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FÓRUM • HABILIDADES SOCIAIS NO MERCADO DE LEITE

HABILIDADES SOCIAIS NO MERCADO DE LEITE


RESUMO
O crescimento de cooperativas de agricultores familiares na região Sul do Brasil contradiz a maioria dos
estudos de mercado, que prevêem um processo inexorável de globalização, concentração de mercado e
exclusão dos produtores mais pobres. O objetivo deste artigo é discutir como as cooperativas consegui-
ram garantir a estabilidade da oferta de leite em um ambiente competitivo, mesmo dispondo de poucos
recursos econômicos. O artigo aponta que as habilidades sociais das cooperativas foram decisivas na
definição de sua posição de destaque nesse mercado. Essas habilidades expressam-se na capacidade de
mobilizar capital social e simbólico, de formar uma nova identidade social em torno da produção familiar
de leite, de estimular a cooperação e manter estáveis as relações com os seus fornecedores. A conclusão
deste trabalho aponta que só uma abordagem territorial desses mercados pode nos ajudar a compreen-
der por que são formadas variadas organizações de produtores e por que fatores não econômicos são
determinantes para a concorrência.

Reginaldo Sales Magalhães


Procam - USP

ABSTRACT In Southern Brazil the family farmer cooperative growth shows the deficiency of the majority of market studies. These studies foresee
an inexorable globalization process, market concentration and exclusion of the poorest producers. The objective of this article is to understand
how stable milk offering for the cooperative is guaranteed in a competitive environment, even with few economic resources. The sociological mar-
ket study shows that important position in the market was occupied because of the social skills of the cooperative. These skills are expressed by
the capacities to mobilize social and symbolic capital, to form a new social identity, to stimulate the cooperation and to maintain stable relations
with suppliers. Conclusions point out that only a territorial approach of the markets can understand why varied organizations of producers are
formed and why not economic factors are determinant for the competition.

PALAVRAS-CHAVE Mercados, territórios, cooperativas, habilidades sociais, sociologia econômica.


KEYWORDS Markets, territories, cooperatives, social skills, economic sociology.

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INTRODUÇÃO se consolidando um modelo de organização produtiva


baseado em redes de pequenas cooperativas. Tais organi-
Desmentindo todas as previsões feitas nas últimas décadas, zações foram formadas a partir da iniciativa de organiza-
segundo as quais o mercado lácteo tenderia a concentrar a ções sociais que, diferentemente do modelo tradicional,
captação de leite em grandes empresas multinacionais do conseguem alcançar níveis razoáveis de competitividade
setor, três novos sistemas de cooperativas de agricultores justamente com os agricultores excluídos. Como conse-
familiares vêm ampliando sua posição no mercado da região qüência, em vez da tão propalada exclusão social, a orga-
Sul do Brasil. Erros nas previsões dos especialistas ou capa- nização econômica redundou, por meio da intervenção
cidade excepcional das novas cooperativas? Na verdade, o dos atores sociais, em uma atenuação do processo de
que parece justificar a aparente contradição entre prognós- concentração da renda.
ticos e fatos são as insuficiências teóricas que sustentam os Essa não é, todavia, a visão predominante sobre os
estudos sobre os mercados e as organizações. mercados: a maioria dos estudos se concentra na análise
A maioria das análises do mercado de leite enfatiza da concorrência entre as empresas pelo mercado consu-
fortemente o processo de concentração da indústria e midor, mas não aborda o problema da concorrência pelo
as mudanças de um padrão de produção e mercado que acesso à matéria-prima. Segundo Fligstein (2001), os
até há poucos anos estava restrito ao âmbito local e que mercados são mais bem caracterizados pela relação entre
passa a ter dinâmicas cada vez mais globais. A difusão de produtores concorrentes de um mesmo segmento – e não
novas tecnologias, que levou ao aumento do consumo pela relação entre produtores e consumidores. Para White
de leite com embalagens de longa vida e de leite em pó, (1981), os comportamentos dos agentes econômicos não
tornou possível a conservação do produto por períodos são orientados por uma demanda amorfa: em vez disso,
mais longos e o transporte por extensas distâncias, trans- os produtores se observam uns aos outros dentro de uma
formando-se assim o leite numa commodity. Segundo estrutura social em que as ações consideradas mais efi-
Carvalho (2005, p. 15), a dinâmica setorial passa a ser cientes são reproduzidas.
dada exogenamente, pelas matrizes estrangeiras ou pelos As empresas buscam mais do que a maximização de
demandantes do produto. curto prazo dos seus lucros. Querem sobreviver por meio
Partindo dessas premissas, os estudos que analisam as do estabelecimento de relações estáveis com fornecedores
condições de mercado em territórios específicos analisam e competidores. Para os estudos que se restringem aos
apenas o impacto de mudanças globais ou macroeconô- pressupostos da economia neoclássica, as firmas são cai-
micas sobre as condições locais de produção. Estariam xas-pretas, impenetráveis ao olhar de um cientista que não
então os territórios e seus agentes totalmente subordina- leve em consideração as estruturas, as relações sociais e a
dos a uma lógica global? Estariam as regras de mercado e história que as construíram. Outra limitação teórica im-
os padrões de produção subordinados às determinações portante dos estudos sobre os mercados é que costumam
estabelecidas pelas grandes empresas líderes mundiais? restringir-se ao campo econômico. Entretanto, a formação
É o que parecia se confirmar ao longo dos anos 1990. A dos mercados e suas constantes mudanças, bem como os
Parmalat se instalou na região com intensa agressividade, comportamentos econômicos dos indivíduos, são resul-
comprando pequenas indústrias e ameaçando formar um tado de interações freqüentes entre campos econômicos,
monopólio na indústria de leite e laticínios na região Sul. políticos e culturais (Bourdieu, 2005). Sem levar em conta
Com o aumento da competição nos mercados de leite, as as influências do mundo social, importantes fenômenos
cooperativas tradicionais passaram a adotar uma série de econômicos são negligenciados pelos estudos de mercado
medidas visando a reduzir custos, principalmente por baseados nas teorias econômicas neoclássicas.
meio da profissionalização da gestão, da seleção e da re- Na verdade, vemos que os mercados são resultados
dução do quadro de cooperados (Jank e Galan, 1997). de configurações de interesses econômicos e relações so-
Alguém que observasse com pouca atenção essas in- ciais (Swedberg, 2003) que se estabelecem de diferentes
tenções poderia emitir o juízo de que o destino da região formas, dependendo da estrutura e da posição que cada
estava selado. Porém, não foi o que ocorreu: a formação agente ocupa no campo de forças. Cada agente constrói
e a expansão das novas cooperativas de agricultores fami- estratégias de luta e de cooperação. Alianças entre empre-
liares contradizem tais previsões para o mercado de leite sas, cooperativas, sindicatos e produtores são estratégias
brasileiro. Por quê? encontradas pelos agentes econômicos para estabilizar as
Em primeiro lugar, porque, ao lado de grandes em- relações entre competidores. São coalizões de interesses
presas multinacionais e laticínios de médio porte, está e compromissos, muitas vezes na esfera dos domínios

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políticos, que permitem a estabilização dos mercados mediante a organização de um grande número de pro-
(Fligstein, 2001). dutores, conseguiram elevar os preços recebidos, porém
Se existem então condições específicas em que os com freqüência as empresas utilizam a mesma estratégia
mercados apresentam características particulares para para conquistar novos produtores. O principal objetivo
um dado território, poderíamos conceber a existência de dessa pesquisa foi compreender como as cooperativas
mercados territoriais? Mercados são arenas sociais onde conseguiram garantir a estabilidade da oferta de leite
ocorrem trocas estruturadas, que por sua vez necessi- em um ambiente tão competitivo e dispondo de pou-
tam de regras e estruturas sociais para guiar e organizar quíssimos recursos econômicos. Uma questão que se apre-
as transações. A formação de um mercado territorial se senta como um grande desafio para a ciência econômica
consolida na medida em que as organizações, neste caso e para os tradicionais estudos de mercado é: por que os
as cooperativas, formem instituições peculiares no terri- produtores de leite se mantêm fieis às cooperativas, mes-
tório em questão. mo quando recebem propostas de preços melhores por
Os mercados de leite se caracterizam por interações parte das empresas concorrentes?
complexas entre diversos agentes. Para que essas inte- Essa questão será analisada à luz da sociologia econô-
rações se estabilizem, é necessário que os atores com- mica e confrontada com evidências empíricas levantadas
partilhem pressupostos cognitivos, padrões habituais e junto a três sistemas de cooperativas de produtores de
regras para governar novas interações. Ou seja, para que leite localizadas nas regiões sudoeste do Paraná, oeste de
se formem mercados com características específicas em Santa Catarina e noroeste do Rio Grande do Sul. Por meio
um território, é necessário que existam nele determinadas de entrevistas com dirigentes e técnicos de cooperativas,
estruturas sociais. De acordo com Fligstein (2001), essas produtores e lideranças de organizações sociais, identifi-
estruturas podem ser classificadas em quatro categorias, a caram-se as relações sociais, as formas de organização e as
saber: direitos de propriedade, estruturas de governança, instituições que estruturam o mercado de leite nessas re-
regras de troca e concepções de controle. giões. Além disso, foram reconstruídos processos históricos
A primeira categoria, direitos de propriedade, define as que levaram à mudança nas relações entre os produtores
relações sociais entre os proprietários e o conjunto da so- e as indústrias, e à formação das cooperativas. Nas próxi-
ciedade, produzindo dois tipos de estabilidade: definem o mas sessões, são analisadas as características do mercado
poder nas relações intra e interfirmas. A segunda categoria, de leite na região, as formas de organização das coopera-
estruturas de governança, refere-se às regras gerais, tanto tivas e as relações sociais entre organizações e agricultores
formais quanto informais, de uma sociedade, que estabe- familiares. Ao final, são apresentadas as conclusões a res-
lecem relações de cooperação e competição e limitam o peito do papel que as habilidades sociais dos agricultores
modo de organização dessas sociedades. A terceira cate- familiares e suas cooperativas cumpriram na conquista de
goria, concepções de controle, reflete arranjos específicos maiores espaços no mercado de leite da região.
de mercado entre atores em firmas segundo princípios de
organização interna, táticas de cooperação e competição,
e hierarquias ou o ordenamento das firmas em um dado O MERCADO REGIONAL DE LEITE
mercado. A concepção de controle é uma forma de “co-
nhecimento local” (Geertz, 1983). É um produto histo- O tradicional mercado de leite caracterizava-se por um
ricamente específico a cada indústria, a cada sociedade e comércio local, em geral pouco regulamentado por regras
cultura, na medida em que forma um tipo de compreensão formais, com predomínio de pequenos produtores e lati-
e práticas disponíveis em um dado mercado. Por fim, a cínios artesanais, em uma cadeia de produção curta, com
quarta categoria, regras de troca, define quem pode transa- poucos intermediários entre os produtores primários e os
cionar com quem, e as condições em que essas transações consumidores, e baixo valor agregado aos produtos. Era a
são realizadas, sendo que a padronização de produtos é época do leiteiro, que deixava o leite à frente da porta do
cada vez mais importante nesse contexto. As mudanças consumidor. Desde então, a intervenção estatal passou a
nos mercados de leite promovidas pelas cooperativas são ter influência constante no mercado de leite. De 1945 a
analisadas sob o ângulo dessas estruturas sociais. 1991, o principal instrumento de regulação do mercado
Uma série de fatores faz com que haja uma grande con- foi o tabelamento de preços, que, junto com os programas
corrência no mercado de leite na região Sul do Brasil. As sociais de distribuição de leite, por meio das compras ins-
empresas se engajam em uma dura guerra de preços para titucionais, fizeram com que os governos passassem a ser
garantir o acesso à matéria-prima. As novas cooperativas, os principais demandantes do produto. Segundo Carvalho

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(2005, p. 3), no final dos anos 1990, os programas sociais o aumento de fusões e aquisições, principais estratégias
consumiam aproximadamente 30% do total do leite tipo utilizadas no final dos anos 1990 e início dos anos 2000.
C produzido no Brasil. Nesse período, o governo adotou Entre 1989 e 1999, por exemplo, a Parmalat adquiriu
mecanismos indiretos de orientação da produção, median- 22 plantas industriais e a Nestlé, outras 8 plantas. Esses
te políticas de crédito, pesquisa e assistência técnica. casos foram considerados uma tendência para o setor
A ação do Estado no mercado de leite foi alvo de mui- (Carvalho, 2005, p. 5).
tas críticas. O tabelamento foi apontado como principal Em quarto lugar, a regulamentação da qualidade do
fator responsável pela baixa produtividade e qualidade leite está provocando uma grande reestruturação nos
dos produtos lácteos, com a existência de indústrias com sistemas produtivos e na relação entre as indústrias e os
grande capacidade ociosa e sérios problemas de gestão e de produtores, principalmente com a entrada em vigor da
eficiência. A crise crescente do setor ampliou a dependên- portaria 56 do Ministério da Agricultura, a qual estabe-
cia de importação, que, junto com o fim do tabelamento, lece novos padrões técnicos, higiênicos e sanitários para
levou a uma grande mudança institucional no setor e à a produção de leite. Adicionalmente, os elevados inves-
formação de novos arranjos produtivos. timentos no setor deverão, segundo as previsões, causar
Segundo Pilati (2004, p. 12), por serem produtos pe- uma grande exclusão de produtores que não tenham con-
recíveis e de giro rápido, os lácteos se caracterizam por dições de ter acesso aos recursos necessários para manter
compras repetitivas. Porém, são muito sensíveis às os- a atividade.
cilações de preço, qualidade, atendimento e serviços de Uma das principais limitações dessas análises é sua
logísticas dos ofertantes. Muitas vezes, a mudança de 1 tendência de sobrepor a importância de fatores exógenos
centavo no preço de 1 litro de leite, por exemplo, pode e não levar em conta as estratégias utilizadas pelas em-
influenciar na decisão de indústrias, atacadistas e super- presas e organizações para ocupar melhores posições no
mercados. Ou seja, o mercado de leite é caracterizado por mercado. Se fossem consideradas as relações endógenas
uma forte concorrência, tanto no acesso à matéria-prima entre as indústrias e os produtores de leite, seriam ob-
quanto na oferta para o mercado consumidor. Apesar da servadas situações específicas nas quais os mercados de
crescente concentração da industrialização de leite em leite, em importantes regiões, mantêm características lo-
grandes empresas de atuação global, o mercado de leite cais, determinadas por instituições próprias de cada ter-
apresenta pesada concorrência nas duas pontas da cadeia. ritório. O conhecimento concreto revela que o preço não
É, em suma, um mercado com grande instabilidade, pro- está dado, nem é o resultado abstrato do equilíbrio entre
vocada pelas constantes oscilações na oferta nas regiões oferta e demanda, mas é objeto de constantes tentativas de
produtoras, além de muito sensível às oscilações econô- manipulação pelo uso do poder que cada agente dispõe.
micas, aos subsídios governamentais, à política cambial Todos os mercados são regulados por estruturas sociais.
e às variações climáticas. Garcia-Parpet (2003, p. 25-29), por exemplo, mostra que
Apesar do ambiente instável, na última década a pro- a dinâmica de um mercado é permanentemente influen-
dução brasileira de leite cresceu 48%; o consumo interno ciada por agentes que se reorganizam, criam laços, fazem
cresceu 42%, ao passo que as importações reduziram-se acordos, formam redes de comunicação, reduzem a trans-
em 82% e as exportações cresceram 666% – o que levou, parência e reforçam vínculos com o objetivo de eliminar
em 2004, a uma balança comercial positiva. Por outro a concorrência. Assim, preservar a concorrência depende
lado, desde 1973 o preço de leite vem apresentando que- de um contínuo esforço de controle.
da constante (Neves et alii, 2005). A Mesorregião Grande Fronteira Mercosul, um grande
A maioria das pesquisas indica que há um crescente território que engloba o sudoeste do Paraná, o oeste de
processo de globalização nos mercados de leite, baseado Santa Catarina e o noroeste do Rio Grande do Sul, ocupa
em algumas grandes mudanças. Primeira, a abertura co- o segundo lugar na produção de leite do país, perdendo
mercial do início dos anos 1990, que elevou os padrões apenas para o estado de Minas Gerais. A região tem uma
de competitividade, obrigando as empresas a adotar novas produção de leite maior, por exemplo, que toda a produção
estratégias, reduzir custos, aumentar a escala de produção do Uruguai. O leite é especialmente importante na repro-
e melhorar a qualidade do produto. Segunda, a adoção dução da agricultura familiar, atingindo quase a totalidade
da tecnologia de esterilização do leite e da embalagem dos estabelecimentos agrícolas do território.
longa vida, que transformou o leite em uma commodity, Na região, a produção tomou vulto a partir de meados
permitindo a comercialização a longas distâncias e o ar- dos anos 1980 e final dos anos 1990, quando a indústria
mazenamento do produto por prazos longos. Terceira, de suínos e aves promoveu uma grande concentração da

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produção, excluindo um grande número de produtores centrais regionais e 22 cooperativas singulares. Destas, 21
familiares. Com maior densidade de ocupação de mão- são formadas por agricultores familiares e uma é formada
de-obra, possibilidade de descentralização de parte da por ex-funcionários da estatal. A Coorlac ocupava, segun-
indústria em pequenas unidades e menor valor dos in- do dados de 2002 da Associação Brasileira dos Produtores
vestimentos necessários, a produção de leite foi a melhor de Leite, a décima sétima posição no ranking nacional de
alternativa encontrada (Testa et alii, 2003, p. 15). Ao con- empresas em volume de produção, com média de 20 mi-
trário da suinocultura e da avicultura, que apresentam um lhões de litros por mês, e o sétimo lugar com relação ao
mercado muito concentrado em grandes indústrias (Sadia, número de produtores, com 6 mil associados.
Chapecó, Perdigão, etc.), o mercado de leite apresenta uma Em Santa Catarina, as cooperativas de leite da agricultu-
estrutura menos concentrada e com maior concorrência. ra familiar começaram a ser formadas a partir de 2001, pela
Muitos produtores de soja, pressionados pelas grandes iniciativa de 26 famílias no município de Arvoredo, com
oscilações de preços e pelas perdas recentes provocadas o apoio dos sindicatos da agricultura familiar de Chapecó
por variações climáticas, vêm também convertendo suas e Coronel Freitas. Dessa primeira organização foram cria-
unidades de produção para a bovinocultura de leite. das outras 7 cooperativas que integram a Associação das
Com oferta e demanda crescentes, grande número de Cooperativas Produtoras de Leite do Oeste Catarinense
empresas disputa o acesso aos produtores. No oeste de (Ascooper). O sistema de cooperativas tem 2.200 sócios
Santa Catarina, 51 empresas, sendo 14 cooperativas, 2 la- que produzem cerca de 3 milhões de litros de leite por
ticínios médios, 17 laticínios pequenos, 2 multinacionais mês. A Ascooper tem o apoio de um conjunto de parcei-
e 16 miniusinas, concorrem pelo leite vendido por 40 mil ros. Os principais são a Apaco (Associação dos Pequenos
produtores, em 118 municípios (Testa et alii, 2003, p. 29). Agricultores do Oeste Catarinense), que faz assessoria na
Com tal grau de concorrência, as principais empresas não gestão da cooperativa e dos produtores de leite, os sin-
conseguem definir padrões de preço e qualidade, abrindo dicatos da agricultura familiar, que auxiliam no trabalho
espaço para novos agentes serem formados e ampliarem de organização dos produtores, e o Sistema Cresol, que
posições no mercado. As grandes cooperativas tradicionais oferece crédito para os produtores e cooperativas.
perderam espaço, que foram ocupados principalmente As cooperativas possuem uma organização descentrali-
por laticínios regionais. Um grande número de pequenos zada cuja principal função é manter uma relação contínua
laticínios ainda se mantém na atividade, sustentando-se e estreita com os associados. Cada cooperativa possui uma
por meio dos mercados informais. coordenação formada por representantes dos municípios
Mesmo nesse ambiente de grande concorrência, três sis- que fazem parte de sua área de abrangência. Em cada
temas de cooperativas da agricultura familiar construíram, município existe uma coordenação local, e, em cada co-
em poucos anos, uma participação expressiva no mercado munidade, duas ou três lideranças são responsáveis pela
da região. A questão que nos fazemos neste ponto é se a relação com os associados. As lideranças comunitárias
forma de organização desses sistemas ajuda a explicar seu reúnem-se regularmente com os sócios em cada comuni-
desempenho. É o que veremos a seguir. dade para discutir preços, produção e transporte. Esse for-
mato organizacional permite uma relação de proximidade
com os associados que resulta em grande participação. As
A ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS cooperativas não possuem uma estrutura de comerciali-
zação e industrialização. Elas atuam exclusivamente no
O sistema Coorlac, criado em 1994, surgiu do processo de processo de organização dos produtores, e o seu papel é
privatização da antiga Corlac, Companhia Riograndense negociar o volume total de produção com as empresas que
de Laticínios e Correlatos, em um processo de negociação industrializam leite na região, uma vez que as indústrias
conduzido pelos sindicatos de trabalhadores. A empresa não possuem uma estrutura similar de coordenação local
enfrentava crise e sucateamento há alguns anos, resultado para garantir o abastecimento do produto.
de grande endividamento junto a produtores, funcioná- No Paraná, o Sistema de Cooperativas de Leite da
rios e tributos. Após longa negociação entre governo do Agricultura Familiar com Interação Solidária (Sisclaf)
estado produtores e sindicatos, definiu-se um processo de é composto por 16 cooperativas singulares e por uma
cooperativização. Os postos de recolhimento e indústrias cooperativa central. As primeiras cooperativas do siste-
da antiga Corlac foram desmembrados e passaram a ser ma foram formadas em 1998, e a cooperativa central foi
administrados por cooperativas. Atualmente esse sistema criada em 2004. As cooperativas singulares têm abran-
é formado por uma central estadual, pela Coorlac, quatro gência municipal com o papel de organizar grupos de

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produtores, coordenar a assistência técnica local, e são capacidade de criar essa complexa organização depende
organizadas por meio de pequenos grupos comunitários. de uma série de procedimentos e competências únicas,
A direção da cooperativa reúne todos os coordenadores que Geerz (1983) define como conhecimento local, cons-
de grupos para discutir as condições do mercado, da pro- truído por uma longa história de relacionamento entre as
dução, do transporte, a assistência técnica e as estratégias organizações e os agricultores familiares. Em segundo lu-
da cooperativa. gar, as cooperativas conseguiram transformar em capital
As cooperativas locais se integram em núcleos regionais econômico um grande capital simbólico baseado em uma
cujos objetivos são promover a articulação das cooperati- forte identidade dos agricultores familiares que estimula a
vas em microrregiões, fazer a negociação com parceiros re- confiança, a credibilidade e o reconhecimento da organi-
gionais, coordenar a assistência técnica, controlar a coleta zação. É a essa capacidade de mobilizar diferentes formas
e a qualidade do leite. A cooperativa central tem o papel de capital como estratégia de alçar agricultores familiares
de formular estratégias e projetos para o sistema, prestar pobres a posições de maior destaque no mercado de leite
serviços de apoio às cooperativas e representar o conjun- que chamamos habilidades sociais das cooperativas.
to das organizações. O sistema possui 2 mil associados
que produzem, em média, cerca de 2,5 milhões de litros
de leite por mês. Para administrar esse complexo sistema HABILIDADES SOCIAIS
de logística cada cooperativa possui apenas um pequeno
escritório, com um funcionário e um ou dois dirigentes As teorias baseadas na Economia Institucional analisam
parcialmente liberados para o trabalho de organização, a condição de as empresas ampliarem a participação nos
cadastramento, negociação com empresas, pagamento aos mercados em função da capacidade que possuam para
cooperados e venda de insumos e equipamentos. adotar estruturas organizacionais, sobretudo estratégias
Os três sistemas de cooperativas de leite reúnem-se no financeiras, estratégias de formação de preço e contro-
Fórum Sul do Leite, uma organização criada em 2003 com le de propriedade, adequadas às condições de mercado
o apoio do Sistema Cresol, da Federação dos Trabalhadores (Karlson, 2005). Além dos aspectos econômicos, o aces-
da Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) e de so dos agricultores familiares na cadeia do leite depende-
ONGs. O papel dessa organização é representar os três ria ainda de uma “coordenação eficiente” facilitada por
sistemas na negociação de políticas públicas relacionadas governos que contribuíssem para a redução dos riscos e
à cadeia de produção de leite, promover intercâmbios en- dos custos de governança, facilitando o fluxo de informa-
tre os sistemas e a negociação de projetos de capacitação ções, o acesso a crédito, seguro e organizações de P&D
e assistência técnica, e sua principal função é ampliar o (Zylbersztajn, 1995).
acesso a recursos públicos. As cooperativas, em particular, apresentam problemas
A análise do papel das organizações na estrutura- específicos nas estruturas de controle de propriedade.
ção dos mercados é um tema central para a Economia Segundo Bialoskorski (1999), como nas cooperativas os
Institucional. Segundo a economia dos custos de transa- direitos de propriedade são difusos, problemas de gover-
ção (Williamson, 1989), são os altos custos de contrata- nança como assimetrias de informação entre diretoria e
ção, monitoramento e enforcement que as empresas têm associados, problemas de agência e custos de participa-
que assumir para se relacionar com grande número de ção são mais freqüentes. Partindo dessa abordagem ana-
pequenos produtores que explicam a opção preferencial lítica, as recomendações para controlar a emergência de
por poucos produtores de grande escala. O acesso dos comportamentos oportunistas acaba por centrar-se nas
agricultores familiares aos mercados de leite por meio da estratégias de gestão das cooperativas que visem ao for-
venda de matéria-prima para grandes laticínios só seria talecimento das estruturas de representação, na transpa-
possível com sistemas de governança que viessem a pos- rência de informação, na redução dos custos de transação,
sibilitar uma redução dos custos de transação. na coordenação contratual, no aumento da participação
No entanto, mais do que reduzir os custos de transa- dos cooperados e na redução dos conflitos de agência
ção, as cooperativas de leite conseguiram desenvolver e (Bialoskorski, 2002).
mobilizar, de forma eficiente, importantes recursos que O ambiente de grande incerteza que caracteriza o mer-
propiciaram a sua expansão no mercado. Em primeiro lu- cado de leite exige a definição de regras que regulem o
gar, elas criaram um tipo de capital tecnológico (Bourdieu, relacionamento entre as organizações, e entre as organi-
2005, p. 25), originalmente desenvolvido nas coopera- zações e os indivíduos. As três cooperativas de leite ana-
tivas de crédito e utilizado nas cooperativas de leite. A lisadas neste artigo formaram um ambiente institucional

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(North, 1990) que possibilita uma interação estável e dução, da produtividade, e a melhoria da qualidade do
previsível que permite tanto às cooperativas quanto aos leite. Dependendo da quantidade e da regularidade da
produtores menos capitalizados manterem sua inserção produção, da utilização de equipamentos modernos na
no mercado. produção e armazenamento do leite, da realização perió-
Essa poderia ser uma boa explicação para a fidelidade dica de testes e vacinações, os preços podem variar em
que os agricultores familiares buscam preservar nas suas até 70% entre produtores de uma mesma região (Testa et
relações com as cooperativas em detrimento das melho- alii, 2003, p. 37).
res ofertas dos grandes laticínios. Parte dos problemas Com forte crítica à discriminação dos produtores me-
enfrentados pelas organizações e das estratégias por elas nos capitalizados, a formação das cooperativas de agricul-
construídas pode ser compreendida à luz da Economia tores familiares foi uma alternativa explícita à política de
Institucional, porém essa abordagem se limita à análise bonificação. No início, todas as cooperativas passaram a
dos problemas e estratégias oriundos das relações entre adotar um preço único, provocando assim grande elevação
indivíduos e organizações. Uma visão subsocializada do do preço recebido pelos pequenos produtores. Porém, as
comportamento dos atores, como definiu Granovetter cooperativas vêm sofrendo um agressivo ataque das em-
(1985), não permite compreender como as relações so- presas que oferecem preços mais altos para os maiores e
ciais se entrelaçam com a vida econômica e como ações melhores produtores. Isso fez com que as cooperativas co-
coletivas se estruturam na formação dos mercados. meçassem também a adotar uma política de diferenciação
A fidelidade dos produtores com compradores é uma de preços, ainda que mais branda. O combate à bonifi-
das questões centrais para a concorrência entre empre- cação representa, para as cooperativas, uma forte contra-
sas no mercado de leite. Segundo o dirigente de um dos dição. Ao mesmo tempo em que foi tema importante da
sistemas de cooperativas de leite, “é fundamental, deter- luta política dos sindicatos e um dos fortes motivadores
minante, ter controle da matéria prima”. As cooperativas para a criação das próprias cooperativas, sua eliminação
precisam de estabilidade, da garantia de que os produ- reduz a capacidade que as cooperativas têm de manter a
tores vão entregar a quantidade de leite compromissada relação com os maiores produtores, melhorar a qualidade
com a indústria. Em todo o mercado de leite das últimas e aumentar a estabilidade da oferta. Considerando esse
décadas, a principal estratégia utilizada pelas empresas contexto político, para as cooperativas esse é um incen-
compradoras para atuar em um mercado altamente ins- tivo pouco eficaz.
tável e fortemente competitivo é o estabelecimento de Outro tipo de incentivo econômico utilizado para ga-
relacionamentos duradouros entre produtores e compra- rantir a fidelidade dos produtores é a oferta de assistên-
dores (Nassar et alii, 2002). Estabilizar as relações entre cia técnica e financiamento para os produtores de leite.
indústria e fornecedores é, segundo Fligstein (2001), o Pesquisa realizada pela Cocel mostra que mais de 80%
principal desafio das firmas. No mercado de leite, a cons- dos produtores concentram-se nas faixas de produção de
tante guerra de preços é um fator de desestabilização das 5 a 75 litros de leite por dia. A cooperativa considera que
relações entre os agentes, e por isso as empresas buscam o volume ideal seria uma produção mínima de 100 litros
formar coalizões que garantam condições estáveis de aces- diários, uma faixa em que estão apenas 5% dos produto-
so à matéria-prima. res. Dos 1.164 produtores de leite, 345 possuíam orde-
Essa relação pode ser analisada à luz dos incentivos nhadeiras, dos quais apenas 34 possuíam equipamentos
econômicos que as empresas oferecem aos produtores, de resfriamento a granel; 538 resfriamento de imersão;
sendo esse o tipo de incentivo que as empresas e coope- 550 empregando congeladores; e 34 utilizando geladei-
rativas tradicionais normalmente utilizam. Ademais, nas ras. Os dados mostram que, apesar de todos utilizarem
três cooperativas da agricultura familiar, além dos incen- algum tipo de resfriamento para a conservação do leite,
tivos econômicos, são mobilizados também incentivos de as condições de armazenamento são ainda precárias para
outra ordem, que passaremos a descrever a seguir. a maioria dos produtores.
Outra importante restrição é a carência de assistência
Incentivos econômicos técnica. Um quarto dos produtores nunca recebeu ne-
A principal estratégia utilizada pelas empresas tradicio- nhum tipo de assistência técnica; pouco mais de um terço
nais para manter a fidelidade dos produtores é o uso de recebe visitas de técnicos às propriedades uma ou duas
incentivos econômicos, principalmente por meio de po- vezes por ano; e apenas 8% dos produtores recebem visi-
líticas de bonificação. Consiste em um sistema de dife- tas mensais. A inseminação artificial é uma prática mais
renciação de preço que visa estimular o aumento da pro- corrente entre os produtores, pois quase metade a utiliza

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FÓRUM • HABILIDADES SOCIAIS NO MERCADO DE LEITE

pelo menos em parte dos animais. Porém, para um terço têm com os vínculos comunitários e na identidade política
dos produtores e aproximadamente metade dos animais, construída pelos sindicatos da agricultura familiar.
essa é uma técnica que nunca foi utilizada. Segundo os Para compreender como esses incentivos influenciam o
dirigentes das cooperativas, as empresas que compram comportamento dos indivíduos, é necessário ter em mente
leite na região oferecem assistência técnica apenas para quais são os objetivos da ação nas relações sociais subja-
os produtores que entregam acima de mil litros por mês. centes às transações econômicas. Para Fligstein (1999),
A maioria dos pequenos produtores, portanto, não tem o objetivo básico da ação é obter a cooperação dos outros
acesso a esse importante serviço. Nesse sentido, é eviden- atores, sendo esse o resultado de identidades coletivas,
te por que os produtores vendem sua produção para as mais do que de interesses individuais. A habilidade para
cooperativas, mesmo recebendo preços menores devido obter cooperação pode ser vista genericamente como uma
ao acesso à assistência técnica, inseminação, capacitação habilidade social cuja base cognitiva vem da psicologia
e financiamento. social, em especial da corrente do interacionismo simbó-
Para viabilizar o financiamento, as cooperativas de pro- lico (Mead, 1934), segundo a qual os indivíduos agem
dutores de leite têm uma forte relação com cooperativas conforme suas crenças e valores, sendo esses os princípios
de crédito. Assim como ressalta Granovetter (2001), as elementares de sua identidade. Os valores e as crenças or-
ligações estreitas entre agentes financeiros, produtores e ganizam os objetivos e os meios sociais que os indivíduos
comerciantes são determinantes nos processos de inova- utilizam para atingi-los.
ção. A necessidade de implantação da coleta e transporte As relações entre as cooperativas e os produtores foram
de leite resfriado a granel obrigou os produtores a instalar fortalecidas por meio de laços comunitários, por uma sim-
resfriadores de leite nas propriedades. Muitas empresas ples, porém determinante, mudança no sistema de trans-
passaram a financiar os produtores para a aquisição do porte do leite. O controle do transporte é uma importante
equipamento, constituindo assim uma forma de depen- estratégia de concorrência no mercado de leite. Os fretei-
dência entre produtores e empresas. As cooperativas de ros ou transportadores são os agentes que fazem a coleta
crédito do Sistema Cresol oferecem serviços financeiros de leite nas propriedades e atuam como intermediários
para a produção de leite, especialmente o financiamento na relação entre indústria e produtores. A relação entre
para a aquisição dos equipamentos, de animais, prestando produtores e freteiros vai muito além do que aparenta ser
ainda serviço de pagamento dos produtores. Segundo téc- apenas uma prestação de serviços. O contato freqüente,
nicos da Cresol-Baser, no último ano, 60 a 70% da carteira quase diário, e de longo período entre os produtores e os
das cooperativas de crédito da região foram destinados a freteiros cria relações de proximidade e laços de confian-
financiamentos da produção de leite. ça (Abramovay, 2000, p. 301) que são determinantes na
Os incentivos econômicos são muito criticados por concorrência entre as empresas. Às relações de mercado
lideranças locais e mesmo pelos próprios dirigentes das são sobrepostos vínculos políticos, de vizinhança, de pa-
cooperativas como uma forma tradicional de exclusão. É rentesco, de reciprocidade, etc.
uma contradição permanente entre a racionalidade eco- Mesmo recebendo preços mais baixos, alguns produto-
nômica e os objetivos sociais das cooperativas. Porém, res mantêm a fidelidade com indústrias devido aos laços
mais do que engessar as organizações em infindáveis de compromisso com os freteiros. Como relata um pro-
discussões e conflitos internos, essa contradição força dutor familiar de leite em Francisco Beltrão, no Paraná:
as organizações a buscarem inovações que possibilitem “Muitas famílias não saem da empresa porque o freteiro é
a combinação de eficiência econômica e inserção social bom, mesmo que receba 10 centavos a menos”. Diversos
(Magalhães, 2005). A solução desse conflito foi, em par- outros serviços necessários à atividade de produção ou
te, viabilizada pela importância menor que os incentivos às variadas necessidades das famílias são atendidos pe-
econômicos têm para as cooperativas em comparação com los freteiros. Essa relação de dependência que o sistema
as grandes empresas, graças aos incentivos não econômi- tradicional de transporte impõe aos produtores reduz a
cos desenvolvidos no processo histórico a partir do qual liberdade de escolha no mercado. Nessas relações se es-
as cooperativas foram criadas. tabelecem regras de troca que definem quem pode tran-
sacionar com quem e as condições em que as transações
Incentivos não econômicos são realizadas.
A fidelidade dos produtores é garantida, sobretudo, por A substituição dos intermediários externos por inter-
incentivos simbólicos mobilizados pelas cooperativas e mediários da própria organização, normalmente pessoas
que se baseiam na identidade que os produtores familiares escolhidas nas comunidades, significou uma importante

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mudança nos direitos de propriedade, estabelecendo-se de econômica e a cultura política dos movimentos. Essa
novas relações de poder e hierarquia. As linhas passa- combinação quase inusitada é a característica central que
ram a ser coordenadas pelos próprios produtores, com o define a forma singular como as cooperativas construíram
apoio de lideranças locais e representantes da cooperati- a sua capacidade de competir nos mercados.
va, fazendo com que os laços comunitários passassem a
ter um peso primordial nas relações entre os produtores
e as organizações. CONCLUSÕES
Incentivos simbólicos também se expressam por meio
da identidade dos produtores com os sindicatos da agri- Os estudos tradicionais que se valem apenas de preços e
cultura familiar, o que contribui expressivamente para mercados não são capazes de compreender como os resul-
gerar uma forte coesão social entre os associados. A tados históricos de construções sociais e a habilidade de
maioria das cooperativas foi formada por lideranças dos atores para a mobilização de diferentes formas de capital
sindicatos que passaram a exercer cargos de direção nas alteram as estruturas de um mercado e determinam as no-
duas organizações. Essa proximidade permite uma im- vas posições que os atores passam a ocupar. Nesse estudo
portante combinação entre racionalidade econômica na sobre o papel das cooperativas no mercado de leite, apesar
gestão das organizações e uma coesão social que fortale- das diferenças de estilo e de pressupostos, as abordagens
ce os vínculos. da Sociologia Econômica e da Economia Institucional
No entanto, a relação com os sindicatos não é isenta destacam, com importante complementaridade, as formas
de tensões. Em muitos municípios, as cooperativas têm concretas de interação social nos mercados. Ao contrá-
grandes dificuldades relacionais com esses organismos. rio das abordagens neoclássicas, que tratam os mercados
As cooperativas buscam construir sua autonomia e uma como mecanismos de formação de preços que podem ser
racionalidade baseada na viabilidade econômica e na rela- conhecidos de maneira dedutiva, em uma análise insti-
ção com os mercados, enquanto os sindicatos se orientam tucional e sociológica dos mercados as propriedades são
e tentam orientar as cooperativas segundo seus objetivos muito mais particularizadas, conhecidas por meio de mé-
políticos. Reivindicam inclusive maior contribuição finan- todos fundamentalmente indutivos e baseadas na recons-
ceira das cooperativas para as lutas e mobilizações organi- trução de processos históricos (Abramovay, 2004).
zadas pelos sindicatos. As cooperativas não discordam da A Economia Institucional possibilita identificar a exis-
importância que as lutas sindicais têm para a sua própria tência de altos custos de transação na relação entre pro-
viabilidade econômica, mas defendem que a sua contri- dutores de leite e indústrias de processamento fazendo
buição deve ser orientada por resultados concretos. com que o controle do mercado por parte das grandes em-
Um segundo ponto de tensão refere-se à visão sobre presas seja parcial. Ao lado dessa conclusão, a Sociologia
os mercados. Os sindicatos possuem visões de mundo Econômica mostra que em um mercado caracterizado pela
eminentemente avessas às regras dos mercados, enquanto presença de um grande número de pequenas, médias e
as novas concepções de controle formadas pelas coope- grandes empresas, interagindo num processo de grande
rativas de leite foram resultado de mudanças culturais, concorrência, onde as empresas líderes não estão defini-
sobretudo de um processo de racionalização econômica das, as habilidades sociais são determinantes para que
constantemente questionada pelas organizações sindicais. certas organizações ocupem um espaço de destaque.
Dessa maneira, a formação desse campo estruturado pelas A falta de capital econômico é compensada, nas co-
organizações da agricultura familiar pode ser caracteriza- operativas, por fortes e densos capitais, especialmente
da por um sistema de oposições fundamentais: a combi- simbólico, social e tecnológico. As organizações da agri-
nação conflituosa de racionalidade econômica e cultura cultura familiar desse território conseguem mobilizar es-
política. Processo semelhante a esse foi descrito em um sas diferentes formas de capital, constituído ao longo de
trabalho sobre as cooperativas de crédito no sertão da décadas de organização social iniciada pelas Comunidades
Bahia, onde a adesão à racionalidade econômica não levou Eclesiais de Base e levada adiante pela ação política, pe-
necessariamente ao abandono dos valores que serviram dagógica e organizacional patrocinada pelos sindicatos de
de fundamento à construção histórica da comunidade e trabalhadores rurais e pelas ONGs.
à sua coesão (Magalhães, 2005, p. 136). Pelo contrário, a Uma visão histórica dos movimentos sociais da agricul-
eficiência econômica e o resultado social da ação de orga- tura familiar revela uma mudança estratégica substancial
nizações econômicas e movimentos sociais se explicam, nas suas visões sobre os mercados: o esforço de forma-
justamente, pela associação existente entre a racionalida- ção de projetos políticos e sociais novos, cujos objetivos

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FÓRUM • HABILIDADES SOCIAIS NO MERCADO DE LEITE

centrais são ampliar a participação da agricultura familiar As cooperativas de leite da agricultura familiar são or-
nos mercados ao lado da ação tradicional que visa buscar ganizações setoriais que têm fortíssima repercussão sobre
maior acesso aos recursos públicos. Essas novas habili- o conjunto do território, já que elas se voltam a coordenar
dades dos movimentos sociais da agricultura familiar se um conjunto de atividades nas quais se envolvem milha-
materializam na forma de estruturas de governança for- res de atores econômicos locais. Apesar do papel econô-
madas pelas cooperativas com dois focos fundamentais. mico muito bem determinado, as cooperativas exercem
O primeiro torna-se compreensível pela abordagem da também importante influência sobre outros campos de
Economia Institucional e evidencia a formação de sis- relações sociais dos territórios, mostrando que existe um
temas de governança eficientes no campo das relações forte entrelaçamento entre campos econômicos, políticos,
sociais e econômicas entre os produtores e as organiza- sociais e culturais.
ções. O segundo emerge à luz da Sociologia Econômica, Por fim, esta pesquisa sobre o mercado de leite contri-
evidenciando a formação de uma forte identidade co- bui para o debate sobre um importante aspecto conceitual
munitária e política entre as organizações da agricultu- e, ao mesmo tempo, operacional das políticas de desenvol-
ra familiar e entre os agricultores familiares. Ou seja, as vimento rural. O novo enfoque traz ganhos significativos
estratégias construídas pelas organizações para garantir em comparação com a visão exclusivamente setorial das
a relação estável com os produtores não se restringem ao políticas de desenvolvimento. A análise desse mercado
campo econômico. A combinação de princípios ideoló- mostra que os enfoques setoriais e territoriais, tanto do
gicos e capital simbólico que garanta a coesão social de ponto de vista teórico quanto da operacionalização de po-
um grande número de lideranças comunitárias, sindicais líticas, poderiam e deveriam ser complementares. Além
e de outras organizações sociais aliada a uma capacidade disso, do ponto de vista teórico, a análise das interações
de gestão econômica racional na relação com o mercado sociais, base do próprio conceito de território e de mer-
e na administração das cooperativas forma um tipo de cado, também deveria incorporar a análise dos interesses
controle que tem se mostrado eficiente e capaz de con- econômicos e políticos dos atores, suas visões de mundo
correr com grandes empresas multinacionais do setor. A e formas de racionalidade, bases sobre as quais se estabe-
criação das cooperativas modificou tradicionais sistemas lecem os conflitos e as coalizões entre os atores sociais e
de hierarquia e dominação social, como, por exemplo, a a partir das quais podem ser melhor compreendidas. Ou
relação entre freteiros e produtores, e a relação de depen- seja, uma compreensão mais nítida dos mercados depende
dência financeira entre agricultores e indústrias de leite, da observação das condições específicas da sua formação
formando novos laços entre os agricultores familiares e histórica em cada território.
as organizações. A capacidade de organização, aliada à
capacidade de formar coalizões com algumas indústrias
regionais de médio porte, faz com que as cooperativas da
agricultura familiar ocupem parcela importante e cres-
AGRADECIMENTO
cente do mercado.
As cooperativas de leite formaram também estruturas Esse artigo foi elaborado a partir de pesquisa realizada no âmbito do
de governança com o objetivo de estreitar suas relações programa Movimientos Sociales, Gobernanza Ambiental y Desahollo
Territorial Rural, do Rimisp – Centro Latinoamericano para el Desarrollo
com os governos e ampliar o acesso às políticas públi- Rural, realizada no Brasil pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas
cas. Os principais projetos financiados com recursos Econômicas), com o projeto As Forças Sociais dos Novos Territórios – O
públicos, como capacitação, assistência técnica, infra-es- caso da Mesorregião Grande Fronteira Mercosul. Agradeço ao prof. Ricardo
trutura e crédito, são fruto da negociação direta entre o Abramovay e a Mônica Schroder pelo trabalho conjunto e pelos importan-
tes comentários sobre o artigo.
Fórum Sul do Leite e o Sistema Cresol de cooperativas
de crédito e instâncias federais do governo, especialmen-
te o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Banco do
Brasil e o BNDES. As negociações entre as cooperativas
de leite e de crédito com o governo são articuladas de REFERÊNCIAS
forma mais ou menos planejada com as lutas sindicais.
ABRAMOVAY, R. O capital social dos territórios: repensando o desenvolvi-
A organização sindical exerce o papel político amplo e
mento rural. São Paulo: Economia Aplicada, v. 4, n. 2, p. 379-397, 2000.
relativamente difuso de promover maior visibilidade da
agricultura familiar na sociedade e exercer pressão polí- ABRAMOVAY, R. Entre Deus e o Diabo – mercados e interação humana nas
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Artigo recebido em 17.10.2005. Aprovado em 24.01.2007.

Reginaldo Sales Magalhães


Doutorando em Ciência Ambiental pelo Procam - USP. Especialista em Sociedade Civil da
International Finance Corporation e Diretor da Plural Consultoria e Pesquisas. Membro do
Grupo de Pesquisas Instituições do Desenvolvimento Territorial da Faculdade de Economia
e Administração da USP.
Interesses de pesquisa na área de sociologia econômica.
E-mail: regi.magalhaes@uol.com.br.
Endereço: Rua Dr. Nogueira Martins, 400, apt. 104, São Paulo – SP, 04143-020.

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