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FUNGOS
Os primórdios do sexo
Os fungos atraem o interesse de pesquisadores devido a aspectos que podem
ajudar a compreender melhor a evolução e o funcionamento de todos
os seres vivos. Uma interessante característica desses microrganismos
é sua reprodução, que pode ser assexuada ou sexuada. A reprodução sexuada
dos fungos ocorre de variadas maneiras, e seu estudo vem ajudando a revelar
as origens da reprodução sexual mais complexa observada nos chamados
organismos superiores, inclusive o homem.
Durante uma caminhada, ou no restaurante, o leitor com cer- buídas em todos os locais do mundo onde possam
teza já se deparou com um cogumelo. Quem vê obter nutrientes, mas estima-se que isso represen-
essa estrutura, porém, talvez não saiba que ela te apenas 20% das espécies existentes. Muitas es-
resulta de uma enorme teia de processos bio- pécies são úteis ao homem (como alimento, fer-
químicos e genéticos ocorrida em alguns tipos mento ou fonte de remédios, por exemplo), mas
de fungos, quando se reproduzem sexualmente. outras podem provocar sérios danos à saúde ou
A reprodução sexual nos fungos não é tão com- principalmente a lavouras, já que os fungos são os
plexa quanto nos vertebrados, mas já mostra a principais agentes de doenças em plantas.
luta da natureza no sentido de gerar indivíduos Nos fungos, a reprodução pode ser tanto as-
diferentes através da mistura de genes de par- sexual quanto sexual. A reprodução assexual pode
ceiros diferentes. Os detalhes moleculares desse ocorrer através da simples divisão celular por mi-
sexo primitivo vêm sendo desvendados e podem tose, aumentando o número de células ou o volu-
revelar segredos da evolução de outras espécies, me do corpo, ou produzindo estruturas especia-
inclusive a humana. lizadas para dispersão do fungo, os esporos. Na
Os fungos são microrganismos notáveis pela mitose, a célula é duplicada e seu material gené-
habilidade de se nutrir a partir das mais variadas tico é copiado integralmente, gerando novas célu-
moléculas (desde as simples, como açúcares, até las geneticamente idênticas. Quando a mitose
hidrocarbonetos complexos, como os que formam ocorre em um fungo unicelular, como a levedura,
o petróleo). Eles compõem um dos sete reinos em o resultado é a formação de dois indivíduos inde-
que se dividem os seres vivos, segundo a classifi- pendentes. Já nas espécies multicelulares, que
cação mais recente (ver ‘O que é fungo?’). Já foram têm células interconectadas umas às outras for-
descritas entre 70 mil e 100 mil espécies, distri- mando estruturas filamentosas (as hifas), cada no-
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do há escassez de alguns nutrientes, por exemplo, Sabe-se que indivíduos de uma mesma espécie de
alguns fungos ‘sentem’ que o ambiente deixou de fungos, quando entram em contato, ao crescer
ser propício a seu crescimento vegetativo e procu- vegetativamente no mesmo local, podem até fundir
ram ‘atrair’ um parceiro adequado para cruzar. suas hifas, se tiverem a mesma ‘identidade ge-
Nos fungos que passam quase todo o ciclo de nética’. Na reprodução sexuada heterotálica, porém,
vida na forma haplóide, a fusão de células repro- os parceiros de um cruzamento são geneticamente
dutivas (uma de cada parceiro) forma uma célula diferentes, embora idênticos no aspecto físico – a di-
diplóide que, em geral, logo depois sofre meiose, ferenciação morfológica sexual é rara nesses micror-
gerando novamente células com apenas uma cópia ganismos. O que torna os fungos sexualmente distin-
dos cromossomos. Tais células são os esporos se- tos é a existência de certas seqüências genéticas em
xuais, que resistem melhor às condições adversas um parceiro e não no outro. Por isso, convencionou-se
do meio, favorecendo a perpetuação da espécie. chamar esses parceiros não de macho e fêmea, mas,
Os esporos sexuais são produzidos nos chamados por exemplo, de ‘A’ ou ‘a’, ‘+’ ou ‘-’, ‘a’ ou ‘a’ etc.
‘corpos de frutificação’. Cogumelos e trufas (um Esse sistema genético, encontrado também em
tipo de cogumelo subterrâneo) são corpos de fruti- algas e protozoários, é conhecido como ‘tipo de
ficação de maior porte, mas em muitos fungos acasalamento’ (em inglês, mating-type) e funciona
essas estruturas só podem ser vistas com lupa ou como um cromossomo sexual primitivo. O tipo de
microscópio. Para formá-las, o fungo sofre mudan- acasalamento pode ser determinado de forma sim-
ças fisiológicas e desenvolve estruturas que têm a ples, por apenas um ‘loco’ (pequeno trecho do cro-
finalidade de permitir a ‘atração’ de um parceiro mossomo onde se localizam os genes) que conte-
sexual e realizar a meiose. nha seqüências variáveis de DNA, ou de maneira
mais complexa, por dois ou mais locos, cada um
com seqüências alternativas. Variantes diferentes
do mesmo gene recebem o nome de alelos, mas,
quando as regiões de um loco têm tamanho, se-
O QUE É FUNGO? qüência de DNA e origem evolutiva diferentes, são
chamadas de idiomorfos. Cada idiomorfo pode
Os fungos são organismos muito diversificados, embora todos conter mais de uma seqüência codificadora de pro-
sejam eucariotos (têm células com núcleo isolado por membra- teínas – ‘codificar’, em genética, significa ‘ter a
na), heterotróficos (não produzem o próprio alimento, como fa- informação necessária no DNA’ para a ‘construção’
zem plantas e algas), osmotróficos (absorvem o alimento, em vez de uma molécula de proteína (ou de RNA).
de ingeri-lo) e possam se reproduzir por meio de esporos. Por Para saber de modo mais detalhado como é o
isso, os sistemas de classificação mais atuais, como o dos norte- sexo nos fungos, vamos examinar o que acontece
americanos David Patterson e Mitchell Sogin (1992), os distri- em algumas espécies desses organismos.
buem em dois reinos: Cromista e Fungi. O primeiro inclui os fun-
gos que apresentam flagelos e paredes de celulose, mais rela-
cionados às algas e divididos em duas classes: hifocitridiomice-
tos (sem reprodução sexual, como Hyphochytrium catenoides e O fungo unicelular
Rhizidiomyces apophysatus) e oomicetos (de água doce ou sal-
gada, como Phytophothora cinnamomi e Saprolegnia litoralis). Já S. cerevisiae
o reino Fungi, com o maior número de espécies, engloba os
chamados fungos verdadeiros, com parede de quitina, mais co- A levedura Saccharomyces cerevisiae, fungo uni-
nhecidos e estudados, e tem quatro classes: citridiomicetos (fun- celular muito utilizado na produção de pães, vi-
gos aquáticos, com flagelo para natação nos gametas, como nhos e cervejas, é um excelente modelo experi-
Rhizidium braziliensis e Blastocladiella emersonii), zigomicetos mental. O loco mating-type dessa levedura (MAT)
(não adaptados a ambientes aquáticos e com gametas sem flagelo, foi o primeiro a ser estudado em nível molecular,
como Rhizopus stolonifer e Mucor mucedo), ascomicetos (com nos anos 80, o que auxiliou muito a compreensão
esporos, formados em estruturas denominadas ‘ascos’, como dos sistemas de acasalamento em outros fungos.
Saccharomyces cerevisiae e Neurospora crassa) e basidiomicetos Na natureza, essa levedura apresenta autofertili-
(com esporos, formados em estruturas denominadas ‘basídios’, dade, mas existem linhagens de laboratório que
como Agaricus campestris, Schizophyllum commune e Puccinia perderam essa capacidade e se tornaram auto-esté-
graminis). Até há pouco tempo, os fungos que não têm uma fa- reis (heterotálicas). Nesse caso, existem indivíduos
se sexual, como o ascomiceto Penicillium chrisogenum, eram in- ‘a’ ou ‘a’, que têm os idiomorfos MATa e MATa,
cluídos na classe deuteromicetos, mas estudos moleculares vêm respectivamente.
mostrando que são ascomicetos ou basidiomicetos. O ciclo de vida das linhagens heterotálicas de
S. cerevisiae inclui uma fase haplóide relativa-
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Figura 1.
Ciclo de vida
e funcionamento
dos genes
mating-type
em linhagens
auto-estéreis de
Saccharomyces
cerevisiae:
a levedura passa
por uma fase
haplóide na qual
os indivíduos ‘a’ e
‘a’ se dividem por
mitose, mas
eventualmente
eles podem
acasalar,
formando
um organismo
diplóide que,
ao sofrer meiose,
gera quatro
esporos que
se tornarão
indivíduos
geneticamente
diferentes devido
à recombinação
cromossômica
a g o s t o d e 2 0 0 5 • C I Ê N C I A H O J E • 37
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MATa1: ela só ocorre devido à ausência de MATa1. possui os dois idiomorfos, MATa e MATa).
Portanto, cada tipo de célula libera seu feromônio Com isso, as proteínas MATa1 e MATa2 agora
específico e é capaz de reconhecer a presença do fe- são produzidas em um núcleo comum e de algu-
romônio do parceiro, graças à interação bioquímica ma forma se agregam (IV, na figura 1). Esse agre-
entre estes e os receptores correspondentes (situa- gado assume funções diferentes das que as prote-
dos na membrana externa das células). ínas tinham quando separadas: desligam a trans-
No momento em que ocorre essa interação, os crição de genes MATa1 e de genes específicos de
indivíduos haplóides param de se dividir por mito- células haplóides que, entre outras funções, repri-
se e passam por complexas transformações bio- miam a meiose. Ao mesmo tempo, a interação da
químicas e fisiológicas, que levam ao crescimen- proteína MATa2 com outras proteínas existentes
to de uma célula na direção da outra, através de na célula permite a expressão dos genes necessá-
uma projeção celular (III, na figura 1). Na ponta rios para a meiose, acionando o processo. Com a
dessas projeções ocorre uma fusão (o acasalamen- meiose, a célula diplóide divide-se e gera quatro
to), com a formação de uma célula diplóide (que esporos haplóides (dois ‘a’ e dois ‘a’), contidos em
um corpo de frutificação micros-
cópico denominado asco (V, na
figura 1).
ose
Mit Conídios
Ascogônia
O fungo
os
M
icé
li (i) O acasalamento
se dá através da atração multicelular
de uma hifa saída da
Hifa
ascogônia (hifa tricógina)
por um conídio ou hifa
N. crassa
Ascósporos tricógina do tipo sexual oposto,
seguido de fusão celular
e nuclear.
Outro modelo de grande impor-
tância é Neurospora crassa, um
‘a’ bolor alaranjado (ver ‘Nomes lei-
e
‘A’ Protoperitécio
Me
desses genes pode ser capaz de fazer o papel do basidiomicetos. Existem sim, muitas semelhanças,
outro. Além disso, a expressão de alguns genes mas ao mesmo tempo os mecanismos de reconhe-
envolvidos no desenvolvimento sexual (genes sdv) cimento e cruzamento nos basidiomicetos podem
é afetada em todos esses diferentes mutantes, ser bastante distintos. Será possível, através da
mostrando que os genes mat são peças centrais na constatação e do estudo de diferenças e semelhan-
regulação desse desenvolvimento. ças, desvendar os mecanismos celulares que tor-
Nossa curiosidade quanto a esses eventos tem nam os seres vivos distintos uns dos outros?
nos levado a estudar a interação dessas diferentes Na grande maioria dos basidiomicetos, a com-
proteínas em nosso laboratório, através de ensaios patibilidade sexual, diferentemente do que ocorre
genéticos e bioquímicos in vivo e in vitro. Tenta- em S. cerevisiae e N. crassa (dois ascomicetos), é
Figura 3.
Ciclo de vida mos entender as características bioquímicas de controlada por dois locos mat não ligados no mes-
e funcionamento cada um desses fatores protéicos e como eles afe- mo cromossomo. Para que dois parceiros acasalem,
dos genes tam a expressão de genes importantes para o de- é necessário que contenham seqüências pelo me-
mating-type senvolvimento do fungo. Conhecer os processos em nos ligeiramente diferentes nesses dois locos (ale-
de Coprinus um modelo genético abre horizontes para compre- los). Se, por exemplo, chamarmos esses dois locos
cinereus:
os esporos ender processos semelhantes – e importantes – em de A e B, um cruzamento se dará entre indivíduos
produzidos outros organismos. A1B1 e A2B2 (ou entre A1B2 e A2B1), mas não entre
no cogumelo indivíduos que tenham a mesma seqüência em um
dão origem dos locos, como A1B2 e A1B1 ou A1B1 e A2B1. Na
a micélios com
tipos genéticos
distintos
O sexo nos cogumelos espécie Coprinus cinereus, por exemplo, há cerca
de 120 alelos possíveis para o loco A e 100 para
(com versões o loco B, os quais, combinados, podem resultar em
distintas dos Os chamados bolores e os cogumelos são exemplos cerca de 12 mil tipos de acasalamento. No sistema
genes A e B das duas mais importantes classes do reino Fungi: de um loco dos ascomicetos existem apenas dois
em seus ascomicetos e basidiomicetos. Já que o cogumelo é tipos possíveis (por exemplo, ‘a’ e ‘a’).
locos mat),
que podem um corpo de frutificação, pode-se concluir que Dentro de um cogumelo podem ser produzidos
acasalar processos de acasalamento semelhantes aos já des- de milhões a trilhões de esporos sexuais (os basi-
entre si critos para outros fungos também ocorram entre os diósporos), que são dispersados no ar. No solo, os