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O FENÔMENO JURÍDICO
Revista dos Tribunais | vol. 681/1992 | p. 15 - 33 | Jul / 1992
Doutrinas Essenciais de Direito Civil | vol. 1 | p. 573 - 603 | Out / 2010
DTR\1992\490
1. INTRÓITO
Na literatura jurídica nacional, o tema de nosso trabalho tem recebido pouca atenção.
Isso se deve, talvez, a dois motivos: o primeiro por ser o fenômeno jurídico tido como
sinônimo de fato jurídico (v. o verbete "fenômeno jurídico" na Enciclopédia Saraiva de
Direito); o segundo, consectário do primeiro, leva a considerar o efeito do fenômeno
jurídico - fato, ato e negócio jurídico - como sendo o centro da questão. Nesse sentido e,
principalmente pelo segundo motivo apontado, a temática fica restrita à Teoria Geral do
Direito Civil (v. Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, pp. 68-69; a obra de
Francesco Santoro-Passarelli, Doctrinas Generales del Derecho Civil, pp. 109 e ss. e o
clássico Ato Jurídico, de Vicente Ráo).
Esse breve escorço sinaliza já uma pergunta: a nível de linguagem, a expressão "fato
jurídico" - lato sensu - denota pragmática e semanticamente "fenômeno jurídico"?
(Sobre a possibilidade de estudar-se uma ciência, incluindo aí do Direito, a partir da
linguagem - e suas propriedades -, v. Georges Kalinowski, Introducción a la Lógica
Jurídica, p. 51; no respeitante ao fato como ponto de partida argumentativo, v. Ch.
Perelman e L. Olbrechts-Tyteca, La Nouvelle Rhétorique - Traité de L'argumentation,
1/89 e ss.). Se acrescentarmos à linguagem a problemática da hermenêutica
defrontamo-nos com o que Hans-Georg Gadamer denomina de pré-compreensão: o
intérprete não tem apenas uma relação com o texto (interpretação), mas também com o
tema que o texto expressa (hermenêutica). (Verdad y método, p. 403). Ora, o campo do
tema da expressão "fato jurídico" não é o mesmo da expressão "fenômeno jurídico".
Logo, em termos lingüísticos, "fato jurídico" não denota as características do "fenômeno
jurídico".
A preocupação da Teoria Geral do Direito Civil está direcionada para o resultado (fato
jurídico), olvidando-se por completo da causa (fenômeno jurídico). Como entender que o
pressuposto do fato jurídico tenha ficado na berlinda e este, o fato jurídico, tenha
encontrado a justificação em si mesmo, tal como uma Fênix?
A herança deixada pela Escola Exegética basta lembrar a famosa frase de Bugnet: "eu
não conheço o Direito Civil; só ensino o Código Napoleão", à Dogmática Jurídica (as
tarefas desta estão elencadas na p. 50 do livro de Antônio Luís Machado Neto, Teoria da
Ciência Jurídica) e ao papel do juiz (..., y el juez, en virtud de la sumisión de la
sofocracia a la nomocracia, debe subordinar se a la norma." Introducción a la Ciencia del
Derecho, Theodor Sternberg, p. 135) (A colocação de Sternberg não remete a Charles
Louis de Secondat? Dizia ele: "Porém, os juízes de uma nação não são, como dissemos,
mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem
moderar nem sua força nem seu rigor." Do Espírito das Leis, p. 152) explica que tenha
sido a vontade a dona da cena. Uma vontade calcada, por um lado, na filosofia
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O fenômeno jurídico
O fenômeno jurídico, falamos supra, é o pressuposto do fato jurídico. Isso deve ser
entendido em termos. Explicamo-nos: o pressuposto do fato jurídico é, na verdade, o
fato social (Para evitar confusões terminológicas, esclarecemos que o fato social a que
estamos a nos referir - e que será retomado, infra, não é o fato social equiparado ao
direito, tal como faz Georges Gurvitch no Tratado de Sociologia, 2/260, e nem o fato
social reduzido à ação social, operação feita por Max Weber, na p. 18 do seu livro
Economia y Sociedad). O fenômeno jurídico indica a mudança de status: fato social para
fato jurídico. Com isso, cremos haver explicitado a diferença do campo temático, posto
supra, entre "fato jurídico" e "fenômeno jurídico".
Uma vez assim debuxado o umbral de nosso trabalho, deve o ledor já ter-se apercebido
que não analisaremos o fato jurídico lato sensu. Este estudo assujeita-se à Teoria Geral
do Direito Civil. Muito menos adentraremos na perquirição do fato social, uma vez que a
análise desse impende à Sociologia (v. cap. 1.º do livro de Emile Durkheim, As Regras
do Método Sociológico). Interessa-nos verificar a ponte entre um e outro (e suas
implicações). Nesse sentido, a nossa dissertação está ancorada em quatro marcos
fundamentais, a saber: conceito, causa, objeto e efeito do fenômeno jurídico.
Foi a partir do séc. XVIII, e tendo relação com a reabilitação da aparência como sendo
manifestação da realidade aos sentidos e ao intelecto, que a palavra fenômeno inicia por
designar o objeto específico do conhecimento humano, exatamente enquanto aparece
sob condições específicas, caracterizadoras da estrutura do conhecimento humano. O
fenômeno equivale a coisa em si. Depois, passou-se a considerar o fenômeno como a
aparência, dentro ainda das características que estruturam o conhecimento do homem.
Não quer isso dizer que o fenômeno seja algo ilusório ou enganador. Hobbes comprova
esta assertiva, ao valorizar o fenômeno como aparência geral, não estabelecendo
qualquer embargo para que o fenômeno, assim concebido, pudesse ser objeto do
conhecimento humano. Maupertüis, ao afirmar, em 1752, que a extensão é um
fenômeno, como o são todas as coisas corpóreas, impõe uma restrição ao conhecimento
humano. Dessa concepção partiu Kant para estabelecer a diferença entre fenômeno e
nôumeno. A formulação de Kant continua impondo uma limitação, de validade, do
conhecimento humano: o fenômeno não é o objeto que se manifesta, mas é o objeto
que se manifesta ao homem, dentro das limitações e condições inerentes ao homem.
Sob a perspectiva filosófica a palavra fenômeno tem, então, duas grandes acepções:
uma de Kant, separando o fenômeno do nôumeno, havendo aí um limite ao
conhecimento humano, que vai até aonde a autoridade da razão o legitima; a outra, de
Husserl, que entende ser o fenômeno a manifestação do em si da coisa.
A palavra fenômeno, informa Ferrater Mora (op. cit.), provém do grego, significando "o
que aparece". Nesse sentido, fenômeno é o mesmo que aparência.
No entender de André Lalande (op. cit.), o fenômeno é "ce qui apparait à ·la conscience,
ce qui est perçu, tant dans l'ordre physique que psychique".
Hodiernamente, a palavra tem três significados, consoante Nicola Abagnamo (op. cit.):
"a) a aparência bruta (ou o fato bruto) considerado ou não como manifestação da
realidade ou fato real; b) o objeto do conhecimento humano, qualificado e delimitado
pela relação com o homem; e, c) a revelação do objeto em si."
"Fenômeno jurídico, assim, é todo acontecimento que causa efeitos jurídicos. O mesmo
que fato jurídico." (V. o que falamos, a respeito da sinonímia entre fenômeno jurídico e
fato jurídico no tópico 1., supra).
O princípio de Epicuro De nihilo nihil nos remete para a preocupação com o que provoca
e/ou causa o fenômeno jurídico. Voltando à Filosofia, tanto a concepção de Kant como a
de Husserl (V. tópico 2., supra, in fine) compreendem o fenômeno como sendo originado
de alguma causa. A perquirição desta causa releva a pré-compreensão Gadameriana (V.
tópico 1., supra). Para evitar o negativo dos pré-juízos (V. a respeito, Hans-Georg
Gadamer, op. cit., pp. 331 e ss.) e não sucumbir ao prestígio das opiniões dos ídolos de
Francisco Bacon (V. interessante estudo a respeito, de Guillermo Francovich, Os Ídolos
de Bacon), faremos um corte epistemológico no próprio fenômeno jurídico (Para a
questão epistemológica, v. Gaston Bachelard, Epistemologia, pp. 27 e ss. e 101 e ss.).
Para este intento dividiremos, com o intuito de facilitar a exposição e, quiçá a clareza, o
tópico em subtópicos.
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O fenômeno jurídico
A propriedade semântica (V. tópico 1., supra) da palavra imputação assume em Kelsen
outro significado daquele dado pela teoria tradicional. (A imputação, para a teoria
tradicional, que de há muito já trabalhava com a palavra, significava (e ainda significa,
máxime na Teoria Geral do Direito Penal) simplesmente a relação de uma determinada
pessoa com uma determinada conduta).
Kelsen, ao contrário, pretende, ao dar uma nova conotação à palavra, fundar uma Teoria
Pura do Direito, i.é. fazer uma ciência normativa para diferenciá-la da ciência causal.
Asserta Kelsen: "Quando, contudo, se procede à análise das nossas afirmações sobre
conduta humana, verifica-se que nós conexionamos os actos de conduta humana entre
si e com outros factos, não apenas segundo o princípio da causalidade, isto é, como
causa e efeito, mas também segundo um outro princípio para o qual ainda não há na
ciência uma designação geralmente aceita. Somente se é possível a prova de que um tal
princípio está presente no nosso pensamento e é aplicado por ciências que têm por
objecto a conduta dos homens entre si enquanto determinada por normas, ou seja, que
têm por objecto as normas que determinam essa conduta, é que teremos fundamento
para considerar a sociedade como uma ordem diferente da natureza e para distinguir
das ciências naturais as ciências que aplicam na descrição do seu objecto este outro
princípio ordenador, para considerar estas como essencialmente diferentes daquelas" (
Teoria Pura do Direito, pp. 118-19, ibid., p. 156). (Como introdução ao tema, Théorie
Pure du Droit - introduction a la science du droit, pp. 17-18).
De imediato uma pergunta salta aos olhos, como diria Nietzsche: qual é a ordem, ou
melhor, que tipo de lógica preside a ciência normativa e a ciência causal?
Tal qual a lógica deôntica, a lógica formal é uma linguagem simbólica, desprovida de
conteúdo. As proposições, na lógica formal, são ligadas pelo verbo ser (sein) - o verbo
que liga as proposições deônticas é o dever-ser (sollen) -, chamado, na lógica formal, de
cópula.
A lógica formal traduz a lei do mundo natural, que é a lei da causalidade: quando A é, B
é. Enquanto a lógica formal trabalha com o princípio da identidade (Sobre o argumento e
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O fenômeno jurídico
Kelsen entende a ordem jurídica como sendo um sistema de normas figurado pela
imagem espacial da supra-infra-ordenação. (V. Teoria Pura do Direito, pp.
309-10-Théorie Pure du Droit - ..., pp. 313-14; Teoria Geral das Normas, p. 329 e Teoría
General del Derecho y del Estado, p. 128).
O sistema estático e o sistema dinâmico formam uma ordem, que tem a sua unidade no
fato de todas as normas desta ordem terem o mesmo fundamento de validade. Este, o
fundamento de validade, tem a sua base na norma fundamental ( Grundnorm).
Esta norma fundamental (chamada na Teoría General del Derecho y del Estado, p. 137,
de "norma fundamental hipotética" e, na Teoria Geral das Normas, p. 329, de "norma
fundamental ficta", correção que Kelsen fez conscientemente) é o ponto central da
construção lógica de Kelsen, pois é dela que deriva o fundamento de validade, consoante
dito supra.
Todo o ato de uma pessoa que vise, intencionalmente, a conduta de outra pessoa,
possui um dever-ser subjetivo. Para usarmos o mesmo exemplo de Kelsen, tanto a
ordem do ganster como a ordem do funcionário de finanças têm, ambas, o mesmo
sentido subjetivo. Quer dizer: as duas ordens contêm o comando de entrega do dinheiro.
Inobstante, apenas a ordem do último vincula, tem validade objetiva.
O dever-ser subjetivo somente é uma norma se também tiver o sentido objetivo, quer
dizer: se for igualmente um dever-ser objetivo. Será um dever-ser objetivo, terá um
sentido também objetivo se estiver fundamentado numa norma superior. A ordem do
funcionário de finanças é objetivamente válida porque está fundamentada numa lei
fiscal, que lhe dá competência para tanto. Já a ordem do ganster não possui este
fundamento objetivo, pelo que não tem validade objetiva. (V. Kelsen: Teoria Pura do
Direito, pp. 25 e 75; Théorie Pure du Droit..., pp. 36 e ss. e Teoría General del Derecho
y del Estado, pp. 31 e ss.). (A norma fundamental não apenas fundamenta a validade de
uma ordem jurídica, e também a sua unidade. Ela traspassa essas funções para, ainda,
possibilitar o conhecimento objetivo do Direito. Nesse sentido, ela, a norma fundamental
é o pressuposto sobre o qual se funda a Ciência do Direito. Todos o sabem, a norma
fundamental não é uma norma posta, mas pressuposta, ou seja, "...ela apenas pode ser
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O fenômeno jurídico
uma norma pensada" (Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 280.) Aqui localizamos uma
identidade entre a norma fundamental e o nôumena de Kant. Este, o nôumena é objeto
do conhecimento (e não dos sentidos). Diz Kant: "Gleichwohl liegt es doch schon in
unserm Begriffe, wenn wir gewisse Gegenstände, als Erscheinungen, Sinnenwesen
(Phaenomena), nen, idem wie die Art, wie wir sie anschauen, von ihrer Besshaffenheit
an sich selbst unterscheiden, dass wir entweder eben dieseselbe nach dieser letzteren
Beschaffenheit, wenn wir sie glecih in derselben nicht anschauen, oder auch andere
mögliche Dinge, die gar nicht Objekte unserer Sinne sind, als Gegenstände bloss durch
den Verstand gedacht, jenen gleichsam gegenüber stellen, und sie Verstandeswesen
(Moumena) nennen" (Kritik der reinen Vernunft, pp. 334-35). Trad.: "Todavia, já está no
nosso conceito que, quando denominamos certos objetos, como fenômenos, de entes
dos sentidos (Phaenomena), distinguindo o nosso modo de intuí-los de sua natureza em
si, contrapomos a estes entes dos sentidos, quer os mesmos objetos em sua natureza
em si (conquanto nela não os intuamos), quer outras coisas possíveis que não sejam
objetos do nosso sentido (enquanto objetos pensados apenas pelo entendimento)
chamando-os entes do pensamento (nôumena)." Noutra passagem asserta Kant: "nur so
viel scheint zur Einleitung, oder Vorerinnerung, nötig zu sein, dass es zwei Stämme der
menschlichen Erkenntnis gebe, die vielleicht aus einer gemeinschaftlichen, aber uns
unbekennten Wurzel entspringen, nämlich Sinnlichkeit und Verstand, durch deren
ersteren uns Gegenstände gegeben, durch den zweiten aber gedacht werden" (op. cit.,
p. 78). Trad.: "Como introdução ou advertência (Kant está a se referir à doutrina
transcendental dos elementos) parece necessário dizer apenas que há dois troncos do
conhecimento que talvez brotem de uma raiz comum, mas desconhecida a nós, a saber,
sensibilidade e entendimento: pela primeira são-nos dados objetos, mas pelo segundo
são pensados." Ora, a norma fundamental não aparece aos nossos sentidos, mas ao
nosso conhecimento, uma vez que ela, a norma fundamental é pressuposta. E aparece
ao nosso conhecimento via entendimento, uma vez que ela, a norma fundamental, é
uma norma pensada. O que aparece aos nossos sentidos é a Constituição, fundamentada
na norma fundamental, a legislação, fundamentada na Constituição e as sentenças
judiciais e resoluções administrativas, fundamentadas na legislação. Nesse sentido, o
conhecimento científico do Direito é sempre a posteriori. Segundo Kant, "dass alie
unsere Erkenntnis mit der Erfahrung anfange, daran ist gar kein Zweifel. (...) Wen aber
gleich alie unsere Erkenntnis mit der Erfahrung anhebt, so entspringt sie darum doch
nicht eben alle aus der Erfahrung" (Ibid., id., pp. 49-50). Trad.: "Não há nenhuma
dúvida de que todo nosso conhecimento começa com a experiência. (...) Mas embora
todo nosso conhecimento comece coma experiência, nem por isso todo ele se origina da
experiência." Qual é a experiência posta ao conhecimento jurídico-científico? É a norma,
e somente esta, a qual, por isso mesmo, permite a proposição jurídica, ou seja, a sua
descrição a nível científico. (A diferença entre norma jurídica e proposição jurídica será
retomada, infra, com indicação bibliográfica.)
Uma análise das obras de Kelsen revela que o mesmo mudou o seu ponto de vista a
respeito da questão. Por isso faremos, num subtópico, esta constatação e, noutro,
veremos a posição da doutrina.
Na primeira edição da Teoria Pura do Direito escreve Kelsen: "Pour amener les hommes
à se conduire d'une manière déterminêe le droit attache une sanction à la conduite
contraire. La conduite qui est la condition de la sanction se trouve ainsi interdite, tandis
que la conduite permettant d'éviter la sanction est prescrite. Inversement une conduite
n'est juridiquement prescrite que si la conduite opposée est la condition d'une sanction"
(Théorie Pure du Droit..., p. 66). Na página seguinte lemos: "Nous dons à la norme qui
êtablit la relation entre le fait illicite et la sanction le nom de norme primaire et nous
appelons norme secondaire celle qui prescrit la conduite permettant d'éviter la sanction.
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O fenômeno jurídico
Parallèlement la science du droit décrit ces deux sortes de normes en formulant des
règles de droit primaires ou secondaires, mais une règle de droit secondaire est en fait
superflue, car elle suppose l'existence d'une règle de droit primaire sans laquelle elle
n'aurait aucune signification juridique et cette règle de droit primaire contient tous les
éléments nécessaires à la description de la norme juridique complète."
Em sua obra Teoría General del Derecho y del Estado está afirmado: "Si también se dice
que la obligación jurídica "debe ser" cumplida, entonces este "deber ser" representa, por
decirlo así, un epifenómeno del "deber ser" de la sanción. Lo dicho presupone que la
norma jurídica se encuentra dividida en dos normas separadas, en dos expresiones del
"deber": una tendiente a lograr que cierto individuo observe la conducta "debida", y otra
según la cual un segundo individuo debe ejecutar una sanción, en el caso de que la
primera norma sea violada. Ejemplo: no se debe robar; si alguien roba, deberá ser
castigado. Si se afirma que la primera norma, que prohíbe el robo, sólo es válida si la
segunda atribuye a éste una sanción, entonces la primera resulta seguramente superflua
en una exposición estricta del derecho. Si acaso existe, está contenida en la segunda,
que es la única norma jurídica genuina. Sin embargo, la representación del derecho
resulta grandemente facilitada si nos permitimos suponer también la existencia de la
primera norma. Hacer tal cosa es legítimo cuando se tiene conciencia de que la primera
norma, que prescribe la omisión del acto antijurídico, es dependiente de la norma
sancionadora. Podemos expresar esta dependencia si damos a la segunda el nombre de
norma primaria, y la primera, el de norma secundaria. La norma secundaria estipula la
conducta que el orden jurídico trata de provocar mediante el establecimiento de la
sanción", p. 62 - aspas do autor.
Em sua 2.ª ed. da Teoria Pura do Direito, Kelsen admite que haja, nas ordens jurídicas
modernas, em caráter excepcional, normas jurídicas que não tenham uma sanção
correspondente (p. 87). Entretanto, se a norma fundamental é formulada como uma
norma que estatui atos de coerção e, se ainda assim houver normas jurídicas sem a
sanção correspondente, estas devem ser consideradas, em seu conteúdo, como
juridicamente irrelevantes (p. 85). Se o Parlamento faz uma lei que contém uma norma
que prescreve uma determinada conduta e uma norma que estatui uma sanção em caso
de não ser observada aquela, a primeira norma não é autônoma, mas está
essencialmente ligada à segunda (p. 88). São ainda normas não autônomas as que
permitem positivamente uma determinada conduta (p. 89), as que conferem
competência para realizar uma determinada conduta (p. 90) e as que determinam com
maior exatidão o sentido de outras normas (p. 91). Admite, na p. 61, que há normas
premiais mas que, nem por isso (p. 92) uma ordem jurídica pode deixar de ser
considerada como uma ordem de coação.
Na Teoria Geral das Normas está assentado: "Se se admite que a distinção de uma
norma que prescreve uma conduta determinada e de uma norma que prescreve uma
sanção para o fato da violação, da primeira seja essencial para o Direito, então
precisa-se qualificar a primeira como norma primária e a segunda como secundária - e
não o contrário, como o foi por mim anteriormente formulado (na p. 68 Kelsen ainda
trabalha com a classificação feita nas obras supramencionadas). A norma primária pode,
pois, aparecer inteiramente independente da norma secundária. Mas é também possível
que uma norma expressamente formulada, a primeira, i.é, a norma que impõe uma
conduta determinada geralmente não apareça, e apenas apareça a norma secundária,
i.é., a norma que estabelece a sanção. Desta forma formulam-se reiteradamente normas
jurídicas nas modernas leis", p. 181.
Jellinek entendia o Direito como sendo o mínimo ético, v. Teoría General del Estado,
introdução, p. XXIX; para o Prof. Salgado, "o direito não é o mínimo ético; deve realizar
totalmente o ético na sua esfera" (A Idéia de Justiça em Kant, p. 289).
Sobre a questão de saber se a coação é essencial ao Direito, havia em Roma dois tipos
de leis: as leges perfectae e as leges imperfectae. As primeiras incluíam o preceito e a
sanção; as segundas continham o preceito, mas não a sanção. Foi Cristiano Thomasius
quem primeiro eliminou do Direito, de sua esfera, o Direito imperfeito. Com isso uniu,
em definitivo, a noção do Direito à noção de coação. Kant segue, neste ponto, a
Thomasius: o Direito tem o seu fundamento na consciência da obrigação de cada um
conformar-se à lei; entretanto, para determinar a vontade a esta obediência, não deve a
lei apelar somente para a consciência: o direito apóia-se unicamente sobre o princípio da
possibilidade de uma coerção externa, que possa conviver com a liberdade de cada um
segundo leis gerais. (V. a respeito: Norberto Bobbio, Direito e Estado no Pensamento de
Emanuel Kant, p. 77)
Conforme com o que deixamos dito no subtópico 5.3, supra, veremos agora a situação
da doutrina no tocante a estrutura da norma.
b) Que a sanção é algo inerente ao Direito, já o vimos no subtópico 4.3.1, supra, sendo
que este entendimento não é apenas de Kelsen, consoante exposto.
c) Mello diz que sanção e obrigatoriedade não são sinônimos. Até aí concordamos.
Divergimos em fazer da obrigatoriedade uma característica do Direito. A Moral também
possui obrigatoriedade. Surge aqui a diferença entre autonomia e heteronomia:
"Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a
sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer)" (Kant, Fundamentação
da Metafísica dos Costumes, p. 144). "Quando a vontade busca a lei, que deve
determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a
sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca
essa lei na natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é então sempre
heteronomia" (Ibid., id., p. 145). O que distingue, então, a Moral do Direito é a sanção:
lá ela é interna, sendo sempre o resultado da própria vontade; aqui ela é externa,
podendo ser imposta mesmo contra a vontade. (Sobre heteronomia, v. Prof. Salgado,
op. cit., p. 267.) Além disso, vimos no subtópico 5.1.1, supra, que são três as
modalidades deônticas do verbo dever-ser. Na modalidade - permitido - não há
obrigação nenhuma, nem do indivíduo e nem de um outro indivíduo em relação ao
primeiro. (V. Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 73.)
No capítulo quinto de sua obra "As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo",
Vilanova defende a posição, depois adotada por Kelsen: a norma primária prescreve a
conduta e a norma secundária estatui a sanção em caso de descumprimento.
Sob o ponto de vista lógico-formal, entende Reale que a norma jurídica se reduz a
conjunção de duas proposições hipotéticas: a primeira Reale denomina de hipótese ou
fato-tipo; a segunda, de dispositivo ou preceito. Inobstante, segundo o autor, isso não
acaba com o problema do modelo normativo.
Nesse sentido, sendo a regra o elemento nuclear do Direito, ela não pode deixar de ter
uma estrutura tridimensional: "Desse modo, verifica-se que o momento lógico expresso
pela proposição hipotética, ou a forma da regra jurídica, é inseparável de sua base fática
e de seus objetivos axiológicos: fato, valor e forma lógica compõe-se, em suma, de
maneira complementar, dando-nos, em sua plenitude, a estrutura
lógico-fático-axiológica da norma de direito" ( Lições Preliminares de Direito, p. 103 - v.
cap. IX, dedicado ao estudo da estrutura da norma jurídica).
Este autor denomina a norma primária (na antiga classificação de Kelsen) de perinorma
e a norma secundária de endonorma.
De acordo com Vila nova, uma detença mais aprofundada sobre a Teoria Egológica,
revela que Cossio não recusa a estrutura hipotética pois, mesmo na fórmula acima
descrita - dado A, deve ser P, ou dado não P deve ser S -, existe uma relação de
antecedente para conseqüente, típica da conexão hipótese-tese (V. As Estruturas
Lógicas..., p. 89). (Para uma análise da relação entre a Teoria Pura e a Teoria Egológica,
v. Carlos Cossio, La Teoría Egológica del Derecho y el Concepto Jurídico de Libertad, pp.
133 e ss.; para um estudo crítico do juízo hipotético/juízo disjuntivo, v. Crítica del Saber
de los Juristas, de Enrique R. Aftalion, pp. 22 e ss.).
No enunciado feito por Larenz, a sanção perde a sua função frisante tal qual a tem em
Kelsen, Vilanova, Cossio e outros. Segundo o autor, "El esquema fundamental de la
proposición jurídica dice: cuando el supuesto de hecho (S) se realiza en un hecho
concreto (H), entonces rige para este hecho la consecuencia jurídica (C)" (p. 174). Como
se percebe, o importante aqui é que haja uma previsão normativa com um suporte fático
que lhe corresponde, para então produzir as conseqüências (que podem ser uma sanção
ou não). (Posição semelhante é sustentada por Pontes de Miranda: v. Tratado de Direito
Privado, 1/3.)
No seu trabalho, El Derecho como Hecho, o autor argumenta que, embora as normas
não sejam ordens, são, não obstante, redigidas de forma imperativa. Como as palavras,
redigidas imperativamente, operam de forma independente, Karl as denomina de
"imperativos independentes". Menciona a seu favor o Decálogo que, embora redigido há
mais de mil anos, ainda rege a conduta de certas pessoas. Nesse sentido, entende que
as normas jurídicas tem a mesma natureza - que está aí relacionado com a estrutura -,
ou seja, são declarações imperativas sobre ações, direitos, obrigações, etc. (pp. 27 e
29). (Sobre a estrutura da norma jurídica e questões correlatas, v. ainda: Arnaldo
Vasconcelos, Teoria da Norma Jurídica, pp. 53 e ss.; Norberto Bobbio, Teoría de la
Norma Jurídica, pp. 39 e ss. Para um estudo da norma sob o aspecto da pragmática da
comunicação normativa, v. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da Norma Jurídica).
Para o que nos interessa e, dentro das adjacências do campo central de nossa pesquisa -
fenômeno jurídico -, são suficientes as posições trazidas à baila. Elas permitem uma
conclusão:
a) há autoras, tais como Kelsen, Vilanova e Cossio, que estudam a estrutura da norma
sob o aspecto estritamente lógico;
No tópico 1., supra, falamos que o fenômeno jurídica indica a passagem, ou melhor, a
mudança de status do fato social para o fato jurídico. E no tópico 5, supra, fizemos
menção ao corte epistemológico. Muito bem. Até agora vimos o fenômeno jurídico, sob a
óptica do corte epistemológico, apenas em um aspecto, qual seja, a sua causa. Quer
dizer: o mecanismo que aciona a passagem acima referida, é a norma. Ela, a norma, é,
por se assim dizer, o canal por onde flui a mudança de status. O resultado que daí
advém, será estudado no tópico efeito, infra. Antes, é de mister verificar qual o objeto
do fenômeno jurídico.
No subtópico 5.2.2 in fine, supra, havíamos plantado a diferença entre norma jurídica e
proposição jurídica. Aqui é o momento azado para verificarmos isso mais detidamente.
A prescrição jurídica é a descrição objetiva da norma. Assim como a lei natural descreve
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O fenômeno jurídico
que, se aquecermos uma barra de ferro ela se dilatará, a prescrição jurídica descreve o
nexo funcional entre a norma primária e a norma secundária (Usamos aqui a
classificação posterior de Kelsen).
b) Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem o que contêm
as normas jurídicas: sob certas condições, deve haver determinadas conseqüências. (V.
de Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 111.) (Na Théorie Pure du Droit, pp. 42-43, Kelsen
denomina as proposições jurídicas de regras de direito: não são criação das autoridades
competentes mas formulações dos juristas para compreender e descrever o Direito. Nas
pp. 46-47 da Teoria General etc., Kelsen também menciona as regras do direito).
b1) As normas não são juízos, quer dizer, enunciados sobre um objeto dado ao
conhecimento. Elas são comandos, permissões ou atribuições de competência (V.
Kelsen, Teoria Pura do Direito, pp. 111-115; Teoria Geral das Normas, pp. 120-21, 125
e 129).
c1) A norma traduz o sentido do ato que prescreve, permite ou faculta a conduta de
alguém. O ato de vontade, cujo sentido a norma constitui, é do mundo do ser. Já a
norma é do mundo do dever-ser. Por isso se diz que a norma é um ato de vontade: ela é
o sentido do ato de vontade (V. Kelsen, Teoria Pura do Direito, pp. 21-22 e 124, nota de
rodapé n. 1; Théorie Pure du Droit..., p. 44; Teoria General etc., pp. 31 e 34 e Teoria
Geral das Normas, pp. 2, 34 e 41 e ss.). (O que tratamos nos subtópicos 5.2.1 e 5.2.2,
supra, está relacionado com o visto aqui).
e1) Como as normas são imperativos, permissões ou autorizações, elas não contêm um
juízo do dever-ser. Por isso elas não são verdadeiras ou falsas (V. subtópico 5.1.1 in fine
, supra), pois verdade-falsidade são propriedades de uma afirmação. As normas são
válidas ou inválidas e isso não é propriedade da norma, mas a sua existência ideal e
específica (sobre existência ideal e específica, v. a p. 215 da Teoria Geral das Normas). E
uma norma jurídica vale não porque tenha determinado conteúdo, mas porque foi criada
de uma forma determinada, forma esta fixada na norma fundamental. (Sobre a questão
da validade, v. Kelsen: Teoria Geral das Normas, pp. 36, 61 e ss., 215 e ss.; 296 e 323
e ss.; Teoría General etc., pp. 113 e ss.; Teoria Pura do Direito, pp. 267 e ss.; Théorie
Pure du Droit, pp. 33, letra "a" e 113 e ss. e Normas Jurídicas e Análise Lógica, pp. 11,
19, 21, 33, 34, 45, 48, 61, 63 e 76.) A validade é, no pensamento de Kelsen, um ponto
para onde converge a norma fundamental, o sentido subjetivo/objetivo do ato e o
conflito de normas.
No final do subtópico 5.3.2.7 assentamos que é a norma o canal por onde flui a mudança
do status do fato social para o fato jurídico. Impende então, agora, verificar o que existe
de um lado deste canal para, no último tópico de nosso trabalho, analisar o outro lado.
Pois bem. Ainda sob a perspectiva do corte epistemológico - expressão também usada
por Marcos Bernardes de Mello - teremos, ainda que sucintamente, tratar das fontes do
Direito. Isso porque, como é a norma que juridiciza o fato social ela, a norma, alberga o
quê sofrerá a mudança de status (isso traz à lembrança a idéia de subsunção, que
ocorre quando há a incidência).
A expressão "fontes de direito" suscita, de imediato, duas questões que devem ser
confrontadas:
a) O substantivo "fonte" está no plural, sendo que a locução adjetiva - de direito - lhe dá
a carga semântica. Vem então a pergunta: seria possível que de uma mesma fonte
brotam conteúdos onticamente diferentes? A resposta negativa a esta interrogação nos
leva então a segunda questão.
b) Se há mais de uma fonte, é porque existe mais de um direito. Isso será objeto das
considerações seguintes.
A conceituação do direito Ideal, tal como o concebemos, traz, inerente, uma dificuldade.
De acordo com Johannes Hessen, a palavra valor - que compõe o nosso conceito, não é
passível de definição. Segundo ele, "o conceito de "valor" não pode rigorosamente
definir-se" ( Filosofia dos Valores, p. 37 - aspas do autor). Não obstante isso,
entendemos por direito Ideal como sendo o direito que se ocupa com valores (axiologia).
O objeto do direito Ideal são, então, os valores. A questão central aqui, é saber se os
valores podem ser objetiva dos ou, por outra, em que consiste a objetividade dos
valores? A resposta indica a possibilidade da existência de uma Ciência dos Valores. Se
fosse possível objetivá-los, independente de sua realização, teríamos um direito ideal
científico.
O atalho dessa discussão seria demasiado longo para os objetivos de nosso trabalho.
Apenas como indicação, mencionamos a obra de Eduardo García Máynes, El Problema de
la Objetividad de los Valores, bem como a parte II do livro de Hessen, supracitado, onde
é posta a questão da gnoseologia dos valores. (Limitamo-nos aqui, dentro da
perspectiva da dialética platônica, a plantar a pergunta com um sentido orientado.)
O objeto desse Direito é a norma jurídica (o objeto desta é a conduta humana). Norma
jurídica posta pela autoridade competente. Surge aqui o princípio dinâmico, definido na
letra "d1" do tópico 6, supra. Vem a baila também o alerta feito na observação "1", do
subtópico 6.1, supra.
Quanto a primeira remissão, é preciso chamar a atenção para o fato de não confundir o
princípio dinâmico com o fenômeno jurídico. Essa conexão pode levar a tentativa de
transferir para as ciências sociais o modelo (paradigma) autopoiético, tal como foi feito
por François D. S. T., num estudo intitulado "Entre ordre et désordre: le jeu du droit.
Discussion du paradigme autopoiétique appliqué au droit", que se encontra nos Archives
de philosophie du droit, t. 31.
Em conclusão: o princípio dinâmico está ancorado na validade objetiva que tem a sua
base na norma fundamental. Em conjunto, isso revela o mecanismo do conhecimento
objetivo do Direito e, nesse sentido, é pura forma (acaso não são as ciências a
linguagem formal da realidade?). Mas, e isso é importante, o Direito não se resume
apenas a isso: a norma traduz tanto o direito Ideal como o direito em Potência, que a
prescrição jurídica descreve cientificamente.
No subtópico 6.2 mostramos o objeto das três espécies de direitos e, assim, ficamos
sabendo da fonte direta dos respectivos direitos. Agora, trata-se de demonstrar como as
diferentes espécies de direitos se alimentam entre si. O ponto convergente é o Direito
Científico, pois é a norma o canal por onde flui a mudança (v. o final do subtópico
5.3.2.7, supra). Em termos esquemáticos:
a) A prova de que a fonte do direito ideal alimenta o Direito Científico nos é dada no
momento em que a norma jurídica expressa (fato descrito pelo cientista do Direito) a
possibilidade de realização de um determinado valor (que alimenta diretamente o direito
Ideal). A possibilidade de realização deve, aqui, ser compreendida na perspectiva da
idéia de eficácia em Kelsen, i.é: aplicação ou possibilidade efetiva de aplicação da
norma, pois, o valor nela expresso, somente se concretiza no momento da aplicação.
Graficamente:
Este quadro permite visualizar corretamente o fato social, objeto do fenômeno jurídico: a
sua dimensão (do objeto do fenômeno jurídico) abrange tanto os valores como o fato
social no sentido sociológico propriamente dito.
A idéia de horizonte suscita outra, apenas em sentido inverso. Trata-se do prejuízo (para
usar o estilo heideggeriano), que acarreta um prejuízo. Segundo Gadamer, "En sí mismo
"prejuicio" quiere dicir un juicio que se forma antes de la convalidación definitiva de
todos los momentos que son objetivamente determinantes" (op. cit., p. 337 - aspas do
autor). (V. tópico 5, supra.)
Se, como afirma Kelsen, "o teórico da sociedade como teórico da Moral ou do Direito,
não é uma autoridade social. (Por isso, em Kelsen, o trabalho do jurista, do teórico do
Direito, não cria o Direito. Fonte do Direito é a norma, posta pela autoridade
competente. Esta, a norma posta pela autoridade competente, é o objeto, é a fonte do
trabalho do jurista e não o contrário). A sua tarefa não é regulamentar a sociedade
humana, mas conhecer, compreender a sociedade humana" ( Teoria Pura do Direito, p.
133). Ora, como o jurista vai compreender a sociedade se ele não tem uma
pré-compreensão? (V. tópico 1, supra). Quer dizer: uma relação com o tema, exposto no
texto da norma que será descrita cientificamente. (O tema é o ponto inicial onde
chegamos após deixarmos falar a palavra por si - orientados regressivamente pelo
sentido da palavra. V. a respeito o trabalho de Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.)
Concluindo: o jurista, o cientista do Direito, não pode ter prejuízos, mas deve ter
pré-compreensão.
a sua fonte direta. A função do jurista é descrever o Direito, expresso na norma, tal
como ele, o Direito, é. Desta forma, cabe ao defensor do direito Ideal, e não ao cientista
do Direito, transformar o fato social para que este seja, no momento da descrição
científica - proposição jurídica - o Direito que ele, defensor do direito Ideal, quer que
seja.
Por fim, a forma como concebemos o fato social, objeto do fenômeno jurídico, abrange o
que Marcos Bernardes de Metia denomina de "dimensões do fenômeno jurídico": a
dimensão política (axiológica) corresponde ao valor; a dimensão normativa corresponde
à norma e a dimensão sociológica corresponde ao fato social (no sentido sociológico
propriamente dito). (V. Teoria do Fato Jurídico, pp. 29 e ss.)
Resta ainda perquirir o último ângulo do fenômeno jurídico, sempre sob a mira do corte
epistemológico.
Os efeitos, em verdade, para o que nos importa, reduzem-se a um: fato jurídico. Efeitos
seriam se adentrássemos no estudo do fato, ato, negócio jurídico. Como deixamos dito
no final do tópico 1, supra, isso pertence à Teoria Geral do Direito Civil.
Enunciada assim a questão, surge uma pergunta: qual é o momento, ou melhor, o que
aciona essa passagem? Defrontamo-nos então com a incidência.
7.1 Incidência
Ainda, a incidência é infalível. Não obstante, o resultado nem sempre existe, ou seja:
com a incidência a parte do fato social, objeto do fenômeno jurídico, passa para o
mundo do direito, i.é, torna-se fato jurídico. Este, e é isso o que queremos significar com
a palavra - resultado -, inobstante, pode não ser eficaz. Da eficácia trataremos num
subtópico autônomo. Antes, deter-nos-emos na validade da norma jurídica.
7.2 VALIDADE
ou em casos isolados. Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas
são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de facto observadas e
aplicadas" (Teoria Pura do Direito, p. 298 - em negrito no original. V. ainda na mesma
obra, pp. 123 e 289; Théorie Pure du Droit..., pp. 33 e 121; Teoria General etc., pp. 43,
122 e 126 e Teoria Geral das Normas, pp. 176 e ss.
7.3 Eficácia
O fato jurídico, mais especificamente aqui, o Direito, é eficaz tanto se as normas são
cumpridas como, quando não cumpridas, a sanção é aplicada. (V. Kelsen, Teoria General
etc., pp. 30-31 e 41 e Teoria Geral das Normas, pp. 177-78).
Na obra A Luta pelo Direito, Ihering assinala o liame vital entre o direito concreto e o
direito abstrato: "o direito concreto restitui ao direito abstrato a vida e a força que deste
mesmo recebe. Está na natureza do direito que ele se realiza praticamente", pp. 57-58.
Em seu famoso trabalho El Espiritu del Derecho Romano, 3/18, a preocupação com a
realização do direito volta à tona. À pergunta de se saber se é possível determinar de
maneira absoluta como se realiza o direito, ele respondeu: "Si, respondo sin vacilar; los
diferentes derechos se cumplen todos y por todas partes de la misma manera, su
contenido material importa poco. Bajo esa relación existe el ideal absoluto que todo
derecho trata de conseguir, y que á mi juicio produce una reunión de dos condiciones:
que el derecho deba realizarse de un modo necesario, seguro y uniforme, y además de
una manera fácil y rápida, circunstancia esta última en la que las varias legislaciones
positivas presentan diferencias notables" (em negrito no original).
As idéias de Ihering, Gabriel Tarde as condensou numa frase de estilo raro: "O poder
afinal é o privilégio de se fazer obedecer" ( apud, Jean Cruet, A Vida do Direito e a
Inutilidade das Leis, p. 118). É exatamente o privilégio de se fazer obedecer, para que o
poder não escute o agravo de Shilok (personagem de Shakespeare): "A libra de carne
que eu reclamo, eu a pagarei caro, ela é minha e eu a quero. Fora pois a vossa justiça
se vós ma recusais. O direito de Veneza está sem força. É a lei que eu intimo. Eu me
apóio aqui sobre meu título" (apud, Ihering, A Luta pelo Direito, p. 68). Ainda, é o
privilégio de se fazer obedecer, por que "se impedíssemos cada dia que se levasse uma
pedra para a Bastilha, nós nos pouparíamos o trabalho de demoli-la", nas palavras de
Mílton Campos.
8. À GUISA DE CONCLUSÃO
Num mundo cada vez mais setorializado e especializado, um estudo sobre o fenômeno
jurídico revela uma contradição: quanto mais se afina o horizonte em profundidade,
tanto mais se perde o horizonte em latitude e, em conseqüência, a mundividência do
Direito. Curiosamente, a ambição do saber (acúmulo de conhecimentos e não
aprendizado do pensamento, segundo Heidegger) paga a sua pretensão através de uma
extrema fragilidade.
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