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Año XXXII, Nos. 63-64. Lima-Hanover, 1º-2º Semestres de 2006, pp. 105-115
Rodolfo A. Franconi
Dartmouth College
tar certo do que via. Internado no mais remoto dos desertos eqües-
tres da fronteira do Brasil, Otálora acaba tornando-se capitão de
contrabandistas por subestimar a astúcia do chefe do bando, o ve-
lho português-brasileiro Azevedo Bandeira. Sua história demons-
tra que o olhar do “outro”, quando oblíquo, sempre carregará o pe-
rigo do desvio e da distorção, não conseguindo captar o contorno
real do indivíduo observado. Dirigido pela geometria das etnias,
idiomas e nacionalidades, o observador não vê o universal, ou o
em-comum daquele que coloca sob a condição de “outro”. No mo-
mento em que Otálora celebra sua vitória sobre Azevedo, recebe a
surpresa de vê-lo dando ordens ao capanga Ulpiano Suárez, em
quem imaginava ter um aliado, ordens para empunhar o revólver
que em instantes o mataria. Azevedo Bandeira, desde o primeiro
encontro, vira em Otálora quem ele realmente era. Seu olhar foi
direto. Oblíquo foi o modo como o desmascarou.
Tomemos, à guisa de exemplo, alguns romances contemporâ-
neos de autores brasileiros e hispano-americanos que privilegiam
a presença do "outro" ou o narrar sobre o "outro". Talvez o mais
radical dos exemplos de “narrar sobre o outro” seja La guerra del
fin del mundo, de Mario Vargas Llosa (1981), em que um escritor
hispano-americano se debruça totalmente sobre um episódio dos
mais caros à cultura e memória nacionais; seguindo-se, nessa
mesma linha, o romance Sangre de amor correspondido, de Manu-
el Puig (1982), cuja ação se desenvolve nos subúrbios pobres do Rio
de Janeiro.
A “presença do outro” é muito mais freqüente, tanto na litera-
tura brasileira como na hispano-americana, em textos como o fo-
lhetim Galvez Imperador do Acre, de Márcio Souza (1976), ou o
romance fundacional Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribei-
ro (1984), para citar dois autores brasileiros; circunstancial, refe-
rencial ou apenas acidental, embora não menos importante para o
estudo do “olhar oblíquo”, em textos como "De noche soy tu cabal-
lo", conto em Cambio de armas, de Luisa Valenzuela (1982), ou
"Tango fantasma", conto homônimo de Tango fantasma (1976) e "O
último tango em Jacobina", conto em Histórias de amor infeliz, or-
ganizados por Esdras do Nascimento (1985), ambos de Márcia
Denser.
Caso peculiar é a novela Mar Paraguayo, de Wilson Bueno,
cuja trama textual vai-se urdindo e esgraçando, desfiando e tor-
cendo num emaranhado novelo de mechas, fios, linhas, fibras de
“guaranis y castejanos, marafos duros afrobrasileños” que levam à
invenção de uma língua, a uma mescla aberrante com algo de sopa
paraguaia, nas palavras de Néstor Perlongher.4 O narrador de
Mar Paraguayo coloca-se no epicentro do que nos separa: as lín-
guas que nos enforma geo-historicamente e sócio-culturalmente.
Ao “inventar” uma língua que é a mescla das várias línguas e lin-
guagens que se aglutinam nas fronteiras do Brasil, Paraguai e Ar-
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ros. A cada brasileiro que é pago para matar, está ele vingando a
morte do pai. Contudo, é de seu chefe Mateus, um brasileiro, que
depende. Vivendo num país que odeia, e entre gente que detesta,
“a vida, para ele, não passa de uma luta de vida ou morte entre as
pessoas. Entre os animais. Entre os povos. Entre as forças da Na-
tureza”. (Fonseca, 130) O seu sofrimento, nessa vida, vinha “por-
que ele era índio boliviano, porque ele era pobre e estava mal ves-
tido, porque os brasileiros eram uns cães nojentos”. (Fonseca, 130)
Mateus, o chefe, pensava assim também: “o mundo estava cheiro
de canalhas e parasitas exploradores, sibaritas, ladrões protegidos
por autoridades corruptas”. (Fonseca, 131)
A psicologia do crime, portanto, apóia-se no sentimento de que
matar um desses canalhas é um benefício. Mateus, apesar de bra-
sileiro, é o único a quem Fuentes obedece, exatamente pela proxi-
midade entre suas idéias. Fuentes, que fala um português perfeito
e conviveu com os brasileiros desde pequeno, tem uma visão ao
mesmo tempo particular e estereotipada dos brasileiros. Concluiu
que o Brasil é um “país de mendigos e ladrões ricos” (Fonseca,
132), ao lado do conceito generalizado entre os hispano-americanos
de que as mulheres são prostitutas (“las putas brasileras”) e os
homens afeminados (“maricones”).
Nesse mesmo trem está Mandrake, o detetive que o segue, e
que deve desvendar o mistério das mulheres esfaqueadas no Rio de
Janeiro. Chegados à fronteira –Arroio da Conceição/Arroyo Con-
cepción–, estabelece-se definitivamente na narrativa o exame dos
dois mundos, dos dois lados, dos dois “outros”. O primeiro elemento
de identificação da fronteira é a língua: o portunhol (“Es trigo”,
“abajo”) seguindo-se a referência ao contrabando de trigo para a
Bolívia devido ao subsídio do governo brasileiro. Nas ruas, meni-
nos vendem “arroz com leche”, melancia e pastéis de carne moída.
Vêem-se “brasileiras arrependidas (da viagem), com vontade de
voltar para casa”, enquanto passam “três bolivianos, dois índios e
um branco”. (Fonseca 110-112) Na fronteira confrontam-se, e con-
vivem, o quíchua, o espanhol e o português:
No caminho o táxi parou para entrar uma mulher, que se sentou no
banco da frente. Ela e o motorista iniciaram um diálogo em quíchua. Vez
por outra, porém, a mulher exclamava “putcha bvida”. Era a fronteira.
(Fonseca, 116)
NOTAS:
1. Transcorridos 98 anos desde a publicação de Dom Casmurro, sai, precisa-
mente em 1998, pela Editora Nova Fronteira, o estudo da professora Marta
de Senna com o seguinte título O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno
de Machado de Assis. O bruxo é Machado, epíteto que o individualiza entre
todos os escritores de nossa literatura no Brasil, mas o “olhar oblíquo” é de
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"Um curso sobre literatura brasileira que fosse dado em espanhol, para
atrair alunos ‘do outro lado’, isto é, alunos de espanhol". O resultado foi exa-
tamente este: "Brasil e Hispanoamérica: la mirada oblicua". O resultado
dessa experiência apresentei-o no ano seguinte com a comunicação “Brasil e
América Hispânica: o olhar oblíquo”, no 80th Annual Meeting of The Ameri-
can Association of Teachers of Spanish and Portuguese, Inc. - AATSP, and
American Portuguese Studies Association – APSA, em Madrid, de 31/07-
04/08/1998.
10. “Zoila & Josephina: uma correspondência histórica”, Denise Pini Rosalem
da Fonseca, PUC-RJ, Anonim@sLatin@s.
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/3denisebh.htm, 02/06/2004.
11. Idem ibidem.
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