
obstáculo para a sua mobilidade naquelas permanecer nas terras da União, tendo
áreas, o que permitia a continuidade de seu para sobreviver que enviar seus filhos para
modo de existir. Os obstáculos à mobilidade trabalhar e estudar nas cidades ou em fazendas
dos Terena passaram a ser constituídos a de outras localidades da região, receber
partir do momento que outros não indígenas cesta básica e outras ajudas provenientes de
compraram os títulos de propriedade de políticas públicas governamentais.
espólio de Antônio Bueno à Paulina Jatobá.
Os Terena de hoje vivem em pequenas
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ilhas, pois são rodeados por cercas e por in loco. Relação de vestígios:
pastos formados para pastagem de gados
1) Cemitério na sede da
dos fazendeiros. No caso de Taunay/Ipegue,
fazenda Cristalina:
até a década de 1965 os Terena conviveram
com a paisagem quase intocada da margem De acordo com o texto do
esquerda da cidade de Aquidauana, hoje primeiro quesito, os Terena
município de Anastácio. A urbanização do afirmam a existência de um
município de Anastácio ocorreu da década cemitério indígena no qual se
de 1970 para cá, após sua emancipação em encontram os restos mortais
1965. A luta Terena por terra é histórica: 1) de parentes seus. Os corpos
lutaram por seu território tradicional após enterrados ali seriam: 1) josé
a Guerra do Paraguai (1864-1870), pois jatobá (Terena, pai de Paulina
quando voltaram de seus abrigos na Serra de jatobá); 2) Poekcho (Terena,
Maracaju encontraram suas terras invadidas; esposa de josé jatobá); 3)
2) lutaram pela demarcação e homologação Mikelino Jatobá (filho de
das áreas das reservas, nas quais foram josé jatobá); 4) Andrelina
territorializados, na primeira metade do Jatobá (Terena, filha de José
século XX; 3) lutaram pelos seus direitos jatobá); 5) Totó (Terena,
civis, sociais, políticos, resguardados pela esposo de Andrelina jatobá);
Constituição Federal de 1988; 4) lutam para 6) Bruno da Silva (Terena,
ampliar suas “ilhas”, rodeadas por cercas e filho de Maria Jatobá); 7)
pastos. Carlos da Silva (Terena, filho
de Maria jatobá). No local
havia um cruzeiro de aroeira
B) No local há vestígios antropológicos e cruzes em cada uma das
idôneos de ocupação dessas terras pelos sepulturas, segundo o ex-
índios da etnia terena? sendo positiva a cacique Evandir da Silva, 58.
resposta, é possível datar estes vestígios?
2) Vazantes:
Há continuidade de vestígios de ocupação
das fazendas Ouro Preto, Cristalina e - Vazante Água Branca:
Ipanema até o marco objetivo de 05 de Cacique Isaias Francisco,
outubro de 1988? da Aldeia água Branca,
registrou durante a Inspeção
B.1) No local há vestígios antropológicos
que ele e outras crianças
idôneos de ocupação dessas terras pelos
Terena tomavam banho
índios da etnia terena?
naquele lugar. Após o
Há vestígios antropológicos e arqueológicos desmatamento do entorno da
nas fazendas dos Autores, marcados na vazante, que ligava as aldeias
memória dos Terena e por eles identificados Imbirussú e água Branca,

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a mesma secou e agora se 4) Changa para coletar raiz e
encontra cortada pelo pasto plantar braquiária:
da fazenda Ouro Preto. O cacique jurandir informou
- Vazante Tumiku: O a juíza durante a Inspeção
cacique Alsery de Lagoinha que por volta de 1978, quando
se lembrou do nome da tinha mais ou menos uns 18
vazante do marco de Aroeira anos, trabalhou na fazenda
[marco de Rondon], que Cristalina com o josé Lippi
liga a Fazenda Esperança II, coletando raízes e plantando
Fazenda Cristalina e a Aldeia braquiaria (capim de pasto).
Lagoinha. Atualmente, a 5) arrenda ou meiagem:
vazante encontra-se em área
Ignêz Bueno de Castro, 70,
da fazenda Cristalina. Tumiku
mostrou duas fotos para
em português significa
a Assistente Técnica da
domingo. Era um lugar
FUNAI, datadas do ano de
onde os Terena pegavam
1982, as quais retratam ela e
água e tomavam banho.
sua família (marido e filhos)
Provavelmente, essa vazante
em frente ao galpão de palha
era homônima à Aldeia
na fazenda Ouro Preto. Na
Tuminiku, mencionada nos
ocasião estavam plantando
estudos do antropólogo
uma roça em uma área
Altenfelder Silva, publicados
arrendada pelo fazendeiro.
em 1949.
6) a lagoa do cal:
3) Cercas construídas pelos
Terena na fazenda Ouro Evandir da Silva, 58, ex-
Preto: cacique de Imbirussú
lembrou-se da Lagoa do Cal
O cacique jurandir, 40,
e de alguns outros locais
informou à Juíza durante a
que podem caracterizar
Inspeção e foi registrado em
assentamento Terena como
Ata, que mais ou menos no
a região do limão e o
ano de 1972 acompanhou
Jaboticabal, na divisa com o
seu pai na empreita para
Agachi Velho [provavelmente
construção das cercas da
um assentamento Terena ou
Fazenda Ouro Preto. Na
Kinikinao]. A Lagoa do Cal
ocasião o mangueiro usado
aparece recorrentemente nas
pelos fazendeiros tinha sido
falas dos Terena, os quais
construído por terena.
afirmam existir ainda nos dias
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de hoje. Contam os anciãos e precisariam ser datados e localizados por
reproduzem os mais jovens estudos mais aprofundados, em situação
que o auxiliar de Rondon, diferente da Inspeção judicial.
Horta Bueno, atravessou a
lagoa marcando seu meio
B.3) Há continuidade de vestígios de
como a divisa da reserva de
ocupação das fazendas Ouro Preto,
Ipegue e ainda hoje pode se
Cristalina e Ipanema até o marco objetivo
encontrar resquícios de cal
nesse lugar. de 05 de outubro de 1988?
Atualmente, todos esses vestígios podem ser
7) estrada antiga que ligava
localizados pelos Terena que participaram
a Terra Indígena à fazenda
Pokoó (fazenda Cristalina): da Inspeção e forneceram os depoimentos
para a Assistente Técnica. Alguns dependem
Evandir da Silva levou da confirmação dos fazendeiros, a confecção
a assistente técnica para de cercas, por exemplo.
mostrar a antiga estrada
que os Terena usavam para
chegar à sede da Pokoó. C) Quais são as interferências humanas
Foi limpa recentemente (edificações, desmatamento, pastagens,
pelos fazendeiros para a benfeitorias) observadas nas terras
passagem dos carros da das fazendas Ouro Preto, Ipanema
Inspeção judicial. Divide a e Cristalina? Essas interferências
Aldeia Imbirussú da fazenda demonstram-se compatíveis com a
Cristalina. A estrada passa mundividência e atividades produtivas
bem próximo do tanque que são desenvolvidas pelos índios da
[açude] no qual eles ainda etnia terena da Comunidade taunay/
hoje pescam, o qual pode ser ipegue?
avistado da divisa.
C.1) Quais são as interferências humanas
(edificações, desmatamento, pastagens,
B.2) Possibilidade de datação dos vestígios. benfeitorias) observadas nas terras
das fazendas Ouro Preto, Ipanema e
Esses foram os resquícios levantados pelos Cristalina?
participantes da Inspeção judicial e do
trabalho de campo realizado pela assistente As interferências humanas foram
técnica da FUNAI, nos dias 20, 21, 22 e paulatinamente esculpidas na paisagem de
Taunay/Ipegue e em seu entorno.
23/09/2010. No tocante à datação desses
vestígios, foi possível apenas uma datação 1) A formação das áreas de
aproximada, baseada na memória dos pastagem – A passagem da
depoentes. No entanto, entendemos que pecuária extensiva nos pastos
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naturais da área para a pastagem (depoimento Evandir da Silva, nº
transplantada, no transcurso das 21, 22/09/2010).
décadas de 1960-1980 – conforme 2) as cercas: Constituem-se
pode ser comprovado a partir
em interferências físicas,
de fotos de satélite, produziu
respaldadas pelo direito legal
o assoreamento das nascentes,
à propriedade privada que
bem como a interrupção da protege os fazendeiros. Até a
continuidade das vazantes que década de 1970, os Terena não
ligavam todo o território no
enfrentaram esse obstáculo.
interflúvio do rio Miranda com
Muitas delas foram construídas
os demais rios da região e os
pelos próprios Terena para,
vários córregos mencionados nas posteriormente, impedi-los de
fontes bibliográficas (Altenfelder transitar no entorno de sua Terra
Silva, 1949; Cardoso de
indígena. As cercas separam os
Oliveira, 1976). Atualmente, a
Terena de seus mortos, das frutas
falta de água é um dos maiores silvestres, da caça, da pesca e
problemas da Terra Indígena corta todas as possíveis relações
Taunay/Ipegue. O abastecimento
que mantinham com o território
das aldeias, segundo as fechado.
informações dos caciques, é
realizado pela FUNASA através 3) as casas de alvenaria das sedes:

de poços artesianos com baixa Em cada uma das sedes foram


profundidade. Na época de seca construídas casas de alvenaria

há o racionamento de água para para abrigar as famílias que ali


passaram a residir. Contrastam
os Terena. Além da escassez da
com as casas dos indígenas
água, os Terena observam que
os pastos tomaram o lugar das que são bem menores e mais
modestas.
frutas nativas como a guavira, a
goiaba e a jabuticaba. Segundo 4) os mangueiros: Os mangueiros
Evandir da Silva, 58, ainda existe das Fazendas Ouro Preto e
o jabuticabal da Agachi antiga, Cristalina foram construídos na
mas os indígenas estão proibidos década de 1990, pelas informações
de ir lá: “[...] jabuticaba nativa do fazendeiro josé Lippi. Foram
no campo da divisa do Agachi construídos pela família Lippi.
velho. E morava indígena O cacique jurandir informou
também lá. [...] novembro e a juíza que ainda se lembra
dezembro é época de guavira e onde ficavam os mangueiros
jabuticaba também. Só dá uma antigos, o laranjal, o araçazal, o
chuva e ela começava a florar” mangueiral do Aparício Bueno
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na Pokoó [Cristalina]. Ia falando maxixe, quiabo, entre outros cultivos. Criam
e apontando com o dedo para gado bovino, em pequeno número, dado o
identificar melhor. tamanho limitado de suas posses, conforme
os caciques informaram à juíza. Portanto,
Durante a Inspeção judicial, os caciques
querem a ampliação de sua Terra Indígena
Terena puderam andar novamente pelas terras
para continuar realizando essas atividades.
das fazendas Ouro Preto e Cristalina e aos
poucos iam se lembrando de como era a sede Estão abertos à tecnologia, como, por
velha e como é a nova, o mangueiro terena exemplo, a gradação da terra com trator,
e o mangueiro novo. O cacique jurandir mas dispõem atualmente de pouco espaço
aos poucos foi percebendo as mudanças na interno para plantar. A área de cada aldeia
paisagem das fazendas e foi se recordando é dividida por famílias e dessa forma,
do seu tempo de criança e mocidade, quando conforme a família vai aumentando seu
por ali trabalhou na companhia de seu pai índice populacional vai ficando sem terras.
e depois sozinho após ficar adulto. A nova Por isso, colocam o aumento populacional
paisagem registra o desaparecimento dos como um dos motivos para a ampliação da
locais de coleta (guavira, goiaba, jabuticaba, T.I. Todavia, ao mesmo tempo em que estão
laranja, manga); o desaparecimento da caça, abertos à tecnologia, percebem que sem a
pois o desmatamento desloca os animais mata não poderão recompor as nascentes
silvestres; o desaparecimento das nascentes e as vazantes em seu território: “Perdemos
e vazantes onde os animais bebiam e os a terra, as madeiras de lei, as matas, os
Terena banhavam-se, pescavam, lavavam bichos... [...] Hoje planta o milho a aracuã
roupas e buscavam suas águas para consumo [pássaro] vem e come tudo. Porque não tem
doméstico. mais mato. A ema também estraga o milho.
A gente não mata o bicho pra não aproveitá”
(depoimento de Evandir da Silva, nº 21,
C.2) Essas interferências demonstram- 22/09/2010).
se compatíveis com a mundividência
Ao longo dos dois últimos séculos, como
e atividades produtivas que são
bem se destacou acima, os Terena se
desenvolvidas pelos índios da etnia terena
relacionaram com o Brasil Império e com
da Comunidade taunay/ipegue?
o Brasil República. Portanto, passaram por
Os Terena acompanharam ao longo do várias situações conflituosas e harmônicas
processo histórico de convívio com os não com o Estado brasileiro. Perderam seu
indígenas todo o processo de modernização território tradicional no pós-guerra do Brasil
ocorrido na pecuária e na agricultura. No contra o Paraguai; foram territorializados em
entanto, em suas aldeias na atualidade pequenas reservas no Sul de Mato Grosso
continuam produzindo roças familiares onde em contraste com os latifúndios titulados
plantam abóbora, milho, feijão de arranca pelo governo do estado de Mato Grosso para
(feijão de salada), feijão comum, melancia, os fazendeiros; conviveram com o paulatino
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confinamento produzido pelos fazendeiros Cultura – um conceito antropológico,
que foram rodeando suas reservas com podemos afirmar que toda cultura é
cercas e pastos para gado bovino e hoje dinâmica e histórica. Histórica porque é
se encontram divididos entre suas Terras construída por sujeitos humanos em um
Indígenas e as aldeias urbanas do Mato determinado contexto, e dinâmica porque
Grosso do Sul. Tal como os regionais do Sul pode ser alterada pelos mesmos sujeitos
do antigo Mato Grosso e atual Mato Grosso humanos em interação com outros sujeitos
do Sul, foram acompanhando o processo humanos e com a natureza. Partindo desse
de modernização do Estado brasileiro que pressuposto, pode-se afirmar que os Terena
atingiu todo o território nacional. Os Terena, foram constrangidos a desenvolver relações
portanto, se constituíram em exímios estreitas de convívio e coexistência com
peões de fazendas, condutores de boiadas os regionais que se estabeleceram em seus
no Pantanal sul-mato-grossense, além de territórios tradicionais desde o momento
trabalhar como empregados domésticos, que retornaram para suas aldeias após o
porteiros e enfermeiros nas cidades de fim da Guerra do Paraguai (1864-1870).
Aquidauana, Miranda, Campo Grande, Apesar de sua predisposição ao contato com
dentre outras. o outro, conforme é característico às etnias
Aruak, naquele contexto as relações se
A mundividência dos Terena, na atualidade,
está marcada por todo o processo de contato davam numa base totalmente assimétricas,

estreito que esse povo manteve com a pois os usurpadores de seus territórios se
sociedade brasileira. O Terena, mesmo tendo constituiriam nos fazendeiros do Sul do

seu modo próprio de organizar seu espaço, antigo Mato Grosso. Dessa forma, a mão-
de-obra Terena está presente em vários
de organizar sua rede familiar, de organizar
suas roças e de criar seu gado, seu modo empreendimentos dessa região, tais como:

de realizar seus rituais, festas e danças, seu as Linhas Telegráficas, a Estrada de Ferro
modo próprio de organizar suas crenças, Noroeste do Brasil (NOB), as fazendas de
gado, o extrativismo vegetal, as “changas”,
também tem que dominar os códigos da
sociedade brasileira: os códigos políticos, as empreitas, entre outros (Vargas, 2003;
Moura, 2009).
sociais, jurídicos, econômicos, aos quais está
interligado. Os povos indígenas no Brasil e Na primeira metade do século XX,
no mundo não vivem mais isolados faz muito até a década de 1970, estava colocado
tempo. O movimento indígena está cada para o Estado brasileiro o paulatino
vez mais amplo, interligando os indígenas desaparecimento dos povos indígenas do
internacionalmente. A globalização, bem país. Aos poucos os indígenas iriam se
como todos os seus efeitos também produz integrando e desapareciam suas diferenças e,
riscos para os povos indígenas. portanto, sua identidade étnica. Essa crença
perdeu veracidade quando o Estado percebeu
Tomando como pressuposto o conceito
o crescimento populacional e a organização
de cultura de Roque Laraia (2009), em
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política desses povos. A partir da década de pontos de vista ambiental, cosmológico
1970, os Terena, bem como vários outros e para a reprodução física e cultural da
povos indígenas, começaram a se fortalecer comunidade de taunay-ipegue? tais
politicamente, através do movimento áreas integram o conjunto da ocupação
indígena, bem como das associações originária sobre identificação no processo
internas e externas, com indígenas e não- administrativo iniciado em 1985?
indígenas. Um outro paradigma se estabelece A.1) Em 05.10.1988, os indígenas da
a partir de então e os indígenas erguem as etnia terena da comunidade taunay/
bandeiras da terra, da educação, da saúde ipegue detinham que tipo de apropriação
e da previdência. O governo brasileiro os espacial, de reprodução física e cultural,
reconhece e garante direitos específicos cosmológica e ambiental com as áreas
para os mesmos na Constituição Federal de litigiosas (atuais fazendas Ouro Preto,
1988. é a partir desse reconhecimento que Cristalina e ipanema)?
os povos indígenas planejam suas ações e
Respondida no quesito A do juízo
fazem suas reivindicações. Segundo o ancião
Silvério Francisco, 92, a preocupação com a
necessidade de ampliação começou quando A.2) Qual ou quais as relações foi ou é
a família foi crescendo e não tinha lugar afetada pela ocupação não-indígena?
para pescar e caçar (conforme depoimento
Respondida no quesito A do juízo.
de Silvério Francisco, nº. 25, 22/09/2010).

A.3) Houve esbulho (da posse física ou


terCeira Parte
cartorial)?
Quesitos da funai, 30/08/2010
Houve esbulho de território Terena desde
A) Em 05.10.1988, os indígenas da etnia o século XIX após o término da Guerra
terena da comunidade taunay/ipegue do Paraguai (1864-1870) até o século XX,
detinham que tipo de apropriação quando o Estado titula para militares terras
espacial, de reprodução física e cultural, que estavam dentro do território tradicional
cosmológica e ambiental com as áreas dos Terena, de acordo com o que pode-se
litigiosas (atuais fazendas Ouro Preto, averiguar no texto abaixo.
Cristalina e ipanema)? Qual ou quais as
Os Terena viviam na extensão do rio Miranda
relações foi ou é afetada pela ocupação
e seus afluentes antes da Guerra do Paraguai
não-indígena? Houve esbulho (da posse
(1864-1870), como relata o Frei Mariano
física ou cartorial)? De não indígenas
de Bagnaia, em suas Correspondências com
sobre as referidas áreas? Detalhar.
seus superiores (Sganzerla, 1992). Nesse
Quais os nomes indígenas para as
período, havia entrado em vigor o Regimento
áreas litigiosas? Segundo a cartografia
das Missões (1845) e a Lei de Terras (1850).
indígena, o que representam tais áreas dos
Com a chegada de Bagnaia (missionário
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da Ordem dos Capuchinhos italianos) na fervoroso e apostolico, com eles
Freguesia de Miranda, em 1849, foi fundado teremos aldeas e para o futuro gente
prestavel, sem elles poderemos ter
o primeiro aldeamento Terena dedicado a uma maloca de indios viciosos
São Francisco de Assis, no ano de 1860. No reunidos para proveito de um
ou outro esperto. Por isso antes
entanto, por pouco tempo existiu ali, pois
de haver Missionários e Aldea,
com o desfecho da Guerra do Paraguai toda creada conforme a lei parece-me
a forma de organização existente naquela improficua qualquer outra medida.
(Lata, 1873 A, doc. Avulso, APMT)
localidade desfez-se. Na correspondência (grifo nosso) (apud DGI, in Vargas,
abaixo, pode-se notar a primeira situação 2003: 69) [destaques da assistente
de esbulho do Império brasileiro sobre os técnica]

territórios indígenas de uma forma geral, Após o fim da Guerra em 1870, o governo
bem como dos mencionados Terena. imperial buscava informações acerca das
Em cumprimento do que foi terras do Sul do Mato Grosso e as respostas
exigido por V. Ex.ª em officio n.º recebidas eram que havia extensas áreas de
13 de 30 do mês proximo passado,
tenho a honra de apresentar a V. terras devolutas, pois nenhum aldeamento
Ex.ª os dous inclusos mappas, que ali existia. No entanto, algumas lideranças
contêm as informações de que trata
Terena continuavam pleiteando junto ao
o mesmo officio, cumprindo-me
accrescentar; 1º que são devolutas governo brasileiro suas terras. Foi o caso do
as terras em que existem os capitão Vitorino, no ano de 1871 e do capitão
índios mencionados nos ditos
mappas não se podendo por isso josé Caetano:
calcular sua extensão; 2º que não Em 1871, o Capitão Vitorino foi,
havendo aldeamentos propriamente vestido de alferes, juntamente com
ditos creados com a regularidade e outros índios Terena, até Cuiabá,
pessoal de que trata o Regulamento solicitar da Diretoria dos Índios,
de 24 de julho de 1845 não é possível órgão responsável para garantir
saber se nem aproximadamente o e proteger os seus direitos, que
numero de indios que os habitão; tomasse providência diante da
3º que com excepção dos índios situação em que se encontrava o
laianas e terenas do distrito de território que compunha a referida
Miranda e dos Caiapós de S. Ana aldeia, invadido por não índios
do Paranahyba e de Herculania, que não permitiam que os mesmos
os quais prestão algum serviço ali permanecessem, resultando
ajustando-se como camaradas na sua desterritorialização. E
toda as mais nações vivem no três anos depois, esse índio e os
estado barbaro, posto que de demais Terena mudaram-se para
vez em quando tenhão comnosco outra região próxima dali, no lugar
alguma communicação; 4º que denominado Brejão, dando início ao
nenhuma industria exercem e seu processo de territorialização,
por isso é nullo o producto da que se estendeu até meados do
mesma industria; 5º finalmente século XX. (apud Vargas, 2003:
que nenhum Missionario ou Padre 130)
existe na Provincia empregado na
catechese A medida mais urgente Requerimento pessoal do Terena Capitão
que exige a catechese é a remessa josé Caetano:
de bons Missionarios de zelo
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[...] A cerca do indio da tribu Terena, de sua tribu, formou uma pequena
de nome josé Caetano [...] é que o colonia, para a qual mais esta vez
dito índio com mais alguns da sua peço toda a proteção, attendendo
tribo, em numero de 17, procurou- [...] vantagens que d’ella resulta ao
me para representar que era filho Distrito de Miranda, não só quanto
do fallecido Pedro Tavares, capitão ao augmento de população, como
da aldêa do Ipégue, no districto na civilização dos mesmos índios.
de Miranda, e seo substituto, que (Lata, 1878 A, doc. Avulso, APMT
por ocasião da invasão paraguaya apud Vargas, 2003: 71)
não só a sua tribu, como todas
as outras e mais habitantes do Apesar das táticas de negociação dos
districto abandonarão os seos lares capitães Terena, os anos que se seguiram
e retirarão-se para os montes e
foram difíceis para seu povo. Entre os anos
bosques, onde permanecerão por 6
annos, que ultimamente voltando de 1891 e 1904 a política global de Estado
os moradores a reocuparem os na região do Pantanal vai praticamente
seos domicilios, elles Terenas
encontrarão a sua aldêa do Ipégue suprimir a política de catequese, vigorando
ocupada por Simplicio Tavares, o choque frontal entre índios, fazendeiros e
por Antonio Maria Piche, o qual colonos, do que resulta a expropriação quase
lhes obsta a repovoarem e labrarem
suas antigas terras e de seos total das terras indígenas e um verdadeiro
antepassados; pelo que vinhão etnocídio (Ferreira, 2007). No sul de Mato
pedir providencias para não serem
Grosso nesse período títulos de propriedade
esbulhados de suas propriedades
das quais não podião desprender- foram expedidos pelo Estado do Mato
se um outro índio da mesma tribu Grosso para militares e civis. Naquele
de nome Victorino, que farda-
contexto, que a segurança da região era feita
se como Alferes, e pertence a
aldêa do Nachedache, distante da pelos próprios fazendeiros-coronéis e que o
Ipegue uma legoa, fez-me igual próprio Governador desconhecia os direitos
reclamação. (Doc. 1871, p. 79v 80
– Livro n.º 191, 1860-1873, APMT) indígenas, os Terena não tinham a quem
(apud Vargas, 2003: 89) recorrer.

Outros capitães Terena prestavam favores ao O próprio Rondon reconheceu a situação


Estado para cobrar seus direitos tradicionais, de insegurança da parte dos índios em suas
como foi o caso de Alexandre Bueno. correspondências com o governo central. E o
[...] nas proximidades da Villa governo respondeu positivamente, apesar de
de Miranda existem aldeadas ter demarcado apenas algumas das aldeias
diversas tribus de índios que
posto tenhão connosco relações que foram listadas. Nache-Dache, uma das
vivem todavia sobre si e a seo mais antigas, tornou-se propriedade privada,
modo, sob a direção do prestante bem como Agachy e Capelinha.
incansavel indio [Terena] Capitão
Alexandre Bueno, que relevantes Sendo de toda a conveniencia que
serviços tem prestado a catechese, seja estremada do domínio publico
indo pessoalmente a aldea dos e particular, por meio de medição e
Enimas, nas immediações da Bahia demarcação a porção de território
negra, onde conseguio por meios occupada pelos indios mansos
suasórios deslocar e trazer consigo das tribus – “Terena, Guaycurú
321 indios, com os quaes, e com os e quinquináos que habitam as
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aldeias denominadas Capelinha, Aquella aldeia fôra visitada em
nache-dache, agachy, Ipegue e 1866 por Taunay. (Horta Barbosa,
Lalima”nesta comarca, evitando-se 1924: 10 apud Vargas, 2003: 90)
assim a continuação de abusos, que
já se tem dado de si legitimarem O assentamento indígena Capelinha também
como de propriedade particular, foi extinto, pois os indígenas que o habitavam
terras devolutas comprehendidas
foram expulsos pelo fazendeiro.
na área utilizada pelos indios com
criações e plantações por isso e em Este aldeamento de indios
qualidade de legitimo representante quiniquináus está quasi extincto
dos mesmos indios, venho solicitar por terem os índios perdido aquellas
a V. Exª a necessaria autorisação terras que foram adquiridas ao
para mandar medir e demarcar as Estado pelo Sr. antonio leopoldo
terras constituidas pelas referidas Pereira mendes, depois de alli ter
aldeias uma vez que eles devem ter tocado os índios em 1908, mais
uma porção de território para o seu ou menos. Existem alli uns 15
patrimonio, como prescreve o artº indios que pretendem se mudar
19 da Lei nº 20 de 9 de novembro de para o Posto de Lalima, já tendo
1892, e isto não se pode conseguir muitos delles para alli se mudado,
sem a indispensável medição e [...]. (Relatório para josé Bezerra
demarcação, que poderão ser feitas Cavalcante, 1925, microfilme 379,
pelos agremessor do respectivo fotg. 1609, FUNAI de Brasília
distrito. (Lata, 1902 D, doc. Avulso, apud Vargas, 2003: 92)
APMT apud Vargas, 2003: 91)
No ato de demarcação da Reserva de
As três áreas de assentamento Terena ficaram Ipegue, estavam presentes os fazendeiros
fora do poder dos indígenas e tornaram-se lindeiros, aos quais Rondon questionou
propriedade privada. Inclusive, a origem sobre alguma objeção. Após todo o processo
de algumas das fazendas desta ação dos de demarcação se houvesse algum obstáculo
Autores nasce na fazenda Agachy, que com por parte dos fazendeiros estes ainda seriam
certeza guarda relação direta com as aldeias ouvidos pelo militar.
acima destacadas. Entretanto, a política à
As nove horas da manha do dia vinte
época, foi de reservar terras descontínuas e sete de Setembro do anno de mil
para os Terena, que limitariam com as novecentos e cinco, decimo septimo
da Republica, no lugar denominado
terras dos novos fazendeiros constituídos “Bananal” os presentes cidadãos
titulados pelo Estado do Mato Grosso. O Major d’Engenheiros Candido
próprio Horta Barbosa, auxiliar de Rondon Mariano da Silva Rondon; Coronel
manuel antonio de Barros como
no processo demarcatório, revela o esbulho Director dos Indios Terenas, Terente
cartorial produzido pelo Estado. Coronel estevão alves Correa
e tenente francisco Pereira
já antes, em 20 de março de 1883,
mendes confinantes da Aldeia do
o Diretor dos Indios das Aldeias do
Ipegue e ausente o Coronel jozé
município de “Miranda”, Antonio
Alves Correa, digo, Jozé Alves
Xavier Castello, o nomeará [Capitão
ribeiro também confinante (...)
Vitorino] para chefe da Aldeia
nenhum dos cidadãos prezentes
“Naxe Daxe”, que infelizmente foi
allegou razões contra a medição e
depois invadida e demarcada para
demarcação da Aldeia do Ipegue,
fazenda de particular, como si isso
de que aquelle Engenheiro foi
não constituisse uma iniquidade!
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encarregado pelo governo Requeremos a sua anexação ao juiz
estadual. E declararão ainda que e pagamos o valor do excesso por
nenhum protesto terião a fazer mandato judicial. Não houve uma
uma vez que fossem respeitados grilagem de terra, como acusam os
os limites traçados no terreno para inimigos político do Fragelli [genro
as suas terras na parte em que do Coronel jozé Alves Ribeiro, que
estas confinão com as pertencentes foi Governador de Mato Grosso em
a Aldeia do Ipegue segundo os 1970]. Como se prova por títulos,
documentos que apresentarão. essas terras pertencem à fazenda
(Horta Barbosa, 1905: 27, Proc. Taboco desde o Império. Temos
0981/82 FUNAI Brasília apud a sua posse, mansa e pacífica,
VARGAS, 2003: 920 [grifos da delimitada pelos acidentes naturais
assistente técnica] – Rio Negro, rio Taboco e serra de
Maracaju. (Ribeiro, 1984: 65-66)
No livro de memórias da fazenda Taboco,
intitulado Taboco: 150 anos – Balaio de A historiadora Vera Lúcia Vargas (2003),
Recordações, escrito por Renato Alves cujo texto tem alicerçado esse parecer por
Ribeiro, filho do Coronel Jozé Alves conter inúmeros documentos comprovando
Ribeiro, o autor descreve como foi que seu a situação de esbulho do território Terena,
avô, o Coronel jejé, legalizou seu título de afirma:
propriedade: [...] documentos evidenciaram
também que muitos Terena
O Coronel jejé era um homem abandonaram algumas de suas
pequeno e claro, de olhos quase antigas aldeias, juntando-se
azuis e que tinha muita ação e em outras maiores como forma
energia. Era progressista e em de se protegerem da violência
1918 foi acometido de uma artrose dos fazendeiros, as quais eram
crônica, ficando paralítico. [...] Não obrigados a vivenciar, como a
quis usufruir do direito de posse destruição de suas roças, a invasão
de suas terras. Em 1895 mandou o de suas terras e a matança de seu
engenheiro francês Emílio Rivassau gado. ”Despertaram elles, porém,
medir toda a fazenda e a legalizou quando os intrusos providenciaram
pagando a sua área ao Estado. Eram sobre as demarcações, precedidas
334.024 hectares, fora o excesso alias de um período em que os
que se verificou mais tarde, em indios foram preseguidos em suas
medições sucessivas. Medindo roças, onde soltavam aquelles as
a parte norte da fazenda Taboco, suas criações; ameaçando em suas
verificou-se depois mais de 32 mil vidas, accusados de vicios e crimes
hectares. Isso, naturalmente, porque que nunca haviam commetido, etc.;
com o valor que as terras têm hoje, tudo (...) preparativo da espoliação
foi medida toda a parte alagada do prestes a effectivar-se. (Horta
rio Negro, que constitui um enorme Barbosa, 1927: 267 apud Vargas,
banhado de difícil acesso. Naquele 2003: 93)
tempo, o engenheiro, o engenheiro
media beirando a margem do Tal como descreveu Silvério Francisco, 92,
brejo e hoje essa medição foi feita
em seu depoimento destacado anteriormente,
no leito do rio, bem no centro do
alagado. Hoje mediu-se a serra até a década de mais ou menos 1970 tudo
pela sua cumeada e naquele tempo ao redor da Terra Indígena Taunay/Ipegue
era margeando, o que também
resultava em números imprecisos.
era mata. Portanto, os Terena não tiveram

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nenhuma preocupação em reivindicar, para a reprodução física e cultural da
pois continuavam desfrutando da área do comunidade de taunay-ipegue?
entorno. Foi somente após o cercamento e o Conforme a resposta do quesito A.3, a
impedimento pelos fazendeiros dos mesmos perda de mobilidade nas áreas das fazendas
transitarem para caçar, pescar, coletar e Ouro Preto e Cristalina representou para
se banhar nas vazantes e córregos das os Terena perda de parte de seu território
áreas das fazendas é que vieram perceber tradicional, no qual produziam coletas, caça,
a perda desse território. O mesmo foi dito pesca, diversão e rituais sagrados (visita ao
pelo ex-cacique Evandir da Silva, pois sua cemitério Terena na sede da Pokoó). Além
família e os demais Terena só perceberam do que tem intervenções que só poderão ser
o confinamento quando a viúva de Antônio revistas com muitos anos, como é o caso da
Bueno vendeu a fazenda Pokoó. Após o vegetação nativa que recobria as nascentes
cercamento e a proibição pelos fazendeiros e as vazantes, que abrigava o guaviral, o
dos Terena entrarem em suas terras é que os araçazal e outros frutos. A maior parte do
mesmos perderam a mobilidade física nas solo das fazendas foi transformada em área
fazendas do entorno. Perderam também a de pastagem com a intervenção humana.
possibilidade de continuar cultuando seus Fechando-se em sua ilha de 6.000 hectares
mortos, continuar coletando frutos silvestres os Terena não têm os elementos necessários
que a natureza oferecia (guavira, jabuticaba, para reproduzir seu modo de ser e existir. As
goiaba, entre outros), continuar caçando, demais perdas são reparáveis, mesmo que
pescando e divertindo-se nas águas que antes demore anos, mas a conhecimento indígena,
eram abundantes. Foram perdas culturais, repassado pelos mais velhos aos mais
cosmológicas, sociais e religiosas. novos através da oralidade e da vivência
comunitária, da qual se afastam os jovens
que vão trabalhar e estudar longe de suas
a.4) Houve esbulho de não indígenas sob
famílias são irreversíveis.
as referidas áreas? Detalhar.

Respondido no quesito A.3.


A.7) Tais áreas integram o conjunto da
ocupação originária sobre identificação
A.5) Quais os nomes indígenas para as no processo administrativo iniciado em
áreas litigiosas? 1985?
A fazenda Cristalina é denominda Pokoó Essas áreas integram o conjunto da
pelos Terena. ocupação originária requerida no processo
administrativo iniciado em 1985.

A.6) Segundo a cartografia indígena, o


que representam tais áreas dos pontos B) Há vestígios da cultura material indígena
de vista ambiental, cosmológico e nas referidas áreas? Sendo inexistente, a
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que se pode atribuir seu desaparecimento? sempre muito animadas (depoimento de
Qual a linha de continuidade etno- Evandir Silva, nº 21, 22/09/2010). Os Terena
histórica e antropológica entre a atual católicos tinham o hábito de construir
ocupação indígena e aquela anterior a cemitério com Cruzeiro e cultuar seus mortos
05.10.1988? Por que motivo a anterior no Dia de Finados. Além dos católicos, havia
ocupação indígena não coincide com a ainda os Terena crentes, principalmente na
atual? a cultura imaterial da Comunidade Aldeia Bananal. O protestantismo de missão
indígena de taunay-ipegue nos dias atuais entrou na Terra Indígena Taunay/Ipegue em
leva em conta as áreas litigiosas? 1913, através da Inland South American
B.1) Há vestígios da cultura material Mission (ISAMU) e lá permaneceu até 1993.
indígena nas referidas áreas? Os Terena organizaram sua própria missão
evangélica, a Missão Indígena UNIEDAS
Respondido no quesito do juízo.
– MIU, fundada em 1972 por missionários
estrangeiros e por pastores Terena, formados
B.2) sendo inexistente, a que se pode nos Institutos Bíblicos. Com isso, pretende-
atribuir seu desaparecimento? se demonstrar que é muito comum ser
encontrado em assentamentos terena
O cemitério Terena da sede da fazenda
cemitério com Cruzeiro e cruzes, como foi
Cristalina, mencionado no quesito da juíza,
apontado na sede da fazenda Pokoó, pelo
foi destruído pelo fazendeiro josé Lippi, sob
Cacique jurandir Lemes (Moura, 2001 e
a alegação de que os Terena não visitavam
2009).
seus mortos. Os Terena se consideram
cristãos desde o século XIX, quando foram Outra situação de desaparecimento foi
aldeados pelo Frei Capuchinho italiano a do guaviral que existia na mata da
Mariano de Bagnaia. Naquele contexto, fazenda Pokoó (Cristalina), para onde os
muitos se converteram ao cristianismo Terena se deslocavam entre os meses de
católico e passaram a festejar santos, tais novembro e dezembro para coletar a fruta.
como São Sebastião, São joão, São Pedro O desmatamento para a formação de pastos
e Santo Antônio e levantar suas bandeiras. acabou com o mesmo.
quando Paulina jatobá estava viva festejava As novas construções que tomaram o lugar
São Sebastião. Segundo seu sobrinho, o das antigas, também apagaram os vestígios
ex-cacique Evandir da Silva, havia muita das construções terena. Exemplos disso
diversão e churrasco à vontade, no dia 20 de são os mangueiros novos e as novas casas.
janeiro, dia do santo. Todo mundo participava Juntamente com as velhas construções
junto na casa da festeira de São Sebastião, desapareceram o pomar de laranja, manga e
esposa do fazendeiro Antônio Bueno. Outros araçá, de acordo com as observações feitas
Terena como o Nazário, Estevão e o finado pelo Cacique jurandir Lemes durante a
Inácio também foram citados por Evandir Inspeção.
como festeiros de santos. As festas eram
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B.3) Qual a linha de continuidade etno- que lutam pela ampliação de seu território.
histórica e antropológica entre a atual Por isso, esse momento de luta é mais uma
ocupação indígena e aquela anterior a situação de aprendizagem para as crianças
05.10.1988? Terena que no futuro ajudarão seu povo a se
Fica estampado no rosto dos Terena a perda organizar e a fortalecer sua identidade étnica.
de seus lugares de coleta de frutas silvestres
(guavira, jabuticaba e goiaba, entre outras),
B.4) Por que motivo a anterior ocupação
de seus lugares de caçada e pescaria, bem
indígena não coincide com a atual?
como seus lugares sagrados de culto aos
mortos (cemitério de Pokoó). Todavia, apesar Respondida no quesito do juízo sobre
de todos os impedimentos, cercas, vazantes o esbulho produzido pelos fazendeiros,
e nascentes degradadas e secas, os indígenas legitimado e legalizado pelo Estado de Mato
desse povo continuam ultrapassando os Grosso.
obstáculos para pescar nas áreas da fazenda.
A memória terena reconstitui o fio de
B.5) A cultura imaterial da Comunidade
continuidade etno-histórica, cuja história é
indígena de taunay-ipegue nos dias
reproduzida na vida comunitária de pais para
atuais leva em conta as áreas litigiosas?
filhos. Um exemplo é a história da Lagoa do
Cal. Em situação de trabalho de campo ouvi Respondido no quesito da FUNAI B.3.
várias lideranças relatarem essa história.
Segundo contam, Horta Barbosa traçou a
C) As interferências humanas nas áreas
linha da divisa no meio de uma lagoa grande
litigiosas são de molde a impossibilitar
utilizando o cal como matéria-prima. Conta
a ocupação tradicional indígena da
os anciãos que até hoje se cavar no local se
Comunidade de taunay-ipegue? Qual
encontra esse elemento mineral – o cal. Todas
o atual modo de apropriação espacial
as lideranças das aldeias, supostamente,
e de produção de bens dos indígenas da
conhecem a localização da referida lagoa.
Comunidade terena de taunay-ipegue?
A memória guardada por cada ancião e
A reprodução física e cultural dos
repassada aos mais velhos é o principal meio
indígenas da Comunidade taunay-ipegue
de transmissão dos conhecimentos indígenas.
sofreu influência do modo de produção
quando morre um ancião, os professores
regional? Em caso positivo, que influencia
dizem que se perde uma enciclopédia.
é esta? Em que medida o atual modo de
Taunay/Ipegue na atualidade tem 105 produção de bens culturais e materiais da
anos de demarcação e muitos dos Terena comunidade taunay-ipegue, segundo sua
vivos acompanharam presencialmente as visão de mundo (mundividência) e seus
mudanças pelas quais passaram as paisagens usos, costumes e tradições, possui traços
internas e externas a essa Terra Indígena. dessa influência?
Muitos fatos foram vividos por essas pessoas
C.1) As interferências humanas nas áreas
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litigiosas são de molde a impossibilitar
a ocupação tradicional indígena da
C.2) Qual o atual modo de apropriação
Comunidade de taunay-ipegue?
espacial e de produção de bens dos
Afirmamos nos demais quesitos, que algumas indígenas da Comunidade terena de
interferências humanas foram desastrosas taunay-ipegue?
para o modo de ser e de existir Terena.
Os Terena mais instruídos nos códigos
Por exemplo, destacamos a devastação do
brasileiros procuram participar e disputar
cerrado que produzia guavira, jabuticaba,
espaços sócio-políticos internos às suas Terras
bocaiúva, goiaba doce e goiaba araçá, frutas
Indígenas com os membros da sociedade
das quais se alimentavam os indígenas. Além
nacional com quem estão em contato
do alimento, essas coletas proporcionavam
permanente. Fazem questão de possuir os
a sociabilidade entre os indígenas que se
documentos indígenas e os documentos
organizavam em grupos para realizar a
brasileiros: Carteira de Identidade Indígena
incursão. O desmatamento produziu o recuo
da FUNAI, Carteira de Identidade, CPF,
dos animais de caça para outros lugares, bem
Título de Eleitor e Certidão de Reservista.
como contribuiu para o desaparecimento dos
O conhecimento dos padrões culturais terena
cursos de água (córregos, vazantes, minas).
e brasileiros e de seus respectivos espaços
Os Terena estão sendo confinados em sua
sócio-políticos qualifica as lideranças Terena,
área de 6.000 ha e têm que reorganizar todo
interna e externamente às suas aldeias, a
o seu modo de conviver uns com os outros
conquistar espaços políticos. Atualmente,
e com a natureza. Buscam refletir sobre as
os indígenas estão presentes e atuantes em
queimadas, apesar de ainda ser uma técnica
vários espaços sócio-políticos nas aldeias
usada por algumas famílias e os caciques tem
e nas cidades próximas àquelas: hospitais,
que respeitar as mesmas. Buscam inovações
postos de saúde, polícia militar, exército,
tecnológicas para tornar suas pequenas
aeronáutica, escolas municipais e estaduais,
áreas mais produtivas. Buscam parcerias,
universidades, administrações regionais e
além da FUNASA, para cavar novos poços
locais da FUNAI, entre outros.
artesianos para abastecer suas comunidades,
principalmente na época da seca. Buscam Esses indivíduos têm consciência de
soluções para conviver com o crescimento pertencer a uma minoria étnica, com
populacional em suas aldeias. Enfim, muitas padrões culturais distintos; entretanto,
alterações estão sendo feitas para que possam sentem necessidade de conquistar espaços
se arranjar no diminuto território que lhes interculturais, fora de suas fronteiras, uma
restou. Sem a ampliação da área os Terena vez que suas Terras Indígenas estão cada
serão paulatinamente coagidos e confinados vez mais limitadas produtivamente e sua
a sobreviver nas suas “ilhas” rodeadas por população aumentando significativamente.
cercas, pastos e guardiões da propriedade Na década de 1980, a exemplo de outras
privada. etnias indígenas no Brasil, iniciaram várias
frentes de luta com o objetivo de ampliar
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suas Terras Indígenas. Suas tentativas doada pelo governo estadual (Isaac, 2004).
objetivam recuperar parte das áreas no E no estado de São Paulo estão nas Terras
entorno de suas aldeias, nas quais sempre Indígenas de Vanuíre e Icatu (Assis, 1979).
estiveram presentes através de incursões
Em Mato Grosso do Sul, os Terena produziram
para desenvolver atividades de caça, pesca,
duas modalidades de aldeamento: urbano e o
coleta de frutos silvestres, ou mesmo realizar
rural. Estamos designando aldeamento rural
seus rituais (Eremites de Oliveira & Pereira, as Terras Indígenas e aldeamentos urbanos
2003; Azanha, 2004; Isaac, 2004). as “aldeias” ou “bairros” localizadas nas
Vejamos alguns dados atuais sobre essa cidades. Os aldeados em áreas urbanas estão
etnia, cuja maioria populacional localiza-se organizados em Campo Grande, capital
atualmente no Estado de Mato Grosso do Sul, do estado (Aldeia Marçal de Souza e mais
para conhecermos suas criativas estratégias outras quatro), no município de Anastácio
para preservar sua identidade étnica e ao (na Aldeia Aldeinha)1 e em Sidrolândia
mesmo tempo inserir-se nos espaços sócio- (Aldeia Tereré). Todavia, é importante
políticos da sociedade brasileira. salientar que a mobilidade de indivíduos
e famílias Terena no território brasileiro é
intensa, ao ponto de nos depararmos com
O Crescimento demográfico e a luta pela
indivíduos dessa etnia em vários estados do
ampliação das terras indígenas país. Talvez possamos afirmar que os atuais
A população indígena no estado do Mato Terena são o resultado de vários encontros
Grosso do Sul é a segunda maior do entre os povos Aruak e outros grupos étnicos
Brasil, só perdendo para o Amazonas. São indígenas e não-indígenas e sua etnicidade
aproximadamente cinquenta e três mil é um construto resultante desses diversos
indígenas, sendo que os Terena estão em contatos. Contudo, alguns elementos ainda
torno dos vinte mil habitantes (FUNASA, os identificam com a família linguística
2008). O povo Terena está distribuído em Aruak, principalmente a característica de
índios aldeados e não-aldeados. Os aldeados abertura para a exterioridade e a diplomacia.
vivem em Terras Indígenas reconhecidas Na Terra Indígena de Taunay/Ipegue,
pelo estado nos municípios de Aquidauana,
a população geral totaliza quatro mil
Anastácio, Miranda, Dois Irmãos do Buriti,
setecentos e vinte e quatro (4.161) habitantes
Sidrolândia, Dourados, Nioaque e Porto
(FUNASA, 2010)2. As aldeias são atendidas
Murtinho, em Mato Grosso do Sul; além 1 Aldeinha é a primeira aldeia urbana do Brasil. Em
de duas aldeias no estado de São Paulo e 1933 foi fundada por um grupo de Terena que se deslocavam
da Aldeia de Buriti para a Aldeia de Cachoeirinha devido a
uma em Mato Grosso, conforme os mapas conflitos internos. Em 1965, com a criação do município de
Anastácio (antiga Margem Esquerda do Rio Aquidauana,
apresentados no início do texto e nos anexos município homônimo ao rio), a Aldeia fora impactada pelo
processo de urbanização. Em 1986, sentindo-se ameaçados pela
(constantes na versão original do relatório possibilidade de desterritorialização, os Terena se organizaram
entregue à Justiça Federal). No estado de aos moldes de uma aldeia rural (Moura, 1994).
2 O banco de dados da FUNASA é uma importante fonte
Mato Grosso situam-se numa Terra Indígena de pesquisa. Em cada unidade de saúde instalada nas aldeias
consta uma pasta documental de cada família indígena na qual
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por dois Postos Indígenas da FUNAI. Sob os Sini), ao qual nos reportamos acima, e
auspícios do Posto Indígena de Taunay estão Manoel Pedro, seu substituto, permaneceram
as aldeias Bananal, Lagoinha, água Branca, no poder até sua morte. Entre os demais
Morrinho e Imbirussú, enquanto o Posto que ficaram por mais tempo na liderança
Indígena de Ipegue atende as aldeias Ipegue destacaram-se Marcolino wolili (Kayánae),
e Colônia Nova. vinte anos e Tibúrcio Francisco, por dez
anos. Os outros caciques ficaram de um a
cinco anos3. A Aldeia Bananal é a sede do
aldeia Bananal
Posto Indígena Taunay, cuja denominação é
Bananal (Pânana) sempre foi a Aldeia homônima a do distrito Taunay, no qual se
modelo do Estado brasileiro, principalmente instalara a estação da Empresa Ferroviária
na década de 1970, durante a ditadura Noroeste do Brasil (NOB), atualmente
militar. Esse nome lhe foi dado por ter Novoeste. Teria sido daquela Aldeia que
sido encontrada naquela região a bananeira saíram algumas famílias Terena, na década
nativa, até então desconhecida dos Terena de 1930, para a reserva (Terra Indígena) de
(Itatane Vapeyea, 1990: 33). De acordo com Dourados.
Altenfelder Silva (1949) e Vargas (2003),
Os Terena foram tidos como os civilizados
o primeiro capitão (cacique) de Bananal,
e civilizadores de outras etnias pelo Estado
reconhecido pelo SPI, foi o índio Manoel
brasileiro, durante todo o século XX. No
Pedro. Manoel Pedro chefiava a aldeia
período da ditadura militar, os Terena de
desde o período anterior à passagem de
Bananal receberam iluminação elétrica.
Rondon e sua comitiva. Em 1905, o general
Sua população era reconhecida, pelo
Rondon juntamente com o capitão demarcou
governo federal, como exemplo para as
oficialmente as terras da referida Aldeia. A
demais etnias. é perceptível o destaque
mesma versão é recorrente entre os anciãos
populacional de Bananal e Ipegue em relação
habitantes na Terra Indígena, embora
às demais aldeias. Podemos dizer que são
tenhamos recebido do ex-cacique Manoel de
as principais aldeias da respectiva Terra
Souza Coelho uma listagem de caciques que
administraram a aldeia desde o ano de 1887. 3 Registrado aqui tal como está na íntegra: 1º José Caetano
Tavares (Kali Sini) – até a morte; 2º Manoel Pedro (Manu’e) – até
A lista está dividida em caciques escolhidos a morte; 3º João Vitorino – pouco tempo; 4º Imbilino Candido
– pouco tempo; 5º Paulo Marques Lili (Kápava) – 1 ano; 6º
na Tradição Indígena e os escolhidos através Antonio Lili (Ropópe) – 1 ano; 7º Marcolino Volili (Kayánae)
– 20 anos; 8º Antonio Aurélio Marcos (Vêeti) - 5 anos; 9º Paulo
da eleição. Todavia, a listagem contém os Miguel (Son-boúlu) – 1 ano; 10º José da Silva (Karápatu) –
nomes e quantos anos o cacique liderou a 1 ano; 11º Antonio Vicente (Pikihi) – 1 ano; 12º Tibúrcio
Francisco – 10 anos; 13º Olimpio Francisco – serviu pouco
comunidade, mas não identifica os anos de tempo; 14º Bertolino Pereira – pouco tempo; 15º Bonifácio
Hortêncio (Buni) – pouco tempo; 16º Modesto Pereira (Umbu)
sua administração. – 1 ano. Foi o primeiro Cacique eleito; 17º Felix Pio – 1 ano e
2 meses; 18º Celso Fialho – 4 anos; 19º Enedino Silva (Bolão)
Da lista apenas josé Caetano Tavares (Kali- – 4 anos; 20º Manoel de Souza Coelho – 3 anos; 21º Maurício
Candido (Itinho) – 4 anos; 22º Arilson Candido (Gordo) – 4
são anotados cotidianamente óbitos e nascimentos. Todas as anos; 23º Carlos Hortêncio (Carlinhos) – atual Cacique eleito
aldeias têm uma unidade de saúde. Os agentes residentes nas em 2007. Documento organizado por Manoel de Souza Coelho,
aldeias são indígenas. As equipes médica e odontológica são datilografado até o vigésimo Cacique e complementado até a
volantes. atualidade no dia 15 de janeiro de 2008.
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Indígena, por serem as mais antigas e por permanecer na universidade e, depois de
sediar as representações locais da FUNAI. formados, assumirem as aulas nas aldeias. O
Entretanto, cada Aldeia é autônoma, em grande desafio, segundo os informantes, não
nada dependendo das demais. é concorrer ao vestibular, mas assegurar as
mínimas condições de moradia, alimentação,
A Aldeia Bananal está dividida
vestimentas e materiais escolares para
geograficamente em vilas – Vila Sobrinho,
Vila Mariano, Vila jaraguá e Centro –, a conclusão do curso. Algumas famílias
assemelhando-se aos padrões arquitetônicos que passaram pela experiência dizem não
ser possível para a maioria das famílias
da cidade de Aquidauana. As famílias,
assegurarem um curso universitário aos seus
pelo que observamos, estão distribuídas
membros. Dessa forma, adia-se cada vez mais
em espaços circunscritos nas vilas. De
acordo com a Planta da Aldeia, desenhada o sonho de ter um quadro majoritariamente
pelos professores indígenas, cada espaço indígena nas escolas das aldeias.
está devidamente marcado pelos prédios O Posto Indígena está também situado no
públicos. Entre as residências, em sua centro da Aldeia, quase em frente à Escola
maioria de alvenaria, destacam-se os prédios Municipal e bem próximo ao Posto de Saúde.
da Escola Municipal Marechal Rondon, o O chefe do posto do órgão indigenista,
Posto Indígena Visconde de Taunay, o Posto atualmente denominado Representante
de Saúde, a Rádio Comunitária e as igrejas Local da FUNAI, é um funcionário Terena,
cristãs. remunerado por esse órgão, que intermedia
as negociações entre as aldeias circunscritas
A escola oferece a educação básica
completa e a maioria dos indígenas em em sua área de atuação e registra a parte

idade escolar a frequentam e concluem os escriturária de cada unidade política na


estudos. Os professores das séries iniciais Terra Indígena. Os registros de óbitos,

(as quatro primeiras séries do antigo ensino nascimentos, autorizações para abertura e
funcionamento de igrejas, autorizações para
fundamental) são indígenas e desenvolvem,
os deslocamentos Terena das aldeias e toda
da maneira que podem, uma educação
bilíngue. Os professores das demais séries a documentação recebida e enviada fica ali
arquivada. Segundo os caciques, o chefe
são na sua maioria não-índios. Os últimos
é um funcionário do governo, enquanto a
deslocam-se da cidade de Aquidauana ainda
liderança de fato e de direito é exercida por
de madrugada para cumprir o expediente, ou
eles em cada uma das suas aldeias. Essas
seja, a partir das sete horas da manhã (7h).
Tomam a Kombi por volta de 04h30min. aldeias são construções terena e nascem a
para chegarem no horário. Voltam ao final partir da vontade política de suas lideranças.
do expediente do turno vespertino. Os Os caciques são eleitos para um mandato
professores indígenas ressaltaram que a de quatro anos através de eleição direta.
situação só mudará quando alunos indígenas Os eleitores são todos os Terena aptos às
passarem no vestibular, conseguirem eleições da sociedade brasileira. Um dos
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documentos apresentados é a Carteira garanti-los, desde os anos de 1970. Através de
Indígena da FUNAI. Nas últimas eleições suas associações, constituídas para adquirir
em Bananal a disputa foi acirrada e o conhecimento e controle sobre as doenças e
cacique eleito – Arilson Cândido – ganhou agravos de maior impacto sobre sua saúde
por um voto de diferença de seus opositores. deram origem a processos locais e regionais
Essa disputa, pelo que observamos, divide de capacitação de agentes indígenas de saúde
muito a aldeia, uma vez que ao se finalizar e/ ou valorização da medicina tradicional
o pleito os candidatos perdedores continuam indígena, com a participação das diversas
fazendo oposição ao cacique eleito. Por sua instituições envolvidas com a assistência da
vez, a liderança tem que aglutinar forças em saúde indígena.
torno de si para desenvolver sua plataforma
A população de Bananal contou com o
política. conhecimento e auxílio para assistência à
O Posto de Saúde (PS) é uma unidade saúde das Irmãs Lauritas, na década de 1990.
administrativa subvencionada pela Essa Congregação ligada à Igreja Católica
FUNASA/Missão Evangélica Caiuá. A ainda hoje é lembrada pelas lideranças. De
estrutura do serviço de saúde da Aldeia acordo com Pires (2005), o cacique Enedino
Bananal hoje conta com 01 posto de saúde da Silva e o chefe do posto joãozinho da
em prédio improvisado onde são realizados Silva ressaltam, em agosto/1996, através de
os atendimentos médicos e odontológicos, documentos, a grande importância daquela
conta ainda com um aparelho de rádio instituição na área social de evangelização
transmissor integrando-a com o Pólo Base e e saúde, principalmente nos atendimentos
as demais aldeias do município. A estrutura como parturientes. As Irmãs resgataram
de saneamento da Aldeia Bananal conta juntamente com as antigas parteiras e
com dois postos artesianos. No primeiro benzedores (as) o tratamento através das
a vazão é de três mil litros/hora; e o outro ervas medicinais. A principal incentivadora
de sete mil litros/hora. Possui uma rede de era a Irmã Laurita Lucila, atualmente
abastecimento de água de aproximadamente residente em Miranda-MS, autora de dois
cinco mil metros (Pires, 2003). livros sobre medicina natural. A medicina
natural era um recurso amplamente usado
O atendimento à saúde indígena terena nem
pelos xamãs Terena (koixomuneti), portanto
sempre foi assim. Nas décadas anteriores à
havia uma estreita ligação entre o catolicismo
de 1990, muitos indígenas morreram pela
e o xamanismo.
ausência de uma política pública de saúde
para essas populações marginalizadas. A Após muitas discussões em torno da saúde
descontinuidade das ações e a carência indígena brasileira, com ampla participação
de profissionais fizeram com que muitas de várias etnias indígenas, em fevereiro de
comunidades até então alheias ao processo 1991 o Decreto Presidencial nº 23 transferia
de reivindicação de seus direitos se para o Ministério da Saúde a Coordenação
mobilizassem de diversas maneiras para de Saúde do Índio (COSAI), subordinada ao
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Departamento de Operações da Fundação presente na memória do curandeiro Terena
Nacional de Saúde (DEOPE), com Eloy Pereira4:
atribuição de programar um novo modelo Antigamente a aldeia Bananal era
de saúde indígena no país. No mesmo bem abandonado, negócio de saúde,
não existia nenhuma assistência
ano o Conselho Nacional de Saúde (CNS) médica, na época do Serviço de
criou a Comissão Intersetorial de Saúde Proteção ao Índios (S.P.I) Ministério
do Índio (CISI) para assessorar o CNS na da Agricultura. Primeiro médico
que chegou aqui foi a turma do
elaboração de princípios e diretrizes de SUSA, é, que tira chapa do pulmão,
políticas governamentais no campo da saúde né. Aí naquela época do Bananal
já tinha morrido muita gente, não
indígena, inicialmente sem representação
chegava quatrocentos habitantes,
indígena, sendo posteriormente reformulado eu que fazia o levantamento.
e aberto aos indígenas, que ocuparam quatro Como chama? Ah, censo, eu que
fazia; não chegava 400 porque
das onze vagas existentes (Pires, 2003). morria muita gente, quase metade
Desde então a FUNASA e a FUNAI tapera. Assim não tinha mais
gente morador, chegou e achou 78
dividiram a responsabilidade acerca da tuberculoso, o que matava o índio
saúde indígena, executando, cada uma, era Tuberculose, aí procuravam
um voluntário para trabalhar, como
parte das ações de forma fragmentada e
já gostava; porque em 1953 eu fiz
conflituosa. Ambas estabeleceram parcerias curso em Aquidauana, enfermagem.
com os municípios, as organizações Um cursinho, né. Aí como tinha
vontade apresentei voluntário,
indígenas, organizações governamentais trabalhei. Cada tuberculose 90
e não-governamentais (ONGs), as injeções, não me lembro quantos,
universidades e as missões religiosas. Os mais eu sei que 12 comprimidos
dia em 90 dias; aí aqueles 78 índios
convênios celebrados, no entanto, tinham não morreu nenhum, recuperaram
pouca definição de objetivos e metas a serem saúde tudinho. (Igreja UNIEDAS
alcançados e de indicadores de impactos de Bananal, Depoimento de Eloy
Pereira, em 28/01/03, apud Moura,
sobre a saúde da população indígena. Em 2001).
algumas regiões, onde a população indígena
Atualmente, a FUNASA continua fazendo
tem um relacionamento mais estreito com a
a assistência aos Terena. E toda a equipe
população regional, caso dos Terena de Mato
de agentes de saúde é formada por índios
Grosso do Sul, nota-se o aparecimento de
moradores das aldeias. Isso, segundo os
novos problemas de saúde relacionados às
próprios habitantes, facilita o contato que é
mudanças introduzidas no seu modo de vida,
feito por rádio amador com as outras aldeias
especialmente, na alimentação: hipertensão
e com a central em Aquidauana. qualquer
arterial, diabetes, câncer, alcoolismo e a
depressão são problemas frequentes em
4 Eloy Pereira foi auxiliar de enfermagem e atualmente
diversas comunidades (Pires, 2003). está aposentado pela FUNASA. Foi um dos participantes do
grupo de saúde das Irmãs Lauritas e fala em patentear alguns
remédios homeopáticos desenvolvidos juntamente com sua
A lembrança de um passado difícil e de esposa. Terena e evangélico da UNIEDAS, nem por isso deixou
precária assistência à saúde indígena estava de acreditar na eficácia da sabedoria dos antigos no trato com
as plantas curativas.
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emergência “a gente passa rádio para Igreja da União das Igrejas Evangélicas
Aquidauana e vem a ambulância buscar o da América do Sul, Igreja Independente
paciente”, nos informou a atendente Rose Indígena Renovada, Igreja Assembléia de
Luiz, do Posto de Saúde da Aldeia Bananal. Deus e a Igreja Pentecostal Redenção Eterna.
Cada uma dessas Igrejas tem um responsável
Nas aldeias sedes foram implantadas duas
que interage com a comunidade indígena e a
rádios comunitárias, através das quais os
sociedade brasileira.
Terena se informam dos acontecimentos
internos e externos. Nas duas últimas etapas
de trabalho de campo falamos aos ouvintes aldeia ipegue
Terena nas rádios de Bananal e Ipegue. Esse
Ipegue (Ipeakaxoti) é uma das primeiras
contato foi interessante porque ao chegarmos
aldeias que têm sua área demarcada pelo
às casas das lideranças religiosas elas sabiam
engenheiro militar Nicolau Horta Barbosa,
quem nós éramos e alguns dos objetivos de
sob ordens do general Cândido Mariano
nossa pesquisa. Esse é mais um dos recursos
Rondon, em 1905. Seu nome significa “ninhal
não-indígenas apropriados e adequados às
onde as aves estão trocando suas penas”,
necessidades das aldeias. Um dos objetivos
segundo o Professor jonas Gomes (Itatane
das rádios é servir como instrumento de
Vapeyea, 1990:27). A aldeia encontra-se
potencialização das vozes Terena, desde
circundada pelas fazendas vizinhas ao leste,
o cacique ao ouvinte que mora no final
norte e oeste. Ao sul, faz divisa com a aldeia
da aldeia, distante do centro. Segundo os
Bananal. Documentalmente, toda a área
indígenas, a programação da rádio vem ao
demarcada, no início do século passado,
encontro dos anseios da comunidade e é
denominava-se Ipegue. Todavia, a criação de
uma forma de ampliar a interação entre os
novos espaços geográficos e administrativos
moradores. No entanto, se cada aldeia tiver
é uma constante entre os Terena.
a sua rádio comunitária, ela deixará de ser
uma ferramenta para integrar as aldeias dessa Pelo exposto, poderíamos deduzir que a
área indígena, pois cada uma vai ter a sua Aldeia Bananal não existia. Entretanto,
programação específica acessível somente nos relatos Terena, Bananal existiu desde
para aquela localidade. Percebemos que há o século XIX. O fato é que os habitantes
uma concorrência entre as aldeias no sentido indígenas de Bananal só reivindicaram o
de aparelhar-se para oferecer o melhor para status de aldeia quando o SPI começou a
sua comunidade. Isto é interessante porque política de instalação dos Postos Indígenas
fomenta a ampliação de benefícios, mas em 1918. Até então não achavam necessário
ao mesmo tempo, obstrui a comunicação e elevar uma administração à parte de Ipegue,
integração do povo Terena. conforme ouvimos deles mesmos. Só no
século XX tomaram essa medida, exigindo
Cada aldeia Terena tem o seu conjunto
inclusive um Posto Indígena na Aldeia
de igrejas cristãs. Em Bananal são cinco
Bananal. Ipegue, sob a administração
igrejas: Igreja Católica do Sagrado Coração,
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do Capitão Tavares5, fora reconhecida no Centro, na Rua Principal. Tal como em
por Rondon como a sede da Reserva. Bananal, a Escola Municipal Feliciano Pio
Atualmente essa posição é ocupada por oferece a Educação Básica e a Educação
Bananal, que se tornou a aldeia referência. Infantil.
Os que desconhecem as denominações A disposição das igrejas cristãs protestantes
oficiais se atrapalham na localização da é a mesma da Aldeia Bananal. Os templos
Terra Indígena Visconde de Taunay/ Ipegue. ficam localizados no terreno doado por
Na visão oficial da FUNAI existe apenas um de seus fundadores, como é o caso da
uma Terra Indígena, mas para os Terena Igreja Filadélfia, Igreja Presbiteriana, Igreja
existem duas. Fomos corrigidos pelo cacique Assembléia de Deus, enquanto a Igreja
de Bananal em 2007, Arilson Candido, que Católica localiza-se no Centro, na Rua
nos advertiu serem duas terras: a de Taunay Principal, desde 1932. Possui os mesmos
e a de Ipegue. A princípio, levantamos a locais públicos e uma população menor. Uma
hipótese que os conflitos religiosos levaram diferença talvez mais acentuada estivesse na
os Terena crentes de Bananal a exigir a menor influência do protestantismo entre os
separação dos católicos de Ipegue, mas ao habitantes dessa última aldeia. Talvez seja
final da pesquisa tendemos a acreditar nas esse um dos motivos da demora ao acesso
disputas estabelecidas entre troncos velhos. à educação escolar de ensino médio em
Ou seja, é uma prerrogativa da organização Ipegue. Os crentes de Bananal frequentavam
social Terena a fundação de novas aldeias e a Escola Evangélica Lourenço Buckman
o surgimento de novas lideranças (Vargas, que, segundo famílias católicas, atendia
2003; Eremites de Oliveira & Pereira, 2003; aos não-crentes que pudessem custeá-la.
Azanha, 2004; Isaac, 2004). Essa instituição era privada e, portanto,
A Aldeia Ipegue não difere muito da Aldeia alguns católicos que se habilitassem a
Bananal. Possui duzentas e nove residências pagar pelo estudo de seus filhos podiam
distribuídas entre as Vilas Baixadão, São acessá-la. Hoje, a Escola Evangélica, cuja
domingos, Carandá, Flores e Centro, sede continua sendo no Distrito de Taunay,
totalizando 944 habitantes (FUNASA, atende somente famílias evangélicas e está
set./2010). Geralmente, as famílias se infra-estruturando para formar os pastores
constituem um núcleo de parentela centrado indígenas de todas as etnias evangelizadas
em torno de um tronco velho aglutinador. Os pelos missionários Terena.
prédios institucionais como a escola, o Posto O protestantismo de missão, cuja
de Saúde e o Posto da FUNAI localizam-se preocupação central é o aprendizado da
leitura e da escrita para melhor aprendizagem
5 José Caetano Tavares era Cacique Geral,
ou seja, comandava toda a Reserva de Ipegue. da Bíblia, não prosperou em Ipegue.
A divisão de dois Caciques, um para Ipegue Atualmente, os protestantes da UNIEDAS
e outro para Bananal, ocorreu após a criação afirmam que o Evangelho está impedido
dos Postos Indígenas Taunay (Bananal) e
pela forte presença de espíritos naquela área.
Ipegue.
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Ou seja, a atuação de purungueiros (as) e os não índios brasileiros desde a criação das
benzedores (as) é muito presente na Aldeia. Reservas Federais no antigo Mato Grosso.
Isso dificulta, segundo os evangélicos, a As disputas eleitorais internas às Aldeias
entrada do Cristianismo não-católico que
Terena são termômetros para as disputas
sempre fora contrário às manifestações
municipais. Pelas informações obtidas
da religiosidade Terena – o Xamanismo.
na Aldeia de Ipegue, os cinco candidatos
Perpetua-se o catolicismo dirigido pelos receberam apoio do então Prefeito de
próprios Terena. Apesar de em Bananal Aquidauana. Da mesma forma, em relação
continuar existindo xamãs e rituais, o culto
às disputas externas tornam-se visíveis
ao Evangelho é hegemônico. Essa temática
os cartazes de candidatos políticos que
será mais explorada nos capítulos sobre o
disputaram as últimas eleições estaduais
campo religioso no Mato Grosso e Mato dispostos nas paredes das residências.
Grosso do Sul. Por enquanto, cabe-nos dizer Fernanda Carvalho (1996: 34) destacou a
que, apesar de protestantismo e catolicismo
política partidária como um dos “muitos
serem originários do Cristianismo, ambos
problemas referentes à política interna
dialogam diferentemente com o Xamanismo nas aldeias do PI Taunay”, na década de
Terena, nas Aldeias de Bananal e Ipegue. 1980. Afirmou que grupos adversários se
Entre o xamanismo e o protestantismo de
chocavam frequentemente devido à dupla
missão não havia diálogo inter-religioso. chefia existente na Aldeia de Bananal.
Voltaremos mais adiante a este assunto. Assinalou o ano de 1986, como exemplo
Na última eleição para cacique em Ipegue, dessa contradição, no qual a FUNAI
cinco candidatos concorreram ao pleito. Os reconheceu dois chefes de posto para aquela
quatro candidatos perdedores formaram seus aldeia.
grupos ao invés de comporem com a atual Os Terena atuais, pelo que pudemos perceber,
liderança. São no entendimento do cacique foram paulatinamente tomando consciência
eleito seus opositores cotidianos. A disputa
de seu lugar social na sociedade brasileira.
política com base na eleição para cacique foi
A partir desse movimento foram traçando
recentemente institucionalizada pelos Terena. novas estratégias políticas para ocupar novos
Foram eles que optaram por tê-la como forma
espaços sócio-políticos. Foi dessa forma que
de escolha do representante do povo de cada
se apropriaram do Cristianismo.
aldeia Terena. é uma adaptação criativa da
disputa partidária nos âmbitos municipal,
estadual e federal da sociedade brasileira. C.3) A reprodução física e cultural dos
Um desdobramento da participação efetiva indígenas da Comunidade taunay-
dos Terena, com candidaturas próprias, nas Ipegue sofreu influência do modo de
disputas realizadas na sociedade brasileira. produção regional?
é um exemplo do processo de politização da
Tal como os Terena foram influenciados pelos
população Terena em contato contínuo com
regionais os segundos foram influenciados
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pelos indígenas. A convivência estreita de Por estar em constante contato com a cidade
grupos culturais diferentes produz trocas e os povos indígenas apresentam traços
apropriações de ambos os lados. Os Terena, de influência da cultura nacional, porém
com sua comercialização de legumes permanecem fazendo o uso de suas próprias
(maxixe, quiabo, abóboras, feijão de corda ou manifestações culturais. Os Terena adquirem
feijão miúdo), de frutas (guavira, jabuticaba, bens domésticos e tecnológicos, tais como
manga), raízes (mandioca, batata-doce, celular, rádios, aparelhos de som, televisão,
cará), artesanato (utensílios domésticos computador, entre outros produtos; vestem e
e enfeites para casa, feitos de cerâmica; calçam os mesmos produtos que os regionais
abanicos da palmeira carandá, colares e ao mesmo tempo que vestem suas roupas
pulseiras de sementes variadas) e milho tradicionais, bem como seus ornamentos em
verde imprimiram nos demais habitantes suas festas; participam de cultos e missas
indígenas e não indígenas novos gostos nas igrejas de suas comunidades ao mesmo
alimentares e decorativos. A paciência e a tempo que participam de rituais xamânicos
diplomacia terena também são exemplos com purungueiros, benzedores, curandeiros,
políticos interessantes. fazedores de simpatias, levantam bandeiras

Em contrapartida, aprenderam com os de santos e fazem festas para os mesmos;


jogam futebol, mas também dançam o Bate-
regionais a falar o português, a construir
cercas de arame, a lapinar madeiras, Pau; apreciam os ritmos musicais regionais,

estudar em escolas, buscar a cura através da nacionais e internacionais, porém entoam


alopatia. Aprenderam a dominar os códigos hinos e outros cantos em terena.

do direito, da economia e da administração.


Em suas associações exercitam a burocracia. Dourados-MS, 17 de outubro de 2010.
Enfim, muitas são as trocas culturais e as
adequações produzidas.
Profa. Dra. Noêmia dos Santos Pereira
Moura
C.4) Em caso positivo, que influência é Assistente Técnica da FUNAI
esta?
Respondido no quesito C.3. Referências Bibliográficas
ALTENFELDER SILVA, Fernando. 1949.
Mudança cultural dos Terena. Revista do
C.5) Em que medida o atual modo de
Museu Paulista, São Paulo, 3: 271-380.
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comunidade taunay-ipegue, segundo sua ASSIS, Edgar C. de. 1979. A alternativa dos
vencidos: índios Terena no Estado de São
visão de mundo (mundividência) e seus
Paulo. Rio de janeiro, Paz e Terra, 1979.
usos, costumes e tradições, possui traços
dessa influência? AzANHA, Gilberto. 2005 [2004]. As Terras
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Ñanduty é uma palavra polissêmica em língua guarani, constituída de duas partes: ñandu e ty.
O vocábulo ñandu pode ser substantivo, quando empregado para designar aranha (aracnídeo),
mas também pode servir como verbo, no sentido de sentir, experimentar sensações, averiguar
ou pressentir, além denotar ir, ver ou visitar alguém por cortesia, solidariedade ou afeição. O
sufixo ty, por sua vez, cuja pronúncia é nasal, pode significar urina, suco ou sumo, indicar
coletivo (avatity = milharal; jetyty = batatal), designar grandeza de alguma coisa ou mesmo
ser empregado como no sentido de jogar ou lançar algo em alguma direção. Comumente a
palavra é usada no sentido de “teia de aranha”, tanto no Paraguai quanto em entre os Guarani
e Kaiowa que vivem em Mato Grosso do Sul. Entre a população paraguaia, por exemplo, o
vocábulo também é empregado para designar uma renda fina e típica do artesanato regional
(cultura material), cujo formato colorido lembra uma teia de aranha. Também é empregada
no sentido de grande rede de relações sociais, motivo principal pelo qual a palavra foi
escolhida como nome da revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
da UFGD. Por isso entre a expressão WWW (World Wide Web), muito comum na linguagem
da Internet, é denominada Ñanduty Rogue Guasu naquele país vizinho.

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