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ANTROPOLOGIA

' ECONÓMICA
EDGARD ASSIS CARVALHO
( ORGANIZADOR}
Revisáo de:
Marcia N offs
María Aparecida Nogueira Moraes

Capa de:
Miguel Sevilla N eto

© Copyright by LIVRARIA EDITORA CIÉNCIAS HUM ANAS LTDA.


Rúa 7 de Abril, 264 — Subsolo B — Sala 5 — Fone: 36-9544 — Sao Paulo-SP
tmpresso no Brasil • Printed in Brazzil
introducao ..................: ................................... .................. . i
Sahlins, Marshall — A PRIMEIRA SOCIEDADE D A AFLUENCIA . . . . 7
Godelier, Maurice — ECONOMIAS E SOCIEDADES: ABORDAGEM
FUNCIONALISTA, ESTRUTURALISTA E MARXISTA ............... 45
Meillassoux, Claude — PESQUISA D E UM NIVEL D E DETERMINA-
CAO N A SOCIEDADE CINEGÉTICA ........................................... 85
Godelier,. Maurice — PARTES MORTAS, IDÉIAS VTVAS DO PENSA-
MENTO DE MARX SOBRE SOCIEDADES PRIMITIVAS. MAR­
XISMO E EVOLUCIONISMO ........................................... .................... , 101
Rey, Pierre-Phillippe — O MODO DE PRODUQAO D E LINHAGEM . . 137
Kahn, Joel S. — IMPERIALISMO E REPRODUCAO DO CAPITALIS­
MO (A respeito de urna definicáo de formacáo social indonésia)---- 173
Bartra, Roger — CAMPESINATO E PODER POLITICO NO MÉXICO 197
Meillassoux, Claude — OS LIMITES D A SUPEREXPLORACAO DO
TRABALHO ................................................... .......... ...................................... 223
sisténcia e a publicado de sua tese de doutorado em 1964 sobre os
Gouro dá Costa do Marfim, novas tendencias iriam fazer com que o
estudo da organizagáo económica das sociedades ditas “primitivas” se
tomasse objeto de investigagáo teórica sistemática.
O modelo Gouro, fundado na comunidade agrícola de linhagem
segmentária caracteriza-se pela unidade produgao-trabalho-consumo
e pela associagáo entre relagóes de trabalho e relagóes de parentesco,
estas representando a cobertura ideológica da realidade social. A socie-
dade de auto-subsistencia se polariza em torno do mais velho, segundo
o principio da prestagáo/redistribuigao criando, porém, assimetrias
significativas no que tange ao controle do acesso ao casamento e,
principalmente, aos bens de prestigio e bens dotáis, onde a redis-
tribuicáo se ausenta e a circulagáo se realiza apenas entre os mais
velhos. Essas assimetrias nao retiram da comunidade seu caráter
igualitário, urna vez que o acesso á térra permanece coletivo, mas
tornam evidente que, no modo de producao doméstico, o poder reside
no controle do produtor e da reprodugao do produtor é nao no con­
trole dos meios de produgao material.
Nesse sentido, a análise das comunidades de base agrícola, em '
que a térra é tida como meio de trabalho, se esgota ñas relagóes de
reprodugao, pois ai reside o nivel em que se aplica a decisao política e
se constituí o “locus” da reconstrugáo social. Para Meillassoux, a
reprodugao depende das capacidades políticas dos grupos em negociar
a cada momento um número adequado de mulheres. Nivel dominante,
substrato das relagóes jurídico-políticas e do parentesco, a reprodugao
permanece, porém, atrelada a produgao, nivel determinante.
A pesquisa de Meillassoux prestou-se a várias leituras, principal­
mente a de E. Terray1 que, baseando-se ñas formas de cooperagáo
— simples na agricultura, complexa na caga — , identifica nos Gouro
pré-coloniais e existencia de dois modos de produgao, um tribal-aldeáo
e outro de linhagem, articulados entre si, com dominancia do segundo.
Aldeia e linhagem representam grupos sociais distintos que rea-
lizam relagóes determinadas com os meios de produgao e nos quais
sao organizados o controle da produgao e da repartigáo do produto.
Reciprocidade na aldeia, redistribuigao pelos mais velhos na linhagem
sao as características que os dois modos apresentam. Relagóes polí­
ticas se desenvolvem igualmente sob forma de instituigóes distintas,
sendo que o poder dos mais velhos assume características mais nítidas
na agricultura que na caga. Confundindo prOcesso de trabalho e pro-
cesso de produgao, Terray nao chega a perceber que a esséncia da

1. Terray, Emmanuel — L e M arxisme devant les societes “primitives” —


París, Maspero, 1969.

2
formacáo Gouro nao reside na articulacao aldeia/linhagem, mas na
relagáo de dominacao colonial que a projetou numa agricultura
comercial, fundada na exploragao económica.
No entanto, a discussao em torno do papel dos mais velhos
permanece em aberto. P. Ph. Rey é um dos autores mais recentes que
reativa a polémica. Embora Meillassoux enfatizasse que o poder dos
mais velhos nao propiciava situacao económica demasiado vantajosa,
mesmo que se configurasse como relacao de dominagáo, Rey vé
esse mesmo poder como relacao de exploragao, exercitado como
funcáo de classe, onde os mais velhos extorquem sobretrabalho dos
mais jovens, além de controlarem o processo de circulagao de mulhe-
res e homens. Para Rey, as relagóes de produgao determinantes nao
sao as relagóes dos homens entre si no processo de produgao ime-
diato, mas o processo de reagrupamento dos homens para a con-
secugao da produgao. Assim, a apropriagao dos produtores é fato
decisivo para a reprodugao das unidades de produgao e para a repro­
dugao da sociedade como um todo.
Por vezes, a crítica maior incide sobre a énfase na circulagao e
no primado das forgas produtivas em detrimento das relagóes de pro­
dugao. Se é verdade que a circulagao dos produtores representa fato
incontestável, a circulagao em si nao define o modo de produzir,
embora ordene o conjunto dos produtores ñas unidades de produgao.
O que importa é o sentido que as relagóes de produgao imprimem á
sociedade como um todo e a forma pela qual o trabalho excedente é
apropriado. Dado que nos modos de produgao “primitivos”, o desen-
volvimento das forgas produtivas é limitado, as relagóes de produgao
se constroem com base ñas relagóes ideológicas e a apropriagao cole-
tiva do trabalho excedente se realiza pelo mecanismo da redistribuigao
simples, próprio das sociedades cinegéticas e da redistribuigao com­
plexa, característico das sociedades agrícolas.
Torna-se obvio que o segundo mecanismo assenta-se em forgas
produtivas mais desenvolvidas e que o parentesco emerge nao sim-
plesmente como um código, mas como instancia dominante e inter­
veniente na economía, o que nao ocorre no primeiro mecanismo,
onde as relagóes de parentesco e a familia desempenham papel secun-
dário na produgao, dada a composigáo instável e fluida dos bandos,
onde a térra é mero objeto de trabalho.
É nesse sentido que caminha a crítica feita por B. Hindess e
P. H irst2*, principalmente aos trabalhos de Terray e Meillassoux.
Parece definitiva a afirmagao dos dois autores segundo a qual o con­

2 . Hindess, Barry e Hirst, Paul Q. — M odos de produgao pré-capitalistas


— Rio, Zahar, 1976.

3
do detectar o modo pelo qual as formas domésticas, ao mesmo tempo
que sao dominadas, integram-se ao mecanismo de reprodupáo da
forma dominante.
Nisso reside o processo contraditório da expansáo do capitalismo,
pois mesmo que sua tendencia geral seja a de subsumir todas as rela-
goes sociais á lógica do capital, a subsuncao pode ocorrer através de
formas variadas. Entendidas por alguns autores como modos de
producao articulados com dominantes, por outros como articulagáo
de formas nao-capitalistas com capitalistas, tratam-se na verdade de
setores onde a utilizacáo dos recursos e fatores nao se realiza de modo
plenamente capitalista.
É nessa ótica que deve ser entendida a existencia das relagóes
domésticas no interior do modo de producao capitalista. As palavras
de Meillassoux sintetizam plenamente o problema teórico maior da
Antropología Económica contemporánea: “Por esse processo (o capi­
talista), em esséncia contraditório, o modo de produgáo doméstico
é, ao mesmo tempo, preservado e destruido: preservado como modo
de organizacáo produtor de valor em beneficio do imperialismo, des­
truido porque privado dos meios de sua reproducáo pela exploracáo
de que é objeto. Nesse sentido, o modo de producao doméstico é
e nao é” 6.

Sao Paulo, 15 de abril de 1978


E d g ar d A ssis C a r va lh o

6. Meillassoux, Claude — Femm es, greniers et capitaux — París, Mas-


pero, 1975: 148. '

6
A PRIMEIRA SOCIEDADE DA AFLUENCIA *
Marshall Sahlins

Se a economía é a ciencia maldita, o estudo de economías ba­


scadas na caga e na coleta deve ser o seu ramo mais avangado. Quase
todos os nossos manuais transmitem a' idéia de urna vida muito dura
no paleolítico, fazendo-nos indagar de como os cagadores conseguiam
viver; e se, afinal, isso realmente significava viver. Através destas
páginas, o espectro da fome caga o cagador. Sua incompetencia técnica1
traduz-se num esforgo continuo de trabalho pela sobrevivencia, nao lhe
proporcionando nem descanso,, nem excedente, nem mesmo, portanto,
“lazer” para “construir cultura”. Apesar de todos os esforgos, o caga­
dor atinge os mais baixos níveis em termodinámica — menos ener­
gía per capita por ano do que qualquer outro modo de produgáo.
E em tratados de desenvplvimento económico ele é condenado a re­
presentar mau exemplo expresso pela chamada “economía de subsis­
tencia”.
A sabedoria tradicional é sempre obstinada. É preciso opor-se a
ela de maneira polémica expréssando, dialeticamente, as revisóes
necessárias. Na verdade, examinada de perto, a sociedade de cága/co-
leta é a primeira sociedade da afluencia. Paradoxalmente, isso leva
a outra conclusao útil e inesperada. Pelo senso comum, urna sociedade
afluente é aquela em que todas as vontades materiais das pessoas sao
fácilmente satisfeítas. Afirmar que os cagadores sao afluentes é negar
que a condigao humana seja tragédia predestinada, com o homem
prisioneiro de trabálho pesado caracterizado por umá disparidade
perpétua entre vontades ilimitadas e meios insuficientes.

* The original affluent society — Sahlins, Marshall, Stone Age Economice


— Chicago & N ew York, Aldine-Atherton, Inc., 1972: 1/40. Tradugao de
Betty M. Lafer.

7
Embora ricamente dotadas, as sociedades capitalistas modernas con-
sagram-se á proposigao da escassez. O primeiro principio dos povos
mais ricos do mundo é a ineficiéncia de meios económicos. O apa­
rente status material da economia nao parece indicio.-de perfeigáo;
alguma coisa tem que ser dita sobre o modo de organizagao económica
(cf. Polanyi, 1947, 1957, 1959; Dalton, 1961).
O sistema de mercado industrial institui a escassez de modo ja­
máis visto em qualquer outra parte. Onde a prodügáo e distribuigáo
sao organizadas através do comportamento dos pregos, e todos os
meios de vida dependem de ganhar e gastar, a insuficiencia de meios
materiais torna-se o ponto de partida explícito e calculável de toda
atividade económica 2. O empresário é colocado frente a investimen-
tos alternativos de um capital finito; o trabalhaáor (esperangosa-
mente) frente a escolhas alternativas de emprego remunerado, e o
consumidor. . . O consumo é dupla tragédia: o que se inicia com
insuficiencia terminará em privagao. Ao mesmo tempo que produz
urna divisao internacional do trabalho, o mercado torna acessível
um batalhao ofuscante de produtos: todas éssas “coisas divinas” aces-
síveis ao homem — mas nunca todas ao seu alcance. A desgraga é
que, riesse jogo de livre escolha do consumidor, toda aquisigáo é si­
multáneamente urna privagao, pois toda compra de alguma coisa é
a falta de alguma outra, em geral marginalmente menos desejável
e em alguns detalhes mais desejável. (A questáo é que se vocé compra
um automóvel, por exemplo, um Plymouth, vocé nao pode comprar
também um Ford — e conclup através dos comerciáis comuns de
televisáo, que as privagóes impostas sao mais do que puramente
materiais 3.) .
A sentenga bíblica de viver á custa de trabalho foi pronunciada
contra nós. Escassez é a sentenga decretada por nossa economia — e
é também o axioma de nossa ciencia económica: a aplicagáo de meios
escassos contra fins alternativos, conforme as circunstancias, para tirar
a maior satisfagáo possível. E é precisamente a partir dessa vantagem
que voltamos o olhar para os cagadores. Mas, se o homem moderno,
com todas suas vantagens tecnológicas, aínda nao conseguiu os meios,
que chance possui esse selvagem desprotegido, com seu insignifi­
cante arco e flecha? Tendo equipado o capador com impulsos bur­
gueses e ferramentas paleolíticas, julgamos sua situagño desespe-
radora 4.
2 . Sobre os requisitos históricamente particulares de “tais cálculos, ver
Codere, 1968 (especialmente pp. 574-575).
3. A respeito da institucionalizagáo complementar da “escassez” ñas con-
dicdes da prodügáo capitalista, ver Gorz, 1967, pp. 37-38.
4. Merece mencáo o lato de que a teoría marxista européia contemporánea
está, muitas vezes, de acordo com a economia burguesa a respeito da pobreza

10
Contudo, a escassez nao é, propriedade intrínseca de meios técni­
cos. É reí agao entre meios e fins. Deveremos levar em consideragao
um objeto finito a possibilidade empírica de que os cagadores traba-
lham para sobreviver; e que arco e flecha sao adequados para esse
fim 5.
Mas, até agora, outras idéias, essas doengas endémicas na teoría
antropológica e na prática etnográfica, conspiraram para impedir
qualquer entendimento dessa natureza.
A disposigáo antropológica em exagerar a ineficiéncia dos caga­
dores, aparece notavelmente através do método de comparagoes par­
ticulares com economías neolíticas. Como Lowie destaca, os cagadores
devem trabalhar muito mais para viver do que os agricultores e cria­
dores de animáis (1946, p. 13). Sobre esse ponto, em particular, a
antropología evolucionista considerou necessário adotar teóricamente
o tom normal de reprovagáo. Etnólogos e arqueólogos tornaram-sé
revolucionários neolíticos, e em seu entusiasmo pela revolugao nada
pouparam para denunciar o Velho Regime (Idade da Pedra), incluin-
do algum escándalo bem antigo. Nao foi á primeira vez que filósofos
relegaram o mais antigo estágio da humanidade, mais á natureza do
que á cultura (“Um homem que despende sua vida perseguindo ani­
máis, somente para matá-los para comer, ou mudando de um pedago
de térra para outro, está na verdade, ele próprio, vivendo como ani­
mal” ; Braidwood, 1957, p. 122). Cóm os povos cagadores assim
depreciados, a antropología tornou-se livre para louvar o Grande
Salto Neolítico: um importante avango tecnológico resultou em urna
“disponibilidade de lazer através da libertacáo da procura de comida”
(Braidwood, 1952, p. 5; cf. Boas, 1940, p. 285).
Leslie White, em importante trabalho sobre a “Energía e a .Evo-
lugáo da Cultura”, explicou que o neolítico gerou “grande avango
no desenvolvimento cultural... como conseqüéncia do grande aumen­
to na quantidade de energia aproveitada e controlada per capita por
ano através das artes agrícola e pastoril” (1949, p. 372). White
salientou o contraste na evolugáo mostrando o ESFORZO HUMANO
como a principal fonte de energia da cultura paleolítica, em oposigáo
as plantas domesticadas e aos recursos animáis da cultura neolítica.

dos primitivos; cf. Boukharine, 1967; Mandel, 1962, vol. I; e o manual de


historia económica utilizado na Universidade de Lumumba (citado na biblio­
grafía com o “Anónimo, n. d.” ).
5. Durante longo período, e praticamente sozinho entre os etnólogos, Elman
Service manteve-se contra a opiniáo tradicional a respeito da penuria dos
cagadores. O presente trabalho teve grande inspiragáo em suas anotacóes a
respeito do ocio dos Arante (1962, p. 9), bem como ñas conversas pessoais
com ele.

11
conhece exatamente o que sua térra produz, a época certa para colher
os vários produtos e os meios mais fáceis de obté-los. De acordo com
estas circunstancias, ele regula as visitas as diferentes partes de seu
terreno de caga; e somente posso dizer, que sempre encontrei em
suas cabanas, a maior das farturas” (Grey, 1841, vol. .2, pp. 259-262,
grifo meu; cf. Eyre, 1845, vol. 2, p. 2.441) 7.
Sir George, ao fazer essas felizes consideragoes, tomou cuidado
especial para excluir o LUPEN PROLETARIAT aborígine, vivendó
dentro e ao redor de cidades européias (cf: Eyre, 1845, vol. 2, pp.
250, 254-244). A exclusao é instrutiva. Ela evoca uma segunda fonte
de concepcoes etnográficas erróneas: a antropología dos caladores é
estudo amplamente anacrónico de ex-selvagens — inquérito sobre o
cadáver de uma sociedade dirigido pelos membros de outra.
Como classe, os coletores de alimentos sobreviventes sao pes-
soas deslocadas; representam o paleolítico privados de direitos civis
ou de privilégios, ocupando habitáis margináis, nao típicos de seu
modo de produgao: santuários de urna era, colocados fora do raio
de agao dos principáis centros avangados da cultura, como para
permitir certa prorrogagao da marcha planetária de evolugáo cultural,
pois sao pobres demais para o interesse e competencia de economías
mais avangadas. Isso, deixando de lado os povos coletores situados
favoravelmente, como os indios da costa noroeste, sobre cujo bem-
estar (comparativamente) nao há dúvidas. Os cagadores remanes-
centes, banidos das melhores partes da térra, primeiro pela economía
agrícola e depois pela economía industrial, usufruem oportunidades
ecológicas menores do que a média do antigo paleolítico 8. Além do
mais, a desintegragño ocorrida nos dois últimos séculos de imperia­
lismo europeu foi extraordinariamente violenta, de forma que müitas
notas etnográficas que constituem o estoque dos antropólogos sao
produtos culturáis adulterados. Relatos de exploradores e missioná-
rios, além de concepgoes etnocéntricas erróneas, podem estar falando
de economías já destruidas (cf. Service, 1962). Os cagadores do
Canadá Oriental, sobre os quais lemos ñas relagóes dos jesuítas, esta-
vam submetidos ao comércio de peles, no inicio do século XIX. O
meio ambiente de outras tribos foi seletivamente saqueado pelos
europeus antes que um relatório seguro sobre a produgao indígena

7. Sobre comentário seiñelhante, que se refere á interpretagáo errónea


de missionários sobre um ritual em que se ingere sangue, na Austrália Oriental,
ver Hodgkinson, p. 227. , —
8. Como assinala Cari Sauer, as condicoes dos povos cacadores primitivos
nao podem ser julgadas “a partir de seus sobreviventes modernos, hoje restrin­
gidos as mais estéreis regioes da térra, como o interior da Austrália, a grande
bacía americana e a tundra e taiga árticas. As áreas iniciáis por eles ocupadas
eram ricas em alimentos” (citacáo in Clark e Haswell, 1964, p. 2 3).

14
pudesse ser féito: os esquimos, que conhecemos, já nao cagam baleias;
os bosquímanos foram despojados da caga, os pinheiros dos shosho-
n ia foram derrubados para obtengao de madeira para construgáo. ..
Se tais povos sao agora descritos como miseráveis, sao seus “magros
e incertos” recursos náturais uma indicagáo da condigáo aborígine —
ou do encarceramento colonial9?
Só recentemente comegaram a ser difundidas as imensas impli-
cagoes (e problemas) para a interpretagáo evolucionista surgidas
desse confinamento global (Lee e Devore, 1968). O atual ponto de
importancia é este: as características atuais dos cagadores represen­
tara mais esforgo supremo do que prova nítida de suas capacidades
produtivas. Os relatos seguintes sobre sua performance revelam-se,
portanto, mais extraordinários.

UMA ESPÉCIE DE ABUNDANCIA MATERIAL

Considerando a pobreza em que teóricamente vivem os povos


cagadores e coletores, torna-se surpresa o fato de que os bosquímanos
que vivem em Kalahari gozem de “uma espécie de abundancia mate­
rial”, pelo menos no dominio das coisas utilizadas cotidianamente,
excluindo alimentos e água:
“Assim que os KUNG tiverem maior contato com os europeus
— e isso já acontece — eles sentiráo mais profundamente a necessi-
dade de nossas coisas e desejaráo e necessitaráo mais e mais. Já se
sentem mal sem roupa, quando estáo entre estrangeiros vestidos. Mas,
na própria vida, e com os próprios artefatos, sao relativamente livres
de pressdes materiais. Exceto para comida e água (importante exce-
goesl), de que os NYAE KUNG tém apenas o mínimo necessário, a
julgar por sua aparéncia, pois sáo todos magros, aínda que nao ma­
cilentos — todos tém o que necessitam ou podem fazer o que ñecessi-
tam, póis cada homem faz as coisas que os homens fazem e cada
mulher, as coisas que as mulheres fazem .. . Eles vivem numa espé­
cie de abundancia material porque adaptam seus utensilios aos ma­
teriais que exisíem em abundancia á sua volta e que qualquer pessoa
pode obter livremente (madeira, bambus, ossos para armas e imple­
mentos, fibras para cordas, mato para abrigos) ou materiais que sáó

9. Através da prisáo da aculturagáo, temos um vislumbre do que os caga­


dores e coletores podem ter sido, em um meio ambiente decente, a partir dos
relatos de Alexander Henry, sua rica estada como um Chippéwwa no nordeste
de Michigan: ver Quimby, 1962.
d. Shoshoni, grupo indígena americano, pertence á familia ou tipo sho-
shone, ligados ao uto-aztecas. Ocupavam um ampio territorio desde a parte
central de Wyoming até a parte ocidental da California (N . do T .).

15
Que a riqueza logo se torna mais sobrecarga do que boa coisa
é visível mesmo para alguém de fora. Laurens van der Post foi
apanhado em contradigao quando se preparava para deSpedir-se de
seus selvagens amigos bosquímanos:
“O assunto de presentes deu-nos vários momentos de ansiedade.
Ficamos humilhados de perceber quáo pouco poderíamos dar aós
bosquímanos. .Quase tudo parecía tornar a vida mais difícil para eles,
aumentando a confusao e o peso de sua rotina diária. Eles mesmos,
nao possuem, praticamente, nada: urna correia de couro, um cobertor
de pele cum a sacóla de couro. Nada havia que nao pudessem juntar
em um minuto, envolver em suas mantas e carregar em seus ombros
durante urna jornada de mil milhas. Nao tinham senso dé posse”
(1958, p. 276).
Necessidade táo obvia para o visitante ocasional deve ser de
segunda natureza para o povo em questáo. A modéstia de exigencias
materiáis é institucionalizada: torna-se fato cultural positivo, expres-
so numa variedade de arranjos económicos. Lloyd. Warner, falando
sobre os murgine, relata, por exemplo, que a possibilidade de trans­
portar é valor decisivo no esquema local dos objetos. Em geral, pro-
dutos pequeños sao melhores do que .os grandes. Na análise final,
prevalecerá “o meió relativo de transpórte do artigo”, determinando
até sua disposigáo, acima da relativa escassez ou custo de trabalho.
Porque o “valor final”, escreveu Warner, é a liberdade de movimento.
E Warner atribuí a este “desejo de ser livre da carga e responsabilida-
de dos objetos que interferiram na existencia itinerante da sociedade
o ‘sentido subdesenvolvido de propriedade’ dos Murgins e sua ‘falta
de interesse ém desenvolver seu equipamiento técnico’ ” (1964, pp.
136-137).
Aquí está, portanto, outra “peculiaridade” económica — nao
direi que é geral, mas talvez seja explicada tanto pela instrugao. hi­
giénica errónea, como por urna indiferenga deliberada pela acumula-
gáo material: pelo menos, alguns cagadorés manifestam notável
tendencia para serem relaxados a respeito de suas posses. Demonstram
urna espécie de indiferenga que seria própria de pessoa que já domi-
nou os problemas da produgao: em todo caso, ela enlouqueceria um
europeu.
“Eles nao sabem como cuidar de seus pertences. Ninguém sonha
em colocá-los em ordem, dobrá-los, lavá-los e secá-los, pendurando-
os ou empilhando-os. Se estáo procurando alguma coisa específica,
remexem descuidadamente a insignificante confusao.reinante dentro
das pequeñas cestas. Os objetos maiorés, que sao empilhados aos*
e, Murgin: nativos australianos, que habitam a regiáo ao nordeste de
Arnhem Land (planalto ao norte, da Australia, onde a maioria das tribos sao
organizadas em clás, por descendencia matrilinear (N . do T .).

18
montes na cabana, sao puxados para cá e para lá, sem nenhama
consideragáo pelos danos que possam sofrer. O observador eüropeu
tem a impressao .de que esses indios (Yahgan) nao dao nenhum
valor a seus utensilios, e que esqueceram completamente o esforgo
que estes exigiram para ser fabricados 12. Na verdade, ninguém se
apega a suas poucas coisas e bens movéis, que sao freqüentemente
perdidos, mas que sao, também, fácilmente substituidos. . . O indio
nao se preocupa nem mesmo com a protecáo, quando assim o pode-
ria fazer. Da mesma forma, um europeu balangaria negativamente
a cabega diante da indiferenga ilimitada desses indios, que arrastam
no barro compacto ou abandonam á destruigao imediata pelas crian-
gas e cachorros, objetos novos em folha, tecidos preciosos, provisoes
frescas e outras coisas valiosas... Coisas caras que lhes sao dadas,
sao guardadas por poucas horas longe da curiosidade dos outros,
após o que sao deixadas imprudentemente a deteriorar-se no barro
ou na água. Quanto menos possuam, mais confortavelmente podem
viajar, e o que se estragou, ocasionalmente é substituido. Por isso, sao
completamente indiferentes a qualquer posse material Gusinde, 1961,
pp. 86-87).
Alguém arriscaría dizer que o cagador é um “homem nao-
económico”. Pelo menos no que diz respeito a bens nao alimenta­
res ele é o oposto daquela caricatura-modelo imortalizada em qual­
quer Principios Gerais de Economía, página 1. Seus desejos sao
poucos, e seus meios (em relagáo) sao abundantes. Conseqüente-
mente, ele é “relativamente livre de preocupagóes materiais”, “nao
possui qualquer sentimento de posse” ; tem “senso embrionário de
propriedade” ; é “completamente indiferente a qualquer pressáo ma­
terial” ; manifesta “falta de interesse’’ para desenvolver seu equipa-
mento tecnológico.
Nessa relagáo dos cagadores com produtos profanos, há um
ponto nítido e importante. Da perspectiva interna da economia, pa­
rece errado dizér que seus desejos sáo “restritos”, os desejos “repri­
midos” ou mesmo que a nogáo de riqueza é “limitada”. Tais frases
implicam sugerir um Homem Económico (“Economic Man”), e
futa do cagador contra sua própria natureza profunda, que é final­
mente subjugada por voto cultural de pobreza. As palavras implicam
a renuncia de poder aquisitivo que na verdade nao foi desenvolvido,
urna supressáo de desejos que nunca vieram á tona. Como disse
Marcel Mauss — o Homem Económico é construgáo burguesa —-
“nao depois de nós, mas antes, como o bem moral”. Nao que os
cagadores e coletores tenham refreado seus “impulsos materiais”;
simplesmente nunca os instituíram. “Além disso, se é grande dádiva,
12. Mas, relembremos o comentário de Gusinde: “Nossos Fueguinos
adquirem e fabricam seus implementos com pouco esforgo” (1961, p. 213).

19
HORAS

Gráfico 1 .2 : Horas diárias ñas atividadés de coleta de alimentos: Grupo de


Hemple Bay (M cCarthy e McArthur, 1960).

22
Deve-se ter sérias reservas em esbopar inferencias gerais ou his­
tóricas com base apenas nos dados de Arnhem Land. Nao somente
o contexto foi menos primitivo e o tempo de estudo breve demais,
mas certos elementos da situapáo moderna devem ter aumentado a
produtividade além do nivel aborígine: por exemplo, ferramentas de
metal ou a redupáo da pressáo local sobre os recursos alimenticios,
em virtude da populacáo. E nossa incerteza parece mais duplicada
que neutralizada, por outras circunstancias que, de modo inverso,
poderiam diminuir a eficiencia económica: por exemplo, aqueles
capadores semi-independentes, provavelmente, nao sao tao especia­
lizados como seus ancestrais. No momento, consideramos as conclu-
sóes sobre Arnhem Land como experimentáis, com credibilidade po­
tencial, na medida em que sejain sustentadas por outros trabalhos
etnográficos ou históricos.
A conclusáo obvia e imediata é de que as pessoas nao trabalham
muito. O tempo médio diário por pessoa usado na apropriapao e pre­
paro de comida era de 4 ou 5 horas. Além disso, nao trabalham inin-
terruptamente. A busca de subsistencia era bastante intermitente. Para-
va-se por um tempo, assim que as pessoas já tivessem obtido o sufi­
ciente para dado período, o que lhes deixava bastante tempo livre.
Tanto no setor de subsistencia como em outros, nos encontramos
claramente frente a urna economía de objetivos específicos, limitados.
Pela capa e coleta, esses objetivos tendem a se realizar irregularmente,
de forma que o padráo de trabalho se torna errático.
No caso, há urna terceira característica da caca e da coleta,
nao imaginada pelo senso comum: esses australianos parecem subuti­
lizar suas possibilidades económicas objetivas, ém vez de usar até o
limite máximo o trabalho e recursos disponíveis.
A quantidade de comida colhída em um dia, por qualquer des-
ses grupos, poderia em cada caso ser aumentada. Embora para as
mulheres, a busca de alimentos fosse trabalho diário e ininterrupto
(mas, ver nossos gráficos 1.1 e 1 .2 ), elas descansavam com freqüén-
cia, e nao gastavam todas as horas do dia buscando e preparando
alimentos. A natureza do trabalho de coleta de alimentos dos homens
era mais esporádica; e se tinham boa colheita em determinado dia,
normalmente descansavam no dia seguinte. . . Talvez inconsciente­
mente pesem, de um lado, a vantagem de maiores suprimentos de
comida, e de outro, o esforco envolvido na colheita; talvez decidam
o que consideram ser o suficiente, e quando urna vez colhida essa
quantidade param (McArthur, 1960, p. 92).
Segue-se, em quarto lugar, o fato de que a economía nao exigía
grandes esforcos físicos. O diário dos investigadores indica que a
populacáo anda em ritmo; somente urna única vez um capador foi

23
Hemple Bay, os homens dormiám se chegassem cedo, mas nao caso
de chegarem depois das 4 horas da tarde. Quando ficavam na aldeia
o dia todo, dormiain em horas variadas, e sempre depois do alrnopo.
As mulheres, quando coletando alimentos na floresta, pareciam des­
cansar mais do que os homens. Se ficavam na aldeia todo o dia,
também dormiam em horas variadas, as vezes durante bastante tempo
(McCarthy e McArthur, 1960, p. 193).
A deficiencia dos habitantes de Arnhem Land em “construir
cultura”, nao é causada estritamente por falta de tempo. Provém da
ociosidade.
Isso para os capadores e coletores de Arnhem Land. Semelhantes
económicamente aos capadores australianos, segundo Herkovits, os
bosquímanos tem condipoes semelhantes como se ve em dois relató-
rios excelentes e recentes de Richard Lee (Lee, 1968; 1969). A
pesquisa de Lee é digna de ateripáo especial, nao somente por dizer
respeito aos bosquímanos, mas, específicamente á sepáo dobe dos
bosquímanos KUNG, vizinhos dos NYAE NYAE, sobre cuja subsis­
tencia — em contexto diferente de “abundancia material” —- a Sra.
Marshall fez importantes restricóes. Os dobe ocupam urna' área em
Botswana onde os bosquímanos Küng viveram pelo mínimo urna cen­
tena de anos, e de onde comepam agora a sofrer pressóes para sair
(entretanto, o metal era utilizado pejos dobe desde 1880-90). Foi
realizada urna pesquisa intensiva a respeito da produpao de subsis­
tencia em um período de seca, com urna populapao (41 pessoas)
próxima da média desses povoamentos. As observapóes estendéram-
se por mais quatro semanas, durante julho e agosto de 1964, em
um período de transipáo de urna estapáo do ano mais favorável para
urna menos favorável; conseqüentemente, ao que parece, bastante
representativa da média das dificuldades de subsistencia.
Lee encontrou na regiáo dos dobe, “surpreendente riqueza de
vegetapáo”, apesar do baixo índice pluviométrico anual (6 a 10 po-
legadas = 15,24 a 25,40 cm). Os recursos alimenticios eram “tanto
variados quanto abundantes”, particularmente as “nozes mangetti”
de alto valor energético “tao abundantes que milhóes de nozes apo-
dreciam no solo anualmente, por nao serem colhidas” (todas as
referencias “in” Lee, 1969, p. 5 9 )is. Seu relatório a respeito do
tempo despendido na coleta de alimentos é surpreendentemente pró­
ximo das observapóes de Arnhem Land (quadro 1.4, resume os
■dados de Lee). ^ 15

15. Essa apreciapáo dos recursos locáis aínda mais impressionante o tra-
balho etnográfico de Lee foi realizado no segundo e terceiro anos de “urna das
mais severas secas da historia da África do Sul” (1968, p. 39;' 1969, p. 73 n .).

26
1

As cifras sobre os bosquímanos significam que ó trabalho de


um homem, na caga e na coleta de alimentos, sustentaría quatro ou
cinco pessoas. A coleta de alimentos, tomada em valor nominal, é
mais eficiente do que a agricultura francesa até a II Guerra Mundial,
quando mais de 20% da populagao era responsável pela alimenta-
gao do restante. Evidentemente, a comparagao é forgada, mas nao
deixa de ser surpreendente. No total da populagao de bosquímanos
que viviam em espagos livres, Lee calculou que 61,3% (152 de
248) eram, efetivamente, produtores de alimentos; o restante era
muito jovem ou muito velho para dar contribuigáo significativa. No
local examinado, 65% eram “ativos”. Assim sendo, a relagao de pro­
dutores de comida com a populagao geral é, na veraade, de 3:5 ou
2:3. Mas, estes 65% de pessoas “trabalhavam 36% do tempo e
35% das pessoas nao trabalhavam nada!” (Lee, 1969, p. 67),
Isso significa que cada trabalhador adulto chega a atingir cerca
de dois dias e meio de trabalho pcrr semana (“em outras palavras,
cada produtor individual mantém a si próprio (ele ou ela), e a seus
dependentes e aínda possui 3 1/2 a 5 1/2 dias disponíveis para outras
atividades” ). Um “dia de trabalho”, era cerca de 6 horas; por isso, a
semana de trabalho dos dobe era, aproximadamente, de 15 horas, ou
urna média de 2 horas e 9 minutos por dia. Entretanto, esses cálculos,
mesmo que inferiores ao padráo de Arnhem Land, excluem o tempo
de cozinhar a comida e preparar os implementos, Provavélmente, as
condigoes do trabalho de subsistencia dos bosquímanos sao muito
próximas das dos nativos australianos.
Como os australianos, os bosquímanos passam o tempo em que
nao trabalham descansando ou em atividades de lazer. Mais urna vez
pode-se detectar o ritmo paleolítico característico de um ou dois dias
de trabalho e um ou dois dias de folga — o último passado ao acaso
na aldeia. Bmbora a coleta de alimentos seja a atividade produtiva
principal. Lee escreve que, “a maior parte do tempo das pessoas
(quatro ou cinco dias por semana) é gasta em outras atividades
como o descanso na aldeia on a visita a outras aldeias” (1969, p. 74).
Em um dia, urna mulher coleta comida suficiente para alimentar
a familia durante tres dias, e o resto do tempo gasta descansando na
aldeia, fazendo enfeites, visitando outrqs locáis ou entretendo visitan­
tes de outras aldeias. Para cada dia passado em casa, os trabalhos
de rotina, como cozinhar, apanhar nozes, buscar lenha e buscar água
ocupam de urna a tres horas de seu tempo. Esse ritmo de trabalho
e descanso constantes é mantido ao longo do ano. Os cagadores ten-
dem a trabalhar mais freqüentemente do. que as mulheres, mas seu
esquema de trabalho é irregular. É comum um homem cagar avida-

27
tereótipo atual do aborígine. Forana logo liqüidadas16. O relaciona-
mento dos europeus com os “companheiros negros” era de conflito
pelas riquezas do continente; m uito pouco foi poupado do processo
de destruigáo para o luxo da contemplagáo. No caso, a consciencia'
etnográfica poderia somente herdar parcos residuos: principalmente
grupos do interior, principalmente povos do deserto, principalmente
os Arunta. Nao que estes estejam em má situagáo — normalmente
“sua vida nao é de forma alguma pobre ou muito difícil” (Spencer e
Gillen, 1899, p. 7 ) 17. Mas em ternios numéricos ou adaptacao eco­
lógica, as 'tribos centráis nao podem ser consideradas típicas dos
nativos australianos (cf. Meggitt, 1964). O seguinte quadro da eco­
nomía indígena, fornecido por John Edward Eyre, que cruzou a
costa sul e penetrou na cordilheira de Flinder, bem como residiu por
pouco tempo no rico distrito de Murray, tem o direito de ser, no
mínimo, reconhecido como representativo:
“Na maior parte da Nova Holanda, onde nao existem coloniza­
dores europeus, e sempre se pode encontrar água, o nativo nao
experimenta qualquer tipo de dificuldade em obter alimentacáo su­
ficiente durante todo o ano. É verdade que o caráter de sua alimen-
tacáo varia com a mudanza de estaqáo e com a formagáo da regiáo
que habita, mas raramente acontece que qualquer estacao do ano ou
qualquer tipo de térra nao lhe proporcione alimentos, tanto de origem
animal como vegetal. . . Desses artigos principalmente alimenticios,
muitos nao só sao encontrados em abundancia, mas também em tais
quantidades ñas estacoes apropriadas, que proporcionam durante lar­
go período de tempo, meios suficientes de subsistencia a várias cen­
tenas de nativos congregados em dado lo c a l... Na maior parte da
costa, e nos grandes rios interiores, peixes dos mais variados tipos sao
obtidos em grandes quantidades... No Lago V ito ria... observei
seiscentos nativos acampados juntos, todos eles vivendo dos peixes
que o lago lhes proporcionava, com a complementaqáo talvez, de
folhas de mesembriántemog. Nao percebi qualquer escassez quando

16. Como forana os tasmanianos, sobre os quais Bonwick escreveu: “Os


aborígines nunca tiveram falta de comida; embora Mrs. Somerville se tenha
aventurado a dizer em sua “Geografía Física” , que eles eram “verdadeiramente
pobres em um país onde os meios de vida eram escassós” . Dr. Jeannent,
antigo regente escreve: “Eles devem ter tido recursos abundantes e ter neces-
sitado pouco esforfo para se manter” (Bonwick, 1870, p.~14).
17. Por intermedio deste contraste com outras tribos mais remotas do
deserto central australiano, e específicamente sob “ circunstancias normáis”, e
nao em épocas de seca prolongada e continua quando “ele tem que sofrer
, privajao” (Spencer e Gillen, 1899, p. 7 ).
g . Género de plantas da familia das aizoáceas (N . do T .).

30
entrei em contato com eles. . . Em Moorunde, quando o Murray
inunda a planicie, os camaroes de água doce abrem caminho até a su­
perficie do s o lo .. . em tais quantidades que vi quatrocentos nativos
vivendo deles durante semanas, enquanto que o número que éstraga-
va ou que era jogado fora poderia sustentar mais quatrocentos. . .
Um suprimento ilimitado de peixes era também possível de ser obtido
no Murray, nos inicios do mes de dezembro. . . o número de peixes
obtido. . . em poucas horas era inacreditável. . . Outro tipo favorito
de comida, e igualmente abundante em dada estagáo do ano, na
regido oriental do continente, é urna espécie de mariposa que os
nativos procuram ñas cavidades e buracos das montanhas de certa
localidade. . . Os caules, folhas e galhos de um tipo de agriao,
colhido em urna dada estagao do ano. .'. forneciam urna oferta de
alimentos muito apreciados e inexauríveis, para um número ilimitado
de nativos. .. Existem muitos outros tipos de comida entre os nativos,
igualmente abundantes e táo úteis como os que descrevi” (Eyre, 1845,
vol. 2, pp. 250-254).
Tanto Eyre como Sir George Grey, cuja opiniáo otimista sobre
a economía indígena já assinalei (“Eu sempre encontrei a maior das
farturas em suas cabanas” ), realizám estimativas específicas em diá-
rias, do trabalho de subsistencia dos australianos (no caso de Grey,
estáo incluidos habitantes de regioés bastante indesejáveis da Austra­
lia Ocidental). O testemunho desses cavalheiros e exploradores está
estritamente de acordo com as médias de Arnhem Land, obtidas pór
McArthur e McCarthy. Grey afirma que “em todas as estagoes
normáis” (isto é, quando as pessoas nao estáo confinadas em suas
cabanas devido ao mau tempo) “podem obter em duas ou tres horas,
urna oferta de alimentos suficiente para o dia todo; mas seu costume
habitual é perambular indolentemente de local para local, colhendo
comida vagarosamente, como se estivessem passeando” (1841, vol. 2,
p. 263, grifo meu). Do mesmo modo, Eyre afirma: “Em quase todas
as partes do continente que visitei, se a presenga do europeu nao
havia destruido seus meios origináis de subsistencia, os nativos podiam
normalmente, em tres ou quatro horas, obter comida suficiente para
um dia, sem trabalho e sem fadiga” (1845, pp. 254-255, grifo meu).
Além disso, a mesm.a descontinuidade no trabalho de subsisten­
cia relatada por McArthur e McCarthy, o padráo de alternancia de
trabalho e sono, é repetida em observagoes posteriores e anteriores a
respeito de todo o continente (Eyre, 1845, vol. 2, pp. 253-254; Bul-
mer, “in” Smyth, 1878, vol. 1, p. 142; Mathew, 1910, p. 84; Spenper
e Gillen, 1899, p. 32; Hiatt, 1965, pp. 103-104). Basedow considerou
isso como hábito comum do aborígine: “Quando seu trabalho está
correndo b e m 'a caga está assegurada, e a água acessível, o aborígine

31
á matéria, que todas as culturas humanas se destinam a mitigar, foi
deliberadamente tornada mais rigorosa” (1947, p. 115). Mas, nossos
problemas nao sao os problemas deles, dos povos cagadores e colec­
tores,. Mais propriamente, urna riqueza primitiva colore seus sistemas
económicos, urna confianga na abundancia dos recursos naturais mais
do que o desespero diante da inadequagáo dos meios humanos. Quero
dizer que artificios pagaos que poderiam parecer estranhos tornam-se
compreensíveis pela confianga dos povos, confianga que é o atributo
humano razoável de urna economía em geral bem sucedida 22.
Consideremos o movimento crónico dos cagadores de um local
para outro. Esse nomadismo, muitas vezes tomado por ñós como
sinal de mortificagño, é empreendido por eles com certo abandono.
Smyth relata que os aborígines de Victoria, sao via de regra “viajan­
tes preguigosós. Eles nao tém motivos que os induzam a apressar os
movimentos. Geralmente, comegam a jornada no fim da manha e
há muitas interrupgóes pelo caminho” (1878, vol. 1, p. 125; grifo
meu). O bondoso Pere Biard, em seu “Relation”, de 1616, depois
de urna descrigáo entusiasmada dos alimentos acessíveis aos micmac
em cada estagao ( “Nem Salomao tinha mansao melhor ordenada e
próvida de alimentos” ) segue no mesmo estilo:
De modo a desfrutar inteiramente de sua sorte, nosso silvícola
inicia a caminhada para diferentes locáis com tanto prazer como se
estivesse a passeio ou em excursáo? Faz isso, fácilmente, através do
usé hábil de grandes caneas convenientes. . . tao rápidamente rema
que sem qualquer esforgo pode-se fazer trinta ou quarenta léguas
num dia; e no entanto difícilmente vemos os selvagens viajarem nessa
velocidade, pois seus dias sao apenas passatempo. Nunca se apressam.
Muito diferentes de nos, que nao podemos fazer nada sem pressa e
preocupagáo.. . (Biard, 1897, pp. 84-85).

22. Ao mesmo tempo em que a ideología burguesa da escassez fói deixada


á solta com o efeito inevitável de colocar em posipáo inferior urna cultura
mais primitiva, ela pesquisou e encontrón na natureza o modelo ideal a seguir,
se ó homem (ou pelo menos o trabalhador) quiser melhorar seu destino in­
feliz: a formiga, a formiga laboriosa. Nisso, a ideología foi táo errónea quanto
sua opiniáo sobre os capadores. No “Ann Arbor N ews”, de 27 de janeiro de
1971, sob o título de “Two Scientists Claim Ants a Little Lazy” ( “Dois den­
tistas afirmaran! que as formigas sao um pouco preguicosas” ); Palm Springs,
California. (A P) — “A s formigas nao sao todas como seu relato (se supóe?),
dizem os drs. George e Jeanette Wheeler. O casal de pesquisadóres dedicaram
arios ao estudo dessas criaturas, heróis de fábulas, sobre,j i laboriosidade. “Sem-
pre que observamos um formigueiro, temos a impressáo de tremenda quantidade
de atividade, mas isto é simplesmente devido á existencia de muitas formigas
e todas elas se assemelham”, assim concluem os Wheeler. Individualmente,
as formigas gastam muito tempo ém ociosidade. E, pior do que isso, as for­
miga trabalhadoras, que sao todas mulheres, gastam parte de seu tempo a
enfeitar-se.

34
Os cagadores, certamente, abandonara as aldeias porque as
fontes de alimentos se esgotam na vizinhanga. Mas, ver nes'se noma­
dismo mera fuga da fome, é somente ver a metade da questaO; ignora^
se a possibilidade de que as expectativas que tém de pastagens mais
verdes em outros lugares nao sao em geral frustradas. Conseqüente-
mente, as viagens tomam mais o caráter de piquenique as margens
do Tamisa.
Urna questáo mais séria é apresentada pela observagao freqüente
e exasperada de certa “falta de visao” dos poyos cagadores e coleto-
res. Continuamente orientados pelo presente, sem “o mais superficial
pensamento ou preocupagao com o amanha” (Spencer e-Gillen, 1899,
p. 53), os cagadores nao parecem querer poupar comida, incapazes
de resposta planejada para o triste destino que certamente os espera.
Apesár disso, adotam indiferenga premeditada, que se expressa em
duas tendencias económicas complementares.
A primeira é a prodigalidade: a propensao a consumir de urna
só vez toda comida existente na aldeia, mesmo durante os períodos
objetivamente difíceis. “Como se” — disse LeJeune a respeito dos
montagnais — “a caga que tivessem de matar estivesse encarcerada
em um estábulo”. Sobre os australianos, Basedow esCreveu que, seü
lema (dos nativos) “pode ser interpretado como contendo a idéia de
que, enquanto há o suficiente para hoje, nunca é preciso preocúpar-se
com o amanha. Dessa maneira, um aborígine prefere fazer urna festa
com suas provisóes em vez de urna refeiqao modesta no momento, e
outra depois” (1925, p. 116), LeJeune viu mesmo, seus montagnais
levarem tal extravagancia á beira do desastre:
Na fome que passamos, se o meu anfitriao consegue dois, tres ou
quatro castores, ¡mediatamente, seja dia ou noite, realizara urna festa
para todos os selvageus vizinhos. E se aquele povo capturou alguma
coisa, também faz urna festa ao mesmo tempo, e tanto que, saindd
de urna festa, vocé vai a outra e as vezes a urna terceira e a urna
quarta. Disse-lhes que nao eram bons administradores, e que seria
melhor reservar essas festas para dias futuros; e se assim o fizessem,
nao seriam tao ameagados pela fome. Riram de mim. “Amanha”
(disseram eles) “faremos outra festa com o que capturarmos”. Cer­
tamente, mas muitas vezes capturara somente frió e vento (LeJeune,
1887, pp. 281-283). -
Escritores complacentes tentaram apresentar as razóes desse
aparente absurdo. Talvez estivessem fora de si por causa da fome:
sao capazes de se empanturrar numa cagada porque ficaram muito
tempo sem carne — e sabem que, provavelmente, o mesmo Ihes
acontecerá novamente. Ou talvez, fazendo urna festa com seus ali­
mentos, um homem esteja respondendo a obrigagóes de compromisso
i 35
.góes naturáis e a originalidade de urna resposta social em sua pobreza:
a abundancia.
Quais sao as vantagens reais da praxis dos povos cagadores e
coletores? Se os exemplos existentes significam alguma coisa, nao é a
“baixa produtividade do trabalho”. Mas, a economía é seriamente
ameagada pela iminéncia de rendimentos decrescentes. Iniciando-se
na subsistencia e espalhando-se em todos os setores, um sucesso
inicial parece somente desenvolver a probabilidade de que esforgos
posteriores propiciarao beneficios menores. Isso descreve a curva
típica da caga/coleta, em determinado local. Normalmente, mais cedo
ou mais tarde, um modesto número de pessoas reduz oS recursos
alimenticios dentro de urna extensáo adequada da aldeia. Depois dis-
so^ podem ficar somente absorvendo aumento nos cusios reais ou
declínio nos rendimentos reais: aumento nos cusios, se o povo opta
pela busca bem mais longe do local; declínio no rendimentó, se estáo
satisfeitos em viver com os poucos recusos ou com alimentos piores,
de fácil procura. Naturalmente, a solugao é ir para outro lugar. Por­
tanto, a primeira e decisiva contingencia dos povos cagadores e cole­
tores: necessidade de movimento para manter a produgao em termos
vantajosos.
Mas, esse movimento, mais ou menos freqüente, mais ou menos
importante, segundo as circunstancias simplesmente transiere a outras
esferas de produgao os mesmos rendimentos decrescentes que os origi­
naran!. A mánufatura de ferramentas, tecidos, utensilios ou ornamen­
tos, einbora de fácil fabricagao, torna-se sem sentido quando comegam
a se tornar mais urna carga do que conforto. A utilidade diminuí
rápidamente, de acordo com a dificuldade de transporte. Da mesma
forma, a construqao de grandes casas tornar-se-ia um absurdo, se
devem ser rápidamente abandonadas. Éssas condigoes explicam a
concepgáo muito ascética quanto ao bem-estar material: interesse
somente por equipamento mínimo; valorizagáo de coisas menores ao
invés de maiores; desínteresse em adquirir duas ou mais unidades da
maioria dos produtos, e assim por diante. A pressáo ecológica assume
forma singularmente concreta quando tem que ser carregada ñas
costas. Se o produto bruto é bem mediocre, em comparagao ao de
outras economías, isso nao acontece pela produtividade dos cagado-
res, mas por sua mobilidade.
Quase a mesma coisa pode ser dita sobre a pressao demográfica.
A mesma política de se livrar do que nao é indispensável está presente,
segundo as mesmas modalidades e pelas mesmas razóes que em outros
dominios fríamente, os termos sao: rendimentos decrescentes de
acordo com o limite do transporte, equipamento mínimo neCessário,
eliminagáo de duplícalas e assim por diante — o que significa, infanti­
cidio, eliminagao dos velhos incapacitados para o trabalho, abstinén-

38
cia sexual durante o período de amameñtagño de crianzas etc.. . . ,
práticas pelas quais muitos povos coletores de alimentos sao famosos.
A suposigáo de que tais artificios sao causados pela inabilidade de
sustentar mais pessoas, é provavelmente correta— se “sustentar” é
entendido no sentido de carregar mais do que alimentar. Como os
cagadores, tristemente, dizem algumas vezes, as pessoas eliminadas
sao aquelas que efetivamente nao podem transportar a si próprias,
que retardaríam o movimento da familia e da aldeia. Os cagadores
podem ser obrigados a manipular bens e pessoas de modo paralelo,
a política populacional draconiana como expressáo da mesma eco-
logia que a da economia ascética. Mais, essas práticas de controle
demográfico novamente fazem parte de urna política mais ampia para
contrabalangar os retornos decrescentes da subsistencia; Üm grupo
local torna-se vulnerável aos rendimentos decrescentes — portanto,
a urna maior velocidade de movimento ou entáo á sua divisáo — em
proporgáo ao seu tamanho (todos os fatos). Visto que' a populagao
deve manter a vantagem na produgao local e análogas certa estabi-
lidade física e social, as práticas malthusianas sao cruelmente consis­
tentes. Os modernos povos cagadores e coletores, Vivendo em am­
bientes notavelmente inferiores, passam a maior parte do ano em
pequeños grupos separados. Mas, esse padráo demográfico é melhor
entendido como o custo de viver bem, e nao como sinal de subpro-
dugáo ou pobreza. .
Os cagadores e coletores póssuem a forga de suas fraquezas.
Movimento e limitagáo periódicos na riqueza e na populagao sao ao
mesmo tempo imperativos da prática económica e das adaptagoes
criativas. Sao, de qualquer modo, necessidades transformadas- em
virtudes. Mobilidade e moderagáo colocam os fins dos cagadores den­
tro.dos limites de seus meios técnicos. Portanto, um modo de produ-
gao fundado em técnicas rudimentares pode ter 'um alto rendimento.
A vida do cagador nao é táo difícil quanto parece vista de forá. De
alguma forma, a economia reflete urna ecología difícil, mas é também
úma inver sao completa.
Relatos sobre os cagadores e coletores da etnología atúal —
específicamente aqueles em ambientes margináis — sugejrem urna
media diária de tres a cinco horas de trabalho adulto na coleta' de
alimentos. Os cagadores tém horário de bancários, muito menor do
que o dos trabalhado.res industriáis modernos (sindicalizados), que
certániente se contentariam com 21 a 35 horas semanais.
Uma comparagáo interessante é colocada por estados. recentes
de cusios de trabalho entre agricultores do tipo neolítico. Por exem-
plo, o adulto hanunoo médio, homem ou mulher, despende 1.200
horas diárias no cultivo itinerante (Conklin, 1957, p. 151); o que
ñgnifica uma média de tres horas e vinte minutos diários-.

39
liberdade do controle do meio ambiente. Em certo sentido, o último
ponto é especificamente útil para a compreensáo das primeiras etapas
do progresso técnico. A agricultura nao só permitiu ultrapassar o está-
gio da distribuigáo dos recursos alimentares naturais, como permitiu
que as comunidades neolíticas preservassem a órdem social mesmo
quando esses recursos faltavam. Durante algumas estacóos, alguns
alimentos poderiam ser colhidos para sustentar a populagao também
na época de plantío. A estabilidade da vida social, portanto, era
crítica para seu desenvolvimento material. Assim, a cultura continuou
avanzando triunfalmente, numa espérie de desafio progressivo da
lei biológica do “minimum”, até provar que poderia sustentar a vida
humana no espago interplanetário onde mesmo a gravidade e o
oxigénio nao existam,
Nesse mesmo momento, outros hornens estavam morrendo de
fome nos mercados da Asia. Trata-se de evolugao de estruturas bem
como das técnicas, e a esse respeito assemelha-se á estrada mítica
onde, a cada passo que o viajante avanca, seu destino recua dois. As
estruturas foram políticas bem como económicas, de poder, bem
como de propriedade. Elas se desenvolveram dentro das sociedades,
e agora crescem entre sociedades. Sem dúvida, essas estruturas foram
funcionáis, e necessárias do desenvolvimento técnico, mas no interior
das comunidades que permitiram o enriquecimento, elas conduziriam
as repártigóes desiguais e diferenciagóes nos estilos de vida. Os mais'
primitivos povos da térra tém poucas posses, mas nao sao pobres. A
pobreza nao é urna certa relagao de bens, nem simples relagao entre
méios e fins; a cima de tudo, é relagao entre pessoas. A pobreza é
um estatuto social, invengao da civilizagao. Cresceu com a civilizagáo,
como relagao tributária — que pode tornar os agricultores mais
suscetíveis as catástrofes naturais do que qualquer aldeiamento de
invernó do esquimo do Alasca.
Toda discussáo precedente tomou a liberdade de interpretar
históricamente os modernos cagadores, como representantes dé um
ponto de partida na evolugao. Essa liberdade nao deveria ser ligeira-
mente inconsiderada. Os cagadores marginalizados, como os bosquí-
manos de Kalahari sao muito mais representativos da condiglo
paleolítica do que os indígenas da California ou da costa nordeste?
Talvez nao. Talvez os bosquímanos de Kalahari nao sejam também
nem mesmo representativos aos cagadores marginalizados. A grande
maioria dos povos cagadores-coletores sobreviventes levam urna vida
curiosamente decapitada e extremamente ociosa5-se comparada com
a vida, de alguns outros. Estes outros sao bem diferentes. Por exemplo,
os murgin: “A primeira impréssao que um estranho tem em-grupo
em Arnhem Land em pleno funcionamento é urna impréssao de
intensa átividade.. . '

42
E deve fícar impressionado com o falo de que, com excecáo de
criangas muito jovens.. . nao há nenhuma ociosidade” (1949a, pp.
33-34). Nada há que indique ser o problema da habitagáo mais
difícil para esse povo do que para outro (cf. Thomson, 1949). Os
motivos de sua atividade incomuin jazem em outra parte: em “urna
vida cerimonial elaborada e excitante”, específicamente em um ela­
borado ciclo de intercambio cerimonial que dá prestigio á habilidade
das pessoas e á ocupagáo (Thomson, 1949a, pp. 26, 28, 34 f, passim).
A maioria dos outros cagadores nao possui esse tipo de preocupagáo.
Sua existencia é comparativamente sem cor, baseada únicamente em
comer com prazer e digerir ociosamente, A orientagao cultural nao
é dionisíaca ou apolínea, e sim “gástrica”, como dizia Julián Steward
sobre os shoshoni. Mais urna vez, portanto, ela deve ser dionisíaca,
ou seja, orgíaca: “O comer, entre os selvagens, é como o beber entre
os beberróes europeus. Aquelas almas secas e sempre sedentas, de
boa vontade, terminariam suas vidas em um barril de malvasiah, e
os selvagens em um pote chelo de comida; aqueles falam somente a
respeito de bebidas, e estes somente a respeito de comida” (LeJeune,
1897, p. 249).
É como se as estruturas dessas sociedades estivessem corroídas,
vivendo somente da simples luía pela sobrevivencia; e como a própria
produgao é prontamente realizada, o povo tem tempo suficiente para
sentar-se e falar déla. Levanto a possibilidade de que a etnografía de
cagadores e coletores é em larga medida registro de culturas incom­
pletas. Ciclos frágeis de rituais e trocas devern ter desaparecido sem
deixar rastro, perdidos nos estágios mais primitivos do colonialismo,
quando as relaqoes intergrupais foram atacadas e alteradas. Se assim
é, a riqueza na sociedade “primitiva” terá que ser repensadá nova-
mente em sua originalidade e os esquemas evolutivos mais urna vez
revisados. Se nao resta mais nada, que os cagadores contemporáneos
nos fornegam elementos que possam servir á elucidagao de urna
questáo histórica: eles nos mostram que o “problema económico”
pode ser fácilmente solucionado com técnicas paleolíticas. Mas, só
quando a cultura atingiu o ápice de seu desenvolvimento material,
erigiu um santuário ao Inatingível: as necessidades infinitas.

*
BIBLIOGRAFIA REFERENTE AS NOTAS DE RODAPÉ
DO TEXTO (n. do t.)

BONWICK, JAMES — 1870. Daily Ufe and origin of ihe Tasmanians. London:
Low and Merston.

h . Variedade de vinho (N; do T.).

43
taras sociais que existem no seio das comunidades esíudadás pela
antropología” 1. Perspectiva contrária é veemeníemente enfatizada
pelo funcionalista Robert McNetting.
“Tínhamos a concepcáo de que a chave da imensa e. complexa
unidade da sociedade encontrava-se em sua estrutüra, e que essa
estrutura se fundava ñas relacóes de parentesco, casamento e ñas
relacóes políticas. ( . . . ) Nelas se escondiam simetrías sutis, redes
com; »xar; a cerem descofcertas, aínda que as atividades de subsis­
tencia fossem vistas como realidades simples, indiferenciadas, e que
se repetiam da mesma e causativa maneira, qualquer que fosse o
lugar onde fossem encontradas” 2.
Na prática, essa postura teórica resultou em análises minucio­
sas e, freqüentemente, profundas das relacóes de parentesco ou das
relacóes político-ideológicas, ainda que a economía de numerosas
sociedades fosse estudada de maneira “eclética” 3, ilustrada perfei-
tamente na obra (mais de compilacáo que de síntese) de Melville
Herskovits, The Economic Life of Primitive Peoples, 1940 4.
No entanto, é preciso ver que esse desdém e ecletismo, com
suas conseqüéncias teóricas, puderam, em certa medida, aparecer
como justificados pelos fatos, pois é inquestionável que em nume­
rosas sociedades pré-.capitalistas as relaqóes de parentesco, ou as re­
lacóes político-religiosas parecem “dominar” seu funcionamento e
controlar a reproducao de seu modo de producao, seja o parentesco
entre os Nuer, ou os aspectos político-religiosos entre os astecas e
incas.
Foram muitos os que viram nessas dominancias a prova de que
a. economia nao exerceu nenhum papel determinante no funciona­
mento e evolugáo das sociedades pré-capitalistas nao pcidentáis, de-
sempenhando, por essa razao, papel menor na historia da humanidade.
Levando a extremos essa posicao, certos autores, como Warner 'em
reí acao aos murgin da Australia, afirmarám que esta e oütras so­
ciedades paredaña totalmente desprovidas de estrutura- económica,
pois nao puderam, em nenhuma délas, descobrir urna estrutura que
existisse separadamente das relacóes de parentesco; essas relagóes
funcionavam como “instituicao geral”, segundo a feliz expressáo de
Evans-Pritchard. N a verdade, todo o problema está no fato de que

1. R. Firth, Primitive Polynesian Economy, op. cit., pág. 14.


- 2. Robert McNetting, “The Ecological Approach' in Cultural Study” —
A MacLeb M odule in Anthropology, 197Í.
3. A fórmula é de R. Firth,- Economics o f the New Zealand, Ovven, Wel-
lington, 1959, pág. 32. , '*•
4. M. J: Herskovits, The Economic Life of Primitive People, A . A . Knopf,
New York, 1940.

46
¡
os antropólogos funcionalistas e, freqüentemente, aqueles que. se pre-
tendem marxistas, acreditara, mas de maneira espontánea e nao
científica, que as relacóes de produgáo só podem existir sób usina
forma que as diferencie e.as separe de outras relagóes sociais, como
é o caso das relacóes de producáo no modo de producáo capitalista.
Nao ños espantemos pois, se, inspirados por .tal concepcao nao
científica e aprirística das relacóes de produgáo, muitos antropólogos
tratem de maneira- deformada e insuficiente a análise das bases
económicas das sociedades que estudam. Na verdade, a economia se
reduz a seus olhos ao que é diretamente visível como tal. Ora,
sabendo-sfe-que, freqüentemente, urna parte das relagóes de produgáo
se dissimula no funcionamiento das relagóes de parentesco e das
relagóes político-religiosas, o estudo da economia fica necessariamente
reduzido ao estüdo da organizagáo do trabadlo na produgáo dos
'meios de subsistencia e as regras da propriedade, acrescentando-se,
p o r, vezes, o estudo da tecnología, ainda que ela nao pertenga
stricto sensu á economia.
Essas pegas que faltam ao modo de produgáo, suas partes invi-'
síveis, podem, portanto, ser estudadas indiretamente, no momento
em que o antropólogo examina as diversas fungóes das relagóes de
parentesco e das relagóes político-religiosas; isso se sua análise nao
se limitar ao estudo da terminología de parentesco e das normas de
casamento, residencia e filiagáo. Isso prova que a própria concepgáo
ideológica e emplasta das relagóes de produgáo, de um lado empo­
brece, retalha e falseia a análise da economia; e, de outro, falseia
necessariamente, e pelas mesmas razóes, a análise do parentesco, da
política e da religiáo. É a prática teórica, em seu conjunto e em cada
um de seus níveis, que é invertida e subvertida pelos efeitos desses •
pressupostos ideológicos empiristas. A partir do momento em que a
economia foi confrontada com o parentesco, a religiáo, as formas de
poder, assim como com outras tantas Variáveis radicalmente exte­
riores a ela mesma, nao é de espantar que a pesquisa éstatística de
correlagóes positivas entre economia e estruturas sociais, ou entre a
evolugáo dos modos de produgáo e a evolugáo das sociedades, tenha
levado a um questionamento e á afirmagáo de G. P. Murdock “con­
tra os evolucionistas, que nao existe seqüéncia inevitável de formas
sociais nem de associagáo necessária entre as regras particulares de
residencia ou de descendencia, de tipos particulares de grupos ou
terminologías de parentesco e de níveis particulares de cultura, de
tipos de economia, formas de govemo ou estruturas de classe” 5.

5. G. P. Murdock. Social Sttuctures, MacMillan Company, 1949, pág. 200.

47
sobre a organizacao social da India tradicional, portanto em um autor
que se considera acima de tudo estruturalista.
Na verdade, a objeqño cai por térra a partir do momento em
que se constata nao ser suficiente que urna instancia assuma várias e
náo importa quais funqóes para ser dominante, se nao assumir a
iuncao de relacoes de producao, o que nao quer dizef, nécessaria-
mente, o papel de 'esquema organizador do processo concreto de
trabalho, mas o controle do acesso aos meios de produeño e aos
produtos do trabalho social. Esse controle significa, igualmente, auto-
ridade e sanqoes sociais, portanto, relaqóes políticas. Sao as relacoes
de producao as responsáveis pela dominancia de determinada instan­
cia. Tém, portanto, eficácia determinante geral sobre a organizacao da
sociedade, urna vez que determinara a dominancia e através da
dominancia a organizacao geral da sociedade.
Nao basta dizer, portanto, que as relacoes sociais devem ser
funcionalmente interdependentes para que urna soceidade exista,'nem
mesmo que esta interdependencia tem várias funqóes necessárias e
complementares. Além desses temas que tocam de perto a banalida-
de, o ponto essencial é o que concerne á casualidade e, portanto, á
eficácia específica de cada funeño (ou seja, as relagoes sociais que
assumem) sobre a forma e o contéúdo da organizaqao social. Ora,
se na realidade as diversas instancias sociais sao hierarquizadas de
acordo. com as funqóes que assumem e, se á funqño das relaqoes de
produeño é o principio primeir.o de sua hierarquia, a formulaqáo
rigorosa da problemática das ciencias sociais torna-se a seguinte:
Em que condigoes e por quais razoes urna instancia assume as
fungóes de relagoes de produgáo e controla a reprodugao dessas rela­
goes, assim como a das relagoes sociais em seu conjunto?
Vemos, de imediato, que essa problemática é a de Marx, e reto­
ma a hipótese, colocada por ele, da determinaqño, em última instancia,
do processo da vida social e intelectual pelo modo de produqao da
vida material. Vemos, igualmente, que essa hipótese nao é contestada
pela análise das sociedades sem classes ou das sociedades de classe
nao capitalistas e que nao há, portanto, razño alguma para opor an­
tropología e historia. Mas, vé-se, sobretodo, que responder a essa
questao nño é somente levar em conta a economía de urna sociedade,
mas de todas as suas estruturas sociais, e que tal tarefa nao leva ao
desenvolvimiento de urna antropología económica concebida como
disciplina fetichista e autónoma, e sim á retomada geral metódica­
mente rigorosa do campo teórico da antropología.
Esses'sño ós pontos essenciais de nossa crítica ao funcionalismo
empirista clássico. Essa Crítica nao pára ai. A hipótese da interde­

50
pendencia funcional das partes de um sistema social e a hipótese
supiementar de que todo sistema social está em equilibrio ou tende
a se equilibrar tornava freqüentemente difícil ou irapossível aos fun-
cionalistas admitir e descobrir a existencia, no interior do sistema que
estudavam, de contradicoes a nivel de urna estrutura social ,ou entre
várias estruturas. Isso os levou a procurar fora desses sistemas as
causas de sua evoiucáo e de seu. desaparecimento. Essa evolucáo náo
parecía ter urna razáo interna, e parecía o produio de circunstancias
contingentes em relapao a lógica interna desses sistemas. Toda a his­
toria humana apresentava-se como a soma contingente de todos esses
acidentes.
Náo se trata, obviamente, de negar a existencia de causas exter­
nas da transformagáo e evolugáo dos sistemas económicos e sociais,
nem mesmo negar que todo sistema, em seu funcionamento, implica
a reproducáo das relagoes sociais que o constituem. Mas, é preciso
enfatizar que, externas ou internas,' as causas somente tém efeito
porque,colocam em jogo (agindo, portanto, como causas últimas) as
propriedádes estruturais dos sistemas. Essas propriedades sáo sempre,
em última análise, ímanentes a esse sistema e explicam o aspecto inin­
tencional de seu funcionamento. De maneira semelhante, afirmar que
dois termos ou duas relacóes entre termos, ou duas estruturas se
opóem, náo significa negar sua complementaridade, mas simplesmen-
te afirmar que esta existe dentro de certos limites e que, além desses
limites, o desenvolvimento da oposicáo náo permite mais a manutencáo
da complementaridade. Isso se tornou evidencia quase banal, a partir
do momento em que a cibernética e a teoría dos sistemas formularam-
na matemáticamente, tornando-a operacional. Entretanto, nada mais
é do que outra formulacáo do principio da unidade dos contrários,
que. se encontra na dialética de Hegel e na de Marx. Ora, náo há razáo
alguma para que se confunda o principio da unidade dos contrários,
que é científico, com o principio fundamental da dialética hegeliana
da identidade dos contrários, que náo tem nenhum fundamento cien­
tífico. O principio de identidade dos contrários é, nada mais nada
menos, que a condicáo necessária para construir um sistema meta-
físico :-fechado, o do idealismo absoluto, que parte do postulado
indemonstrável que se formula nos seguintes termos: o “Espirito” é
a única realidade que existe e que se coútradiz a si mesmo e em si
mesmo, e que permanece idéntica a si própria, através de suas contra-
dicóes, já que a mátéria é o pensamento em si, que náo se pensa e
náo se contradiz enquanto pensamento; e que o “logos” é o pensa­
mento para si, que se opoe ao pensamento em si, á matéria, e que a
unidade do pensamento em si e do pensamento para si reside em sua
identidade como formas do Espirito Absoluto.

51
Em lugar de ver no potlatch dos indios da cosía noroeste forma
“excéssiva de competicao originária de urna propensáo cultural á
megalomanía9”, abastecida por urna multiplicidade de recursos
de um meio pródigo, Sutiles m'ostrou que esse meio era bastante
diversificado e que os recursos estavam repartidos entre os grupos
com extrema desigualdade. Mostrou, igualmente, que quanto mais se
caminhava em direcao ao norte, mais e'ssa desigualdade tendía a se
acentuar, e mais os grupos locáis tendiam a afirmar fortemente seus
direitos de propriedade sobre áreas produtivas e a praticar o potlatch.
'Suttles enfatizou aínda o fato de que, onde os recursos eram mais
fortemente concentrados como entre os Haida, os Tsimshian e os
Tlingit, a cooperagao económica no interior dos grupos era mais
intensa; os chefes dirigiam o processo de producáo e a divis ño dos
produtos mais rigorosamente, e sua autoridade estava ligada de ma-
neira mais rígida ao funcionamento de grupo de parentesco, nos
quais os lapos dé descendencia eram mais intensamente unilineares
do que em regióes de características diversas.
A análise das características do potlatch está longe de seu tér­
mino, e Suttles tem sido muito criticado por nao ter realmente
demonstrado sua hipótese de que a funcáo latente do potlatch era a
de redistribuir os meios de subsistencia excedentes em determinado
grupo, entre os grupos onde os elementos necessários á subsistencia,
faltassem de modo crítico. O potlatch nao se “reduz” a um mecanis­
mo complicado e disfarpado de seguranpa contra os riscos de urna
crisé de subsistencia proveniente das excepcionais flutuapóes da
produpáo dos recursos naturais, flutuapóes efetivamente normáis, m as'
que poderiam trazer conseqüéncias catastróficas entre os cacadores-
coletores, ou entre pescadores que nao produzem seus recursos. As
discussoes provocadas pelas teses de Suttles e de Vayda suscitaram.
novos trabalhos que levavam em conta todas as informacóes acumu­
ladas desde Boas, por Barnett, Murdock, Helen Codere, Piddocke
etc., e permitiram o aparecimento de trabalhos importantes, como
Making my Ñame Good, de Drucker e Heizer e Feasting with my
Enemy, de Rosmán e Rubel. Doravante, fica claro que as competí-,
cóes do potlatch e suas práticas célebres de destruipáo ostentatória nao
eram apenas a expressao de urna “cultura” original, que colocava os
valores e comportamentos de honra e de prestigio acima de tudo.
Eram, também, a expressao pública de urna economía bem adminis­
trada e capaz de produzir excedentes abundantes e regulares e, ao
mesmo tempo, prática político-ideológica para "abrigar, pela redistri-
buipáo cerimonial desses excedentes, os grupos vizinhos ou aliados,
potencialmente hostis, a reconhecerem pública e pacificamente a legi-

9. Ruth Benedict, 1946, pág. 169.

54
timidade da manutencao dos direitos dos grupos sobre seus territorios
e sobré seus recursos. As características do potlatch sao, portanto,
características multifuncionais, como sublinha Piddocke, “fatos sociais
totais”, como dizia Mauss, “fatos de economía política” no sentido
pleho do termo; ou seja, fatos que, por receberem explicagao cien­
tífica, exigem que se lhes reconhega as funcoes económicas das
relacoes de parentesco e das relacóes político-ideológicas; portanto,
que se lhes reconstrua, pelo pensamento, a configuracao exata do
modo de producáo que permitía a produgáo e o controle de vastos
excedentes de bens de subsistencia e de prestigio. Existem todas as
chances de que essa reconstrucao nao somente elimine toda interpre-
tagáo “culturalista” e idealista do potlatch, mas aínda negue a hipóte­
se de que o significado latente, a racionalidade escondida do potlatch
era a de assegurar vantagens selétivas aos grupos que o praticavam.
É igualmente difícil sustentar a idéia, célebre desde Herskóvits,
de que os criadores africanos sao acometidos de um “complexo do
gado”, que. exprime antes de tudo “escolha cultural” do que sujei-
cóes ecológico-económicas. A antropología deve, com efeito, explicar
um conjunto de fatos bem conhecidos e que parecem, com freqüén-
cia, aos europeus, profundamente irracionais. O gado parece, ser ri­
queza acumulada mais para adquirir prestigio e status social, do que
para assegurar a subsistencia de seus possuidores ou mesmo seu enri-
quecimento financeiro pela troca no mercado. Quando se troca, é
sempre de maneira nao mercantil, para selar urna alianca matrimonial
ou assegurar direitos sobre descendencia. Habitualmente, o se
acumula em vastos rebanhos, e a carne é consumida em bertas oca-
sióes cerimoniais, sendo que os animad áSo sao utilizados como bestas
de carga, fornecendo ape-uss parca producáo leiteira. O animal, longe
de ser bem utiiitário, seria associado pelo homem prímordialmente
aos rituais que acompanham seu próprio nascimento, matrimonio,
morte e ao qual estará ligado emocional e até místicamente.
Pouco a pouco, depois dos trabalhos de Gulliver, Deshler,
Dyson-Hudson, Jacobs etc., esses “tragos” culturáis ganham outra
perspectiva. Rápidamente, percebeu-se que tinha havido certa preci-
pitagao ao declarar que o gado era apenas bem de prestigio, A partir
desse dado, foram inventariadas múltiplas ocasióes em que ele era
trocado nao cerimonialmente por produtos agrícolas e artesanais de
povos sedentários. Constatou-se, igualmente, que havia razóes muito
práticas no fato de que a prepáragáo para a morte e consumo do gado
tivesse adquirido característica cerimonial excepcional. Para urna uni-
dade de produgáo doméstica, a impossibilidade de conservar e consu­
mir sozinho a quantidade de carne que representa urna cabega de
gado impoe urna divisao com as outras unidades que compóem o
grupo, e essa divisao cria ou reforga redes de obrigagóes recíprocas,

5S
mesmo de sua presenta. A problemática da vantagem adaptativa nao
especifica urna resposta concreta única. Enquanto o principio de
causalidade, em geral, e de realizagao económica, em particular, a
nocáo de “vantagem adaptativa” é indeterminada: ela estipula gros-
seiramente o que é impossível, mas torna aceitável qualquer coisa
possível” 12.
Nessa perspectiva, as razóes de dominancia das relagóes de
parentesco ou das relagóes político-religiosas, da articulagáo específi­
ca das estruturas sociais permanecem inacessíveis á análise; e a cau­
salidade estrutural' da economia se orienta para urna eorrelagao
probabilística, assim como a historia, como ocorre no empirismo, para
urna série de acontecimentos de maior ou menor freqüéncia 13.
O ceticismo einpirista retoma seus direitos, e as fraquezas de
certas análises neomaterialistas concernentes ao parentesco e á reli-
giao mantém viva e reforgam novamente as teorías idealistas da
sociedade e da historia que os partidários da “ecologia cultural”
criticam e combatem. Materialismo empirista e funcionaüsmo sim-
plificador permanecem, definitivamente, impotentes para explicar as
razóes do que existe, isto é, a historia e o conteúdo de sociedades
que jamais sao totalidades completamente “integradas”, mas totalida­
des cuja unidade é o efeito provisoriamente estável de urna compati-
bilidade estrutural, que permite as diferentes estruturas reproduzirem-
se até o ponto em que a dinámica interna e externa desses sistemas
impega essas totalidades de existirem como tais 14. Esse íracasso, en­
12. M. Sahlins, “Economic Anthropology and Anthropological Econo-
mics”, op. cit., pág. 30.
13. Marvin Harris: “Dependent as we are on the unfolding of the natural
continuum of events, our generalizations must be courbed in probabilities de-
rived from the observation of the frequencies with which predicted or retrodic-
ted events occur” (The Rise of Anthropological Theory, T. Y. Cronwell, New
York, 1968, pág. 614).
14. Cf. M. Sahlins, “Economic Anthropology and Anthropological Eco-
nomics”, op. cit., pág. 80. “The new materialism seems analitically innocent of
any concern for contradiction — although it sometimes figures itself a Client
of marxísm (minus the dialectical materialism). So it is an mindful of the
barriers opposed to the productive forces by established cultural organization
cach congealed by its adaptive advantages in some State of fractional effecti-
veness”.
Aproximemos este comentário de Marshall Sahlins, recordando o trecho de
urna carta que Engels enderecpu a Lavrov, em 12 de novembro de 1875. Lavrov
pediu-lhe que enviasse urna opiniáo a respeito de um artigo intitulado “O So­
cialismo e a luta pela vida”, que apareceu na revista Beneped (Avante!), em
15 de setembro de 1875. Lembremos que Engels náo sfe refere precisamente
a Darwin, posto que o considerava um dos mestres do pensamento científico
moderno, juntamente com Marx, mas refere-se aos “darwinistas burgueses” .
“D a doutrina darwinista eu aceito a teoría da evolupáo, mas nao adoto
o método de demonstragáo de Darwin (luta pela vida, seíegáo natural), que,
como primeira expressáo, expressáo provisoria, é imperfeita porque o fato

58
tretanto, nao significa que a avaliagáo dos trabalhos dos antropólogos'
e arqueólogos que adotam urna abordagem ecológica e materialista
nao seja bastante positiva. O conhecimento dos mecanismos de
funcionamento das economías baseadas na caga, coleta, criagao ex­
tensiva de animáis ou agricultura de queimadas foi ampliado e preci­
sado a partir do momento em que se empreendeu o estado sistemático
e minucioso das coagóes que o meio e as técnicas exercem ou exer-
ciam sobre a vida material dessas sociedades; e quando se passou a
medir as relagóes reais que éxistem em seu interior, entre necessidades
sociais e meios de satisfazé-las. Certo número de falsas evidencias,
que traduziam tanto a ignorancia dessas condigóes reais como os
preconceitos ideológicos de que antropólogos e economistas sao veto-
res conscientes ou' inconscientes, foram reconhecidas, e, doravante,
articula-se ativamente sua expulsao do campo do conhecimento cien­
tífico. Esse processo crítico atinge, além do campo da antropología,
o postulado ideológico que vicia desde sua raiz todo o pensamento
económico burgués, e limita permanentemente o alcance científico de
suas pesquisas e descobertas, o postulado metafísico ,de que os ho-
mens sao condenados por natureza á insatisfagáo de suas necessida­
des estando, portanto, forgados a calcular o uso ótimo de seus meios,
e que será objeto e fundamento da ciencia económica. Deixaremos H.
Guitón enunciar com convicgáo este postulado:
“O homém traz em si mesmo urna necessidade de infinito, e
tropega constantemente com o finito da criagao. Essa antítese traduz-
se primeiramente na idéia da raridade. As necessidades aparecem
como inumeráveis e os meios de satisfazé-las sao limitados. Ele pode
concluir, também, que os meios sao suficientes, por vezes até nume­
rosos demais. Entáo, outra nogáo intervém: a de inadaptagáo. Os
acabou de ser descoberto. Até Darwin, sao precisamente as pessoas que hoje
véem apenas a luta pela vida (Vogt, Büchner, Moleschot etc.) que afirmavam
a existencia da agao coordenada da natureza orgánica; que enfatízavam de que
forma o reino vegetal fom ece ao reino animal o oxigénio e o alimento, e como,
em contrapartida, o reino animal fornece as plantas adubo e ácido carbónico,
e que' foi grandemente ressaltado sobretodo por Liebig. As duas concepcóes
se justificam em certo limite. Mas, tanto urna como outra é limitadá, é uni­
lateral. Assim, a iriteraqáo dos corpos naturais vivos e mortos pode explicar-se
mais na harmonía do que no conflito, mais na luta do que na cooperacáo. Se,
em conseqiiéncia, um dado naturalista se permite resumir toda a riqueza, toda
a variedade da evolucáo histórica a urna fórmula estreita e unilateral, a da
“luta pela vida”, fórmula que nao pode ser admitida mesmo no dominio da
natureza senáo “cum grano salís”, esse procedimento traz em si mesmo a sua
condenacáo ( . . . ) .
“A diferenca essencial entre sociedades humanas e animáis é que os
animáis, quando muito, juntam objetos, enquanto que os homens produzem,
Essa única e principal diferenca seria suficiente para tornar impossível a
transposicáo pura e simples para as sociedades humanas, das leis válidas para
as sociedades animáis ( . . . ) ”.

59
com esta. As relacoes sociais sao a matéria-prima empregada para a
construcáo de modelos que tornam manifesta a estrutura social”.
Em sua resposta a Maybury-Lewis, Levi-Strauss já insistía no
fato de que “a prova última da estrutura molecular é fornecida pelo
microscopio eletrónico que nos permite ver moléculas reais. Essa
proeza nao altera o fato de que, no futuro, a molécula nao seja mais
visível a olho nu. Da mesma forma, nao se pode esperar que urna
análise estrutural mude a percepqao das relacoes sociais concretas.
Ela apenas as explicará melhor”. E na introducao do primeiro volume
dos Mythologiques, ele reafirmava categóricamente:
“Assim, acabamos de mostrar que, se no espirito do público
urna confusáo freqüente se produz entre estruturalismo, idealismo e
formalismo, basta que o estruturalismo ache em seu caminho um
idealismo e um formalismo verdadeiros, para que sua própria inspi-
ragao determinista e realista manifeste-se de maneira plena.
Para analisar essas estrüturas cuja realidade afirma como exte­
rior ao espirito humano e além das aparéncias visiveis das relacoes
sociais, Levi-Strauss utiliza em sua obra tres principios metodológicos.
Considera:
a) que toda estrutura é um conjunto determinado de relacoes
interligadas urnas as outras, segundo leis internas de transformacáo
que se quer descobrir;
b) que toda estrutura combina elementos específicos que sao
seus próprios componentes e que, por essa razáo, tornam va a ten­
tativa de “reduzir” urna estrutura a outra ou de “deduzir” urna
estrutura da outra;
c) que entre diferentes estruturas pertencentes a um mesmo
sistema existem relacoes de compatibilidade cujas leis precisam ser
descobertas, mas sem que se entenda essa compatibilidade como o
efeito de mecanismos de selecao necessários ao éxito de um processo
biológico de adaptacao ao meio.
Pode-se, fácilmente, demonstrar que Marx realiza caminno para­
lelo, quando concluí depois de ter demonstrado que as categorías
económicas de salário, lucro, renda da térra, tal como sao definidas e
manejadas na prática cotidiana pelos agentes do modo de producao
capitalista, exprimem as relacoes visiveis entre os detentores da forca
de trabalho, os detentores do capital e os" deténtores da térra e, nesse
sentido, tém valor pragmático, como diría Leach, pois permitem a or-
ganizacao e a gestáo dessas relacoes visiveis, mas nao possuem valor
científico, posto que dissimulam o fato de que o lucro e a renda de
uns provém do frabalho'nao pago pelo salário de outros:

62
A forma acabada que reveste as relacoes económicas tal como
se manifestam na superficie na sua existencia concreta, e como sao
representadas pelos agentes dessas relacoes e por aqueles que as en-
carnam quando tentam compreendé-las, é muito diferente de sua
estrutura interna essencial mas oculta, e do conceito que Ihe corres­
ponde. De fato, ela é mesmo o inverso, o oposto17.
Convém, igualmente, relembrar que a grandeza teórica de Marx
consistiu em demonstrar que o lucro industrial, comercial, financeiro
e a renda da térra, que pareciam provir de fontes e atitudes totalmen­
te diferentes, sao formas distintas mas transformadas da mais-valia,
formas de sua reparticao entre os diferentes grupos sociais que com-
póem a classe capitalista, formas distintas do processo global de
exploracáo capitalista dos produtores assalariados.
Sabe-se, enfim, que Marx foi o primeiro a formular a hipótese
da existencia de relacóes de correspondencia necessária e de compa­
tibilidade estrutural entre forjas produtivas e relagóes de producao e
entre modo de produgao e superestrutura, sem querer reduzir estas
a simples epifenómenos daquele. O estruturalismo de Levi-Strauss
confunde-se com o materialismo histórico de Marx? Podía parecer que
sim, mas o ponto essencial para responder a essa questao consiste, de
um lado, em delimitar precisamente o que Levi-Strauss entende por
historia, e a formulacao que elabora da causalidade da economía e,
de outro, ver as aplicacóes em sua prática teórica.
Para Claude Levi-Strauss, é “tao fastidioso quanto inútil acumu­
lar argumentos para provar que toda sociedade está na historia e que
muda, o que é a própria evidencia” 18. A historia nao é somente urna
historia “fria” na qual as “sociedades que produzem extremamente
pouca desordem ( . . . ) tém urna tendencia a se manter indefinida­
mente em seu estado inicial” 19. Ela é feita também dessas “cadeias
de eventos nao recorrentes cujos efeitos aumentam produzindo trans­
tornos económicos e sociais” 20. Para explicar essas transformacóes,

17. K. Marx, Contribution á la critique de l’economie politique, op. cit.,


pág. 4: “As relacóes de produgao correspondem a um grau de desenvolvimento
determinado das torcas produtivas materiais. O conjunto dessas relacóes de
producao constituí a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre
a qual se eleva urna super-estrutura jurídica e política e á qual correspondem
formas de consciencia determinadas” . E no Capital (Editions Sociales; nós nos
referiremos doravante a esta edicao) t. I, pág. 93: “Ninguém ignora que Dom
Quixote se arrependeu de ter acreditado que a cavalaria errante era compatível
com todas as formas económicas da sociedade” .
18. C. Levi-Strauss, La Pensée Sauvage, Pión, 1962, pág. 310.
19. C. Levi-Strauss, Entretiens avec Georges Charbonnier, Pión, 1961,
pág. 38.
20. C. Levi-Strauss, La Pensée Sauvage, op. cit., pág. 311.

63
“formas” das relagoes de parentesco da análise de suas “fungóes”.
Nao que essas fungóes sejam ignoradas ou negadas, mas jamais sao
exploradas enquanto tais. Assim, jamais analisou o problema da ar-
ticulagao real das relagoes de parentesco com outras estruturas sociais
que caracterizam as sociedades concretas, históricamente determina­
das: Levi-Strauss limitou-se a retirar desses dados concretos o “siste­
ma formal” das relagoes de parentesco, sistema que em seguida estuda
em sua lógica interna e compara com outras “formas” semelhantes ou
opostas, mas que devido a suas próprias diferengas, pertence a um
mesmo grupo de transformagóes.
Nesse sentido pode-se dizer que Levi-Strauss, opostamente aos
funcionalistas, nao estuda jamais sociedades reais e nao procura dar
conta de sua diversidade e complexidade internas. Nao ignora, bem
entendido esses problemas, mas jamais os tratou sistemáticamente.
Desse modo, a propósito da correlagáo entre instituigóes patrilineares
e “os níveis mais altos de cultura” estudada por Murdock, Levi-
Strauss declarava: “É verdade que ñas sociedades onde o poder
político ganha forga nao se pode deixar subsistir a dualidade que
decorreria do caráter masculino da autoridade política e do caráter
matrilinear da filiagño. As sociedades, atingindo o estado de organi-
zagáo política, tém, portanto, tendencia a generalizar o direito pa­
terno” 30.
Malgrado a vaga nogao de um “estado de organizagáo política”,
vemos aqui Levi-Strauss em presenga da emergencia na historia de
sociedades ñas quais as relagoes de parentesco nao desempenham mais
papel dominante, mas onde relagoes político-ideológicas comegam a
desempenhá-lo. Por que e em que condigóes isto acontece? Por que
o direito paterno é mais “compatível” com essa nova estrutura social?
Levi-Strauss nao responde a essas questóes, da mesma maneira que
nao explica em que condigóes aparecem essas sociedades, ñas quais
a forma dos sistemas de parentesco e, as vezes, do casamento, quase
nada dizem da natureza da pessoa que se pode esposar. É feita alusáo
ao fato de que, nessas sociedades, a riqueza, o dinheiro, o dote e a
hierarquia social desempenham papel determinante na escolha do cón-
jugépmas, como isso acontece, por que a historia? Nao que para um
marxista a historia seja categoría que explique; é, ao contrário,
categoría que se explica. O materialismo histórico nao é um “modelo”
a mais da historia, nao é outra “filosofía” da historia. É, antes de tudo,
urna teoría da sociedade, urna hipótese sobre a ' articulagao de seus
níveis internos e sobre a causalidade específica e-hierarquizada de
cada um desses níveis. E é permitindo a descoberta das formas e dos
30. Ibid., pág. 36. Levi-Strauss refere-se ao texto de G. P. Murdock,
“Correlatiotl of Matrilineal and Patrilineal Institutíons”, Studies in the Sciences
of Society, apresentado por A . G. Keller, N ew Haven, 1937.

66
mecanismos dessa causalidade e dessa srticulngao que o marxismo
demonstrará sua capacidade de ser instrumento de verdadeirá ciéncia
da historia 31.
Para desenvolver o conhecimento até esse ponto é preciso ir
além da análise estrutural das formas de parentesco ou da descobertá
da gramática e do código formal dos mitos indígenas da América.
Nao que essas análises estruturais sejam indispensáveis, mas nao sao
suficientes. E é precisamente isso que o próprio Levi-Strauss reco-
nhece quando critica o principio de pesquisar, únicamente, nos aci-
dentes de urna historia, na difusao de urna causa exógena, as razóes
de ser de um sistema de parentesco:
“Um sistema funcional, como é o caso do sistema de parentesco,
nao pode jamais ser interpretado integralmente por hipóteses difusio-
nistas. Ele está ligado a toda a estrutura da sociedade que o aplica e,
por conseqüéncia, sua natureza se liga aos caracteres intrínsecos dessa
sociedade, mais do que aos contatos culturáis ou migracoes” 32.
Ir além da análise estrutural das formas das relagoes sociais ou
dos modos de pensamento significa, portanto, praticar de fato essa
análise morfológica de tal maneira, que se descubram os lagos internos
entre a forma, as funcoes, o modo de articulagdo e as condigóes de
aparecimento e transformagáo dessas relagoes sociais e desses modos
de pensamento em sociedades concretas estudadas pelo historiador e
pelo antropólogo. É, segundo nosso ponto de vista, engajando-se re­
solutamente nesse caminho, que se pode esperar que progrida a
análise científica de um campo habitualmente negligericiado ou mal
tratado pelo materialismo no qual, por esta mesrna razao, o idealismo
que se declara funcionalista ou estruturalista, instalou-se de maneira
privilegiada: o campo da ideología e o campo das formas simbólicas
das relagoes sociais e da prática simbólica.
Já mostramos33 como Levi-Strauss provocou grande progresso
na teoría das ideologías que pretendía desenvolver após Marx, quan-
31. K. Marx, Carta ao editor de Otétchestvenniyé Zapisky, 1877, endere­
zada a Choukovski em resposta a Mikhailovski, um dos dirigentes do partido
socialista dos narodniki: “Nao é suficiente para minha crítica. Ele sente-se
obrigado a metamorfosear meu esboco histórico da gánese do capitalismo na
Europa Oriental em urna teoría histórico-filosófica da marcha geral imposta a
cada povo pelo seu destino, quaisquer que sejam as circunstancias históricas
onde este se encontré, de maneira que possa, enfim, chegar á forma de econo­
mía que assegurará, com a maior expansáo dos poderes produtivos do trabalho
social, o mais completo desenvolvimento do homem. Mas eu lhe peco perdáo.
Isto me deixa muito honrado e, ao mesmo tempo, envergonha-me” .
32. C. Levi-Strauss, Les Structures Élémentaires de la Párente, op. cit., pág.
144, comentada por nós (M. G .).
33 . Maurice Godelier, “Mito e Historia — Reflexóes sobre os fundamen­
tos do pensamento selvagem” , Les Annales, número especial. “Histoire e
Structure”, agosto, 1971, págs. 541-568.

67
reta urna fissáo de cada bando em pequeños grupos que se juntara
novamente no final da estacáo do mel. A caga é coletiva. Os homens
casados estendem em semicírculo suas flechas individuáis de aproxi­
madamente trinta metros e as mulheres e crianzas solteiras retiram
a caga das redes. Essas atividades se repetem todo ou quase todo
dia; e, á noite, os produtos da caga e da coleta sao repartidos e
consumidos entre todos os membrós da aldeia. Cada mes que a caga
se torna mais rara, o bando se desloca para outro lugar* mas sempre
no interior de um mesmo territorio conhecido e respeitado pelos
vizinhos. As relagóes de parentesco e a familia desempenham papel
secundário na produgáo, pois o trabalho é dividido entre sexos e ge-
ragóes. Os individuos deixam freqüentemente o bando onde nasceram
e vao viver em outros bandos vizinhos, as vezes em caráter definitivo.
Pratica-se a troca de mulheres e procura-se esposa, de preferencia,
em bandos longínquos, e jamais' no bando de onde provém a máe
ou a máe do pai. Os bandos nao tem chefe e, segundo as circuns­
tancias, as geragóes e sexos repartem a autoridade; os velhos e os
grandes cagadores possuem, entretanto, autoridade maior que outros
membros do grupo. A guerra nao é praticada entre os bandos, e as
matangas ou repressóes violentas sao extremamente raras no interior
de cada um deles. A puberdade dos filhos e a morte dos adultos,
homens ou mulheres, sao acompanhadas de rituais e festividades,
elima (no primeiro caso) e molimo (no segundo), pelos quais a
floresta é objeto de culto intenso, e “faz ouvir sua voz”, por intermé-
dio de flautas sagradas. Os contingentes dos bandos vao de sete a
trinta cagadores e suas familias, pois abaixo de sete redes a caga é
ineficaz e, além de trinta cagadores, a caga nao é suficiente ou abun­
dante para o aprovisionamento do grupo; e a organizagáo da caga
com rede, praticada sem líder efetivo, deveria ser modificada para
permanecer operante.
Quando se analisa de perto essas relagóes económicas e sociais,
percebe-se que as condigpes da produgao determinam tres coergóes
interiores ao modo de produgao que traduzem as cóndigóes de
reproducáo desse modo de produgao e exprimem os limites das pos-
sibilidades desta reprodugáo.
— A coergáo n.° 1 é a “dispers'ao” dos grupos de ca5adores e
do limite mínimo e máxipio de seus contingentes.
— A coergáo n.° 2 é a “cooperagáo” dos individuos, segundo
idade e sexo no processo de produgao e na prátiea da caga com rede.
— A coergáo n.° 3 é a fluidez, o “náo fechamento” ou, segundo
a expressáo de Turnbull, a manutengáo de um estado de “fluxo” per­
manente dos bandos que se traduz pela variagáo rápida e freqüente
de seus contingentes e de' sua composigáo social.

70
Essas tres coergóes exprimem as condigoes soeiais da repro­
dugáo do processo de produgáo, dada a natureza das forgas produ-
tivas postas em agáo (técnicas específicas de caga e coleta), e a
natureza das condigoes biológicas da reprodugáo das espécies vegetáis
e animáis que compóem o eco-sistema generalizado da floresta equa-
torial congolesa. Esses elementos formam um sistema, ou seja, cada
um intervém sobre os outros. A coergáo 2, por exemplo, a coopera-
gáo dos individuos segundo sexo e idade para assegurar a própria
existencia e reprodugáo e a do bando, adquire forma determinada pela
agáo da coergáo 1, posto que a dimensáo de um bando deve manter-
se entre ceríos limites; e, também, pela agáo da coergáo 3, já que a
necessidade de manter os bandos em estado de fluxo modifica, sem
cessar, o tamanho dos grupos e sua composigáo social, ou seja, os
lagos de parentesco, de alianga ou amizade dos que sáo chamados a
cooperar cada dia no processo da repartigáb dos produtos da caga e
coleta. Poderíamos, igualmente, mostrar os efeitos das coergóes 1 e 2
sobre a 3 e da 2 e 3 sobre a 1. Notemos, também, que essas coergóes
sáo tais (particularmente as de dispersáo e fluxo) que as condigoes
soeiais de reprodugáo dos individuos e de grupo sáo igual e imedia-r
tamente as condigoes de reprodugáo da sociedade “Mbuti” como um
todo, e como um todo presente em todas as-suas partes. Essas sáo,
portanto, as condicóes interiores a cada bando e, ao mesmo tempo,
as condigoes comuns a todos os grupos, e que permitem a reprodugáo
do conjunto do sistema ecortómico-social como um todo.
Essas tres coergóes formam um sistema. Esse sistema nasceu do
próprio processo de produgáo, do qual exprime as condigoes mate-
riais e soeiais de reprodugáo. E esse mesmo sistema é a origem de
certo número de efeitos estruturais simultáneos sobre todas as outras
instancias da organizagáo social “Mbuti”, efeitos que nos limitaremos
a enumerar, pois seria por demais fastidioso e longo. Todos esses
efeitos consistem na determinagáo dos elementos do conteúdo e da
forma dessas instancias que sejam compatíveis com as coergóes e que,
portanto, assegurem a própria reprodugáo do modo de produgáo
dos Mbuti. Assim, essas coergóes interiores ao modo de produgáo
sáo, ao mesmo tempo, os canais pelos quais o modo de produgáo
determina, em última análise, a natureza das diversas instancias dá
sociedade “Mbuti” . Dado que os efeitos e a agáo do sistema dé
coergóes se exercem simultáneamente sobre todas as instancias, o
modo de produgáo determina a relagáo e a articulagáo de todas essas
instancias éntre si e, em relagáo a si mesmo, o que significa dizer que
determina a estrutura getal da sociedade enquanto tal, a forma e a
fungáó específicas de cada urna das instancias que a compóe. Pro­
curar e descobrir o sistema de coergóes que sáo determinadas pelo
processo social de produgáo, e que constituem as condigoes soeiais

71
vo sobre o individuo (coercáo 3) e sobre o casal explica a precarie-
dade relativa do casamento entre os M buti43.
Os efeitos estruturais do modo de produgáo sobre a consangüi-
nidade sao perfeitamente complementares dos efeitos sobre a alianga.
Os Mbuti, como admiravelmente mostrou Turnbull, nao tém verda-
deiramente urna organizagáo de linhagem; e é absurdo' falar de “seg­
mentos” de linhagem, quando se quer designar grupos de irmáos que
vivem rio mesmo bando. O fato de nao haver trocas matrimoniáis
regulares e orientadas eritre os bandos, de tal sorte que cada geragáo
siga a diregáo determinada por seus ancestrais e as reproduza, inter­
dita qualquer continuidade e impede a constituigáo de grupos con­
sanguíneos, de grande profundidade genealógica, preocupados em
perpetuar sua continuidade através das segmentagóes necessárias. Ao
mesmo tempo, constatamos que, para a reprodugao da sociedade,
através das trocas matrimoniáis, é preciso que existam pelo menos
quatro bandos. O Bando A do Ego, o Bando B de onde provém a
máe, o Bando C donde provém a mae do pai e o Bando x, onde ele
vai encontrar a esposa e que, já se sabe, nao deve ser de bando
adjacente.

(x) C A B (x)

Sobre o plano metodológico, constata-se, fácilmente, o quanto


seria erróneo acreditar que se pode esgotar o estudo lógico do funcio-
namento de urna sociedade a partir de pesquisa feita em apenas um
bando ou em urna única unidade local.
Outros efeitos das coergóes do modo de produgáo aparecem a
partir do momento em que se analisam as relagoes políticas que
existem entre os bandos ou em séu interior. Esses efeitos sao outros
em seu conteúdo, porque se exercem sobre instancia diferente, irre-
dutível aos elementos do processo de produgáo, mas sao isomorjos
com relagao aos efeitos produzidos sobre as outras instáncias da
sociedade Mbuti. Essa isomorfia nasce do fato de que todos esses
efeitos diferentes provém de urna mesma causa, que age simultánea­
mente sobre todos os níveis da sociedade. Essa maneira de praticar a
análise estrutural no quadro rriarxista, diferentemente do materialismo
cultural vulgar ou do pretenso marxismo de alguns nao réduz, por­
tanto, as diversas instáncias de urna sociedade á economia ou nao
apresenta a economia como a única realidade efetivamente “real”,
da qual todas as outras instáncias sao apenas efeitos diversos e fantas-45
45. Idem á nota 44, p. 132.

74
magóricos. Essa maneira de praticar o marxismo dá conta plenamente,
isto é, rigorosamente, da especificidade de todas as instáncias, portan­
to, de sua relativa autonomía.
Dois tragos caracterizara as regras e a prática política dos pig-
meus Mbuti: a) a iraca desigualdade de status e a autoridade entre
os individuos, homens e muihéres, entre as geracoes, velhos, adultos
e jovens. A desigualdade existe e favórece os homens adultos em
relacao as mulherés, e aos homens idosos em relagao aos individuos,
homens ou mulheres, de geracoes mais novas; b) a recusa sistemática
da violencia, da repressáo coletiva Como meio de controlar os
conflitos entre os individuos e entre os bandos.
No primeiro caso, assim que a desigualdade ameaca se desen­
volver (por exemplo, quando um grande cacador de elefantes quer.
transformar seu prestigio de cagador em autoridade sobre o grupo),
a resposta institucional é, a prática da zombaria, do gracejo público;
enfim, urna prática de erosáa sistemática das tentativas de desenvol­
ver a desigualdáde além de certos limites compatíveis com a coopera-
gao (coergáo 2) volüntária e sempre provisoria (coergáo 3) dos
* individuos no interior do bando. No segundo caso, a resposta a todo
o conflito que ameace seriamente a unidade do bando ou a relacao
entre bandos é a recorréncia sistemática ao compromisso ou á diver-
sao. Em cada bando, um individuo desempenha o papel de bufáo (C.
Tumbull desempenhou esse papel, nos primeiros meses de sua per­
manencia entre os Mbuti, sem o saber), que se encafrega de minorar
os conflitos sérios que possam levar ao drama, ou até ao assassinato
e, portanto, a urna cisao do bando, ou que ameacem o bom entendi-
mento interior, necessário á cooperagáo e á reprodugáo (coergáo 2).
Para esmorecer os conflitos, o bufáo pratica sistemáticamente a di-
versáo e leva essa prática ao exagero. Se dois individuos a e b de-
frontam-se seriamente porque um cometeu adultério com a esposa do
outro e se seu afrontamento ameaga degenerar em violencia física ou
assassinato, o bufáo (que pode inclusive ser mulher) exagera artifi­
cialmente a importancia de um conflito menor que op5e outros indi­
viduos, c e d, por exemplo, de maneira que após algumas horas de
gritos e disputas a e b encontrem-se do mesmo lado, contra d, o
que permite diminuir a intensidade de seu próprio conflito. Apenas
em duas circunstancias específicas o bando como um todo pratica a
violencia repressiva: de üm lado, quando um cagador coloca secreta­
mente sua rede individual diante das redes dos cagadores colocados
de ponta a ponta e se apropria indevidamente de maior parte da
caga transformando, portanto, em vantagem individual o esforgo co-
mum do bando; de outro lado, quando num festival molimo em honra
da floresta, um homem adormece e se esquece de cantar em. uníssono
os cantos sagrados no momento em que a floresta, respondendo ao

75
la” 47 para que continué a oferecer alimento, boa saúde, bom enten-
dimento, feíicidade e harmonia social entre os Mbuti, qualquer que
seja o bando aó qual pertengam. A afirmagáo de dependencia e con-
fianca dos Mbuti pela floresta culmina com o grande ritual molitno,
que se concentra na morte de um adulto estimado. Por vezes, durante
um mes, todo dia o bando caca com mais intensidade do que nor­
malmente. A caga capturada é mais numerosa e é dividida e consu­
mida em urna festa seguida de dangas e cantos que duram até a
aurora; e, de manhá, a voz da floresta convida os Mbuti’ a novas
cacas e a novas dangas. Coitado daquele a quem o cansago da noite
impedir de acordar quando essa voz for ouvida e os trompetes sagra­
dos penetrarem nos corpos, sobre as espáduas dos jóvens chelos de
ardor e forga. O culpado que rompeu a comúnicagáo, o uníssonó com
a floresta, pode ser morto mediatamente ou banido, ficando sozinho
na floresta, que vai puni-lo e deixá-lo morrer. Descobre-se, aqui, o
isomorfismo das duas violagóes que suscitam a repressáo. Nao cagar
com todos e nao cantar com todos, significa romper a cooperagáo e
a unidade necessárias ao bando, para a reprodugao de suas condi-
coes reais e imaginárias de existencia (coercao 2).
O que a floresta representa, por. um lado, é a realidade supra
local, o eco-sistema natural no qual os pigmeus se reproduzem como
sociedade; e, por outro lado, é o conjunto das condigóes da repro-
dugáo material e social de sua sociedade. (A floresta como divindade
propicia caca, boa saúde, harmonia social etc.) A religiáo dos Mbuti
é, portanto, a instancia ideológica onde se representan! as condigóes
de reproducáo de seu modo de produgáo e de sua sociedade, mas
essas condigóes ai estáo representadas ao contrario, de maneira “feti­
chista”, “mítica” . Nao sao os cagadores que obtém a caga para que
c'onsigam subsistir e se reproduzir. Tudo se passa como se existisse
relagao recíproca entre pessoas de poder e status diferentes, posto
que, diferentemente dos homens, a floresta é onipresente, onisciente
e onipotente. Para com ela os homens tém atitudes de reconheci-
mento, amor, amizade respeitosa; e é ela que eles respeitam quando
proíbem a morte gratuita dos animáis, a destruigao das espécies
vegetáis e animáis (representagao na consciencia da coergao l e das
condigóes de renovagao do processo de caga e coleta de espécies na-
turais determinadas).
Mas, a religiáo dos Mbuti nao é apenas um sistema de repre-
sentagóes: é, ao mesmo tempo, urna prática social que desempenha
papel fundamental na reproducáo da sociedade. ■
Nosso método oferece a possibilidade de construir a teoría dos
processos de fetichismo das relagóes sociais e das diversas .variedades
47. Idem a nota 46, pág. 262.

78
de fetichismo ideológico, religioso ou político e abordar científica­
mente o dominio das práticas simbólicas? Até o presente, essas
diversas realidades foram mal tratadas pelos materialistas partidários
da ecología cultural 48 ou do marxismo 49 ou mesmo ignoradas 50*. Seu
estado é feito habitualmente numa perspectiva idealista, seja funcio-
nalista, como os trabalhos de Turner ou estrutaralista. Nessa perspec­
tiva, as relacoes entre a prática simbólica de urna sociedade e seu mo­
do de producáo praticamente nao sao jamais exploradas, pois o
idealismo é impotente para reconstruí-las e fazé-las aparecer, mesmo
que nao as negue dogmáticamente. Ai, reside um dos maiores pro­
blemas teóricos cuja solucao permitirá explicar em parte as condigóes
e as razoes do nascimento de urna sociedade de classe e do Estado, e,
portanto, o movimento da historia que levou ao desaparecimento da
maior parte das sociedades s'em classes. Tentaremos mostrar através
de um exemplo, como abordar a análise da relacáo entre prática
simbólica e modo de produeño, para por em evidencia a funcao dessa
prática na reproducáo das relacoes sociais em seu conjunto.
O exemplo é o do grande ritual molimo dos Mbuti que dura,
por vezes, um mes depois da morte de um adulto respeitado. Durante
o molimo, a caga é praticada de modo muito mais intenso, e o resul­
tado apresenta número bem maior de animáis capturados, A prática
religiosa implica, portanto, intensificacao do processo de produgáo,
trabalho suplementar que permite aumentar a quantidade de caga
a dividir, dando lugar a urna intensificagao das divisóes e acabando
em consumo suplementar excepcional, que transforma a refeigáo
noturna em festim e a vida ordinária em festas que terminam em
dangas e cantos umssonos, pelos quais os Mbuti comungam com
a floresta, “alegram-na” e clamam seus beneficios, sua presenga vigi­
lante que traz a abundancia da caga, a boa saúde, afastando a
epidemia, a escassez, a discordia, a morte. O ritual molimo constituí,
portanto, um trabalho simbólico que visa, segundo a expressao de
Turnbull, a “recriar a vida e a sociedade, combater as forgas da fome,
da desunido, da imoralidade, da ilegalidade e da morte”, e exprime
“a preocupagao dominante dos Mbuti, que nao é de perpetuar os indi­
viduos ou as linhagens, mas o bando e os Mbuti enquanto tais”.

48. Com á notável excegáo de Roy Rappaport no seu livro Piges jor the
Ancesters, Gale University, New Haven and London, 1967.
49. Cf: Claude Meillassoux, por exemplo, no seu artigo sobre os traba­
lhos de Colín Turnbull.
50. Com a excegáo de trabalhos de valor, como por exemplo o de Pierre
Bonnafé, “Un aspect religieux de l’ideologie lignagére: le knira des Kukuya
du Congo-Brazzaville”, Cahiers des religions africaines, 1969, págs. 209-296, ou
este, na Franca, de Marc Augé e de P. Althabe.

79
nome de batismo parecido. Essa tarefa impde a retomada geral32 do
campo de problemas teóricos que o conhecimento das sociedades e de
sua historia apresenta, ou Seja, problemas da descoberta das leis nao
da “Historia” em geral, que é um conceito sem objeto que lhe cor­
responda, mas das diversas formagóes económicas e sociais que o
historiador, o antropólogo, o sociólogo ou o economista anaÜsam.
Essas leis existem e nao fazem senáo exprimir as própriedades estru-
turais nao intencionáis das relagóes sociais e sua hierarquia e arti-
culagao próprias sobre a base de modos de produgao determinados.,
É porque exprimem as condigóes objetivas da reprodugao e, portanto,
de nao reprodugao desses modos de produgao e de sua articulagao
as outrás instancias da sociedade, que essas leis sao leis de funciona-
mento e leis de transformagao, de evolugáo, e que a oposigño entre
sincronía e diacronia poderá ser superada, e que o funcionalismo ou
o estruturalismo nao puderam realizar até o presente.
Só urna teoría e um método que permitam pensar e analisar a
forma, as fungoes, a hierarquia e o modo de articulagao, as condigóes
de aparecimento e transformagao das relagóes sociais conseguirlo
ultrapassar radicalmente as impotencias do funcionalismo e do estru­
turalismo e colocar fim ao estado de irresolugáo e impotencia que
caracteriza as ciencias dos homens. .
Diferentemente do marxismo que se pratica de modo habitual,
e que rápidamente se transforma em marxismo vulgar, afirmamos
que Marx, quando distinguiu infra-estrutura e superestrutura, e supós
que a lógica profunda das sociedades e da sua historia .dependem, em
última análise, das transformagóes da infra-estrutura, nao fez nada
mais do que colocar em evidencia, pela primeira vez, urna hierarquia
de distingoes funcionáis, sem prejulgar de modo algum a natureza52
52. Essa retomada nao poderá ser levada a cabo, senáo caminhando passo
a passo para a construgáo de novas questóes a partir dos resultados obtidos
em cada etapa. A comegar, por exemplo, de nossa análise das relagóes de
parentesco e das relacóes políticas nos bandos Mbuti, a questáo proposta é
descobrir em que condigóes se constituem grupos de parentesco de Contornos
fechados e se procede as trocas de mulheres, regulares e oHentadas, como é o
caso nos sistemas de metades, segóes ou subsegóes dos aborígines australianos,
que sao igualmente cagadores-coletores como os Mbuti. Em que condigóes
aparecem sociedades verdadeiramente segmentadas no interior das quais, ao
lado da descontínuidade das geracóes e da fluidez das relagóes sociais caracte­
rísticas dos Mbuti e dos bosquímanos aparecem os grupos fechados sobre si
próprios fundados sobre a continuidade das geragóes e permanencia da produ­
gao social.
Pode-se assinalar que, se ao lado de troca irregular de iuülheres entre quatro
bandos de contornos nao fechados houvesse troca regular entre quatro bandos
de contornos fechados, engendrar-se-ia entáo — ao que paFece — um sistema
de parentesco do tipo australiano, por segóes. O método para retomada geral
dos problemas da antropología pode ser apenas método de construgáo de ma-
trizes de transfonnacáo.

82
das estraturas que se encarregam dessas fungóes (parentesco, religiáo,
política etc.) e nem o número de fungóes que urna estrutura pode
suportar. •
Compreende-se, portanto, por que um caminho teórico desse
tipo, livre de todo preconcéito, poderia ser instrumento tanto de
revolugoes teóricas, como de revolugóes sociais. E terminaremos
como comegamos, com urna citagao de Engels, provavelmente póuco
conhecida dos marxistas que desprezam a antropología ou dos antro­
pólogos que desprezam Engels:
“Para levar até o final a crítica da economía burguesa, nao é
suficiente conhecer apenas a forma capitalista de produgao, de troca
e de repartigao. As formas que a precederam ou que aínda existem
a seu lado nos países menos desenvolvidos, deveriam ser igualmente
estudadas, ao menos em seus tragos essenciais, e servir de ponto de
comparagáo” 53.

53. Friedrich Engels, Anti-Düring, 1877.

83
produgao. náo esíáo diferenciados. Esse é avango decisivo em qualquer
tentátiva de explicar a especificidade do modo de produgao de linha-
gem. (Por exemplo, quando comparado á sociedades em que a orga-
nizagao aldea da produgao agrícola está baseada ñas classes de idade)
ou a articulagáo deste com outro modo de produgao que tem sua
própria estrutura permanente (e urna estrutura de hegemonía distinta
daquela do modo de produgao de linhagem em particular). Voltare-
mos a este último ponto quando falarmos dos sonjo.
Antes de prosseguir acerca das sociedades de linhagem, gesta­
ríamos de examinar com mais detalhes a maneira como Marx concebe
as relacóes entre produgao, reprodugáo e dominagao. Mas, em vez
de continuar a análise da relagáo entre os modos de produgao feudal
e capitalista, como é feita em “Génese da Renda Capitalista da Ter­
ra”, tomaremos agora outro estudo de Marx, dedicado a um modo de
produgao nao capitalista.. O resultado será evidentemente o mesmo
mas já que a articulagáo entre as instancias da estrutura social está
ai mais clara, a análise terá talvez valor pedagógico maior.

IV — PRODUCÁO, REPRODUQÁO E D O M IN A D O EM MARX

Numa nota do “Capital” que Balibar já citou, mas que dada


sua importancia eu reproduzo aqui, Marx escreve:
“Na apreciagáo desse jornal, minha idéia de que cada modo de
produgao e as relagóes. sociais a ele correspondentes, em resumo, que
á estrutura económica da sociedade é a verdadeira base sobre a qual
se ergue a superestrutura jurídica e política e á qual corresponden!
formas sociais definidas de pensamento, ou aínda, que o modo de
produgao determina o caráter da vida social, política e intelectual em
geral, tudo isso é certo para nossos tempos, em que os interesses
materiais predominam, mas nao para a Idade Média, onde reinava
o Catolicismo, nem para Atenas ou Roma, onde reinava a política.
Em primeiro lugar, parece estranho que'alguém ache que essas frases
muito gastas sobre a Idade Média ou o mundo antigo sejam desco-
nhecidas por outras pessoas. Isso, entretanto, é claro: que a Idade
Média nao poderla viver apenas do Catolicismo, nem o mundo antigo,
apenas da política. Pelo contrário, é o modo pelo qual eles produziam
a sua existencia material que explica por que aqüi a política e lá o
Catolicismo, desempenhavam papel principal. De resto, precisa-se
apenas de ligeira familiaridade com a historia da república romana,
por exemplo, para ter consciencia de que sua historia secreta é a
historia de sua propriedade fundiária. Por outro lado, Dom Quixote
há muito tempo pagou caro o erro de imaginar que a cavalaria an­

146
dante era compatível com todas as formts económicas de sociedade”
{O Capital, livro I, p. 85-86, Lawrence and Wishart, 1974). .
Balibar mostra que esse texto nos possibilita revelar urna deter-
minagáo pelo económico que nao é transitiva, mas estrutural: ele
diz que “a economía é determinante ao determinar qual das instancias
da estrutura social ocupa o lugar determinante”. Transpondo os resul­
tados dessa análise ao modo de produgao capitalista, ele é levado a
descobrir que a “matriz” (para usar a expressáo de Althusser) que
transforma a instancia económica em sua “forma transformada” é
matriz unitária, transformando o económico no económico, ou tafvez
urna matriz projetiva, transformando o económico num subconjunto
do económico — o moflo de circulagáo — mesmo que, como me
fez lembrar Terray, “A independencia da circulagáo é aqui reduzida
a urna mera aparéncia, da mesma forma como a exterioridade da
produgao” (Grundrisse, tradugáo inglesa de M. Nicolaus, Pelican,
1973, p. 514).
Ser-nos-á útil olhar mais de perto o que Marx quis dizer com “o
modo pelo qual eles produziam sua existencia material (é) que
explica por que aqui a política e lá o Catolicismo, desempenhavam o
papel principal”. Para isso, citaremos outro texto de Marx, que diz
respeito precisamente ao “modo de produgao antigo” :
“O individuo é colocado em condigóes de ganhar a vida tais
que o objetivo do seu trabalho náo é a aquisigáo de riqueza mas o
seu sustento, sua própria reprodugáo enquanto membro da, comuni­
dades a reprodugáo dele próprio enquanto proprietário de urna par­
cela do solo, e, nessa qualidade, enquanto um membro da comuna. A
sobrevivencia da comuna é a reprodugáo de todos seus membros
enquanto camponeses que provém seu próprio sustento, cujo tempo
excedente pertence precisamente á comuna, á atividade guerreira
etc.; a propriedade de seu próprio trabalho é mediada pela proprie-
dade da condigáo de trabalho — a parcela de térra, garantida por
sua vez pela existencia da comuna; e essa por sua vez, pelo trabalho
excedente na forma de servigo militar etc., pelos membros da co­
muna. Náo é por meio da cooperagáo no trabalho produtor de
riqueza que o membro . da comuna se reproduz, mas antes pela
cooperagáo em trabalho voltado para interesses comuñitários (ima-
ginários e reais), para a sustentagáo da assóciagáo no seu interior e
face ao exterior. A propriedade é quiritária, do tipo romano; o pro­
prietário privado da térra só o é na sua qualidade de romano —
mas, enquanto romano, ele é proprietário privado de tefra” (Grun­
drisse, pág. 476). (J. Cohén, Marx/Hobsbawn 1964, 1965, “Pre-
capitalist Economic Formations”, pág. 74 traduz a última sentenga
como: “A propriedade pertence formalmente ao cidadáo romano; o

147
a vantagem de fornecer urna explicacao que nao é exigida pelo pro-
cedimento comparativo.
A validado do modelo aplicado á realidade pode ser verificada
de varias maneiras.: «
— por sua aplicacao em sociedades que nao tenham servido de
base para sua elaboragao; . .
—; para a descoberta de tragos ocultos existentes neste tipo de
sociedade; j
— para a deducao de características de sociedades as quais o
desenvolvimento do modelo possa ser aplicado;
— enfim ,pela insercao do modelo no conjunto mais geral de
modelos aplicados a úutros tipos de sociedades, e pela homogeneidade
de conceitos aplicados a cada um deles.
Este último método, mais exigente, é também mais rigoroso, pois
ñño basta ao modelo que seja aplicado para que seja válido. É neces-
sário que contenha conceitos de*aplicacao geral1, que o tornem
operatorio para um conjunto mais vasto. O exame da economia
cinegética brevemente comparado ao da economia agrícola, tem por
objetivo a análise das possibilidades de insercao de modelos aplicáveis
a diferentes sistemas económicos em um conjunto geral, devendo
permitir ao me'smo tempo caracterizacao mais precisa de cada um
deles 2.
É mais lógico que se inicie essa tarefa pela análise de urna socie­
dade mais elementar que a sociedade agrícola de auto-subsistencia,
da qual existem evidencias históricamente conhecidas: as sociedades
de coletores e caladores3. Duas razóes influenciaram, até o momento,
o andamento désta pesquisa. Urna é a dificuldade de isolar categorías
simples em sistemas menos diferenciados4. O desenvolvimento de
algmnas características de sociedades mais complexas, leva a Conceber
as sociedades menos diferenciadas como antíteses (sociedades nao
industriáis, nao literarias, nao comerciantes etc.), ou seja, a caracteri-
zá-las negativamente. Torna-se mais difícil isolar categorías, ou tra­

1. É. Balibar, in Althusser, 1966.


2. Nos nos restringiremos aquí as sociedades africanas, a fim de demar­
car um quadro etno-cultural, no qual os contatos históricos com outros siste­
mas económicos podein ser, eventualmente, examinados.
3. Seria oportuno distinguir os coletores dos cacadorés, embora riáo pa-
reca ter existido coletores puros na África. . Desse ponto de vista, tentamos
por Bettelheim (1966), embora nao sejamos realmente capazes de analisar
todas as implicacoes decorrentes desse fato.
4 . Refiro-me aqui a Karl Marx, Contribuition á la critique de l’economie
politique, págs. 166 e segs.

86
eos positivos que as caracterizam; ou estes tragos nao aparecem fre-
qüentemente porque se desenvolveram, ou simplesmente desaparéce-
ram ñas sociedades mais complexas. Nesse sentido, o eonhecimento
dessas sociedades ajuda a compreensao das sociedades menos dife­
renciadas ocorrendo, proporcionalmente, o mesmo com o inverso.
O segundo obstáculo é de outra ordem. Reside na pobreza científica
dos dados concernentes aos cagadores-coletores da África e aos siste­
mas de trocas de bens e servigos que estabelecem em seus contatos
com os cultivadores. É impossível considerá-los como representativos
de um modo de vida inalterado, submetidos a forgas estritamente en­
dógenas, aínda que um estudo preciso destas relagoes nao tenha sido
realizado. Há alguns bons trabalhos sobre os pigmeus da África, como
o estudo de M. Athable (1965) sobre o processo de sedentarizagao
dos Baka. Mas é a obra mais recente de C. Turnbull (1965) que traz,
pela primeira vez, dados científicos relevantes sobre o modo pelo qual
a organizagao económica e social dos cagadores em seú próprio meio
encontra-se em oposigáo ao comportamento que estabelecem no
contato com os agricultores aldeóes. Sao os trabalhos de Turnbull
sobre os pigmeus Mbuti que servirño de base á presente análise.
Turnbull descreve inicialmente os Mbuti em relagño com os
agricultores sedentários, dos quais adotam em certos momentos al-
gumas instituigoes e costumes, com o objetivo de se adaptarem
segundo um modelo inteligível para esses últimos5. Estes, por sua
vez, tentam integrar os Mbuti em seu sistema social, a fim de assegu-
rar urna dominagaó de natureza superficial e precária.
Em troca de produtos de caga ou exercendo fungóes de vigías
das plantagóes dos agricultores, os Mbuti recebem objetos que sao
imediatamente consumidos durante o tempo de sua estadia na aldeia;
recebem aínda objetos de ferro que poderiám substituir as langas de
madeira endurecidas no fogo 6 e outros produtos sem utilidade para
o trabalho produtivo.. Nenhuma destas mercadorias propicia a acumu-
lagao ou trocas internas entre os Mbuti. A capacidade dos Mbuti de
produzir para a troca, sem coagoes ou renuncias a outras atividades
socialmente necessárias, demonstra que nao se trata de urna sociedade
mantida ao nivel da subsistencia7. Os próprios Mbuti reconhecem,

5. Por exemplo, pela designagáo de um chefe que é apenas um porta-voz


sem poder e freqüentemenie escolhido entre os bufóes do grupo (Turnbull,,
1965, págs. 40-45).
6. O ferro, entretanto, nao representou um grande avangó técnico pelo
fato dos animáis serem mortos regularmente com veneno -— urna técnica
mbuti — e muito raramente pelo impacto de um projétil.
7. A s sociedades ditas de subsistencia nao se confundem com as socie­
dades de auto-subsistencia. As primeiras se limitam a nao poder produzir além
de suas necessidades; as segundas permitem a satisfacáo das necessidades pela
exploracao dos recursos ao alcance do grupo, sem recorrer ao comércio.

87
Mas, a dominagáo “social” pode ser “direta” ou “indireta”, e
áqui temos um caso típico de dominagáo “indireta”. .•

II — UM CONCEITO “ECONOMÉTRICO” DE DOMINAGÁO

Os conceitos de dominagáo usados por Terray podem ser divi­


didos em dois grupos principáis:
a) urna dominagáo económica que é fácil de estudar visto que
“quando o trabalho social está dividido entre vários ramos de ativi-
dade numa formagáo social, um exame dessa divisáo, urna compa-
ragáo do número de trabalhadores alocado ‘em cada ramo, e a par­
cela recebida por cada ramo do produto social total, nos possibilita
descobrir qual ramo é económicamente dominante”.
b) urna dominagáo social que pode ser dividida em dois subti­
pos: dominagáo direta e dominagáo indireta. ‘Talaremos de domina­
gáo direta quando, em qualquer conjunto, um sistema impoe seu
próprio padráo e suas relagoes aos outros.”
Assim, na térra dos Gouro, “a pesca, a coleta e o artesanato
náo levam á formagáo de unidades de produgáo específicas; elas sáo
atividades acessórias praticadas dentro de urna estrutura de relagoes
técnicas ligadas á produgáo agrícola”.
Ao contrario: “sistemas entre os quais há somente urna relagáo
de dominagáo indireta mantém sua especificidade e autonomia”.
A fim de compreender a dominagáo indireta tudo que temos
de fazer é representar a formagáo social como um conjunto de modos
de produgáo, aqui definidos em seu sentido ampio.
(X ) = (X i, X2 . . . , X a)
baseados num conjunto de forgas produtivas
(A ) = (Ai, A2, . . .,An)
a cada urna, das quais corresponde respectivamente üm conjunto de
relagoes de produgáo
(B ) = (Bi, B2, ...,B n)
O conjunto (A, B ) constituí, assim, o modo de produgáo defi­
nido em seu sentido restrito.
A esse conjunto corresponde outro:
(C) .= (Cl, C2, . . .,Ca)

142
Olí modo de disíribuigác, e o conjunto (A, B, C) constituí a instancia
económica á qual corresponde urna instancia política, urna instancia
ideológica etc.
A fim de determinar se um dos modos de produgáo (A, B),
(As, B2), . . . . (,„ B„) é indiretamente dominante, basta usar o
mesmo método utilizado para determinar á “dominagáo económica” :
estudar os níveis B, G, D, .. ., e se em qualquer um desses níveis um
dos elementos B¡ ou Ci ou D¡ parece para todos os efeitos prevalecer
sobre os outros, dir-se-á que o modo de produgáo correspondente,
Xi, é indiretamente dominante.
.Está claro que tal definigáo é lógicamente contraditória, porque
náo há nada para garantir que a dominagáo estabelecida no nivel B
náo será invertida no nivel *'C. Além disso, o próprio Terray fornece
um exe.mplo dessa contradigáo: na relagáo entre o modo de produgáo
“tribal aldeáo” e o modo de produgáo de linhagem, as relagoes de
produgáo deste último determinam as do primeiro, como por exem-
plo, através da apropriagáo pela linhagem da rede de caga; portanto,
o modo de producáo de linhagem domina indiretamente o modo de
produgáo aldeáo. Ao nivel ideológico, por outro lado, a agricultura
náo tem absolutamente influencia, enquanto a cana tem influencia
preponderante e, portanto, o modo de produgáo aldeáo domina “ín-
diretámente” o modo de produgáo de linhagem.
Na verdade, náo atribuimos muita importáhcia a essa contradi­
gáo mas, se insistimos nela, é apenas para mostrar que náo podemos
abandonar a concepgáo de Marx de dominagáo como processo. De-
finigóes de dominagáo, como a de Terray, seriam a rigor inaplicáveis,
mesmo que fossem coerentes.
Para nos ajudar a compreender esse ponto, tomemos como
exemplo as relagoes entre o modo de produgáo feudal e o modo de
produgáo capitalista, como Marx as analisa no famoso capítulo de
O Capital, livró terceiro, sobre a génese da renda capitalista da térra.
Nesse capítulo, vemos que assim que o sistema capitalista come-
ga a emérgir, a renda da térra e o lucro se limitam reciprocamente.
Entretanto, quando a renda da térra deixa dé limitar o lucro (isto é,
de dominá-lo). e passa a ser por este limitada' (isto é, dominada),
náo há razáo para que esta. reversáo seja o preciso momento em
que. a mássa de lucros distribuida aos capitalistas se torne maior que
a massa de renda, distribuida aos proprietários da térra. A reversáo
pode ocorrer bem antes ou bem depois desse( fato. Além do mais,
ela pode corresponder a distribuigóes de lucro e renda que variam
de acordo com o país em questáo.
O critério de dominagáo é, portanto, completamente diferente, e
é encontrado na análise interna do modo de produgáo dominante. É

143
ocorre entre colaterais de terceiro grau, mas nao entre parentes da
geracao vizinha. A memoria genealógica nao vai além de duas gera-
coes; nao há culto dos morios. As relagóes mais estreitas entre paren-
tes parecem ser as seguintes: educacaó dos filhos pequeños pela rnáe,
substituida pela horda logo após o desmame; prestacóes de servico
aos sogros, durante alguns anos (aparentemente todo o tempo em
que pejmanecem no grupo dos caladores); presénte da rede indi­
vidual para o adulto casado, feito pela m ié ou pelo tio materno.
O parentesco nao envolve lagos duráveis nem representa a base da
organizagao social. Tanto a horda, quanto as familias nucleares sao
efetivamente instáveis. Nenhuma norma que seja infringida- parece
levar a graves conseqüéncias.
Apésar de sua excelente dpscrigao das instituigoes económicas
dos Mbuti e de observagoes müito procedentes, Turnbull restringe o
fator económico as relagóes de troca com os cultivadores ou á.
ecología 12.
Tendo rejeitado o determinismo ecológico de Steward (1955),
nao examina em nenhum momento a influencia do modo de produ-
gao dos Mbuti. Apesar da excepcionalidade, de suas observagoes per­
mitir urna interpretagao mais refinada, Turnbull concluí que o sis­
tema de valores é o principio explicativo mais importante para dife­
renciar os cagadores Mbuti dos agricultores aldeóes.
É, portanto, claro que a principal diferenga entre estes dois
grupos reside no modo de exploragao da terna, objeto de trabalho
para os cagadores e coletores e meio de trabalho para os agricultores.
Daí decorrem as principáis características desses dois sistemas econó­
micos. No caso da utilizagao da térra como objeto de trabalho, o
homem preda a natüreza sem restaurá-la; a fraca produtividade da
térra é compensada por urna forte produtividade de trabalho. O esgo-
tamento dos recursos leva o grupo a se destocar em diregao a outras
áreas até que- a fauna e á flora exploradas se reconstituam natural­
mente. A exploragao nao" dá .lugar á elaboragáo de um terreno, ou
seja, de urna agño regular exércida no corte da floresta que garanta
a permanencia da paisagem. Ela se exerce no interior de um territorio
reconhecido apenas pelos limites que llie sao impostas em relagao
aos outros grupos cagadores.

12. Turnbull escreveu que entre os Twa, pigmóides mais ligados aos
grandes negros, o fator económico é dominante,' enquááto qüe os pigmeus o
ultrapassam (Turnbull, 160: 16). Nesse sentido, admite implícitamente urna
relacáo entre economía e estrutura social mas a caracteriza como urna relacáo
cultural: “Culturally they a r e . . . distinguished from their neigbbours as unit
being hunters and gatherers and , not cultivatórs, with a consequently totally
distinct social structure” (grifo nosso). C. Meillassoux.

90
Este modo de exploragao é a causa do nomadismo no interior
do territorio. Porque nao investem na térra o trabalho necessário o
ren di mentó é instantáneo e nao diferenciado. Este modo de explo­
ragao da térra implica atividades descontinuas, de durabilidade
limitada, independentes urnas das outras, cujo produto aparece ao
fim de cada urna délas. O aprovisionamento é o resultado destas
atividades geralmente cotidianas, repetidas em prazos bastante curtos.
Como o trabalho independe de investimento anterior, o resultado
é altamente aleatorio. Turnbull enfatiza que a produgáo de um cala­
dor isolado é muito incerta para assegurar um aprovisionamento
regular. A constituicao de grupos mais numerosos de cagadores, ou
de equipes de cagadores, reduz os riscos da escassez alimentar. Acres-
centemos, enfim, que pelo seu modo de exploragao, os coletores e
cagadores competem com os animáis predadores. Explorar a floresta
é penetrar ñas áreas de atividades dos animáis. A seguranga exige
efetivo numeroso de pessoas: as mulheres coletam por equipes, can­
tando ou fazendo barulho para espantar o perigo; a caga individual,
a armadilha se realizam ñas proximidades do territorio; os próprios
arqueiros só se deslocam em blocos de cinco ou seis cagadores.
A caga com rede, realizada coletivamente, representa urna técnica
de cooperagao comparativamente avangada. Exige um número sufi­
ciente (de sete a trinta cagadores) de participantes capazes de esfor-
gós semelhantes e de um trabalho idéntico. A associagáo dos caga­
dores faz-se, portanto, por nivel de idade e em fungao de efetivos
“óptima”. A composigáo e o número de tais efetivos ultrapassam a
extensáo da familia. A organizagao familiar, estando aquém do limite
quantitativo e qualitativo, que’lhe permitisse coincidir com um grupo
de cooperagao, tende a se reduzir á sua menor dimensáo, o núcleo
conjugal. Com efeito, Turnbull observa que os fatores da coesáo da
horda fundamentam-se mais ñas fungóes económicas que no paren­
tesco. Ele escreve:
“The terminology of the Mbuti stresses the ir relative age and
economic status rether than their kinshin” (1965:1911). As relagóes
de produgáo se estabelecem entre produtores de “status” iguais. A
posse de urna rede por cada um dos produtores torna-os indepen­
dentes uns dos outros no plano da posse dos meios de produgáo,
ficando dependentes da horda pelo caráter próprio do seu trabalho.
A organizagao social da produgáo em conseqüéncia, neste modo
de exploragáo da térra, apresenta um certo número de características.
A cooperagáo do grupo de cagadores ou de coletores só é efetiva e
necessária durante o período em que dura a atividade. Esta coopera­
gáo termina com a divisáo do produto. Os participantes podem aban­
donar o grupo para, eventualmente, integrarem-se em outro, sem

91
Nóssa intengáo, aqui, é mostrar por que estas duas abordagens
teóricas nao sao contraditórias, mas complementares. Esperamos
fazer isso tomando o artigo de Terray como nosso ponto de partida,
e mostrando sucessivamente que:
1. A própria natureza da “lei da correspondencia ou da nao
correspondencia” formulada por Bettelheim nos obriga a passar do
simples inventário descritivo para um estudo dinámico, sem o que a
análise íicaria despro vida de sentido, como A. Glucksmann enfatizou.
( “O Teatro Althusseriano”, New Left Review, n.° 72, Margo-Abril,
1972, págs. 68-92). E isso é de fato o que faz E. Terray, jpor meio da
introdugáo dos conceitos de “dominagáo” e reprodugáo.
2 . Terray, nao obstante, colocou-se numa perspectiva puramen­
te estática no comego, e isso “contamina” o conceito, ou melhor, os
conceitos de dominagáo que formula, no sentido de que apenas con­
sidera a dominagáo como resultado adquirido, e enquanto tal, resul­
tado mensurável, em vez de um processo, Esse procedimento, além
de levar a contradigóes lógicas internas na forma operacional desses
conceitos, também náo tem fundamento algum ñas diferentes análises
de dominagáo encontradas na obra de Marx.
3. Essa perspectiva estática leva a um grosseiro exagero da
“correspondencia” por um lado, e a urna minimizagáo, por outro, da
“náo correspondencia” — tal como podemos inferir do próprió texto
de Meillassoux — “entre as relagóes de produgáo e a natureza das
forgas produtivas” da formagáo social Gouro.
4 . Somente um estudo em profundidade da “dominagáo” é
capaz de levar em conta tanto os casos “de correspondencia” (que
náo sáo táo freqüentes) quanto os de “náo correspondencia” (que
sáo mais freqüentes), e náo apenas enumerá-los. Isso implica que
o modo de produgáo dominante deve ser. analisado Separadamente,
para que esse tipo de estudo seja bem sucedido. É somente quando
a análise interna do modo de produgáo dominante tiver alcangado um
estágio relativamente avangado, por meio do qual o processo de
dominagáo seja explicado, que será conveniente passar a analisar os
outros, os modos de produgáo dominados.' É assim que Marx procede
em “O Capital”, bem como em sua análise das “Formagóes Econó­
micas Pré-Capitalistas” .
5. A análise interna do modo de produgáo-dg linhagem mostra
que o “poder de fungáo” do anciáo é transformado num “poder de
exploragáo”, assim que a reciprocidade que o liga aos outros anciáos
Ihe possibilita reproduzir a estrutura de dependencia em seu próprio
beneficio, sem que tenha’ de levar em consideragáo o consenso dos

138
mais jovens. Essa recíprociaade envolve bens, mulheres, homens, co-
nhecimento de decisdes políticas, que tomam forma mais ou menos
legal; isto é; todos aqueles elementos que podem ser mais ou menos
diretamente trocados uns pelos outros. Ela nao períence á esfera da
circulagáo. É a manifestagáo da instancia determinante (que é políti­
ca) do modo de produgáo de linhagém (em sentido ampio). A do­
minagáo desse modo de produgáo sobre os modos de produgáo su­
bordinados pode apenas ser compreendida com base na agáo dessa
instancia.
6 . Finalmente, a articulagáo do modo de produgáo de linhagém
com urna organizagáo hidráulica da aldeia, gerando sua própria es-
trutura permanente de hegemonía, como na sociedade segmentária
Sonjo, descrita por R. Cray, mostrará muito claramente o caráter de
classe da dominagáo dos anciáos nas sociedades de linhagém (vide
“Economic Exchange iri a Sonjo Village”, de R. F. Gray, in “Markets
in Africa”, editado por R. Bohannan e G. Dalton, Northwestern Uni-
versity Press, 1962).

I — DE UMA ANÁLISE ESTÁTICA A UMA ANÁLISE


DINÁMICA

Terray escreve:
“Se tres sistemas de relagSes de produgáo estruturam a mesma
coletividade, nossa primeira taíefa é encontrar ‘seus limites e coim
preender-lhe as conexSes. Entáo temos de enumerar as modificagdes
que sua coexistencia traz a cada um deles. Finalmente, temos de
encontrar qual deles é o sistema dominante e, dessa forma, o modo
de produgáo dominante” (Terray, 1972).
O próprio Terray apresenta certo número dessas interagñes:
1. “Na medida em que relagoes de produgáo específicas cor­
responden! á cooperagáo indireta (isto é, o modo de cooperagáo
encontrado na criagáo de gado — Pierre-Phillipe Rey) elas sáo do­
minadas pelas relagoes de produgáo baseadas na cooperagáo simples
(isto é, o modo de produgáo de linhagém encontrado na agricultura
— Pierre-Phillippe Rey).”
Daí, a dominagáo absoluta pelo modo de produgáo de linhagém.
2 . “Na térra dos Gouro, por exemplo, em todos os ramos da
produgáo entre os quais o trabalho social é dividido, a agricultura
domina diretamente a pesca, a coleta e o artesanato, porque a apro-
priagáo da natureza nesses ramos subordinados é realizada dentro

139
\

As representacóes religiosas encontrara seu fundamento nessas


características. Ós Mbuti ignoram, por razóes sociológicas que já
citamos acima, o culto dos ancestrais. Em decorréncia da proximida-
de da floresta, de seu caráter alimentador e protetor, fonte de vida e
conforto, a religiao nao é objeto de temores supersticiosos como
acontece com agricultores aldeóes. A floresta, com efeito, nao é um
obstáculo á atividade económica dos capadores. Ela é o laboratorio,
o lugar privilegiado e, até certo modo, subjugado: “Títere is certainly
nothing in tíre course of natural events in.the forest to suggest to
hunters and gatherers any trace of hostility”. É pela preservacao e
nao pela destruicao que a floresta se torna explorável. Turnbull en­
fatiza que a atitude dos pigmeus em relagáo ao sobrenatural é de
dúvidas e agnosticismo. As narrativas sobre o “além” tém o caráter
de lendas imaginárias. As representagóes religiosas que se pode ima­
ginar sobre os pigmeus, nao se referem á floresta próxima, mas ao céu
inatingível17.
Vários pontos do trabalho de Turnbull sobre os Mbuti se fun­
damentan! ñas observagóes feitas sobre o processo de transformagáo
dos cagadores em agricultores e, por outro lado, sobre as persisten­
cias das atividades de caga ñas sociedades agrícolas. Turnbull ressalta
o comportamento dos Mbuti no contato com os cultivadores, mos­
trando como esses pigmeus se adequam a algumas instituigóes no
sentido de se situarem num nivel em que a comunicagao seja possível.
Mas a vida aldea nao influencia o modo de vida Mbuti. Turnbull nao
descreve' fenómenos de transigáo, mas de conformidade.
Althabe (1965) demonstra o processo pelo qual os pigmeus
Mbaka, em contato com os Santos, converteram-se em agricultores.
No plano económico, afirma que sedentarizagao e atividade agrícola
ocorrem consecutivamente: a adogáo de um modo de coopéragao
agrícola implica a continuidade e a constituigao de células familia­
res mais compactas e mais duráveis; o uso da moeda; e trocas
restritas a esferas de circulagáo estanques. Sociológicamente, Althabe
constata o aumento da poligamia, o-aparecimento do casamento por
dote e o surgimento de objetos reservados para este fim. Politica­
mente,, o homem adquire poderes novos decorrentes da apropriagao
de plantagóes, participagáo no conselho de anGióes e da sedentariza-
cáo permanente de várias células familiares. Em conseqüéncia a posi-
gáo das mulheres se enfraquece. Enfirn, o poder tende a se associar

17. Esta ascensáo direta ao céu apareceu, sem dúvida, como urna ideali-
zacáo suficientemente próxima á do cristianismo. Nesse sentido os missionários
que durante muito tempo dedicaram-se a descrever estas populagóes, chegaram
á conclusño da universalidade de sua crenga e da existencia de tuna verdadeira
religiao entre os pigmeus.

94
á riqueza, fenómeno que toma possível urna adaptagáo rápida á
economia baseada no lucro. Esta, com efeito, nao encontra o obstá­
culo de urna antiga hierarquia a ser vencida, nem privilégio a ser
protegido.
Estas transformagóes nao. sao, para os Mbaka, o resultado de
um processo de imitacáo, mas exigencias de suas novas atividades.
O modo de exploragáo da térra como meio de trabalho (nos o de­
monstraremos brevemente) engendra formas típicas de organizado
social. No entanto, formas de organizado social da horda p'odem
persistir em sociedades agrícolas que se dedicam também á caca
coletiva.
Eu havia ressaltado (Meillassoux, 1964:95, 99-100), a respeito
dos Gouro, as oposicoes que caracterizara as atividades de caga e de
agricultura: n ornad izado do cagador e sedentarizagáo- dos agriculto­
res; cooperagáo descontinua e provisoria entre capadores e coopera-
gao regular e continua entre agricultores; caráter territorial social­
mente difuso do grupo de capadores, e células sociais mais restritas,
mais compactas e aparentadas dos agricultores etc. Dois principios
de organizagáo encontram-se em oposigáo: mato cerrado e áldeia;
territorio e terreno agriculturável. O primeiro integra grupos territo-
riais (metades, aldeias), o segundo grupos aparentados (linhagem, fa­
milias extensas)1S. Se, no entanto, as atividades de caga caracterizam
até certo ponto o modo de organizagáo social da horda, na sociedade
agrícola a caga se opóe ao sistema de parentesco e aparece apenas fora
dos limites da aldeia e de seus quadros sociais. Nao pertencendo
mais a um modo de produgáo dominante, o cagador desaparece social­
mente, desde que retorne para a aldeia1819.
A economia agrícola se distingue pelo uso da térra nao mais
com o. objeto, mas como meio de trabalho, pela incorporagáo na
térra de forga de trabalho cujo produto é diferenciado. O aumento
das atividades produtivas e a obtengáo em prazos determinados esta-
belecem urna cooperagáo prolongada e continua em torno das ativi­
dades agrícolas. Neste ciclo indefinidamente renovado, a repartigáo
das tarefas, a durabilidade do produto, armazenamento, consumo,
que perfazem pelo menos um ciclo agrícola completo., e a necessidade

18. Em Duonéfla, no mato cerrado, é o beí (*) e bebu (grupos territo-


riais) na aldeia é o Goniwuo - (linhagem) (Meillassoux, 1964:98).
(* ) Beí e bebu sao grupos de capadores utilizados para o apresamente
de grandes animáis, principalmente elefantes (N . do T.).
19. O modo de vida particular dos capadores e sua distancia em relacáo
i á aldeia, aparecem aínda ñas associacoes de capa entre os Bambara, os Ma-
i linke os Peuhls (Youssouf Cissé. 1964) onde possuem sua própria hierarquia
independente da aldeia, seu culto, suas cerimónias.

95
sofrer espoliagao e sem espoliar seus companheiros. Em outros ter­
mos, a cooperagao pode ser improvisada (ela une sempre partici­
pantes desejosos de se congregarem) e “ad hoc” (ela reagrupa os efe-
tivos e os agentes circunstanciáis necessários a atividade).
Sendo a cooperagao táo descontinua e precária, a composigáo
dos grupos de atividade nao é estável. Em contraposigáo, para cada
- agente produtor, ela deve ser repetida em intervalos próximos, para
assegurar um aprovisionamento continuamente renovado. Em outros
termos, o modo de produgao nao exige urna dependencia continua a
uin ínesmo grupo. Nao cria também a dependencia entre os partici­
pantes, cada um dispondo de seu próprio instrumental. A divisao do
produto desliga-os de toda obrigagáo recíproca. Por seu caráter
instável e diversificado, as relagoes de produgao nao podem assegu­
rar urna coesáo social durável da horda.
A circulagáo do produto faz-se de acordo com um circuito, curto
e difuso: do grupo cooperativo dos capadores, o produto é dividido,
retornando individualmente para cada um dos participantes, pela ins-
tituigáo da partilha. Em oposigáo ao que se observa na sociedade
agrícola, nao existe redistribuigao, ou seja, centralizagáo do produto e
repartigáo diferenciada no tempo, mas únicamente um fato instantá­
neo. A brevidade e a repetigáo de atividades intermitentes levam a
um modo de vida ligado ao presente, sem duragño e sem continuidade.
O modo de vida é instantáneo. Com efeito, Turnbull insiste,- freqüen-
temente, nesta característica das sociedades Mbuti: “Kinship system
does not the have same importance as a focal point of social control
as in other african societies. . . It as undeniably linked to the “ad
hoc” nature of the society with almost complete lack concern of the
past as for the future13. This is something we shall discover in the
economic and political life and even in the religious life of the
Mbuti”. As preocupacoes dos cagadores-coletores sao yoltadas para
a produgao presente, mais do que para a reprodügao. Nenhuma liga-
gao durável une os mais jovens aos.mais velhos, e nenhuma depen­
dencia material obriga-os a m orar juntos. A crianca nao é considera­
da como a fornecedora futura de alimentos para o velho nao
produtivo.
Ao mesmo tempo, nao pode ser considerada como um canal que
leve ao culto do ancestral, pelas razóes já expostas 14. Nesse sentido,
o controle social das mulheres procriadoras é fraco, até mesmo nulo.

13. Grifo nosso. (C. M eillassoux).


14. Quando nascem .criangas gémeas, a máe mata, urna por nao poder
amamentar doís ao mesmo tempo, segundo regras do grupo, O desmame se
dá entre dois e quatro anos. O infanticidio é, pois, regra normal.

92
Em conseqüéncia, a mulher goza de urna liberdade que só parece
limitada por sua própria fisiología. Além disso, o fraco nivel da re-
particáo das tarefas, a participagáo das mulheres em quase todas as
atividades masculinas, em particular na caga com rede, contribuí para
colocar os sexos sob um plano de igualdade social quase pleno 13. O
modo de produgao também oferece o quadro de urna liberdade indi­
vidual que se manifesta ñas atitudes sexuais, na flaqueza das ligagoes
conjugáis, na mobilidade dos individuos, na fragilidade e instabilida-
de das instituigoes, ao nivel da horda ou da familia nuclear 1516.
Estas características da organizagao social associada as da pro-
dugáo, nao oferecem base para o surgimento de um poder político
centralizado e durável. Cada produtor sendo possuidor de um instru­
mento de produgao, e nao havendo separágño do produtor e de seu
produto, nao existe possibilidade de um grupo ou de urna classe
exercer o controle da economia. A diregao das atividades produtivas
nao vai além do tempo necessário á sua realizagao e é sempre ques-
tionada. A partilha, ao inverso da redistribuigao, nao sendo diferen­
ciada, nao permite que o produto seja guardado, acumulado ou
centralizado. Enquanto instituigáo nao permite que o poder dure ou
se afirme, pois, como na caga, trata-se de um processo descontinuo
e repetitivo. Nao podendo encontrar fundamento numa fungao social
continua, indispensável á coletividade, o poder nao pode, “a fortiori”,
apoiar-se em prolongamentos ideológicos como em outras sociedades.
O controle social sobre as mulheres ou a posse de conhecimentos arti­
ficiáis nao podem se manifestar. A posigao dos velhós é significativa.
Com a perda de suas forgas, nao pertencendo mais á classe de idade
á qual Turnbull atribuí influencia considerável, caem na dependencia
material dos cagadores, isto é, dos produtores. Certos autores citam
o caso do abandono de velhos (de Ternay, 1949; Althabe, Commu-
nication Verbale). Turnbull nao menciona esse fato. Entretanto, esse
comportamento acha-se de acordo com a lógica do sistema. O poder
nao se funda na duragao das capacidades físicas do adulto. Nao está
em correlagáo continua com o envelhecimento. Por isso, compreende-
se que a memoria genealógica remonte apenas a urna ou duas gera-
goes e que nao exista culto dos mortos.
15. D. E. Leeuwe (1962) fala de lutas dirigidas por mulheres entre os
Bambuti (Mbuti). Castillo — Fiel (1948) diz que as mulheres Bayele pos-
suem alto “status” .
16. O caso Mbuti aquí considerado, nao pode ser generalizado em todas
as suas implicagóes para outras sociedades de cacadores-coletores. Em razáo
da proximidade do grupo ao meio natural, fatores ecológicos causam varia-.
?óes. Assim, a escassez de água entre os Bosquímanos provoca o fenómeno de
estocagem e de posse de pontos de água, que reforcam as ligagoes dos mem-
bros da horda. Estas, entretanto, nao sao desprovidas de instabilidade (L.
Marshall).

93
tibilidade do sistema com a economía mercantil se mantém. No en­
tanto, estas instituigoes conservadoras nao retiram da economía
mercantil os meios necessários á sua. ampliacáo. Ao contrario, sao
utilizados diversos modos de esterilizagáo do produto social como
forma de conté-la. Observa-se o mesmo fenómeno no confronto da
sociedade agrícola com a escravidao.
Estas características, se bem que críticas (surgimento ou desa-
parecimento de instituigóes sao acompanhadas de crises que implicam
a transformagao radical do sistema social), nao sao determinantes,
pois ¿parecem no interior de um sistema determinado de outro modo
e como obstáculo a urna oütra determinagáo.
Üma tipología dos sistemas económicos implicaría urna pes­
quisa mais precisa do nivel de determinagáo, considerando-se: l.°)
as relagóes existentes entre os elementos constituintes do modo de
produgáo; 2.°) as relagóes existentes entre vários modos de produgáo
coexistentes, como indica Bettelheim. Isto feito, talvez fosse possível
detectar além do modo compósito de produgáo, tragos críticos sus-
cetíveis de caracterizar sistemas económicos incompatíveis uns com
os outros. Estes tragos forneceriam os elementos de urna tipología
mais refinada e mais capaz de explicar náo estruturas formáis e “sin­
crónicas” sem pertinencia, mas a dinámica contraditória na qual esses
sistemas estáo engajados e perceber que os tragos críticos sáo pródu-
tos déla. Essa tipología permitiría, também, tornar mais inteligível a
conceitualizagáo abstrata das diversas realidades históricas.
A oposigáo radical entre sociedade de caga e sociedade agrícola
coloca outro problema: o da passagem eventual de urna á outra. Cer-
tos autores23 negam que a revolupáo neolítica tenha sido um pro­
gresso, pois com ela a produtividade do trabalho diminuiu. Mas náo
levam em consideragáo que o aumento da produtividade dos meios
de produgáo possibilitou investimento maior de tempo de trabalho
na produgáo e, por consegrante, propiciou um aumento do volume
dos bens produzidos, Com esse progresso, a subsistencia dos impro-
dutivos é melhor asegurada, a esperanga de vida cresce, as práticas
do abandono de velhos desaparecerá, enquanto a organizagáo mais
compacta da familia e a poligenia suprimem o infanticidio. Quaisquer
que sejám as nostalgias que enfatizam o modo de vida “livre e aven-
tureiro” dos cagadores, o progresso social é patente. Portanto, náo
se verifica a priori nenhuma continuidade de urna forma social a
outra e nem se descobre na sociedade de, caga¿ geralmente conside­
rada como anterior, o conjunto das contradigóes internas que a leva-
ram a se transformar. Além disso, obServa-se que a sociedade dé

23. Cf. Cours de M . Sahliñs, E.P.H.E., 1967-8.

98
cagadores nao se transformou necessariamente, mesmo quando em
contato com agricultores ou possuidores de ferramentas" de rendimen-
to superior. Enfim, na África, as populagoes de agricultores perten-
cem a um estoque étnico diferente dos cagadores, o que afasta os
casos de passagem histórica, de um modo de produgáo a outro. Os
casos de transformagáo observados resultam de um contato com
comunidades agrícolas introduzidas em circuitos mercantis: Desse
modo, sao as trocas comerciáis que agem como fatores de mudanga
e náo o simples contato com urna sociedade comunitária.
A determinagáo da sociedade cinegética se localiza, portanto,
no nivel do modo de exploragáo da térra e náo do modo de produgáo.
Nesse sentido, é ñas relagóes dos cagadores-coletores com a natureza
que deveriam ser pesquisadas as contradigóes que estariam na origem
de sua transformagáo e náo no desenvolvimento contraditório do
sistema social. '

OBRAS CITADAS OU CONSULTADAS

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BETTELHEIM, C. — “Problematiqus de l ’economie de transition”, Et. de
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d ’Ivoire, Mouton et C., París. . .
1968 — Légende de la dispersión des Kusa, IFAN, Dakar. *.*'

99
de se recomegar o trabalho, continuando a alimentar-se da colheita
precedente, determinam ampliagáo indefinida dos lagos sociais dos
produtores involuídos na atividade agrícola. Nesta sociedade onde
intervém a duracao, a espera, a repeticáo cíclica e o tempo, o futuro
torna-se urna preocupagáo e com ele o problema da reprodugáo.
Reprodugáo. dos efetivos da célula de produgao ■em número e em
qualidade, a fim de assegurar o aprovisionamento continuo de seus
membros; reprodugáo das estruturas de grupo, a fim de preservar a
hierarquia responsável por seu funcionamento. A filiagáo que assegu-
ra a renovagáo das relagoes de produgao e dos produtores, o casa­
mento que renova o grupo ñas suas estruturas hierarquizadas tornam-
se preocupagóes dominantes. As relagoes de produgao tomam apá-
réncia de relagoes de parentesco. A crianga aparece como o depen­
dente natural do homem, a procriagáo como o meio mais direto de
se constituir a .dependencia e a familia como a célula desejada pelo
destino. A mulher, produtora do produtor, é o meio de produgao mais
poderoso, orientado em diregáo ao futuro e, portanto, o mais sujeito
a norma e á restrigáo. A mulher, na sociedade agrícola, é subinissa e
esta submissáo (que el a suporta em razáo de suas capacidades repro-
dutivas, leva-a a urna submissáo mais completa, sendo considerada
simplesmente produtora. As preocupagóes do futuro voltam-se para o
passado. As genealogias se alongam, o ancestral intervém como
personagem política e religiosa.
As relagoes do homem com a natureza. se alterara. O agricultor
disputa a térra com a vegetagao sempre invasora.
É necessário ao homem inscrever sua vida no solo e prevenir
seu enfraquecimento. O mato cerrado é o inimigo que se deve rejeitar
sem trégua. De protetora, a natureza torna-se hostil. A distingáo
entre aldeia e mato cerrado “afirmarse claramente tanto na topografía
como na língua. O mato cerrado é o lugar estranho e perigoso 20.
Povoa-se de seres sobrenaturais e temíveis, representagóes de forgas
esmagadoras da natureza que é necessário vencer, dominar ou
conciliar.

CONCLUSAO

Em síntese, as oposigóes entre os dois sistemas aqui considerados


sao radicáis desde a organizagáo social da produgao, até as repre­
sentagóes ideológicas. '

20. Os Sonike opóem á claridade da. aldeia a obscuridade do mato cerrado.


Gune designe este mato cerrado como París ou Dakar, onde os imigrantes
chegam (Meillassoux, 1968).

96
Um primeiro problema é colocado pela comparacáo destas duas
únicas sociedades. Parece, com efeito, qne ñas sociedades de caca-
dores se pode considerar como determinante o modo de exploradlo
da térra, e, a partir dele, deduzir a organizagño económica e social,
política e as representagóes religiosas. Contrariamente, se a transfor-
magáo deste modo de exploracao altera a sociedade como um todo,
a térra como meio de trabalho é encontrada em sociedades agrícolas
com organizares diferentes e incompatíveis entre si.
Urna vez adotado este modo de produgao, o nivel de determi-
nacáo situa-se alhures. Admite-se, na teoría marxista, que o modo de
produgao é determinante, mesmo na sociedade capitalista21.
Mas o modo de produgao é urna nogáo complexa que implica
relagoes entre meios de produgao e relagoes de produgao, num
nivel dado de forgas produtivas. Colocar a determinagáo neste nivel,
nao pressuporia que outros elementos pudessem ser adquiridos, ele­
mentos esses que num certo ponto de desenvolvimento seriam de­
terminados pelo modo de produgao? Este é um aspecto do problema
da pesquisa do nivel de determinagáo. É necessário levar também
em consideragáo as importantes notas de C. Bettelheim (1966) sobre
o caráter diversificado das formagóes sóciais onde coexistem varios
modos de produgao; o caráter dominante de um e as relagoes que
mantém outros' confere as formagóes sociais urna especificidade que
nao se coaduna exatamente com úm único modo de produgao 22.
Acrescéntémos que a coexistencia de vários modos de produgao
..engendra reagóes de natureza contraditória que tornam possível o
' surgimeñtp -de tragos estruturais críticos, contribuindo a tornar incom­
patíveis-as formagóes sociais em que foram produzidos com aquelas
em que esses mesmos tragos críticos fossem apenas engajados. Se
ampliarmos nossas observagóes mais do que permite o simples con­
fronto da economia cinegética -com a economía agrícola, observa-se
que o caráter de auto-subsistencia da comunidade agrícola torna-se
crítico apenas quando confrontado com a economia mercantil. Esse
contato leva ao aparecimento de instituigóes de fato e . de direito,
visando á preservagáo da auto-subsistencia como quadro dominante
da ecoñomia. Enquanto estas instituigóes s.e preservam, a incompa-
21. Nessa ótica, todas as formacóes sociais (enquanto determinadas pelo
modo de produgao) opor-se-iam as sociedades de cacadores-colétorés (deter­
minada pelo modo de explorando da térra). D e maneira idéntica, no que diz
respeito á condigáo dos trabalhadores, a sociedade capitalista, com o traba-
Ihador livre, estaría oposta a todas as outras sociedades ñas quais o trabalhador
mantém lagos de dependencia — exceto na sociedade cinegética onde as rela­
goes de produgao se estabelecem entre pares.
22. Deste ponto de vista, parece que todas as sociedades anteriores ao
capitalismo sao formagóes sociais.

97
estágio tribal, patriarcal, apenas esbozado em 1845, fica consideravel-
mente enriquecido. O problema do nascimento do Estado e do surgi-
mento de suas formas primitivas é colocado com clareza e recebe
solugáo original. A existencia de múltiplas comunidades agrícolas
isoladas necessitando de extensa cooperagáo nos trabalhos de inte-
resse coletivó é a base sobre a qual se edifica urna forma despótica
de Estado. Essa estrutura, combinando comunidades aldeas e Estado
central despótico, constituí urna forma de transigáo da sociedade
primitiva bárbara á civilizagáo. Mas, á medida que o isolamento das
comunidades e sua estrutura arcaica interditam o prógresso decisivo
das forgas produtivas, essa transigáo fica interrompida, e a Asia
permanece estagnada numa miséria milenar, ao lado da grande cor­
rente que iria desembocar no capitalismo. Entretanto, a partir do
estudo das formas asiáticas consideradas como sobrevivencias, tor-
.. =;
nar-se-á possível reconstituir e compreender a evolugáo social como
um todo. ' ,v
Em 1858, o segfedo das mais-valia e da formagáo do lucro é
descoberto por Marx. A crítica da economia política encontra seu
fundamento definitivo. O problema das condigóes históricas do apare-
cimento do capitalismo pode ser colocado científicamente. A singula-
ridade das relagóes de produgáo capitalistas opondo e combinando
proprietários dos meios de produgáo e do dinheiro e assalariados,
porprietários apenas da forga de trabalho, é contrastada com algumas
formas pré-capitalistas de produgáo. Novo esquema de evolugáo his­
tórica é construido, integrando as análises de 1853 sobre as formas
asiáticas de propriedade do solo, de organizagáo do trabalho e de
exploragáo por um poder despótico.
Entretanto, a propriedade comum do solo e o trabalho em co­
muna sáo explícitamente colocados como ponto inicial da evolugáo
da formagáo económica da sociedade. Esta, em sua origem, tem a
forma de comunidade natural fundada no parentesco de seus mem-
bros, recebendo de Marx a denominagáo de tribo. A Asia é tida
como berco e museu das formas primitivas de propriedade do solo
e das atividades agrícolas e.gle criacáo. Várias evolugóes se esbocam
a partir dessas formas origináis, onde a comunidade é a proprietária
e o individuo mantém apenas a posse.
Urna dessas evolugóes que nao muda a “forma” das relagóes
sociais, mas modifica parcialmente seu conteúdo, é o desenvolvimento
geral do despotismo oriental, forma de Estado que .seria encontrada
ño Perú, no México', na Rússia, na Asia e que desenvolve a explora­
gáo do homem pelo homem, sem romper a estrutura das ant-igas co­
munidades e sem transformar a ántiga relagáo do individuo com sua
comunidade de origem. •

102'
Outra evolugáo, mais dinámica, faz surgir formas de propriedade
que contradizem as mais primtivas, mas que se desenvolvem sobre a
base da organizagao tribal. A comunidade antiga concede a seus
membros o direito de propriedade privada ao lado de direitos de
posse comum sobre as térras do Estado. A comunidade germánica é
associacao de proprietários privados que usam conmínente térras nao
aráveis. Estas duas formas, em que a propriedade privada ganhou
importancia e o individuo adquiriu autonomia cada vez maior, sao o
ponto de partida de formas de exploragáo do homem pelo homem
que, progressivamente, destroem as antigas relagóes comunitárias e
dáo origem a novo desenvolvimento de formagóes “secundárias”
caracterizadas pela existencia de classes antagónicas e do Estado.
Dois processos de pénese do Estado e de urna classe dominante
sao sugeridos, um interno as comunidades, outro externo, mas que
podem combinar-se. A unidade da comunidade pode encarnar-se na
pessoa real de certos chefes de famñia'ou de personagens sobrenada­
rais imaginários que tém a seus servigos pessoas reais. Urna hierar-
quia se constitui no interior das comunidades, que podem, em alguns
casos, dar origem a urna comunidade superior que as domine, o
Estado, personificado por um déspota. A guerra e as conquistas
fazem com que as comunidades vitoriosas dominem as outras, neces-
sitando para isso de estruturas políticas e económicas novas, baseadas
no Estado. ,
De 1858 a 1877, O Capital e o Anti-Dühring enriquecem esses
temas; O Capital, analisando a renda-imposto, forma de exploragáo
própria das sociedades onde o Estado é o proprietário último do solo;
;o Anti-Dühring, generalizando a idéia de transformagáo dos poderes
dé fungao em poder de opressáo; e esbogando duas vias de passagem
ao Estado, urna levando as formas despóticas de Estado, a outra as
formas ocidentais de sociedades de classes baseadas em diversas for­
mas de propriedade privada, antiga e feudal, e na escravidáo ou
servidño.
A partir de 1880, as análises da Comuna russa que sé multipli­
caran! a partir de~1870, as da antiga comunidade germánica, recons­
tituida por Maurer e revelada a Marx em 1868, o conhecimento dos
tfabalhos de Kovalevsky íevam Marx a elaborar novo conceito, o
de “comuna rural” e dar novo sentido as comunidades hindus, russas
e germánicas etc., integrando-as num esquema bem mais complexo.
A Asia encontra-se “rejuvenescida” e as comunidades agrícolas
aparecem sob prisma mais dinámico. A comunidade antiga, onde a
propriedade privada já tinha feito a sua aparigáo, a associagáó da

103
QUATREFAGES, A . de — 1887 — Les Pygmées, París.
SERVICE, E. R. — 1962 — Prim iíive Social Organization, New York.
STEWARD, J. H. — 1955 — Theory of Culture Change, Urbana.
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100
PARTES MOR'TAS, IDÉIAS VIVAS DO
PENSAMIENTO DE MARX SOBRE SOCIEDADES
PRIMITIVAS. MARXISMO E EVOLUCIONISMO.
1. TENTATIVA DE AVALIAQÁO CRÍTICA *

Maurice Godelier**

A evolugao do pensamento de Marx e de Engels sobre as socie-


dades; sem classe e sobre as formas de aparecimento do Estadd e das
relacoes de classe pode ser resumida em grandes tragos.
Da Ideología Alema a 1853, Marx e Engels construiram um
esquema muito simplificado da evolugao das sociedades para ilus­
trar a descoberta fundamental de que a vida social tem fundamento
último nás formas e estruturas de diversos modos de produgao.
Quatro etapas sao esbogadas: a comunidade tribal que corresponde
as formas primitivas de economía (caga, pesca, criagáo, primeiras
formas de agricultura); a comuna greco-latina que tem a forma de
Estado; a sociedade feudal, a sociedade burguesa. As razoes da
passagem da comunidade tribal ao Estado-cidade antigo sao apenas
sugeridas. A transigáo da antigüidade á sociedade feudal é apresen-
tadá em grandes tragos, o papel das invasóes germánicas é mencio­
nado sem desenvolvimento aprofundado.
Em 1853, a India e o' Oriente aparecem no esquema, sendo que
a India resumiría em sua historia os caracteres típicos. A análise do
* O texto é um extrato do longo prefacio (págs. 14 a 142) que tínhamos
escrito para introduzir e comentar textos escoliados de Marx e de Erigels,
publicados sob o título: “Sobre- as sociedades pré-capitalistas”,’ Edigóes So-
ciais, 1970.
** M. Godelier — Parties mortes, idées vivantes dans la pensée de Marx
sur les 1- sociétés primitives. Marxisme et evolutionnisme. lv Essai de bilan criti­
que. Horizon, trajets marxistes en anthropologie, Paris, Maspero, 1973: 135/173.
Traducáo de Edgard Assis Carvalho.

101
iaque *, o porco e um tipo selvagem semelhante ao búfalo *34. Enfim,
posteriormente, sao domesticados animáis de transporte e de trabaHio,‘
tais com o elefante em zona tropical de floresta, o cavalo, o camelo,
o burro, o onagro**. Com a domesticagáo do cavalo, as economías
pastoris puramente nómades tornaram-se possíveis f. '
Já mencionamos que a arqueologia da Grécia e Roma arcaicas
nao existia na época em que Marx e Engels escréviam e que a ar­
queología do Oriente Próximo, excetuando a do Egito, nao existía; e
que a arqueologia e o conhecimento da historia antiga da China, da
Indonésia, do Japao e das grandes civilizagoes pré-colombianas nao
tinham nascido. Foi necessário esperar a descoberta de Jarmó no
Iraque Central e as escavagóes de Braidwood (1948-1951) para que
fosse exumado um testemunho das primeiras comunidades aldeas
(5000 a.C.) contemporáneas dos primordios da agricultura sedén-
tarizada e da domesticagáo dos animáis 5. Posteriormente, as deseo-
bertas se multiplicaran! e confirmaram que as cid ades , e os Estados
apareceram depois do desenvolvimento das comunidades aldeas. Na
Mesópotámia do Sul, por exemplo, existiu por volta de 9250 a.C.; e
as primeiras fcidades-Estados sumerianas comegaram a aparecer mais
ou menos em 3500 a.C.
Outro problema fica esbogado no sáculo XIX: o das sociedades
de castas. Várias explicagóes eram propostas: a casta nasceú da do-
minagáo de populagóes autóctones por invasores estrangeiros ou re-
presentou um caso limite da divisáo de trabalho combinada com
urna forma limite das relagoes de parentesco, a endogamia6.
Apenas no comego do sáculo, com os trabalhos de Bouglé,
Hoccart, a descricáo do funcionamento das castas progrediu e os
aspectos hierárquicos e religiosos desse funcionamento foram levados

* iaque: especie de boi selvagem das regióes montanbosas da Asia Cen­


tral (N . do T .).
3. Mourante, Zeuner, Man and Cattle, Proceedings o f a Syniposium on
Domestication at the Royal Anthropological Institute, 24-26 May 1960, R. A.
I 1963, pág. 15. . t
** onagro-, especie de burro selvagem da África e da Asia (N . do T .).
4. Fuhrer-Haimendorf, Culture, History and Cultural Development, Year
Book of Anthropology, 1955, págs. 149-168; L. .Krader, “Ecology ó f Central
Asian Pastorialism”, South- west. Joürn. Antro., 1955, págs. 301-326.
5. R. J. Braidwood, Reflectlons on the Origiri qf.^the Village-Farming
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págs. 22-31; Braidwood and Reed The Achlevement and Early Consequences
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torical Evidence, Long Island Biological Association, 1957, págs. 25-27.
6. L. Dumont,_ H om o Hietarchicus, 1965, págs. 36-50.

106
a sério 7. A explicagáo do fenómeno das castas reveste-se de impor­
tancia particular, de um lado, pelo alcance mundial da historia de
ontem e de hoje de um país como a India, de outro, porque a exis­
tencia combinada de castas e de um poder de Estado sugere urna
forma original de surgimento do Estado e impóe, com rigor, a defini-
gao da relagáo entre classe e casta.
Mais velhas aínda sao algumas teses de Morgan sobre a natureza
e as causas da evolugáo das relacóes de parentesco ñas sociedades
primitivas. Com base nelas, constroem-se passagens inteiras de L ’Ori­
gine de la jamille, de Engels.
Morgan se propós a explicar a instauracao das proibicóes sexuáis
e conjugáis, cuja aparicño póe fim á animalidade da promiscuidade
sexual primitiva e cuja multiplicagáo progressiva faz prógredir a
evolucáo das relacóes de parentesco até á organizacao ciánica. A
explicagáo que propóe para a proibigao do incesto e da exogamia
reduz-se ao-argumento biológico da selegáo natural.
Até hoje, porém, a genética foi incapaz de determinar os
efeitos positivos, negativos ou neutros de casamentos repetidos entre
parentes próximos, prática inilenar das sociedades primitivas e de
numerosas comunidades. Ó argumento biológico aparece como ra-
cionalizagáo “a posteriori”. E mais, o estudo do comportamento se­
xual dos primatas, cuja vida social pode oferecer urna linguagem do
modo da existencia animal a partir do qual o homem evoluiu, nao
mostra praticamente nenhum caso de pura promiscuidade sexual8.
Mas, o verdadéiro problema nao reside ai. Constatou-se que
todo sistema de parentesco suppe urna forma qualquer de proibigao
sexual e conjugal, e esse fato demonstra o caráter social das relagóes

7. Morgan, a propósito do casamento entre irmáos e irmás, afirma que,


em sua opiniao, caracterizan a a familia punaluana, descoberta no Havaí, e
declara: “É urna excelente ilustracáo da maneira como age o principio da
selecáo natural” (v. também L ’Origine de la jamille, pág. 4 1 ).
8. Robin Fox, Kinship and Marria ge, Pelican 1967, pág. 29. Engels cita
as contradigóes de Letourneau, de Sausurre, de Espinas sobre as sociedades
animáis, e concluir “D e todos estes fatos, a única conclusSo que eu pude tirar
e que eles nao provam rigorosamente nada sobre o homem e suas cóndigóes
de existencia primitiva ( . . . ) . Até que tenhamos maior númrro de informagóes,
é necessário rejeitar toda, conclusáo tirada destes dados absolutamente duvido-
sos” (L ’Origine de la jam ille, op. cit.. págs. 36-3.7). Ver também a recente
discussáo sobre o comportamento dos primatas, Current Anthropology, junho,
1967, págs. 253-257. .
Levi-Strauss no prefácio da segunda edicáo das Structures Elémentaires
de la parenté, op. cit., sublinha que os trabalhos recentes sobre chimpanzés,
babuinos, gorilas, no estado selvagem, obrigam a tragar urna linha de demar-
cacño e de oposigáo mais segura e tortuosa entre natureza e cultura. “ Vingt
ans aprés”, Les Temps Modernes, setembro de 1967, pág. 368.

107
• Marca *, descrita anteriormente como a comunidade germánica, nao
pertencem mais á íormagáo tribal primária. Outra comunidade ger­
mánica, reconstituida por Maurer a partir da associagáo da Marca
vem ocupar o lugar desta última no interior da formacáo primária.
Em 1883-1884, a descoberta da obra de Morgan transforma de
novo o esquema da historia primitiva. A importáncia do parentesco
ñas sociedades primitivas afirma-se definitivamente e algumas de suas
formas, sao distinguidas. A organizacáo em forma de cías aparece
como a chave da historia primitiva dos povos civilizados e a organi-
zacao tribal soménte como desenvolvimento tardío. Gom a descoberta
do papel histórico da organizagáo ciánica, a América e as sociedades
de caladores,- antes apenas referidas no movimento de evolugáo,
tomam o lugar ocupado pela Asia, para reconstruir' as fases da his­
toria antiga. Do modelo indiano passa-se ao modelo indígena! .A
gánese do Estado nos gregos, nos germanos adquire nova’ origem,
porque parece fazer emergir diretamente o Estado da antiga socie-
dade gentílica. As análises antigas do modo de produgáo asiático nao
sao totalmente repudiadas, mas se referem mais do que nunca a urna
via de evolucao distinta daquela do O.cidente; a urna transigió menos
rápida em diregáo á civilizagáo e que nao eonduz á forma mais diná­
mica desta última, a sociedade burguesa. A análise das formas primi­
tivas de sociedade permanece inacabada e, a partir de 1884, apesar
de sua admiragáo por Morgan, Engels estreve:
“A coisa nao teria sentido se eu quisesse fazer somente, um
relatório ‘objetivo’, náo criticando Morgan, náo utilizando os resulta­
dos recentemente adquiridos, náo os apresentando em ligagáo com
os nossos conceitos e com o que já foi obtido. Nossos trabalhadores
náo lucrariam nada” h
E, em 1891, ele já modificava certas partes do seu livro. A ligáo
é clara. Levar a sério a obra de Marx e Engels, de Lenin, náo é
“acreditar” na palavra deles e transformar suas hipóteses provisorias
em dogmas eternos. . ,
O que espanta nessa evolugáo é, primeiramente, a continuidade,
a ampliagáo e abertura permanentes sobre informagóes e problemas
novos. Essa continuidade, nós já a demonstramos muito. Desde 1845,
os temas da propriedade tribal, da oposigáo cidade e campo, da de-
sigualdade das sociedades primitivas sáo colocados e enriquecidos
incessantemente, até 1884. Refletindo sobre a India e o Oriente, o*1

* Marca — Comunidade primitiva na Germánia antiga constituida de


térras colelivas situadas na orla das térras ciánicas (N . do T.)-. <
1. Carta a Kautslcy, 26 de abril de 1884, Cartas sobre O Capital, Corres­
pondencia Marx-Engels, Edigóes Sociais, 1964, pág. 335.

104
enriquecimiento é tal, que Marx permanece, 'até hoje, juntamente com
Maine, o primeiro a colocar a Asia no primeiro plano da reflexao
histórica. Marx o fez com tal amplitude teórica, que adquire lugar
de destaque na grande corrente de historia comparada do sáculo XIX
pela amplitude de sua visáo e de seus prolongamientos teóricos.
E é essa riqueza teórica que explica que Marx e Engels tenham
tido a capacidade de acólher as descohertas feitas por outros espe­
cialistas, como Maurer e Morgan, fundadores de novas disciplinas
científicas. Reconstituimos ñas suas grandes linhas a configurando do
campo teórico no qual Marx e Engels refletiam a maneira pela qual
se organizava o conjunto das descohertas e dos problemas da lin­
güística, da economía política, da historia comparada, da etnología,
da arqueología, da prática colonial, da biología e mais que isso, se
renovavam os conceitos herdados do sáculo XVIII. A reflexao sobre
estes elementos podía ser enriquecida, porque toda a análise era feita
á luz dos principios de urna teoría revolucionária, o materialismo
histórico, e de urna revolucao teórica no campo da economía política.
O que é considerado ultrapassado e morto, das conclusóes dos
dois autores só se evidencia pelo progresso das ciencias fundadas no
sáculo XIX. Antes de inventariar essas partes morías, é bom frisar
que o grande salto empreendido por suas reflexóes sobre a historia
primitiva reside precisamente na análise das comunidades agrícolas
primitivas, do modo de producao asiático e da existencia de várias
vias de evolugáo a partir do comunismo primitivo em direcáo as so­
ciedades de classes e ao Estado. Veremos que é por essa vertente que
o pensamento de Marx e Engels ultrapassa seu sáculo e se insere,
após tantos anos de dogmatismo, no movimento do cónhecimento
atual. Esse dogmatismo náo nasceu, evidentemente, de Engels, mas é,
justamente, porque nasceu que A Origem da Familia, da Propriedade
Privada e do Estado se tornou dogma.
Conclusóes avanzadas do sáculo XIX, aceitas por Marx e Engels,
tornaram-se caducas atualmente. Citemos as mais importantes. A
teoría de acordo com a qual a economía pastoril nómade precedeu
necessariamente a agricultura foi refutada pela arqueología e pelas
análises da ecología e da genética das diferentes espécies domesti­
cadas. Distinguem-se, atualmente, tres etapas 2 da domesticacáo dos
animáis. Urna fase pré-agrícolá caracterizada pela domesticacáo do
cachorro (mesolítico), da rena, da cabra e do carneiro (estes animáis
representara papel importante nos primeiros estabelecimentos agrí­
colas 9000 a.C.). Urna fase agrícola (entre 6000 e 4000 a.C.) durante ¡
a qual sáo domesticados os “ladróes de colheitas”, a vaca, o búfalo, o
2 . F. Zeuner, The History of Domesticated Animáis, Hutchinson, 1963,
págs. 59, 63.

105
sistemas unilineares. Ao lado deles, a etnología moderna revelou a
existencia e a freqüéncia de sistemas Mineares, e nao lineares (cog-
náticos) 14. Se os sistemas bilineares podem ser interpretados como
formas de transicáo i5 entre sistemas unilineares, a descoberta"dos
sistemas cognáticos modificou profundamente a discussáo sobre a
evolucac das relacoes de parentesco ñas sociedades primitivas 16. Nos
sistemas cognáticos, todos os descendentes de um ancestral comum
pertencem a um mesmo grupo, sem levar em conta seus sexos. Esse
grupo nao tem a estrutura de cía, grupo unilinear, mas o de. “rama-
gem”, velho termo medieval retomado por Firth e outros. Os carac­
teres dominantes desses sistemas sao sua extrema flexibilidade, a am-
plitude do campo aberto as iniciativas individuáis no que concerne á
manipulacao das fontes económicas e das alianzas políticas.
Por singular paradoxo, as pesquisas modernas mostram que o
cía escocés, o “clann” gaulés e a “sippe” germánica, nao eram cías,
mas formas diversas de grupos cognáticos de descendencia 17 e qué os
grupos de descendencia da área Malaio-polinésica baseavam-se, em
sua maioria, neste tipo. Estamos bem longe da tese de Morgan sobre
a “primitividade” do sistema havaiano, e bem mais longe da concep­
túo de que a estrutura social havaiana era a de um reino centralizado,
onde já existiam divisóes de dasse 18.
Diante dessa nova diversidade e complexidade dos sistemas de
parentesco, a tarefa de reconstruir-lhes a evolugáo torna-se muito
mais difícil. Ñas sociedades de cagadores-coletores existem formas já
patrilineares, bilaterais e mesmo matrilineares. Os sistemas australia­
nos que Engels colocou muito próximo das formas mais primitivas de
parentesco e que deveriam ter sido matrilineares sao, em sua totali-
dade, patrilineares. No entanto, encontram-se igualmente sistemas
matrilineares e matrilocais (os Dieri), matrilineares de patrilocais

14. Um dos exemplos mais conhecidos do sistema bilateral é o dos Yako,


da Nigeria, onde a térra, é herdada através dos patricias (kepun), enquanto
todos os bens movéis, dinheiro, gado, pertencem aos matri-clas (yeponama).
Os Yako viviam a maiOr parte do tempo em urna só cidade Umor, e foram
estudados por D. Forde, Yako Studies, Oxford University Press, 1964. Um dos
exemplos mais conhecidos do sistema cognático é o dos habitantes das ilhas
Gilbert, estudados por W. Goodenough, em Property Kin and Communitry on
Truk, Yale University, N ew Haven, 1951.
15. R. Fox, Kinship and Marriage,, op. cit., pág. 132.
16. Cf. J. Bames, “African Models in the New Guinea Highland”, in Man,
1962, págs. 5-9. ...i..
17. Bertha Surtrees Phillpots, K indreá and Clan in the M iddle Ages and
After, Cambridge University Press, 1913 e R Fox, “Prolegomena to the Study
of Bristish Kinship”, in Penguin Survey of the Social Science, 1965.
18. Cf. M. Sahlins, Social Stratification in Polynesia, 1958, Seattle, págs.
13-22.

110
(Aluridja) ao lado dos sistemas patrilineares e patrilocais (Mara) e
patrilineares e matrilocais (Karadjeri) 19.
Um dos esquemas de evolucao mais verdadeiros desenvolvidos
boje em dia tende a fazer suceder no curso da Historia as formas bila-
tefais, matrilineares e patrilineares da filiacao. O estado íatorial das
577 sociedades da amostra mundial estabelecida por Murdock de­
monstra que, no mundo inteiro, a descendencia teria deslizado de
formas matrilineares a formas patrilineares, com o surgimento de
formas complexas de economía e de governo, Estrutaras sociais aínda
mais complexas teriam feito desaparecer formas unilineares de des­
cendencia em detrimento de formas bilaterais que, em seu conjunto,
caracterizavam igualmente o estágio bem mais antigo das economías
de caca e coleta20. A hipótese de Morgan seria parcialmente válida,
mas por r ázoes bem diversas daquelas que ele mencionava. Entretan­
to, como já vimos, a correlacáo entre estrutaras políticas complexas
e sistema de parentesco nao pode ser mecánica, pois em toda socie-
dade primitiva, qualquer que seja o sistema de parentesco, a autori-
dade política pertence aos homens. Nao se deve, necessariamente,
esperar encontrar relacoes de parentesco matrilinear em formas menos
desenvolvidas de sociedades complexas, como por exemplo, ñas tribos
sem Estado. Pode-se citar os Ashanti matrilineares de Gana, que
estavam organizados com um reino 21.
Um dos casos mais bem estudados de evolupáo de estrutaras de
parentesco é o dos indios Shoshone, organizados em bandos patrilo­
cais, que garantiam a subsistencia na capa e coleta nos mais altos
planaítos desérticos de Utha e Nevada. Mais. tarde, urna parte deles
amplióu seu territorio em direcáo ao sul, ocupando assim urna zona
favorável á agricultura em pequeña escala. Nova divisáo de trabalho
foi estabelecida: as mulheres dedicaram-se á agricultura e os homens
á capá e á guerra, Os bandos tornaram-se matrilocais e organizaram-
se em torno de um grupo de mulheres (a avó, a filha e os netos) que
cultivavam parcelas de milho. Mais tarde aínda, esses Shoshone fo­
rana levados mais para o sul, talvez pelos Apaches, e concentraram-se
nos vales do Arizona em grandes aglomerados, e transformaram-se
nos indios Hopi. A residencia matrilocal subsistiu; a térra e as casas
permaneceram das mulheres. .Urna organizapáo matrilinear apareceu
19. Cf. Levi-Strauss, “Régimes harmoniques, et régimes disharmoniques” ,
cap. 12, Slructures Elémenlaires de la Parenté, op. cit., pág. 274; W. Schapiro,
“Preliminary Report on Fieldwork in North Éastern Arnhem Land”, American
Anthropologist, 1967, págs. 353-355.
20. H. E. Driver e K. F. Schuessler, “ Correlational Analyses of Murdock’s,
1957, Ethnographic Sample”, op. cit., págs. 345-351.
21. Os Nayar de Malabar, célebres por serem algumas vezes matrilineares
e matrilocais, eram casta guerreira da India do Sudoeste. Os Menangkábau
de Sumatra pertenciam igualmente a urna sociedade relativamente complexa.

111
\

de parentesco. Renunciando a seus direitos sobre certas mulheres


(máes, irmás e filhas) os homens de um grupo tomam-nas; disponí-
veis, oferecem-nas, e adquirem direitos sobre mulheres de oútros
grupos. A proibicáo do incesto nao apenas interdita, como ordena.
Instaura e funda, direta ou indiretamente, de forma mediata e ime7
diata, a troca entre grupos. Toda forma de casamento implica urna
forma de proibicáo conjugal, porque o casamento nao . é rclacao
“natural”, mas relagáo social que diz respeito ao grupo enquanto tal
e deve ser compatível com as exigencias da vida coletiva, da sobrevi­
vencia das comunidades. Logo, nao pode haver parentesco puramente
consanguíneo. Toda relagáo de parentesco sup5e a consangüinidade
e a alianca 9. A explicagáo deve ser procurada na vida social e nao
na vida biológica. O principio da selegáo natural nao pode explicar a
origem e o fundamento da distincáo táo freqüente ñas sociedades
primitivas entre primos cruzados e primos paralelos, e da interdicáo
do casamento entre eles, considerados como irmáos e irmás. Nao
explica, tambám, a possibilidade, e mesmo a prescrigáo do casamento
entre eles, aínda que, os primos sejam. biológicamente equivalentes e
estejam a igual distancia entre si. Enfim, é preciso lembrar que ñas
sociedades primitivas a mulher tem importancia decisiva para a so­
brevivencia das comunidades, por suas funcoes reprodutivas e econó­
micas, o que torna necessário que a sociedade controle o acesso as
mulheres. Mas, esse controle é exercido pelos homens. A relagáo entre
os sexos ñas sociedades primitivas é fundamentalmente assimétrica e
nao recíproca. A reciprocidade só existe entre os homens. Nos siste­
mas matrilineares a autoridade recaí sobre o irmáo da mulher e o tio
materno, enquanto que nos sistemas patrilineares, ela recaí sobre o
pai e o marido. Por essa razáo, os dois sistemas nao sao o simples
espelho invertido um do outro. Num sistema patrilinear sao as esposas
dos homens que reproduzem a linhagem; no sistema matrilinear sao
suas irmas. O problema se resume em assegurar o controle completo
da esposa e renunciar ao da irma, ou o inverso 10. Nao existe Estado
matriarcal, mesmo que ñas sociedades matrilineares as mulheres go-
zem de alto “status”, ligado ao fato de o marido nao ter direito sobre
seus filhos. Nao é porque a identidade de pai fosse incerta nos tem­
pos primitivos 11 que os sistemas matrilineares devessem ser, necessá-
riamente, precedidos dos sistemas patrilinéares. É porque a filiagao

9 . Cf. Levi-Strauss, Les Structures élémentaireg d é- Id párente, op. cit.,


págs. 52-53.
10. R. Fox, Kinship and Marriage, op. cit., págs. 120-121, ed. francesa:
Anthropologie de la parenté, Gallímard, 1972.
11. Cf. A Crítica de Morgan, por Rivers, que foi um de seus discípulos,
Social Organization, Nova Iorque, 1924, págs. 85-90.

108
é malrilinear que a ideníidade do pai nao tem am esm a importancia
social que ñas sociedades patrilineares'.
Isso coloca o problema da validáde do método de Morgan para
reconstruir a evolucao das relagoes de parentesco e das formas de
familia. Essa evolugao nao pode ser colocada em dúvida, mas a ima-
gem que fazemos difere profundamente da de Morgan, e conduz,
inicialmente, a um aprofundamento teórico da nátureza dos sistemas
de parentesco. Para que o esquema evolutivo de Morgan fosse vá­
lido, deveria existir correlagao binaría entre terminología de paren­
tesco e estrutura de familia. Com efeito, toda a reconstruyo de
Morgan recai sobre a hipótese de que existiu, para cada tipo de ter­
minología de parentesco, um estado e urna época, e urna forma de
casamento que Ihe correspondía diretamente. Por exemplo, nos sis­
temas havaianos, todo homem chamado “pai” podia casar com toda
mulher chamada “mae”. Para ordenar esses fatos ficticios numa su-
cessao cronológica e lógica, Morgan utiliza a hipótese segundo a qual
a evolucao consistía em multiplicar o número de proibigóes conjugáis
entre consangüíneos. Por conseguíate, todos os sistemas de parentesco
eonhecidos organizaram-se na ordem inversa do número das proibi­
góes conjugáis que itíes era associado.
Toda correlacáo' entre terminología e casamento nao pode ser
verificada 12, e, nos veremos, nao pode porque as relagoes de paren­
tesco ñas sociedades primitivas nao traduzem somente as regras do
casamento, mas as de residencia, propriedade, heranga, ou seja, o
conjunto das relagóes sociais e económicas. O fundamento dos siste­
mas classificatórios de parentesco, queé- a gloria de Morgan, repou-
sou na necessidade existente ñas sociedades primitivas “de aumentar
o tamanho do grupo de ajuda mútua e promover a solidariedade
entre os membros desse grupo, tránsformando-os em paxentes pró­
ximos” 13.
O marxismo nao pode, entáo, tomar por báse os postulados de
evolucionismo do século XIX, mesmo que reconhega o fato funda­
mental da evolucao da natureza e da sociedade. Os ^esquemas de
evolugáo que sao esbogados hoje em dia encdntram dificuldade
suplementar que Morgan nao conhecia. A classificagáo dos sistemas
de parentesco em patrilinear e matrilinear corresponden! apenas á

12. Isso explica que ás corral agües estatísticas estabelecidas por Murdock
entre grupos de presas variáveis duas por duas (parentesco e residencia, pa­
rentesco e economía'etc.), nao permitem demonstrar urna correlagao necessária
entre essas variáveis, ao mesmo tempo qué tal tentativa teórica nao pode provar
a inexistencia de tais correlagoes. Cf. Murdock, Social Structure, op. cit., 1947-
13. Leslie White, The Evolution of Culture, McGraw Hiil, 1959, págs.
133-140.

109
possível e impensável, trocar u b i bem de categoría inferior por um
bem de categoría superior. Por exemplo, com os Siane, todos os bens,
exceto a ierra, erara divididos em tres categorías heterogéneas: os
bens de subsistencia (produtos agrícolas, da colheita, do artesanáto);
os bens de luxo (tabaco, sal, óleo de palma, nozes de Pandanácéa);
e os bens preciosos (conchas, plumagens de avesdo-paraíso, machados
perimoniais, porcos) que circulavam por ocasiao dos casamentas
(relapóes de parentesco), tratados de paz (relapóes políticas com
grupos vizinhos), iniciapoes e cerimónias religiosas. Nao existia troca
generalizada de bens e servipos como em economía mercantil, mas
trocas coinpartimentadas e limitadas.
Nesse sentido, a hierarquia dos bens exprime a hierarquia dos
valores ligados as diversas atividades sociais, e esses valores traduzem
o papel dominante de certas estruturas sociais (relacoes de paren­
tesco, religiao). A categoría dos bens mais raros contéín os bens que
permitem atingir papéis sociais mais valorizados,' pelos quais á com­
petipáo social é mais forte. O número limitado desses papéis domi­
nantes impóe que a competipáo sóbial, no aspecto económico, se
realize através da posse e distribuipao de bens, de difícil acesso. A
partir daí, constata-se a existencia ñas sociedades primitivas de obje­
tos cuja raridade parece “artificial” ; dentes de porco em espiráis
(Nalékula), série de conchas em número voluntariamente limitado
(Rossel Island), placas de cobre (indios Kwakiutl), cujas pepas tém
nome e historia. Nesses casos, tudo se passa como se a sociedade
houvesse “instituido” a raridade escolhendo, para certas trocas, obje­
tos insólitos; em outros, a raridade nasce de objetos preciosos vindos
de muito longe (conchas), e obtidos através de trocas com produtos
locáis.
A competipáo no interior do grupo comepa, freqüentemente,
além da esfera de produpao e de apropriapáo dos bens de subsisten­
cia, e nao engendra k perda da existencia física, mas, do status social
dos individuos. Excluindo da competipáo problemas de acesso aos
meios de produpáo (térra) e aos bens de subsistencia, a cóntunidade
primitiva' garante a sobrevivencia e assegura a continuidade física,
aínda que autorizando a competipáo em torno de bens raros que dáo
acesso. as mulheres e á autoridade assegurando, dessa forma, sua
existencia enquanto sociedade. Ao mesmo tempo, como essa compe­
tipáo realiza-se, sobretudo, pela dádiva ou pelo consumo ostentatório,
a desigualdad? social desenvolve-se em limites relativamente estreitos,
podepdo mesmo, ser questionada. Isso só é verdadeiro ñas sociedades
onde nao se desenvolveu aínda a hierarquia de status hereditários,
reduzindo o campo da competipáo á rivalidade entre linhagens nobres.
A análise teórica do desenvolvimento das desigualdades sociais e da

114
origem das classes leva a descobrir as razóes pelas quais o centro
estratégico da competicao social se deslóca do dominio da repartigáq
dos elementos mais valorizados do produto social para o da reparti-
cao dos fatores de produgao, sem que a competigáo pela repartigao
do produto social cesse de desempenhar papel significativo. Nesse
processo, que leva certas sociedades tribais primitivas a novas for­
mas sociais que comportam urna estrutura de classe embrionária ou
•desenvolvida e na qual Os antigos principios de reciprocidade e de
redistribuigao desaparecen! ou nao representam mais o mesmo papel,
é necessário distinguir todas as etapas possíveis. Por exemplo, urna
minoría social pode adquirir definitivamente situagao social excepcio­
nal (poderes religiosos, poligamia), mesmo se nao controla direta-
mente os fatores de produgao e redistribuí a maior parte dos produ­
tos qué sua situagao de excegao Ihe dá direiio (sociedades
hierarquizadas e estratificadas).
Antes de prosséguir por esse caminho que conduz aos problemas
do modo de produgao asiático, paremos para enfatizar algumas con-
seqüéncias dessas análises e a distancia percorrida desde o sáculo XIX.
1. A conclusáo que parece impor-se é a de que o conceito de
“economía de subsistencia” 27 ou de “auto-subsistencia”, utilizado fre­
qüentemente para caracterizar as economías primitivas, deve ser re-
jeitado, porque mascara o fato de que essas economías nao se limitam
apenas á produgao de bens de subsistencia, mas produzem um “exce­
dente” destinado ao funcionamento das estruturas sociais (parentesco,
religiao etc.). Ele mascara, igualmente, a existencia de numerosas
formas de troca que acompanham esse funcionamento. A exogamia
e a guerra implicam relagoes positivas ou negativas entre comu­
nidades. Acompanhando essas relagoes, estabelece-se urna circulagao
de bens preciosos que poderáo, em contextos diferentes, representar
o papel de moedas primitivas, com circulagao limitada, assumindo
mesmo outras fungóes28. O homem primitivo nao vive apenas “de
pao”, e nao se encontra condenado a consagrar a maior parte do

27. Ver a crítica de Firth do conceito de economía de subsistencia, Pri-


mitive Polynenian Economy, op. cit., pág. 17, e nossá crítica da obra de C.
Meillassoux, “Anthropologie Economique des Gouro de Cote d’Ivoire”, op. cit.,
¡n U H om m e, 1967, págs. 79-91.
28. A inexistencia da moeda universal ñas sociedades primitivas, expli-
ca-se, as vezes, pela ausencia de producáo mercantil desenvolvida,, mas ao
mesmo tempo, pela necessidade de controlar o acesso das mulheres ao poder.
Isso deveria levar a escolher bens “raros” para colocá-los em correspondencia
com um número limitado de mulheres e o papel de autoridade, separar suas
circulacóes da circulacao de outros bens e a colocá-los sob a autoridade dos
individuos representantes dos interesses da comunidade. E esse controle é, as
vezes, atribuigáo de suas fungóes e símbolo de seu status.

115
e multiplicou-se. As linhagens reagruparam-se em cías* cada um pre-
téndendo descender de um ancestral comum, sem poder reconstruir
exatamente as etapas dessa descendencia. Essa evolugáo de urna
sociedade patrilocal de cagadores-coletores para urna sociedade ma-
trilinear de agricultores parece ter sido produzida sobre o efeito com­
binado da passagem á agricultura, da residencia matrilocal e de maior
densidade de populagáo unida a novas facilidades de destacamento (o
cavalo, introduzido pelos espanhóis) 22.
O problema da evolugáo das relacóes de parentesco fica colocado
e só progredirá com novas descobertas arqueológicas e etnológicas,
e progressos teóricos na análise do parentesco ñas sociedades ar­
caicas. Mas, essa análise nao pode ficar separada das relagóes econó­
micas, das formas de autoridade, dos sistemas ideológicos que carac­
terizan! as sociedades primitivas, onde grandes progressos foram
feitos. Mais do que nunca, a diversidade e complexidade das socie­
dades primitivas foram evidenciadas através do inventário das formas
de propriedade e produgáo dessas sociedades. Nessa perspectiva, a
continuidade com importantes obras do século XIX ó bastante
grande.
A interpretacáo simplista e empobrecida da nogáo de “comunis­
mo primitivo”^ onde tudo é de todos, nao era a de Marx ou de Kova-
levsky. Desde 1858, Marx insistia na existencia de múltiplas formas
de propriedade comum, quer dizer, múltiplas formas que podem es-
tabelecer a relagáo entre direitos de propriedade de urna comunidade
e direito de posse e de uso dos individuos. Sugeria, igualmente, que,
onde existe urna forma de propriedade comunitária nao existem, for-
gosa e nem mesmo freqüentemente, formas de trabalbo comum. Isso
poderia ter existido em níveis muito arcaicos (cooperacao de certos
cagadores-agricultores primitivos), em condigóes ecológicas particula­
res (lugares semi-áridos) em condigóes político-religiosas (trabalhos
para o Estado, os deuses) ou históricas (sujeigao de populagóes ven­
cidas por seus vencedores). Os direitos de propriedade ñas sociedades
primitivas formam, na expressáo de Malinowski2324, “sistemas compos-
tos” de regras diferentes que dizém respeito á térra, ao gado, aos ins­
trumentos dé produgao, as árvores plantadas, aos cónhecimentos ri-
tuais. É assim que os Siane, da Nova-Guiné, distinguem dois tipos de
apropriagño 2i. Um concerne á apropriagao da térra, flautas sagradas,

22. J. Steward, The T heory o f Culture Changa,: Urbana, 1955.


23. Malinowsky, M oeurs e t Coutumes des Mélanésiens, 1923, pág. 20. Ma-
linowsky criticava Rivers, discípulo de Morgan, que falava no Psychology and
Politics do “comportamento socialista, até comunista de sociedades tais quais
as da Melanesia”, ,
24. Salisbury, From Stone to Steel, Melbourne, 1962.

112
conhecimentos rituais, bens tutelados e mtrañsféríveis em relacáo aos
quais o individuo está ligado como o pai (merafo) a seus filhos ver-
dadeiros. O outro concerne aos instrumentos de produgáo e aos
pródutos: machado, águlhas, árvores plantadas, porcos, vestimentas,
colheitas. Esses bens sao apropriados individualmente e podera ser
transferidos. O individuo, na opiniáo dos indígenas, tem direitos sobre
esses objetos porque estes sao como suas sombras (amfonka). Entre
esses dois tipos de regras existe urna rclacáo de ordem: se se tem
com o solo urna relagáo merafo, entáo apenas o trabalhó realizado no
plantio de árvores nesse solo dá direito á sua apropriagáo pessoal
(amfonka). A existencia dessa relagáo de ordem entré estes dois tipos
de direitos mostra que o fundamento do sistema dos direitos é a de­
pendencia ao clá, e que o controle do cía sobre outros grupos de­
pendentes (linhagens) e sobre o individuo é principio dirigente do
sistema. O conjunto do sistema protege ao mesmo tempo os interesses
do individuo e os do grupo, e se esforga para limitar as contradigoes
que poderiam surgir no controle dos recursos essenciais, colocando á
prioridade do grupo sobre o individuo25.
As anáhses do funciónamento das sociedades hierarquizadas e
das formas primitivas de Estado confirmam, igualmente, a existencia
de múltiplas vias pelas quais as aristocracias tribais desapossam pro-
gressivamente as linhagens e. comunidades locáis de parte de seus
direitos sobre o solo e os recursos raros 26.
No entanto, a representagáo do funcionamento da economía das
sociedades primitivas modificou-se profundamente em reiágao 'ao
sáculo XIX. A imagem dos primitivos, obrigados pelo fraco nivel de
suas forgas produtívas a se dedicarem quase inteiramente as ativida-
des de subsistencia • e vivendo quase autarquicámente, está ultra-
passadá.
De fato, existe ñas sociedades primitivas' como ñas sociedades
complexas dois setoreá de atividade económica aos quais corresponde
urna divisáo geral dos bens em duas categorías distintas e hierarqui­
zadas: os bens de subsistencia e os bens de prestigio, de acordo com
a terminología de Cora DuBois 26a. No interior de cada categoría,
um bem pode ser fácilmente trocado por outro, mas é difícil, até im-

25. M. Godelier, “Economie Politique et Anthropologie. Economiqüe”,


L ’llóram e, 1964, págs. 118-132. .1 .
26. Cf. Gluckmann, Essay on L o zi Latid and R oy al Property, Rhodes
Livingstone Institute, 1943, ensaio I, págs. 11-27, ensaio 2, págs, 70-81; J. Múrra,
“Social Structures and Economie. Thomes in Andean Ethnohistory”, Anthro-
pological Quaterly, abril, 1956, págs. 47-59.
26-a. Cora DuBois, “The wealth concept as an Integrative Factor in
Tolowa-T tutni Culture”, in Anthropology (en saios),1organizado por A i L,
Kroeber Bcrkley, 1936, págs. 49-66. : -• '

113
volvimiento dá vida social; e resulta em que os interesses da comu-
nidade identifiquem-se real e ideológicamente cqm os de certos in­
dividuos. A desigualdade nesse estágio pode aparecer como condigno
normal do desenvolvimiento social, e mesmo como norma desse
desenvolvimento.
Em-esséncia, essa observacao corresponde á tese fundamental
de Marx ñas Formen e de Engels no Anti-Dühring, de acordo com
a qual “é sempre o éxercício de fungoes sociais que está na base de
urna supremacía política’,’. Isso nos recónduz ao problema do de-,
senvolvimenío da desigualdade ñas sociedades primitivas, do surgi­
miento de classes sociais e do Estado.
Essa convergencia de Marx e da antropología moderna vem
demonstrar, diretamenté, a atualidade do essencial das análises de
Marx que fundamenta suas teses sobre a origem do Estado e sobre
o “modo de produgao asiático”. ■ .
Mas, o caminho até o Estado é aínda longo. As características
que acabamos de descrever nao conduzem a ele nem direta, nem
necessariaménte. As form as. de autoridade provisoria, largamente
construidas na superioridade individual, sao substituidas por outra
etapa marcada por formas hereditarias de autoridade baseadas na
superioridade “do nascimento” permanente de urna minoría.
Por que e como se efetiva essa substituicao? Nao conhecemos a
resposta completa e muito menos definitiva, a esse problema, que
Engels tinha deixado de lado declarando que “a hereditariedade das
funcoes provém de si mesma, num mundo onde tudo acontece es­
pontáneamente” 3S.
Nos nos limitaremos a algumas sugestoes. As sociedades carac­
terizadas pela hereditariedade de funcoes e de status nao sao todas
talhadas segundo o mesmo modelo. Morton Fried 36 distingue dois
grandes grupos: “As sociedades hierarquizadas” e “as sociedades
estratificadas”, tomando por base a presenca ou ausencia de controle
político real dos homens e de controle mais ou menos desenvolvido
dos meios de producao. Todas as graduagoes no longo dessa escala
sao possíveis. Escolheremos, para ilustrar, tres sociedades do Pacífico:
urna melanesiana, Trobriand; as duas outras polinesianas, Tikopia e
Havaí. A descrigao de Malinowski da sociedade trobiandesa é obra-
prima da antropología moderna, se bem que algumas interpretagóes

35. Engels, Anti-Dühring, pág. 212.


36. M. Fried, The Evolution of Political Society, op. cit., págs. 182-191,
obra sugestiva que faz lamentar que o autor só tenha conhecido e discutido
as teses de Marx sobre o “modo de producao asiático”, através da caricatura
que oferece Wittfogel. ■

118
do autor sejam hoje contestadas. Um dos pontos maís debatidos 37 é
o da natureza dos poderes exercidos pelo chefe de Omarakana,
pequeña aldeia que dominava o distrito de Kiriwina, o mais rico da
ilha. Malinowski faz desse personagem, “o chefe supremo” de Tro-
briand sugerindo, assim,. a existencia de urna forma de govemo
central.
Os materiais de Malinowski parecem impor outra Lnterpretacao.
Á unidade ¡política básica da sociedade é a aldeia. Mesmo os chefes
mais poderosos exercem autoridade principalmente na aldeia e,
secundariamente, no distrito. A comunidade. aldea, como um todo,
explora as térras, faz a guerra, as cerimónias religiosas e empreendé
expedigóes comerciáis. Sua autonomía política e económica é signi­
ficativa. É dirigida pelo mais velho do súbela dominante. O chefe da
aldeia pode nao ser homem de posigáo diferenciada. Quando combina
essas chías características torna-se bem mais forte. Exerce, aínda,
certa autoridade no distrito, que se constituí de um grupo de aldeias
que se reuniráo para a guerra e para grandes cerimónias religiosas.
Todos os homens de posicao diferenciada sé distribuem numa hie-
rarquia guja extremidade superior é o chefe de Omarakana. Este é o
responsável pelas magias mais poderosas, dirigidas á chuva e ao sol.
Os homens de posigáo trazem consigo ornamentos distintos, mas se
diferencian! das pessoas comuns, sobretudo pela existencia de tabus
especiáis que se multiplicam á medida que se sobe mais na hierarquia.
As pessoas de alta posicao e os chefes nao possuem nenhuma
autoridade judiciária ou executiva sobre as pessoas de posicao inferior
de outras aldeias. Quando um chefe solicita os servidos dos mem-
bros de sua aldeia ou distrito ou de estrangeiros deve compensá-los.
Os recursos necessários lhes sao fornecidos pela poligamia, que é pri-
vilégio dos chefes, e pela dádiva (urigubu) que todo cunhado deve ao
marido da irma. Um chefe com posigáo diferenciada se casa com
irmá de cada um dos chefes de aldeia de seu distrito, que passam a
dever ao cunhado parte importante das colheitas e de objetos de
valor. Apresenta-se, assim, como o cunhado “glorificado” por toda
a comunidade. Essa riqueza excepcional serve para promover grandes
cerimónias e, em geral, integrar certo número de aldeias numa “eco­
nomía de distrito”. O chefe e, entáo, o instrumento de urna economía
mais ampia que a da aldeia e, “a fortiori”, das unidades domésticas
de produgao.
O chefe nao dispóe de nenhuma forga pública para regular os
conflitos que permanecerá no ámbito das linhagens. O chefe dispóe
37.. Max Gluckmari declara assim que “o paramount chief” de Malí-
nowsky está bem próximo de tomar-se o “Piltdown Man” da antropología.
Prefácio da obra de Uberhoí pág. VI. O “Piltdown Man’’ é um fóssil cuja;
identificajao foi objeto de grandes debates entre os paleontólogos do séc. XIX.

119
tempo a lutar com a natureza para scbreviver 29. Recentes estados
quantiíativos30 sobre o tempo de írabaiho em sociedades de cacado-
res e coletores demonstrara que a parte dos lazeres era bem maior do
que ñas sociedades agrícolas. £ necessário marcar que, depois dos
progressos da agricultura e, mais recentemente, das sociedades indus­
triáis, as sociedades de capadores refluíram para zonas margináis inós-
pitas que nao corresponden! as condipóes de vida do capador paleo­
lítico. A revolupáo neolítica aumentou o tempo de trabalho
socialmente necessário; e esse fato questiona a visáo comum dos
evolucionistas 31, de acordo com os qüais o grande avanpo tecnológico
do neolítico, aumentando a quantidade de lazeres disponíveis, tinha
permitido um avanpo cultural geral. Esse avanpo existe da mesma
forma que o grande salto neolítico, mas a relapáo entre ambos exige
óutro tipo de explicapao.
2. A existencia de um “excedente” nao conduz automática­
mente a um desenvolvimiento do nivel das forpas produtivas. Pelo fato
de os bens de subsistencia, ñas sociedades primitivas, entrarem fre-
qiientemente de modo indireto na competipáo social, sua produpáo
nao tem necessidade de ultrapassar as necessidades socialmente obri-
gatórias. O funcionamento de umá sociedade primitiva raramente
exige o uso máximum dos fatores de produpáo, o que limita o desen­
volvimiento das forcas produtivas (embora a produpáo de bens pre­
ciosos e a produpáo artística póssam conhecer desenvolvimiento con-
siderável). Freqiientemente, um progresso das forpas produtivas se
traduz pela ampliacáo das atividades náo económicas improdutivas.
Entre os Siane da Nova-Guiné, a substituipáo do machado de pedra
pelo machado de acó diminuiu em 40% a parte do trabalho realizado
pelos homens nás atividades de subsistencia. O tempo “ganho” foi,
inicialmente, dedicado á multiplicar atividades tradicionalmente mais
valorizadas: guerra, cerimónias, viagens32. Náo se tratava de altera-
29. Cf. K. Bücher, D ie Endstehung der VoUcwirtschaft, 1893, cap. 1.
30. McCarthy e McArthur, The Food Quest and the Time Factor in A bo­
riginal Economic Life, 1960.
31. Leslie White, The Evolulion óf Culture, op. cit., 1949, pág. 372. De
rrtaneira jocosa e provocante, M. Sahlins vé ñas sociedades de caladores e
predadores os verdadeiros representantes do “Affluent Society” . Ver “la Pre­
ndere Société d ’Abondance”, Les Temps Modernes, n.° 268, outubro, 1968,
págs. 641-680.
32. O exemplo mostra, como sublinhou Engels, que as sociedades primi­
tivas exercem. controle mais consciente de sua vida social do que as sociedades
onde se desenvolverán! a propriedade privada e a prodücáo mercantil; Entre­
tanto, a imagem é perigosa, pois ela sugere que a. sociedade é um sujéito e
que seu desenvolvimiento obedece somente a sua yontade. D e fato, as normas
de comportamento coletivo ou individual que urna sociedade reeonhece tra-
duzem a natureza das relacóes sociais que a caracterizam e o papel dominante
que ai podem representan! algumas délas (parentesco, religiáo etc.).

116
gáo na estrutura social tradicional, embora representasse um deslo-
camento em relagao á tradicáo, mudando as relacoes entre os grupos
e conduzindo a outras mudangas.
Se a Antropología moderna confirmou a tese de que a relagáo
entre o desenvolvimento das torgas produtivas e o desenvolvimento
das desigualdades sociais náo era mecánico, demonstrou amplamente
que a competigáo social, tanto ñas sociedades primitivas, quanto ñas
sociedades de classe, forneceu a maior incitagáó á produgáo do exce­
dente e, a longo prazo, levou indiretamente a um progresso das
torgas produtivas. Ñas sociedades segmentárias melanesianas, o indi­
viduo deve construir sozinho sua autoridade pessoal. Para isso, tem
de acumular um “fundo de poder” (Malinpwski); isto é, amontoar
porcos, “moedas de conchas”, alimentagáo, e criar urna rede de
dependentes, urna “facgáo”, distribuindo-os ao redor de si com gene-
rosidade calculada. Para demonstrar sua torga deve “oferecer pro-
tegáo” através de grande número de atividades que ultrapassem o
quadro estreito de cada comunidade local e da economía doméstica.
Na escala da sociedade, ele aparece como meio indispensável para
criar formas de orgamzagáo supralocais. Ao mesmo tempo, seu
renome torna-se o renome da comunidade numa relagáo de identifi-
cagáo mutua. Mas, para se manter “no poder”, o “big-man” deve
manter constantemente pressáo sobre os membros de sua facgáo,
pedir-lhes muito e retardar cada vez mais o momento da redistribui-
gáo. No limite, sua autoridade, inaugurada na reciprocidade, acaba
na exagáo. Minado do interior e contestado do exterior, seu poder se
esvai, conduzindo á queda do “grande homem” em favor de um
rival33.
Emprestado de Marshall Sahlins, este esbogo do mecanismo de
formagáo da desigualdade social e do poder em sociedades relativa­
mente igualitárias, sob a forma de tribos 34*segmentárias, coloca em
evidencia um fato importante. A desigualdade só se constrói na
prática e se justifica ideológicamente por servigos prestados á comú-
nidade. Sempre supóe e desenvolve urna forma de desequilibrio
económico entre individuos e grupos, desequilibrio que se transforma
em relagáo social vantajosa para a comunidade e para o individuo
que ai pretende representar papel “central”. A desigualdade econó­
mica e social representa, até certo ponto, vantagem para o desen-

33, M. Sahlins, “Poor Man, Rich Man, Big-Man, Chief: political typés
in Melanesia and Polynesia”, op. cit..
34. O conceito de “tribo” hoje em dia, é submetido a urna forte crítica
á medida que ele parece difípil de ai ver urna realidade “substancial”, unifi­
cada pelos costumes, língua e t c .... Cf. Leach, Les Systémes P olitiqu es.. . , op.
cit., 321-322, e a bibliografía do cap. m da 1.a parte.

117
mais ampio que o cía. Tem o direito de assistir, materialmente, os
membros do clá, mas nao pode determinar nenhuma san gao material
contra aqueles que recusarem essá assisténcia. £ o árbitro dos debates
e, em certos casos, recorre á torga com a ajuda de membros de sua
linhagem contra os que cometem delitos graves, assassínios etc.
. A desigualdade de que goza o chefe é dupla. “Na esfera espiri­
tual e social, as desigualdades sao de natureza e (apresentam caráter)
irredutível ( . . . ) no dominio económico sao, sobretodo, de grau.”
No interior da unidade doméstica, o chefe e sua familia participam
diretamente na produgáo. Ao nivel das atividades comunitarias, o
chefe representa papel dirigente, mas as tarefas mais pesadas Ihe sao
poupadas. Nao tem obrigagáo de colher, pois suas colheitas sao
trazidas pelos membros do clá. Nao pode cozinhar seus alimentos.
Em sua totalidade, as relagóes económicas sao relagóes pessoais en­
tre os individuos. A motivagáo do lucro existe, mas é subordinada ao
papel social da acumulagáo e do uso das riquezas. As transagóes
económicas, como todas as relagóes sociais, obedecem a um “código
de reciprocidade” .
Do mesmo modo que em Trobriand, nao há governo central,
embora a hierarquia dos chefes seja mais fechada e, em matéria de
ritos, um chefe supremo esteja sempre á frente.. De maneira mais
acentuada que em Trobriand, a estrutura tem a forma de pirámide
cuja base se compóe de pessoas comuns/únde muitas descendem dos
chefes, mas nao tém esse status (afastamento genealógico em relagáo
ao mais velho), ou o perderam. A diferenga essencial consiste no
surgimento de controle direto dos instrumentos de produgáo e de
papel dirigente ñas atividades produtivas em escala comunitária. Ao
lado do controle da repartigáo, dos produtos, o chefe, no entanto,
náo é afastado das tarefas produtivas materiais, mesmo quándo garan­
te sua diregáo. ,
No H av aí42, ao contrario, os chefes náo trabalham mais. A
hierarquia social comporta tres níveis: as familias de chefes, encabe-
gadas pelo chefe supremo da ilha; a camada dos administradores, em
geral párenles afastados do chefe ou dos homens de alta posigáo
de sua localidade; pessoas comuns que formam a mássa da populagáo
e sáo, miáis freqiientemente, párenles longínqüos dos chefes e de seus
seguidores. Um número considerável de tabus rodeiam a pessoa do
chefe supremo. O homem comum náo pode tocar em ñenhum objeto
utilizado p.elo chefe, nem sua sombra podé atingir a casa e as vestes
deste último. Adornos especiáis e, talvez, linguagem especial o dis-

42. Utilizamos a síntese de M. Sahlins, Social Stratification in Polynesian,


op. cit., págs. 13-22.

122
tingam de outros homens. Os casamentas com pessoas comuns' sao
escrupulosamente evitados. O chefe descende diretamente da divinda-
de e tem fungóes rituais particulares, incitando a consagragáo dos
templos. Cerimónias oficiáis celebram o nascimento, o casamento e
a morte dos membros da nobreza. O chefe supremo controla o uso
do solo, do mar e das águas destinadas á irrigagáo. O produtor direto
guarda o uso de sua parcela. Pode perder esse direito, se recusar
contribuir nos trabalhos coletivos, ou gerir sua parcela de modo
improdutivo. As redistribuigóes sao, de fato, redistribuigáo do con­
trole dos grupos locáis entre os seguidores de um chefe no momento
de sua ascensao ao poder, ou após urna guerra. Estes seguidores
constitaem urna gspécie de “burocracia primitiva” que supervisiona
a produgáo das unidades domésticas colocadas Sob seu controle.
Os recursos necessários para os grandes empreendimentos co-
munitários, trabalhos e cerimónias sao retirados antegipadamente da
massa da populagáo para as maos dos chefes de alta posigáo, que
os redistribuem. O emprego de tabus, quañto ao uso de recursos na-
turais, permite sua conservagáo e acumulagáo. O chefe supremo
dispóe de forga coercitiva para punir os que infringem seus direitos,
e a punigáo varia de acordo com o status do culpado. A vontade do
chefe é, definitivamente, a lei suprema. O assassinato, as revoltas,
as emigragóes limitam a tiranía do poder e de seus servidores e
fazem alternar os períodos de descentralizagáo e de centralizagáo na
historia política do Havaí. Estrutura análoga existe em Tonga, Samoa
e Taiti, onde a irrigagao tem pouca importancia. Apesar de numero­
sos elementos comuns, a diferenga é considerável em relagáo a Tro­
briand e Tikopiá. O solo e os fatores de produgáo náo sáo mais pro-
priedade integral dos produtores diretos. Estes devem produzir um
excedente a ser utilizado, parcialmente, em empreendimentos de
interesse coletivo que ultrapassam inteiramente as possibilidades de
comunidades locáis. O excedente mobilizadó em certas ocasioes cé-
rimoniais, possui proporgóes consideráveis. Enumeram-se cifras de
40.000 porcos e de 20.000 cabagas de taro *. A aristocracia en­
contrare, doravante, inteiramente desligada da produgáo material.
Urna divisáo em classes é constituida com base na apropriagáo do
sobretrabalho das comunidades locáis e de controle desigual dos
fatores de produgáo. Existe um governo central; possui urna das
características essenciais do Estado: o direito de antecipar o sobre­
trabalho das pessoas comuns. Esse Estado, entretanto, permanece
embrionário ha medida em que verdadeira forga pública ainda náo
existe, e a organizagáo territorial da populagáo é pouco desenvolvida.
Em si mesma, essa divisáo social náo é contestada pela populagáo.
* Raíz rica em amido (N . do T.)..

123
de urna só arma, a brüxaíia, e tem os m elhores feiticeiros á sua
disposígao. A s'ociedade trobriandesa nao possui govemo central.
Qual seria, entao, o sentido da hietarquia existente que representa o
elo dé ligacíío de todas unidades políticas e territoriais da ilha repre­
sentadas peías linhagens locáis? ,
Ubero'i sügeré que a posigao de linhagem local pode ser consi­
derada como o resultado da combinagao de tres elementos: a) van-
tagem económica expressa por urna aldeia de térras férteis oü parti­
cularmente bém situada para pesca; b) grau de acordo com o qual a
aldeia desempenha o papel de centro integrador das autoridades
económicas de seus vizinhós; c) posigao na rede de aliangas além-mar
é papel no famoso ciclo de troca entre as ilhas, o “kula”. .Ubero'i
concluin: .
“Pensó que a combinagao desses tres fatores determina o esta-
' tuto relativo das diferentes aldeias e das- linhagens locáis que as
dominam. Quando dois trobriandeses se encontram e nao sao unidos
nem pelo parentesco nem pelo casamento, e que um se ajoelha na
frente do outro, esse comportamento deve ser compreendido como o
reconhecimento simbólico da posigao relativa de suas respectivas
aldeias. Assim, Omarakana é o centro do distrito mais fértil da ilha
que participa ativamente das expedigóes marítimas do Kula e controla
a redé mais vasta das aliangas matrimoniáis e as cerimónias mais
importantes; enquanto as pessoas do distrito de Bwoytalu tém térras
ruins, nao tém embarcagóes de alto mar e tém trocas fortemente
endógamas:is”.
Com a sociedade de Trobriand temos o exemplo de urna hie-
ratquia hereditária que reúne diversas linhagens e comunidades al­
deas locáis sem funcionar como estruturá política única integrativa,
O poder dos chefes é.o suporte das relagóes económicas e religiosas
que ultrapassam o quadro das comunidades aldeas particulares sem
contudo integrá-las em cadeia económica e cerimonial única, envol-
vendo toda a ilha. Os chefes possuem os poderes mágicos mais pode­
rosos devendo colocá-los a servigo de suás comunidades. Nesse
sentido, seus priviíégios sao o inverso de seus deyeres' e recompensa
por servigos excepcionais que prestam as comunidades em todos os
níveis, imaginários e reais. Trobriand é, também, o exemplo mais
célebre da importancia e.d a forma que podem tomar as trocas ñas
sociedades primitivas segmentárias. Além da troca dos colares e
braceletes, as grandes expedigóes marítimas possibilitavam a obtengao
de matérias-primas indispensáveis, como pedra para machados, jun­

38; J. P. Singh Uberoí, Politics of the Kula Ring, and analyses of Fin-
dings of Bronislaw M alinowsky, University Press, Manchester, 1962, pág. 43.

120
co, argila etc. A rede de troca do Kula constituía vasta associagao
política, reunindo sociedades segmentárias que deviam assegurar a
manuten cao regular de um comércio vital, sem o auxilio de um
goverño central que garantisse a paz entre os diferentes grupos envol­
vidos no sistema de trocas.
Se, em relacao ao “big-man”, o chefe trobriandés dispóe, pelo
nascimento, de direitos excepcionais sobre o produto do trabalho e
das trocas dos membros da comunidade, nao tem ainda nenhum
controle particular sobre os fatores de produgáo que ficam como
propriedade das linhagens locáis. Essa característica é superada em
Tikopia.
Após ter publicado, em 1936, urna análise da estrutura social
de Tikopia, principalmente das relagóes de parentesco 39, R. Firth,
em 1939, publicou Primitive Polynesian Economy, onde afirma:-
“Analisei a estrutura económica da sociedade porque as relagóes
sociais se tornavam mais mánifestas quando se analisava seu conteúdo
económico. Além do mais, a estrutura social, em especial a estrutura
política, dependía claramente das relacóes económicas, particular­
mente do sistema de controle dos recursos. De modo semelhante, as
atividades e instituigóes religiosas da sociedade estavam ligadas áque-
las relacóes” 40.
A economía de Tikopia, como a de Trobriand, nao é economía
de subsistencia 41, mas economía cuja produeño e troca de bens “pre­
ciosos” representa papel considerável. O chefe ocupa lugar dominante
, na economía. Tem direito de controle último sobre as térras, as
grandes canoas e os bens mais preciosos de seu cía. É o “possuidor
titular”, e esse privilégio é fundado no fato de ter o controle supremo
da fertilidade da térra e do océano, e ser o intermediário privilegiado
entre o clñ, os ancestrais e os deuses. No processo de produgáo toma
a iniciativa das atividades agrícolas e de pesca e assegura a diregao
das atividades cooperativas, pescas comunitárias, preparagáo do sagú
etc. Controla a utilizagao correta da maior parte dos recursos naturais
essenciais. Assegura sua conservagáo, impondo tabus, que impedem
o consumo imediato e propiciam acumulagáo para o futuro, para a
realizacáo de festas etc. Engaja especialistas e os retribuí pela cons-
trugáo de grandes canoas marítimas e grandes redes de pesca. Recebe
e redistribuí grande quantidade de bens. e estimula sua acumulagáo,
organizando grandes cerimónias, que integram a sociedade em nivel
39. W e the Tikopia, Alien and Unwin,' 1936.
40. Prefacio da 2.a ed., 1965, pág. XI; as atividades e instituigoes religio­
sas foram analisadas em 1940 no The Work of the G ods in Tikopia, Athlone
Press, 1967.
41. Prim itive Polynesian Economy, op. cit., pág. 17.

121
capaz de organizar trocas marítimas entre ilhas distantes de 100 a
150 milhas; a economia dos grandes reinados polinesianos, para nao
falar dos antigos impérios do Ghana, do Mali, do México, é fazer
desaparecer as diferencas essenciais sob única denominacao. A pro­
priedade comum do solo, assim como a propriedade privada — e
Marx insistía nesse fato — pode tomar formas as mais diversas. Nao
se dará crédito a um historiador que ignore todas as diferengas entre
as formas greco-romanas ou capitalistas de propriedade privada e
confunda sociedades de classes distintas sob a rubrica geral de “so-
ciedade onde reina a propriedade privada”.
Além disso, nossos exemplos permitem indicar e formular em
termos “operatorios” certos problemas que a Antropología e a His­
toria devem aprofundar para que o passado da humanidade deixe de
ser um mistério. Citemos alguns:
1. ° — Como aparece a hereditariedade das funcóes e
status em certas sociedades primitivas? É bom lembrar que, desde
suas formas mais simples, a sociedade primitiva já comporta, com
base da divisáo sexual do trabalho, status diferentes para homens e
mulheres, aos quais se acrescenta a diferencia entre mais velhos e mais
jovens.
2. ° — Em algumas condigóes desenvolve-se urna economia
redistribuigáo que transforma e substituí, parcialménte, os mecanis­
mos de reciprocidade que asseguravam, tradicionalmente, as trocas
de bens e de servicos nos grupos ou entre eles 50.
3. ° — Como se constróem fora das relagóes de parentesco
lagoes sociais de tipos novos. Citemos, por exemplo, as classes de
idade, as associacries voluntárias, religiosas, políticas, económicas.
Essas novas relagóes podem combinar-se harmónicamente51 com as
organizacóes de parentesco ou se oporem a elas, Podem, igualmente,'
existir em sociedades com Estado.
4. ° — Como surge desigualdade no controle dos fatores de
producáo adicionada á desigualdade da redistribuigáo do produto
social? \ •
Esses problemas já receberam múltiplas respostas parciais que
nao vamos analisar aqui. Frisamos, entretanto, que elas confirmam
freqüentemente a tese central de Marx, ou seja, que a desigualdade4
social protege os interesses coletivos das. comunidades primitivas, e é
50. Cf. K. Polany, Trade and Market in Early Empires, Aldine, 1957,
cap. XI págs. 218-237.
51. Por exemplo, os Arusha da Tánganica. Cf. P. H. Gulliver, Social
Control in African Society., 1963.

126
fátor essencial de seu' progresso. Todos os nossos exemplos conduzem
á retomada de certas teses fundamentáis de Marx e, particularmente,
as do “modo de produgáo asiático”. Até que ponto esse conceito
pode ser recuperado do passado e “retomado” pela ciencia moderna?
A fórmula é ambigua, pois há muito tempo o" conceito vem sendo
empregado de maneira caricatural e empobrecida por numerosos
autores nao marxistas 52 que o retiraram das obras de K. Wittfogel.
Para este autor, o modo de produgáo asiático nasce ñas sociedades
“hidráulicas”. Quando existe ñas sociedades nao hidráulicas deve ter
sido emprestado de, ou imposto, por urna sociedade hidráulica. A
tese de Marx e de Engels é totalmente outra. Os grandes trabalhos
produtivos, hidráulicos ou outros, e improdutivos representam apenas
urna das. bases possíveis do aparecimento de um poder de Estado
que domina as comunidades primitivas, e mais freqüentemente su-
cedem este aparecimento, mas nao o precedem. As fungóes religiosas
sao, de maneira geral, “a necessidade de salvaguardar os interesses
comuns e combater os interesses antagónicos”.
“O Estado, que congregava grupos primitivos de comunidades
pertencentes a urna mesma tribo com o único objetivo de salvaguar­
dar seus interesses comuns e para se proteger de seus inimigos exte­
riores, adquire a partir dar a fungáo de manter, pela forga, as condi­
góes de existencia e de dominio da classe dirigente contra a classe
submetida53”.
A esséncia do “modo de produgáo asiático” é a existencia
combinada de comunidades primitivas em que reina a posse comum
do solo e que sao organizadas, aínda que parcialmente, com base ñas
relagóes de parentesco e de um poder do Estado que exprime a
unidade real ou imaginária dqssas comunidades, controla o uso dos
recursos económicos essenciais e se apropria diretamente de parte
do trabadlo e da produgáo das comunidades que domina.
Em esséncia, o “modo de produgáo asiático” é urna das formas
de transigño da sociedade sem classes á sociedade de classes. Sua
estrutura combina e unifica relagóes de produgáo e de organizagáo
social próprias as sociedades sem classes e relagóes de produgáo e
dominagáo que a caracterizam como sociedade de classes. O “modo
de produgáo asiático” exprime, portanto, sób forma específica, a con-
tradigáo da passagem da sociedade sem classes .as sociedades de
classe; e essa especificidade consiste no fato da exploragáo de classes
se realizar através de formas gomunitárias de propriedade e de posse
52. Citemos somente Pedro Carrasco, Morton Fried, Hackenderg, G. P.
Murdock, J. Steward e, para combaté-los, E. Leach, “Hydraulic Society in
Ceylon”, Past and Present, 1959, n.° 15, págs. 2-26.
53. Engels, Anti-Dühring.

127
As revoltas nao tém como objetivo aboli-la, mas restabelecé-la em
limites suportáveis.
Para encontrar urna estrutura de Estado plenamente desenvolvi­
da, seria necessário abandonar a área polinesiana e voltar-se para os
estados tradicionais africanos, ou os estados e impérios da América
pré-colombiana. Sem entrar em detalbes, enfatizamos que, nessas
sociedades, a populacao é dividida administrativamente43, e a auto-
ridade central se efetiva através de subordinados territoriais nomea-
dos, ou mais ou menos hereditários44. O Estado dispbe de forga
pública; e o poder de cobrar impostas antecipados em trabalho e em
produtos é considerado como urna de suas atribuigoes essenciais. Os
grupos locáis, organizados de acordo com as relagóes de parentesco,
perderam em parte o controle da térra. O Estado, doravante, pode
decidir sua ocupagáo e uso. No plano económico e político, o Estado
organiza atividades em nivel inacessível aos grupos locáis, mas estes
asseguram sempre protegüo e cooperagao para seus membros. A au­
tonomía dos grupos locáis é mais ou menos reduzida por novas obri-
gagóes em relagáo as autoridades exteriores aos grupos de parentesco
e as comunidades locáis. Nova rede de relagóes é amplamente desen­
volvida fora das relagóes de parentesco, constituindo o quadro de
novas formas de promogao social e de status. O Estado garante a
paz no interior e a defesa ou o ataque do exterior. Promove trabalhos
de interesse geral, controla o comércio exterior e, em geral, a circula-
gao dos bens preciosos.
O Estado está encarnado na pessoa de um soberano pertencente
a certas linbágens que justificam sua supremacía pelos mitos, lendas
e por sua capacidade em atrair os seres sobrenaturais45, dos quais
depende o bem-estar da Nagao-, Na África, existia, as vezes, um corpo
religioso especializado. Nos Estados pré-colombianos esse fato era
generalizado. A encar nagao. do Estado na pessoa do soberano foi
descrita por Radcliffe-Brown em termos que ultrapassam o cenário
africano. . ....
“É difícil, freqüentemente, mesmo idealmente, separar as fuñ-
góes políticas das fungóes rituais ou religiosas. Assim, ñas sociedades
africanas pode-se dizer que o rei é o chefe do executivo, o legislador,
o juiz supremo, o comandante-chefe do exército, o chefe dos religio­
sos ou o mestre supremo do ritual e mesmo, talvez, o principal
‘capitalista’ do conjunto da comunidade. É difícil imáginá-lo acumu­

43. R. Karsten, A Totaliíarian State of the Past: the Civilization o f the


Inca Empire, 1949, Helsingfors Societas, cap. 7, pág. 99.
44. Lucy Mair, A n Introduction to Social Anthropology, Oxford, 1965,
pág. 113.
45. Lucy Mair, Prim itive Government, 1962, pág. 247.'

124
lando grande número de encargos separados e distintos. Só existe
um encargo, o do rei. Deveres e atividades diferenciadas, direitos.
prerrogativas e privilégios que se congregam em torno do rei, fazem
dele um todo unificado.” 46
Talvez essa fungió de funcóes e.de poderes múltiplos na pessoa
de um só homem pudesse aparecer aos olhos de um ocidental como
indicador de poder “despótico”, cuja lei se expressa apenas pela
vontade arbitraria de um soberano.
Em síntese, um Estado encarnado por um soberano que per-
tence a linhagens nobres domina urna populagáo comumente campo-
nesa47, organizada em comunidades, ñas quais as relagóes de paren­
tesco desempenham aínda papel essencial. Essa populagáo deve ao
Estado parte de seu>trabalho e de sua produgáo. Esse excedente
destina-se, em parte, áo consumo da classe dirigente, consumo que
toma formas suntuárias acentuadas; e, por outro lado, a empreendi-
mentos de interesse coletivo, real ou imaginário48. A escravidáo
existe, mas desempenha papel secundário na produgáo49.
Alguns desses exemplos sao suficientes para tornar manifestas
a diversidade e complexidade do desenvolvimento da desigualdade
ñas sociedades primitivas. É necessário frisar que estas sao táo diver­
sas quanto as sociedades de,classes. Balizar como “comunismo primi­
tivo” a economía dos bosquímanos, cagadores-coletores que vivem
em bandos no deserto de Kalahari; a economia dos Kwakiutl, onde a
competigáo dos dons e contra-dons para adquirir títulos havia tomado
a forma célebre e dramática dos “potlatch” ; a economia. de Trobriand,

46. Radcliffe-Brow, prefácio, pág. XIV de Systém es politiques africains,


por Mayer Fortes e Evans Pritchard, 1940; ver igualmente G. Balandier, “Re-
fletion sur le fait politique: le Cas de Sociétés Africaines”, Cahiers Interna-
tionaux de Sociologie, XXXVII, 1964.
47. Eric Wolf, em Peasants, op. cit., pág. 10, chega mesmo a escrever:
“é a produgáo ds um fundo de renda que distingue de modo crítico o cam-
ponés do simples cultivador”. Comparando a carta de Engels a Bernstein, de
9 de agosto de 1882: “é de novo a eterna historia das nagoes camponesas. Da
Irlanda á Rússia, da Asia Menor ao Egito, numa nagao camponesa, o campo-
nés só existe para ser explorado. E assim o é desde o Estado assírio e persa” .
A existencia dessa relagáo fundamental, comunidade de aldeias exploradas
pelo Estado, condena certa etnología ou sociología rurais que estudam as
comunidade rurais como microcosmos mais ou menos sem relagáo com o
mundo exterior.
48. John Murra escreve a respeito do Estado inca: “O Estado fez um
esforgo ideológico para formular suas exagóes na terminología da reciprocidade
tradicional andina. . . quando a Coroa elaborou um sistema de servigos, as
obrigagóes recíprocas da comunidade conhecidas e compreendidas de todos,
serviram de modelos” ( “ On Inca Political Control and Bureaucracy”, 1958,
págs. 30-41).
49. Lucy Mair, Primitive Government, op. cit., pág. 187. '

125
provocou a fratura dessas sociedades e rompeu com a distancia em
que se encontravam59. Entretanto, o debate teórico nao reside apenas
nesse fato. Origina-se de certos textos de Marx que sugerirán! a
idéia de que o “modo de produgáo asiático” deve necessariamente
ser a causa de urna estagnacáo milenar. Ora, o “modo de producáo
asiático”, como todo modo de produgáo, pode evoluir de varias
maneirás, e essa evolugáo depende de süa estrutura interna é do meio
histórico. A estrutura interna do “modo de producáo asiático” com­
bina estruturas comunitárias e estruturas de classes. O “modo de
producáo asiático” só pode evoluir, transformar-se e, as vezes, desa­
parecer, na medida em que as relagoes comunitárias de producáo e
de comunidade tenham sido destruidas e substituidas' por fornias
diversas de propriedad.e privada. N a medida em que tal processo
nao se desenvolve, o “modo de producáo asiático” se petrifica, e a
sociedade permanece em estagnacáo relativa. Tal vez, a primeira via
tenha sido a da China e do Japáo sob formas e épocas diversas. Tai-
vez", signifique que, com o desenvolvimento da propriedade pessoal,
senhorial e camponesa, certas formas db “modo de producáo asiáti­
co” possam dar nascimento a formas mais ou menos análogas as
relagóes feudais européias 60, se bem que o papel do Estado possa ser
tal que essas “feudalidades” guardem certos característicos próprios
ao “modo de produgáo asiático” . Mas, a segunda via, a da evolugáo
“lenta”, pode efétivar-se, fácilmente, em casos numerosos, na me­
dida em que o Estado tenha possibilidade de auferir. cada vez mais
das comunidades rendas em especie ou através de corvéias; e, assim,
pudesse frear a transformacáo das técnicas e o desenvolvimento das
trocas. Nesse caso, e somente nesse caso, a tese de Marx encontraría
confirmagáo parcial. Outras vias podem ter existido: por exemplo,
a que acompanhou a destruicáo das economias palacianas da Grécia
arcaica.
Assim, a questáo nao se resume em “retorno a Marx”, pois seria
retornar a um estágio ultrapassado de informagáo científica. A ques­
táo, para um marxista, é inventar conceitos teóricos que déem conta
da prática (científica ou outra) de seu tempo, e que se apoiem,
cada vez que seja possível, em análises bascadas em Marx. É a este
prego que o materialismo histórico, enquanto concepgáo geral do
mundo, pode nao se converter num corpo fechado de dogmas-
receitas. Nesse sentido, o conceito do “modo de producáo asiático”
59. Ver os trabalhos magistrais de J. Needham sobre a ciencia e as so­
ciedades chinesas, que mostram a superioridade de seu desenvolvimento até a
época do Renascimento europeu é, sobretudo, ó nascimento das ciencias “ex­
perimentáis”.
60. Cf. M. Godelier, L a Notioñ de M ode de Production Asiaíique et le
Schémas Marxistes d ’Evolution de Sociétés, C.E.R.M., 1964, pág. 34.

130
ou conceito equivalente, com denominagao melhor, pode e deve ser
“colocado em prática”; pela ciencia moderna, liberado dessas partes
morías, confrontado com toda informagao disponível de nosso tempo,
e enriquecido por nova análise teórica das estruturas de parentesco,
das estruturas religiosas, económicas, ñas sociedades sem classes ou
as sociedades primitivas de Estado.
Mas, nao é somente novo conceito que se deve acrescentar a
outros. Tráta-se de nova maneira de colocar os problemas. É necessá-
rio retomar o problema da origem das classes por duas extremidades:
do lado das sociedades sem classes dominadas pelas relagóes de
parentesco (antropología) e do lado das primeiras formas de socie­
dades de classes (arqueología, historia). Compreender bem a histo­
ria é ao mesmo tempo empreender a análise de sociedades e de épo­
cas particulares e iniciar a elaboragao de urna teoría da evolucao das
relagóes sociais, das relagóes de parentésco, da religiáo, das formas
de poder etc. A ciencia da historia mobiliza e modifica todas as
ciencias humanas. A esse prego ela pode descobrir a lógica oculta
de estruturas sociais pertencentés a sociedades arcaicas ou nao oci-
dentais que parecem, á primeira vista, estranhas e absurdas. Essa
tentativa contesta ao mesmo tempo o positivismo, que nao poupa
numerosos historiadores marxistas e o estreito evolucionismo do
século XIX.
Toda a discussáo sobre o “modo de produgáo asiático” ultra-
passa essa contestacáo, no sentido da constituicáo de urna teoría
comparada das estruturas sociais e da construgáo de um esquema
multilinear de evolugáo das sociedades61. Nesse processo, o mar­
xismo pode e deve representar papel essencial. E só poderá fazer
isso, aprofundando a análise de seus próprios principios. Ora, o
principio essencial do marxismo reside na tese de que a vida social
tem fundamentos últimos no modo de produgáo da vida material.
Pode-se manter essa tese quando se véem relagóes. de parentes­
co desempenhando o papel dominante ñas sociedades primitivas.
Como compreender, ao mesmo tempo, o papel dominante do paren­
tesco ñas sociedades primitivas e o papel determinante, em última
instancia, da economia; e, de maneira geral, como compreender o
papel dominante de estrutura num tipo determinado de sociedade?
Desde O Capital, Marx evocara o problema, quando’ respondía
a um' de seus críticos. -
“Segundo ele **, minha idéia de ser cada determinado modo de
produgáo e as correspondentes relagóes de produgáo, em suma, a
61. Cf. M. Godelier, Rationalité et irrationalité en économie, op. cit., págs.
90-98 e 229-231.
* Marx se refere ao Sr. Bastiat (N . do T .).

131
do solo. Nesse sentido, nao é a existencia de grandes trabalhos
dirigidos por üm poder central que a fará pertencer ao “mqdo de
produgáo asiático” 54, mas a existencia de comunidades que possuem,
coletivamente, os meios de produgáo essenciais cujo controle último
está ñas máos do Estado.
Por essa definigáo, compreende-se que o conceito de “modo de
produgáo asiático” parece ter, no tempo e no espago, campo bem
mais vasto do que podiam prever Marx e Engels 5S, e que, nessa
medida, o adjetivo “asiático” em nada lhe convém. O conceito parece
aplicável a certos reinados tradicionais africanos onde nao existiam
grandes trabalhos produtivos, mas onde um comercio intertribal, e
até internacional, de produtos preciosos (ouro, marfim, peles, escra-
vos) desenvolvia-se controlado por aristocracias tribais. Seria, talvéz,
o caso dos Estados Thai, da península indochinesa, que controlava as
rotas comerciáis entre a China e a In d ia 56.
Torna-se necessário entáo, em 1968, retornar a Marx e reco-
nhecer um conceito elaborado em 1858?
Nao, se nos limitarmos a retomar esse conceito tal qual- Marx o
elaborou. Sim, se o livrarmos de partes morías e o transformarmos
em novo conceito com base nos conhecimentos e problemas de nossa
época.
Quais sao estas partes morías?
Primeiramente, a nogao de “despotismo oriental”. Esse conceito
nao pertence á ciencia política, mas á ideologia. Evoca um poder
cada vez mais opressivo que se encarna ñas vontades arbitrárias de
um soberano absoluto. Recorrendo ao pensamento de Voltaire e dos
jesuítas do século XVIII, é inútil e muito fácil refutar a preocupagáo
de bem governar dos imperadores da China. Basta confrontar as
opinióes de dois autores contemporáneos a respeito do poder totali-
54. É cada vez mais evidente, de acordo com trabalhos arqueológicos
recentes, que na Mesopotámia e no vale do Indus, a agricultura repousava,
ñas primeiras épocas de seu desenvolvimento, na utilizagáo das inundagóes
espontáneas dos cursos de água. Os canais vieram bem mais tarde. N o Egito,
a irrigagáo pela inundacáo ficou como forma essenciaL de irrigagao, sendo
seu efeito somente reforgado pelos canais.
55. Ver a bela análise do Tibet tradicional, em Carrasco, Laend and
Policy in Tibet, Seattle, 1959, págs. 79-85, 207-224. “Nao existe separagáo
entre o poder económico e o poder político. As mesmas pessoas que con-
trolam a térra controlam também o Estado; de fato, eles sao o Estado e o
Estado quer dizer seu pessoal enquanto grupo qué possur a térra. A dómi-
nagáo coletiva da classe superior encontra sua expressáo política no poder
absoluto do Dalai Lama, propriedade de toda a térra e subordinagáo de
todo o povo enquanto pessoa.”
56. Cf. “A respeito do§ Estados Shans da Birmania”, E. Leách, Les
Systémes Politique. . . , op. cit., págs. 247, 262; Leach ve ai urna estrutura feudal.

128
tário dos incas, para demonstrar o caráter vago e subjetivo desse
cohceito. Para R. Karsten, o governo totalitário dos incas nao era
tirania insuportável. Nenhuma opressáo era permitida. O lado mara-
vilhoso da civilizacáo inca, além do seu sistema político, foi legislagáo
social”. Para L. Baudin, o império socialista dos incas é “ um grupo
de homens felizes” construido sobre “a anulagáo do individuo’?. Esses
julgamentos 57 nos ensiñam pouco sobre os incas e muito sobre seus
autores, mas nao se pode esconder que Marx e Engels teriam estado,
paradoxalmente, mais próximos de L. Baudin que de R. Karsten.
Mas, esse paradoxo só é aparente, pois exprime diretamente
outra parte morta das teses de Marx e Engels, modificada em 1881;
que o “modo de produgáo asiático” significa estagnagáo e miséria
mílenares, entrada inacabada na “civilizágáo”, e, em parte, .malo­
grada. Ciertamente, em 1881 a comunidade rural, base do “despotis­
mo oriental”, aparece sob novo prisma, dinámica e rejuvenescida.
Mas, o peso dos textos precedentes impedem que essa nova visáo
seja desenvolvida. A arqueología m oderna58 já demonstrou, suficien­
temente, que nao foi a “civilizágáo” que nasceu na Grécia, mas
somente urna de suas formas particulares, o Ocidente, que iria final­
mente dominá-la. Do ponto de vista,da dinámica das forgas produ-
tivas, o aparecimento do Estado e das sociedades de classes que Marx
e Engels classificavdm no “modo de produgáo asiático”, testemunham
contrariamente gigantesco progresso das forgas produtivas. Se o Esta­
do faraónico, a Mesopotámia, os impérios pré-colombianos perten-
ciam “ao modo de produgáo asiático”, este corresponde aos tempos
em que o homem se dedica local e definitivamente á economia da
ocupagáo do solo; inventa novas formas de produgáo, aperfeigoa a'
agricultura, a criagáo, a arquitetura, inventa o cálculo, a escrita, 0
comércio, a moeda, o diréito, novas religióes etc. Logo, em suas
formas originárias, o “modo de produgáo asiático” significarla a náo
estagnagáo, mas o grande progresso das forgas produtivas, calcadas
sobre a base das antigas formas comunitárias de produgáo.
Entretanto, a tese de Marx parecía guardar certa validade para
épocas mais tardías, que teriam presenciado a estagnagáo milenar
das sociedades do tipo “asiático”. Náo é o caso de negar a desigual-
dade e a lentidáo do desenvolvimento de numerosas sociedades de
classes náo ocidentais. Mas, é necessário lembrar que algumas délas,
como a China, estavam até o comego do sáculo XVI, mais avangadas
que a sociedade ocidental. Foi o desenvolvimento do capitalismo que
--------------- - ■ j
. 5 7 . R. Karsten, A Totalitarian State of the Past, op. cit., pág. 266; L.
Baudin, L ’Empire Socialiste des Incas, 1928, pág. 226.
58. G. Ghilde, Social Evolution, 1950; Clark, W orld Prehistory (cf. nosso
relatório na La Pensée, 1964, n.° 107).

129
O estudo científico da evolügáo das estruturas sociais (paren­
tesco, política, religiáo, economía etc.) é o estudo das fungóes das
f o r m a s , da importancia, do fugar que ocupa cada urna dessas estru­
turas,-de acordo com os tipos de formagáo económica e social e de
suas tránsformagóes. Essa relacáo de cada estrutura social com todas
as estruturas, constituí a estrutura da sociedade; constrói a causalida-
de própría de cada urna de suas estruturas sociais e sua correspon-
déncia recíproca. Mas, essa correspondencia só existe em certos limi­
tes, que revelam de modo definitivo o conteúdo objetivo e histórico
de cada estrutura 66.
Fazer a teoría da evolucáo diferenciada das sociedades, é fazer
ao mesmo tempo a teoría científica do parentesco, da política, da
ideología. É estar pronto a reconhecer que em certas condigóes o
parentesco é a economía ou que a religiáo pode funcionar diretamente
como relagóes de produgáo. Essas hipóteses permitem-nos eliminar o
mito de um “estado” da humanidade, onde os homens teriam vivido
sem economía, sem relagóes de parentesco, sem representagáo do
mundo, ou teriam somente procurado subsistir, sem ter tempo de
inventar produtos de luxo que seriam a religiáo, o parentesco etc.
Desde que a humanidade existe, as fungóes existem com conteúdo e
forma determinados, e a Historia é a historia de suas transformagóes.
Nesse sentido, Marx tinha razáo de eliminar os problemas de origem
e de dizer que náo era a.unidade original do homem com suas con-
digoe's de produgáo que constituía problema, mas sua separagáo.
Sáo necessárias condigóes históricas para que as relagóes de
parentesco sejam apenas superestrutura, para que “se especializem”,
e sejám apenas relagáo social, assegurando a reprodugáo da espécie
humana e guardando um aspecto económico sem intervir diretamente
na produgáo 67. .
Acontece o mesmo para que a religiáo náo seja maís do que
ideología, trabalho pessoal, concepgáo náo científica do mundo. B
necessário recusar a projegáo sobre toda sociedade de categorías
modernas que correspondem a relagóes sociais específicas. E escusado
dizer que somente tais análises podem esclarecer as dificuldades que
encontra o desenvolvimento económico e político ñas sociedades onde

66. A respeito da condicaó e da importancia das estruturas sociais numa


soceidade determinada, Marx escrevia na Introduction á la Critique de l’Econo-
mie Politique (1859): “É como urna iluminacáo universal em que. atuam todas
as cores e as quáis modifica em suas tonalidades particulares. É um éter espe­
cial que determina o peso específico de todas as “coisas, as quais póe em relevo”,
(Contribution a la critique de l ’ecoñomie politique, op. cit., págs. 171-172).
67. Smelser, “Mécanismes du Changement et de l’adaptation au change-
ment”, lndustrialisation e Société, Mouton, 1963, págs. 29-53.

134
relagóes de parentesco, a religiáo (Isla, induísmo, budismo), as for­
mas de poder (reinado, chefe de tribos etc.) tém conteúdo diverso
do que ñas sociedades ocidentais capitalistas e socialistas. Ás derro­
tas de certos empreendimentos desenvolvimentistas na Asia, na Áfri­
ca, na América Latina estáo ai para lembrá-lo de que náo devem ser
atribuidos á “irracionalidade” do compórtamento dos “indígenas”.
Numa época onde, pela primeira vez, existe a possibilidade de fazer
progredir a humanidade sem desenvolver novas classes exploradoras
e manter as antigas, o marxismo deve encarregar-se das revolucóes
científicas e das revolugóes sociais, desde que purificado de todo
dogmatismo.

135
estrutura económica da sociedade, a base real sobre que se ergue
urna supérestrutura jurídica e política e á qual corresponden! deter­
minadas formas de consciencia social; de o modo de produgáo da
vida material geralmente condicionar o processo da vida social,
política e intelectual em geral. Tudo isto seria verdadeiro no mundo
moderno dominado pelos interesses materiais, mas nao para a Idade
Média, onde reinava o catolicismo, nem para Atenas e Roma, onde
reinava a política. De inicio, é eStranho que alguém se compraza em
piressupor o desconüecimento por outrem desses lugares comuns sobre
a Idade Média e na Antigüidade. O que está claro é que a Idade
Média nao podía viver do catolicismo e nem o mundo antigo, da
política. Ao contrário, é a maneira como ganhava a vida que explica
por que, numa época, a política desempenha o papel principal e, na
outra, o catolicismo. De resto, basta um pouco de conhecimento para
saber que sua historia secreta é a historia da propriedade territorial.
Já Dom Quixote pagou pelo erro de presumir que a davalaría errante
era compatível com todas as formas de sociedade” 62.
O erro, de inicio, que impossibilitou qualquer solugáo foi consi­
derar economía e parentesco ñas sociedades primitivas como duas
estruturas exteriores urna á outra, como infra-es.trutura e. superestrü-
tura. De fato, o economista distinguirá, fácilmente, as forgas produ-
tivas dessas sociedades (caga, agricultura, criagáo etc.), mas nao
poderá “isolar” relagóes de produgáo “autónomas”. Pelo menos as
distinguirá no próprio funcionamento das relagóes de parentesco.
Estas determinam os direitos do individuo sobre o solo e seus produ-
tos, suas obrigagóes de receber, dar e cooperar. Determinam, igual­
mente, a autoridade de uns sobre os outros em assuntos políticos e
religiosos. Constituem, enfim, como mostra C. Levi-Strauss, a “ar-'
madura sociológica” do pensamento selvagem, um dos esquemas que
organizam as representagóes míticas da relacáo cultura-natureza,
homem-animáis-piantas ,63.
Nesse tipo de sociedade, as relagóes de parentesco funcionam
como relagóes de produgáo, relagóes políticas, esquema ‘ ideológico.
O parentesco é, aqui-, ao mesmo tempo, infra-estrutura e superes-
trutura.
Segundo nossa opiniáo, essa plurifuncionalidade do parentesco
ñas sociedades primitivas esclarece dois fatos sobre os quais há una-
nimidade desde o sáculo XIX: a complexidade das relagóes de paren­
tesco e seu papel dominante. Ao mesmo tempo, evidencia como o
parentesco funciona, diretamente, interiormente como relagao econó-

62. Le Capital, livrb 1, tomo I, pág. 93.|


63. Cf. Levi-Straus„ D u miel aux cendres, op. cit., págs. 37-97-113-124-241.

132
mica, política, ideológica que como forma simbólica na quaí se expri­
m e, o conteúdo da vida Social, como linguagem geral das relagóes
dos homens entre si e com a natureza 64. • •
A “correspondencia” economía-parentesco nao se apresenta co­
mo relagao externa, mas como relagao interna, sem que as relagóes
económicas entre parentes se' confundan! com suas relagóes políticas,
sexuais etc. A unidade das fungóes nao implica em sua confusáo. Ao
mesmo tempo essa pluralidade das fungóes de parentesco tornou-se
necessária pela estrutura geral das forgas produtivas por seu fraco
nivel de desenvolviménto, que impó'e a divisao sexual do trabálho e a
cooperagao dos individuos dos dois sexos, para subsistir e repro-
duzir suas condigóes de existencia 6S. Sobre essas bases devem ser
analisadas as razóes complexas do surgimento das relagóes de paren­
tesco unilineares, bilineares etc.
Explicar a evolugáo das sociedades primitivas é explicar o apa-
recimento de novas funcoes incompaúveis com a manutengáo de an­
tigas esíruíuras sociais. O problema da passagem as sociedades de
classes e ao Estado reduz-se, em parte, em saber em quais condigóes
as relagóes de parentesco deixam de representar o papel dominante
de unificar todas as fungóes da vida social.
Pode-se supor que o aparecimento' de novas formas de produgáo
modifique a residencia, a demografía, a importancia relativa dos
sexos, exija novas relagóes de produgáo, novas formas de autoridade.
Além de certo limite, as relagóes de parentesco nao corresponden!
mais a essas novas condigóes sociais. Elas evoluirao até que se cons-
truam fora do parentesco novas relagóes sociais que, progressivamen-
te, vño comegar a desempenhar o papel dominante exercido pelas
relagóes de parentesco. Estas passariam a desempenhar papel dife­
rente, secundário, e as novas relagóes sociais, encarregadas de novas
fungóes, viriam tomar o lugar central deixado livre. Novas relagóes
políticas, um poder tribal centralizado, aparecem em certas socieda­
des e parecem prolongar o parentesco, sair dele e se opor a ele. No
entanto, nao é o parentesco que se transforma misteriosamente em
relagóes políticas. É a fungáo política presente em antigas relagóes
de parentesco qüe se dese'nvolve sobre a base, de novos problemas.

64. Daí, o. erro dos antropólogos, que privilegiam essa fungáo simbólica
do parentesco e tratam-na como linguagem pura, e o erro oposto aos que
procuram definir o conteúdo, subtraindo-lhe suas fungóes económicas, políticas, .
religiosas. Cf. M. Godelier, “Systéme, strücture et contradiction dans Lé Ca­
pital de M arx”, Les Temps Moderries, novembro, 1966, págs. 828-864, repro­
d u zco acima págs. 187-221.
65. Cf. Levi-Strauss, Le Structure Élémentaires de la Parenté, op. cit.,
pág. 48. .•

133
O MODO DE P R O D ü g lO DE LINHAGEM *

Pierre-Phillippe Rey

Consideremos que a análise. feita por Emmanuel Terray da


“Antropología Económica dos Gouro da Costa-do-Marfim”, de Clau-
de Meillassoux, Mouton, 1964, seja ¿novadora por tres razóes prin­
cipáis:
1. mostra a existencia de vários modos de produgáo ñas socie­
dades de linhagem; .
2 . apresenta o inicio de um programa de pesquisa muito inte-
ressante, voltado para a identificado das “forgas produtivas” e das
“relagoes de producao” em tais sociedades;
3 . expóe o que Bettelheim chama “a lei da correspondencia
necessária ou nao correspondencia entre as relagoes de produgáo e
a natureza das forcas produtivas” (C. Bettelheim, 1968, A Transigao
para a Economía Socialista, París: Maspero, capítulo 2).
Nao é, básicamente, análise de urna formacao social em parti­
cular, mas um levantamento dos principáis problemas encontrados
antes de tal análise.
Esse trabalho situa-se, portanto, em nivel teórico diferente do
artigo de Claude Meillassoux, “Essai d’interprétation du phénoméne
économique dans les sociétés traditionelles d’autosubsistance” (Ca-
hiers etnographiques Africaines, n.° 4, 1969, págs. 38-67). Após refé-
rir-se brevemente á base económica das sociedades de linhagem, Meil­
lassoux imediatamente se. empenhou numa análise dinámica áo modo
de produgao de linhagem, o qual, segundo Terray, nao existe isola-
damente. • '' ■
* The Lineage Mode o f Production, Critique of Anthropology, n.° 3,
1975 : 27-79. Tradugáo de Antonio Carlos Andrada e Silva.

137
das unidades de produgáo baseadas no modo de cooperagáo domi­
nante na agricultura.”
Donde temos dominagáo ainda maior pelo modo de produgáo de
linhagem.
3. Mas, como aponía Terray:
“O problema principal é o das relagóes entre as relagóes de pro-
dugao baseadas respectivamente na cooperagáo complexa e na coope-
ragáo. simples; isto é, entre o sistema tribal aldeao e o sistema de
linhagem, ou ainda, entre o modo de produgáo de caga e o modo de
produgáo agrícola. No que concerne a esses dois modos de produgáo,
Terray enumera as seguintes alteragóes:
a) os níveis ideológico e político:
— “os vínculos entre aldeias da mesma tribo sao expressos em
termos genealógicos” ;
— “a divisáo das aldeias em grupos de caga coincide com sua
divisáo em linhagens”. (Esses dois fenómenos sao notados princi­
palmente na área da floresta, onde o sistema de linhagem é mais
coeso.) •
A distribuigáo das linhagens em dois grupos de caga pode ser
mantida durante certas cerimónias de aldeia,.e o vínculo entre as li­
nhagens de um mesmo grupo de caga seria talvez suficientemente
forte, de acordo com Meillassoux, para forgar a exogamia desses
grupos de caga.
Entretanto, quando “o sistema de linhagem é ampliado excessi-
vamente” — como no caso da savana, “para constituir urna línha-
gem capaz de expressar a totalidade das relagóes sociais”, “o recru-
tamento para os grupos de caga é feito independentemente da afilia-
gao as linhagens”. Aqui, é somente o sistema da linhagem que desem-
penha papel na organizagáo política da aldeia. Isso quer dizer que o
único caso em que a divisáo em grupos de caga desempenha um
papel na organizagáo política da aldeia é quando esses grupos de
caga náo sáo senáo reagrupamento dos grupos de linhagem, como no
caso da floresta.

b) ao nivel económico, ainda no caso da savana:


“cada cagadór mantém sua própria presa na hora da dis­
tribuigáo” e “ambos os sistemas se- tornam autónomos”
(isto é, o sistema tribal-aldeáo e o sistema de linhagem).

Por outro lado, a caga contribuí para urna limitagáo do poder


dos anciáos, pois possibilita a um bom cagador adquirir prestigio e

140
influencia. Para Meillassoux, entretanto, essa é urna quesíáo de caca-
dores individuáis. Terray observou entre os Dida que “a divisáo em
grupos suficientemente grandes para realizar a atividade da caga com
rede, que é altamente vantajosa, se caracteriza, apenas por unidades de
tamanho maior que a linhagem, visto que esse tipo de caga requer
um número mínimo de linhagens para sua realizagáo; tal divisáo náo
poderia, portanto, desafiar a dominagáo dos andaos”. Nesse sentido,
é surpreendente notar que a caga individual, que certamente desem-
penha papel importante entre os Gouro, e pápel de importancia con-
siderável para bom número de povos, entre os quais a caga coletiva
com rede é' desconhecida, ao menos desconhecida nessa escala, é
simplesmente colocada por Terray junto com a caga coletiva (vide E.
Terray, 1969, “L’Organization Sociale des Dida de Cote d’Ivoire”,
Anuales de FUniversité d’Abdijan).
No texto de Terray, encontramos outra interagáo, que náo é
retomada por ele em seu capítulo sintético “Modos de Produgáo”,
onde estáo relacionadas aquelas que acabamos de mencionar:
“Claude Meillassoux nada diz da apropriagáo das redes; na
térra dos Dida, as redes grandes sao propriedade conjunta das linha­
gens e os anciáos náo sáo senáo seus portadores, responsáveis
por elas.”
Finalmente, vemos que:
a) nenhuma intervengáo do “modo de produgáo tribal aldeáo”
pode ser detectada no “modo de produgáo de linhagem”.
b) quando o modo de produgáo aldeáo intervém na constitui-
gáo da estrutura da própria aldeia, é porque sua própria estruturagáo
é apenas simples reagrupamento de unidades determinadas pelo modo
de produgáo de linhagem.
c) se os Gouro sáo realmente como os Dida, é a linhagem que
se apropria do principal meio de produgáo, a rede coletiva. (Retor­
naremos mais tarde á questáo da “apropriagáo” da térra pelo modo
de produgáo de caga.) ,
Náo concluiríamos a partir do que foi dito, que o modo de
produgáo de linhagem é o modo de produgáo dominante que estamos^
procurando, mas apenas que há forte possibilidade de que este seja
o caso, e que temos- ainda que mostrar o processo por meio do qual
essa dominagáo é produzida e reproduzida.
Por incrível que parega, Terray prontamente concluí exatamente
o oposto: porque “a agricultura tradicionalmente ocupou apenas um
lugar mediocre na vida cultural” em relagáo á caga.
quando .3 leí da equalizagáo da taxa de lucr.o se estende ao conjunto
da produgáo capitalista que ela emerge como o único determinante
da taxa de lucro em cada caso dado. Conseqüentemente, emerge co­
mo determinante dire'to da renda, que é limitada pelo lucro, dar por
diante; quer dizer, por una elemento externo ao modo de produgáo
feudal. Da mesma forma, essa renda — que nao mais se reproduz
dentro dos limites do modo de produgáo feudal, mas pelo efeito da
reprodugáo do lucro no modo capitalista de produgáo — se torna
renda capitalista da térra.
Já podemos ver as conclusoes que deveriam ser tiradas da dife-
renga entre essas düas concepgóes de “dominagao” : a dominagao
somente pode ser entendida por um estudo da própria' estrutura
interna do modo dominante. Urna vez, portanto, tendo enumerado os
diferentes elementos que nos possibilitaráo avaliar que, ao que tudo
indica, esse modo dominante na formagáo sócio-económica Gouro é
o modo de produgáo de linhagem predominante na agricultura, temos
que analisar primeiro esse modo de produgáo em separado, antes
que sejamos capazes de explicar o processo pelo qual sua dominagao
sobre os outros modos é produzida e reproduzida. Esse será objeto
dos capítulos IV e V. Em parte também o objetivo do artigo de
Meillassoux nos “Cahiers d’Études Africaines”, cujo método é, de
certo ponto de vista, antes complementado do que solapado pela aná-
lise de Terray. /
Antes disso, entretanto, retornaremos a certos pontos centráis da
tese de Meillassoux, pontos que Terray nao parece ter notado.

III — A PROPRIEDADE DA TERRA ÑAS SOCIEDADES


DE LINHAGEM
v
Meillassoux observa que os limites de propriedade da térra
entre os Gouro sao mais precisos e permanentes onde a unidade de
propriedade é mais vaga e extensiva; em outras palavras, a proprie­
dade tribal é delimitada de forma muito precisa; já a propriedade
aldea o é muito menos, e a propriedade de linhagem nao é delimitada
de forma alguma (exceto onde a térra está sendo trabalhada).
Essa observagño pode ser relacionada a urna análise da “apro-
priagáo” da térra, usando o sentido de Balibar — como relagáo téc­
nica de produgáo. É claro que a forma de apropriagáo do modo de
produgáo de linhagem realizada através da agricultura, é a mais
permanente e intensa existente entre os Gouro.
No que se refere á caga, as modificagoes operadas pelos cagado-
res no meio ambiente sáo -de caráter episódico. Náo sáo necessárias

144
construyes em grande escala, a ndo ser alguns caminhos na floresta
e. pequeña transformagáo daqueles locáis particularmente fávoráveis
á armagáo de redes. Pensamos, como Meillassoux, que a térra, tanto
no caso da caga como no da coleta, pode ser considerada mais ade-
quadamente como “objeto de trabaího” que “meio de trabalho”.
Quanto á tribo, como nota Meillassoux, a guerra pouco contribuí
para sua estrutura. Além do mais o objetivo desse tipo de guerra
nunca é a apropriagáo da térra. Como mostraremos mais adiante, nao
se Ihe pode dar, portanto, importancia na reprodugáo da estrutura
social semelhante á que Marx atribuí á guerra na reprodugáo das
formagoes sociais “antigas”. A determinagáo da tribo como entidade
autónoma e de suas relagóes com a térra deve ser encontrada noutra
parte que náo a “fungáo económica da guerra”.
Finalmente, podemos afirmar o seguinte:
“A propriedade” é tanto mais nítida e permanente quanto mais
ausente esteja a apropriagáo. Para dizé-lo de outra forma — .que
nos permitirá, em nossa opiniao; generalizar para todas as socieda­
des dominadas pelo modo de produgáo de linhagem — longe de ser
manifestagáo de apropriagáo,' a propriedade ñas sociedades de linha­
gem é manifestagáo de ausencia de apropriagáo da térra. É manifes­
tagáo de oütra instancia que náo a das forgas produtivas, ou seja,
é a própria instancia que desempenha o papel de determinante em
lugar das forgas produtivas', o que significa que a instancia determi­
nante da estrutura das sociedades de linhagem é umd instancia que
-— como mostraremos — devemos procurar fora do dominio
económico.
Abandonaremos agora o texto de Terray, retornando a ele ape­
nas ocasionalmente. Antes disso, entretanto, gostaríamos de especi­
ficar sua contribuigáo indicando a nova perspectiva que ele dá a
nossa própria análise. Diferenciando vários modos de produgáo e
mostrando que o modo de produgáo de linhagem se baséia apenas na
agricultura, ele nos permite superar a confusáo em torno da “deter­
minagáo em última instancia do modo de produgáo” ; confusáo que
existiu, igualmente, tanto no texto teórico de Meillassoux quanto em
nosso próprio texto" mencionado por Terray. Gragas a Terray pode­
mos ir além da simples percepgáo do fato'de que a linhagem e sua
estrutura de hegemonia desempenha papel dominante no processo de
reprodugáo das formagoes sociais de linhagem: como üm todo. A
análise científica dessa dominagáo pode ser levada além, e podemos
mostrar que a dominagáo é determinada pela estrutura das forgas
produtivas da agricultura, e náo pelas forgas produtivas de urna
“economía de auto-subsistencia”, na qual os diferentes modos de

145
segundo TurribulI, que a escassez de víveres deve-se mais á indolencia
do que as dificuldades de cagar ou coletar 8. Nao há, pois, problemas
de escassez no sentido estrito e material do termo 9.
Na floresta, os pigmeus entregam-se a seu modo original de vida,
dentro do quadro de suas próprias instituigñes. Tumbull insiste sobre
o fato de que o contato com os grandes negros nao altera o modo
de vida específico dos Mbuti, desde que permanegam na floresta por
períodos de seis meses ou mais. Os Mbuti sao capazes de saíisfazer
todas as suas necessidades sem recorrer as trocas., Nem o ferro, nem
mesmo o fogo e nenhum dos produtos e víveres consumidos na aldeia
Ihes sao indispensáveis. Em outros termos, a característica de auto-
subsisténcia do Mbuti está preservada. A troca com os cultivadores
ocorre apenas periódicamente e a economía dos pigmeus permanece
baseada na coleta e na caga.
A coleta é empreendida regularmente pelas muflieres, que se
deslocam em bandos, a fím de garantir seguranga mútua. Os homens
também coletam em seus percursos de caga. Essa atividade exige
instrumentos rudimentares, como, bastees, láminas e cestos fabricados
a partir de matérias-primas escoltadas na floresta.
No que concerne á caga, Tumbull distingue hordas de arqueiros
e de cagadores com rede. A caga com rede é coletiva, cada familia
nuclear, ou melhor, cada adulto casado possui urna. Tumbull dá cifras
máximas de trinta redes e mínimas de sete para que se tenha cons­
tituido um grupo de caga, o que significa que esta atividade coletiva
reúne bandos de sete a trinta familias.
Os arqueiros dividem-se em grupos mais réstritos, de cinco a
seis cagadores, mas a horda que empreende anualmente urna grande
cagada coletiva, se compoe de efétivos comparáveis aos dos caga­
dores com redes. Arqueiros e cagadores individualmente usam arma-
dilhas nos arredores próximos da aldeia. O conjunto de instrumentos
de caga se resume as redes, arcos, langas e armadilhas. Tumbull dá
menos informagóes sobre os arqueiros do que sobre os cagadores
com redes e, por isso, nossa exposigáo ficará restrita apenas aos
últimos.

8. Os cálculos aproximados sobre o tempo de trabalho' dos cagadores


aborígenes da Austrália mostram que a produtividade do trabalho do capador
é mais elevada que a do agricultor. .
9. N ao restringimos o conceito de raridade á nogáo de escolha, como
a maioria dos economistas clássicos. Se se entende por raridade a insuficiencia
da produgáo, ela propicia a nao-reproducáo do grupo. Trata-se, portanto, de
um fenómeno crítico e nao funcional.- Se esta nocáo exprime apenas ¿ im-
possibilidade de obter tudo o que se necessita ao mesmo tempo, representa
a apreensáo confusa dos limites impostos a um dado sistema de produgáo.

88
A organizagao social do trabalho baséia-se mais nos grupos de
idade do que no parentesco que nao desempenha nenhuma atividade
produtiva1®. Os grupos de idade diferenciara criangas, adolescentes
solteiros, adultos casados (ou cagadores) e velhos. As distingoes por
sexo sao secundárias, conforme observagoes de Turnbull. Os hómens
cagadores possuem as redes e abatem os animáis com langa; os ado­
lescentes e as mulheres abatem a caga miúda, o,s velhos cagam indi­
vidualmente com armadilhas os pequeños animáis, ou permanecem
na aldeia cozinhando e fabricando utensilios e ferramentas. O produto
final da coleta ou da caga é dividido, mesmo quando realizado indi­
vidualmente. As capturas coletivas sao divididas entre todos os mem-
bros do grupo, segundo regras variáveis, sendo a principal a garantía
da subsistencia de todos, ativos e inativos. Urna parte é igualmente
reservada aos que empréstam redes, desde que animáis tenham sido
capturados. Turnbull descreve o sistema social dos Mbuti como con­
trario ao dos agricultores aldeoes: “The Mbuti meet it with an orga-
nizafion which is based upon the very antithesis of the village organi-
zation. Against political centralization it offers complete discentrali-
zation and diffusion of anthority. Against sedentary patrilinear, patri-
local village kinship is countered by a horizontal age level system.
Village valúes are directly opposed to forest valúes” (Turnbull,
1965, p. 300).
Os Mbuti estño organizados em hordas cuja composigao instável
é definida pelo territorio. O sistema de paréntesco é bastante elemen­
tar. Há cinco termos de parentesco designando o pai, a mae e, sem
distingáo de sexo, os colaterais de primeiro grau, os avós e as crian-
gas u . O casamento é feito, de preferencia, por troca de irmás, sem
dote, freqüentemente matrilocal. É comum obter parceiras em hordas
diferentes e nao ñas imediatamente vizinhas. A familia nuclear tem
existencia mediocre enquanto célula social. Se o homem casado pos-
sui urna rede, mantém sobre seus parantes próximos urna autoridade
continuamente discutida pela horda e pelos grupos de idade, aos quais
cada um deles pertence. As criangas podem fácilmente ser adotadas
por outras familias e, mesmo, por outras hordas. Relagóes sexuais
entra jovens célibatários da mesma horda ou relagóes extra-conjugais
sao bastante freqüentes, aínda que condenadas pelos grupos. As se-
paragóes de casais também acontecem com freqüéncia. O incesto10

10. L. Marshall (1960) define os bandos lcung como organizados pelo


parentesco. N a realidade, se os termos de parentesco sao utilizados para
designar todos os membros da horda, o parentesco nao pode ser o principio
basilar da organizacáo social. Como ela o diz, pertencer a urna horda decorre
mais de urna escolha do que de imperativos de ordem familiar.
11. Tumbull contesta o valor da análise estruturalista aplicada aos Mbuti.

89
-

ri

I
PESQUISA DE XJM NÍVEL DE DETERM IN A D O
NA SOCIEDADE CINEGÉTICA *

Claude Meillassoux

Em artigo anterior tentei elaborar o modelo de urna economía


de auto-subsistencia em sua passagem para urna diferenciagao hierár-
quica. A elaboragáó deste modelo levanta problemas epistemológicos
que nao se encontram ainda esclarecidos' pelas reflexoes e pesquisas
mais recentes (Bettelheim, 1966; Althusser etc., 1966). Entretanto,
apesar de suas qualidades, a adequacao destes trabalhos ao estudo
das formacóes sociais anteriores ao capitalismo ainda está por ser
realizada. Ainda nao dispomos de um conjunto, de “ferramentas”
conceituais satisfatórias que expliquem o problema da coeréncia e,
sobretodo, da transformacao dos sistemas económicos.
O método do modelo consiste em pesquisar numa sociédade-tipo,
seus tragos fundamentáis, determinantes ou críticos, ao mesmo tempo
que as condigóes necessárias ao funcionamento e reprodugáo de seu
sistema económico, nos limites impostos pela agáo e conexáó recípro­
ca dos aspectos fundamentáis da organizagáo social, política e ideo­
lógica. Se a análise e comparagao de várias sociedades-casó é indis-
pensável para indicar de modo claro as características comuns e evi­
denciar o tipo ao qual se aplica o ;modelo, este nao requer um estudo
comparativo exaustivo. Sua coeréncia (relagóes lógicas estabelecidas
entre os diversos elementos do sistema), sua dialétíca interna (con-
tradigoes que o levam á tránsformagáo e perpetuagáo), devem süprir
a quantidade de dados utilizados. Além disso este método tem ainda

* Meillassoux, C-, 1967 — “Recherche d’un niveau de détermination dans


la société cynégétíque” — L ’Homme et la Société, 6, 4.e trim., 1967 : 95rl06.
Tradugáo de Edgard Assis Carvalho.
Sociedades cinegéticas — Sociedades de cajadores-coletores (N. do T .).

85
Mediante a caga mais intensa e a abundancia de animáis cagados
para repartir, a cooperagáo e a reciprocidade sao intensificadas e
exaltadas, as tensóes no interior do grupo diminuem e atingem seu
gran mais baixo ou sao adormecidas sem, no entanto, desaparecer.
As dangas e cantos polifónicos implicam, igualmente, a participagáo
e unido de todos os individuos. Enfim, por todos os seus aspectos:
material, político, ideológico, emocional e estético, a prática religiosa
amplia e exalta todos os aspectos positivos das relagóes sociais e
permite atenuar, ao máximo, “adormecer” provisoriamente (sem os
anular) todas as contradigóes existentes na origem dessas relagóes
sociais. A prática religiosa constituí, portanto, verdadeiro trabalho
sobre as contradigóes determinadas pela estrutura do modo de pro-
dugáo e de outras relagóes sociais, trabalho que é urna das condigóes
essenciais da reprodugáo dessas relagóes, das relagóes de produgáo
como de outras instancias sociais. Longe de nada ter a ver com a base
material e o modo de produgáo, como pretendiam certos idealistas,
a prática religiosa é, ao mesmo tempo, prática material e prática po­
lítica, e situa-se no núcleo do processo de reprodugáo desse modo de
produgáo. Mas, aínda ai, a prática social é representada “ao contra­
rio” e veiculada de maneira “fetichista”, pois a harmonía restaurada,
o bom entendimento excepcional, a abundancia, a felicidade que sao
produto de cooperacáo mais intensa, de reciprocidade mais ampia,
da mais profunda comunháo emocional que nasce da relagáo dos
homens entre si em circunstancias excepcionais sao representadas e
vividas como efeito e prova da presenga mais próxima, da generosi-
dade mais intensa da floresta, do ser imaginário que personifica a
unidade do grupo e as próprias condigóes de sua reprodugáo.
A religiáo dos Mbuti náo é, portanto, dominio de sonhos fan­
tásticos projetados sobre o fundo de sua consciencia por urna reali-
dade que existiría apenas sólida e material: a realidade de suas rela-
cóes sociais na produgáo dos meios materiais de existencia. Longe de
ser o reflexo fantasmagórico, passivo de urna realidade que se movería
em outra parte, essas representacóes e essa prática religiosa tiram
substancia, peso de existencia e eficácia de sua presenga na juntura,
na articulagáo oculta do modo de produgáo e das instancias que lhe
corresponden!. Aparentemente voltados para seres e relagóes imagi-
nárias que ultrapassam a sociedade humana e sáo idealidades sem
objetos que Ihes correspondan}, os Mbuti apontam de fato em diregáo
ao fundo mais profundo, ao interior mais secreto de sua sociedade
para a juntura invisível que sóida suas diversas-relagóes sociais* num
todo •susceptível de se reproduzir numa sociedade. O que se apre­
senta á sua consciencia e aparece sob os tragos e atributos da floresta,
é de fato essa juntura invisível rio “interior próximo e ao mesmo
tempo longínquo” de sua sociedade. E é sobre essa juntura, ou seja,

80
sobre eles mesmos, sobre essas condigóes políticas e ideológicas da
reprodugáo de sua sociedade que eles agem, quando repelem para
mais longe e atenuam ao máximo as contradigóes e tensóes que sao
necessariamente engendradas pela própria estrutura de suas relagóes
sociais, unindo-se para cumprir os gestos rituais, a caga, os festins,
as dangas e os cantos que celebram a floresta, máe distribuidora de
todos os bens e pai protetor de todos os males, guardia vigilante da
boa conduta dos pigmeus, de seus filhos e de seu futuro.
Ao mesmo tempo, teoría e prática voltadas em diregáo ao meio
onde se suturam suas relagóes sociais num todo que deve se repro-
duzir como tal, a religiáo é ao mesmo tempo forma de apresentagáo
e de presenga dessa sutura ampliada de urna forma de agáo sobre ela,
representagao e agáo que sao tais que, no momento em que ela se
apresenta á consciencia e se oferece á agáo, essa sutura torna-se objeto
de desconhecimento teórico e objetivo ilusorio da agáo prática. Pre­
sente e dissimulada ao mesmo tempo em seu modo de apresentagáo,
a articulagáo invisível das relagóes sociais, seu fundo e forma interio­
res, torna-se o meio onde o homem se aliena, onde as relagóes reais
entre os homens e entre as coisas se apresentam ao contrário,
fetichistas.
‘ Terminaremos aqui, no limiar do que poderia ser a teoría mar-
xista da religiáo e da prática simbólica, a demonstragáo das possibi-
lidades teóricas do método que propomos para explorar as relagóes
entre economia, sociedade e historia, para colocar em evidencia e
reconstruir os fundamentos, formas e canais da cáusalidade, da
determinagáo em última instancia que exerceram ou exercem, através
do sistema de coergóes que engendram e que condicionam sua re­
produgáo, os diversos modos de produgáo que se desenvolverán! ou
se desenvolvem na historia.
Chegamos ássim a um ponto onde sáo abolidas as distingóes e
oposigóes entre antropología e historia, um lugar onde náo há mais
possibilidade de se fechar sobre si, de constituir dominio autónomo,
tornando fetiche a análise das relagóes e dos sistemas económicos 51.
Náo é mais possível que encontré lugar, na perspectiva marxista onde
nos situamos, o que’ se entende comumente por antropología, seja
“formalista” ou “substantivada”. A tarefa de descobrir e de recons­
truir pelo pensamiento os modos de produgáo que se desenvolveram
ou que se desenvolvem na historia é outra coisa, é mais que consti­
tuir urna antropología económica ou outra disciplina que receba um

51. A obra de C. Meillassoux, Arithropologie écnomique des Gouro de


Cote d’Ivoire op. cit., é um exemplo dessas tentativas que deixam de lado a
análise aprofundada das relagóes de parentesco, representacóes e práticas re­
ligiosas.

81
apelo dos komens, faz ouvir sua voz por meio das flautas sagradas
que penetram no acampamento transportadas pelos jovens.
Nos dóis casos, o ladrao e o homem adormecido, romperam a
solidariedade interna do grupo e ameagaram suas condigoes de re-
producao reais e imaginárias (coergao 2 ). Nos dois casos, o culpado
é abandonado sozinho e sem armas na floresta, onde nao tarda a
morrer, a menos que o bando que o exilou volte a procurá-lo. É,
portanto, á floresta que está confiada a tarefa de sancionar; como
última palavra, as violagoes maiores das regras de reprodugao social
do bando. Realmente, o bando, que praticamente decretou a morte
do culpado, faz com qufe tudo se passe como se fosse a floresta que o
tivesse punido. Estamos aqui na presenga do processo de fetichizagáo
das relagSes sociais, da inversáo no sentido das causas e efeitos, pro­
cesso que voltaremós a tratar quando analisarmós as práticas religio­
sas dos Mbuti do culto á floresta.
No conflito entre os bandos, a violencia é igualmente evitada,
e todos os observadores assinalaram como fato digno de nota a au­
sencia da guerra entre os pigmeus. Quando um bando obtém caga em
territorio de um outro bando, envía urna parte da caga abatida aos
membros do bando que ocupa esse territorio e o conflito é regulado
por esse compromisso e essa divisáo. Por que a guerra foi eliminada
da prática política dos Mbuti? Porque ela propicia oposicSes que
tendem a cristalizar os grupos sobre fronteiras rígidas, a excluir
outros grupos do uso de um territorio e dos recursos que oferece; a
enriquecer ou depauperar os grupos vencedores ou vencidos e a
romper os frágeis equilibrios necessários á reprodugao de cada bando
e da sociedade como um todo. A guerra é, portanto, incompatível
com as coergoes 1, 2 e 3 do modo de produgáo tomados um de cada
vez, separadamente, e ñas suas relagoes recíprocas. Pelas mesmas
razoes, explica-se a ausencia da prática da bruxaria entre os Mbuti,
pois a bruxaria supoe relacoes de supersti.gao, medo e odio entre
individuos e grupos e impede o bom entendimento, a cooperagáo
coletiva e continua dos membros do bando. Isso nos levaría muito
longe, mas seria preciso comparar os capadores Mbuti com os agri­
cultores bantos, seus vizinhos que, ao contrário dos primeirqs, prati-
cam a bruxaria com intensidade.
Poder-se-ia levar bem mais longe essas diversas análises para
dar conta, por exemplo, de todas as razoes que fazem com que a
existencia dos “big men” que desempenham grande autoridade indi­
vidual sobre seu grupo e a existencia de kierarqüiá política permanen­
te e centralizada sejam incompatíveis com as condigoes de reprodugao
do modo de produgáo. As possibilidades que os individuos tém a cada
momento de deixar um bando e procurar outro; a inexistencia de
relagoes de parentesco de linhagem, de urna continuidade de aliangas

76
etc., todos esses fatores convergerá para tornar impossível o acumulo
de autoridade ñas máos de um só individuo que a transmitisse, even-
toálmeüte, a seus descendentes, o que determinaría fatalmente a for-
macáo de urna hierarquia de poderes políticos em proveito de um
grupo fechado de parentesco, linhagem ou outro. A essa etapa do
percurso teórico, o que interessa é evidenciar a agáo específica de
certa instancia que se combina com a aqao das coergóes internas ao
modo de produgáo, o efeitó, por exemplo, do conteúdo e da forma
das relagoes de parentesco Mbuti e nao de linhagem sobre as formas
sóciais de autoridade que se combinam com os efeitos diretos que o
modo de produgáo pode ter sobre todas as relagoes políticas (ausencia
de guerras, fluidez de integragáo dos individuos aos bandos etc.).
Estamos, aqui, na presenca de complexo problema epistemológico, da
análise dos efeitos recíprocos convergentes ou divergentes e que se
adicionam ou se limitam reciprocamente, de todas as instancias urnas
sobre as outras sobre a base de sua relagáo específica, de sua
articulacao geral determinada, em última análise, pelo modo de pro­
dugáo. E essa análise é absolutamente necessária desde que se deseje
explicar o conteúdo, a forma e a fungáo da religiáo dos Mbuti que
domina sua ideología e sua prática simbólica.
Desta vez devemos nos restringir a alusoes no limite do decifrá-
vel entre os Mbuti: a prática religiosa aparece sob a forma do culto
da floresta. Essa prática é cotidiana e se encontra presente em todas
as suas atividades: de manhá, na saída para a caca; á noite, na volta,
antes do momento da divisáo da caga etc. Circunstancias mais excep-
cionais na vida dos individuos ou dos bandos, tais como nascimento,
puberdade das filhas e morte, dáo lugar a rituais dentre os quais os
mais importantes sáo o festival elima, pela puberdade das filhas e
a grande festa molimo, pela morte de adulto- respeitado. Em caso
de epidemias, de repeticáo de caca mal sucedida e de acidentes graves,
o bando faz os “pequeños molimo”. Em todas estas circunstancias
cotidianas -ou excepcionais da vida individual e coletiva, o Mbuti
dirige-se á floresta e lhe dedica um culto, quer dizer, danca e, sobre­
todo, canta em sua honra.
A floresta, para os Mbuti, é “TUDO” 48; é o conjunto de todos
os seres animados e inanimados que se encontram, e essa realidade
superior aos bandos locáis e aos individuáis existe como pessoa,
divindade, á qual nos dirigimos em termos qúe designam, as vezes,
pai, máe, amigo e mesmo amante. A floresta isola' e protege os
aldeóes bantos, oferece com prodigalidade sua riqueza em caca e mel,
expulsa a doenga, pune os culpados. Ela é a vida. A morte chega aos
homens e aos seres vivos porque a floresta “dormiu” e urge “acordá-46

46. C. Turnbull, op. cit., págs. 251-253.

77
de sua reprodugao, é proceder epistemologicamente.de modo a fazer
aparecer a causalidade estrutural da economía sobre a sociedade e,
ao mesmo tempo, a estrutura geral específica dessa sociedade, sua
lógica de conjunto, mesmo que essa causalidade da economía, essa
estrutura geral da sociedade e essa lógica de conjunto específico nao
sejam jamais'íenómenos diretamente observáveis como tais, mas fatos
que devem ser reconstruidos pelo pensamento e pela prática científica.
A prova da “verdade” dessa reconslrucao reside apenas na capacidade
que oferece de explicar todos os fatos observados, e de propor novas
questóes ao pesquisador que trata deles 39, questoes que exigirao no­
vas pesquisas e novos procedimentos para que as respostas sejam
encontradas. Este é, precisamente, o movimento do processo e do
progresso do conhecimento científico.
Encontramo-nos agora á altura de dar conta, ou seja, de mostrar,
a partir da evidencia e análise do sistema de coergóes, a necessidade
de todos os fatos importantes observados e consignados ñas obras de
Schebesta e de Turnbull.
A partir da coergño de dispersao, explica-se a constituigao de
territórios distintos40 e, a partir da de fluxo, de “nao fechamento”
dos bandos, explica-se a inexistencia de direitos exclusivos dos ban­
dos sobre seu territorio 41. O que é. invariável nao é a composigáo
interna dos bandos, mas a existencia de urna relagao estável entre
os bandos, portanto, de urna relagao qué se reproduz e permite a
reprodugao de cada um desses bandos. O que podemos explicar aqui
é a razao da forma e do coníeúdo dessas relagóes sociais de proprie-
dade e o uso desse recurso fundamental, que é o territorio de caga
e coleta, essa porcao da natúreza erigida em “depósito primitivo de
víveres” e em “laboratorio de meios de produgao” (M arx).
O que colocamos em evidencia é o fundamento das regías e das
leis usuais de apropriagáo e uso da natúreza no processo de produgao.
Evidenciar o fundamento exterior á consciencia do sistema das nor­
mas conscientes da prática social dos agentes de produgao que operam
rto interior de um modo de produgao determinado é um passo funda­
mental do método de Marx, habitualmente negligenciado ou carica­
turizado pelos marxistas. A esse respeito, estamos de acordo com
certas análisés críticas de C. Bettelheim sobre a confusao que reinou

39. N ós nos permitiremos fazer uso de urna correspondencia que manti-


vemos há dez meses com C. Turnbull e que possibilitóu esclarecer problemas
que nao havia proposto ou desenvolvido anteriormente' em.,.'suas obras publi­
cadas, principalmente no que concerne as relagóes de parentesco, niobilidade
entre os bandos, cacadores de arco etc. Agradecemos publicamente a C. Tum-
bull, tanto por sua paciencia, quanto, por sua cooperaqáo.
40. C. Turnbull, op. cit., pág. 149.
41. Ibid., pág. 174.

72
na teoría e na prática dos economistas e dos dirigentes dos países
socialistas entre aspecto jurídico e conteúdo do real das relacóes
de produgao 42.
A esfera do “jurídico” ultrapassa em muito o dominio das nor­
mas de acáo dos individuos e grupos em relagao a seu territorio de
caga e coleta e a seus meios de produgao, mas nao podemos nos
retardar sobre esse ponto, e analisaremos rápidamente os efeitos es-
truturais dó modo de produgao sobre as relagóes de parentesco dos
Mbuti. Ai, também, os fatos e as normas estáo de acordo com a
estrutura do modo de produgao e com as coergóes que ele impóe,
particularmente o “nao fechamento” dos bandos, a manutengáo de
urna estrutura de fluxo entre eles. A terminología do parentesco
insiste, antes de mais nada, sobre as diferengas das geragóes e sobre
as diferengas dos sexos, o que reproduz a forma de cooperagao no
processo de produgao (coergao 2 ). Mas, sobretudo se se analisar os
aspectos da aliariga, constata-s¿ que a preferencia por casamentos em
bandos longínquos e a proibigáo de se casar no bando de onde provém
a máe e a máe do pai sao normas positivas e negativas de acordo com
a coergao 3, pois interditam o “fechamento” dos grupos e sua consti-
tuigáo em unidades fechadas; trocando mulheres de maneira regular
e orientada, já que tomando a mulher do bando donde provém minha
mae ou minha avó, eu REPRODUZIRIA o casamento de meu pai
e/ou de meu avó e reproduziria as relagóes anteriores e velhas tor­
nando, portanto, PERMANENTES as relagóes entre os bandos, li­
gados a cada geragao em virtude da troca de mulheres necessária
para a reprodugao da sociedade e de cada bando como tal.
Além disso, interditando ao mesmo tempo o casamento em ban­
dos vizinhos de territorios adjacentes, torna-se aínda impossível a
constituigáo de bandos fechados sobre si mesmos (coergao 3).
As coergóes 1 e 3 agem, portanto, sobre as modalidades de
: alianga e, ao mesmo tempo, explicam o fato de que o casamento seja,
sobretudo, um caso de troca entre familias nucleares e individuos 43,
o que. preserva a estrutura fluida dos bandos; ao mesmo tempo, isso
explica que o bando intervém apenas para regular a residencia do
novo casal, o que'tem grande importancia, pois é somente depois do
casamento que o jpvem recebe urna rede fabricada pela máe e pelo
tio materno e participa efetivamente como cagador, portanto, como
agente completo da produgao para a reprodugao de um bando (coer-
gáo 2) 44. Ao mesmo tempo, a relativa “fraqueza” do controle coleti-

42. C. Bettelheim, Calcul éconorriique et formes de propríeté, Maspero,


Páris, 1969.
43. C. Turnbull, op. cit., pág. 110.
4 4 1 Idem, pág. 141.

73
do, tratando dos mitos dos indios da América, de um lado fez apare­
cer com precisáo minuciosa todos os elementos da realidade ecoló­
gica, económica e social que sao neles transpostos e que fazem desses
mitos o pensamento de homens que vivem em relagóes materiais e
sociais determinadas; e, de outro, evidenciou a presenga e o íuncio-
namento no ámago desse modo de pensamento social, de urna lógica
formal da analogia; ou seja, da atividade do pensamento humano que
raciocina sobre o mundo e organiza o conteúdo da experiencia da
natureza e da sociedade ñas formas simbólicas da metáfora e da
metomínia.
De fato, Levi-Strauss — e aínda que recusasse essa interpreta-
gao — reuniu sobre a expressáo única do “pensamento selvagem”
duplo conteúdo: um referido á natureza, ou seja, as capacidades for­
máis do pensamento, de raciocinar por analogia e, mais geralmente,
por eqúivaléncia, ao “pensamento em estádo selvagem”, “expressáo
direta da estrutura do espirito e, sem dúvida, do cérebro” 34; outro,
referido ao “pensamento dos selvagens”, portanto ao pensamento de
homens vivos em sociedades que praticam a caga, a ,pesca, a colheita
de mel, á agricultura da mandioca ou do milho, organizados em ban­
dos ou tribos. Mas, o que permaneced ausente e impensado no fim
de.sse imenso esforgo teórico foi a análise da articulagáo da forma
e conteúdo do pensamento em estado selvagem e do pensamento dos
selvagens, assim como as fungoes sociais dessas representagoes e das
práticas simbólicas que as acompanham, as transformagóes' dessas
fungoes e desse conteúdo e as condigóes dessa transformagáo. Em
definitivo, o que existe como vazio no pensamento, ou seja, como
objeto a pensar que permanece fora do pensamento, é a análise das
formas e dos fundamentos da “fetichizagáo” das relagóes sociais,
análise que poucos marxistas jamais tentaram e da qual, entretanto,
depende nao só a explicagao científica das instancias políticas e reli­
giosas em geral, mas antes de tudo a explicagao das condigóes e
formas de aparigáo das sociedades hierarqúizadas, das sociedades de
castas ou de classes. E é precisamente para realizar essa tárefa com­
plexa que supóe a combinagáo de práticas teóricas múltiplas, que a
hipótese de Marx de determinagáo em última instancia das formas
e evolugáo das sociedades e dos modos de pensamento pelas condi­
góes de produgáo e repródugáo da vida material deve servir de hipó­
tese central:
“A própria historia da religiao, se faz abstragáo dessa base ma­
terial, perde o critério. É, com efeito, mais fácil encontrar pela análise
de conteúdo o núcleo terrestre das concepgóes nebulosas sobre a

34. C. Levi-Strauss, L e Totem ism e aujourd’hui, PUF, 1962, pág. 130.

68
religiao, do que fazer ver por caminho inverso como as condigóes
reais da vida se revestem pouco a pouco de forma etérea” 33.
Esperamos ter demonstrado que, apesar, das aparéncias e afir-
magóes contraditórias, o estruturalismo e o funcionalismo se dirigem
a essa hipótese central, quando se esforgam por penetrar mais pro­
fundamente na lógica das sociedades que analisam3536.
Chegamos ao final desses estudos críticos, e diante de nós se
distingue um caminho que conduz a outras partes e qüe nasceu além
ou aquém do funcionalismo e do estruturalismo, fora de seus lim ite.-;
A outras' partes quer dizer em diregao á possibilidade de fazer apa­
recer e estudar “a agáo das estruturas” sociais urnas sobre as outras
e á possibilidade de pensar as relagóes de causalidade estrutural entre
os diversos modos de produgao que apareceram na historia e as
diversas formas de organizagao social. Para concluir, nao nos limi­
taremos somente a designar e apontar este caminho, mas pretendemos
dar urna idéia mais crítica do tipo de resultados aos quais ele conduz.
Resumiremos, para isso, alguns pontos de longo estudo ainda inédito
que consagramos ao modo de produgao e á organizagao social dos
pigmeus Mbutj do Congo, a partir dos trabalhos de qualidade e
densidade excepcionais de Colín Turnbull. Esse resumo nao faz jus
á riqueza e á complexidade dos fatos, mas é suficiente ao nosso ob­
jetivo, para dar idéia dos resultados que obtivemos. Esses resultados,
em cada etapa, foram apresentados a Colin Turnbull, e este declarou-
se profundamente de acordo com eles 37.
Os pigmeus Mbuti vivem no interior de um eco-sistema genera­
lizado de tipo simples38, a floresta equatorial do Congo, e praticam
a caga e a coleta. Utilizam o arco e a flecha para caga, e esta é cons­
tituida, principalmente, de diversas variedades de antílopes e, por
vezes, de elefantes. As mulheres colhem cogumelos, tubérculos e ou­
tras plantas selvagens, e contribuem com mais da metade dos recursos
alimentares. O mel é recolhido urna vez por ano, e sua colheita acar-
35. K. Marx, Le Capital, t. I, sect. 4, chap. 15, Ed. Sociales, t. II, pág. 59,
nota 2.
36. É de admirar a desenvoltura com que Edmund Leach escreveu em
sua obra, Les Systemes P o litiq u es... (op. cit., pág. 170), depois de haver
demonstrado que a análise das relagóes de propriedade era “of the utmost
importante” para seu argumento geral: “Em última análise, as relagóes de
poder, nao importa em que sociedade, devem estar baseadas no controle dos
bens reais e dos recursos primários de produgao, mas essa generalizagáo nao
nos leva muito longe” (!) (Traduzido por nós, M. G.).
37. Referimo-nos aqui ao conjunto de trabalhos, livros e artigos de Colin
Turnbull e particularmenete Wayward Servants, Eyve, Spottiswoode, London,
1966.
38. Quer dizer, comportando um grande número de espécies vegetáis e
animáis que, por sua vez, comportan! um número limitado de individuos. Gf. a
comunicagáo de Dawid S. R. Harris no “Ucko and Dimbleby”, Domestication
and Exploitation of Plants and Animáis”, Duckwoorth, 1969.

69
Claude Levi-Strauss aceita como “urna lei de ordem”, “o incontestá-
vel primado das infra-estruturas” 21.
“Nao pretendemos, de maneira nenhuma, insinuar que as trans-
formacoes ideológicas engendram transformacoes sociais. Somente a
ordem inversa é verdadeira. A conceptúo que os homens fazem das
relagóes entre-natureza e cultura é funcao da maneira pela qual se
modificam suas próprias relagóes sociais ( . . . ) • Nao estudamos senao
as sombras que se perfilam no fundo da caverna” 22.
E Levi-Strauss afirma que pretendeu, através de seus trabalhos
sobre os mitos e sobre o pensamento selvagem, “contribuir” para a
teoría das superestruturas apenas esbogada por M arx23. A partir
daí, pode-se constatar que esses principios teóricos sao negados quan-
do escreve, ñas conclusóes de Du miel aux cendres com relacao á
transformacao histórica fundamental da sociedade grega antiga, que
“a mitologia desiste em favor de urna filosofía que emerge como a
condicao prévia da reflexao científica”. Levi-Strauss via nesse fato
“urna ocorréncia histórica que significa apenas que foi produzida nesse
lugar e nesse momento” 24. A historia, portanto, submetida a essa lei
de ordem que organiza toda a sociedade, fica privada de toda a ne-
cessidade, e o nascimento da filosofía e da ciencia ocidentais torna-se
simples acídente” 2526.
Claude Levi-Strauss colocou em epígrafe do “Structures Elemen­
ta le s de la Parenté” a 'frase de Tylor (1871): “A ciencia moderna
tende cada vez mais a concluir que, se existem leis em algum lugar,
devem existir leis em todas as partes; nessa medida, acha-se defini­
tivamente de acordo com o empirismo, que ve na historia urna se-
qüéncia de acontecimentos acidentais.
“Para retornar á etnología, foi um de nós — E. R. Leach — que
observou em algum lugar “que os evolucionistas jamais discutiram
detalhadamente — e muito menos observaram —r o que realmente se
produzia quando urna sociedade no estágio A se transformava numa
sociedade no estágio B\ contentavam-se em afirmar que todas as
sociedades no estágio B deviam ter, de certo modo, evoluído a partir
de sociedades no estágio A ” ZB.

21. Idem á nota 20, pág. 173.


22. Ibid., pág. 155.
23. C. Levi-Strauss, La Pensée Sauvage, op. cit., pág. 178.
24. C. Levi-Strauss, M ythologiques.... A u miel aux cendres, pág. 407.
25. Ibid., pág. 408.
26. C. Levi-Strauss, “Les Limites de la notion de structure en ethnologie”,
Seris et usages du terme structure, editado por Roger Bastide; Mouton, 1962,
pág. 45. A passagem de Leach, citada por C. Levi-Strauss acha-se em Les
Systemes Politiques. . . , op.’ cit., pág. 324.

64
Voltamos, aqui, as próprias posicoes do empirismo funcionalis-
t a 2728: “ao historiador as mudancas; ao etnólogo as estruturas”, e isso
porque as mudancas, “os processos nao sao objetos analíticos, mas
a maneira particular pela qual urna temporalidade é vivida por um
sujeito” 2S, tese em oposicáo radical á tese da lei de ordem das estru­
turas sociais e de suas transformacóes que Levi-Strauss retomou a
partir de Marx.
Como Levi-Strauss chegou até ai, ou seja, como conseguiu su­
primir e anular em sua prática principios teóricos aos quais referiu-se
explícitamente, mas que — segundo parece — se mantém inoperan­
tes? Nao iremos fazer, aqui, análise interna da obra de Levi-Strauss,
e nao pretendemos esbocar nenhuma ayaliaqáo científica. Diremos,
primeiramente, que sua obra subverteu dois dominios, a teoría do
parentesco e a teoría das ideologías, e que todo progresso nesses
dominios far-se-á com a ajuda de seus resultados, como de seus fra-
cassos. Problemas fundamentáis como o da proibigáo do incesto, da
exogamia e endogamia, do casamento de primos cruzados, das organi-
zacóes dualistas, que foram tratadas separadamente e sem éxito,
foram postos em relacáo com os outros e explicados a partir do fato
fundamental de que o casamento é urna troca, a troca de mulheres;
e que as relacóes de parentesco, antes de serem relacóes entre indivi­
duos, sao relacóes entre grupos. Distinguindo dois mecanismos pos-
síveis de troca, a troca restrita e a troca generalizada, Levi-Strauss
descobriu urna ordem num vasto conjunto de sistemas de parentesco
que pareciam ter poucas coisas em comum e que pertenciam a so­
ciedades que, na maioria das vezes, nao tinham ;tido nenhum contato
histórico. E essa ordem é urna ordem de transformacóes. Pouco a
pouco foi construido vasto quadro de Mendeleiev das “formas” dos
sistemas de parentesco, detendo-se no limiar das estruturas “comple­
xas” de parentesco, que se limitam a definir o círculo de parentes,
abandonando a mecanismos económicos ou psicológicos o encargo de
proceder á determinacáo da uniao 29.
Entretanto, a análise estrutural, aínda que nao negue a historia
nao pode incorporá-la porque, desde o inicio, separ-ou a análise das

27. A citacáo de leach-, que escreve com lucidez: “A geragáo de antro­


pólogos británicos á qual eu pertenco, proclamou orgulhosamente sua con-
vicgao de que o conhecimento da historia nao é necessário á compreensáo de
urna organizacáo social ( . . . ) . Nos, antropólogos funcionalistas, nao somos
realmente “anti-históricos” por principió; simplesmente nao sabemos como
integrar os dados históricos no quadro de nossos conceitos” (Les Systhémes
P o litiq u es..., op. cit., pág. 323).
28. C. Levi-Strauss, “Les limites de la notion de structures en ethnologie”,
op. cit., pág. 44.
29. C. Levi-Strauss, Les Structures Élémentaires de la Parenté PUF, 1949,
p. IX.

65
bens nao estao forzosamente onde os homens necessitam deles, nem-
no momento em que sao necessários. É preciso reduzi-los se sao
demasiadamente abundantes, ou produzi-los, se sao insuficientes”.
Nao nos retardaremos sobre o ilogismo de urna tese que postula
a finitude inSuperável de meios e reconhece que Cíes sao, por vezes,
abundantes. Basta assinalar á quantidade de análises concretas e
minuciosas que fazem justica a esses fantasmas ideológicos que fazem
passar por realidades, marionetes teóricos dos quais se finge nao tirar
os fios, a marionete do “homo oeconomicus”, vítima de um destino
ontológico que o deixa apenas escolhér entre a insatisfacáo nascida
da infinidade de suas necessidades ou a inadaptagño nascida de urna
superabundancia ocasional de seus meios.
Pouco a pouco, definem-se e organizam-se sob nossos olhos as
condicoes epistemológicas de urna análise científica dos diversos mo­
dos de producáo e das relacóes entre economía e sociedade. Sabemos,
agora, que urna análise desse tipo só é possível com a condigao de
explicar as estruturas da realidade, mas sem confundir, como o em­
pirismo, o real e o visível; e, na condigno de ser materialista, sem
reduzir as diversas estruturas e instancias da realidade social a epife­
nómenos das relacóes materiais dos- homens com o seu meio. Se a
antropología deve ser estrutural e materialista para ser plenamente
científica, nao de.ve ela, em definitivo, inspirar-se na obra de Levi-
Strauss, tanto ou mais que na obra de- Marx? Nesse sentido, mesmo
que Levi-Strauss tenha dedicado pequeño lugar em sua obra ao esta­
do da economía, parece-nos indispensável analisar de perto suas teses
a respeito do método de análise estrutural, e sobre as relacóes entre
econotaia e sociedade de um lado; e, de outro, entre sociedade e
historia, para avahar a importancia teórica e os iimites de seu estru-
turalismo materialista, e captar a diferenca entre seu pensamento e
o de Marx.
É preciso relembrar, inicialmente, que existem dois principios
metodológicos que sao igualmente reconhecidos pelo funcionalismo,
estrutaralismo e marxismo, como condicoes necessárias ao estado
científico dos fatos sociais. O primeiro estipula que é precisó avaliar
as relacóes sociais nao urna a urna, separadamente, mas tomando-as
em . suas relacóes recíprocas, considerando-as como totalidades que
formam'sistemas. O segundo determina que é preciso analisar esses
sistemas em sua lógica interna, antes de analisar sua génese e evolu-
gao. De certa maneira, esses dois principios opóem o pensamento
científico moderno, tanto ao evolucionismo,' comó"uo historicismo e
difusionismo do século XX, na medida em que, malgrado suas con-
cepcóes opostas sobre a evolucao das sociedades, essas doutrinas
contentam-se, freqüentemente, com urna análise superficial do fun-
cionamento real de costumes e institaicóes sociais, e consagrara o

60
essencia! de seus esforgos a pesquisar sua origem e retragar a historia
de estágios anteriores de urna evolucao puramente Conjetural da hu-
manidade. Mas, á parte esse acordo, que trata apenas da íormulacao
abstrata desses dois principios e nao das modalidades concretas de
sua prática, a oposicao é total entre o funcionalismo, por um lado,
e o estruturalismo e o marxismo, por outrb, quanto ao que se deve
entender por “estrutura social”. Para Radcliffe-Brown, Nadel, úma
estrutura social é “a ordem, o arranjo” de relacóes visíveis dos ho­
mens entre si, arranjo que nasce da complementaridade recíproca des-
sas relaqóes visíveis 15. Para os funcionalistas, urna “estrutura” é,
portanto, um “aspecto” do real, urna realidade exterior ao espirito
humano, diferentemente de Leach, para quem a estrutura é urna ordem
ideal que o espirito produz ñas coisas, reconduzindo o fluxo multi­
forme do real a representacóes simplificadas que íém lugar na reali­
dade e tém valor pragmático, permitem a ácao e a prática social16.
Para Levi-Strauss, as estruturas fazem parte da realidade; sao a
realidade, concordando neste aspecto com Radcliffe-Brown e opondo-
se ao empirismo idealista de Leach. Entretanto, para Levi-Strauss
como para Marx, as estruturas nao sao realidades diretamente visíveis
e observáveis, mas níveis da realidade que existem além das relacóes
visíveis dos homens e cujo funcionamento constituí a lógica profunda
de um sistema social, a ordem subjacente a partir da qual deve-se
explicar sua ordem aparente. Ai está o sentido da célebre fórmula
de Levi-Strauss que Leach e certos estruturalistas quiseram interpre­
tar como idealista e formalista, privilegiando a primeira frase em
detrimento da segunda:
“O principio fundamental é que a nogáo de estrutura social nao
se refere á realidade, mas aos modelos construidos em conformidade

15. Radcliffe-Brow, in D. Forde e A. R. Radcliffe-Brow (ed.) — African


Systems of Kinship and Marriage, Oxford University Press, 1950, § 8: “Os
eíementos da estrutura social sao os seres humanos”, sendo que a estrutura
social “é o arranjo de pessoas em relacóes definidas e regradas institucional­
mente”. F. Nadel, Tlie Theory of Social Structure, Cohén and West, London,
1957, Preliminaries.
16. E. Leach, Political Systems of Highland Burma, Harvard University
Press, 1954; reprinted Bell and Sons, 1964, em francés: Les Systémes Politiques
des Hautes Terres de Birmanie, Maspero, Paris, 1972, págs. 26-27. “Eu sus­
tento que em situacoss concretas (por oposicao ao modelo abstrato do soció­
logo) a estrutura social consiste em um conjunto de idéias sobre a reparticáo
do poder entre pessoas e grupos de pessoas”. Pois, referindo-se riáo mais ao
modelo dos informantes, mas ao do antropólogo, Leach, á maneira de Rad­
cliffe-Brow, declara: “ . . . pode-se falar simplesmente de estrutura social em
termos de principios de organizacáo que unificam as partes componentes do
sistema”. Para concluir, contra Radcliffe-Brow: “As estruturas que descreve
o antropólogo sao modelos que nao tém existencia sénáo enquanto construyes
lógicas de seu espirito” .

61
ó que conferé.á preparagao para a morte e consumo do gadocarác-
lerísüca cerimonial é alto valor simbólico oriundo dessas funcoes so­
ciais. Por óutro lado, o fato do cerimonial para a morte do gado
guardar, caráter de excepcionálidade em cada unidade de prodügao,
nao significa que a tótalidade do grupo nao consuma carne regular­
mente; isso porque as ocasióes cerimoniais de matar gado é dividir
a carne se repetem com muita regularidade em todas as familias.
.Mesmó o fato de os rebanhos serem freqüentemente imensos, o que
implica o risco de depauperar a erva das pastagens e degradar a
vegetagao e o solo, nao expressa somente a manifestagao do orgulho
dos proprietários e de seu apego emocional aos animáis velhos que
nao poderh resignar-se a sacrificar.
A partir do momento em que se sabe que a perda em cabepás
de gado, devida a ausencia de chuvas, pode ser, estimada anualmente
entre 10 e 15% do rebanho, como acontece entre os Dodoth de
Ugaüda, ou que a mortalidade atinge, sobretudo, os animáis jovens,
e que estes levam seis ou sete anos para atingir séu porte adulto e
próduzir vinte'vezes menos leite do que um animal leiteiro da Europa,
nao é de se admirar o grande valor atribuido ao número de cabecas
de gado e á estratégia complexa e parcimoniosa do uso da carne, do
leite e até mesmo do sangue dos animáis verificado entre os pastores.
Qüalquer pessoa que possua sessenta vacas tem maiores chances de-
enfrentar as epidemias, as secas excepcionais e de assim reproduzir
suas condigoes sociais, ou seja, condigóes materiais e políticas de-
existencia, uC Que aquela que, disp’oe apenas de um rebanho de seis
vacas.
Seria por demais exaustivo resumh 05 trabalhos significativos de
Geertz, Conklin e Rappaport consagrados ao funciCrtamento de so­
ciedades do sudoeste da Asia ou da Oceania, que para fertilizar O
solo, arrancam as ervas com enxada, queimam e espalham aS cinzas
sobre os terrenos; e as magníficas descobertas de arqueólogos como
Flannery, MacNeish etc., que, como Braidwood e Adams, esforgam-
se desde os anos cincoenta para reconstruir, minuciosamente, as con­
digóes ecológicas e económicas de existencia das populagóés da Me-
sopotámia, da Anatólia, da América Central ou dos Andes, as quais
domesticaram plantas e animais e inauguraram mudangas materiáis e
sociais fundamentáis, que conduziram ao aparecimento de sociedades
novas, baseadas em novos modos de produgao — determinaran!, por
um lado, o desaparecimentó. progressivo de sociedades paleolíticas
de cagadores-coletores e, por outro, o aparecimento de sociedades de
classe e estatais, Além disso, essas descobertas levaram ao questiona-
mento e á revisáo profunda de idéias gloriosas, tais como a da “re-
volugao neolítica” de Cbálde.

56
Entretanto, precisamos constatar os limites dos trabalhos dos
neofuncionalistas, ligados á “ecología cultural” e evidenciar sua
origem. Ela reside ñas insuficiencias radicáis de seu materialismo,
que fizeram com que concebessem de maneira “reducionista” as re­
lagóes complexas entre economía e sociedade. A diversidade das rela-
cóes de parentesco, a complexidade dás práticas ideológicas e dos
rituais nunca sao reconhecidas em toda sua importancia101. Como
declararam R. et N. Dyson-Hudson, autores de valiosos trabalhos
sobre os pastores karimonjong de Uganda, a propósito do ritual de
iniciacáo dos rapazes e de sua identificacáo com o animal que lhes é
ofertado nesta ocasiáo:
“Trata-se de elaboragóes culturáis de um fato central: o fato de
que o gado é a fonte principal da subsistencia. Em primeiro, como
em último lugar, o papel do gado na vida dos karimonjong é sempre
o de transformar a energía armazenada ñas ervas e arbustos do
território, em forma de energía fácilmente disponível para os homens”.
E, assim, juntam-se as declaragóes polémicas de Marvin Harris
que, apresentando-se voluntariamente como o líder agressivo desse
“neomaterialismo cultural”, assume a tarefa de “dessacralizar” as
vacas sagradas da India, declarando:
“Escrevi esse texto porque acredito que os aspestos exóticos,
irracionais e nao económicos do complexo do gado indiano sao
demasiadamente enfatizados, em detrimento das interpretagóes ra­
cionáis, económicas e comuns ( . . . ) ; portanto, o fato de que o tabú
sobre o consumo do boi ajuda a desencorajar o crescimento da
prodügao deste animal representa um aspecto de ajustamento ecoló­
gico que maximiza mais que minimiza o resultado em elementos
calóricos e protéicos do processo de prodügao”.
Reconhegamos ai o marxismo vulgar, o “economicismo”, que
reduz todas as relagóes sociais ao estatuto de epifenómenos que acom-
panham as relagóes económicas, e as reduzém a urna técnica de
adaptagao a um meio natural e biológico. A racionalidade secreta das
relagóes sociais se reduz a simples vantagens adaptativas, cujo con-
teúdo, como já assinalava Levi-Strauss com relagáo ao funcionalismo
de Malinowski, freqüentemente se resolve em simples truismosn .
Desde que urna sociedade exista, ela funciona; e é banalidade afirmar
que urna variável é .adaptativa, porque ela tem fungao necessária num
sistema. Segundo os próprios termos de Marshall Sahlins:
“Provar que certo trago ou dispositivo cultural tem valor econó­
mico positivo, nao é explicagao, adequada de sua existencia e nem

10. Com a excecáo notável de Roy Rappaport.


11. .Levi-Stráuss, Anthropologie Structurale, Pión, 1958, pág. 17.

57
- É necessário ressaltar que, se o principio da identidade dos con­
trarios implica a fortiori o da unidade dos contrários, a recíproca nao
é verdadeira. Nao existe, portanto, razáo alguma de se livrar do pri-
meiro ou de defendé-lo, quando se defende e se retoma o segundo.
•Infelizmente, a confusao freqüente que os marxistas fazem entre
esses dois principios permite e reforca a recusa dos funcionalistas de
procurar e descobrir contradicoes nos sistemas que analisam. Nao
acontece o mesmo entre os funcionalistas que se declaram partidários
de urna abordagem cibernética dos fatos sociais?
Opondo-se á tradicional “antropología cultural” americana, na
qual criticavam o idealismo e o psicologismo/ certo número de antro­
pólogos e arqueólogos dos Estados Unidos, nos anos cincoenta, de-
claram-se partidários de nova abordagem teórica que denominaram
“a ecología cultural”. Retomando e reexaminando os frabalhos mais
antigos de Leslie White e sobretudo os de Julián Steward, ressaltaram
a necessidade e urgencia de estudar cuidadosamente as bases materiais
das sociedades e de reinterpretar todas as culturas humanas, encaran­
do-as como processos científicos de adaptacao a determinados meios.
No plano metodológico, reafirmaram que cada sociedade deveria ser
analisada como totalidade, mas igualmente como subsistema de urna
totalidade mais ampia, o eco-sistema particular, no interior do qual
populares humanas e populacóes animáis e vegetáis coexisten!, num
sistema de interrelagóes biológicas e energéticas. Para analisar as
condicóes de funcionamento e de reproducáo desses eco-sistemas e
reconstruir as- estruturas dos fluxos de energía, os mecanismos de
auto-regulacáo, de “feed-back” etc., apelaram para a teoría dos sis­
temas e para a teoría da comunicacáo. O funcionalismo, como um
todo, parece renovado em sua orientacáo — doravante explícitamente
materialista e nao simplesmente empirista — , nos seus métodos —-
pelo uso da teoría dos sistemas — , e em suas possibilidades teóricas,
que permitem — parece — retomar com mais seguranca o problema
da comparacáo das sociedades (problema que os funcionalistas só
podiam abordar com má vontade ou desdém), e mesmo ir além e
tentar construir novo esquema — desta vez, mujtilinear — de evolü-
cáo das sociedades (problema completamente abandonado desde os
anátemas de Boas, Goldenweiser e Malinówski contra o evolucionis­
mo). Nao estamos nós, doravante, no universo teórico do marxismo
(senao no próprio Marx), tal como é geralmente entendido e prati-
cado?
Nao, nao estamos, e vamos demonstrar por qué. Mas, inicial-
mente, vamos tentar evidenciar a riqueza da avaliagao provisoria
dessas tentativas, das quais vamos sugerir apenas a natureza e a im­
portancia. Nao obstante, os limites do empreendimenfo já sao per-
feitamente visíveis e esta'o determinados pela estreiteza do matéria-

52
lismo desses pesquisadores e, particularmente, posto que se trata do
eixo de seus esforgos, pelas graves insuficiencias de sua concepcáo.
da natureza das relagóes económicas e dos efeitos da economia na
organizagao das sociedades. O mais comum é certa matérialismo
“redutor”, no sentido em que reduz a economia á tecnología e as
trocas biológicas e energéticas dos homens com a natureza que os
cerca, reduzindo o significado das relagóes de parentesco óu das
relacoes político-religiosas, principalmente, aos meios funcionalmente
necessários a essa adaptacao bio-ecológica que oferecem diversas
vantagens seletivas. Voltaremos a esses pontos porém, primeiro, tare­
mos breve enumeracáo das descobertas positivas obtidas rápidamente,
a partir do instante em que se iniciou, sistemáticamente, o estudo
deíalHado ’e aspectos essenciais do funcionamento das sociedades
primitivas Uu antigas que foram, com raras e brilhantes excecóes —
tais como ém Malinowski, Firth e Evans-Pritchard — dogmáticamen­
te negligenciadas e mal trabalhadas. •. 'L t L
Os esforgos levaram ao estudo preciso do meio ecológico, as
condigóes concretas da produgao, aos regimes alimentares e equili­
brios energéticos de certos cagadores-coletores (Richard Lee, De
Vore, Steward), dos indios da costa noroeste (Suttles); das socie­
dades pastoris do este da África (Gulliver, Deshler, Dyson-Hudson)
e de sociedades de agricultores com técnicas de queimadas da Ocea-
nia ou do sudoeste asiático (Roy Rappaport, Vayda, Geertz8).
Pcuco a póuco, as descobertas se acumularam, e seu ritmo desmoro­
nen as teses clássicas da antropología cultural que figuravam com
ique nos dicionários de idéias oriundas dos mánuais para estu-
tí ites e público erudito. Descobriu-se que eram suficientes quatro
h¡ i, ou quase isso, de trabalho diário entre os cagadores-cblétores
do deserto do Kalahari ou da floresta do Congo, para que os mem-
bros produtivos dessas sociedades produzissem o bastante para satis-
fazer as necessidades socialmente reconhecidas de seus grupos. Diante
desses fatos, a visao de cagadores primitivos, vivendo quase na penu­
ria e nao dispondo de tempo livre para criar urna cultura complexa
e progredir em diregáo á civilizagao, desmoronava-se rápidamente; e
Marshall Sahlins, - revendo antigas idéias, vai proclamar que erám
essas as únicas “sociedades da abundancia” nunca mencionadas,
posto que as necessidades sociais estavam todas satisfeitas e os meios
para satisfazé-lás nao eram raros. Um preconceito muito forte, re­
montando ao neolítico e oriundo de necessidades ideológicas dos
povos agricultores para justificar sua expansáo em detrimento dos
cagadores-coletores estavam assim “desmascarado”. .

8. A bibliografía do conjunto desses trabalhos encontra-se no artigo de


Robert McNetting, já citado, “The Ecological Approach in Cultural Study”.

' • 53
Assim, mesmo que aínda hoje certos discípulos de Murdoek, a
partir de urna amostra mais vasta de 577 sociedades ao invés de
250 e gragas a urna análise multifatorial, descubram correlagdes signi­
ficativas entre evolugao de modos de produgao e aparecimento de
alguns sistemas de parentesco 6, a prática empirista dos antropólogos
consolidou até aqui a idéia corrente desde o comego do século XX,
de que a historia é1únicamente “a sucessao de eventos ‘acidentais’
que fazem com que urna sociedade seja o que ela é” ; tese a partir
da qual insurgiram-se homens como Evans-Pritchard que, entretanto,
aceitavam o essencial das teses funcionalistas 7.
De fato, o funcionalismo veio completar e, até certp. ponto,
contradizet o empirismo, pois, se para o empirismo as estruturas
sociais se coñfundem com as relagóes sociais visíveis, e. se essas re-
lagóes visíveis sao apreendidas como variáveis exteriores urnas as
outras e sein ligagao estatisticamente significativa, como urna socie­
dade pode existir, ou seja, existir como -um todo e reproduzir-se
como tal? O funcionalismo supóe, portanto, que as diversas relagóes
sociais visíveis em urna sociedade formam um sistema, ou seja, que
existe entre elas urna interdependencia funcional que lhes permite
existir como um todo “integrado” que tende a se reproduzir como
tal, como urna sociedade. E é porque certas “partes” desse todo
tém por fungao “integrar” as outras partes num único todo que os
subsistemas “particulares” (parentesco, religiáo, economía) desem-
penham um papel de “instituigao geral”, confórme as sociedades.
Ninguém Contestará que isso • representa progresso em relagao
ao empirismo abstrato e assogiacionista que, ao recusar o estudo das
relagóes sociais urna a urna separadamente, chegou, ao contrário,
a tomá-las em conjunto, em relagóes recíprocas, supondo que for-
massem um sistema de relagóes. Mas, além desse principio, que se

6. Harold E. Driver e Kart F. Schuessler, “Correlational Analysis of Mur-


dock’s 1957 Ethnographic Sample”, American Anthrópologist, 1967, vol. 69,
n.° 3. “For the World as a whole, it is apparent that descent has shifted fro.m
matrilineal to patrilineal (sometimes with a bilateral stage iri between) more
often than it has changed in the opposite direction. The 19th century evolutio-
nists were partiy right about the major sequence of change but their reasons
for the change were tho wrong ones. It is th evolution o f technology and
government that favors patrilineal over matrilineal descent, not the recognition
of biological fatherhood and the abandonment of promiscuity or “group mar-
riage”. However, after societies have attained an advanced level of technology
and political organization, unilineal descent groups of all kinds tend to disappear,
asvthey have done in most of Europe and its 'derivafion cultures” . Op. cit,,
pág. 345. Os trabalhos de Driver e Schuessler prolongam os resultados que
David Aberle pro pos em “Matrilineal Descent in Cross-Cultural Perspective”
— Matrilineal Kinship, Schneider et Gough, University of California Press,
1961, págs. 655-727.
7 . Evans-Pritchard, A nthropologie Sociale, Payot, 1971, chap, 3, pág. 79.

48
tornou condigáo necessária do progresso científico, o funcionalismo
spfre dé insuficiencias teóricas radicáis. Já mostramos que, confun-
dindo 'estrutura social é relagóes sociais visíveis, a análise fuhciona-
lista condenou-se a ficar prisioneira. das apareadas do sístéma social’
que estuda e privou-se de descobrir a lógica subjacente e invisível
desses sistemas, e, aínda mais, as condigóes estruturais e eventuais de
seu aparecimento e desaparecimento na história. E preciso, entretan­
to, ir mais ¡onge. >
Com efeitó, dizer que o parentesco ou a instancia político-reli­
giosa desempenha papel dominante nessa ou naquela sociedade, por­
que “integra” todas as outras relagóes sociais, é explicagáo que corre
o risco de obscurecer, mais do que de esclarecer os fatos, além de
ser insuficiente. Isso porque urna instancia social só pode “integrar”
as outras, se assume em.seu próprio interior várias fungóes distintas,
articuladas urnas as outras em certa hierarquia. Na sociedade ca­
pitalista, essas fungóes sao assumidas por relagóes sociais distintas,
que aparecem como um conjunto de subsistemas específicos no interior
do sistema social. O parentesco domina a oiganizagáo social quando
nao regula apenas as relagóes de descendencia e alianga que existem
entre os grupos e sos individuos, más também regula seus díreitos
respectivos sobre os meios de producáo e os produtos do trabalho,
define as relagóes de autoridade e obediencia, dominando, portanto,
as relagóes políticas no interior dos grupos (ou entre eles) e, even­
tualmente, serve de código, de linguagem simbólica para exprimir
as relagóes dos homens entre si e com a natureza. Esse nao é o caso
dos cagadores-coletores Mbuti do Congo, onde as relagóes entre
geragóes sobrepóem-se as relagóes de parentesco. Nao é igualmente
o' ca,so dos incas, entre os quais a instancia político-religiosa funcio-
nava como relagáo de produgao, posto que, de bom ou mau grado,
as tribos indias consagravam parte de sua forga de trabalho a entreter
os deuses, os mortos e os membros vivos da classe dominante, perso­
nificados pelo inca Schinti, o filho do Sol. É preciso explicar, por­
tanto, por qüais razdes e em que condigóes, que instancia social
assume esta ou aquela fungáo, e quais as modificagóes em sua forma
e em seu mecanismo interno que implicam mudangas de fungáo.
A nosso.ver, eis aqui o problema mais importante das ciencias sociais
nos dias de hoje, tanto na antropología, sociología ou história. Mas,
no que -—- objetar-se-á —• a solugao desse problema dependería mais
particularmente da possibilidade de analisar a causalidade estrutural
da economía, posto que em definitivo —• mesmo sem que se possa
explicar o simples fato da dominancia (seja do parentesco, seja do
político-ideológico) é suficiente para contradizer e eliminar a hipótese
de Marx sobre o papel" determinante, em última instancia, da econo­
mía na historia. Esta é urna objegáo freqüente entre os funcionalistas,
também encontrada na última e importante obra de Louis Dumont

49
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44
ECONOMIAS E SOCIEDADES:
ABORBAGENS FUNCIONALISTA,
ESTRUTURALISTA E MARXISTÁ *

Maurice Godelier

Gomo ■analisar as condicóes de aparecimento e o eféito das


reláceles que os hómens travam entre si na producao material de
sua existencia sobre a lógica profunda do funcionamento e evolucao
das sociedades?
Voltamos aqui ao tema principal da primeira parte desta expo-
sigao, sabendo agora o campo de análise teórica no qual se coloca
o problema, ou seja, o campo da antropología, tal qual se constituiu
históricamente, como dominio de dois fragmentos da historia huma­
na, mal articulados e mal delimitados: as sociedades sem classes e
as sociedades “ camponesas”.
Já vimos que a nocao de causálidade estrutural da economía está
no centro do debate. Retomá-la-emos mais adiante, considerando a
forma pela qual é abordada por funcionalistas, estruturalistas e
marxistas.
Ainda que Malinowski, Firth, Evans-Pritchard e Nadel tenham
realizado obra pioneira e magistral sobre a economía das sociedades
da Oceama e das sociedades africanas, a maior parte dos funciona-
listas nao seguiu a recomendacao de Firth, que lembrou a importan­
cia dá análise rigorosa das bases económicas dessas'sociedades, visto
que “a estrutura social ( . . . ) depende estreitamente das relagóes
económicas específicas que nascem do controle dos recursos” e que
assim tornam possível urna “compreensáo mais profunda das estru-

* Godelier, M. Anthropologie et Économié. Horizon, Trajects Marxistes en


Anthropologie, Paris, Maspero, 1973, 38/82. Traducao de Édgard Assis Carvalho.

45
Esse estudo aínda nao incluiu a coleta de alimentos, a caca de
animáis, a cozinha e outros esforpos diretos gerados na subsistencia
desse povo tribal filipino. Informacoes semelhantes comepam a apa­
recer ;em relatos sobre outros agricultores primitivos, de várias partes
do mundo. A condusao é colocada de modo conservador, e mesmo
negativo: os capadores e coletores nao necessitam trabalhar durante
muito mais tempo na coleta de alimentos do que os agricultores pri­
mitivos. Extrapolando da etnografía á pré-história, pode-se dizer do
neolítico o mesmo que John Stuart Mili disse de todos os artificios
poupados de trabalho de que nunca existiu qualquer invento que
poupasse um minuto sequer de trabalho a alguém. O neolítico nao viu
nenhum melhoramento particular sobre o paleolítico na quantidade
de tempo, per capita, necessário para a produpáo de alimentos; pro-
vavelmente, com o advento da agricultura, as pessoas tivessem que
trabalhar mais. .
Também nada reforpa a crenpa de que capadores e coletores tém
pouco lazer tendo em vista suas tarefas de subsistencia. Com esse
argumento as imperfeipoes evolucionistas do paleolítico sao conm­
ínente explicadas, enquanto o neolítico é congratulado por propor­
cionar lazer. Mas, as fórmulas tradicionais devem ser mais verdadéi-
ras, se colocadas inversamente: a quantidade de trabalho (per capita)
aumenta com a evolupao da cultura e decresce a quantidade de des­
canso. Os trabalhos de subsistencia dos capadores sao característica^
mente intermitentes, dia sim, dia nao, e ao menos os modernos
capadores tendem a empregar as horas de folga em atividades tais
como dormir. Nos habitats tropicais ocupados por muitos desses ca­
padores, a coleta de plantas é mais segura do que a própria capa.
Conseqüentemente, a mulher que executa essa coleta trabalha mais
regularmente do que os homens, e providencia a maior parte da
oferta de alimentos. O trabalho do homem é realizado freqüentemente.
Por outro lado, é mais errático e imprevisível; se os homens sentem
. falta de lazer, sentem-no mais no sentido que o século das luzes dava
a essa palavra do que literalmente. •Quando Condorcet atribuiu a
condipáo atrasada dos capadores a falta desse. “tipo de lazeres que
permitissem enriquecer seu entendimento por novas associapóes
idéias”, também reconheceu que a economía era um “círculo neces­
sário de extrema atividade e ocio total”. Aparentemente, o que o
capador necessitava era eje um filósofo aristócrata.
Os capadores e coletores mantém opimáo otimista de sua coñ-
dipáo económica, apesar das dificuldades que enfrentara algumas
vezes. Pode ser que algumas vezes enfrentem dificuldades por causa
da opiniáo otimista que tém de seu estado económico.
Conseqüentemente, ao sustentar que sua economía é afluente
nao negó que certos capadores passem por momentos difíceis. Alguns

40
acham “quase incóncebível um homem morrer de fome ou até mesmo
nao satisfázer a fome .por mais de um dois dias” (Woodbum, 1968,
p. 52 )¿ Mas, outros, especialmente aqueles bastante periféricos,
dispersos em pequeños grupos em meios ambientes muito inclementes,
periódicamente estao. expostos a extremos climáticos que impédem
a viagem ou acesso á caga. Eles sofrem embora tályéz só parcial­
mente — a escassez, afetando mais certas familias inlobilizadas do
que a sociedade como um todo (cf. Gusinde, 1961, pp; 306-307).
Aínda assim, admitindo essa vulnerabilidadé, e permitindo urna
comparagao com os cagadores modernos mais pobremente situados,
seria difícil provar que a privagao é característica distintiva de caga­
dores e coletores. A falta de comida nao é indicativo próprio desse
modo de producao, oposto a outros; nao caracteriza os cagadores e
coletores como grupo á parte ou etapa da evolugao geral. Lowie
pergunta:
“Mas, que dizer dos criadores numa simples planicie cuja manu-
tengño é periódicamente posta em perigo por pestes que, a exemplo
de algúns bandos Iapoes do séc. XIX, foram obrigados a voltar á
pesca? Que interesSa aos primitivos camponeses, que limpam e lavam
a térra sem compensagáo, exaurém um lote de térra e passam para
‘outro, e sao ameagados pela fome em cada período de seca? Estarao
eles com um controle muito melhor desses infortúnios causados por
condigoes naturais do que os povos cagadores e coletores?” (1938,
p. 286).
Acima de tudo, que dizer do mundo atual? Diz-se que a metade
da humanidade vai dormir com fome todas as noites. Durante a velha
Idade da Pedra, essa fragáo deveria ser muito menor. Esta 'é, sem
precedentes, a era da fome. Hoje,. numa época de imenso poder
tecnológico, a inanigáo é instituigáo. Invertamos outra fórmula vene-
ráveí; a quantidade de fome cresce relativa e absolutamente de
acordo com a evolugao da cultura.
Esse paradoxo é minha questáo principal. Os cagadores e cole-
torés, por forga das circunstancias, tém um padráo de vida objetiva­
mente baixo. Mas, vistos de dentro de seus objetivos e dado seus
meios de produgáo, todas .as necessidades materiais das pessoás
podem ser fácilmente satisfeitas. A evolugao da economía, portanto,
conheceú dois movimentos contraditóriós: enriquecimento, ao mesmo
tempo que empobrecimento, apropriagao em relagáo á natureza e
expropriagio em-relagáo ao homem. Naturalmente, o aspecto pro-
gressista é tecnológico. Ele tem sido louvado de varias formas: como
aumento na quantidade de produtos e servigos necessários; cresci-
mento -na quantidade de energía domesticada a servigo da cultura,
aumento de produtividade, aumento da divisáo de trabalho e maior

41
social, a importantes imperativos de posse em comum. A experiencia
de LeJeune confirma outro aspecto, mas também sugere um terceiro,
ou seja, os montagnais tém sua própria explicadlo, nao se preocupam
com que o amanhá possa lhes trazer porque trará mais da mesma
coisa; “outra festa”. Qualquer que seja ó valor de outras interpreta-
cóes, tal autoconfianga deve ser mostrada como a base da suposta
prodigalidade dos capadores. E mais: devem ter alguma base obje­
tiva, pOis se os caladores e coletores realmente preferissem a gluto-
naria ao bom senso económico, nunca teriam vivido para se 'tornaren!
profetas dessa nova religiáo. '
Urna segunda tendencia complementar e secundária é simples-
mente o lado negativo da prodigalidade: o malogro em guardar os
excedentes de comida, em desenvolver a estocagem de alimentos.
Parece que para muitos caladores e coletores a armazenagem de
alimentos nao pode ser técnicamente provada como impossível, nem
é -certo que o povo nao tenha. consciencia dessa possibilidade (cf.
Woodburn, 1968, p. 53). Apesar disso, deve-se investigar o que
impede a tentativa no momento. Gusinde respondeu a.éssa questáo;
e para os yahgan encontrou a resposta no mesmo otimismo justi-
ficável. A armazenagem seria “supérflua”.
Porque durante todo o ano e quase sem limites, o mar coloca
todo tipo de animal á disposicao do homem que caca e da mulher
que coleta. Urna tempestade ou acídenles privaráo a familia dessas
coisas por poucos dias apenas. Geralmente, ninguém precisa contar
com o perigo da fome e todos, em quase todos os lugares, encontram
o que necessitám em abundancia. Porque entao alguém teria que se
preocupar com comida no futuro!.. . Básicamente, nossos fueguinos
sabem que nao necessitám preocupar-se com o futuro; por isso, nao
armazenam alimentos. Ano após ano, podem aguardar o próximo dia,
livres de preocupagóes. . . (Gusinde, 1961, pp. 336-339).
A explicacao de Gusinde, até onde chega, é boa, mas provavel-
mente incompleta. Um cálculo económico mais complexo e perspicaz
parece em jogo realizado através de urna aritmética social extrema­
mente simples. As vantagens de armazenar comida devem ser pesadas
contra os retornos decrescentes da coleta, dentro dos limites de local
determinado. Para os caladores, a tendencia incontrolável para dimi­
nuir a capacidadé local de transporte está no fundo de tudo: urna
condigno básica de sua produgáo e a causa principal de seu movimen-
to. A desvantagem potencial da armazenagem...é justamente envolver
a contradicáo entre riqueza e mobilidade. (EÍa fixária a aldeia em urna
área que rápidamente vería esgotada as fóntes naturais de alimentos.
Assim sendo, imobilizados pelos estoques acumulados, o povo sofre-
ria, em comparacao com pequeños capadores e coletores de qualquer
outro lugar, onde a natureza, por assim dizer, fez a própria arma-

36
zenagem possivelmente de alimentos mais desejáveis em diversidade e
em quantidade do que os que os homens possam guardar. Más, esse
belo cálculo — de qualquer modo simbólicamente impossívél (cf.
Codere, 1968) — seria resolvido em oposicao binária muito mais
simples, colocada em termos sociais, como “amor” e “ocio”. Como
observa Richard Lee (1969, p. 75), a atividade técnicamente neutra
de acumulagáo ou armazenagem de alimentos é moralmente algo
mais: “entesouramento”. O cacador eficiente que acumularía ali­
mentos tem sucesso as próprias custas ou entáo os cede á custa de seu
esforco (supérfluo). Como foi demonstrado, urna tentativa de estocar
alimentos deve somente reduzir o rendimento total de um bando de
caladores, pois as pessoas sem recursos se contentara em ficar na
aldeia e viver com as sobras obtidas pelos mais prudentes. A arma­
zenagem de alimentos, portanto, deve ser técnicamente factível, mas
económicamente indesejável, e socialmente' inexeqüível.
Se a armazenagem de alimentos permanece limitada entre os
caladores, sua confianza económica, nascida dos tempos normáis
quando todas as necessidades do povo sao fácilmente sátisfeitas,
torna-se condicáo permanente, levando-os a rir durante períodos que
poriam á prova até mesmo urna alma de jesuíta e que — como
advertem os indios — o preocuparían! tanto que ficaria doente:
Vi-os sofrer com alegría em sua miséria e seus trabalhos. . .
Vi-me junto cóm eles ameacado por grande sofrimento e disseram-
me: “Algumas vezes ficaremos dois ou tres dias sem comer, devido
á falta de comida; coragem, Chihiné, deixe sua alma ser forte para
aturar tristeza e sofrimento; evite ficar triste, de outro modo ficará
doénte; veja como nao paramos de sorrir, embora tenhanios pouco
que comer” (LeJeune, 1897, p. 283; cf. Needham, 1954, p. 230).

REPENSANDO OS POYOS CALADORES E COLETORES

Constantemente, sob pressao de carencia e, aínda assim, capazes


de atender a todas as necessidades através de suas viagens, nao faltam
em suas vidas excitacao ou prazer (Smyth, 1878, vol. 1, p. 123).
Claramente, a economia dos povos caladores e coletores deve
ser reavaliada, tanto quanto á sua realizacao e suas limitacóes. A fallía
processual da sabedqria recebida foi a de interpretar a estrutura
económica através das circunstancias materiais, deduzindo a dificul-
dade absoluta de tal vida a partir de sua pobreza absoluta.
Mas, o esquema cultural sempre improvisa urna relagao dialética
com a natureza. A cultura, sem escapar de pressóes ecológicas as
nega de forma que de urna só vez o sistema traz a marca das condi-

37
torna a vida mais fácil possível; e deve parecer até mesmo pregui-
goso ao forasteiro” (1925, p. 116)18.
Enguanto isso, na África, os hadza desfrutam de um bem-estar
comparável a este, com encargo de ocupagóes de subsistencia nao
mais pesado, em horas diárias, que o dos bosquímanos ou o dos abo-
rígines australianos (Woodburn, 1968). Vivendo em área de “excep­
cional abundancia” de animáis, e oferta regular de vegetáis (ñas
proximidades do Lago Eyasi), os hadza parecem muito mais interes-
sados nos jogos de sorte do que na sorte de cacar. Especialmente,
durante a longa estacáo de seca, passam a maior parte do dia jogando
consecutivamente, talvez somente para perder as pontas de metal de
suas flechas, que necessitam em outras horas para as grandes cagadas.
Dé qualquer modo, muitos homens estáo “completamente desprepa­
rados e incapázes de cagar grandes animáis mesmo que possuam as
flechas necessárias”. Woodburn- diz que sao apenas pequeña minoria
cagadores ativos de grandes animáis, e se as mulheres sao mais assí-
duas no trabalho de coleta de alimentos, aínda assim o fazem em
compasso vagaroso, e sem trabalho prolongado (cf. p. 51; Woodburn,
1966). Os hadza,. apesar dessa indiferenga, e de cooperagáo econó­
mica limitada, “nao obstante conseguem comida suficiente sem esfor-
go demasiado”. Woodburn apresenta essa “aproximagáo bastante
tosca” do trabalho de subsistencia necessário: “Durante ó ano, de
maneira geral, provavelmente a média de menos de duas horas diárias
é gasta na obtengao de comida” (Woodburn, 1968, p. 54).
Ó interessante é que os hadza, instruidos pela vida e nao pela
antropología, rejeitam a revólugáo neolítica de forma a proteger seu
lazer. Muito embora rodeados de agricultores, até recentemente,
recusavam-se a intervir na agricultura, “principalmente em solos que
envolvessem muito trabalho” 19. Nisso, sao parecidos com os bosquí­
manos, que responderá á questáo neolítica com outra: “Por que plan­
taríamos, se existem tantas nozes mongomongo no. mundo?” (Lee,"
1968, p. 3 3 ). Além disso, Woodburn teve a ímpressao, embora aínda
inconsistente, de que os hadza, na verdade, gastam menos energía, e
provavelmente menos tempo em obter alimentos do que seiis vizinhos
agricultores da África Oriental (1968, p. 54) 20. Mudando de conti­
18. Basedow continua a desculpar a inatividade da populapáo pelo fato
de comerem excessivamente, e explica esse excesso pelos períodos em que passa
tome, que ele esclarece como decorréncia das secas que a Australia herdou,
cujos efeitos tém sido exacerbados pela exploracáo do país pelo homem branco.
'1 9 . Essa frase aparece em um estudo de Woodburn, distribuido no sim­
posio de Wenner-Gren sobre “O Homem Cacádor” ( “MaiT’the Hunter” ), em­
bora tenha sido repetida só elípticamente na obra publicada (1968, p. 55).
Espero nao ter cometido em indiscricáo ou em incorrecao ao citá-la aqui.
20. “A agricultura é, de fato, ó primeiro exemplo de trabalho servil na
historia da humanidade. D e acordo com a tradicao bíblica, Caim, o primeiro
criminoso, é agricultor” (Lafargue, 1911, 1883, p. 11 n .). Deve-se notar tam-

32
nente, mas nao de conteúdo, o desempenho económico vacilante de
povos capadores da América do Sul também poderia parecer “dispo-
sipao natural” incurável ao forasteiro europeu:
. . . os yamana nao sao capazes de txabalhar diariamente e
continuamente, para desapontamento de múitos fazendeiros e em-
pregadores europeus, para quem trabalham freqüentemente, Seu
trabalho se dá por altos e baixos, e nesses esforpos ocasionáis podem
desenvolver energía considerável durante certo tempo. Entretanto,
depois disso, demonstram desejar longo descanso por. um período
incalculável de tempo, durante o qual permanecem sem fazer^nada,
sem demonstrar estarem muito fatigados... É obvio que repetidas
irregularidades desse tipo fazem o empregador europeu desanimar,
mas o indígena nao pode ajudá-lo nisso, É esta sua disposipao natural
(Gusinde, 1961, p. 7) 21.
Por ñm, a atitude dos capadores diante da introdupao da agri­
cultura, leva-nos a alguns fatos sobre o modo de se relacionarem com
a coleta de alimentos. Mais urna vez, nos aventuramos aqui. No do­
minio interno da economía, urna regiao algumas vezes subjetiva e
sempre difícil de ser entendida na qual, além do mais, os povos capa­
dores parecem deliberadamente sobrecarregar nossa compreensao
com costumes táo curiosos que provocam a interpretapao extrema de
que ou esses povos sao tolos ou realmente nada tém com que se
preocupar. O primeiro caso seria dedupao verdadeira e lógica, partin-
do da negligencia dos capadores, com base na premissa de que sua
condipáo económica é crítica. Por outro lado, se a vida é ganha com
facilidade, se é possível normalmente ter-se supesso, entño a aparente
imprudencia dos povos nao pode aparecer como tal por muito tempo.
Karl Polanyi, falando sobre o desenvolvimento, sem paralelo, da eco­
nomía de mercado, e de sua institucionalizapáo da escassez,. disse que
“nossa dependencia animal de comida foi desnudada, e permitiu-se
ao temor da inanipao correr livremente. Nossa escravidao humilhante

bém que os vizinhos agricultores tanto dos bosquímanos quanto dos hadza
rápidamente recorrem á vida mais dependente de capa e coleta quando vem
a seca e a ameaca de fome (Woodburn, 1958, p. 54; Lee, 1968 pp, 39-40).
21, A aversáo comum ao trabalho prolongado, recentemente manifestada
por populacóes primitivas recentes, subordinadas ao trabalho pelos europeus,
urna aversáo nao restrita aos ex-cacadores, deve alertar a antropología para o
fato de que a economía tradicional conheceu somente objetivos modestos, al­
canzados em limites tal que permitissem um ocio extraordinário, um conside­
rável “alivio do mero problema de ganhar a vida”.
A economía dos cazadores pode ser comumente subestimada por sua pre­
sumida inabilidade em manter a produzco especializada. Cf. Sharp, 1934-35,
p. 37; Radcliffe-Brown, 1948, p. 43; Spencer, 1959, pp. 155, 196,-251; Lothrup,
1928, p. 71; Steward, 1938, p. 44. Se nao há espécializazáo (da economía), é
claro que é por causa da ausencia de “mercado”, nao por causa da falta dé
tempo.

33
Quadro 1 .4 — RESUMO D A JORNADA D E TRABALHO DIARIA DOS
BOSQUIMANOS DOBE (LEE, 1969)

* Número Homens/ Homens/ D ias de Indice de tra­


médio de dias dias trabalho balho neces-
Semana pessoas no de con­ de semanal sário p / sub­
grupo sumo ** trabalho adulto sistencia ***
1 25,6 179 37 2,3 ¿l
(6-12 julho) (23-29)
2 28,3 198 22 1,2 ,11
(13-19 julho) (23-37)
3 34,3 240 42 1,9 ,18
(20-26 julho)
4 35,6 249 77 3,2 ,31
(27 julho-2 agosto)
Total de 4 semanas 30,9 866 178 2,2 ,21

Total adaptado § 31,8 668 156 2,5 ,23

* Número de pessoas em media e inetrvalo. Há considerável flutuagáo de


populacao a curto prazo nos aldeiamentos dos bosquímanos.
** Para dar um total combinado de dias de aprovisionamento necessários,
por semana, incluí- tanto criancas como adultos.
*** Este índice foi construido por Lee, para exemplificar a relacáo entre
o consumo e o trabalho necessárió para produzi-lo: S = W /C ; onde W = nú­
mero de homéns/dias de trabalho, e C = homens/dias de consumo. Invertida,
a fórmula nos dirá quantas pessoas poderiam ser sustentadas por um dia de
trabalho de subsistencia.
§ A semana 2 foi excluida dos cálculos fináis, porque o investigador con-
tribuiu com um pouco de comida, durante dois dias.

mente durante urna semana e entño nao cagar mais nada durante
duas ou'trés semanas. Dado que a caga é atividade imprevisível e
sujeita a controle mágico, os cagadores passam, algumas vezes, por
um período de má sorte, e entao param de cagar durante um mes ou
mais. Durante essés períodos, as atividades principáis dos homens sao
as visitas, os divertimentos e especialmente a danga (1968, p. 37).
A alimentagao diária per capita produzida pelos bosquímanos
dobe era de 2.140 calorías. Entretanto, levando.. em consideragáo
ó peso do corpo, as atividades habituáis e a composigáo por sexo e
idade da populagao de dobe, Lee estima que tal populagao exigía
somente 1.975 calorías pe capita. Provavélménte, parte do exce­
dente em alimentos era dado aos cachorros, que comem o que Ihes
deixam as pessoas. “Pode ser . tirada urna conclusáo, a de que os
bosquímanos nao levam urna existencia abaixo dos padroes mínimos,
ameagados pela fome, como comumente se sup5e” (1969, p. 73).

28
Tomados isoladamente, os relatos7sobre Arnhem Land e sobre os
bosquímanos representam um ataque desconcertante, mas nao decisivo
sobre a posigáo teórica comumente aceita. Artificial na construcao,
o estado anterior, em particular, é sensatamente considerado equivo­
cado. Mas, o testemunho da expedicao de Arnhem Land é, em muitos
pontos, repetido em observacóes feitas em outros lugares da Austrália,
bem como em outros lugares do mundo dos povos cagadores-coleto-
res. Muitas evidencias sobre os australianos datam do sáculo XIX,
algumas de observadores argutos, cuidadosos em fazer exceqfio ao
aborígine em contato com o europeu, pois seu suprimento de ali­
mentos é restrito, e em muitos casos sao impedidos de usar as nas-
centes de água, que sao os centros de melhores terrenos para a caga”
(Spencer e Gillen, 1899, p. 50).
A situagao é clara também para as .áreas bem irrigadas do su­
deste da Austrália. Lá os aborígines tinham o privilégio de oferta de
peixe táo abundante e fácil que um colonizador dos tempos vitorianos,
dos anos 1840, mostrava curiosidade em saber “como aquele povo
sábio conseguía passar o tempo antes que meu destacamento chegasse
e os ensinasse a fumar” (Curr, 1965, p. 109). Pelo menos, o ato
de fumar resolveu o problema económico — nao ter nada para fazer:
“urna vez adquirido o novo hábito, tudo se tornou fácil; suas horas
de folga eram divididas entre usar o cachimbo para seus verdadeiros
fins e pedir meu fumo”. Um pouco mais seriamente, o velho coloniza­
dor procurou estimar a quantidade de tempo gasto na caga e ña
coleta pelo povo do entao distrito de Porto Phillip. As mulheres
ficavam fora da aldeia, cerca de seis horas por dia, em expedigoes de
coleta, “metade do tempo gasto ociosamente á sombra das árvores ou
em volta do fogo” ; os homens saíam para a caga depois das mulheres
e retomavam quase ao mesmo tempo que estas (p. 118). Curr achou
a comida assim obtida de “qualidade indiferente”, embora de “fácil
obteugao” ; as seis horas do dia “suficientes” para aquele propósito;
na verdade, o país “poderia ter sustentado duas vezes o número de
negros que nele encontramos” (p. 120). Comentários muito seme­
ntantes foram feitos por outro veterano, Clement Hodgkinson, ao
escrever sobre ambiente análogo, no nordeste de New South Wales.
Poucos minutos de pesca proporcionarían! o suficiente para alimentar
“toda a tribo” (Hodgkinson, 1845, p. 223; cf. Hiatt, 1965, pp. 103-
104). “Na verdade, por toda a extensáo do país, ao longo da costa
oriental, os negros nunca sofreram muito a falta de comida, como
compadecidamente supunham alguns escritores” (Hodgkinson, 1845,
p. 227).
Mas, as populagóes que ocupavam as partes mais férteis da
Austrália, notadamente no sudeste, náo foram incorporadas ao es-

29
descrito como “totalmente exausto” (McCaríhy e McArthur, 1960,
op: 150 ss.). Os habitantes de Arnhem Land tampouco coñsideram
a tarefa de subsistencia onerosa. “Certamente nao a consi deravam
como trábalho ingrato a ser realizado o mais depressa possível, nem
mal necessário a ser adiado o máximo possível (McArthur, 1960, p.
9 2 )” ri. Neste sentido, é também em relágño á sua subutiiizacao dos
recursos económicos, é preciso notar que os- pagadores de Arnhem
Land nao pareciam contentes com urna “existencia simples”, Gomo
outros australianos (cf. Worsley, 1961, p. 173), eles tornaram-se
insatisfeitós com urna alimentagao invariável; parte de tempo parece
ter sido gasto na procura da diversidade, alérn da mera’, suficiencia
(McCarthy e McArthur, 1960, p. 192).
Ém todo caso, a dieta dos pagadores de Arnhem Land era ade-
quada — de acordo-com os padróes do “National Research Council
of America” . O consumo médio diário, per capita, em Hemple Bay
era de 2.160 calorías (em utu período de somente quatro dias de ob-
servagao), é em Fish-Creek, 2.130 calorías (11 dias). O quadro 1.1
indica o principal consumó diário de varios nutrientes, calculados por
McArthur, em percentagéns de alimentos aprovados e recomendados
pela NRCA.

Quadro 1.1 — CONSUMO MÉDIO DIÁRIO EM PORCENTAGENS DAS


. QUANTIDADES RECOM ENDADAS (McARTHUR, 1960) ;

Ácido
Calorías Proteínas Ferro Calcio ascórbico
Hemple Bay .116 444 80 128 394
Fish-Creek 104 544 33 355 Al

Finalmente, o que diz o estudo de Arnhem Land sobre a famosa


questño do lazer? Parece que os cagadores e coletores podém per-
mitíf-se liberagóes incríveis das tarefas económicas. O grupo de
Fish-Creek mantinha virtualmente, em tempo integral, um artesáo,
um homem de 35 ou 40 anos, ouja éspeciahdade real parece, todavia,.
ter sido a vadiagem. i .
Ele nao ia cagar com qs homens, mas um dia obteve'boa
quantidade de peixes. Ás vezés, entráva no 'mato para conseguir
favos de mel. Wilira era um artesáo perito que^ consertava langas e
atiradores de langa; fazia cachimbos e gaitas de sopro, e hábilmente
colocava cabos em machadinhas de pedra (a pedidos); além dessas

14. Á o menos, alguns australianos, os Yir-Yiront, nao fazem diferenciá-


gáo lingüística entre trabalhar e brincar (Sharp, 1958, p. 6 ).

24
ocupacoes, gastava a maior parte do tempo conversando, comendb e
dormindo (McCarthy e McArthur, 1960, p. 148).
Wilira nao era totalmente excepcional. Muito do tempo poupa-
do pelos cacadores de Arnhem Land era, literalmente, tempo perdido,
consumido em descansar e dormir (ver os quadros 1 .2 e 1 .3 ). A
principal alternativa ao trabalho era dormir.

Quadro 1 .2 — HORAS DIARIAS DE DESCANSO E SONO, GRUPO DE


FISH-CREEK (INFORMACOES DE McARTHY E McARTHUR, 1960)

Dia $ Média 2 Média


1 , 2 ’15” 2 ’45”
2 1’30” l ’O”
3 maior parte do dia
4 intermitente (com interíupcoes)
5 intermitente e a maior parte da tarde
6 maior parte do dia
7 várias horas
8 2 ’0” 2 ’0’
9 50” 50”
10 período da tarde
11 período da tarde
12 intermitente, á tarde
13 —

14 3’15” 3’15”

Quadro 1. 3 — HORAS DIARIAS DE DESCANSO E SONO, GRUPO DE


HEMPLE BAY (INFORMACOES DE McARTHY E McARTHUR, 1960)

Dia $ Média 2 Média


1 — 45”
2 maior parte do dia 2 ’45”
3 l ’O” —

4 intermitente intermitente
5 , — - --
6 intermitente ■ intermitente
7 intermitente intermitente

Além do tempo (a maior parte entre as atividades definidas e a


de cozinha) gasto em relacoes com os outros, conversas, mexericos,
algümas horas do dia eram reservadas para o descanso e o sonó. Se
os homens ficavam na aldeia, em geral descansavam cerca de urna
hora e urna e meia depois do almoco e algumas vezes até mais.
Também após retornarem da pesca ou da caga, tiravam urna soneca,
logo depois de chegar ou enquanto a caga estava sendo cozida. Em

25
ver-se livre de um grande inimigo, nossos selvagens (mdntagnaisf)
sao feliz.es, porque os dois tiranos que propiciara o inferno e a
tortura para muitos de nossos europeus, nao reinam em suas grandes
florestas — quero dizer, a ambipao e a avareza.. . como se conten­
tan! com urna vida simples, ñenhum deles se entrega ao demonio
para adquirir riqueza” (LeJeune, 1897, p. 231).
Somos inclinados a coneeber os capadores e coletores como
pobres porque nao possuem nada; talvez seja melhor, por essa razao,
pensar neles como livres. “Shas po.sses materiais, extremamente limi­
tadas, livram-nos de toda preocupapao com necessidades diárias e
permitem que usufruam da vida” (Gusinde, 1961, p. 1).

SUBSISTENCIA
Quando Herskovits escreveu sua Antropología Económica
(1958), era urna prática antropológica comum considerar os bosquí-
manos ou os nativos australianos como “exemplo clássico de um povo
cujos recursos económicos sao os mais escassos”, táo precariamente
situados que “ somente urna atividade muito intensa torna possível a
sobrevivencia”. Hoje, a compreensáo “clássica” pode ser fácilmente
rebatida — com base principalmente em testemunhos sobre esses
dois grupos. Pode-se, em sua defesa, dizer que os capadores e cole­
tores trabalham menos do que nós; e mais do que trabalho continuo,
a coleta de alimentos é intermitente, o descanso abundante; e existe
maior quantidade de sono no tempo diário per capita/anual, do que
em qualquer outra condipao social.
Algumas das provas substanciáis sobre a Australia aparecem
em fontes .mais antigas, mas temos sorte especial de ter, atualmente,
o material quantitativo coletado pela “American Australian Scienti-
fic Expedition to Arnhem Land”, em 1948. Essas surpreendentes
informapoes, publicadas em 1960, devem provocar algumas revisoes
nos relatos australianos de há mais de um século, e talvez revisáo de
um período aínda maior do pensamento antropológico. A pesquisa
chave foi pesquisa elaborada por McCarthy e McArthur (1960) a
respeito de povos capadores e coletores, complementado pela análise
de McArthur a respeito dos efeitos nutricionais.
Os gráficos 1.1 e 1 .2 resumem as principáis análises sobre
produpao. Trata-se de rápidas observapoes obtidas durante períodos
nao cerimoniais. As anotapóés a respeito dos Fish-Creek (14 días')
sao maiores, bem como mais detalhadas do que as de Hemle Bay
(7 dias). Foi anotado somente o trabalho de adultos,-é o que posso
f. Mdntagnais-. familia de indios americanos, esseñcialmente da regiáo do
Canadá; sua cultura é pobre e bastante :afetada pelo habitat muito desfavorável;
sao melhores cacadores de caribu do que de peixes; os chefes tém pouca auto-
ridade e vivem em simples bandos, sem qualquer unidade política (N . do T .).

20
dizer. Os diagramas incorporam inform ales sobre cagas, coleta de
vegetáis, preparagao de comida e reparo.de armas tabuladas pelos
etnógrafos. A populagáo de ambas as aldeias era de' nativos australia­
nos que habitavam espagos livres, vivendo fora de missoes ou de
outros povoamentos durante ó período da pesquisa embora esta nao
fosse necessariamente sua condigao permanente ou habitual13.

Gráfico 1 .1 : Horas diarias ñas atividades de coleta de alimentos: Grupo de


Fish-Creek (McCarthy e McArthur, 1960).

13. Fish-Creek era urna aldeia no interior da regiáo ocidental de Arnhem


Land, formada por seis adultos do sexo masculino e tres do sexo feminino.
Hemple Bay era urna localidad; costeira em Groote Eylandt; havia quatro
adultos do sexo masculino e quatro do sexo feminino e cinco jovens e crianzas.
Fish-Creek foi pesquisada no final da estagáo' da seca, quando o suprimento
em alimentos era baixo; a caca do canguru era atividade recompensadora,
embora os animáis se tornassem crescentemente cautelosos sob a espreita cons­
tante. Em Hemple Bay, os alimentos vegetáis éram abundantes, a pesca no geral
era boa e variada, comparando-a com óutras aldeias costeiras visitadas pela
expedicáo. Os recursos em Hemple Bay eram mais ricos do que em Fish-Creek.
Em Hemple Bay, o tempo mais longo usado na busca de alimentos deve re-
fletir, entáo, o sustento de cinco crianzas. Por outro lado, o grupo de Fish-
Creek, normalmente mantinha um especialista em tempo integral, e parte da
díferenca ém horas trabalhadas deve representar urna variacáo normal litoral/
interior. Ñas cacadas em regióes interioranas, boas .coisas se expressam fre-
qüentemente em grandes fardos; por isso, um dia cíe trabalho pode permitir
a subsistencia de dois dias. Talvez um regime de pesca-coleta produza réndi-
mentos menores, porém mais constantes, impondo esforcos mais longos e mais
regulares. 1

21
pelo menos suficientes ; para as necessidades da populagáo. . ; Os
KUN.G poderiam sempre obter mais ovos de ema, conchas como
contas para , serem usadas, ou comerciadas;, mas buscam somente ó
suficiente para cada mulher ter urna dúzia ou mais de conchas como
recipientes para ág u a — tudo o que ela pode carregar — e iim io m
número de ornamentos feitós de contas. Em sua vida de caga/coleta
nómade, viajando de urna fonte de alimento á outra, através das
estagóes, sempre indo de um lado para outro, entre a comida e a
água, levam criangas e perténces. Coín bastante; quantidade da inaio-
ria dos materiais, para substituir os ártefatos quando necessário, os
KUNG nao desenvolverán! meios de armazenagem permanente, e
nao necessitaram ou nao desejaram sobrecarregar-se com excedentes
ou duplicatas. Nao desejam nem mesmo levar um exemplar de cada
coisa. Eles empres.tarh o que nao possuem. Com essa facilidade, nao
entesourariam, e a acumulagáo de objetos nao fica asSociadá ao
status (Marshall, 1961, pp. 243-244, grifo m eu)”.
A análise da produgáo dos povos cagadores-coletores é vanta-
josamente dividida em duas esferas, como fez a. Sra. Marshall. Comi­
da e água sao cerlamente “excegóes importantes”, que melhor seriam
examinadas separadamente. Quanto ao resto, o setor de nao subsis­
tencia, o que aqui foi dito sobre os bosquímanos aplicarse de modo
geral e em detalhes aos cagadores de Kalahari ao Labrador - - ou á
Tierra-del-Fuego, onde o relatório de Gusinde sobre os yahgan, diz
que a aversaó desses indígenas pela posse de mais urna copia de
cada utensñio necessário, “urna indicagáo de autoconfianga”. Nossos
fueguinos, diz ele, “obtém e fazem seus implementos com' poucó es-
forgo (1961, p. 2 13)” 10. .
As necessidades do povo sao fácilmente satisfeitas na esfera dos
bens nao-alimentares. Em parte, tal “abundancia material”, depende
da facilidade de produgáo e, em parte, da simplicidade da tecnología
e da democracia da propriedade. Os produtos sao rústicos: de pedra,
osso, madeira, couro — materiais estes, que “existem em abundan­
cia á sua volta”. Como regra, nem a extragáo de matérias-primas,
nem sua elaboracáo envolvem grande esforgo. O ácesso aos recursos
naturaiS é típicamente direto — “livre acesso para qualquer tim” —
mesmo a posse das fexrameritas necessárias, sendo geral, e o conhe-
cimento das habilidades exigidas, comum. A divisao do trabalho é
igualmente simples, predominando a divisao do trabalho por sexo.
Acrescente-se o costume liberal da partilha, pelo qual os cagadores

10. Notas semelhantes de Turnbull, a respeito dos pigmeus do Congo:


“Os materiais para a fabrica9 áo de abrigos, tecidos e todos os itens da cultura
material necessária, estáo a máo em um instante” . Ele, tampouco, faz restricoes
sobre a alimentacáo: “Durante todo o ano, sém falta, há bastante fartura de
caga e alimentos de origem vegetal” (1965, p. 18).

16
sao' particularmente famosos, e todas as pessoas podem freqüente-
mente participar da píosperidade geral, tal como ela se apresenta.
Mas, naturalmente, “tal como ela se apresenta” : esta “prospe­
ridade” se apóia sobre um nivel de vida objetivamente baixó. É
crucial que quantidades normáis de bens de consumo (bem como o
número de consumidores) sejam colocadas culturalmente em lugar
modesto. Poucas pessoas sentern-se satisfeitas com um número redu-
zido de objetos fáceis de producir: escassas pegas de roupa, e habita-
góes precárias na maioria das regioes climáticas 11; mais alguns' orna­
mentos, pederneiras de reserva e várias outras coisas, como, as “pegas
de quartzo, que os doutores nativos tiram de seus pacientes” (Grey,
1841, vol. 2, p. 226); e finalmente, as sacólas de couro. ñas quais
as esposas fiéis carregam tudo isso, “a riqueza dó selvagem austra­
liano” , (p. 266).
Para a maioria dos cagadores, essa afluencia sem abundancia na
esfera dos produtos nao alimentares nao precisa ser. contestada. A
questáo mais importante é; por que eles se contentan: com tüo poucos
bens? Porque para eles se trata de urna política, “questao de princi­
pio”, como diz Gusinde (1961, p. 2), e nao questao de infortunio.
Sem desejo, nao ha falta. Mas, nao ferió os .cagadores táo pouca
exigencia de bens materiais por se encontraren: escravizados na busca
de alimentos que “exige ,a máxima energía de um número máximo
de pessoas”, nao tendo tempo ou forga para providenciar outros
confortos? Ao contrário, alguns etnógrafos provam que a busca de
alimentos , é táo bem sucedida que na metade do tempo as pessoas
parecem nao saber o que fazer. Por outro lado, a mobilidade, maior
ou menpr, segundo os casos, é condigáo para o éxito dessá tarefa,
mas sempre suficiente para depreciár rápidamente as satisfagóes de
propriedade. Na verdade, poderse dizer, a. riqueza do cagador é urna
carga. Como observa Gusinde, em sua condigáo de .vida, os bens
podem tornar-se “dolorosamente opressivos”, quanfo mais longe te-
nham que ser transportados. Certos coletores de álimentos possuem
canoas, e uns poucos possuem trenos puxádos por cachorros; mas, a
nlaioria carrega ñas costas tudo o que possúi, 'e carrega somente
aquilo que pode confortavélmente agüentar. Ou talvez, sómente ó que
as mulheres possam carregar: muitas vezes, os homens ficam livres
para reagir imediatamente á oportunidade súbita de fazer urna caga oü
á necessidade repentina de defesa. Como escreveu Owen Lattimore,
em contexto náo táo diferente, “o nómade puro é o nómade pobre”.
Mobilidade e propriedade sáo contraditórioS. ,
11. Certos povos coletores de alimentos náo muito conbecidos atualmente
por suas realizacóes em matéria de arquitetura. Parecem ter cóiístruído resi­
dencias bem sólidas antes de serem destruidas pelos europeus. Ver, Smyth,
1871, vol. 1, pp. 125-128.

17
Essa determinacáo das fontes de energía permitiu urna avaliacáo defi­
ciente do potencial termodinámico dos póvos caladores — aquele de­
senvolvido pelo corpo humano: “recursos energéticos numa media de
1,20 HP (cavalo a vapor) per capita” (1949, p. 369) — mesmo que pela
eliminapáo dp esforpo humano da iniciativa cultural do neolítico, as
pessoas parecqssem ter sido liberadas por algum artificio racional,
que poupasse trabalho (plantas e animáis domesticados).' Mas,
obviamente, a problemática de White é mal concebida. A principal
energia mecánica acessível, tanto á cultura paleolítica como á cultura
neolítica é aquela fornecida pelos seres humanos; em ambos os
casos, igualmente transformada a partir de fontes vegetáis e animáis
de forma que, com raras excecoes (o uso ocasional, direto, de ener­
gía nao, humana), a quantidade de energia aproveitada per capita/ao
ano é a mesma ñas economías paleolítica e neolítica — e regularmen­
te constante na historia humana até o advento da revolupáo indus­
trial 6. i■
Outra fonte específicamente antropológica de desagrado pelo
paleolítico desenvolve-se na pesquisa de campo, e na observacáo
européia de capadores e coletores, como os nativos australianos, os
bosquímanos, os o n a b e os yahganc. Tal contexto etnográfico tende
a distorcer, de forma dupla, nosso entendfmento da economía capado­
ra-colé tora.
Primeiro, permite oportunidades singulares para a ingenuidade.
O ambiente remoto e exótico que se tornou o teatro cultural de
modernos capadores tem um efeito pouco favorável sobre os europeus
para a avaliapao de sua condipáo por estes últimos. Embora o deserto
de Kalahari ou australiano nao tenha importancia para a agricultura
ou para experiencia européia cotidianá, íornou-se fonte de curiosidade

6. A falha evidente da lei evolucionista de White é o uso da medida per


capita. As sociedades neolíticas, na maior parte, utilizam a energia em quanti­
dade total bem maiór do que as comunidades pré-agrícolas, em virtude de
maior energia humana liberada, sustentada pela domesticagáo. Entretanto,
esse'aumento global rio produto social, nao é necessariamente afetado por um
aumento na produtividade do trabalho, o que, segundo White, também ocorreu
na revolugáo neolítica. Informacdes etnológicas, agora disponíveis (ver texto
abaixo), sugerem a possibilidade de que regimes agrícolas primitivos nao sejam
mais eficientes, term,odinamicamente, do que os de caga e coleta — ou seja,
em energia “por unidade de trabalho huiriano” . D a mesma forma, a arqueología
dos últimos anos passou a privilegiar a estabilidade dos povoamentos em vez
da pr-odutividade do trabalho como explicacáo do avanco neolítico (cf. Braid-
wood e Wiley, 1962), "
b . O na, povo nómade, cagador e cóletor, que nos anos 60 estava prati-
camente extinto na Terra-do-Fogo, devido as incursóes dé europeus (N. do T.).
c . Yahgan, habitantes da Terra-do-Fogo; os indios Yahgan vivem rio ar-
quipélago Fuegian, especialmente na regiáo do Canal do Bigle; vivem da pesca,
da caga de focas e lontras (N. do T.).

12
para o observador incauto “como alguém pode viver num lugar como
esse”. A conclusño de que os nativos costumam somente ter existencia
simples, é prontamente reforjada por sua dieta incrivelmente variada
(cf. Herskovits, 1958, citado acima). Normalmente, incluindo obje­
tos julgados repulsivos e nao comestíveis pelos europeus, a cozinha
local presta-se á crenca de que o povo está á beira da morte. Natu­
ralmente, tal conclusao é encontrada com maior freqüéncia em rela-r
tos mais antigos do que nos recentes, empublicagóes de exploradores
e missionários do que em monografías de antropólogos; mas, pre­
cisamente porque os relatónos de exploradores sao mais antigos e
mais restritos á condicño do abórígine, reserva-se-lhes certó respeito.
Obviamente, tal respeito tem que ser concedido com discricáo.
Deveria ser dada maior atencáo a um homem como Sir George Grey
(1841), cujas expedigóes nos anos de 1830 incluíram alguns dos
distritos mais pobres da Austrália Ócidental, mas cuja rigorosa obser-
vagáo do povo do lugar obrigou-o a destruir as comunicagóes de
seus colegas justamente sobre o desespero económico. É erro muito
comum, escreveu Grey, supor que os nativos da Austrália “possuem
poucos meios de subsistencia, ou sao muitas vezes pressionados pela
taita de comida”. Os erros de viajantes, nesse assunto, sao muitos e
“quase ridículos” : Em seus artigos, lamentam que os infortunados
aborígines sejam obrigados, pela tome, a alimentar-se de certos tipos
de comida que encontram próximas de suas cabanas; considerando
que, em muitos momentos, os artigos citados sao justamente os que
os nativos mais apreciam e que, na verdade, nao sao deficientes em
sabor e nem em qualidades nutritivas. Para exprimir com clareza “a
ignoráncia que prevaleceu a respeito dos hábitos e costumes desse
povo em estado selvagem”, Grey langa mao de um exemplo digno
de nota, urna citagao de seu colega, o explorador capitáo Sturt que,
além de encontrar um grupo de aborígines engajados na coleta de
grandes quantidades de “goma mimosa”, deduziu que “as desgraga-
das criaturas estavam reduzidas á miséria; sendo incapazes de pro­
curar qualquer outro alimento, eram obrigadas a coletar aquela
mucilaginosa”. Sir George observa que a goma em questño é o
artigo alimenticio favorito na regiáo; e na época de colheita propor­
ciona a oportunidade de grande número de pessoas se reunirem e
acamparem, o que, em outras circunstáncias, nao poderiam fazer.
Concluí ele: y '
“De modo geral, os nativos -vivem bem; em alguns distritos pode
ocorrer deficiencia de alimentos em determinados períodos dó ano,
mas se esse for o caso, os distritos sao abandonados. Entretanto, é
completamehie impossível a um viajante ou a um nativo de outro
local, julg'ar se um distrito proporciona ou nao alimentos em abundan­
cia. . . Em seu próprio distrito, o nativo situa-se diferentemente: ele

13
Há dúas formas possíveis de afluencia. As necessidades podem
ser “fácilmente satisfeitas”, seja produzindo muito, seja desejando pou-
co. A concepcao-vulgar, de Galbraiih, constrói hipóteses apropriadas
particularmente as economías de mercado: as necessidades dos homens
sao grandes, para nao dizer infinitas, enquanto seus meios sao limi­
tados, embora possam ser aperfeicoados: assim, a lacuna entre meios
e fins pode ser diminuida pela produtividade industrial, ao menos para
que os produtos ou bens indispensáveis se tornem abundantes. Mas,
há também, urna concepcáo Zen da riqueza, partindo de premissas
üin pouco diferente das nossas: que as necessidades humana mate-
nais sao finitas e poucas, e os meios técnicos invariáveis mas, no
conjunto, adequados. Adotando-se a estratégia Zen, podé-se usüfruir
de abundáncia material sem paralelo — com baixo padrao de'vida.
, \ Pensó eu que isso descreve os capadores. E ' ajuda a explicar
alguns de seus comportamentos económicos mais curiosos: sua “prodi-
galídade”, por exemplo — a inclinaqáo para consumirem de urna só
vez todos os estoques disponíveis, como se lhes fossem dados. Livres
da obsessao de escassez do mercado, as propensóes da economía dos
capadores talvez se fundem mais consistentemente na abundáncia do
que as de nossa economía. ..Desttut de Tracy, aínda que possa ter sido
“o burgués doutrinário exagerado, de boa rapa”, no mínimo corrabora
a afírmapao de Marx, de que “em napoes pobres o povo nao tem
necessidades” , enquanto em napóes ricas, “ele é- geralmente pobre”.
Com isso nao sé quer negar que urna economía pré-agrícola fun­
cione sob sérias limitapoes, mas sómente insistir com base nos dados
sobre capadores e coletóres atuais que, na maioria das vezés, há
adaptapao bem sucedida. Depois de examinar os dados retornarei as
réais diñculdades da economia dos capadores-coletores nao correta-
mente especiñcadas ñas formulapóes correntes sobre a pobreza
paleolítica.

FONTES DE CONCEPCOES ERRONEAS

“Mera economia de subsistencia”, “lazer limitado, salvo em


circunstancias excepcionais”, “busca incessante .de comida”, recursos
naturais “pobres e relativamente incertos”, “ ausencia de excedente
económico”, “máximo de energía de um máximo de pessoas” — isto
é, a opiniáo media antropológica'sobre capa e coleta.
Os aborígenes australianos sao exemplo . clássico de um povo,
cujas riquezas económicas sao mais escassas. Em muitos lugares, seu
habitat é até mais austero do que o dos bosquímanos a, embora isso,
a. Bosquímanos, capadores nómades da África do Snl, que vivem no de­
serto de Kalahari; sao de pequeña estatura e pele amarelada (N- do T.).

8
possivelmente, nao seja tao correto para o Norte . .. Um boto exemplo
é a tabulagao dos géneros alimenticios extraídos pelos aborígines
da regiáo norte-ocidental/centrál de Queensland. . . Nessa lista, a va-
riedade que aparece é impressionante, mas nos podemos enganar,
pensando que variedade indica abundáncia, porque a.quaritidade utili-
zável de cada elemento que ela contém é tao pequeña que somente
a utilizapáo mais intensiva torna possível a sobrevivencia (Herskovitz,
198, pp. 68-69).
Ou entáo, novamente sobre os póvos capadores, na América
do Sul:
Os capadores e coletores nómades, mal sátisfazem as necessidades
mínimas de subsistencia e, muitas vezes, estao abaixo. do limite
mínimo. Isso se reflete na baixa densidade populacional, havendo
urna pessoa-para cada dez ou vinte milhás- quadradas. Deslocando-se
constantemente em busca de comida, obviamente faltam-lhes horas
de lazer para atividades nao ligadas á subsistencia, e podem transportar
muito pouco do que porventura fabriquera em momentos de folga.
Para eles, produpáo adequadá significava sobrevivencia física; e rara­
mente tinham tempo ou produtos excedéntes (Steward e Fáron, 1959,
p. 60; cf. Clark, 1953, p. 27f; Haury, 1962, p. 113; Hoebel, 1958,
p. 188; Redfield, 1953, p. 5; White, 1959).
Mas, o amaldipoado ponto de vista tradicional a respeito do
dilema dqs povos capadores é também pré-antropológico e extra-antro­
pológico, ao mesmo tempo histórico e relativo ao contexto económico
mais ampio no qual opera a antropología. Remonta á -era em que
Adam Smith escreveu ou a urna era em que ainda ninguém escrevia 1.
Provavel mente, foi um dos primeiros preconceitos neolíticos, urna apre-
ciapáo ideológica da capacidade dos capadores de explorar as riquezas
da térra, apropriada á tarefa histórica de privá-los dessas riquezas.
Devfemos té-lo herdado dos descendentes de Jacob, que “espalha-
ram-se pelo mundo, do Ocidente ao Oriente e ao Norte”, sem pre-
juízo de Esaú, .que era filho mais velho e hábil capador, mas que
numa cena famosa foi privado do direito de primogenitura.
Opinióes correntes incorretas sobre a economia de capa e' coleta,
porém nao precisam ser atribuidas ao etnocentrismo neolítico. O 'eg o ­
centrismo burgés terá as mesinas atitudes. A economia de empresas,
urna eterna armadilha ideológica da qual a antropología económica
tem que escapar, promoverá as mesmas conclusóes obscuras sobre a
vida dos capadores.
Será mesmo tao paradoxal sustentar que os povos capadores
possuam urna economia afluente, apesar de sua pobreza absoluta?

1. A o menos á época em que Lucrécius escreveu (Harris, 1968, pp. 26-27).

9
\

trole dos mais velhos seja efeito necessário da dominancia da redis-


tribuigáo complexa. “Assim sendo, mesmo que os mais velhos numa
sociedade de ünhagem desempenhem pouco ou nenhum trabalho pro-
dutivo, eles nao constituem necessariamente urna classe. A explorado,
no sentido da apropriacao do trabalho excedente por urna classe, nao
pode ser deduzida da posicao de coordenagáo e ordenaqáo dos mais
velhos” 3.
Embora o esforgo teórico de Meillassoux, Terray e Rey lhes
reserve posigao de destaque no cenário da moderna Antropología, é
M. Godelier que se incumbe de elaborar sistematizagao mais glóbali-
zante e reflexaó mais crítica dos fundamentos da Antropología Eco­
nómica.
Reconhecendo que a Antropología firmou-se como o conheci-
mento dos povos bárbaros e selvagens, ao passo que a Historia como
o conhecimento da civilizagáq, a dicotomía Antropologia/História
expressa o caráter etnocéntrico da sociedade ocidental que, em seu
movimento expansionista, capturou as sociedades “diferentes”, des-
membrou as etnias para submeté-las á explorágao e dominagao im­
perialistas.
É nesse sentido que, no plano teórico, a Antropología se caracte­
riza pela acumulagáo de fetiches ideológicos e pela ambigüidade.
“Fetichizagao e ambigüidade sao, portanto, produtos complementares
de urna contradigáo inerente aó trabalho do antropólogo, urna vez
que esse se voíta ao estudo e á reconstituigao pelo pensamento de mo­
dos de vida e de sociedades que sua própria sociedade transforma ou
destrói” 4. Denunciando oü justificando o conjunto dessas transfor-
magóes, o antropólogo se liga diretamente as tramas da Historia e
déla nao se pode apartar. Para Godelier, a nova Antropología éxigirá
urna nova articulagao Antropologia/História e a crítica radical do
conteúdo ideológico contido rio discurso tradicional.
Nesse contexto, substitui-se o estudo da diversidade cultural pela
análise das modalidades de passagem das sociedades sem classes para
as sociedades de classes, tendo por hipótese geral e problemática
teórica única a casualidade estrutural da economía e as relagóes de
correspondencia e náo-correspondéncia mantidas coín os demais
sub-sistemas particulares. Determinag-áo do económico e dominánciá
do parentesco ou do político-ideológico sao os marcos analíticos que
permitem perceber nao apenas o padrao de articulagao do real, mas
o nivel hierárquico asSumido por cada instancia dentro de cortes
históricos determinados.

3 . Hindess, B. e Hirst, P. Q. — op. cit. :78.


4 . Godelier, Maurice — H orizon, trajets maxistes en Anthropologie —
París, Maspero, 1973 : 32.

4
As ciencias sociais e, em particular, a Antropología deverao
determinar as razóes e condigóes pelas , quais urna instancia assume
fungóes de relagóes de produgáo e controla a reprodugao dessas rela-
cóes e da sociedade como um todo. Feito isso, sera possível perceber
o padráo do movimentO sócio-cultural,; marcado por desigualdades
cada vez maiores ligadas ao controle dos fatores de produgáo..
Godelier acredita que essa problemática incita necessariamente
á retomada das teses marxistas fundamentáis, principalmente aquelas
ligadas ao “modo de produgáo asiático”, urna das múltiplas formas
transicionais das sociedades sem classe para as de classe. Faz-s.e
necessário, porém, que Marx seja despojado das suas partes mortas,
amputado do dogmatismo e confrontado com a modermdade, para
que se torne possível “operacionalizar” o materialismo histórico para
o mundo antropológico, até entáo refratário a essa hipótese.
É claro que a reconstituigao teórica dessa trájetória histórica
encontra-se apenas esbogada, pois as comunidades primitivas nao sao
cortadas por um modelo único. O ponto chave da questáo parece
residir no movimento da propriedade comum para a propriedade pri­
vada. Essa transigió, que sé vincula a processos históricos reais, é
marcada pela dissolugáo de relagóes de produgáo em que predomina
o valor de uso, urna vez que o valor de troca pressupóe outro espectro
de relagóes.
Se originalmente propriedade significa que as condigóes de produ­
gáo sao pré-requisitos da existencia da sociedade como um todo, a
propriedade privada implica que urna parte da spciedade se defronte
com essas mesmas condigóes como propriedade alheia. Além disso,
que já se encontrem dissolvidas as antigas relagóes fundadas na
propriedade comunal e na apropriagáo coletiva. Só assyn, os homens
aparecem como trabalhadores livres, “como capacidade de trabalho
puramente subjetiva, sem objetividade, enfrentando as condigóes obje­
tivas da produgáo como sua náo-propriedade” 5.
Entretanto, a dissolugáo das relagóes domésticas náo se pro-
cessa mecánicamente. Embora o modo de produgáo doméstico em
estado puro náo mais exista, as comunidades domésticas náo desapa­
recerán! por completo. Ao contrário, encontram-se inseridas em graus
diversos na economía capitalista, despojadas de seu contéúdo anterior,
mas fomecendo máo-de-obra barata para o “Setor dinámico” ou
mesmo produtos agrícolas que apresentem viabilidade de comercia-
lizagáo. ' .
É nessa vertente que a Antropología Económica vai concentrar
seus esforgos na análise das sociedades tribais e camponesas, procuran-

5. Marx, Kart — Formagoes económicas pré-capitalistas — Rio, Paz e


Terra, 1975 : 92.

5
\
INTRODUgÁO

Durante várias décadas a Antropología Económica centrou sua


discussao teórica em torno das posturas formalista e substantiva.
Embora ambas representassem variagóes do empirismo, diferengas
significativas marcavam suas principáis assergóes.
Tomando emprestado á teoría económica convencional um corpo
de Conceitos e proposicoes fundado no pressupostb de que as reiaqoes
de producáo que regem a sociedade capitalista eram semelhantes em
natureza e diferentes em grau, os formalistas definiam o processo
económico como o estudo das relagóes entre fins/meios raros com
usos alternativos. O comportamento económico era moldado pela mi-
nimizacao desses méios para a maximizacaó dos fins e nisso residía a
estratégia da acáo racional, comam a todas as sociedades humanas.
Foi K. Polanyi que distinguiu o significado formal, derivado do
caráter lógico da relacao fins/meios, do significado substantivo, fun­
dado na dependencia real do homem á natureza. A Economía passou
a definir-se como um processo instituido de interagóes homem/meio
ambiénte, garantidor de meios materiais para a satisfagáo demeces-
sidades. Esse processo requer tres formas de integragab: reeiprocidade,
redistribuigao e troca em mercado que supqem, respectivamente,
simetría social (sociedades igualitárias), centricidade (sociedades com
Estado de tipo despótico ou burocrático) e troca (sociedades em
que o sistema de formagáo de pregos é determinado pelo mercado),
Embora restituindo á Economía o estudo da produgáo, circulagáo
e distribuigáo de bens e servigós, K. Polanyi é seus seguidores nao
elaboraram teoría que desse conta da passagein de urna forma de
integragao á outra, nem do peso dos (atores — e meSmo do paren­
tesco ^ que pudéssem vir a iñtervir na moldagem das formagóes
sociais indiferenciadas.
A partir de 1960, porém, com os trabalhos de C. Meillassoux
sobre o fenómeno económico ñas sociedades trádicionais de auto-sub-

1
EDGARD ASSIS CARVALHO
(ORGANIZADOR)

ANTROPOLOGIA
ECONÓMICA
M. SAHLINS, M. GODELIER, C. MEILLASSOUX,
P. Ph. REY, J. S. KAHN, R. BARTRA

1.a EDICÁO

LIVRARIA EDITORA CIENCIAS HUMANAS LTDA.


1978
propríetário privado da térra é tal apenas em virtude de ser romano,
mas qualquer romano é, tamfcém, propríetário privado da térra3’}
Nesse texto, a própria reprodugáo emerge como um todo, estru-
íurada' em dominagáo, o dominante sendo a reprodugáo que reproduz
as condigoes das outras reprodugóes. O “membro da comuna” em
questao aqui nao é sujeito, mas “o cidadao objetivamente individuali­
zado, isto é, o individuo definido como romano,, grego etc.” (Grun-
drisse, pág. 495).
A reprodugáo desse individuo específico, que nao é senáo a
reprodugáo da estrutura social que o determina, se articula da se-
guinte maneira:
1 . “sua própria subsistencia”, “os camponeses provendo as
suas próprias necessidades” : reprodugáo física do individuo e de sua
familia em dado modo de produgáo;
2 . a reprodugáo da “propriedade do trabalho individual”;
3. a reprodugáo da “propriedade da condigáo de trabalho, á
parcela da térra”;
4 . a reprodugáo da comuna enquanto comuna independente.
O texto de Marx está dizendo: a reprodugáo n.° 4 é a reprodu­
gáo dominante, isto é, a condigáo necessária e suficiente para as
reprodugóes n.° 3, 2 e 1. Necessária e suficiente neste modo de pro-
dugáo apenas, pois quando no seio da'sociedade antiga a propriedade
individual se vai tornando independente da propriedade coletiva sob
efeito de sua própria reprodugáo ampliada, a reprodugáo' da “comu­
na”, náo será nem necessária nem suficiente para assegurar a repro­
dugáo da propriedade da térra, a reprodugáo da propriedade do
trabalho, nem a reprodugáo do individuo e de sua familia, por um
modo de produgáo específico. Em resumo, o romano poderá deixar
d e ' ser romano pelo simples processo de diferenciagáo interna da
comuna, sem que esta comuna deixe de existir. Por outro lado, a
propriedade, tendo-se tornado independente da comuna, pode resistir
á própria aboligáo da comuna (pela conquista)..
. Vejamos, agora, as inter-rélagóes entre os diferentes modos de
produgáo dentro da formagáó social antiga:
“Na Antiguidade Clássica, a manufatura aparece já como deca­
dencia (oeupagáo para escravos libertos, clientes, estrangeiros etc.).
Esse desenvolvimento do trabalho produtivo (libertado de subordi-
nagáo pura á agricultura, enquanto tarefa doméstica, com o trabalho
de homens livres apenas para a agricultura ou para a guerra, ou ma-

148
mifatura para práticas religiosas e para a comunidade__tais como
construgáo de casas, rúas, templos) . . . ” (Grundrisse, págs. 494. 495 )
Como essa subordinando reproduz a si própria? Para compreen-
der isso basta referir-nos á análise de Marx do momento em que essa
subordinando deixa de reproduzir-se: .
“Quando os membros da comuna, tornados proprietários pri­
vados (por um lado), adquiriram existencia distinta na comuna
urbana e como possuidores do territorio urbano (por outro lado)
surgiram condigoes em que o individuo pode perder a propriedade:
é a dualidade .de urna relagáo em que é cidadáo igual, membro da
comunidade e propríetário” (Grundrisse, pág. 494).
Em verdade, essas condicoes nao “surgem” do nada: elas já
estao presentes na sociedade antiga na forma de acumulando no setor
comercial e manufatureiro. Álém do mais, Marx nao nos deixa dúvida
alguma a respeito disso, já que ele, citando Niebuhr, descreve a socie­
dade romana do baixo imperio na qual “os ricos e ps pobres eram
qs únicas verdadeiras classes de cidadaos; onde a pessoa necessitada,
por mais nobre que fosse sua ascendencia, precisava de protetor; onde
o milionário, mesmo que fosse escravo liberto, era como tal procura­
do. Artesaos podiam ser encontrados em ambas as classes” (Grún-
drisse, pág. 501).
A “comunidade” de camponeses, entáo, tem como objetivo nao
apenas defender-se contra o mundo exterior, nem apenas expandir-se,
mesmo que esta expansáo a leve á ruina, mas também qssegurar a
dominanáo do modo de produnáo agrícola (cuja base é o trabalho de
homens livres), sobre os outros modos de producao, nos quais a
atividade produtiva é posta em prática pelos nao cidadaos.
Quando os modos de produeño dominados (bem como o modo
de circulacao) se “libertam” de subordinacáo política á agricultura,
isso “dissolve o modo de produgáo que serve de fundamento á co.mu-
nidade e ao cidadáo objetivamente individualizado” (Grundrisse,
pág. 495).
Dessa forma, a reproducao da comuna é, ao mesmo tempo, re­
produgáo do modo de produgáo dominante e reprodugáo de domina­
gáo sobre os modos de produgáo dominados. A instancia política do
modo de produgáo (no sentido ampio), que aqui é dominante, asse-
gura essas duas reprodugóes simultáneamente. Essa instancia domi­
nante tem aínda outro papel a desempenhar: deve atuar como pártei-
ra daquelas mesmas condigoes que transcenderáo a comuna que ela
está reproduzindo.
“Mas, ao mesmo tempo, e, necessariámente, essa reprodugáo cria
novas formas e destrói as antigas” (Grundrisse, pág. 493).

149
“Onde cada individuo deve possuir determinado número de
acres de térra, mesmo que a populagao vá aumentando, isso só pode\
.ser corrigido pela colonizagáo; e isso, por sua vez, requer guerras de
conquista, caga a escravos etc.” (Grundrisse, págs. 493-494).
“A condicao fundamental da propriedade baseada no sistema
tribal (resultado da primitiva dissolucao da comunidade), é a de ser
membro da tribo, o qüe torna umá tribo conquistada por outra desti­
tuida de propriedade e a coloca entre as condicoes; inorgánicás de
reprodugao das quais o conquistador se apropria, e com as' quais a
comunidade vitoriosa se relaciona como sendo suas próprias” (Gtún-
drisse, pág. 493).
Assim, a forma de propriedade no modo de produgao antigo
determina, também, a forma da negacao dessa propriedade ■—• ou
seja, o escrávo que é simples meio de producao, “acessório orgánico”
da térra — e a natureza da transformagáo do modo de produgao
antigo em modo de producao escravista.' Ñas sociedades segmentá-
rias, a instancia dominante é diferente, e determina forma diferente de
exclusáo dos homens da tribo e da propriedade colativa. Ela,; também,
determina direcao diferente para a mudanca da sociedade: nao é
mudanca do modo de producao, mas apenas mudanga interna da
instancia dominante. .
E; a relagao entre produgño e reprodugao, e a determinagao em
última instancia pelo económico? O modo de produgao determina
certa forma de reprodugao. Quando o modo de produgao muda, pelo
efeito do nivel dominante da estrutura que assegura essa reprodugao,
a reprodugao precisa tomar nova forma. Mas, em dado modo de
produgao, ou, para ser mais preciso, em dada formagao social, esse
nivel dominante,' assegurando tanto a reprodugao do modo de produ-
gáo dominante quanto a reprodugao de dominagao sobre os modos
dominados, assegüra o controle da própria produgao. Como Marx,
diríamos:.“as condigóes de produgao sao também as de reprodugao”.
Mas, nao deveríamos deduzir disso que o contróle da produgao é
fonte de todo controle da reprodugao,
Essa é, talvez, a forma de responder á objegáo de Terray:
“O erro crasso deles vem sem dúvida de sua faíha em reconbecer
um principio fundamental da análise marxista.”
Estamos certos de nao ter feito emprego inc'orreto de nenhum
conceito marxista, nem falhamos em respeitar nenhum principio
fundamental da análise de Marx.

150
V - ESTRUTURÁ DO MODO DE PRODUCAO DE LINHAGEM

Vejamos, agora, como essa análise pode ser aplicada á formacao


social gouro é, em'nivel mais geral, ao modo de produgao de linha-
gem, isto é, a sociedade em -que a agricultura, baseada na cooperagáo
das linhagens é o modo de produgao dominante (e, na verdade,
mostraremos que esse é de fato o caso da formagáo social gouró,
-analisando o processo por meio do qual o modo de produgao de
linhagem produz e reproduz sua. dominagáo sobre os outros modos
de produgao —: se é que estes existem).
Marx escreve:
“A condigáo fundamental da propriedade baseada na instituigao
da tribo (que é originalmente formada da comunidade) é a de ser
membro desta” (Cohén, pág. 91)..
Dessa forma, a reprodugao de toda propriedade “tribal” implica
acima de tudo a reprodugao da “tribo” enquanto tribo independente, •
e na reprodugao dos membros da tribo enquanto membros livres
dessa tribo, isto é, enquanto individuos determinados “gouro” ou
“dida”, “banzabi” ou “bacugni”, “gregos ou romanos”.
Se no caso do “modo de produgao antigo” a propriedade indi­
vidual (dos meios de produgao) admite certa independencia com re-
lagao á propriedade coletiva, no caso do “modo de produgao asiático”,
pelo contrário:
“Na formá oriental essa perda é quase impossível, exceto por
meio de influencias inteiramente externas, visto que o individuo nunca
se relaciona com sua comuna de forma suficientemente lrvre para, qúe
póssa perder seu vínculo (objetivo, económico) com elá” (Grundrisse,
pág. 494). fi
“Por outro lado, já que nessa forma o individuo nunca se tbrna
proprietário, mas apenas ‘possuidor’, no fundo ele próprio é a pro-
priedade, o escravo daquele que personifica a unidade da comuna; e a
escravidáo, aqui, nao suprime as condigóes do trabalho nem. modifica
sua relacáo fundamental” (Grundrisse, pág. 493; Cohén, págs. 91-92).
Notem que o próprio Marx introduz, aqui, novo conceito de
escravidáo, como ele especifica logo em seguida:
“A escravidáo^ servidáo etc., onde o próprio trabalhador apa­
rece éntre as condigóes naturais de produgáo para um terceiro indi­
viduo ou comunidade (este nao é o caso, por exemplo, da escravidáo
geral do Oriente, apenas no ponto de vista europeü) . . . ” (Grundrisse,
págs. 495-496).
Voltaremos a essa distingáo bastante fundamental.

151
As sociedades de linhagem do tipo dos gouro tém, portanto,
várias características em comum com a sociedade “asiática” : nao há
propriedade individual; a propriedade de linhagem, e mesmo a pro-
priedade aldea nao sao permanentes nem claramente definidas; ape­
nas a propriedade que Meillassoux chama de “nivel tribal” é bem
definida. A unidade, porém, que possui esse território nao é “unidade
constituida”, como é o estado romano “na mente e na existencia da
cidade e de suas necessidades cívicas” e “no território urbano-que
tem sua própria existencia” (pág. 484), nem como é o estado asiático
com suas cidades burocráticas, “trabalhos artificiáis (Superfotation)
erigidos sobre a construcáo económica propriamente dita” (pág. 479).
A) A Propriedade da Terra
Por um lado, temos urna unidade cujos contornos sao vagos, a
“tribo”, “proprietária” de território permanente e bem definido. Por
outro lado, temos unidádes mais distintas, aldeias e, especialmente,
-linhagens- “proprietárias” de territorios que somente sao definidos
durante a época em qué sao objetos ou mieio de'trabalho; e os únicos
limites espaciáis bem conhecidos para uso desse trabalho sendo, para
todos os membros da tribo, os do próprio território tribal. ■
Nao se deve ser apressado demais, e concluir disso que a tribo
de que fala Meillassoux corresponde ponto por ponto á tribo carac­
terizada por Marx. Todavia, como aponta Meillassoux: “É a orga­
nizad o da guerra que govema a estrutura bastante simples da tribo”.
Entretanto, a quebra na continuidade de urna tribo para outra está
longe de corresponder áquela entre as “comunas” de que Marx está
falando, porque:
— a guerra opoe nao apenas tribos, mas também aldeias —
a tribo é apenas a maior unidade capaz de se unir para a guerra. Ñas
sociedades segmentárias congolesas de que temos conhecimento, a
menor unidade capaz de ir á guerra é o segmento de linhagem, que
deve' corresponder, grosso modo, ao “góniwuo” mencionado por Meil­
lassoux, no caso dos gouro; .
—- mesmo entre tribos, a guerra tem, caráter regulamentado.
Nunca visa conquistar o território de outra tribo, nem escravizá-la
como um todo, mas simplesmente retomar algumas parcelas do terri­
tório ou destruir alguns membros da tribo adversária. Evans-Pritchard
móstróu, em relagáo aos nuer, como a hostilidade ñas manifestagoes
. bélicas aumentáva gradualmente ñas .sociedades segmentárias, em
relágáo •direta com a distancia. social, e Sahlins, em suas aulas na
“École Pratique des Hautes Étudés”, falava de “reciprocidade nega­
tiva” no que se refere a essas guerras.

152
£ verdade que se pode conceber sociedades segmentárias empre-
endendo guerras de conquista: as guerras dos fang do Gabáo sao um
exemplo, tal como as dos bokota, no Vale de Miari, no Congo, das
quais ouvimos algumas repercussoes mais diretas, notavelmente contra
os bakugnis. Mas, tais guerras de conquista somente podem ocorrer
entre povos que nao tiveram relagoes prévias, e excluem qualquer
reciprocidade entre eles por um período bastante longo.
Ao contrario, guerras que opóem linhagens, aldeias, cías, tribos
encerradas numa rede de trocas recíprocas envolvendo homens, mu-
Iheres, bens de prestigio, servidos de natureza política etc., parecem
ser Simples manifestacoes invertidas da reciprocidade fundamental
que liga essas unidades. A limitacao cuidadosamente regulamentada
da duragao de tais coriflitos e de seus efeitos significa que a recipro­
cidade pode sobreviver a eles. E se os objetivos fundamentáis destas
guerras sao de fato como diz Terray “restaurar um equilibrio demo-
gráfico” ou “aumentar o potencial da forca de trabalho disponível”,
o conflito aberto nao é nem a forma básica de obter tais resultados,
nem aquela a que ibais se recorre.
A guerra, portanto, nao parece ser o processo dominante para
definir qualquer tipo de unidade (seja linhagem ou tribo), mas é ape­
nas úm processo subordinado. Como se deduz da formulagáo de
Sahlins, o processo dominante é a reciprocidade. É por isso que," além
do mais, os bens que tais guerras permitem que sejam apropriados
sao aqueles que também circulam na troca recíproca: homens e mu-
lheres, mas nao a térra. Assim, a forma mais comum de guerra, a que
opoe unidades que por outro lado sao ligadas pela troca, o mesmo
tipo descrito por Meillassoux, nao pode servir de forma alguma para
se apropriar o solo, nem para defendé-lo, já que este nao é objeto para
ser cobigado ou conquistado. Nao há, portanto, vínculo diretó entre
a guerra enquanto atividade económica e a propriedade tribal ou
de aldeia.
Nao se pode opor a hostilidade manifestada na guerra e a reci­
procidade como duas variáveis independentes. Pelo contrario, elas
sao estreitamente'complementares: todas as unidades de urna socie-
dade segmentária sao hostis a priori, da linhagem á tribo, e é apenas
ao nivel dos anciáos que essa hostilidade é transformada em reciproci­
dade. A própria reciprocidade tem pronunciado caráter de hostilidade
durante a maior parte dó tempo: da troca hostil do potlatch da costa
noroeste dos EUA, á disputa de oratoria com o caráter jurídico-
político dos “bayombili” entre os bangabis do Congo. Mas, por meio
dessa troca, a mais freqüente forma de confrontacáo entre dois grupos
distintos, a hostilidade é transformada, pelos chefes, em solidariedade.
O mesmo nao se dá com os membros de grupos de dependencia; ou

153
melhor, isso só pode ocorrer de forma secundária, estritamente defini­
da e determinada pela troca entre os chefes. Isso é bem mostrado,
por exemplo, na análise dos “hilabas” dos fang, por G. Balandier,
Nossa análise das sóciedades segmentárias se op5e as hordas do
tipo nhambiquara que, vagando por um territorio imenso no qual
cagam e coletam, tem poucas chances de se confrontar com outra
horda, e igualmente, as sociedades “antigas” analisadas por Marx,
em que a térra, profundamente modificada pela agricultura e com
alta densidade populacional, se torna objeto de cobiga, e ñas quais os
homens cuja térra foi conquistada, se tornam simples “acessórios
orgánicos”.
Como diz Meillassoux, a térra tribal é essencialmente um “terri­
torio” ; seus limites permitem evitar atritos entre diferentes grupos,
principalmente para atividades como a caga ou a coleta, realizadas
em grandes espagos. Mas, de forma alguma ela é determinante para
a sobrevivencia da tribo, enquanto tribo livre, como era a térra da
comuna antiga. Além do mais, as unidades proprietárias desse terri­
torio nao tem relagoes necessárias com as unidades que cooperam no
trabalho nessa térra; elas podem ser maiores ou menores do que estas.
Assim, há sempre áreas de caga da aldeia, mesmo entre aqueles
povos onde a caga com rede envolve apenas unidades menores que
a aldeia.
Por outro lado, certas tarefas coletivas podem requerer a assis-
téncia de unidades muito maiores que a uúidade proprietária: por
exemplo, a pesca anual nos lagos dos bakuni requer o trabalho em
alta proporgáo de toda a populagáo, a fim de limpar a lama que se
acumulou no fundo do lago no decorrer do ano, apesar do fato de
que o lago é propriedade de apenas urna linhagem.
Se entendemos por propriedade do solo a existencia de um
vínculo no tempo permanente e direto entre urna unidade e um
territorio bem definido, notamos que ñas sociedades segmentárias, os
limites desta propriedade sao determinados diretamenté pelos limites
do funcionamento da reciprocidade entre os anciaóS das linhagens, e
somente por estes limites.
Assim se explica o fato de que a tribo (isso entre os gouro; em
outras sociedades segmentárias esse limite está em outras unidades)
tenha os limites territoriais mais bem definidos: é além da tribo que
a reciprocidade enfraquece perigosamente e as .transgressoes se tor­
nam ameagadoras. Os vínculos entre linhagens vizinhas, pelo contra­
rio, sao táo múltiplos que os limites territoriais concedidos a cada
linhagem nao tém necessidade de ser especificados fora do período
em que o cultivo, enquanto tal, está sendo realizado nesse territorio.

54
Finalmente, é de fato questáo de reciprocidade entre os andaos
das linhagens, visto que as unidades maiores (aldeia, tribo) nao dáo
origem a urna hierarquia permanente, e. que todas as questoes sao
negociadas entre os anciáos.
B) O Nivel Político Dominante: A Reciprocidade
Em tal contexto, a guerra tem influencia apenas secundária
sobre a reprodugáo das principáis unidades (linhagem, aldeia, tribo)
enquanto unidades determinadas, ou mesmo sobre sua reprodugáo de­
mográfica (que é realizada pela reprodugáo natural, cuja condigáo é
o casamento dos mais jovens, ou pela adigáo de elementos externos,
por exemplo “escravos” ). Somente nos casos muito raros em que
unidades segmentárias se chocam contra povos estrangeiros no
curso de migracoes em grande escala, é que elas estáo em perigo de
perder completamente a independencia ou de serem aniquiladas: mas
tais perigos nao podem-suscitar résposta coletiva das unidades maio­
res. Estas, portanto, nunca sao verdaderamente constituidas fora da
reciprocidade entre anciáos, e esta somente as estrutura de forma
mais ou menos vaga.
Com relagáo as unidades menores — as únicas que tém exis­
tencia definida (tribo, aldeia, linhagem) — a reprodugáo está essen-
cialmente ñas máos dos anciáos de linhagem, Balandier mostrou,’-
estudando os fang, o quanto os anciáos se preocupam em ter urna
rede de aliangas matrimoniáis táo extensa quanto possível. Numa
sociedade mais hierarquizada como a bakongo, essa preocupagáo é
muito atenuada. Balandier também mostrou como a estratégia dos
anciáos no “bilaba” pode determinar a posigáo de seus grupos dentro
de urna totalidade maior.
Se os anciáos das linhagens controlam a reprodugáo de seus
grupos de dependencia, eles também controlam a reprodugáo dos
mais jovens, enquanto membros destes grupos de pessoas objetiva­
mente individualizadas, e isso de duas formas. Primeiramente, como
mostrou Meillassoux, o controle da reprodugáo demográfica do
grupo por meio do acesso ás mulheres corresponde a um controle
sobre a reprodugáo “dinámica” dos mais jovens que envolve o acesso
ás mulheres em certa idade, e rebaixa solteiros de idade madura para
a base da hierarquia desse grupo dos mais jovens.. Esta é apenas
urna das formas ibais suaves de controle que os anciáos tém sobre os
mais jovens, mas nao pelo fato — como pensa Terray — de que o
mais jovem sempre tem a liberdade de deixar o anciáo do qual de­
pende, e voltar a sua familia natural. A idéia de Terray só se verifica
caso se considere um anciáo e o jovem que dele depende, isolada-
mente. Se, por outro lado, se considera o anciáo como membro do

155
°xupo dos andaos, é bastante daro que a severidáde de um anciáo
que manda embora seus próprios jovens suscita severidáde análoga
entre os outros anciábs que lhe permitirlo conseguir outros jovens do
lado de sua familia materna, em igual número em principio. Além
do que, um jovem que troca de filiacáo d e . linhagem, permanece
jovem da mesma forma, e freqüentemente, perde status. Em resumo,
as diferentes estratégias disponíveis a um jovem sao largamente ilu­
sorias e, de qualquer forma, limitadas em número.
Há, entretanto, um meio de controle muito mais decisivo sobre
a re p ro d u jo dos jovens enquanto membros do grupo: assim como
um anciáo pode adquirir escravos, da mesma forma ele pode trans­
formar um jovem em jovem por toda a vida (e também seus descen­
dentes mais diretos) dando-o como escravo a um outro anciáo. Assim,
um jovem que comete adultério ou que é acusado de bruxaria précisa
pagar multa em bens de prestigio (que sao freqüentemente bens que
compóem o dote). Estando esses bens de posse do anciáo do qual
ele depende, este pode tanto aceitar quanto recusar-se a fornecé-los:
ele somente os fornecerá a um jovem que é,“respeitoso”, e raramente
a um infrator habitual (este também é o caso, por exemplo, entre os
bangabi do Congo). O “parceiro de trocas” do anciáo, estando na
aldeia nesse momento, pode aceitar pagar a multa e levar embora
consigo o homem como “escravo” (ou a mulher, no caso de acusagáo
de bruxaria).
/
C) A Determinagao em última instancia
Vimos que os andaos ligados pela reciprocidade, ao contrário
dos jovens, tém o controle da reprodugáo como um todo. De um
lado, temos a hostilidade e o isolamento dos grupos segmentários
(apesar desse isolamento ser moderado no interior das coletividades,
como a aldeia e a tribo, onde os jovens das diferentes linhagens se
unem para atividades comuns episódicas, tais como a caga ou a
guerra): de outro, temos as aliangas matrimoniáis, as trocas de
bens de prestigio, a participagáo conjunta em decisóes jurídico-
políticas (“juízes” consuetudinários), todas realizadas pelos anciáos.
Essa estrutura é definida, essencialmente, pela natureza da única ati-
vidade económica permanente, ou seja, a agricultura, e pelo modo
de cooperagáo que a agricultura determina; é claro que a reprodugáo
da estrutura será realizada por mecanismos completamente diferentes
numa sociedade com “classes de idade” onde a cooperagáo define
outros grupos que nao a linhagem como grupos de trabalho.
Urna vez compreendida essa determinagáo, podemos ver que a
causalidade é de fato estrutural, e náo transitiva, como B alibar mos-
trou para outros casos, O nivel jurídico-político dominante que é

156
realizado ñas diferentes formas de reciprocidade nao representa
apenas os reflexos da base económica. Terray confirma isso, escre-
vendo acerca dos grupos gouro da savana:
“Quando o klala toma o lugar da cooperagáo de linhagem, a
distribuicáo do produto — o klala nao tem ném presentes nem
féstas —- e a apropriacáo dos meios de producáo conseguem realizar­
se dentro da estrutura da linhagem” (Terray, 1972, pág. 125).
Dessa forma, a determinacáo em última instancia pelo nivel
das forcas produtivas nao significa que essa “determinacáo em última
instancia” e seu efeito sejam simultáneos; o efeito mencionado é a
determinacáo da estrutura social (inclusive as relacóes sociais de
producáo). É possível que essa determinacáo possa tornar-se inde-
pendente náo apenas da coincidencia no tempo, mas também no es-
paco: em outro artigo esperamos fundamentar, dessa forma, a
classificacáo de Karl Wittfogel das sociedades “despóticas orientáis”
em termos de relacáo com a agricultura hidráulica, e mostrar que o
“despotismo oriental”, que para Wittfogel é tipo ideal weberiano é,
na verdade, conceito integralmente marxista.
D ) A Funcáo do Produto Excedente
Voltando á sociedade segmentária, esse sistéma de troca genera­
lizada entre os anciáos de grupos, que de outra forma sáo hostis uns
aos outros, nao parece capaz de funcionar sem se relacionar básica­
mente com um produto excedente, que é extraído pela sociedade.
Abstratamente, pederíamos conceber um sistema que náo requeresse
produto excedente; em verdade, um exemplo concreto disso é encon­
trado entre os tiv, onde há troca direta de dependentes (mulheres e
criancas pequeñas). (P. Bohannan, “Some Principies of Exchange
and Investment among the Tiv”, American Anthropologist, vol. 57,
1955.) Mas, a troca direta desse tipo somente pode unir um púmero
muito restrito de grupos, e náo pode servir para estruturar grande
comunidade ao nivel político; assim, além da troca direta de mulhe­
res e criancas, os tiv tém urna esfera de “bens de prestigio” na qual
se encontram escravos, quer dizer, bens que sao trocados uns pelos
outros e, eventualmente, mesmo por dependentes.
Se esses bens circulam sem serem consumidos, aqueles náo pere-
cíveis (objetos de cobre e ferro, braceletes e colares para o kula,
cobertores da costa noroeste, tangas de ráfia e algodáo etc.), tendem
a se acumular, já que continuam a ser produzidos. (Podemos, assim,
explicar parcialmente o aumento do valor dos dotes relativamente as
mulheres, na África, desde que o dinheiro ocidental substituiu os
bens de prestigio.) Para que mantenham sua funcáo, esses bens tém
que ser consumidos de urna forma ou de outra: no caso dos cober­

157
tores, das insignias de cobre que os representam e até mesmo de
escravos em certas circunstancias, pela destruigáo pura e simples; já
no caso de outros bens de prestigio, como, por exemplo, a carne,
através, do consumó conspicuo forcado. Esses atos destrutivos, que
impressionaram tanto os primeiros etnólogos, nao sao senáo a ma­
nifestado dos limites que a estrutura de reproducáo impóe sobre a
economia de tais sociedades.
Em muitos casos, nao sao os jovens que produzem esses bens
de prestigio, mas grupos de castas (ferreiros, tecelóes), ou depen­
dentes diretos do anciáo (como no caso da criacáo de animáis entre
os gouro), ou mesmo os próprios anciaos (tecelagem também entre
os gouro). No primeiro e no terceiro desses casos, entretanto, o
excedente real é de fato produzido pelos jovens, que tém de trabalhar
para alimentar os membros dos grupos de casta ou o anciáo que está
ocupado tecendo ou trabalhando o ferro; eles nada recebem em
troca, já que os bens produzidos durante esse tempo sao propriedade
exclusiva dos anciáos. Por outro lado, a manufatura desses bens
freqüentemente envolve as técnicas mais complexas que a sociedade
conhece (por exemplo, forjar o ferro, tecer), as únicas que permitem
alongar o aprendizado por bom tempo; jovens e mulheres podem ser
empregados pelos anciáos que possuem essas técnicas (por exemplo,
no caso da forja dos banzabi), de tal forma que estes apenas organizam
o trabalho, mas nao intervém diretamenté até a fase final da ma­
nufatura.
Finalmente, onde o ferro é componente desses bens de prestigio,
a hierarquia desses bens na esfera da reproducao social pode servir
para melhorar sua colocacáo na hierarquia da esfera da produgáo,
como é o caso em toda a zona do Congo-Gabáo: as ferramentas do
ferrciro ocupam o topo da hierarquia dos bens de prestigio (martelo
e bigorna, isto é, bens que produzem os bens de producáo da agricul­
tura); machados e facóes ocupam o lugar intermediário (bens de
producáo da agricultura), utilizados pelos homens para. desmatar a
térra (por exemplo), e os simples bens de consumo ocupam o lugar
inferior (tangas, por exemplo),
O controle da reproducáo pelos anciáos é, conseqüen'temente,
determinado de várias maneiras, e está claro em todos os casos que
é o controle dos anciáos sobre a reproducáo que determina seu
controle sobre a producáo e nao vice-versa.
E ) Classes Sociáis e Exploracáo
A dominacáo do modo de producáo de linhagem sobre os outros
modos de producáo, presente ñas formacoes sociais de linhagem, se
funde á dominacáo da coletividade de anciáos sobre a sociedade

158
como um todo. É a coletividade de anciáos (e náo cada anciáo em
particular) que é a yerdadeira proprietária da térra, dos outros
meios de produgáo e dos próprios jovens. Poder-se-ia dizer que essa
relagáo de dependencia entre jovens e anciáos é prenúncio, na socie­
dade segmentária, da “escravidáo generalizada” dos camponeses fren-'
te á burocracia ñas sociedades “asiáticas”.
Náo se pode passar, portanto, diretamente da análise de um
grupo de linhagem em particular para a análise da totalidade da,
formacáo social de linhagem. Em seu artigo nos “Cahiers d’Études
Africaines”, Meillassoux passou de um para outro nivel de análises
sem indicar que o estava fazendo, enquanto Terray, cortando aígumas
citagoes de Meillassoux, se recusa a fazer o mesmo. Meillassoux, náo
obstante, mosfrou que dentro de um grupo de linhagem isolado, o
anciáo náo tem nenhuma vantagem decisiva que lhe permita exercer
poder de exploragáo, apenas poder de fungáo. Náo somente sáo muito
simples as técnicas requeridas pelo modo de producáo agrícola que
estrutura a linhagem mas, além disso, para que a cooperacáo simples
funcione adequadamente é necessário que os homens conhegam essa
técnicas assim que atinjam a idade adulta. Meillassoux enfatizou que
a velhice é fator bastante desfavorável em tais situagoes.
Os chefes de grupos isolados de caga ou coleta, como os nham-
biquara, náo sáo velhos, mas homens na flor da idade. Da mesma
forma, naquelas sociedades hierarquizadas onde há métodos adminis­
trativos de controle, a gerontocracia tende a desaparecer. O governo
dos anciáos é determinado, portanto, pela própria estrutura da re-
produgáo. Como em todos os sistemas cooptativos, é porque a reci-
procidade entre os anciáos somente cessa na morte de um anciáo
em particular, que os chefes náo sáo eliminados após a meia-idade;
e é porque todos os jovens devem se tornar anciáos (na medida em
que métodos apropriados de controle administrativo náo sejam ati-
vados), que todo velho é quase sempre substituido/quando morre,
por outro velho.
Colocado de outra maneira, o modo de produgáo determina a
unidade, a linhagem, que deve servir como a base sobre a qual a
estrutura da sociedade é construida, ou seja, a única unidade onde
há permanente hegemonía de fungáo. Mas, a reprodugáo desloca
esse poder de fungáo dos adultos para os anciáos.
É provável que a sociedade gouro náo seja urna das sociedades
segmentárias em que o poder dos anciáos é mais .opressivo. Ñas
sociedades congolesas, somente a troca entre anciáos parece ter des­
locado mais de 10 milhoes de escravos em tres sáculos, e náo houve
ataques contra os portos de tráfico de escravos na costa. Esse é im-

159
pressionante exemplo que nos ajuda a entender a dependencia dos
jovens. Nesse sentido, o mérito de Meillassóux foi ter construido um
esquemá (nos “Cahiers d’Études Africaines” ) que poderia ser gene­
ralizado para sociedades como estas, desde que novo modelo, teórico
fosse usado. Nós o criticamos por nao ter ele mesmo encontrado
esse modelo, mas sua contribuigáo nao se limita a simples descricoes
de modos de producáo coexistentes (em sentido restrito).
Somos, agora, levados a colocar duplo problema (que já foi tra­
tado em nossa “Théorie de l’histoire des échanges” ) — o grupo de
anciáos constitui urna classe? E esse grupo explora os jovens?
Escrevemos:
‘Talaremos de luta de classes em qualquer sociedade em que
determinado grupo controla a circulagáo de um produto excedente,
de forma tal que a reprodugáo das relacoes de dependencia seja asse-
gurada pela circulagáo desse excedente”.
Essa formulagáo foi bastante infeliz: obviamente, se tivésSemos
dito que a circulagáo do produto excedente ocorre inteiramente
naquilo que é habitualmente chamado de esfera da circulagáo, esta­
ríamos excluindo a possibilidade dé explicar o modo de produgáo
feudal, por exemplo, em que grande proporgáo do produto excedente
é usada para a manutengáo de “homens armados” pagos pelo senhor,
já que a existencia e a habilidade desses “homens armados” é condi-
gáo de reprodugáo tanto da relagáo de apropriagáo de suas térras em
sua luta contra os outros senhores, quanto da reprodugáo da depen­
dencia dos campongses em relagáo a ele. Temos, portanto, que
reconsiderar essa definigáo e escrever, por exemplo:
‘Talaremos de luta de classes em qualquer sociedade em que
determinado grupo controla um produto excedente, cujo uso total ou
parcial serve á reprodugáo das relagóes de dependencia entre os pro-
dutores diretos e esse grupo”.
Náo aceitamos, porém, a crítica de Terray:; . •
“Tanto na teoría marxista quanto na prática, urna classe é defi­
nida pela sua ppsigáo no sistema de produgáo, e náo no sistema de
circulagáo”.
Essa definigáo estreita dé classe social, a partir de sua posigáo
no sistema de produgáo, está em contradigáo com o texto de Altfius-
ser citado por Terray, o qual está em perfeita'correspondencia com
nossa abordagem, urna vez que tenhamos removido déla a ambi-
güidade criada pelo uso do termo “circulagáo” :
“Para conceber a natureza de urna classe social é essencial levar
em conta, conjuntamente,' as determinagoes da base económica, da

160
!
1
superestrutura jurídico-política e das superestruturas ideológicas.' É
igualmente essencial ter consciencia do inter-relacionamento interno
dessas determinagdes combinadas, de forma a compreender de que
modo a dominagao pode se deslocar entre as diferentes determina­
gdes. . . (as classes sociais) sao (sobredeterminadas) porque sua na-
tureza somente pode ser compreendida invocando a causalidade es-
trutural dos tres níveis da sociedade, o económico, o político e o
ideológico. Essa causalidade estrutural toma a forma de cónjungao
das tres determinagóes estruturais num só objeto, e na variagáo do
elemento dominante dentro dessa conjungáo” (Terray, 1972, pág.
144, sublinhado por Pierre-Phillippe Rey).
O nivel político, que se manifesta básicamente na reciprocidade
entre os grupos de linhagem, desempenha papel dominante na defini­
gáo da classe dos anciáos, mas esse papel dominante, como mostra­
mos, funciona dentro de limites previamente impostos pelo modo de
produgáo: o' anciáo é o anciáo da linhagem, isto é, líder de um
grupo permanente de produgáo agrícola.
O problema da exploragáo permanece; mostramos, previamente,
que mesmo no caso (que pode talvez ocorrer entre os gouro, como
sugere Terray) em que o jovem náo participa diretamente da manu-
fatura de bens de prestigio, exige-se dele trabalho excedente — lim-
par a vegetagáo rasteira, consertar a casa e as construgóes, e fornecer
a comida da pessoa que faz bens de prestigio (membro de um grupo
de casta, ou anciáo). Mas, em nossa opiniáo, esse náo é o caso geral,
e os exemplos de que temos conhecimento nos mostram que a manu-
fatura de bens- de prestigio (por exemplo, os objetos de ferro banza-
bi) requer trabalho excedente diretamente dos jovens, mulheres e
criangas da linhagem. Meillassoux nota isso em seu artigo nos
“Cahiers d’Études Africaines” :
“Ñas economias de auto-subsisténcia, como os jovens sáo os
produtores destes bens (bens de prestigio), eles deveriam estar em
posigáo tal que pudessem tratar diretamente com os responsáveis pelas
mulheres com as quais quisessem casar”.
Para nós, é claro, o trabalho excedente exigido dos jovens pode
parecer pequeño quando comparado aqueles que nos sáo familiares
nos regimes capitalistas; porém, ele parece muito máis significativo
quando lembramos a pequeña quantidade de bens de prestigio que
era considerada o equivalente de um homem.
Reconsiderando nossa definigáo anterior de exploragáo (a qual
se referiu Terray), diremos agora:
Há exploragáo quando a parte do produto do trabalho do pro-
dutor que Ihe é tirada serve para reforgar a posigáo de dependencia
do produtor.

161
Logo, a coletividade dos andaos constituí de fato urna classe
que explora os jovens.
Gom relacao á objecao “epistemológica” final de Terray:
“ . . . o conceito de classe perde todo poder dé diferenciar so­
ciedades, e descreve tantas formas heterogéneas da realidade que perde
todo valor operacionaL, . (Terray, 1972, pág. 167).
Mesmo sem nos referir á famosa frase do “Manifestó Comunista”
(já que Engels quería limitar sua aplicacáo, quarenta anos mais
tarde), difícilmente se pode dizer que o “valor operácional” funda­
mental do conceito de classe é estabelecer diferenciado entre socie­
dades que tém e que nao tém classes.
F ) Articulacao dos modos de producao
Em nossa “Théorie de l’histoire des échanges”, tentamos mostrar
o valor prático das alianzas de classe para análise das diferentes ar-
ticulacóes entre as formacóes sociais africanas e o modo capitalista
de producao. Establecem os que, se alterássemos levemente os signi­
ficados correntemente aceitos dos termos “tráfico de escravos”, “co­
lonialismo”, e “neocolonialismo”, estes poderiam tomar-se conceitos
genuínos, que possibilitariam pensar essa historia.
Gostaríamos de iniciar, aqui, urna análise do modo de producao
de linhagem e de outro modo de producao numa formacao social
“tradicional” : analisaremos os sonjo, populacao segmentária descrita
por A. F. Gray ( “Economic Exchanges in a Sonjo Village” ) e por
P. Bohanann e G. Dalton (“Markets in Africa”, págs. 469-492). Entre
os sonjo, urna estrutura de propriedade baseada em linhagens (exo­
gamia patriiinear) está ligada a um sistema de agricultura hidráulica
organizado a nivel de aldeia, e isso determina urna estrutura de hege­
monía específica e permanente dentro da aldeia. Para essa análise, e
com relacao ao modo de producao de linhagem e ao modo de orga- c
nizacáo hidráulica, o valor operacional do conceito de classe parece
particularmente claro. (Essa análise será desenvolvida mais a fundo
em artigo posterior.)
Os sonjo sao um povo que vive da agricultura, vizinhos dos
massai, que sao pastores, ‘totalizando 4 500 pessoas, distribuidas en­
tre seis aldeias.
Os bairros dentro de urna aldeia sao constituidos por linhagens
patrilineares exógamas, as quais sao proprietárias diretas da área onde
o bairro está localizado (em regióes montanhosas ou rochosas, tal
área exige o importante trabalho de nivelamento). Gray diz. em certa
altura de seu artigo que os bens, em particular as cabras (o mais
importante bem de prestigio) e os lotes de térra sao propriedade indi­

162
vidual, mas' o restante de seu artigo revela que a propriedade desses
bens está na verdade em maos dos andaos da linhagem.
As mulheres realizam a maior parte das atividades agrícolas
diárias. Os homens estáo divididos em tres grandes grupos de idade
que correspondem aos tres principáis tipos de átividade:
— os mais jovens (aparentemente até a idade de 14 anos) to-
mam conta dos rebanhos de cabras, obtém verduras da aldeia. Gray
escreve: “Os meninos pastores levam urna vida táo separada do resto
da aldeia que se pode dizer que possuem subcultura própria”.
O rebanho é, efetivamente, propriedade do anciao do cía, e há,
portanto, exploragao intensa dos jovens adolescentes pelos andaos.
---- adultos jovens de 14 a 28 anos de idade (aproximadamente)
formara as duas classes de idade dos “guerreiros”. Eles nao tém
nenhuma atividade económica tradicional, mas sao encarregados de
defender a aldeia das incursóes ,dos massai. Desde a colonizagáo, a
maioria desses jovens se emprega comú trabalhadores assalariados
fora da térra dos sonjo, e retornam á aldeia quando deixám a classe
de idade dos guerreiros. Todo o dinheiro que eles acumularam é
entregue ao anciao.
— os homens com mais de 28 anos sao cagadores, apicultores
e' cuidam dos canais de irrigagao, tanto do ponto de vista técnico (ma-
nutengáo e limpeza) quanto do ponto de vista social (distribuigáo de
água, o que suscita numerosas díscussoes e trapagas).
A térra irrigável é rara, e somente pode ser trocada por cabras.
Entretanto, um homem que trocou térra irrigável pode reclamá-la de
volta quando quiser, devolvendo o mesmo número de cabras; mas se
morreT, a transferencia dessa térra se torna definitiva. Esse tipo de
transagáo só pode ser realizado pelos andaos da linhagem.
As cabras' sao a forma mais procurada de riqueza; o rebanho
pode ser ampliado trocando-se cabras por mel, que é igualmente pro­
curado — para se fazer álcool, sendo o alimento de prestigio por
excelencia. O crescimento normal do rebanho é assegurado por esse
tipo de troca, mas se um crescimento rápido se faz necessário, o que
somente ocorre quando um anciao tem de pagar o dote de um de
seus dependentes, ele pode trocar um lote irrigado ou urna colmeia
(cuja constTugao é complexa e tem grande influencia sobre a pro-
dugáo). É somente a fim de pagar o dote que se recorre éventualmente
a esses dois tipos de troca.
A organizagáo da irrigagao a nivel da aldeia é regulada por um
conselho de 15 a 18 andaos, em cada aldeia, os “wenanmiji”. Eles
intervém com autoridade um pouco maior que os outros anciaos ñas
decisóes políticas importantes da aldeia. O “status” de “wenanmiji”

163
é hereditário. Cada um desses “wenanmiji” tem o direito de usar a
água do canal principal para seus próprios lotes durante seis horas
por semana.
Há um segundo grupo, os “wakiama”, a quem é atribuido o res­
tante do tempo de irrigagao. Gray escreve que:
“Dos wakiama, enquanto individuos, se exige que paguem um
tributo substancial, em cabras, aos wenanmiji enquanto grupo”.
Finalmente, todos os outros que nao sao nem wenanmiji nem
wakiama, sao forgad'os a fomecer mel ou cabras a esses dois primei-
ros grupos, cada vez que desejam se beneficiar da irrigagao.
O ajuste se faz por meio de irrigagao fraudulenta; esta nao é
punida severamente caso se descubra que foi necessária.
Assim, de acordo com Gray, cada lavrador fomece duas cabras
por ano, ou o equivalente a duas cabras na forma de mel ao grupo
dominante, a fim de assegurar suas necessidades de irrigagao.
Urna leitura superficial do texto de Gray parece indicar urna
divisao em classes fortemente diferenciadas baseada no controle da
irrigagao. Mas, urna leitura mais cuidadosa leva a fazer as seguintes
observagoes:
a) 15 a 18 anciaos por cada aldeia de aproximadamente 750
pessoas representa boa proporgáo de todos os andaos de linhagem;
b) o controle de água por esse grupo de andaos nao é baseado
em nenhum mecanismo que permita a 'ésse grupo impor sua jurisdigao
sobre o conjunto da aldeia e sobre os outros andaos em particular;
c) o excedente acumulado por esse grupo nao pode servir para
a reprodugáo de sua dominagao: ele é constituido por cabras que
devem ser redistribuidas durante as festas coletivas em cerimónias re­
ligiosas; em verdade, elas servem para aumentar o rebanho dos we­
nanmiji. Mas, a finalidade básica dos rebanhos é o pagamento de
dotes.
d) mas, as cabras (e também o mel) sao os produtos mais
independentes do sistema hidráulico, que somente é necessário para
a agricultura. As cabras sao controladas pelos andaos das linhagens..
e) finalmente, o número de cabras trocadas por cada lavrador,
para conseguir água para suas térras, é de duas por ano. O tamanho
médio dos rebanhos é de 54 cabras. O número pedido é, portanto,
relativamente baixo frente á taxa de crescimentó anual médio de um
rebanho, mesmo num sistema tradicional de criagáo de animáis.
Mas, o dote recebido pelos andaos é de ordem completamente
diferente, isto é, 100 cabras em média.

164
Está claro entáo que, além dos direitos plenos que o anciáo tem
sobre o rebanho de seus dependentes, a maior parte das cabras deve
encontrar-se concentrada diretamente ñas ñaños dos andaos da linha-
gem. Em outras palavras, a prestadlo anual de cabras nao é de forma
alguma problema para um anciáo de linhagem, mas pode muito bem
ser problema muito maior para um jovem: ao que tudo indica, entáo,
essa prestagáo anual reforga o poder dos anciáos sobre seus des­
cendentes jovens e dessa forma seus efeitos se somam aos do dote.
Deve-se notar que esse sistema de dote pago em cabras é am-
plamente independente da agricultura, e, portanto, da agricultura
hidráulica.
Gray aponía, também, que os wenanmiji, longe de serem. sempre
os mais ricos em cabras, podem ser sobrepujados em largá escala por
outros anciáos.
Temos, portanto, dois sistemas de prOdugáo principáis:
— o sistema de linhagem, -que corresponde á propriedade da
térra e ao controle da criagáo de animáis (cabras e abelhas);
— o sistema aldeáo que corresponde ao controle da água para
irrigagáo.
Ao contrario das aparéncias iniciáis, apesar do primeiro sistema
poder reproduzir-se básicamente pelo processo de troca ligado ao dote
(tradicionalmente, costumava haver também venda de dependentes,
como escravos, para os massai), e de ser para todos os efeitos inde-
pendente do segundo, este náo pode reproduzir-se independentemente'
do primeiro. Pelo contrarió, ele tende a reforgar o primeiro sistema.
Concluimos, entáo, que o sistema de linhagem domina o sistema
aldeáo, e que a independencia da estrutura de hegemonia deste últi­
mo em face do primeiro é vantajosa em certa medida para este (tal
como a hieraTquizagáo dos sistemas de clás na regiáo do Congo, onde
os chefes de clás mantém estreito controle sobre o rei, que facilita a
dominagáo desses chefes de clás sobre seus dependentes).
Náo é destituido de-interesse notar que entre os sonjo todos os
primeiros casamentes sáo contraídos no interior da mesma aldeia,
entre suas linhagens exogámicas. É somente quando urna mulher se
divorcia que ela pode ser dada em casamento a urna outra. aldeia, e
entáo o dote é reembolsado diretamente ao primeiro marido, sem
passar pelas máos do anciáo. Podemos concluir, imediatamente, que
esse efeito de reforgo, contribuindo com o sistema dominanté de li­
nhagem por meio de sua articulagáo com o sistema aldeáo tem efeito
análogo áquele da hierarquizagáo ñas sociedades de clás. Como ja foi
apontado, G. Balandier observou que entre os bakongo altamente
hierarquizados, os anciáos estavam menos preocupados em estender
seu sistema de aliangas que os fang, pois a hierarquizágáo reforga,

165
suficientemente, o poder dos andaos para que a importancia da reci-
procidade séja relegada a segundo plano. O mesmo processo ocorre
aqui: aorganizagáo da distribuigáo de água reforga o poder da tota-
lidade dos anciaos num grau tal que o sistema de alianzas pode ser
reduzido as dimensoes da própria aldeia.
Nessa análise, está claro que os wenanmiji, por um lado, e os
andaos, por oütro, emergem enquanto classes dominantes de dois
modos de -produgáo diferentes; e que a relacao entre essas classes
nao pode ser considerada fora da relagáo entre esses dois modos de
produgáo: analisando, por exemplo, a importancia de cada urna dessas
classes ao nivel político, considerado isoladamente da estrutura total,
chegar-se-ia á conclusáo oposta; a fim. de analisar a relagáo entre
esses modos de produgáo, deve-se primeiro analisar a relagáo entre
as dua's classes. Marx procede dessa forma na análise da “génese da
renda capitalista da térra”. Em sua análise, como na nossa sobre a
sociedade segmentária em geral, o fato de que a exploragáo náo se
manifesta — ou se manifesta muito pouco — individualmente atra­
vés dos exploradores, náo nos impede de falar de exploragáo. Discuti­
mos detalhadamente em nosso artigo anterior (“Théorie de l’histoire
des échanges”, com G. Dupré) as razoes pelas quais o conceito de
exploragáo proposto por Godelier náo tem nenhum valor científico
nem aplicagáo: “há exploragáo quando um grupo se apropria de um
excedente, sem contrapartida”. Náo retomaremos essa discussáo.
A articulagáo que encontramos entre os sonjo, entre a classe
possuidora da térra e a classe que controla a irrigagáo, é o inverso
da articulagáo geral de Wittfogel encoptra nos regimes hidráulicos
de despotismo oriental. O fato de que os sonjo constituem pequeña
populagáo de 4 500 habitantes náo invalida isso. Entre os sonjo, o
controle de irrigagáo, sem transformar profundamente o sistema polí­
tico de linhagem, possibilita que ele funcione de forma diferente do
que nos sistemas puramente segmentários. Náo é descabido pensar
que a modificagáo sofrida pelas sociedades hierarquizadas devido á
hidráulica seja da mesma ordem. Em outras palavras, se náo há razáo
para pensar que qualquer sistema agrícola hidráulico necessariamente
implica controle burocrático, pode-se justificadamente pensar, por
outró lado, que um sistema hidráulico controlado por um poder polí­
tico hierarquizado tende a transformar esse poder em burocracia: o
sistema de cíás, riesse caso, náo é necessariamente destruido, mas náo
tem o papel dominante que tem nos regimes banto e semi-banto (por
exemplo no Congo, no Ashanti), onde mantém ...posigáo dominante
na reprodugáo da estrutura de exploragáo.
Estamos propensos a pensar que a agricultura hidráulica somente
pode gerar burocracia quando a “escravidáo generalizada”, de que
fala Marx, já está estabelécida; quer dizer, quando um processo interno

166
ao nivel político dominante excluiu da “comuna” a grande massa da
populagáo. Analisaremos esse processo em detalhe com relagáo á
área em que nós próprios trabalhamos (Bapunu e Bakuni, no Congo
Brazzaville) , considerando o tipo de escravidáo que é causado” pela
forma de reciprocidade em que ó escravo é um bem de prestigio antes
de se tomar fundador de urna ¡linhagem “escrava”, para sempre
excluida da posse real da térra. ¡Contrastaremos essa escravidáo á
escravidáo “antiga” descrita por Marx, em que o escravo é primeira-
mente bem de produgáo, “acessório orgánico” do solo. Temos, aqui,
dois caminhos diferentes, ao longo dos quais as sociedades se dividem
em classes. Esse é o significado que podemos dar á breve reflexáo de
Marx sobre a escravidáo, que já citamos:
“Escravidáo, servidáo etc. onde o proprio trabalhador aparece
entre as condicoes naturais de produgáo para um terceiro individuo
ou comunidade (este nao é o caso por exemplo da escravidáo geral
do Oriente, apenas do ponto de vista eürbpeu)” (Grundrísse, págs.
495-496.)

VI — CONCLUSÁO

O artigo de Terray analisa a tese de Meillassoux, tomando como


ponto de partida o nivel das forgas produtivas. Enfatizamos o quanto
essa análise nos pareceu importante. Se tentamos porém, articular as
outras instancias da formagáo social gouro, por exemplo a das rela-
goes de produgáo com esse nivel das forgas produtivas, a perspectiva
estática de Terray é incapaz de auxiliar-nos. Recusando-se a fajar
do “nivel dominante” da realidade social, Terray é incapaz de con­
siderar as relacóes entre as forgas produtivas e as outras instancias
do ángulo da causalidade estrutural. Daí, ser ele incapaz de explicar,
satisfatoriamehte, tanto as correspondencias quanto as náo correspon­
dencias entre as relagoes de produgáo e o caráter das forgas produtivas.
Ele náo podé explicar nem os efeitos das. instancias política e ideo­
lógica, e sua determinagáo em última instancia pelas forgas produtivas;
nem a reprodugáo do modo de produgáo dominante, ou a reprodugao
de sua dominagáo sobre os outros modos de produgáo que expós em
sua análise, ou a natureza dessa dominagáo e da dominagáo ém geral.
Entretanto, o procedimento que tomou-possível abordar todos
esses problemas havia sido esbocado por Meillassoux (196Ó). É ver-
dade que essa abordagem se embasou numa análise pobre dos modos
de produgáo (no sentido restrito) dá sociedade de linhagem (“auto-
subsistencia” ), análise que Terray corrige. É certo que Meillassoux
enfocou exclusivamente a troca de mulheres e de bens de prestigio
-considerados enquanto simples substitutos dessas mulheres: daí, longe
de despontar cómo manifestagáo mais externa de urna instáncia polí-

167
tica dominante, essa troca despontava como torga motriz da repro-
ducáo da estrutura e devia explicar, da mesma forma, a árticulagáo
com outras estruturas (trocas “comerciáis” com os diulas, introdugáo
dé culturas para mercado,, após a coloniza cao), que eram sempré
consideradas enquanto absorgao de impostas externos (isto é, eventos)
pela estrutura tradicional.
. Apesar de nao ter dado tratamento teórico a respeíto, ele mostrou
claramente a importancia do "papel desempenhado pela reciprocidade
na estruturagáo dos andaos a nivel político. Isso permitiu urna análise
da reprodugáo do sistema de linhagem, e em conseqiiéncia, urna aná­
lise da dominagáo do modo de produgáo de linhagem, sobre os outros
modos de produgáo presentes na sociedade gouro. Pouco importa
que Meillassoux pensasse ter baseado sua análise na totalidadc da
produgáo, e nao na estrutura de cooperagáo, relativa somente á agri­
cultura: toda sua análise era enfocada na linhagem, e qualquer análise
da reprodugáo deve vir antes de urna análise da dominagáo. Em
outras palavras, se o fato de Meillassoux acreditar que estava tra­
tando com unj só modo de produgáo, e nao com vários, o impediu
de analisar a natureza da determinagáo em última instancia pelo nivel
das forgas produtivas, por outro lado, nao comprometeu o valor de
sua- análise da reprodugáo. Essa reprodugáo foi diretamente tomada
enquanto reprodugáo somente do modo de produeño de linhagem,
e precedeu assita, a análise de sua dominagáo sobre os outros modos
de produeño, e a análise da reprodugáo da totalidade da formagáo
social gouro.
A razáo disso é a natureza mesma da causalidade estrutural, e
sua diferenga fundamental da causalidade transitiva: o nivel político
dominante é determinado, enquanto nivel dominante, e estruturado
internamente pelo caráter das forgas produtivas; enquanto tal, ele
funciona como um nivel determinante em lugar das forgas produtivas.
Assim, urna intuigáo correta da estrutura e do papel do nivel domi­
nante, mesmo que acompanhada de aValiagáo errónea do caráter das
forgas produtivas, pode possibilitar que a análise seja féita correta-
mentc. Isso nao ocorferia com a causalidade transitiva, onde a única
fungáó do nivel político seria representar os reflexos vindos da base
económica, (assumindo que é possível conceber a “dominagáo” do
nivel político em termos de tal causaüdade). *
A análise que fizemos da articulagáo entre nivel determinante
em última instancia e nivel dominante está aínda embrionário. Para
repetir a expressáo de Balibar (que usou o mesmo método' em'- ' 5
“Reading Capital” com relagáo a um texto de Marx sobre o modo
feudal de produgáo), ela é urna “análise reduzida”. A análise com­
pleta deve colocar em jog'o as tres instancias: a económica, a política

168
e a ideológica:, como mosíra o texto de Aíthusser acerca da sobrede-
terminagáo das classes sociais.
No modo de produgáo feudal como é analisado por M arx,,,o
camponés “possui” a térra, más nao é o proprietário. O trabadlo
excedente pode ser apropriado somente pelo senhor feudal devido á
perda da liberdade dos camponeses. O camponés, utilizando os méios
de produgáo, está perfeitamente consciente do tempo de trabalho e
do tempo envolvido em trabalho excedente, e apenas “concorda” em
fornecer este último sob coergóes exteriores ao nivel das forgas pro­
dutivas. ■ - *
Nao há nada que indique “a priori” se essa coergáo é política
ou ideológica.
(Nota: no caso sul-americano, em que os senhores feudais con-
trolam ao mesmo tempo a comercializagáo do produto, a coergáo
pode ser também económica, mas exterior ao nivel das forgas produ­
tivas: controle pela circulagád.)
Na vérdade, essa coergáo é a aríiculagáo desses dois níveis que,
conjuntamente, asseguram a reprodugáo da estrutura de exploragáo;
inas com esta articulagáo a coergáo dominante é passível de mudanga.
O texto de Marx (Capital, I) acerca do papel dominante da religiáo
católica na Idade Média e o texto sobre a apropriagáo do trabalho
excendente (Capital, III), onde o nivel político desempenha papel
dominante no modo de produgáo feudal, náo sáo contraditórios: eles
simplesmente refletem mudanga da coergáo dominante. Observemos,
agora, a situagáo ñas sociedades de linhagem.
Em sociedades segmentárias, o nívei ideológico desempenha papel
muito grande na reprodugáo da estrutura: o papel do culto aos ances-
trais que na produgáo agrícola está ñas máos dos anciáos, o papel do
anciáo enquanto representante do ancestral, a representagáo ideoló­
gica em termos de parentesco das unidades políticas maiores, e a
consolidagáo ideológica da integridade da linhagem que é a menor
unidade. Nós simplesmente, gostaríamos de colocar aqui as variagóes
da articulagáo entre as instancias política e ideológica na reprodugáo
da estrutura. Há, ántes de mais nada, variagóes internas á própria
instancia política: com o declínio na troca de bens entre os anciáos,
da proibigao da escravatura e da supressáo das guerras tribais, como
conseqiiéncia da penetragáo colonial, a reprodugáo da estrutura seg-
mentáriá durante esse período envolveu, essencialmente, a troca de
muí Iteres.
Mas, as condigóes dessa troca sáo alteradas: a hostilidade entre
linhagens, aldeias e tribos náo se manifesta táo violentamente por
causa do efeito combinado da Iuta comum. (seja passiva ou ativa)
contra a colonizagáo e a proibigáo das guerras. A estrutura política

169
tem que levar em consideracao um fato novo: a presenta de cheles
nomeados pela adnjinistragáo colonial que inverte o sistema tradicio­
nal. A poligamia nao é mais um meio de aumentar, a dominacao
(através do aumento da escassez de mulheres), mas sinal dessa do-
minagáo que tem sua fonte noutra parte: ela toma, entáo, proporcñes
deSconhecidas antes da colonizacao. Por outro lado, a diminuigáo da
hostilidade entre as diferentes unidades reduz a solidariedadé entré os
anciáos. Os jovens reduzem a dependencia enelusiva que tinham com
os anciaos, sendo inclusive menos dependentes deles para encontrar
mulheres. A bruxaria se desenvolve em duas diregoes principáis: os
anciaos acusam os chefes nomeados pela administracao, especialmente
se estes chefes sao dependentes ou escravos e os andaos acusam seus
jovens. A reprodugáo da estrutura de exploragáo evidencia, portanto,
a importancia crescente da instancia ideológica, mas essa instancia é
também modificada internamente. Parece, realmente, que a bruxaria
era virtualmente desconhecida por numerosas sociedades antes do pe­
ríodo colonial. (Sobre isto ver Barbara Ward, “Some observations
on Religioüs Cults”, Africa, 26, 1956.) Á medida que a bruxaria se
desenvolve, os cultos antigos perdem importancia (como diz Ward,
eles sao incapazes dé enfrentar os novos problemas), e novos cultos,
freqüentemente urna arma ñas máós dos elementos “modernistas”
contra os anciáos (feiticeiros), surgem contra a bruxaria.
Um segundo momento para o aumento vertiginoso das acusan
goes de bruxaria é o desenvolvimento da circulacáo monetária, como
conseqiiéncia da introdugáo do trabalho assálariado e das culturas
para o mercado. No primerio caso, particularmente se a sociedade
já está politicamente enfraquecida (e nós vimos que este náo é o
caso dos sonjo), o dote assume a forma monetária e certo número
de jovens tem acesso as mulheres sem ter de passar pelo anciáo. Ñas
sociedades segmentárias, os anciáos lutam desesperadamente para
evitar perder este último meio de controle (ver sobre isto as análi-
ses de Raulin sobre os beté da Costa-do-Marfim, em “Problémes fon-
ciers de Gagnoa et Dalca” ). O crescimento proporcional do dote é
rápido porque a quantidade de dinherio em substituicáo aos bens de
prestigio que está circulando entre os anciáos é continuamente aumen­
tada pelo dinherio pago pelos jovens assalariados: a quantidade to­
tal de dinherio circulando por meio do dote numa área matrimonial
aumenta, portanto, muito mais rápidamente do que o número de ca­
samentas que essa circulacáo permite; logo, a proporcáo de cada
dote específico aumenta. Os anciáos, que controlam o dote por meio
da simples estratégia de circulacáo, náo se sentem incomodados, de
forma alguma, por esse aumento (exceto para um caso particular es-
tudado por Raulin, de um anciáo que tem muito mais dependentes
homens a quem tem que'dar dotes do que dependentes mulheres de

170
quem ele os recebe). Por outro lado, isso forca os jovens a fazer
enormes sacrificios financeiros ou a pedir assisféncia aos .andaos.
Nao há rázáo para que esse fenómeno cesse, já que os anciaos náo
consomem o dinheiró do dote em proveito individual, e isso nao pa­
rece estar acontecendo no momento. Ao contrario de urna análise
apressada baseada na oferta e na procura, essa análise mostra de
forma bem palpável, qué a poligamia, aumentando o número de casa-
mentos realizados em favor dos anciáos em relacáo ao número dos
realizados em favor dos jovens, únicos capazes de trazer dinheiró
novo para o circuito, tende a limitar esse crescimento do dote, e nao
a incrementá-lo.
Certos individuos, entretanto, tém dinheiró suficiente á sua dis-
posicáo para conseguir adquirir esposa sém nenhuma ajuda dos
anciáos (empregados assajariados, comerciantes), ou mesmo tomar
a esposa de outro homem, reembolsando seu dote: isso Cria novos
Conflitos entre os elementos modernistas e aqueles que permaneceram
mais dependentes da reproducáo do sistema 'tradicional (tanto an­
ciáos Como jovens). Daí, novo desenvolvimento da bruxaria, opondo
desta vez os individuos integrados no sistema comerciar ou capita­
lista contra os outros.
A importancia tomada, aqui, pela instancia ideológica se deve
a urna crise criada pela colonizacao e pela decomposigáo da velha
sociedade causada pela colonizacáo com suas intervengóes políticas
e, mais tarde, económicas.
É provável que na Idade Média a dominagáo da Igreja Cató­
lica se devesse á necessidade de centralizar os esforcos náo coorde­
nados dos senhores feudais em sua luta contra os estados burocráticos
orientáis, cuja organizacáo era feita em escala muito maior (ver, em
Wittfogel, urna comparacáo da eficiencia do recrutamento militar
nos dois sistemas).
Da mesma forma, no que diz respeito ao modo de producáo ca­
pitalista, os . períodos de crise podem trazer mudanca da instancia
dominante do económico para o político (Alemanha na primeira
guerra mundial e no nazismo). De forma mais geral, dependendo se
o capitalismo nacional é dominado. ou dominante, sua reproducáo
enquantó capitalismo nacional independente requer intervencáo do
Estado mais ou menos importante (no séeulo XIX: livre comércio
para a indústria inglesa, protecionismo para as indústrias dos outros
Estados).
A ideologia intervém cúmo último recurso, ou de forma aberta
(a religiáo) ou de formas mais sutis: assim, segundo Bukarin (“Po-
litical Economy of the Landlor” ), a diferenga da articulagao entre
a instancia económica e a instáncia política na Inglaterra e naqueles

171
países arneagados pelo capitalismo inglés determina a diferepga entre
a escola económica clássica inglesa e as escolas económicas histori-
cistás alemas. É certo que essas teorías, urna das quais proclama a
universalidade das leis do capitalismo, e a outra a especificidade de
cada desenvolvimento nacional, reforcam ideológicamente as políti­
cas já determinadas pelas respectivas situacoes económicas.
Esperamos ter demonstrado que a análise da instancia dominan­
te de um modo de producán (em sentido ampio) vem antes da aná­
lise da articulagáo desse modo de produgño com um outro. Esse
problema é particularmente agudo pára os marxistas contemporá­
neos. Enquanto os marxistas estavam convencidos de que a revolu-
gáo socialista nos países capitalistas desenvolvidos precedería a revo-
íugao nos países coloniais e atrasados, eles podiam satisfazer-sé com
análises do imperialismo visto do ángulo capitalista. Essa forma de
ver as coisas nao é mais sustentáveL Deve-se, portanto, observar a
dominagño capitalista da perspectiva dos países “atrasados”. Urna
vez tendo especificado a forma de dominagño, como estivemos! ten­
tando fazer, a. dominagño do capitalismo nao é mais absolutamente
tño obvia — vísta da perspectiva dos países colonizados — quanto
se é vista daquela do colonizador. É menos obvia aínda á medida
que nos afastamos das cidades e artérias principáis, á medida que
passamos das economías “camponesas” as economías de “auto-subsis­
tencia”. Ás vezes, essa forma de dominagño dá lugar a outras formas.
Mais freqüentemente nos defrontamos com urna combinagao de for­
mas. Há importantes conclusóes a se tirar disso, tanto do ponto de
vista tático quanto estratégico, na economía como na política.

NOTAS
A referencia é a urna versáo anterior inédita do ensaio “Historical
Materialism and Segmentary Lineage-Based Societies”, incluido em Marxism
and Primitiva Societies, Two Studies, por Emmanuel Terray (New York,
Monthly Review Press, 1972). N este livro E. Terray agradece “os comentários
gentilmente feitos por Pierre-Phillipe Rey (sobre minha primeira versáo) . .
(que) me possibilitaram corrigir alguns erros e esclarecer muitos pontos
obscuros”, (pág. 4) (nota do e .).
“O Modo de Producáo de Linhagem”, de P. P. Rey é tradupáo de um
manuscrito que data de janeiro de 1968, escrito em resposta á versáo original
inédita de “Le Marxism devant les sociétés primitivos”, de E. Terray. N a
. versáo publicada desse livro (edicáo em língua inglesa: “Marxism and Primitive
Societes, Monthly Review. Press, 1972), Terray tentou responder a pontos
. levantados neste manuscrito. As críticas de Rey ao livro de Terray podem ser
encontradas em seu Colonialisme, néo-colonialisme et transion au capitalisme,
París, Maspero, 1972, págs. 32-69.

172
IMPERIALISMO E REPRODUgÁO DO
CAPITALISMO *
A respeito de urna definicáo da Formagáo Social
Indonesia

Joel S. Kahn

Neste artigo, pretendo investigar as estruturas do colonialismo


e do imperialismo em urna formagáo social particular — a Indonésia.
A análise, aqui apresentada, nao é análise exaustiva; a rigor, concen-
tra-se numa passagem da análise de urna formagáo social, descrita
por Godelier (1976) da seguinte maneira:
Para definir urna formagáo social “deve-se elaborar urna defini-
gáo sintética da natureza precisa da diversidade e unidade das rela-
goes económicas e sociais que caracterizam urna sociedade, em dada
época”. Um passo na análise é “definir a forma exata. e o conteúdo
da articulagáo e combinagáo desses vários modos de produgáo em
urna ordem hieráTquica, na medida em que, um modo, de produgáo
domina os outros, e de certa forma subordina-os as necessidades e
lógica de seu próprio modo de funcionamento, e integra-os mais ou
menos no mecanismo de sua própria reprodugáo” (1974, pág. 63).
A definigáo sintética que tal análise produz deverá levar em
conta tanto a totalidade (a articulagáo de Vários modos de produgáo
numa estrutura dominante) como a diversidade das formas sociais.
No estudo de formas sociais e económicas numa sociedade “campo-
nesa”, isso significa que se deve ter capacidade para incorporar na
análise tanto a integragáo da sociedade num sistema capitalista mun­
dial, bem como as diferengas igualmente marcantes entre formas ca-

* Imperialism and the reproduction of capitalism, Critique of Anthropo-


logi, n.° 2, 1974 : 1-35. Tralucáo de Rinaldo S. Vieira Arruda.

173
pitaJistás e nao capitalistas de organizando que. compóem o sistema.
Além disso, essa' definicao pode ser exata somente se. se puder mos­
trar que há certa totalidade, ou seja, que as formas nao capitalistas
estao na verdade, de alguma fonna, dominadas pelo capitalismo. Isso
significa que se deve demonstrar a maneira pela qual as formas domi­
nadas se 'integrara no mecanismo de reproducán da forma dominante;
Nesse caso,- devemos mostrar como age a economía camponesa para
reproduzir relacóes capitalistas de producao.
■ Isso nos leva a um segundo ponto introdutório. A diversidade
de formas económicas significa que a reproducño do capitalismo por
outros modos de produgao provavelmente se dá através de estruturás
únicas, nao encontradas no modo de producao capitalista “puro”.
Embora as relacóes capitalistas de producao sejam reproduzidas atra­
vés de um processo de exploracao que se refere, específicamente, á
apfopriacao pela classe capitalista da mais-vaíia produzida pelo pro­
letariado, devemos supor que a exploracao nao deva ser o único
mecanismo de reproducño do capitalismo. Em se tratando da domi-
nacao de outros modos de produgao pelo capitalismo, devemos pres-
supor a descoberta de. novas formas de exploracao. Além disso, as
estruturás de tal exploracao devem ser científicamente tratadas; isto
é, nao podem ser descritas atrávés de formas fenoménicas, como a
pobreza. O processo e o mecanismo social para a transferencia de
excedentes devém ser descritos científicamente, antes de podermos
dizer que entendemos como é que o capitalismo integra outros modos
de produgao “no mecanismo de sua própria reprodugáo”.
Inicio a análise propondo urna .tipología de formas de organi-
zagao económica. Por enquanto, essa tipología será restrita a urna
única área geográfica, a Sumatra Ocidental, incluindo atividades eco­
nómicas de outros lugares somente quando esses outros produtos sao
comprados e vendidos nos mercados da Sumatra Ocidental. Além
disso, nao desejo de imediato dar qualquer validade teórica a essas
categorías; assim sendo, no decorrer do trabalho, deverño ser trata­
das como provisorias.

QUADRO I — Setores da Economía da Sumatra Ocidental


A) Cultura de subsistencia, normalmente em térras ciánicas
(suku) ou da aideia (nagari). Tipos de térra: sawah (elevadas, irri­
gadas) e ladang (cultivo em térras áridas). Inicialmente, produziam
arroz e vegetáis. ,
B) Produgao de mercadorias em pequeña escala: grupos de
máo-de-obra remunerada (forjaría de= metáis, trabalho em cobre, pes­
ca, cerámica, olaria, costura, carváo vegetal, trabalho em ouro e
prata).

174
C) Produgao de mercadorias em larga escala: apenas na Su­
matra Ocidental — alguma agricultura de larga escala, cimento e
xoupas, fábricas, fábricas de óleo e sabáo; em outras partes da Indo4
nésia — mineracáo, petróleo, agricultura de larga escala. Bens de
consumo e de capital produzidos para a venda na Indonésia, em Cin-
gapura, Malásia, Europa Ocidental, Estados Unidos e Japáo.
Antes de iniciar o desenvolvimento de um modelo teórico da
economía, desejo discutir brevemente cada urna dessas categorías.

A) Cultura de subsistencia
Na maior parte da Indonésia, a necessidade básica é o arroz. A
Sumatra Ocidental é um dos poucos lugares fora de' Java, onde o
arroz é cultivado principalmente em campos irrigados conhecidos
como sawah. Esse produto é comido pelo menos duas vezes ao dia,
freqiientemente tres, e constituí a parte maior na dieta das pessoas,
seja avahado pelo peso ou pelos pregos de mercado. Pelo menos na
Sumatra Ocidental, o consumo médio anual de arroz pode ser esti­
mado em cerca de 275 quilogramas por pessoa. Esse é o peso do
arroz bruto, ou colhido, que depois de beneficiado é reduzido para,
aproximadamente, 120 quilogramas de arroz descascado ou beras
(tal processo remove o farelo). Esse quadro é baseado no consumo
de urna familia média — os adultos, por exemplo, devem necessitar,
consideravelmente, mais do que a média.
Em 1971, o prego de mercado do arroz de qualidade semelhan-
te ao beras era de cerca de 60 rupias por quilograma. O prego de
mercado total de 120 quilogramas de arroz é 71.200 rupias, ou cerca
de 7,20 libras esterlinas ña taxa de cambio corrente daquele ano.
Urna familia de 5 membros necessitaria cerca de 36 libras de arroz
por ano. A renda per capita da Indonésia foi estimada em cerca de
50 libras esterlinas por ano. Dada urna renda média, com um único
assalariado e urna familia de cinco pessoas, um pouco mais de 70%
da renda familiar seria gasta em arroz.
Entretanto, esse cálculo é ilusorio para a maior parte da Indo-
nésia. Mesmo em Sungar Puar, a aldeia onde trabalhei, e que possuía
muito menos térra do que a média das provincias, havia 576 pro-
priedades rurais independentes de cultivo de arroz (um total de 93
ha) para urna populagao residente de 3.376 pessoas. Visto que urna
parte dessas propriedades eram ocupadas coletivamente e trabalha-
das em regime de rotagáo por varias familias, e visto que diversas
familias nao proprietárias tinham acesso á térra através do sistema
de meiagáo, pode-se observar que urna proporgáo relativamente alta
de pessoas obtinha urna parte do arroz necessário a partir de seu
próprio trabalho agrícola, ao invés de obté-la através do mercado.

175
Calculei que mais do que 20% do arroz necessário, anualmente, pela
populagao residente provinha do cultivo em térras da aldeia ou de
linhagens. A média per capita de posse da térra era de cerca de 0,021
hectares — cifra comparável á de algumas áreas semi-urbanas em
outras partes da provincia. Para a provincia como um todo, o cálculo
é bem maior, apresentando certa uniformidade relativa de rendimen-
tos, podendo ser estimado que na Sumatra Ocidental os aldedes, em
anos normáis, produzem mais de 80% do arroz necessário para seu
consumo.
Nao é o cultivo do arroz per se, o que me interessa aqui, mas
principalmente o cultivo do arroz para a subsistencia. Na área onde
trabalhei, devido á atomizacáo das propriedades e á quantidade re­
lativamente pequeña de térra, o arroz nunca é cultivado como mer-
cadoria. Em outras partes da provincia, e em outras partes da Indo-
nésia, o arroz excedente é vendido no mercado. Assim, a produgáo
de arroz para o troca seria considerada juntamente com outras for­
mas de producáo de mercadoria.
Em Sungai Puar, exístem várias formas de propriedades relacio­
nadas á térra de cultivo de arroz. Toda térra irrigada é ou sawah-
pusák (propriedade do ancestral) ou sawah nagari (térra da aldeia).
A maior parte das propriedades^ sao classificadas como pusako. Os
direitos para o cultivo estáo assentados ou em individuos (quase sem-
pre mulheres) ou em pequeños grupos dé mulheres da mesma matri-
linhagem. Um homem tem acesso á térra ou através de seu próprio
grupo matrilinear de parentes ou através de sua esposa.
A alienacao da térra como um todo está teóricamente limitada
pela linhagem como um todo. A térra pode ser vendida ou penhora-
da: neste último caso, ela-é fecuperada através do pagamento em
dinheiro da penhora. As restricoes á propriedade de térra pelo grupo
significam, normalmente, que antes de o cultivador poder vender ou
penhorar a térra deve obter a permissáo do chefe da linhagem ou
panghulu. As restrigdes existem mais para assegurar a manutengáo
da térra, primeiro dentro do grupo familiar e depois na aldeia, do
que para impedir a alienacao. Isso significa que o vendedor deve,
primeiramente, oferecer a térra aos parentes, e se nenhum deles de-
sejar comprar deve oferecé-la aos al deoes. Pelo menos, atualmente,
tais restricoes efetivamente nunca impediram a realizagao de urna
venda de térra.
Urna outra forma comum de acesso á térra, é através dos sis­
temas de meiagao. Em tais casos, só a semente é fomecida pelo pro-
prietário. O trabalho, ferramentas etc., sao Tornecidos pelo meeiro e
sua familia (do homem ou da mulher) que em troca dáo ao pro-
prietário, cerca de 1 /3 a 1/2 da produgáo.
O principal grupo envolvido no cultivo, qualquer que seja a
forma de propriedade, é a familia elementar, embora isso varié de

176
acordo com a participagáo ou nao das crianzas no trabalho agrícola
e com a contribuicao ou nao da forga de trabalho do marido na tér­
ra da esposa. A conseqiiéncia é urna grande flexibilidade na natureza
do grupo cooperativo implicado na atividáde de subsisténcia — a in-
tensidade do trabalho variando de acordo com as taxás de migracao,
grau de envolvimento na produgáo de mercadorias e coisas parecidas.
O principal trabalho de preparagáo da térra para o cultivo, a lavra,
a conservagáo e irrigagao do solo é normalmente feito pelos homens;
replantio, capina e a maior parte da colheita, pelas mulheres. Esses
sistemas tambám podem variar, dependendo da eficácia do trabalho
em determinados períodos de tempo.
As técnicas de cultivo sao relativamente primitivas. Mesmo o
arado pode nao ser usado, particularmente quando as propriedades
sao pequeñas. Conseqüentemente, a píodutividade varia de acordo
com a quantidade alocada de trabalho. Enquanto Geertz sugere que,
dado o crescente incremento da qüantidade de trabalho, os rendi-
mentos margináis possaiñ ser relativamente estáveis, parece que da­
das as técnicas de produgáo atuais, existe um tamanho ideal da uni-
dade produtiva — o aumento da quantidade de trabalho para alérn
dessa magnitude (optimal size) resulta, provavelmente, em rendi-
mentos margináis decrescentes. Da mesma forma, os retornos por
unidade de trabalho utilizado sao também mais baixos para as uni­
dades produtivas menores que o tamanho ideal. Como assinalei em
outra parte (a publicar em 1975), o setor de mercadorias experi­
menta um movimento cíclico. O resultado é urna variágáo de oferta
de trabalho ño setor de subsisténcia e, portanto, variagáo ña produti­
vidade dos cultivos de subsisténcia dependendo da conjuntura do
setor pródutivo de mercadorias. Retornarei adiante a esse ponto.
De maneira geral, há em média somente urna única colheita
anual de arroz em toda a provincia. Em algumas áreas, a térra-pode
produzir duas vezes; em outras,. cada dois ou tres anos. A maior
limitagáo parece ser a situagáo dos trabalhos de irrigagao, bem como
a taxa pluviométrica. Por isso, os campos elevados, bem gomó as
térras secas ( ladang) sao usados também para o cultivo de outras
variedades de prbdutos que nao o arroz. Em algumas áreas, culturas
comerciáis como batata-doce, amendoim, milho, mandioca, pimenta
malagueta, frutas (banana, duriáo 1, rambotá 2 e outras) sao comu-
mente usadas para subsisténcia.

1. DuriSo: fruto pequeño de urna árvore nativa da Malasia, pertencente


á familia das malvas, que possui propriedades medicináis que abrandam ou
amolecem inflamapóes (N . do T .).
2 . Rambotá: originária da regido Indo-Malaia. Dessa fruta extrai-se o
óleo. Algumas possuem a . propriedade de, depois de amassadas, produzirem
um líquido que quando jogado nos rios mata peixes em grande quantidade
(N . do T .}.

177
A agricultura, portanto, é ocupagño importante para a maior
parte dos aldóes da Sumatra Ocidental. Em Sungai Puar, 58% dos
habitantes tém acesso á térra da linhagem. Isso nao inclui grande
número de meeiros e trabalhadores assalariados. A maior parte do
arroz cultivado, bem como algumas culturas de produtos vegetáis sao
para a subsistencia. O produto é consumido diretamente pela fami­
lia elementar que normalmente trabalha a térra ou, em alguns casos,
por proprietários cujas térras sao trabalhadas por meeiros. Cntudo,
somente para alguns, a agricultura é urna ocupagao que exige tempo
integral. Em Sungai Puar, menos de 1% das familias possuem térra
suficiente para produzir o arroz necessário para o consumo anual.
Mesmo nesses casos, a famñia necessita, de alguma forma, receber
salários. Na provincia, a principal fonte de salarios pagos em dinheiro
vem da produgño de ínercadoria enu pequeña escala.
B) Produgao de Mercadoriá
Incluí nesta categoría, quase toda a produgao nao agrícola da
Sumatra Ocidental, bem como a cultura comercial; Nesse setor, a
organizagáo social da produgao varia das unidades produtivas indi­
viduáis as pequeñas unidades de produgao, empregando uns poucos
trabalhadores assalariados. Em ambos os casos, o empresário é tam-
bém trabalhador assalariado, ou pelo menos assim o era entre 1970
e 1972, dadas as condigóes da época. Além disso, nesse período pre-
dominava a forma de produgao individual.
Esse setor produz mercadorias, que sao específicamente desti­
nadas á troca. O valor de usó dessas mercadorias reside no fato de
que podem ser vendidas no mercado aberto, e o dinheiro é usádo
pelo produtor para comprar géneros de primeria necessidade, como
roupas e tecidos, materiais de construgao, lenha, parafina, lampari-
nas, fogóes, bicicletas, cigarros e também comida. Além do mais,
acrescente-se que nesse sistema, o assalariado deve pagar imposto go-
vernamenlal.
Na Indonésia, a organizagao da produgao doméstica de merca-
dorias nao pode ser descrita em termos absolutos, pois párece sofrer
desenvolvimiento cíclico. Assim, surgem em certos períodos históricos
empresas de produgao em larga escala, baseadas em relagóes de pro­
dugño capitalista emergentes, enquanto em outros períodos, a econo­
mía é caracterizada pela produgao de mercadorias em pequeña esca­
la, e pela produgao individual (ver Kahn, a ser publicado). Em qual-
quer período de tempo, portanto, podemos encontrar lado a lado,
modos de organizagao económica diferentes.
Isso pode ser ilustrado pelas anotagoes a respeito do trabalho
dos ferreiros com quem realizei -a pesquisa entre 1970 e 1972. Na
forjaría havia urna variedade de organizagóes para a produgño que

178
dependiam em parte do tipo de mercadorias produzidas. Os produtos
maiores, como machados e enxadas, eram produzidos por um grupo
de aproximadamente quatro ou cinco trabalhadores: normalmente,
uin ferreiro-chefe, dois homens para manejar urna pesada marreta,
um para operar o,fole, e algumas vezés um quinto para limar e polir
o produto acabado. ^ -
Outros produtos metálicos eram produzidos por um número
menor de pessoas. Foices e facoes, por exemplo, exigiam duas ou
tres pessoas; láminas de faca, somente duas pessoas. Sem dúvida,
a maior parte dos ferreiros (30% ) trabalhavam sozinhos; muitos
deles limando, dando acabamento, pintando e colocando cabos ñas
facas que compravam de outros ferreiros. Além disso, durante esse
período, os maiores grupos de trabalho eram baseados, só parcial­
mente, em um. sistema de trabalho assalariado. As láminas de faca,
por exemplo, eram em muitos casos produzidas por um homem e
seu filho, sendo que este nao recébia rienhum salário. ■
O nangkohod ou chefe-ferreiro exerce fungáo produtiva e em­
presarial. Por um lado, ele é necessário para o manejo do metal
quente na 'bigorna, para coordenar as pancadas da marreta e tra-
balhar com um dos martelos menores, mais aperfeicoado. Por outro
lado, o nangkohod é proprietário dos meios de produgao, garantindo
que um suprimento continuo de carváo e de fragmentos de acó es-
teja á disposieáo da unidade produtiva. Ele organiza a producáo e
trata da venda de todo produto com um comerciante, no mercado
próximo á cidade, retirando lucro.
A organizagao da pesca é semelhante. Na aldeia de Bungus,
barcos e redes sao propriedades de individuos isolados, que con-
tratam dez ou mais homens nos dias de pesca para lancarem a rede.
Barcos menores e mais baratos eram usados, individualmente, para
pesca notuma. Nesse caso, um ou dois homens trabalham juntos.
O proprietário do equipamento sempre recebia urna parte extra da
pescaría. Durante meu período de pesquisa, a forma predominante
de producáo era novamente a da pequeña unidade produtiva - - a
maioria dos pescadores trabalhava isoladamente ou aos pares, e pou-
cos possuíam ou manuseavam as redes maiores.
A produgao de mercadoria na Sumatra Ocidental toma essa
forma: tecido, cerámica, ouro e prata, trabalhos em madeira e as
principáis culturas comerciáis — borracha, canela, cravo-da-lndia,
copra3, chá, café e gamboa4 — sao todos produzidos como mer-

3. Copra:.améndoa de um tipo de coco; ,a parte comestível é secada e


preparada'para se extrair déla o copraol, -substancia gordurosa utilizada para
a preparacao de velas, supositorios etc.; natural da Malásia (N . do T .).
4. Gamboa: urna variedade de marmeleiro encontrado no Sudeste Asiá­
tico (N . do T.).

179
cadorias por produtores individuáis, ou. em. pequeñas unidades pro-,
dütivas, com o uso de trabalho assalariado. Esse seíor também
difere do setor A, na medida em que é baseado em urna forma de­
senvolvida de propriedade privada, conhecida na Sumatra Oeideütal
como harto pantjarian. Esta difere da harto pusarko, porque é livre
das relagóes matrilineares que, pelo menos teóricamente, limitam o
acesso á propriedade da linhagem. A térra é ao mesmo tempo, li-
vremente alienável e transmitida por heranga pela linha masculina.
Segundo o “Minangkabu 5”, o harto pantjarian está sujeito á lei de
propriedade muculmana, embora na verdade seja invariavelmente
herdada de pai para filho e de máe p arafilha. A evolugáo dessa
forma de propriedade originou-se da entáo chamada Guerra Padri 6,
em meados do séc. XIX, bem como da campanha ideológica feita
nesse século pelos modernistas mugulmanos, contra a influencia con­
siderada retrógrada do Adat 7 local ou leis de direitos consuetudi-
nários. Controvérsias acerca da natureza das parcelas de proprie­
dade individual complicaram a situagáo (ver, por exemplo, Tanner,
1969). Apesar disso, pode-se dizer que urna forma de relacáo de
propriedade burguesa desenvolveu-se na Indonésia, pelo menos logo
ápós o inicio desse século.
Como já assinalei, essas formas de produgáo de mercadorias
nao sao estáveis. Podemos distingui-las de várias maneiras da forma
desenvolvida de produgáo capitalista de mercadoria. Por um lado,
ao nivel das forgas produtivas, essas formas económicas locáis podem
ser chamadas subdesenvolvidas. Como as categorías apresentadas sao
mais empíricas do que teóricas, nao servem efetivamente para dis­
tinguir essas formas das formas capitalistas, com base ñas relagóes
produtivas. Se tomarmos a forma típica da produgáo local de mer­
cadorias da Sumatra Ocidental, a individual; a pequeña produgáo de
mercadorias, todas as diferengas tornam-se, entáo, mais claras. Nes-
tes casos, inexistem relagóes de produgáo capitalistas baseadas numa
classe proprietária é num proletariado nao proprietário. Por isso,
tanto a forma de salário como a forma lucro, náo existem.. As formas
locáis baseadas no trabalho assalariado seráo mais bem tratadas como
transitorias para o capitalismo.

5. Minangkabu: U m dos principáis grupos étnicos da ilha de Sumatra


(N. do T .).
6. Guerras Padri: guerras que possibilitaram aos holandeses a penetraqao
definitiva ñas régióes montanhosas de Padang (porto marítimo central da costa
ocidental da Sumatra), a partir de 1837 onde iñtrodüziram o cultivo do café
(N. do T .).
7. A base fundamental da ordem social existe na lei do “Adat”, tradi-
qáo^ legal intimamente ligada as experiencias histórica e social das diferentes
ilhas. A lei do “Adat” estabeléce principios de conciliagáo e assisténcia mú-
tua em torno dos quais evoluiu a sociedade indonésia (N . do T .).

180
C) Produgáo de mercadorias em larga escala
Na Sumatra Ocidental, grande parte dos produtos importados
sao produzidos em empresas capitalistas desenvolvidas, ou fora do
pdís ou em outras partes da Indonesia. Pode-se dizér que no período
entre 1970 e 1972 nao existia na provincia nenhum setor capitalista
desenvolvido. Na Indonésia, como um todo, o desenvolvimiento da
produgáo capitalista em larga escala foi limitado, pelo menos até
recentemente, á extracao para a exportagáo, de petróleo e outros
mineráis, por companhias controladas por estrangeirós. Outros im­
portantes bens de consumo (bem como a maioria dos bens de capi­
tal), como tecidos, bicicletas, automóveis, medicamentos e outros,
sao de um modo geral, produzidos fdra do país. Além disso, há na
Indonésia alguma agricultura de larga escala (“pl antañón” ), orga­
nizada em linhas capitalistas, bem como urnas poucas fábricas, tal
como a grande fábrica de cimento próxima a Paddng, na Sumatra
Ocidental, Coniudo, afirmaría que, de certa forma, o capitalismo
domina as formas de economia doméstica iia medida em que as en-
volve na sua própria reprodugáo.
Como afirmei, para que isso seja demonstrado, devemos de­
senvolver um modelo que seja mais abstrato do que o esboco tipoló­
gico que apresentei aqui. O modelo que usarei é composto de tres
modos de produgáo: modo de produgáo de linhagem, ou de subsis­
tencia, pequeña produgáo de mercadorias e capitalismo. Outras for­
mas económicas apresentadas na análise seráo tratadas como transi-
cionais. A pequeña produgáo de mercadoria, bem como a produgáo
de subsistencia des'empenham papel importante ná reprodugáo do
capitalismo, cujo subproduto e a estagnágáo das formas locáis de
produgáo de mercadoria. Por servirem para reproduzir relagóes de
produgáo do capitalismo mundial, acho possível argumentar que é o
capitalismo mundial que domina os outros modos de produgáo na
formagáo social indonesiana. Para demonstrar isso, ou seja, que o
imperialismo serve por um lado para reproduzir as relagóes do mundo
capitalista enquanto, por outro, preserva a estagnagáo ñas economías
dominadas, tem’ que ser compreendida a natureza precisa da articula-
gáo desses tres modos de produgáo. Caso contrario a afirmagáo adqui-
re caráter mais que ideológico. Como mencionei, minha intengáo
peste artigo é apresentar um primeiro passo na análise. Mostrar como
é que o capitalismo tem sido capaz dé integrar outros modos de
produgáo em seu próprio mecanismo de reprodugáo. Somente posso
sugerir aqui o que considero ser outros aspectos dessa. dofninagáo.
Para a situagáo que está sendo discutida, o trabalbo de A.
Grmder Frank tem importancia direta. A verificagáo das hipóteses
de Frank ajudam a estabelecer, empíricamente, a dominagáo do cá-

181
fatalismo, embora seja importánte ir além disto para descObrir os
mecanismos precisos dessa dominagáo.
! : RelembTando, Frank diz que: '
“O subdesenvolvimento, longe de ser provocado pelo ‘süposto’
v isolamenío dos póvos na expansáo capitalista m oderna.. . é o resul­
tado da incorporando integral desses poyos em uin sistema capitalista
completamente integrado, mas contraditório, que há muito tomou
conta de todos eles” (Frank, 1969, pág. 224).
Isso nos leva á hipótese de que:
“ . . . o s (países) V satélites experimentan! seus mais grandiosos
desenvolvimentos económicos e, especialmente seu desenvolvimento
capitalista industrial mais clássico, se e . qüando seus lagos com a
metrópole se torriam mais fracos” (1970, pág. .10).
Ñáo seria difícil demonstrar essa hipótese na Sumatra Ocidental
ou na Indonésia, da mesma forma que Frank a demonstrou na Amé­
rica Latina^ e da mesma forma que outros a demonstraran! em algum
outro local (ver, por exemplo, Hooqvelt e Child,, 1973). Se, como
supúnñamos, ó mundo capitalista domina a pequeña producáo de
mercadorias na Indonésia pela integragáo desta em seus mecanismos
de reprodugáo, eiitáo naqueles períodos em que tal integragáo é amea-
gada, encontraremos um crescimento da produgao de mercadorias no
país, e urna transigao para formas capitalistas (de produgao). Nao é
minha pretensáo investigar essa possibilidade mais pormenorizada-
mente (para análise mais detalhada, ver Kahn, 1974). Entretanto, te­
mos um exemplo na historia da industria de forjagáo, no período
entre 1958 e 1965. Durante esse período, houve mudanga enorme na
organizagao desse setor. Antes e depois desse período, a forjaría era
caracterizada pela predominancia da produgao individualizada, ou em
pequeña escala, nos moldes já .descritos anteriormente, enquanto du­
rante esse período, quase todos esses grupos de trabalhos menores
foram integrados em quatro grandes empresas. O interessante é que
essas quatró empresas apareceriam todas em um único período. Os
empresáríos foram capazes de obter lucros muito mais altos do que
aqueles desfrutados pelo nangkohod atual. Em primeiro lugar, sini-
plesmente devido ao tamanho da empresa, e conseqüentemeñte, pela
qúantidadé de tempo de trabalho, quantitativamente maior que pode
ser apropriado. As relagóes de produgao predominantes neste período
seríam denominadas capitalistas, Desenvolvimentos semelhantes fo­
ram observados em outras empresas domésticas,- como a manufatura
textil e as Culturas comerciáis.
Se observamos a situagao geral de economia indonesiana nesté
período, podemos dizer com clareza que esta se afastou da integragáo
na economia mundial. As importagoes e os investimentos estrangeiros

182
declinaram agudamente, a ajuda extema foi cortada. Em parte, isso
foi. causado pela política económica de Súkámo, que era classificada
por ele próprio como “socialismo á Indonésia”. A nacionalizacáo das
empresas holandesas no final de 1957 resultou igualmente num corte
nos investimentos de outros países. O confronto cóm a Malásia, bem
como o conflito oom os holandeses a respeito do Irá Ocidental, sérvi-
ram, posteriormente, para o isolamento do país.
Talvez nao seja particularmente surpreendente que a reagáo dos
. cientistas sociais do Ocidente tenha sido désfavorável a essas medidas
políticas. Glassbumer, por exemplo, afirma que a política de Sukarno
teve efeito desastroso na economia indonesiana (ver Glassburner,
1971). Todavía, seus dados de apoio sao mui)0 pobres: as estatísticas
nacionais que usa para provar o declínio económico podem ser usa­
das igualmente paar mostrar o contrário (ver, Kahn, 1974, págs, 198-
211). A única evidencia observável na Sumatra Ocidental e que a
economia rural estava sofrendo transformagáo, nao em diregáo ao
“socialismo á Indonésia”, mas ao “capitalismo á Indonésia”.
Essas tendéncias se foram revertendo rápidamente depois de
1965, parece que particularmente devido a inflagáo nos prepos do
arroz (e á queda do regime de Sukarno). Essa inflacáo trouxe aos
empregados maiores necessidades que nao puderam ser satisféitas
pelos novos capitalistas. A reintegragáo nos mercados de importagáo
e exportacáo mundiais tornou as empresas locáis emergentes nao
competitivas, e o desenvolvimento na indústria de forjaría, bem como
naquelas manufaturas téxteis e ñas culturas comerciáis, sofreu retro-
cesso.
É necessário boa quantidade de pesquisa histórica sobre as mu­
danzas no setor doméstico de produgao de mercadería, antes de
pódennos supor que a hipótese de Frank foi provada no caso da
Indonésia, entre 1958 e 1965. Apesar disso, pensó que podemos
observar, dado nossos próprios propósitos, que os efeitos de isoja-
mento da Indonésia em face das relagóes capitalistas mrmdiais, mo-
dificaram ■as formas de dominagáo capitahstas da economia local.
Isso nao significa dizér que a exploragáo terminou — vimos mais ou
menos o contrário, que a exploragáo capitalista direta naquele período
na verdade pode ter aumentado. Possivelmente, seria mais seguro
supor que o desenvolvimento marcou a emergencia de um capitalismo
dominante dentro da Indonésia, tomando o lugar da exploragáo de
outro modo de produgáo pelo capitalismo.
Entretanto, como assinaleí, a demonstragáo empírica dos efeitos
do imperialismo nem explica os mecanismos de dominagáo, nem nos
permite analisar correta e politicamente a situagáo. Frank indica qué
a dominagáo capitalista desse tipo significa que a economia dominada
é também capitalista. Como indiquei, dado que as formas de explo-

183
ragáo podem diferir, consideravelmente, da exploragáo típica do modo
de produgao capitalista, seria imprudente, pensó eu, considerar a
formacao social total puramente como maniféstagáo de relagoes de
produgao capitalistas' (ver também LaClau, 1971). Quando vamos
analisar, por exemplo, a natureza do conflitó de classes nestas f or-
magóes sociais, estaremos igualmente enganados, se as considerarmos
tao somente capitalistas. Na Sumatra Ocidental, por exemplo, tentei
mostrar que somente quando a natureza da articulagáo do capitalismo
e da pequeña produgao de mercadorias sao abarcadas é que podemos
entender as coníradicóes básicas de classe, que tem, as vezes, levado
a conflitos violentos. As contradigóes de classe diferem considera­
velmente dos clássicos conflitos burguesia/proletariado, que aparecem
com o capitalismo, e sobre os-quais os partidos comunistas, mesmo
na Indonésia, tém baseado suas agoes (ver Kahn, 1974, cap. 10).
Urna teoría que tem sido seguida para explicar o modo de ex-
tragáo da mais-valia das economías subdesenvolvidas é baseada no
conceito de troca desigual. Do modo como foi particularmente for­
mulada por Arghiri Emmanuel (Emmanuel, 1972), tal teoría possui
urna série de fraquezas importantes, mas acho que comega por loca­
lizar corretamente o problema. Quero sumariar aqui, a afirmagáo de
Emmanuel, antes de tentar desenvolver o que considero ser seu as­
pecto mais importante.
O argumento de Emmanuel pode ser chamado de crítica ricar-
diana á Ricardo. Assim, parece ignorar algumas das principáis con-
tribuigoes de Marx — em particular, a análise da forma salario. A
teoría de Emmanuel é baseada na teoría dos custos comparativos,
mas exige modificagao ñas principáis assergoes de Ricardo. Ricardo
argumenta que se dois países pudessem produzir os mesmos - bens,
seria vantajoso p a ra . ambos, especializarem-se na produgao desses
bens, sobre os quais obteriam vantagem relativa. Usando seu exemplo,:
se a Inglaterra e Portugal produzissem tecido e vinho — mas Por­
tugal produzisse vinho mais barato que os tecidos, e a Inglaterra
produzisse tecido mais barato do que vinho — ' entáo seria vantajoso
a ambos os-países, se a Inglaterra produzisse somente tecido, e Por­
tugal somente vinho, e que trocassem esses produtos para satisfazer
suas necessidades básicas. O argumento permanecería o mesmo, caso
Portugal produzisse vinho e, tecido mais eficientemente do que a
Inglaterra.
Muito embora Emmanuel assinala que a teoría de Ricardo nao
deve fomecer a base para urna prática económica atual, irónicamente
ela permanece na. base de muitas teorías modernas dé comércio inter­
nacional. A .importancia da análise de Ricardo- em teorías modernas
de comércio internacional, está nítidamente resumida em recente tra-
balho sobre o assunto: ‘

184
T '

“Desenvolvimen'to teóricos neste século e meio desde Ricardo


substituíram a magnifícente simplicidade d e.suas demonstragóes ori­
gináis, por urna estrutura lógica elaborada mais amplamente e, mais ¡
recentemente, por um crescimento rápido ño volume de dados im­
píricos para testar a hipótese e a teoría. Entretanto, pode ser dito
que tem havido continuidade básica de desenvolvimento, com as con-
tribuicóes posteriores preenchendo lacunas no argumento original,
mais -do que alterando drásticamente as suposicoes ou controvertendo
a lógica dos pioneiros clássicos” (Findlay, 1971, pág. 17).
O argumento de Ricardo continuou na base de urna suposicao
a imobilidade internacional do trabalho e do capital. Emmanuel, sim-
plesmente, deixa a última suposigáo enquanto preserva a anterior.
Conseqüentemente, o modelo de Emmanuel é básicamente ricardiano,
exceto naquele ponto em que presume urna mobilidade de capital,
livreménte, através de fronteiras intemacionais, acompanhada de urna
equalizacao internacional da taxa de lucro. A validade das hipóteses
de Emmanuel foram desafiadas (ver, por exemplo, Bush, 1973). No 1
momento, proponho aceitá-las.
Emmanuel pressuppe, entáo, que existem dois tipos de troca
desigual. Eu as reproduzi no Quadro I. O Quadro I descreve o que
Emmanuel chama troca desigual, no sentido geral. Esta é simples-
mente a fórmula de Marx para calcular os precos de produgao. A
única diferenga entre o país Á e o país B é a diferente composigáo.
orgánica do capital (isto é, urna proporgáo mais elevada de capital
constante em relagáo ao capital variável). Se os dois países fossem
trocar na base da quantidade de tempo de trabalho personificado
em duas mercadorias, eñtao a taxa seria 360B = 240A (A leva mais
tempo para produzir do que B, conseqüentemente menos unidade de i

Quadro I
TROCA DESIGUAL NO SENTIDO GERAL (EMMANUEL, p. 55)

c V m V T P L
PAIS capital capital mais Valor Taxa de lucro prego de
constante variável valia c+v+m . lucro produgao
A 240 60 60 360 75 375
25%
B 120 60 60 240 45 225
TOTAL 360 120 120 600 120 600

Troca em valor: 360B = 240A


Troca em precos de produgao (taxa de lucro igu al):
375B = 225A
T = total/m (total c + total m)

185
A sao trocadas por mais unidades de B ). Entretanto, dada a ten­
dencia da taxa de lucro equiparar-se, a táxa de troca é 375B = 225A.
O país A entao ganha 30 horas de tempo de trabalho, aparentemente
um excedente oriundo através da troca com o país B.
Nao devemos nos estender sobre essa forma de troca, dado que
o próprio Emmanuel coloca que ela deve também aparecer entre dife­
rentes ramos da industria, em um único país. De fato, Samir Amim
esforga-se por demonstrar que tal troca nao leva á estagnagáo no
setor de capital menos intensivo. Ao contrário, significa que o ritmo
de desenvolvimiento das forgas produtivas no setor de trabalho in­
tensivo é determinado pelo setor de capital intensivo (Amin, 1973).
Emmanuel vai adiante na localizagao de urna segunda forma de
de troca desigual, a que chama de troca desigual no sentido restrito
(exemplificada no Quadro II). Esta é baseada nao em diferente com-
posigao orgánica do capital, mas, ao contrário, em salário diferencial.
Tomando os salários como variável independente, Emmanuel mostra
que um país com salários mais baixos — indiferente á composigáo
técnica do capital — perde na troca com um país com salários mais
altos. As suposigoes existentes por trás do quadro II, e que demons­
tran! esse efeito, sao colocadas nestes termos:
“Se supomos que os salários em A sao dez vezes mais altos do
que em B, mas que A possui urna intensidade de trabalho duas vezes
maior que B, o custo da forga de trabalho em A é cinco vezes o que
é B. (Emmanuel, 1972, pág. 60).

Quadro II
TROCA DESIGUAL NO SENTIDO RESTRITO (EMMANUEL, p. 64)

c V m V R P L
PAÍS capital capital mais- valor custo de lucro prego de
constante variável valia c + v + m produgao produgao
A 50 100 20 170 150 60 210
B 50 20 100 170 70 60 130
TOTAL 100 120 120 340 220 120 340

Taxa de lucro == 25%


Troca em valor : 170A = 170B
Troca em precos de produgao: 210B = 130A

Estamos portanto, falando de dois países capitalistas. Pressupoe-


se que em ambos, a taxa de mais-valia em relagáo ao trabalho neces-
sário é a mesma. Com salários mais baixos em B — a mais-valií

186
potencial é mais alta. A taxa de troca, dada a equiparado da taxa
de lucro, será entáo 21OB .= 130A, ao passo que se os dois países
trocassem em termos de tempo de trabalho, a taxa seria igual, isto é,
170A = 170B. Conseqüentemente, A párece extrair mais-valia de
80 de B, através da troca. Nota-se que somente os salários diferem,
nao a composiqáo técnica do capital — ambos portanto, sao igual­
mente trabálho intensivo em termos de relacáo técnica, e nao valor,
entre o número de trabalhadores por unidade de capital.
O trabalho de Emmanüel provocou grande número de discussoes
in'tcressantes entre marxistas, e promoveu urna série de críticas. Minha
intencáo nao é rever aqui a discussáo; o leitor pode orientar-se pelos
seguintes trabalhos, aínda que a reí acao seja incompleta: Betteíheim
“in” Emmanuel, 1972; Samir Amim, 1973; Brush, 1973; Chatelain^
1971; Pilling, 1973, bem como, Emmanuel 1974. Entretanto, o que'
parece importante é que a tese de Emmanuel sugere urna forma de
dominagáo somente através do mercado, o que é difícil de imaginar.
De fato, dadas as colocaqoes, o argumento parece mais do que obvio,
e os fatos importantes sao deixados sem explicagáo. Por que, por
exemplo, os salários seriam mais baixos? Emmanuel ressalta que, para
Marx, os salários variam de acordo com critérios essencialmente so-
ciais. Entretanto, ísso nao significa, como ressaltam as críticas a
Emmanuel, que os salários possam ser tratados independentemente.
Como é que, apesar das desvantagens de troca desigual, caso esta
exista, ela continué a existir? Finalmente, copio insinúa o argumento,
é certo que a classe operária de países desenvolvidos explora as eco­
nomías de países subdesenvolvidos, em seu todo, através de salários
mais altos?
Talvez o ponto essencial das críticas seja a tendencia de Em­
manuel em considerarar salários. como variável independente. Isso
permite a construcao de modelos empíricos que atribuem urna cau-
salidade mecánica as formas fenoménicas (cf. as críticas de Bettel-
heim, Samir Amim, op. cit.). As fórmulas desenvolvidas por Marx para
ilustrar aspectos específicos do modo de producáo capitalista sao usa­
das por Emmanuel como se fossem estruturas reais de economías
particulares.
Entretanto, é possível desenvolver um aspecto do argumento de
Emmanuel, no sentido de ajudar a explicar o papel desempénhado
por outros modos de produgao na reprodugáo, tanto do capitalismo
como das relacoes do imperialismo. Para isso, devemos olhar criti­
camente o tratamento que Emmanuel concede aos salários.
Para Marx, a forma salário é simplesmente manifestagao da re­
lacáo do capital, que permite ao capitalismo explorar a torga do
trabalho, que produz mais-valia. Para os economistas burgueses, os
salários representan! o prego do trabalho, um conceito que toma im-

187
possível a conceituagáo da teoría de mais-valia em s.eu conjunto.
Marx foi capaz de compreender essa conceituagáo e mostrar que os
salários nao representam o preco do trabalho (como se ele fosse qual-
quer mercadoria) e sim o custo de reprodugao da forga de trabalho.
O custo de reprodugao da forga de trabalho deve ser entendido como
aparte do tempo de trabalho da soeiedade, qué é aquinhoada para a
reprodugao desse trabalho; um custo que é claramente determinado
socialmente e nao ecológicamente. Conseqüentemente, como assinala
Emmanueí, os salários nao sao estabelecidos a partir de Uní mínimo
calórico ecológicamente determinado, o que nao significa que sao
independentes de qualquer forma de determinagáo (cf. Bettelheim,
op. cit.).
Além disso-, á análise de Marx sobre a forma salário foi desen­
volvida dentro de .urna teoría do modo de produgáo capitalista, ou
sejá, Marx tratava exclusivamente com a forma salário capitalista.
Se estamos estudando os salários em urna formagao social específica,
nao devemos, imediatamente, supor que todos os pagamentos de tra­
balho que paregam á prímeira vista ser salários sejam necessariamente
salários no sentido restrito da palavra.
Pois bem, é claro que na Indonésia, os salários sao muito mais
baixos do que nos países desenvolvidos, capitalistas. Dada essa
discussáo, é possível questionar por que isso acontece. Parece haver
duas possibilidades. A prímeira é que o custo de reprodugao da forga
de trabalho é menor nesses países; a segunda, é que o que parece
ser salário, por alguma razáo, nao equivale ao custo total de repro­
dugao da forga de trabalho.
A prímeira possibilidade pode ser demonstrada inadequadamente
como explicagao. O próprio Marx assinalou isso, dizendo que salários
nomináis diferentes, nao significam, necessariamente, salários reais
diferentes. Ele compara dois países: no primeiro, a produtividade do
trabalho é alta, no segundo é baixa. E, entáo, diz:
“Fréqüentemente, nota-se que o s a lá rio ... diário ou semanal
etc., na prímeira nagño é mais alto do que na segunda, enquanto o
prego relativo do trabalho, isto é, o prego do trabalho em relagáo,
tanto com a mais-valia como com o valor do produto, permanece
mais alto na segunda nagáo do que na prímeira” (1967, vol. I,
pág. 560).
Em outras palavras, em um país com urna produtividade de
trabalho relativamente alta, parte menor do tempo de trabalho total
é “perdida” na reprodugao dé forga de trabalho. A economía menos
desenvolvida deve, na verdade, gastar mais de seu tempo de trabalho
na reprodugao de sua forga de trabalho.

188
Voltemos á segunda explicagáo possível, de que o que é pago
como salário é, de fato, menor do que o custo de reprodugao de
forga de trabalho. Isso parece nos aproximar muitó mais das respostas
as questoes levantadas em um estado da economia indonesiana. Como
vimos, na Indonésia nao temos um modo de produgáo capitalista de­
senvolvido, no qual. a forga’de trabalho é alienável livremente devido
á existencia de urna classe sem acesso aos meios de produgáo. Urna
grande parte da populagáo trabalhadora no setor de mercadorias, tem
acesso aos meios de produgáo no setor de subsistencia. O trabalhador,
seja através de seu próprio trabalho agrícola (do homem ou da mu-
lher), ou através do trabalho da familia elementar (ou do meeiro
arrendatário), recebe parte de suas necessidades de subsistencia, fora
do setor de mercadorias de modo geral. Em outras palavras, a forga
de trabalho da sociedade nao é reproduzida totalmente no setor de
mercadorias.
Isso pode ser exemplificado na observagáo do processo de toma­
da de decisries de urna firma capitalista hipotética. Devemos pressupor
que o capitalista oferecerá os mais babeos salários possíveis, no sen­
tido de maximizar seu lucro. Se oferecer um salário que seja igual
ao custo de reprodugao de forga de trabalho, nao terá dificuldade para
encontrar trabalhadores. Entretanto, quando observamos a forga de
trabalho como um todo, podemos observar que parte déla tem acesso
aos meios de produgáo no setor de subsistencia. A tendencia dos sa­
lários oferecidos pela indústria será entáo de cairem abaixo da taxa
na qual a forga de trabalho é reproduzida, devido á competigáo pelos
empregos que permitem renda em dinheiro. Em tais casos, mesmo
o náo proprietário terá que aceitar os salários mais baixos do que
receberia no caso de urna forma pura de capitalismo.
Vamos, agora, tomar o caso da pequeña produgáo de merca-
doria. Esse pode ser ilustrado pelo caso de pequeños proprietários
individuáis, produzindo borracha para a exportagáo internacional.
Digamos que os produtores individuáis de borracha, em média, pos-
suem térra suñcíente para prqduzir (seja através de seu próprio tra­
balho, seja através do trabalho de outros membros de suas familias
elementares) 80% de sua necessidade anual em arroz, ou talvez
quando medida em dinheiro, metade de suas necessidades anuais de
subsistencia. Para calcular o prego de produgáo para a borracha, na
pequeña pTodugáo de mercadorias — podemos usar a fórmula que
descreve o custo de produgáo dos componentes do prego — ou seja:
C + L = P
onde C é o custo de reprodugao do capital constante e L o custo de
reprodugao do produtor. Digamos que C = 100 e L = 100. Entáo,
numa economia composta somente de pequeños produtores de mer-

189
cádorias,;o prego da borracha seria 200. Dado o fato de que metade
das ñecessidades de subsistencia dos produtores sao satisfeitas pelo
cultivo de subsistencia, L necessita entao ser someñte igual á metade
do custo de producao do trabalhador. Nesse caso, o prego da borracha
seria 150. Além disso, o grau em que o capital constante é produzido
localmente, afetará também seu custo de reprodugao — porque o
tempo de trabalho corporificado em C é também reproduzido fo ra '
do setor de mercadorias. Dado que todo capital constante é produzido
dentro desse setor, entao o prego final da mercadoria borracha será
igual á metade de seu custo de reprodugao. Se imaginamos um pro-
dutor individual, com menos do que a quantidade média de térra
para o cultivo do arroz — é possível ver como, no final das contas,
ele será forgado, devidO' á competigáo, a vender seu produto ao
prego médio.
Isso nos leva a urna segunda conclusáo interessante. Produtores
individuáis, em geral, deveráo ter acesso a quantidades suficientes de
térras para cultivar arroz, para poder entrar no mercado. A longo
prazo, os processos de formagáo de prego no setor de mercadoria
tornaráo isso difícil para aqueles que dependem totalmente dessa
renda para garantir sua parte do mercado. Isso é confirmado em
minhas estatísticas que mostram que os produtores individuáis, bem
como os proprietários de pequeñas empresas tendem, em média, a
possuir mais térras para o arroz do que outros habitantes na aldeia.
No que diz respeito aos empregados civis de níveis inferiores, grande
parte deles vem das classes nao proprietárias de térra na aldeia. Isso
é, em parte, resultado do fato de que os níveis salaríais ñas grandes
empresas sao abaixados devido á reprodugao de forga de trabalho no
setor de subsistencia. De fato, essa relagáo é muitas vezes'preservada
simbólicamente, na prática de alguns empregadores em proporcionar
a seus empregados, pagamento anual em arroz, tecido e outros bens
de subsistencia, além do salário.
Finalmente, isso ajuda, também, a explicar a tendencia em dire-
cáo á produgao atomizada e á estagnagáo tecnológica. Há dois fatores
principáis que se contrapóem ao crescimento da produtividade e o
abrandam (isto é, aumento na composigáo orgánica do capital).
Primeiro, grande parte do tempo de trabalho social total nao é capi­
talizado no setor de mercadorias. O trabalho dispendido no setor de
subsistencia contribuí para o custo da produgao de mercadorias.
Através da troca com bens produzidos em economías capitalistas
mais desenvolvidas, muito desse tempo de trabalho é drenado para
fora. Segundo, o desenvolvimento tecnológico decorre da importagáo
de bens de capital das mesmas economías capitalistas desenvolvidas.
Devido a que os pregos dos bens de capital produzidos localmente
sao depreciados artificialmente (porque o total dos custos do trabalho

190
de sua produgáo nao está incluido em seus pregos) e, na verdade,
devido a que o prego de bens de capital importados pode ser infla-
cionado artificialmente, o desenvolvimento tecnológico toma-se menos
lucrativo do que poderia ser. Naturalmente, isso tende a reproduzir
a divisáo internacional do trabalho através do tempo, de modo que o
setor de mercadorias local permanece subdesenvolvido, a agricultura
de subsistencia local permanece estagnada, e os salários no setor de
mercadoria continuam a ser depreciados porque a forga de trabalho
é ainda reproduzida, em parte, no setor de subsistencia.
Até este ponto, seria possível dizer que a análise é ricardiana
— ela trata como fundamental a circulagáo de mercadorias. Na parte
final do artigo, mostrarei como pensó que o tema deva ser desen­
volvido, de modo que possa ser alcancáda urna explicagáo satisfa-
tória do imperialismo, a dominagáo de outros modos de produgáo
peló capitalismo.
Para Marx, as categorías de economía política eram, em um
sentido importante, fenoménicas. Capital, mercadorias, salários, lu­
cros, valor de troca e outras poderiam ser entendidas somente como
manifestagóes de relagóes na base da sociedade. Essas categorías naó
poderiam ser tratadas como condigóes absolutas de existencia humana,
e sim, como manifestagóes específicas de certas condigóes sociais e
históricas (ver a crítica de De Brunhoff aos neo-ricardianos, 1974).
Do mesmo modo, devemos considerar o imperialismo como umá
estrutura específica de relagóes sociais, reproduzidas através do tempo,
e que produz um resultado particular, anteriormente descrito.
Nestes termos, é tarefa extremamente difícil analisar correta-
mente a situagáo em qualquer formagáo social particular. Com relagáo
á Indonésia do séc. XDÍ, os problemas sao claramente delineados.
Culturas de exportagáo, principalmente agúcar e café eram realizadas
em térras da aldeia, através de trabalho agrícola nao remunerado.
Ñas áreas onde esse sistema era implementado, os aldeóes eram for-
gados, através da pressáo do poder colonial superior, a usar parte de
suas térras para a cultura de exportagáo e a doar parte de seu trabalho
para o cultivo desses produtos. Os produtos ou eram vendidos ao
govemo, ou apropriados por ele. Isso era efetuado amplamente em
Java e na Sumatra principalmente através dos pequeños proprie-
tários individuáis. A base da economía de subsistencia local era
preservada — os trabalhadores estavam efetivamente impedidos de
entrar no setor de mercadorias exceto na medida em que efetivassem
o trabalho vigente. Enquanto o sistema era imposto pela forga através
da preservagáo de um setor “tradicional” ossificado, os holandeses
esperavam impedir o surgimento de urna consciencia da situagáo que
poderia vir a pressionar a hegemonía holandesa. Em tal situagáo, é
poSsível falaí-se de dominancia da instancia política.

191
Entretanto, com o abandono do cultivo forjado, apareceram
forrrps económicas diferentes. Os camponeses produziam agora tanto
para' o mercado local como para o mercado internacional, desenvol-
veram-se novas formas de propriedade, e o trabalho assalariado co-
mecou a aparecer. Mas, na verdade, a situacao pouco se modificou
desde a passagem do.século. Se a independencia encontrou algumá
coisa, foi somente urna tendencia mais forte para a produgáo do­
méstica em pequeña escala, fora dos “enclaves” sob controle estran-
geiro. Por isso, a situagáo económica acima descrita, tem sido rela­
tivamente estávei, apesar de urna série de violentos movimentos po­
líticos.
Como entendermos, entao, a preservagáo e intensificagao “pós-
colonial” de urna divisáo do trabalho mundial? Há urna série de fa-
tores que devemos examinar: o papel do Estado (e dos partidos
políticos) na Indonésia, o papel desempenhado pelo capitalismo fora
da Indonésia na ordenacao das estruturas políticas do país; as con-
seqüéncias da política económica indonesiana e também internacional
(auxilio do Banco Mundial á Indonésia etc. .. .) e a importancia da
ideologia da etnicidade incorporada na ideología de' desenvolvimento
que é baseada ná combinagáo do “velho e do novo”, tao típica do
socialismo do terceiro mundo.
É interessante notar, por exemplo, dentro do sistema legal indo-
nesiano, a importancia da lei “Adat” “tradicional”. De modo geral,
as disputas sao decididas dentro da estrutura de lei local, de modo
que os padrdes de posse de térra sejam raramente rompidos. Na
Indonésia, isto foi combinado cóm esforgos da parte do govemo em
regular ó prego do arroz e elevar a produtividade da agricultura. O
resultado tendía a ser a intensificagao da agricultura de subsistencia
e isso por sua vez, desencorajou o créscimentó de urna agricultura
mais eficiente, que serviría para quebrar a relagáo entre a produgáo
de subsistencia e a producáo de mercadorias, acima descrito. O te­
mido colapso da base de subsistencia resultaría num grau intolerável
de inquietagáo.rural. Na verdade, mesmo a agitagáo de movimentos
políticos populistas sempre foi dirigida contra as desigualdades na
distribuigáo da térra. Antes dos massacres de 1965, um dos principáis
objetivos do Partido Comunista da Indonésia (PKI) era a redis-
tribuigáo da térra aos pequeños propriétários camponeses, principal­
mente em Java. Isso serviu para afastar os camponeses militantes
dos problemas da coletivizagáo e dirigi-los no sentido de urna ética
da pequeña propriedade.
Da mesma forma, tiveram sucesso limitado os movimentos que
podém ser chamados de económico-nacionalistas. O regime de Su-
harto agiu consistentemente para preservar o clima propicio aos
investimentos estrangeiros e ao livre comércio, contra o que encarava

192
ser o limitado nacionalismo económico de produtores locáis. Nao
surpreende o fato de que permaneca considerável desconfianza em
relagáo ao movimento mugulmano modernista e seus líderes, que
estavam envolvidos ñas rebelióes regionais anti-Sukamo do final dos
anos 50. Servem de testemunho, a queda no ano passado, de figuras
como General Sumitro, que estava promovendo medidas populares
contra a dóminagáo estrangeira da economía; o tratamento dado
aqueles que lideraram as manifestagóes anti-Tanaka durante a recente
visita do Primeiro Ministro Japonés a Indonésia; e o destino de
Mochtar Lubis, um editor de jornal intimamente associado aos inte-
resses da burguesía local. Éstas sao somente algumas indicagóes do
modo com que o Estado indonesiano, particularmente sob o govetno
de Suharto, está preparado para defender o sistema atual.
Além disso, existem poucas dúvidas a respeito da intensidade da
interferencia estrangeira no sistema político da Indonésia. O Ocidente
considerou intervengáo direta. Os americanos estiveram envolvidos
em várias tentativas para derrabar Sukamo; apesar de aparentemente
apoiá-lo, envolveram-se, e há suficientes evidencias para apoiar a
alegagáo de que estavam metidos na posse de Suharto em 1965. Os
eféitos da ajuda estrangeira, combinados com os planos de desen-
volvimento locáis, tém normalmente fortalecido o setor de subsis­
tencia e desencorajado qualquer desenvolvimiento capitalista real na
Indonésia.
Finalmente, a ideologia de etnicidade serve para reforgar o
poder do govemo, bem como para dividir aqueles com interesses
comuns e preservar os sistemas legáis locáis. Isso se ajusta bem a
urna ideologia de desenvolvimiento que supóe que modelos ocideñtais
de desenvolvimiento sao inaplicáveis no caso da Indonesia.
Todos esses sao aspectos da formagáo social total, sem os quais
urna análise dos mecanismos do imperialismo nao pode ser com-
preendida.
Entretanto, gostaria de concluir brevemente, com urna referen­
cia .aos ciclos económicos que sao produzidos por essa articulagao
particular, pois seria imprudente tratar o sistema como se este fosse
estável. Tenho sugerido que o modo de produgáo dominado, neste
caso, pode ser melhor entendido como o de pequeña produgáo de
mercadorias. Entretanto, é evidente que nesse setor existe certo em­
prego de trabalho remunerado. Cómo já assinalei, Certas gondigóes
fazem aumentar o crescimento nesse setor e fazém aparecer formas
transicionais para o capitalismo. Todavía, o crescimento de novas
formas económicas parece dirigir-se quase que diretamente para sua
dissolugáo.
O movimento deve ser melhor descrito como úm ciclo (ver
Kahñ, a ser publicado). Se tomamos tal ciclo em ascensáo, é possível

193
localizar as condicóes que íevam á suá depressao (queda) . Normal­
mente, q crescimento do setor de mercadorias leva á inflagáo, parti­
cularmente no prego do arroz. Por um lado, isso encontra suas causas
no interior da economia local, pois o crescimento da producáo de
mercadorias retira trabalho do setor de subsistencia. Após um período
de témpo, podemos supor que as unidades produtivas no setor de
subsistencia caem abaixo do tamanho ideal ( “optimal size” ), levando
a um colapso total a produgao de arroz.
O aumento da ineficiéncia e a necessidade de importar arroz
mais caro leva á retragao do setor de mercadorias que estava em
desenvolvimento. Os trabalhadores assalariadós necessitam de salá-
rios mais altos, enquanto os empresários nao sao capazes de reduzir
as margens de lucro. Aqui, também, sao importantes os fatores in-
temacionais. A elevagáo dos custos de produgao no setor de. merca-
doria tende a tom ar a produgao local de mercadorias para exportagao
menos competitiva no mercado mundial. Os importadores devem,
entao, procurar outros mercados para suas matérias-primas, ou de-
senvolverem substitutos.
Em parte, isso resulta do fato de que o setor de subsistencia
local nao está mais servindo para reproduzir, na mesma extensao, a
forga de trabalho no setor de mercadorias. O resultado é urna crise
de crescimento rápido de pregos que, por sua vez, leva a conflitos
políticos.
A crise económica leva a um colapso das formas capitalistas
emergentes e retomo á pequeña produgao de mercadorias e á agri­
cultura de subsistencia. Sob certas condigóes, porém, o retorno á
produgao de subsistencia serve, dessa vez, para elevar as unidades
produtivas acima do tamanho ideal, quando os rendimentos margináis
na agricultura comegam a declinar. Isso produz novamenté runa crise
mas, neste caso, a natureza do conflito será considetavelmente dife­
rente. Crise em momentos de ascensáo do ciclo económico leva ao
surgimento de conflitos de classe na economia capitalista. Já em
períodos de declínio, a crise leva os pequeños camponeses “mais pri­
mitivos”, a conflitos de base étnica. A natureza dessas crises deve
ser entendida para que a agao política correta seja levada a termo.
É nestes pontos de crise, quando o sistema é ameagado de colapso,
que-as reiagóes sociais do imperialismo se tomam mais transparentes.
Éstas sao mais claras, nos períodos de conflito de classe, nos quais a
burguesía local, os representantes locais. da burguesía estrangeira,
bem como forgas intemacionais, todas jogam-se contra o proletariado
em ascensao. Um exemplo caro disso é encontrado no período que
levou aos massacres do PC em 1965 durante o qual houve unidade
efetiva entre as classes ^ominantes contra as mobilizagóes dos cam­
poneses pela tomada de térras. A base verdadeira, real, do imperia-

T94
lismo é essa dominagao de classe: Sem ela nao haveria dominagao
capitalista na formagao. social indonesiana. ;
Os dados do trabalho de campo apresentados neste estudo,
foram colliidos na Sumatra Ocidental. entre 1970 e 1972. Á pesquisa
de campo foi financiada pelo “London Gomell Project for South
East Asian Studies” e patrocinadas na Indonésia pela “Indonesian
Academy of Sciences”.
Um primeiro esbogo deste estudo foi apresentado ao “Compex
Societes Seminar at University College London”, na primavera de
1974. O autor deseja agradecer aos membros'desta instituigáo pelos
seus comentarios e críticas. Gostaria também de expressar sua gra-
tidáo aos membros do “London Alternative Anthropology Groups”
pela discussáo, tanto deste estudo como de algumas das idéias aqui
incluidas de modo geral. Obviamente, o autor é o único responsável
pélo conteúdo do artigo.

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195
'

•j
!i1

:
i
CAMPESINATO E PODER POLÍTICO
NO MÉXICO 1
Roger ^Bártra

1. INTRODUCÁO
Podemos afirmar que a agricultura mexicana do fim do século
XIX se -desenvolve por um caminho que pode ser identificado como
a via “junker” (latifundiária) em sua versáo porfiriana*. Mas a re-
volugao de 1910-17 e, principalmente, as reformas que originou, um
tanto tardíamente, na década de 30, interromperam este desenvolvi-
mento. Com a J¡quidacao das formas latifundiárias tradicionais e dos
sistemas de explorando de urna máo-de-obra;semi-servil e semi-escrava
(peonagem), com o nascimento e o desenvólvimento dos ejidos** e
das pequeñas propriedades, parecía que no México se abría o caminho
“farmer” para sua agricultura2. Nao obstante, algurnas peculiaridades
--------------- • «
1. Este trabalho é a parte principal de urna comunicaeao apresentada no
X Congresso Latino-americano de Sociología, Santiago do Chile, 1972. Tradu-
qüo de Raúl Mateos Castell.
* Referente a Porfirio Diaz, que governou ditatorialmente o México de
1876 a 1911. Realizou urna política de “Conciliacáo” e deu grandes facilidades
as companhias estrangeiras, o que possibilitou urna extraordiñária ampliágáo
da rede ferroviária, a organizagáo do sistema bancário etc. Á política agrária
porfiriana tem por base o apoio aos grandes latifundiários e á brutal repressáo
contra as manifestacóes de descontentamento dos camponeses. Fbrcas insurretas
sob o comando do general Madero obrigam Diaz a renunciar e fugir do
México (maio de 1911) (N. do T .).
** N o México o ejido consiste na entrega da térra ao camponés, em usu-
fruto, reservando-se o Estado á propriedade da mesnia. Desde que foi pro­
mulgada a^Constituicáo de Querétaro (em 1917), sob a: presidencia dé Venus-
tiaño Carranza, até o final do mandato do presidente López Mateos (1964)
foram distribuidas doapoes ejidales num total aproximado de cinqüenta e cinco
milhpes de hectares, para dois milhóes de familias. Diferentemente de outras
áreas da América, o ejido, no,,México, foi resultado de violentas lutas campo-
nesas (N , do T .).
2 • Para a definicao dos conceitos “junker” e “farmer”, ver .Vi I. Lenin,
O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, Moscou, 1960.

197
do sistema ejidal impediám, ou no mínimo obstruíam consideralmente,
o processo de desaparécimento do campesinato: a térra ejidal ficáva,
por leí, lora do mercado. As parcelas ejidales, propriedade da nagao,
eram cedidas em usufruto nao podendo ser vendidas nem arrendadas.
Com isto punha-se, evidentemente, um obstáculo ao desenvolvimento
capitalista da agricultura. É evidente que isto apenas aconteceu no
setor ejidal: o restante da agricultura sofreu as conseqüéncias do . de­
senvolvimento capitalista. -
Nao queremos dizer, com isto, que no setor ejidal nao houve
desenvolvimento capitalista, mas sim que foi freado. Podemos per-
guntar-nos a causa desta situaglo: Será que a Revolugáo Mexicana
teve efetivamente um caráter ánticapitalista? Foi urna revoiugáo po­
pular malograda posteriormente?
A résposta nos é dada por um dos teóricos agrarios do govemo
mexicano, em sua polémica com René Duinont; este último, nao faz
muito tempo, fazia ácidas críticas á reforma agraria mexicana, desde
um ponto de vista burgués-tecnocrático. Nosso teórico respondeu:
“Com a eliminagáo dos camponeses ignorantes cujos direitos de pro­
priedade transferir-se-iam aos selecionados por suas virtudes tecno­
lógicas, contrabalangar-se-iam, segundo Dumont, essas sombrías pers­
pectivas, e, além disso, erradicar-se-iam os minifúndios que, também,
segundo o Sr. Dumont, constituem o pecado mortal da reforma agra­
ria mexicana, a qual exige atos de contrigáo para abjurar as heresias
democráticas que até agora inspiraram a redistribuiglo da térra e as
novas formas de propriedade”. Marco Antonio Duran, o teórico que
nos fala, revela, em seguida, que o que importa é a chamada “fungao
social das novas formas de propriedade”; e após um pouco de dema­
gogia, acaba nos revelando a verdade: “Entre as fungóes sociais da
propriedade da térra devem ser consideradas as de índole política,
cuja mais simples e clara expresslo é'ter produzido urna tranqüilidade
que tem apoiadb as lufas pelo progresso . . . As fungóes políticas
sao complexas, pois incluem a alimentando das esperangas dos cam­
poneses, enquanto torna possível criar o instrumental que definitiva­
mente os tire da pobreza, através das organizagóes formadas pelos
hómens que receberam a térra, as quais ao mesmo tempo que lutam
pelas realizagóes revolücionárias, alimentam entre os camponeses a
je e a esperanga que evitam explosdes de impaciencia” 3.
A fungió do ejido e do minifundio apenas pode ser entendida,
simultáneamente, em seus níveis económico e político: constitui o
colchlo amortecedor que permite controlar-a. violencia, inseparável
do processo de rápida expansao do setor capitalista. Sem isto ñas

3,. Marco Antonio Duran, “Los problemas agrarios mexicanos”, in Re­


vista del México Agrario, n.° 3, margo/abril de 1968, págs. 60-61.

198
condigóes do México, o Estado capitalista nao poderia assegurar á
burguesía rural o rápido crescimento económico de que até agora se
beneficiou. As virtudes da “via mexicana” sao evidentes ao examinar
os seguintes índices. 4

índices de produgao agrícola de oito países


latino-americanos (Base 1934/38 = 100)

País 1965
Argentina .................................. . . -.................... 133
Brasil .........i ....................................................... 196
Chüe .............. 166
Colombia ............................................................... 227
Cuba ............... 153
México .............................. 324
Perú ................... ' ............................................. ,. 193
Uruguai .................................. 135

Voltemos, porém, as origens do processo evolutivo mexicano.


Adolfo Gilly e Michel Gutelman 5 assinalam, e com.razao, que o
desenvolvimento económico do México, no século passado, seguía
os caminhos da acumulagao primitiva de capital; efetivamente, a
aplicagao dos principios liberáis da Révolugáo de Ayuda, que con-
duziram á lei de desarmotizagáo de 1856, que expropriava os bens
da Igreja e das comunidades indígenas, sao fenómenos que devem
ser compreendidos dentro do processo de acumulacáo capitalista pri­
mitiva. Esta lei qüe pretendía criar pequeños agricultores proprie-
tários, provocou de fato urna concentragao latifundiária, e além cüssd,
langou a térra no mercado capitalista. A atividade das famosas com-
panhias deslindadoras fez, igualmente, parte da acumulagao primitiva.
A guerra do yaqui, que expulsou os indígenas das térras férteis do
Vale do Yaqui, e a guerra de exterminio contra os maias de Yucatán,
deram um caráter “colonial” a este processo..
O processo de acumulagao capitalista estava porém, refreado por
circunstancias determinantes: o predominio de capital estrangeiro e
a debilidade na concentragao de capital monetário nacional. Dos dois
aspectos do processo de acumulagao primitiva (sepaíagao do traba-
lhador dos meios de produgao, e acumulagao de capital disponível
4. índices tomados de Edmundo Flores, “Cómo funciona o setor agro-
pecuário do México”, in Revista do M éxico Agrário, vols.. 1-2, ano H, Jáneiro-
abril de 1969. . -- -
5. Adolfo Gilly, La revolución interrumpida, El Caballito, México, 1971.
Michel Gutelman, Capitalismo y reforma agraria én México, Era, México, 1974.

199
para a inversáo prpdutiva) apenas se realizava com dinamismo o
primeiro, de tal forma que o processo ficava incompleto, transfor-
mando-se num círculo vicioso, do, qual apenas a violencia podía tirá-
lo. De fáto, durante os últimos anos do século XIX e a primeira
•década do século XX é surpreendente a velócidade que adquire a
concentragáo da térra e o despojo dos camponeses. Este acelerado
processo nao encontrou correspondencia no desenvolvimento do ca­
pital-agrícola, de tal forma que se criaran! imensos latifundios com
bdixíssimas inversóes de capital. A composicao orgánica do capital
agrícola permanecía muito baixa; os fazendeiros preferiram super-
explorar a mao-de-obra (utilizando, inclusive, sistemas feudais) a rea­
lizar inversóes produtivas com os lucros: com isto condenaram á
morte a poSsibilidade dé um desenvolvimento agrícola “ ju n k er^ e ,
abriram as vías para urna revolugao. "
Daí o paradóxo: as dores da acumulagño capitalista primitiva
geraram urna revolugao burguesa contra a própria burguesía, na qual
a massa camponesa despojada desempenhou o papelde ator principal
(nao dirigente):
A violencia de urna acumulagño primitiva desequilibrada pela
dependencia do imperialismo, que é a causa profunda da Revolugao
mexicana, explica por que o centro do movimento revolucionario
agrario (Emiliano Zapata) foi o Estado de Morelos, onde os cam­
poneses tinham sido despojados por um desenvolvido sistema de
fazendas capitalistas; nesta zona o desenvolvimento do capitalismq na
agricultura era importante, com suas plantagoes de cana e quarenta
engenhos de agúcar.
A partir de Cárdenas,- o govemo mexicano, herdeiro daquela
revolugao, encarrega-se de controlar o processo de desenvolvimento
capitalista da agricultura; a própria experiencia lhe demonstra que a
brutal exploragáo do campesinato pode desencadear urna revolugao,
que boje ém dia, certamente adquiriría caráter socialista.. .
Concluindo, a “via mexicana” é apenas urna versáo peculiar
adaptada as condigóes de um país dependente daquilo que Lenin
denominou viá “farmer” do desenvolvimento capitalista dá agricultura.

2. SOBRE O PROCESSO DE ACUMULACÁO CAPITALISTA


Varios estados recentes sobre a economía agrícola mexicana 6
insisten! n a ' existencia de dois sétbres agrícolas: um reduzido setor

.6. Por exemplo, Jesús Puente Leyva, “Acumulación de capital y crecimi­


ento en el sector agropecuario en México, 1930-67”, in Bienestar campesino
y 1desarrollo económico, comp. por I. M. de Navarrete, F. C. E., 1971, e prin­
cipalmente em CDIA,' Estrutura agraria y desarrollo agrícola en México, 3 to­
mos, México, 1971.

200
privilegiado, capitalista, que produz principalmente para a exportagáo
e que gera a maior parte do prqduto agrícola lar,gado no mercado;
e um numeroso setor de camponeses pobres, ligados aínda, em alto
grau, ao autoconsumo, constituindo a rüaioria da populagáo cam-
ponesa. O problema colocado (aínda hoje) para a burguesía mexi­
cana no poder foi como conseguir incremento da produgao agrícola,
visando a abasteceros mercados urbanos e industriáis (nacionais e
estrangéiros); para isto tinha que Canalizar excedentes para fora do
setor agrícola, evitando a redistribuigao .destes excedenets entre as
massas rurais empobrecidas, mas evitando que entre estas últimas se
verificassem “explosóes de impaciencia”. A única solugao era a que
se esbogou no inciso anterior, e que deu como resultado esse aparente
dualismo da estrutura agraria mexicana. Essa solugao nao teria sur-
preendido nada a Rosa Luxembúrgo, para quem o processo de
acumulagao de capital apenas podía verificar-se como urna relagáo
- entre o capital e o meio ambiente nao capitalista7. Embora esta
afirmagao seja discutívei em condigoes de desenvolvimento capitalista
ayancado, é incontestável que reflete a situagao de países atrasados,
como o México, onde tanto as instancias políticas como as econó­
micas circunscrevem a produgao agrícola num círculo vicioso no
qual o setor capitalista nao pode existir sem um contexto nao capita­
lista; mas, o setor capitalista só consegue desenvolver-se destruindo o
setor nao capitalista. Isto implica em crise, o que obriga a proteger
de alguma forma o setor nao capitalista. Daí resulta o beco sem
saída em que se encontram os países dependentes do imperialismo. A
Telagao económica com a metrópole perpetua sua sitíiagño de sub-
desenvolvimento, o que os obriga a manter-se numa situagao que
poderia ser qualificada de acumulagao primitiva permanente. De fato,
se lermos as éxtraordinárias ariálises de Marx sobre a acumulagño
primitiva, nao poderemos deixar de pensar na situagao mexicana (e,
em geral, na dos países subdesenvolvidos)"; a diferenga é que nossos
países permaneceni nesta situagao, para a qual nao parece existir a
etapa seguinte: a etapa do capitalismo avangado. É esta a situagao
que existe por trás do chamado desenvolvimento desigual e combi­
nado.
Essa situagao de acumulagño primitiva permanente apenas é
um sistema dual na aparéncia. Em realidade, trata-se de urna só es­
trutura, cujas partes constituíntes nao se explicam a nao ser no con­
junto. Suas partes constituíntes — o setor capitalista e o nño capita­
lista -— constituem dois modos de produgao, que juntos configuram
apenas urna jormag&o sócio-economica subcapitalista. As tendencias
intrínsecas do desenvolvimento do setor capitalista — concentragao
7. Rosa Luxemburgo, La acumulación del capital, Grijalbo, México, 1967,
págs. 322-3.

201
de capital e térra, mecanizagáo, — trazem inevitavelmente a erosáe .
e destruigáo da economía camponesa nao capitalista. Com isto, sac
deslocadas grandes massas da populagáo, o que, ao lado do elevado
crescimento demográfico provoca o surgimento de um enorme exér-
cito de reserva de máo-de-obra desempregada, que sem dúvida, pode
chegar a constituir-se num vérdadeiro exército popular revolucionário.
A burguesía, que, além de assegurár a reprodugáo do capital, deve
assegurar a reprodugáo das relagoes sociais e políticas que permitem
a existencia do sistema capitalista, vé-se obrigada a controlar o pro-
cesso de acumulagáo. Daí, a sobrevivencia do ejido ineficiente e do
minifúndio. Mas, além disso, como ver-se-á mais adiante, existem
'também razóes estritamente económicas, que permitem a existencia
desse sistema aparentemente dual.

3. AGRICULTURA E MERCADO CAPITALISTA

A situagáo descrita é produto e continuagao da relagáo de de­


pendencia do México com respeito aos países imperialistas, e con­
cretamente com respeito aos Estados Unidos.
Samir Amin, faz a seguíate e reveladora afirmagáo: “Cada vez
que o modo de produgáo capitalista entra em relagáo com modos de
produgáo pré-capitalistas aos quais submete, aparecem transferencias
de- valor dos últimos para o primeiro, que constituem mecanismos da
acumulagáo primitiva. Esses mecanismos nao se situam, pois, apenas
na pré-história do capitalismo: sao também contemporáneos. Sao
essas formas renovadas, porém persistentes, da acumulagáo primitiva
em beneficio do centro, as que constituem o dominio da teoría da
acumulagáo em escala mundial” s. Essa transferencia de valores dos
países atrasados para os países desenvolvidos tem, em grande parte,
origem ñas desigualdades da composigáo orgánica, do capital. De
fato, o que ocorre é que é transferida mais-valia das máos dos capi­
talistas dós países atrasados para as máos dos capitalistas dos países
desenvolvidos, o que ocasiona, como diz Palloix, “a dependencia de
urna classe burguesa frente a outra classe burguesa, na qual a primeira
é subtraída de um sobrelucro de que poderia dispor para a acumula­
gáo de capital, se náo houvesse relagoes imperialistas” 89.
A isto é preciso acrescentar a extragáo direta de mais-valia, atra­
vés da inversáo de eapitais estrangeiros no México. Náo obstante, na
agricultura a relagáo com o imperialismo realiza-se essencialmente
8. Samir Amin, L ’accumulation á l’échelle mondiale, Anthropos, París,
1970, pág. 11.
9. Christian Palloix, “ La question de l ’échange inégal”, in L’Homme et
la Societé, n.° 18, pág. 27.

202
ri -

através do mercado onde se produzem as transferencias de valor as-


sinaladas. Aqui, neste processo de intercambio desigual, a baixa com-
posigáo orgánica do capital agrícola, no México, acarreta a transfe­
rencia, que se toma possível, apenas porque neste caso, os presos dos
produtos sao determinados pelo mercado internacional. Diferente­
mente do que — pelo menos teóricamente —i ocorre no mercado
agrícola nacional, onde ós pregos sao fixados de acordo com as con-
digoes que oferecem as piores térras cultivadas (o que possibilita a
existencia da renda da térra em todos os casos), na relagáo com o.
mercado internacional a taxa média de lucro é aplicada, obligando
com isto, aos que produzem em condigoes: de subdesenvolvimento, a
ceder a renda da térra, e ainda as vezes parte da mais-valia, aos
capitalistas dos países desenvolvidos 10.
Através de njecanismos muito semelhantes, opera o intercambio
desigual éntre o campo e a cidade. Um cálculo recente estabelece
que no México, entre 1942 e 1960, considerando apenas o mecanismo
de pregos, o bancário e o fiscal, o setor agrícola ultrapassou o res­
tante da economía em inais de tres bilhoes de pesos; o mesmo cálculo
assinala que nos anos 1948 e 1951 a transferencia chegou a repre­
sentar, respectivamente, 16% e 15% do produto agrícola. A trans­
ferencia de valores deve ser na realidade muito mais elevada, pois
este cálculo náo leva em consideragáo á balanga de pagamentos, os
empréstimos privados (geralmente usurarios) etc.
Assim sendo, no caso da relagáo entre a agricultura e o comér-
cio ou a industria, náo se pode afirmar, de forma simplista, que se
trata de transferencia de mais-valia das máos da burguesía agraria
para a burguesía financeira, comercial e industrial. O setor agrario
é muito complexo para permitir umá análise táo grosseira.

4. A RENDA DA TERRA

Para compreender melhor o problema que estamos colocando,


será necessário voltar ao tema, já comegado, da renda da térra, que
surge de mecanismos também relacionados com a fixagáo de pregos
e da taxa média de lucro. Afinal de contas, a renda da. térra também
é urna transferencia de mais-valia (ou sobreproduto) das máos dos
capitalistas para as máos dos latifundiários.
A seguir, realizaremos run cálculo da renda da térra na produgáo
de milho; a base do cálculo está constituida por cinco tipos diferentes
de térra, desde o ponto de vista da fertilidade, porérn as inversoes
10. O trabalho de Antonio García, “El problema agrario en ei marco de
la economía internacional”, in Revista del México Agrario, vols, 1-2, ano II,
proporciona infomiacdes muito interessantes sobre esté problema.

20?
de capital sao tomadas como invariáveis. O exemplo é hipotético,
porém se fez o possível para ajustá-lo á realidade do México de 1960.
A unidade é a produgao de um hectare e os cálculos sao em pesos
mexicanos.
O primeiro qüe percebemos, e que contradiz o modelo clássico
de Marx, é. que as térras A e B produzem renda absoluta negativa, e
a térra C nao produz renda absoluta. Isto é assim porque as duas
primeiras produzem mais-valia negativa, e na terceira a mais-valia é
igual á quota média de lucro. Deve-se tudo isto a que o prego no
mercado (Pm) nao é igual ao prego individual da producáo da pior
térra (Pik de A ). Como é possível esse fenómeno? (V. pág. seguinte).
Numa economia capitalista pura isso nao ocorréria, mas o fato
de que as térras do tipo A e B sejam exploradas no México deve-sé
ao fato de nao serem exploradas em condigoes capitalistas, embora
énquadradas e dominadas pelo mercado capitalista.
Esta análise é urna simplificagáo, mas corresponde á realidade.
É evidente que a baixa fertilidáde da térra nao é o único fator que
faz os minifundios e urna boa parte dos ejidos trabalhar em condigóes
deficitárias. No setor camponés nao capitalista a composigáo orgá­
nica do capital é baixíssima (ausénciade irrigagáo, tecnologia arcai­
ca etc.) e as condigóes de transferencia do produto para os centros
de consumo sao péssimas (altos cusios do transporte, intermediá-
rios etc.). Calcular os efeitos disto tudo resultaría complicado; maS
o resultado, no fundamental, seria o mesmo que mostra o quadro.

Nota crítica ao cálculo da renda da tena

Os cálculos anteriores estáo bascados numa interpretagáo Kauts-


kyana da renda da térra; esta interpretagáo é sem/dúvida a mais
operativa, mas contém importantes erros teóricos. A renda diferencial
(R D ) é urna quantidade relativa que se expréssa na diferenga entre
o prego do mercado (Pm) e o valor individual (Vi). Por outro lado,
a renda absoluta (Ra) é urna quantidade fixa que se expressa na
diferenga entre o valor individual (Vi) e o custo de produgao (Cp).
A renda total (R t), portantó, será a soma de aqibos, e expressar-se-á
pela diferenga entre o prego de mercado (Pm) e o custo de pro-
dugño (C p). O raciocinio anterior nao aparece refletido ñas análises
de Kautsky; o problema teórico que nao é esclarecido é distingao
entre o custo de produgao e valor individual, trata-se, no fundo, da
diferenga entre lucro médio e mais-valia. Assim, pois, teremos que:

Cp = C t V + Lm (igual a Pi)
Vi = C +• V + Mv

204
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205
Por outro lado, o prego de mercado é diferente dos anteriores e
calcüla-se com oconceito de lucro (L)
~ ; ' Pro = C :¡- V -i- L
Á dificuldade de operar com estés tres conceitos (mais-valia, lucro
e lucro médio) faz com que o cálculo de Kautsky seja teóricamente
errado; nao compreendendo a diferenca entre mais-valia e suas for­
mas transfiguradas (os lucros), nao é possível distinguir entre a renda
absoluta e a renda diferencial. É o que acontece no exemplo do
milho, Onde o cálculo da renda absoluta é-feito sob o falso pressuposto
de que Pm — Pi = Mv — Lm, o qual apenas é correto se a mais-
valia é calculada a partir do prego de venda no mercado (que é o
que fizemos acima), e nao de acordo com urna taxa média de mais- •
valia existente em todo o sistema económico (Marx quase sempre
utiliza a taxa de 100% ). Na realidade, a renda absoluta calculada
acima é a renda total, já que se descontou do prego de mercado o
prego individual (que é idéntico ao prego de produgáo): (C + V +
L m ). t
O cálculo realizado para a renda diferencial também nao é cor­
neto, mas tem o interésse de funcionar... como indicador das diferengas
de produtividade nos diferentes tipos de térra; as cifras refletem as
diferengas de qualidade (de 0 a 3500) entre a térra A e a térra E.
Assim pois, as verdadeiras fórmulas seriam as seguintes:
RD = Vi — Cp = Mv — Lm
RD = Pm - Vi .= L - Mv
RT = Pm — Cp = L — Lm
Mas a dificuldade de definir empíricamente o valor individual
nao impediu de diferenciar os tipos de renda; o método de Kautsky
permite diferenciá-los, porém as custas de um erro teórico. Parece-
conveniente, no momento, limitar-se a “utilizar o conceito de renda
total. Note-se que a fórmula RT é a que na realidade foi aplicada no
quadro do miiho para calcular a RA, pois lá, Mv = L e Pi = Cp 11.

5. PECULIARIDADES DA ECONOMIA MERCANTIL SIMPLES

Urna das conclusoes mais importantes que se depreendem da


anáHse da renda da térra no México é que a pequeña economía

11. A análise de Kautsky éncontra-se no capítulo 5 de seu livro La


cuestión agraria; o desenvolvimento mais sistemático e conciso de Marx en-^
contra-se-■em Theories o f surplus-valúe-, parte' II, págs. 293 e segs., Progress
Publishers, Moscou, 1968. ■ • '

206
(ejidal ou nao) esta perfeitamente .integrada no sistema capitalista
nao podendo compreender-se suas peculiaridades sem o Uso dos ins­
trumentos conceituais de toda economía capitalista (salário, lucro e
renda da térra), embora seja necessário adaptá-los as condigoes es­
pecíficas.
Estas condigoes específicas, que surgem de urna acumulagao pri--
mitiva ancilosada, significam a existencia de urna dialética interna na
estrutura agrária, consistente na uniáo e luta de dois sistemas de pro-
dugao: o capitalista e o pequeno-mercantil. No México, como na
Rússia pré-revolucionária, sao válidas as palavras de Lénin: “O
regime das relacdes económico-sociais no campesinato (agrícola e
comunal) mostra-nos a existencia de todas as contradigoes própriás
de qualquer economía mercantil e de qualquer capitalismo... Essas
contradigoes mostram de forma evidente e irrefutável que o regime
das relagoes económicas na aldeia da comunidade nao representa de
nenhum modo um tipo de economía especial (‘produgao popular’
etc.) mas um tipo pequeno-burgués comum. Contrariamente as teo­
rías reinantes em nosso país durante o último meio sáculo, o camponés
comunal russo nao é antagónico com respeito ao capitalismo: é, pelo
contrário, sua base mais profunda e sólida” 12.
Na pequeña economía camponesa o proprietário (ou' usufrutaá-
rio = ejidatário) é ao mesmo tempo aquele que trabalha a térra; ou
seja, que nao utiliza forga de trabalho contratada, nao paga salários.
Neste caso, o lucro (e a renda da térra, no caso de havé-Ia) confúnde­
se com o pagamento de seu próprio trabalho. Em realidade, o lucro
na economía camponesa é o salário que se auto-atribui ao trabalha-
dor. As más condicóes as quais se vé submetido o camponés mexi­
cano fazem com que seu “lucro” seja, freqüentemente, menor do que
o lucro médio. E ainda mais, o camponés sequer pode chegar a co-
brir o valor de sua própria forga de trabalho (calculada de acordo
com os salários regionais).
Se se aplicam os métodos capitalistas de contabilidade resulta
que todas as “empresas” camponesas trabalham em déficit; isto que
foi assinalado por numerosos estados, nao íoi analisado até suas
últimas conseqiiéncias. Witold Kula, por exemplo, assmala que “esta
conclusao segundo a qual a metade do género humano, hoje em dia,
exerce urna atividade produtiva, em déficit constante, é urna reductio
ad absurdum” 13. Nisto, ele se engana: a metade do género humano
trabalha em déficit constante: o que colocado numa linguagem mais
racional quer dizer que, essa metade, é constantemente explorada.
O problema consiste no duplo caráter da receita camponesa: é
simultáneamente “lucro” e “salário auto-atribuido”. Na economía
"• 12. Lénin, El desarrollo del capitalismo en Rusia, págs, 158-159, Moscou.
13. Witold Kula, Théorie économique du systéme jeodal, págs. 25-26,

207
camponesa nao existe- separagáo entre capital :variável e mais-valia;
arabos tomam a forma de lucro óu salário, sem que seja possível
separá-lbs como no caso de urna empresa capitalista. Nisto Consiste
a especfficidade deste modo de produgáb mercantil simples.
Assim sendo, por que aplicar as categorías de salário e lucro a
este tipo de economía nao capitalista? Pela simples razao de estarem
sujeitas ao mercado capitalista. Nesta siíuacao, em que o campoñés
produz para o mercado em condicoes nao capitalistas, .opera-se urna
transferencia de valores para o setor capitalista. Na medida em que
o campoñés deixa de ganhar aquilo que seria a renda da térra, o
lucro, e ainda parte de seu salário, nesta medida, o remanescente que
Ihe resta, deve ser qualificado de “salário”, o restante (o lucro e,
caso houver, a renda), trasfere-se para o resto da ecqnomia.
Coloquemos um éxemplo, utilizando os casos de térra A e C d o
quadro sobre renda da térra na producáo de milho. No caso A, em
realidade o capital variável é de 500 — 268 = $ 214 (V-Mv) pois a'
quantidade V = $ 500 é teórica, calculada de acordo com os sala­
rios pagos na regiáo. Neste caso, o campoñés perdeu a ¡mais-valia' e
parte do capital variável. Por outro lado, na térra C obtém-se o lucro
médio. Em todas as térras trabalhadas em condicoes inferiores as C,
o sistema capitalista fica portanto excluido. Mas é nessas- térras que
trabalha a maior parte da populacao camponesa do México.
Suponhamos, agora, que a térra A, trabalhada por urna fámília
camponesa, tem o mesmo graü de fertilidade que a térra C, operada
como empresa capitalista. Neste caso temos:

c V Mv Valor Prego
A 136 564 700 700
C 136 500 64 700 700

Mas, imaginemos qué num momento dado os précos do cultivo


desgam a $ 500; neste caso teremos:

C V Mv Valor Prego
A 136 364 500 500
C 136 500 -1 3 6 700 500

Evidentemente, a empresa capitalista C nao pode resistir e deve


abandonar a produgao. P o r outro lado, a parcela camponesa A-con­
tinua a exploracáo, transferindo por via do mercado um sobretrabalho
considerável; E a situagáo -resistirá (teóricamente) enquanto o “lu-

208
ero” for suficiente para manter a familia; de fato, o limite de resis­
tencia pode nao ser tao baixo, dependendo isto das possibilidades
que oferega o mercado industrial de traballio.

6, COMO É EXPLORADO O PEQUEÑO CAMPOÑÉS

A ) DistribuigSo desigual da térra e intercambio desigual


Os teóricos da reforma agraria mexicana negaram-se, tradicio­
nalmente, á aceitar a ineficacia do ejido e do minifundio. Isso seria
aceitar que a reforma agraria propiciou o desenvolvimento de um
sistema de exploragao. Reyes Osorio 14, por exemplo, trata de demons­
trar a eficácia dos ejidos e dos minifúndios, calculando-a como urna
relagáo entre os produtos e os insumos utilizados. Assim, o setor
ejidal contribuiu em 1960 com 35% do produto agrícola total líquido,
e para isto contou com 34% do Valor de todas, as térras, porém, para
isto contou com apenas 27% do capital na agricultura. Por outro
lado, continua explicando Reyes Osorio, as térras nao ejidales mato-
res de 5 hectares contribüíram com 58% do produto agrícola total
líquido, mesmo contando com 63% do valor das térras e 66% do
capital total do setor (exluindo o valor das térras e do gado). As
térras nao ejidales menores de 5 hectares contribüíram com 7% do
produto agrícola líquido, ainda quando apenas possuem 3 % do valor
total das térras, ou seja, que o uso que se faz de seus escassos re­
cursos é muito mais eficiente que o dos outros sistemas de posse..
Desde o ponto de vista do produto, temos que, por cada peso de
insumos totais utilizados (térra, capital, mao-de-obra assalariada, adu-
bos etc.) as térras maiores de 5 hectares obtém 1.88 de produto; os
ejidos 2.35, e as.térras menores 2.88. “Na realidade a grande dispa-
ridade dos ingressos que se observa no setor agrícola nao -é fruto
da ineficácia ou eficiencia produtiva, mas simplesmente da disponi-
büidade de recursos produtivos.”
Infelizmente, esse autor esqueceu de incluir nos “insumos” o
valor da forga de trabalho do próprio campoñés e ejidatario. Levando
isso em conta, a famosa eficácia torna-se superexploragao; manipu­
lando os dados de forma nao científica, calculando o ingresso do
campoñés como lucró e nao gomo .salário (ou seja como insumo,
como capital variável), será fácil ápresentar a miserável economía
familiar camponesa mexicana como eficiente... “A existéncia de
pequeños camponeses em toda a sociedade capitalista — escreveu
Lénin — nao se exphea pela Superioridade técnica da pequeña pro-.

14. Sergio Reyes Osorio, “Aspectos de la problemática agrária nacional”,


in Revista del México Agrario, n.° 5, 1968, págs. 71-95.

209
\

^dugáo na ,agricultura, mas pelo fato de que d e s reduzem suas neces-


sídades a um nivel inferior aodos operarios assalariados, -esforgando-se
no trabalho milito mais do que estes últimos.” 15
Um dos aspectos que mais nos interessa destacar é a existencia
de urna relacao estrutural entre a pequeña economía camponesa e a
empresa agrícola capitalista, estabelecida ou nao sobre a base do
latifúndio. Queremos dar énfase ao fato de que a basé da exploragáo
nao é a desigual distribuigáo da térra, mas os mecanismos profundos
que fazem com que essa desigualdade aumente cada dia mais. Supor
que o problema é de distribuigáo desigual de rüeios de produgáo
conduz á ficgáo populista segundo a qual é preciso impulsionar a dis­
tribuigáo da térra para fortalecer a pequeña economía camponesa.
A realidade mostra de forma palpável que quando urna estru-
tura agraria esta dominada pelo mercado capitalista, a tendencia ine-
vitável será a difereneiagáo cada vez mais profunda do campesinato,
a proletarizagáo e pauperizagáo dos estratos inferiores do campesinato.
O setor camponés nao capitalista encontra-se dominado pelo
mercado capitalista. Nao está porém em posigáo de influir na deter-
minagáo dos pregos agrícolas. Como vimos, o prego individual de
produgáo é mais baixo no setor capitalista, que é o que determina os
pregos. Desta forma, o pequeño camponés, que é obrigado a limitar
suas aspiragoes á obtengáo — no máximo — do sário necessário,
“dá gratuitamente á. sociedade” (Marx) urna parte do sobretrabalho
e aínda, as vezes, do trabalho necessário. É evidente que ao camponés
pobre interessa que os pregos dos produtos agrícolas subam, com o
qual — aparentemente — concorda a burguesía rural, afetando, por
outro lado, os interesses da classe operária urbana. Foi esta urna das
bases de sustentagáo da tese segundo a qual na América Latina náo
. há condigóes para urna alianga política entre o campesinato e o pro­
letariado 16.
Trataremos de esclarecer, de passagem, éste problema, o que
servir-nos-á para responder as perguntas: a que parte da sociedade
presenteia o campesinato seu sobretrabalho? Aproveita-se a classe
operária da exploragáo. do campesinato?
O campesinato pobre vende no mercado seus produtos por um
valor inferior ao real; ou seja, que dado seu atraso económico e baixo
rendimento está sujeito a urna relagáo de'intercambio desigual, do
qual aproveita-se exclusivamente a burguesía agrária, os comerciantes
capitalistas e os industriáis. Se os pregos dos produtós^agrícolas sobem,

15. Lénin, El desarrollo del capitalismo en Rusia, pág. 7.


16. R. Stavenhagen, “Siete .tesis equivocadas sobre América Latina”, in
E l Dia, 25-26 de junho de 1965, México.

210
afirma-se, afetará os setores urbanos (operarios e industriáis) pois os
alimentos e maíérias-primas ficaráo mais caros:É obvio que isto náo
interessa á burguesía industrial; mas, e a classe operária é afetada? Na
realidade, só de forma transitoria, pois com o tempo o aumento do
custo.de vida provocará, no capitalista, a necessidade de aumentar a
inversáo de capital variável.
No México, por outro lado, funciona urna política oficial de
fixagáo de prego que aparentemente protege o pequeño camponés.
Isto náo'é exáto, como a'ssinalou Henri Lefebvre pois, na realidade,
o desenvolvimiento tecnológico na agricultura (que implica o aban­
dono das térras ruins) ameaga fazer baixar a renda diferencial. Acon­
tece que, com o pretexto de proteger os camponeses pobres que tra-
balham as piores térras, mantém-se elevado o prego de alguns pro-
dutos agrícolas. Um exemplo claro disto é a manutengáo do pregó do
trigo acima do prego mundial, o que tem. permitido produzi-lo em
zonas de regadío, substituindo as importagóes.
Um estado recente sobre a agricultura mexicana demonstra, de
forma muito geral, o montante das transferencias de valor entre os
diferentes setores agrários 1718 (ver a página seguinte).
O setor de propriedades de mais de 5 hectares (I), apesar de
obter de seu setor um sobreproduto de apenas $ 1.201.000.000,
obtém um lucro de $ 5.341.000.000. Por outro lado, o setor de
minifundios (II) obtém um sobreproduto de S 2.720.000.000,
obtendo como lucro de apenas $ 367.000.000. O setor ejidál (III)
extrai um sobreproduto de $ 4.560.000.000; mas obtém um lucro
de $ 2.773.000.000. O beneficiário das transferencias é, eviden­
temente, o setor I que está formado, em grande parte por grandes
exploragóes com urna maior concentragáo de capital técnico (maior
composigáo orgánica de capital).
Fica claro com isto que as massas pobres do campo sao explo­
radas pelo •capital, e, portanto, tém o mesmo inimigo que a classe
operária: A conclusao de que os operarios urbanos se beneficiam da
exploragáo do camponés é táo absurda como aquela.que afirma que
os operarios dos países desenvolvidos se beneficiam da exploragáo
imperialista. Tanto em escala. internacional, como a nivel nacional,
o intércámbio desigual e a transferencia de valores tém por base
a existencia de salários mais baixos ñas regióes mais atrasadas (ou
seja, quotas mais alfas de mais-valia). No casó da economía cam-
poñesa, em relagáo á economía empresarial agrícola (ou inclusive a

17. Henri Lefebvre, “La teoría marxista-leninista de la renta de la. tierra”,


in Estudios Sociológicos sobre la Reforma Agraria, UNAM , 1964,
18, Michel Gutelman, Capitalismo y reforma agraria en México, Ed. Era,
México 1974.

211
Falta 212-213
Falta, á base da análise. que até aquí fizemos de alguns aspectos
da estrutura agrária, a utiiizagao de outros instrumentos conceituais,
com a finalidade de desentranhar a divisáo em classés da sociedade
agrária mexicana. É, básicamente, a no gao de modo de produgáo a
que nos permitirá realizar um esbogo de estrutura de classes. Até.
agora talamos da dialética interna de dois sistemas: a economía
mercantil, simples e a economía capitalista, que evidentemente con-
figuram dois modos de produgáo. A este nivel de abstragáo.teria que
acrescentar-se um terceiro sistema, do qual apenas ficam restos in­
crustados no seio da economía camponesa: a economía natural de
autoconsumo. Estes tres modos de produgáo, na agricultura mexi­
cana, nao tém porém, urna existencia autónoma, constituindo, juntos,
urna so estrutura ou formagao sócio-económica agrária, a cujas con-
tradigóes já nos referimos básicamente até agora; elas se originam,
esseneialmente.^ da situagáo que definimos como acumulagáo primi­
tiva permanente.
Ao focalizar, agora, ó problema, desde o ponto de vista dos
modos de produgáo, abre-se outra perspectiva para a análise classista.
Na teoría marxista o modo de produgáo mercantil simples é um
sistema nao classista; e, além disso, um modo de produgáo secunda­
rio, ou seja, nunca pode existir isolado, nunca dominar urna fonnagáo
socio-económica dada. É precisamente sua dupla condigáo de modo
de produgáo nao classista e secundario que faz com que a populagáo
camponesa ligada a ele, tenha urna situagáo de. classe “para o exte­
rior” do sistema21. As relagóes classistas que m^ntém o campesinato
com o “exterior” tém como base os processos de transferencia de so-
breproduto que mergulham. na miséria e tendem a proletarizar as
camadas inferiores; Neste caso, a complexidade desta situagáo, ori-
gina-se no fato de as contradigóes de classe terem sua explicagáo na
relagáo entre dois modos de produgáo diferentes, ou seja, estarem
situadas ao nivel da formagáo sócio-económica global.
Por outro lado, a empresa agrícola capitalista forma parte de
um modo de produgáo classista que opóe antagónicamente a bur­
guesía agrária ao proletariado rural. Os mecanismos de explóragáo
náo diferem daqueles que sáo peculiares a todo, sistema capitalista:
a mais-valia. Mesmo assim, o setor capitalista na agricultura mexi-
21. Sem dúvida, foí esta a situagáo que Marx tinha em mente quando
escreveu: “N a medida em que milhoes de familias vivém sob condigóes eco­
nómicas de existencia que as diferenciam por seü modo de vida, seus inte-
resses e sua cultura de outras classes e as opoem a...estas de forma hostil,
aquelas formam umá classe. Existindo entre os camponeses parcelarios urna
articulagáo puramente local, náo engendrando a identidade de seus interesses
nenhuma comunidade entre eles. nenhuma uniáo nacional e nenhuma orga-
nizagáo .política, náo formam urna classe." Marx, “E l 18 brúmário de Luis
Bonaparte”, in Obras Completes, Moscou, Tomo I, pág. 341.

214'
- cana tem características especiáis; oriundas de seu atraso tecnológico,
baixo nivel de capitalizagáo e dependencia dos mercados intemacio-
nais. É evidente que o “modelo inglés” cjássico utilizado por Marx
como exemplo — com sua significativa divisaó entre latifundiários
e capitalistas — náo se adapta á realidade mexicana, nao porque o
modelo náo seja válido, mas devido as enormes deformagoes da
estrutura agrária em nosso país. Podemos perguntar que papel de-
sempenham os latifúndios nesta situagáo; é claro que náo desempe-
nham o papel dos latifundiários num sistema capitalista avangado.
Tradicionalmente, considerou-se que constituem um sétor agrário
mexicano definido por seus mátizes feudais. Nós acreditamos que esta
afirmaqáo, hoje em dia, é incorreta, e também o é, em grau consi-
derável, para a época anterior as reformas cardenistas (.1936-40). O
latifundio, com todos os matizes feudais que se lie qüeiram atribuir,
é básicamente a expressáo de um modo de produgáo capitalista de­
formado, dependente e atrasado; sua peculiaridade consiste ñuma
. importante concentragáo de térra com urna baixa concentragáo de
capital. Sua existencia, porém ,. constituiu e aínda constituí um dos
aspectos mais importantes do processo de acumulagáo capitalista pri­
mitiva.
Por outro lado, as escassas reminiscencias de urna economía de
autoconsumo estáo praticamente integradas na economía camponesa
(mercantil); constituem um recurso dos camponeses mais pobres para
compensar o desequilibrio ao qual sáo submetidos pela exploragáo
capitalista.
Desta forma, stricto sensu, existem tres classes sociais funda­
mentáis no campo mexicano: a burguesía agrária, o proletariado rural
e o campesinato; a definigáo destas classes sociais fundamentá-se na
relagáo que estes grupos mantém com modos de produgáo histórica­
mente determinados 22, ©s matizes, absolutamente indispensáveis no
estudo concreto, baseado nos diferentes sistemas de posse da térra,
no tamanho da exploragáo, ñas peculiaridades sociais, ñas diferengas.
étnicas e ñas formas políticas, permitir-nos-á estabelecer a existencia
de diferentes estratos e camadas sociais. .

8. UM CESARISMO DEMOCRÁTICO?
A metáfora de um bonapartismo mexicano, baseado ñas massas
camponesas, fot-usada recentemente. para descrever a estrutura polí­

22. A definigáo de classes sociais apenas pela relacáo com os meios de


produgáo, que é. urna instancia de um sistema sócío-económico maior, fechar-
nos-ia num círculo vicioso. Desenvolvemos urna exposigáo mais detallada
das classes sociais no campo em Roger Bartra, Estructura agrária e clases so­
ciales en México, Ed. Era, México, 1974.

21 f
tica do país. O caudilhismo, o caciquismo e o presidencialismo sao
exemplos evidentes de urna variedade daquilo que M arx—- e depois
insistentemente Gramsci — chamam de cesarismo ou bonapartismo.
Tráta-se, efetivamente, de um excelente conceito para penetrar no
problema,, embora insuficiente. As palavras de Marx, referindo-se aos
camponeses franceses, parecem ter sido escritas para o México: “Os
camponeses parcelários sao, portanto, incapazes de impor seus inte-
resses de classe em seu próprio nome, seja através de um parlamento,
seja através de urna convengáo. Nao podem representar, mas tém
de ser representados. Seu representante tem que aparecer ao mesmo
tempo como seu senhor, como urna autoridade acima deles, como
um poder ilimitado de govemo que os proteja das outras classeS e
lhes envíe desde o alto a chuva e o sol. Por conseguinte, a influencia
política dos camponeses parcelários encontra sua última expressao
no fato de o poder exécutivo submeter sob seu mando a socidade” 23.
O campesinato nao é capaz de controlar o poder, nem dé dirigir
urna alianga de classes de que eventualmente faga parte, nem de
representar-se politicamente a si só; isto é assim pelas peculiaridades
do rtlodó de produgáo em que está inserido o pequeño camponés,
que é explorado como proletario devido a sua condigao pequeno-
burguesa. Ñesta contradigáo vemos urna das raízes mais profundas da
paradoxal estfutura política mexicana. Essa peculiaridade do campe­
sinato é aproveitada pela burguesía mexicana para controlar eficaz­
mente o poder com umá sólida base popular. A Revolugáo mexicana
é a história das lutas e áliangas entre a burguesía e o campesinato,
historia que transcorre no seio das angustiantes contradigóes entre
um campesinato. politicamente impotente e um setor da. burguesía
que nao encontra fácilmente urna nova e diferente alternativa política
daquela encontrada pela burguesía latifundiária porfirista recentemente
derrocada. O bloco de classes e o pacto reformista conséguido por
Lázaro Cárdenas, vinte anos depois do termo “oficial” da Revolugáo,
coristituem a solugáo política das contradigóes e o ponto de partida
do atúal sistema mexicano.
O “vazio de poder” e o equilibrio dos setores em pugna durante
a Revolugáo, assim como o caudilhismo pós-revolucionário e o popu­
lismo cardenista podem explicar-se em termos de cesarismo ou bona­
partismo, onde um “homem forte”, um caudilho ou um presidente,
consegue o apoio de ‘‘terceiras forgas” : os camponeses. Mesmo assim,
César teve seu Bruto, e Napóleáo, seu Waterloo; aínda a versáo
tragicómica do último, Luis Bonaparte, encontrou o principio do
fim em Querétaro. Onde termina, porém, o cesarismo mexicano?

23 . Marx, “El 18 brumário de Luis Bonaparte”, in Obras Completas, To­


mo I, Moscou Moscú, pág. 341.

216
A alianga de classe estabelecida por Cárdenas,. que, de certo
modo, implica -— através de intermediários — a participagáo do
campesinato no poder político, é virtualmente rompida entre 1940
e 1946; ou seja, entre a tomada do poder por Ávila Camacho (que,
curiosamente foi apoiado como candidato presidencial pela Confe-
deragáo Nacional Camponesa) e as reformas do artigo 27 da Cons-
tituigáo introduzidas por Miguel Alemán, para garantir o direito de
apoio' aos latifundiários. O que nao se explica é a continuidade, até
nossos dias, do sistema político mexicano forjado na época cardenista.
Em outras 'palavras, o que os políticos denominam a institucionali-
zagáo da Revolugáo mexicana, e que, se quisermos continuar usando
o conceito, deveria chamar-se cesarismo democrático 2425. Nao obstante,
o conceito de bonapartismo ou cesarismo que explica os momentos
de crise e a importancia política do campesinato, nao faz senao
assentar as bases de urna análise que ainda precisa ser feita.

9, A ESTRUTURA DE MEDIA^AO
Urna vez consumada a revolugáo, toda burguesía no poder de-
fronta-se com o problema de como assegurar a manutengao e a
reprodugáo do sistema político que acaba de instaurar, O sistema
económico, tal como está organizado no México, garante a repro­
dugáo dos elementos básicos das forcas produtivas (meios de pro­
dugáo e forca de trabalho) ñas condigóes específicas de que já fala­
mos. Mas, também, é necessário garantir, conforme Althusser, a. re­
produgáo das relagóes de produgáo 25, que como acertadamente assi-
nala nao pode ser explicada apenas em fungáo da base económica,
sendo, também, necessário compreender o papel - da superestrutura
ideológico-política. Este problema é expresso pela burguesía com seus
próprios termos: a necessidade de institucionalizar a Revolugáo. O
papel do Estado é fundamental; e do tipo de poder que,a burguesía
consiga consolidar dependerá todo ó futuro do país.
Na estrutura agrária, o Estado burgués enfrenta o complicado
problema de garantir a continuidade de urna estrutura ém processó
de transigáo, ou seja, o Estado mexicano frente ao setor agrario
reflete exatamente as contradigóes de urna estrutura cujo processo
de desenvolvimento para o capitalismo é indispensável para a bur­
guesía, mas que ñas condigóes concretas de atraso em que se produz

24. Este termo foi utilizado em 19Í9 pelo historiador reacionário vene-
zuelano, Vallenilla Lanz. para justificar a ditadura. Conforme Laureano Valle-
nilla Lanz, Cesarismo democrático. Estudios sobre las bases sociológicas dé la
cónstituición efectiva de Venezuela, Tip. Garrido, Caracas, 1961.
25. Louis Althusser Ideología y aparatos ideológicos del Estado, Cuader­
nos de la Oveja Negra, Medellin, 1972.

21.7
\

pode provocar o naufrágio de todo o sistema político. É necessário


controlar o referido processo, inclusive freá-lo,- para manter vinculada
á térra urna parte da populacáo rural. Com a reforma agraria, me­
diante a manutengáo do setor ejidal e minifundiário e através do
controle político das massas rurais, o Estado mexicano consegué
garantir a reproducao das relagoes de produgáo nó campo: garante
o estado continuo de violencia, luía e despojo, típico do processo
de acumulagao primitiva permanente. Para isto manipula eom extraor-
dinária habilidade um duplo jogo.político: o populismo, que satisfaz
parcialmente as exigencias camponesas, e a defesa dos interesses da
grande burguesía agraria. Ambas as faces desse jogo político tém
profundas raízes históricas: o populismo extrai da revolugáo zapatista
suas palavras de ordem e das reformas cardenistas obtém sua reali-
dade; e os interesses capitalistas agrarios partem da defesa da pro-
priedade privada dos liberáis e se consolidam na política de Miguel
Alemán.
Mesmo assim, nao se trata simplesmente de duas linhas políticas
que se entrelagam ao longo da historia agraria mexicana. Constituem,
além disso, duas estruturas políticas diferentes, albergadas sob um
único sistema político. Urna délas é a estrutura do poder direto da
burguesía; a outra, podemos caracterizá-la como urna estrutura de
mediagao. A primeira se expressa no poder económico da burguesía
agraria, que dirige e manipula alavancas oficiáis e privadas para:
desenvolver-se. A segunda está constituida pelas organizagóes e insti-
tuigóes “revolúcionárias” que “defendem” o camponés: a Confe-
deragáo Nacional Camponesa, as Ligas de Comunidades Agrarias,
parte da atividade do Departamento de Assuntos Agrarios e Coloni-
zagao etc.
A estrutura de mediagao tem sua origem na consolidagáo do
partido oficial, realizada por Calles, e na institudonalizagáo da parti-
cipagáo popular e camponesa no Estado, garantida por Cárdenas. As
massas populares rurais perdem logo esta párticipagáo ño poder, a
qual se transforma num sistema burocratizado que consegue, de certa
forma, o apoio (forgado ou espontáneo) das classes pobres é mani­
pula a situagño em fungáo das necessidades e interesses das classes
no poder. O alto grau de institücionalizagáo (legal’e informalmente)
alcangado por esta estrutura de mediagao explica, em grande parte,
a famosa estabilidade do sistema político mexicano.
Até aos mais afastados récantos agrícolas mexicanos, este sistema
estende seus tentáculos, versáo deformada de uma s.uposta demo­
cracia. A chave da estrutura de mediagao consiste em que permite
e utiliza a participagao popular, camponesa até certo nivel, acimá
do qual os interesses de baixo se transmudam, em curiosa simbiose
política, nos interesses da grande burguesía agráriá cujos dirigentes

218
mais lúcidos compreendem ser necessário manter o processo de de-
senvolvimento capitalista dentro de canais populistas. Victor Flores
Olea tem razao quando afirma que “ñas características de nossa
estrutura económica, com um crescimento desigual e combinado, e
ñas características de nosso sistema político, acreditamos encontrar
urna adequagao essencial, urna correspondencia funcional que expli­
caría a estabilidade dentro da polarizado de nosso desenvolvimen-
to”. 26
A existencia de duas estruturas de dominacao nao é apenas
observada ao nivel institucional. Também se expressa na divisao
da burguesía rural: por um lado, um importante setor desta defende
vigorosamente a liquidagáo do ejido e trata de frear a qualquer custo
os tímidos impulsos da reforma agrária; outro setor, porém, defende
a reforma agrária declarando-se a favor de urna coexistencia entre
o setor privado e o setor ejidal. O primeiro, pouco hábil, trata de
impulsionar as formas diretas de dominagao; o segundo compreende
a necessidade da mediagao.
A luta entre ambos setores explica, em grande parte, as peculia­
ridades da política agrária de cada regime.
Apesar de tudo, a largo prazo, os interesses de classe próprios
da burguesía tendera a se impor á estrutura de mediagao. Isto, hoje,
fica bem patente, quando as possibilidades de distribuigáo de térra
entre os campóneses comega a ser dificultada, tanto devido a que
quase todos os latifundiários, que aínda restam, estáo bem dissimu­
lados, como porque o setor capitalista na agricultura, cada dia mais
vigoroso, nao está disposto a permitido. O que sucede é que o desen-
vojvimento do capitalismo se choca abertamente com as formas de
propriedade existentes; o minifundio, o ejido e as térras comunais
sao cada vez mais um obstáculo embaragador á livre circulagáo,
investimento e concentragao de capitais na agricultura. Nao é sur-
préendenté que a nova Lei Federal de Reforma Agrária, promulgada
receñtemente, esconda, sob diversos artificios legáis, urna tentativa
de adaptar a legislagáo ao desenvolvimento do capitalismo no campo.
O Código Agrario anterior implicava a possibilidade (legal) de arren­
dar a térra dos ejidos, com o qual condenava este setor aos incon­
venientes do m inifundio- Nos ejidos apenas existem duas alternativas
para sair da estagnagáo e niodemlzar-se: a concentragao de capital
ou a coletivizagáó.. É sabido que a última alternativa foi bloqueada
pelos govemos “revolucionários” e que os poucos ensaios de coleti-
vizagao foTam cortados ou desviados. Por outro lado, é evidente que

26. Victor Flores Olea, “ Poder, legitimidad y política en México”, in


E l perfil de México en 1980, vol. 3, Instituto de Investigaciones Sociales, Mé­
xico, Siglo XXI, 1972. .

219
a proibigao de arrendamiento, acrescentado ao fato de' os bancos
privados nao consideraren! os ejidatários como sujeito de crédito,
fechava a primeira alternativa; mesmo assim, como também é sabido,
em todos os ejidos situados nos distritos de irrigagao ou zonas de
agricultura desenvolvida, o fenómeno de arrendamento ilegal é muito
freqüente. Nestes caisos, o ejidatário náq possui capital nem possibi-
lidade de obté-ío; por outro lado, nao faltam capitalistas dispostos
a arrendar e reunir várias parcelas para formar urna empresa, e a
empregar os próprios ejidatários como assalariados; os processos do
desenvolvimento económico sao inexoráveis, nao respeitando nenhu-
ma legislagáo. Esta última adapta-se tardíamente á realidade; efeti-
vamente, a nova lei de reforma agrária permite o arrendamento de
parcelas “ejidales” 27; isfo significa o comeco de urna séria deterioragáo
da es.trutura de mediacáo, usada pelo setor ejidal como colchao
amortecedor. Á medida que o capitalismo se desenvolve no seior
ejidal e de minifundios, com a conseqüente proletarizacáo e expulsao
de máo-de-obra, nessa mesma medida cóndenar-se-á a estabilidade
do sistema político ñas zonas rurais. É isto, na realidade, o que já
acontece.
H á outro aspecto interessante a destacar na estatura de poder
baseada na situagáo agrária mexicana: sua dialética interna. A me­
d ia d o e o poder direto funcionam como as duas subestruturas ou
polos opostos que integram a unidade do sistema político. Entre a
e sta tu ra de mediacáo e a de poder direto nao existe apenas urna
luta continua, mas esta contradicáo interna faz com que as mudancas
no sistema se desenvolvam de acordo com um jogo dialético; nesta
dialética interna as crises se resolvem quando a mediagáo se trans­
forma em poder direto, e este em mediagáo. Para compreender isto
melhor é conveniente colocar o exemplo do caciquismo, tal como
funciona em muitas regióes do México. Muitos dos caciques que
conírolam vastas regióes agrícolas mexicanas tém sua origem no
processo de reforma agrária, do qual foram promotores e do , qual
obtiveram seu poder através de urna rede complexa de compadrio,
amizades, dividas, favores e ameagas que Ihes permite controlar as
comunidades camponesas. Em sua origem, todo o sistema de caci­
quismo implica urna estatu ra de mediagáo na qual o cacique con-
segue o poder através do apoio que consegue da comünidade que
representa; mas o poder que Ihe outorga a comünidade é exercido
de acordo com interesses alheios a esta. Assim sendo, com P tempo,
este sistema fica esclerosado: o cacique soube transformar seu poder
27. N o artigo 55 proíbe-se em geral, o arrendamento com as éxcecóes
assinaladas no artigo 76, o qual permite a parceria, o arrendamento e utili-
zagáo de trabalho assalariado quando se trata de “cultivos oü trabalhos que o
ejidatário nao possa realizar oportunamente, embora dedique todo seu tempo
ou esforgo”.

220
em riqueza e exerce de forma despótica e arbitraria seu dominio. A
partir deste momento deixa de ser útil ao sistema, defrontando-se
eom a oposigáo do sistema formal de poder: o presidente municipal,
com urna parte do partido oficial por irás, os representantes locáis
do govemo federal etc. Inicia-se urna luta na qual o sistema oficial
constitui, paulatinamente, urna nova estruturá de mediagáo, pois pre­
cisa de ceño apoio da comünidade para liquidar o cacique. Ambos os
polos de contradigáo interna da estruturá de poder carregam sua
própria liquidagáo e destruigáo; a mediagáo, na medida em que se
propiciara formas económicas e políticas que contradizem o dinamis­
mo do sistema capitalista dominante, gera rápidamente a corrupgáo.
O exercício do poder direto, por outro lado, na medida em que
rompe as formas políticas e económicas tradicionais, provoca sérios
desequilibrios num sistema que nao é capaz de absorver nem política
nem económicamente as forgas liberadas pelo processo de modemi-
zagáo.
Desta forma, dia a dia diminuem as possibilidades do duplo jogo
dialético da estruturá de poder, aproximando-se o fim do sistema.

221
OS LIMITES DA SUPEREXPLORAglO
DO TRAE ALEO *

Claude Meillassoux

Sabe-se que a preservagáo de urna zona de auto-subsistencia


conservada mais ou menos artificialmente numa economía capitalista
em expansao só pode ser transitoria e crítica. Os limites de tal situagáo
aparecem localizados em zonas de emigragáo de duracao mais ou
menos longa e em circunstancias diferentes, quer tratando-se de
reservas limitadas territorialmente ñas quais o acésso á térra é freado
pela exigüidade do territorio, quer tratando-se de zonas abertas. O
setor doméstico, por ser objeto da exploracño através da emigragao,
sofre lenta degradagao, que compromete, no limite, suas capacidades
de reproducao e abastecimento continuo do mercado de trabalho.
Nao é nossb propósito escrever aqui a historia de como as popu-
lacóes colonizadas foram levadas até o setor da exploragáo capita­
lista J. Lembremos que na Europa a expropriagao das térras nao foi,
por toda parte, a causa geral; e que foi necessário empregaT outros
meios coercitivos para expulsar a máo-de-obra das áldeias. O imposto
cobrado a fim de que se obtivesse numerário somente distribuido
no setor colonial; o trabalho forgado cuja iinportáneia é ainda subes­
timada (Hopkins, 1973); o recrutamentb; as dividas etc. foram os
meios pelos quais conseguiu-se dependencia rural irreversível. As
atividades artesanais (fabricagao de ferramentas e rOupas) e as ativi-
dades anexas (consírugbes, caga, coleta) foram pouco a pouco aban­
donadas pelo exercício de atividades “remuneradoras”, sendo que a
* Meillassoux,' Claude — “Les limites de la surexplpitation du travail”,
in Femmes greniers et capitaux, Majpero, Paris, 1975 : 189/206. Tradupáo de
Edgard Assis Carvalho.
1. Historia, aiiás, negligcnciada, como constata Hopkins (1973), mas
para a qual encontrar-se-ao elementos fundamentáis em Coquery-Vidroviteh e
Moniot (1974 : cap. 2 ), Suret-Canale (1964 : II parte). Sem esquecer da
descrisáo clássica de R. Luxemburg (1913, II-: cap. 27, 29).

223
economía doméstica se tornou tributária no. setoir colonial em troca
de abastecimerito de artigos indispensáveis. Nigrescente monetarizagáo
da economía agravava essa situagao-, sendo que um artigo vindo do
setor colonial (a moeda) passou a intervir em todas as transagóes,
mesmo rio interior da economía doméstica. Ao contrário do que se
poderiá esperar, todos os esforgos de produgáo exigidos dos layra-
dores nao foram acompanhados de neñhuma medida susceptível de
aumentar a produtividade do trabalho ou o rendimento das térras.
A partir dessas circunstancias, nao é mais deyido as coergóes admi­
nistrativas, que o camponés se exila no setor colóniál, mas em razáo
das condigoes económicas que assolam seu meio e, em particular,
da impossibilidade de aumentar sua produgao; o qué acontecería
somente com aumento da duragáo do trabalho. Em outras palavras,
pela impossibilidade de introduzir o' progresso em seu meio.
Em contrapartida, o setor capitalista industrial, em razáo da
produtividade cónsideravelmente mais elevada de seus meios de pro-
dugáo, reserva-se os meios de oferecer um sálário capaz de propor­
cionar poder aquisitivo superior ao valor mercantil dos bens produ-
zidos no setor doméstico, com igual duragáo de tempo. Basta que
o salário oferecido réflita, parcialmente,: a diferenga dé produtividade
dos dois sétores para atrair o trabalhador rural, e que seja inferior
ao prego médio da forga de trabalho ño mercado capitalista para
que seja realizada além da mais-valia, urna renda-trabalho.
Assim, urna vez alcangada a situagáo de dependencia económica
do setor rural ao setor industrial o bloqueio deliberado ou náo do
setor doméstico de produgáo, a produtividade crescente do setor capi­
talista bastam para que se “engrene” o mecanismo das migragóes,
indepénderitemente de toda coergáo. Para o trabalhador de origem
rural, ó salário óferécido pelo setor capitalista apresenta ao menos
duas vantagens: (1) acesso ao numerario, .raro e “caro” no setor do­
méstico e o acesso, gragas a este numerario, a objetos substitutos da
produgáo artesanal; (2) a percepgáo de uín rendimento comparativa­
mente alto em relagáo áquele' que lhe podéria ser proporcionado pela
aplicagáo de urna mésma forga de trabalho aos meios de produgáo
domésticos; Certamente, com esse cálculo, o trabalhador rural esqüece
de contar a renda-trabalho, que ele oferece áo capitalista, asshri como
éste omite-se de pagá-la. Entretanto, explorado por este meio, o tra-
balhador pode gozar dé um aumento imediato de seus rendimentos,
pelo fato de a produtividade; de seu trabalho ter aumentado ém
media ' '' y : .•2
2. É necessário lembrar que o grau de exploragáo pode ser elevado e
aconipanhado por saláriós reais crescentes, qiiando aumente a capacidade dos
meios de .produgao colocados á disposigáo dos trabalhadores. Á taxa de explo-
ragáó, como leinbra Bettelheim. é mais elevada nos setores cuja composigao
orgánica do capital é mais forte (Contra: Amim, 1973 : 7 0 ).

224
A curto ou médio prazo, o emprego no setor capitalista pode
iludir o trabalhador rural. Ele é superexplorado, mas a diferenca de
produtividade entre seu setor de origem e seu setor de emprego é
suficientemente grande para que seus ganhos imediatos o encoragein
a persistir nos sacrificios que lhe sao impostos por urna vida de
semi-exilado, pelas agruras e perigos dos trabalhos que se lhe impoem,
pelas condigpes de habitagao e saúde de que é vítima. Sua miséria
é menos perceptível: ela vem da precariedade de seu emprego, da
impossibilidade de se fixar e de viver em familia, da incerteza que
pesa sobre seus dias passados. Com efeito, em razáo de sua posicao
no mercado de trabalho, o beneficio que retira do emprego só podé
ser conjetural e precário, porque “a condigno de realizagao da renda,
nao lhe permite gozar de nenhuma seguranga de ■emprego”.
Essa circunstancia, a instabilidade de trabalho do proletário mi­
grante no setor capitalista é, também, em termos, a causa da degra­
dando dos fatores de repro dugáo dessa renda no setor doméstico.3

a) “O limiar da pauperizagao”
Sendo impossível inserir-se orgánicamente no setor capitalista,
o trabalhador imigrado deve trabalhar pela perpetuando de sua co­
munidade de origem, a fim de poder gozar do produto desta, quando
nela reside, e manter posigáo económica que lhe permita oferecer
forga de trabalho barata no setor capitalista. A comunidade domés­
tica nao pode sofrer interrupgao de produgao em sua ausencia.' Deve
permanecer numerosa, e tanto quanto equilibrada para dividir suas
forgas entre os dois setores de produgao, doméstico e capitalista e
compensar a falta de produgao de um pelo outro, ou inversamente,
de acordo com a conjuntura. 4 Quando os períodos de emigragao
ultrapassam um ano, a comunidade doméstica, amputada quase per-

3. Tendo observado os efeitos da emigragao através de ¡números casos,


Michel Samuel formula “0 impasse atual no qual sé encontram as sociedades
abastecedoras de trabalhadóres imigrados:
— nao é possível viver continuando a cultura dos campos,
— a emigragao é o único meio de sobrevivencia,
—; mas ao .mesmo tempo ela nao nos permite restabelecer condigoes de
vida, decente na sociedade rural,
— pelo contrárío, ela ainda agrava a situagáo,
para o emigrado, o efeito: é: arruinar sua vida até que um outro
venha Substitituí-lo.
— donde as tentativas, geralmente vas, de escapar a um destino coletivo
(Michel Samuel, Documents sur Vimigralion, no prelo).
4. A observagáo de algumas familias de Tyabu (Senegal) revela formas
estruturais de reequilíbrio pelas quais vem a manter urna coesáo económica
e social relativamente forte, inversamente as populagóes que se entregam á
agricultura comercial e cuja decomposigáo é, ao contrário, geral.

225
1

manentemente de urna fragáo de sua forga de trabalho, nao ve suas


necessidades essenciais para a sobrevivencia diminuírem em proporgao
á baixa de consumo devida a ¿ssas saídas. Isso porque a produgao
/?B * de um produtor ativo durante os meses produtivos cobre nao
somente seu consumo anual, como o consumo de seus dependentes
e ascendentes. A mao-de-obra que permaneceu deve compensar este
“déficit” por procedimentos diversos: insergao no trabalho agrícolá
de categorías sociais que estavam afastadas; prolongamento do período
ativo; -redugáo dos pousios ñas lavouras mais próximas da aldeia
para utilizagao mais intensa do tempo de trabalho disponível. Ave-
riguando-se essas medidas em razao do duplo esgotamento dos pro-
dutores e dos solos cada vez menos capazes de garantir a subsistencia
da comunidade, parte crescente dos rendimentos fómecidos pelos
| trabalhadores emigrados é consagrada á compra da subsistencia no
mercado ou, em outros casos, ao engajamento de trabalhadores tem-
porários no cultivo de térras incultas 5. A monetarizagao da economía
que se enraíza por estes meios provoca o crescimento das necessidades
em forma de dinheiro, pela transformagao em mercadorias de pro-
dutos anteriormente trocados, originando, assim, um. ciclo irreversível.
Aqui, intervém a política geral dos pregos dos elementos essen­
ciais á subsistencia praticada ñas zonas de emigragao. Ñas reservas
abertas ñas quais o acesso á térra nao é estritamente limitado torna-se
necessário, para incitar o camponés a procurar emprego remunerado,
que o prego dos produtos de subsistencia disponíveis no mercado
nao seja elevado a ponto de encorajá-lo; ao contrario, a se dedicar
a urna agricultura estritamente de subsistencia capaz de eobrir ne­
cessidades abmentares, assim como seu numerario. Um aumento do
custo dos produtos dé subsistencia acarretaria num aumento também
no prego da forga de trabalho dos trabalhadores que recorreram ao
mercado local ou nacional para conseguir o numerário suficiente á
sua alimentagáo. Assim, a manutengao dos produtos alimenticios a
baixo prego toma-se ainda mais necessária quando o país de emi-
. gragáo se dedica á agricultura de exportagáo, a fim de que nao baja
o risco de desencorajar a produgao de géneros comerciáveis 6.
Essa política só é possível pela importagáo de géneros de subsis-
téncia subvencionados, produzidos-' em condigóes de produtividade
elevada, único meio possível, atualmente, para um número crescente

* P B é o volume das subsistencias produzidas por um individuo durante


seu período produtivo (N . do T .). ^- w
5. Kane e Lericbllais, 1975.
6. Situacao observável no Senegal, por exemplo, que pratica ao mesmo
tempo, exportagáo de máo-de-obra e do amendoim. A política atual de reva-
lorizagáo das subsistencias (1974-1975) e as condigóes novas que regem o
mercado mundial dos cereais (tendencia á alta) constrange ainda o “socialis-

226
de países subdesenvolyidos reabastecer populagóes urbanas. As con-
seqüéncias desSa situacáo sao múltiplas, além da dependencia absoluta
que fazem pesar sobre os países importadores em reí agao aos países
exportadores .— essencial e principalmente os Estados Unidos*7. ,
Surge um desequilibrio entre recursos locáis e o crescimento
demográfico, gerador de urna situagáo precária e inteiramente depen­
dente de Um abastecimento que fica á mercé do “querer” das grandes
potencias. A ajuda alimentar resulta, assim, numa espécie de criacao
de viveiro, de reserva de máo-de-obra, cujo volume e sobrevivencia
dependem dos países capitalistas que ai investem económica ou estra­
tégicamente.
A “ajuda alimentar” e a inseguranga provocadas pela instabili-
dade da situagáo dos trabalhadores migrantes sao a profunda razño
das tendencias natalistas que se observam geralmente entre essas po-
pulagóes. Síntomas de crise da economía doméstica, o crescimento
demográfico é um meio de conjurar um futuro incerto 8.
Já tivemos *oportunidade de observar como, na sociedade do­
méstica, esse futuro era próvido pelo reinvestimento do produto do
tTabalho nos futuros agentes da produgao agrícola.
Os trabalhadores de origem rural conservam por muito tempo
essa mesma esperanga de ver seus filhos lhes garantirem a manu-
tengao em suas velhices, de acordo com as normas da ideología
parental9.
Nesta conjuntura incerta, a utilizagáo do dinheiro em si fica
igualmente incerta. A preservagáo da comunidade como célula de

mo" senegalés a desenvolver a grande propriedade 'imóvel e a apropriacao


capitalista do espaco, posto que a insupórtável ameaca de urna briga dos
trabalhadores pelas térras que continuam a considerar como sua pesará muito
sobre a política económica do Senegal neocolonial. No que concerne á ma-
neira cuja “ajuda alimentar” é utilizada na estratégia económica do imperia­
lismo, ver: Comité Information Sdhel, 1974, II, 3; Reboul, 1975.
7. Em 1985, os excedentes dos países ricos ultrapassaráo 50 milhóes de
toneladas, mais do que será necessário para compensar o déficit dos países
pobres (Zeckerman, 1975), desde entáo completamente subjugados á política
económica das grandes potencias.
8. A. Retel-Laurentin (1974 : 135 e segs.) mostra que a maior parte das
populagóes africanas conhecem o aborto e praticam o controle da natalidade
de alcance variável, de acordo com a conjuntura. Elas nao sao entregues a
urna explosáo demográfica desordenada. Todas as medidas de anticoncepcáo
ou esterilizagáo preconizadas pelos malthusianos ficaráo sem efeito enquanto
os trabalhadores e lavradores, submissos á exploragao capitalista, nao goza-
rem de seguranza social adequada que os libertará dos receios do futuro.
9. A maioria dos trabalhadores africanos, na Franca pensam que sua
aposentadoria será garantida pela emigracáo de seus filhos (Camara e outros,
1975). De agora em diante, com efeito, a substituicáo de urna primeira gera-
cao de trabalhadores .migrantes está comesando a se realizar.

227
produgáo e reprodugao exige que se utilize o que Balandier (1959:38)
chamava “os investimentos sociológicos”, destinados “a conquistar ou
reforjar os méritos de tipos tradicionais” (pagamento de dote, con-
tribuigao generosa ao culto mugulmano, peregrinagáo á Meca, pre­
sentes, auxilios matrimoniáis etc.) pelos quais as relagóes domésticas
e aldeas sao melhor preservadas. Mas, na medida em que as condi-
góes objetivas de trabalho migratorio se deterioran!, apesar de todas
as condigóes de reprodugao social e da seguranga que lhe é associada,
o dinheiro passa a ser também considerado como meio de •investi-
mento económico possível, mesmo sendo gerador de lucro e de segu­
ranga do futuro. A compra de táxis, de casebres construidos na
cidade, a prática de pequeño comércio sao, cada vez mais, conside­
radas como alternativas possíveis, müitas vezes com completo desco-
nhecimento das reais condigóes de administragao de tais elementos.
Mas, éssa procura de lucro é, freqüentemente, empreendimento
individual, feito sem o conhecimento dos párenles e dos aliados, “o
que retira o empreendedor de seu meio de origem” (Balandier,
1959:38). O eventual lucro liga o trabalhador a personagens que
lhe sao estranhas (hómens de negocio, comerciantes, usurários), pro-
jetando-o num sistema que nao compreende e sobre o qual nao tem
dominio. Urna vez aceito o recurso da moeda, vindo do setor capi­
talista como meio de poupanga durável, vé-se acelerar o processo
de degradagao da economía doméstica. O individuo comega a poupar
para ele mesmo, a fim de subvencionar suas necessidades num futuro
improdutivo, á custa da reconstituigao de sua comunidade no presente.
No ciclo comunitário, a parte do produto destinado á alimen-
tagao dé futuros produtores é transformada pela poupanga pessoal
monetarizada, em parte destinada a um futuro incerto, sem entretanto
ser reinvestida no ciclo produtivo doméstico. Assim, urna fragáo do
produto social é desviada de seu destino: de investimento ele se
transforma em “poupanga”, cuja gestáo e juros sa o .transferidos aos
setores capitalistas ou mercantis, criadores ou manipuladores de moe-
das. A generalizagño de tais desvíos contribuí para o agravamento da
crise que sofrem as sociedades comunitárias sob o efeito do capita­
lismo colonial.
Todos esses fatores combinados levam essas populagóes para
fora dos quadros da economía doméstica. Quando o processo de
degradagao das condigóes de produgáo se acelera, a rotatividade dos
trabalhadores tende, também, a se tomar mais rápida. Urna parte
crescente de alúneñtagáo é comprada no mercado.-Se os salários no
.setor capitalista nao aumentam — e nao existe nerüníma razáo para
que eles se adaptem a urna situacao tao distante e táo localizada —
o salário real decresce independentemente dos aumentos de prego.
Os rendimentos destes salários sao entáo determinados menos pela

22.8
quantidade da forga de trabalho fomecida do que pelas- variagócs dos
presos, dos salários e eventualmente das taxas de cambio. Existe
um ponto em que o rendimiento da agricultura é muito baixo, o custo
dos transportes para os locáis de emprego é muito alto, a célula
familiar muito desequilibrada em idade e sexo para que possa manter
o nivel de reprodugao da forga de trabalho. Caminhando para a
falencia e o desaparecimiento, urna parcela cada vez maior da eco­
nomía doméstica só sobrevive pelos esforgos de homens e mulheres
que nao tém outros lugares de refúgio e vida, enquanto urna fragáo
sempre crescente de trabalhadores sai do alcance da economía do­
méstica e perde os beneficios dos recursos por ela proporcionados 10.
Se estes trabalhadores tém somente acesso ao mercado inferior de
trabalho, o mais instável e mal remunerado, nao enconíram em ne-
nhum setor, doméstico ou capitalista os meios de sua reprodugao.
Tomam-se o que certos sociólogos consideram como “margináis”,
sao, na verdade, auténticos proletários condenados a urna situagáo
regressiva de nao-reprodugáo, por causa de sua posigáo no mercado
de emprego, mesmo que constituam a maior parte do exército indus­
trial. de reserva. Em certas conjunturas, estao condenados á pauperi-
zagao absoluta11.
Quando se trata de “reservas” territorialmente limitadas e sub-
missas a uma regulamentagíio “ad hoc”, como as da África do Sul,
por exemplo, a exigüidade relativa desses territorios torna impossível
a cultura de novas térras, e progressivamente impraticáveis os pro-
cessos de restauracao dos solos pelas práticas culturáis da economía
doméstica (queimada, pousíos longos, associagao agricultura-criagáo,
por exemplo). A degradagao das condigóes da produgáo agrícola, a
miséria se instala e cresce até comprometer as condigóes de repro-
dugáo física dos trabalhadores.
10. Encontram-se em P. Gutkind (no prelo) indicacócs sobre o processo
de “isolamento progressivo” de urna parte da populando urbana de Ibadan
(Nigéria). Este autor, corno outros que criticam o marxismo, emprega o termo
lumpen proletariat para designar o proletariado mais pobre. É necessário lem-
brar que, para Marx (1895) a nojáo de “lumpen proletariat” é ideológica
e nao taxionómica. Designa a frajáo desencaminhada e . crapulosa do prole­
tariado, no gieio da qual o capitalismo recruta seus homens para se voltarem
contra sua classe. Assim, na Franja, certas facjóes racistas matadores de
árabes e dé negros, sao recrutados no “lumpen” : o “lumpen. proletariat” é a
base de um recrutamento fascista. A locucáo vem da palavra alema “lump” :
indigente, homem vil, vadio e nao de “lumpen” (farrapo), como é geralmente
explicado.
11. Estatísticas realizadas em Gana, entre 1939 e 1959, mostram urna
degradacao constante do salário real pago á máo-de-obra nao qualificada do
Accra. “Posto que os salários reais de 1939'estavam próximos do nivel de
subsistencia de apenas urna pessoa, durante vinte anos consecutivos o traba-
Ihador teve que contar com o auxilio de outras pessoas ou suportar degrada-
jáo física grave” (Birmingham, 1960. Ver também McLoughlin, 1963).

229
O comeco das grandes migragoes na África Meridional data de
1930. Ora, desde 1940 os Rand Mines já se preocupav.am com o
“empobrecimento das reservas de Transkei qué minava a saúde de
urna de suas principáis reservas de mao-de-obra” (Giuckman, 1940)1?.
Para remediar, essa situagáo, resolveu-se estender o recrutamento até
os territorios coloniais portugueses aínda nao prospectados. Dessa
forma, há mais de vinte anos os salários dos trabalhadores sul-afri-
canos empregados em grandes quantidades ñas minas nao sofreram
aumentos. Esses operarios recebem o mesmo total dos trabalhadores
recrutados, recentemente, nos territorios vizinhos de Angola ou Mo-
cambique, sem entretanto considerar o fato de as condigoes econó­
micas das reservas que serviam de explicacao para a origem dos
baixos salários se terem degradado em relagáo áquelas que continuam
a prevalecer ñas zonas rurais de exploragao recente.
;Em 12 de margo de 1973, o The Guardian, de Londres, revelava
que “a maioria das companhias británicas (instaladas na África do
Sul) pagam os assalariados africanos abaixo do nivel de subsistencia
reconhecido”; quer dizer, abaixo do mínimo necessário para qué seja
evitada a subnutrigao. Urna pesquisa revelou que os fühos desses
assalariados apresentavam sintomas graves de subnutrigao. Urna co-
missao oficial foi nomeada na Grá-Bretanhá, e as sociedades em
causa deveriam revelar os salários pagos a seus empregados. Em cem
sociedades pesquisadas, apenas tres pagavam sálários acima do nivel
previsto, conseguíndo evitar os problemas de saúde de seus trabalha­
dores e suas familias. O cenário parece-nos tanto quanto mais grave,
quando se sabe que 60% dos investimentos presentes na Üniáo Sul-
Africana sao británicos.
Essa situaqao, excepciónalmente, aparece em razáo do “black-,
out” que pesa sobre o que se passa nás reservas, e é urna realidade
na África do Sul, o que chega a inquietar economistas sul-africanos.
(Cf. Van Der Horst, 1942, África do Sul, 1944). Essa inquietagáo,
no entanto, nao contribuiu até aquí para a melhora da sítuagáo pois
hoje procura-se descobrir o “limite da pauperizacáo” (proverty datura
line) abaixo do qual á forga de trabalho ceSsa.de se reproduzir”
(Documento B .I.A .A .,-1975).

Nesse ponto, o capitalismo coloca-se diante de difícil contradigáo.


Restaurar as térras ñas reservas pela utilizagáo. de adubos comprados
no mercado capitalista é fazer penetrar o capital, com evidente risco
dé modificagoes ñas relagoes sociais, onde era oportuno nao fazé-lo.
■ ^ 12. O mesmo autor relata a oposicáo dos fazéndeiros e industriáis bran-
cos a urna experiencia de criacáo ñas reservas, o que desviava a máo-de-obra
africana dos campos de trabalho permitindo-lhes viver de suas atividades
agrícolas.

230
Aléin dissó, é tomar a agricultura dependente do mercado capitalista;
destruir-lhe as propriedades e renunciar ao desfrute da renda que ela
produz. Deixar 'essa agricultura abandonada a sua própria sorte é
liberá-la para a degradagáo, e, igualmente, renunciar á produeño de
urna forga de trabalho barata. Situagáo tomada crítica ñas reservas
sul-africanas e que leva o govemo a procurar outras solucóes. Daí,
a invengáo dos “Bantoustans”, territorios separados constitucional­
mente da Uniáo, que teriam a vantagem de rejeitar a carga económica
e a responsabilidade política das zonas abastecedoras de mao-de-obra
sobre essa mao-de-obra em si, e ai alocarem os operários sem trabalho
e os desobedientes, criando urna situagáo mais próxima áquela acima
descrita^ e que países europeus desfrutam. É o sentido do desliza-
mento da segregagáo para o “apartheid” (Wolpe, s.d. e 1972), o
“desenvolvimento separado” ou o “federalismo”.

CRITERIO OBJETIVO DA DIVISÁO DO PROLETARIADO

Em todo'o caso, tratando-se de reservas abertas óti fechadas,


a superexploragáo do trabalho, a usura dos homens ,e das térras que
ela acarreta alimentam um processo de diferenciagáo da classe ope-
rária internacional. Próvida incessantemente de mao-de-obra barata
pela colocacáo da exploracáo de novas populagóes mrais, o sistema
capitalista produz, simultáneamente, um fluxo continuo de trabalha­
dores despossuídos de seus meios económicos e sociais de produgáo,
mas nao aínda absorvido pelo mercado capitahsta do trabalho. De
acórdo com a capacidade de reprodugño no setor capitahsta distin-
guem-se tres fragoes principáis do proletariado.
A primeria é o proletariado integrado ou estabilizado que recebe
o salário direto e indireto ou, em outras palavras, aquela cuja forga
de trabalho é teóricamente comprada por seu prego de produgáo.
A segunda é constituida pelo proletariado-lavrador que só recebe
do capitalismo os meios de reconstituigao imediata de sua forga de
trabalho, mas nao aqueles para sua conservagao e reprodugño, meios
que arranja no quadro da economia doméstica.
A tercería é a do proletariado que nao tem nenhum meio de
reprodugño em nenhmn setor.
O graü de consciencia de classe, o comportamento, as reivindi-
'cagóes, as táticas sindicáis dessas tres fragóes sño diferentes. A pri­
meria insistirá na preservágño de sed nivel de vida, suas vantagens
adquiridas em relagáo as duas outras; reivindicará urna parte maior
do lucró capitahsta; algumas vezes ñas camadas mais avangadas um
controle da produgáo e condigoes de trabalho. A segunda reivindicará,
sobretudo, melhores condigoes de trabalho e moradia durante o pe-

231
nodo de trabalho mas, a partir do momento que pensa poder voltar-se
para o país e para a comunidade rural, desenvolve a iraca consciencia
de classe. A.terceira fragao pode, em caso de crise social e política,
torhar-se combativa, tomando consciencia de que se trata para ela
de questao de sobrevivencia e nao da obtengáo, através do emprega-
dor capitalista, de rendimentos que lhe permitam ascender á condigáo
de assalariado integrado.
Essd luía pela integragáo económica e aquisigao dos meios de
sua reprodugáo no sistema capitalista (emprego, salários e seguranga)
foi o tema principal da historia do movimento operario. Ela confirma
o fáto de que a classe operaría foi composta durante muito tempo
por um proletariado nao estabilizado, que aínda existe onde persiste
esse tipo de reivindicagao. Essa circunstancia faz com que a análise
de LSnin sobre o alcance político da luta sindical ganhasse sentido:
a reivindicagao pela integragáo no sistema capitalistá náo é revolu-
.cionária em si mesma, porque náo coloca em questáo o sistema
capitalista; náo vai além de reivindicar para a classe operaría o lugar
que lhe é determinado pela lógica das relagoes de produgáo capita­
listas.
"V ‘ •
b) A Concorréncia
A utilizagáo de um proletariado instável e náo integrado náo
deixa de causar problemas no setor de emprego capitalista13. Pro­
blema para o patronato quanto á natureza e volume de investimientos
nos ramos qué empregam máo-de-obra migrante malformada, pouco
instruida, náo somente em virtude da origem estrangeira, mas sobre-
tudo muito móvel para ser submetida á um ensino profissionál, mesmo
que seja limitado 14. Os meios de produgáo devem estar adaptados a
essa relativa baixa qualificagáo. Mas, ao mesmo tempo, o custo
inferior dessá máo-de-obra náo encoraja os empresários a se equipar
dos meios de produgáo de alta produtividade: “Nossos. industriáis
préferem investimiento em homens, o que é menos custoso do que
investimiento material (. . . ) . Sociedades multinacionais retardara os
planos de modemizagáo de suas máquinas para beneficiar o menor
13. “O dilema é claro: de um lado a máo-de-obra emigrada é exagerada
e ineficaz. Para melhorar sua capacidade e eficiencia, sua estabilizacáo na
zona do emprego é essencial; de outro lado, a manutencáo das ligacóes com
o sistema tribal tem suas vanta'gens no plano da coesáo familiar, da morali-
dade e, em conseqüencia, para a paz social e a estabilidade política.” (Rapport
de la Fédération d ’Áfrique céntrale — referindo-se á situacáo de Rwand-Urundi
— citado por J. Woddis, 1960 : 107).
14. O patronato e as autoridades políticas respeitadas temem em aumen­
tar, em qualquer nivel ou quantidade. o énsino dirigido aos trabalhadores, e
que possá causar o aparecimento de Consciencia de classe e favorecer a com-
batividade dos mesmos. •

232
cusió dessa máo-de-obra” (Entreprise, n.° 948) . A' máo-de-obra
barata permite a certós setores retrógrados manter-se no mercado,
oferecendo, por isso, a possibilidade de sobrelucros aínda maiores
nos setores mais bem equipados que á empregam.
Gomo Marx notou, a superexploragáo do trabalho contribuí para
frear a baixa tendencia das taxas de lucro. A medida que favorece
cértos setores da industria mais que outros, aguga a concorréncia no
seio do capitalismo e suscita a hostilidade de certas frácóes burguesas,
ditas liberáis, contra aquelas que, empregando essa máo-de-obra, sao
consideradas retrógradas.
Num país como a África do Sul, essa concorréncia é agravada,
pois a populagáo é composta de 7Q% 'de africanos mal pagos. Essa
política limita o desenvolvimento do mercado interno e o das indús­
trias nacionais de consumo que tém necessidade de venda interna
suficiente para poder colocar seus produtos no mercado internacional.
Na Uniáo Sul-Africana é o setor “afrikánder” semi-público de
produgáo que mantém a segregagáo contra a fraca oposigáo dos “li­
beráis” anglo-saxóes, cujas indústrias necessitam máo-de-obra mais
especializada e menos cara que a máo-de-obra branca (Oppenheimer,
1954-1955). Mas, essa hostilidade e atitude aparentemente anti-ra-
cista só perduram enquanto o emprego desse tipo de máo-de-obra
subqualificada toma-sé difícil pela natureza dos' investimentos. De
fato, sob o efeito da concorréncia internacional, indústrias cada vez
mais numerosas entregam-se, em diversos graus, a essa superexplora­
gáo do trabalho ou se organizam para esse fim, seja pelo emprego
de trabalhadores imigrados, seja cada vez mais pela implantagáo de
empresas em países subdesenvolvidos.
Essas perspectivas unem-se as dos govemos que se inquietam
com a presenga de urna maciga máo-de-obra volante estrangeira. Se
é fácil reservar as primeiras levas de migrantes condigoes de vida
miseráveis morando em pardieiros sem servigo sanitário, o mesmo
deixa de ser possível á medida que a experiéncia política dos traba-
Ihadgres migrantes se acumula. $e na Franga esses trabalhadores
aceitavam morar em ádegas ou retiros há já dez anos, hoje se récusam
a aceitar as condigoes que lhes sáo oferecidas ñas casas. Os governos
constatám, também, que o custo sanitário dos imigrados aumenta*
náo somente porque os trabalhadores náo tém familias que possam
cuidar deles; náo somente porque suas saúdes se degradam ou porque
os acidentes de trabalho aumentam, mas também porque obtém,
gragas as suas organizagóes, tratámento mais cuidado. A présenga
de milháres de estrangeiros no territorio nacional, hecessariamente
concentrados ñas zonas mais industriáis e amontoados em casas ou
vilas, representa risco de agitagáo cada vez mais ámeagador, á medida

233
que a imigragao adquire a prática das lutas e o apoio- de organizagoes
humanitárias ou políticas locáis. Por essas razoes, os govérnos dese-
jam manter essa imigragao nos limites certos e submeté-la a controles
policiais que excluem a clandestinidade (táo favorável em certas
empresas) e pennitem detectar sua origem (C.E.D.E.T.I.M., 1975
— anexo 2 ).
Sao essas diferentes considerares qué encorajam os países
capitalistas a empregar dispositivos de exploragáo desses trabalha-
dores baratos em seus países de origem, de acordo com urna fór­
mula renovada e melhorada de colonialismo, fórmula essa até hoje
retardada pela franqueza das infra-estruturas industriáis e comer­
ciáis dos países subdesenvolvidos. Empregada em empresas implan­
tadas. localmente, o custo dessa forga de trabalho local fiea reduzido
dos cusios de transporte1516, alojamento e subsistencia, pois o tra-
balhador será alimentado por urna producao local paga abaixo de
seu valor. Certamente, a maioria dos gastos para o sustento da máo-
de-obra recai sobre os países que receberáo capitais estrangeiros, mas
a burguesía local, que vé possibilidade ¡mediata de participar do
beneficio dessa superexploragáo, está pronta a garantir, tanto tempo
quanto possível, a ordem social, ou seja, a manutengáo das condigoes
de exploragáo.
Nesse sentido, constata-se urna redefinigao do capitalismo eu-
ropeu, imitando o modelo dos meios de negocios americanos que,
após a importagáo de homens optou, com a lei McCarran, pela
exportagáo de capitais e implantagao de suas empresas em todas as
zonas propicias a urna superexploragáo local de máo-de-obra ba­
rata ,G. A burguesía francesa prepara alguns terrenos de implantagao
em suas neocolónias: o Senegal, por exemplo, onde urna infrá-es-
trutura de acolhimento está organizada na península de Cabo-Verde,
e que servirá de reserva de máo-de-obra barata; igualmente, a África
do Sul, onde nossos homens de negocios que nao sao racistas nao
querem ser os últimos a espremer em sua substancia as vítimas
ensangrentadas do racismo africanista.
Essas solugoes nao reprimiráo a imigragao na Europa, nem na
Franga, de um dia para outró. Em 1973, o Conselho Nacional do
patronato francés avaliou que o país de imigragao, em 1982, teña
um déficit de-onze milhoes de trabalhadores, enquanto o país de

15. O custo do transporte do país de origem ao local de trabalho quasr


sempre é devolvido ao trabalhador, mas este custo pesa, direta ou indireta
mente, no prego de custo da máo-de-obra.
16. Sobretudo, na América-Latina e sudeste da ÁjErica, regióes onde ;
violencia e subversáo americanas sao, atualmente, as mais virulentas; na Euro
pa, também, cada vez mais, poia oferece a dupla vantagem de urna infra
estrutura muito desenvolvida e de urna máo-de-obra imigrada a baixo custo

234'
emigragáo nao tena mais de 7,8 a 10,4 milhoes de individuos ativos
(Entreprises, n.° 948) 17. A presenga conjuntura e as novas pers­
pectivas do capitalismo internacional mudarlo, talvez, essas cifras.
Blas confirmarlo que a exploragáo do trabalho náo se coloca nos
estreitos limites das relagoes entre Estados, nem entre “centro” e
“periferia”, mas entre classes sociais cuja clivagem passa no seio
dos países dominados; demonstrarlo, assim, que o retomo ou o sus­
tento dos trabajadores provenientes do setor doméstico do país de
origem náo porá fím a'superexploragáo.

17. O governo francés prevé diminuigáo da emigracáo, que já decaiu em


41% , em 1974. O governo francés tem como objetivo manter urna imigragao
definitivamente de alta qualidade, destinada a fornecer á industria a máó-de-
obra qualificada e fazer subir o teto da natalidade que, em 1975, estava no
limite da taxa de substituigáo.

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LIVRARIA EDITORA CIÉNCIAS HUMANAS LTDA.

Outros Lanfamentos

Benci, J. — A economía,crista dos senhores no governo dos escravos


Chasin, J. — O integralismo de Plínio Salgado
Da Silva, J. T. — Raízes da ideología do planefamento (Nordeste
1889-1930)
De Andrade, M. C. — Espago, Polarizagdo e Desenvolvimento
Da Costa, E. Viotti —Da monarquía a república: momentos decisivos
Engels, F. —As guerras camponesas na Alemanha
Marx, K. —A ideología alema (Feuerbach)
Marx, K. — O Capital, Capitulo VI (Inédito)
Marx, K. —Miséria da filosofía
Marx, K. — Cartas filosóficas e outros escritos
Moura, C. — A sociología posta em questSo
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Vários — Temas de Ciencias Humanas 1, 2 e 3
Vieira, E. A. — Oliveira Vianna & o Estado corporativo
Wemeck Sodré, N., —Introdugao á revolugao brasileira

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Ajdukiewicz, K. —Problemas e teorías da filosofía


Crossman, R. —Biografía do Estado moderno
Da Costa, E. Viotti —Da senzala á colonia
Renner, K. —A fungao do direito na Sociedade Capitalista

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