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Urbinati, Nadia
CRISE E METAMORFOSES DA DEMOCRACIA
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 82, junio, 2013, pp. 5-16
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10727637001

Revista Brasileira de Ciências Sociais,


ISSN (Versão impressa): 0102-6909
anpocs@anpocs.org.br
Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais
Brasil

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Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto
CRISE E METAMORFOSES DA DEMOCRACIA

Nadia Urbinati
Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro Soares

I sonhos triunfantes de um inesgotável crescimento


econômico para todos e a questionar a habilidade de
O tema desta palestra inspirou-se nas transfor- parlamentos eleitos e dos procedimentos democrá-
mações preocupantes que a democracia constitucio- ticos para tomar decisões rápidas e competentes. O
nal tem enfrentado na Europa e nos Estados Unidos. declínio da igualdade social e a escalada da ambição
Embora baseada em princípios gerais, a democracia política dos ricos, ambos com credenciais tecnocráti-
repousa em contextos específicos. Ela toma a forma cas ou apoio populista e plebiscitário, são fenômenos
do governo vigente que a incorpora, e talvez por isso idênticos que desafiam a ordem democrática atual
minhas reflexões não se ajustem ao Brasil. Assim, re- e que meu livro pretende estudar. Este novo livro é
cebam esta palestra como um registro de transforma- uma continuação de meu trabalho anterior sobre de-
ções que podem ocorrer numa sociedade democráti- mocracia representativa e contém uma análise crítica
ca. No texto a seguir proponho uma breve visão do de algumas das mais visíveis e assustadoras metamor-
meu novo livro intitulado, Democracia desfigurada: foses do governo parlamentarista, que defino como
opinião, verdade, e o povo (Harvard University Press). uma diarquia da decisão e da opinião, ou seja, de
Escrevi esse livro ao longo de meses de mudanças instituições e procedimentos que criam, mantêm a
formidáveis nas sociedades europeias e na america- esfera pluralista e aberta do ambiente de formação da
na, e em suas respectivas democracias, enquanto a opinião. Em relação a essa ordem diárquica, detecto
segunda grande depressão começava a incinerar os algumas deformidades.
* Conferência proferida em 24/10/2012, durante o 36o Depois de breves ilustrações do significado de
Encontro Anual da Anpocs, em Águas de Lindóia-SP. diarquia e dos três tipos de desfigurações que ana-
RBCS Vol. 28 n° 82 junho/2013
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liso no livro, centrarei minha apresentação numa melhor corporifica o sistema diárquico, um sistema
desfiguração em particular – o plebiscito de audiên- no qual “a decisão” (na linguagem da teoria da so-
cia* e a transformação da democracia numa política berania os procedimentos e instituições que regu-
da passividade. lam a elaboração das leis) e “opinião” (o domínio
A aparência é externamente identificável, a extrainstitucional da formação do julgamento polí-
configuração dos traços distintos de uma pessoa tico) se influenciam mutuamente, cooperam entre
que permitem reconhecimento. Cada um de nós, si ou entram em conflito sem, contudo, fundir-se.
homem ou mulher, tem seu fenótipo graças ao qual Enquanto na soberania pré-democrática somente a
nos reconhecem. Nossa aparência nos é preciosa decisão constava na definição do poder soberano,
porque os traços que a compõem se destinam a tor- numa democracia o processo da tomada de decisão
nar única nossa presença, diferente da de outros. tem uma inevitável relação com a opinião do povo.
Quando não ocorrem acidentes, todos os compo- Assim, a tarefa de procedimentos democráticos se
nentes da aparência de um indivíduo mudam de desdobra em duas: permitir aos cidadãos jogar o
uma forma que lhe permite permanecer reconhecí- jogo político e participar, direta e indiretamente, da
vel. Uso a analogia com a aparência corpórea para tomada de decisões, e exigir e confiar que o jogo
explorar algumas deformidades da democracia. A é honesto, pois se desenrola de acordo com regras
analogia do “corpo” no pensamento político é tão e em condições iguais para todos, a todos tratando
antiga quanto a reflexão sobre política. Teorias de de forma igualitária. Resumindo então a máxima de
legitimidade política desenvolveram teorias sobre a Alexis Tocqueville: embora a democracia não nos
substância do corpo político, o que o faz político. dê a certeza de excelentes ou boas decisões (na ver-
Mas a aparência não é a substância. É o que um dade, às vezes suas decisões são ruins ou pouco inte-
corpo revela externamente. Essa é a perspectiva que ligentes), ela nos dá a certeza de podermos reformu-
adoto. A sociedade democrática tem tais e tais ca- lar ou mudar todas as decisões sem questionar ou
racterísticas, só a ela pertencentes. Uma forma tirâ- revogar a ordem política; isto é, sem perder nossa li-
nica de governo se caracteriza por alguns traços ou berdade. Decisões democráticas requerem emendas
tem uma aparência que permite ao observador logo por meios democráticos; exigem mudanças median-
constatar sua identidade: eleições sem datas regula- te estratégias diretas e indiretas (ou procedimentos e
res, nenhuma divisão de poder, nenhuma declara- jogo de opiniões) com o fito de reduzir ao máximo
ção de direitos. Da mesma forma, a aparência que possível o risco de desfiguração ou de servir a outros
uma sociedade democrática mostra ao mundo é o objetivos que não a garantia de uma igual liberda-
que a faz reconhecível como democrática. de política. A democracia, sobretudo quando im-
As três deformidades por mim estudadas – o plementada por eleições e representação, não pode
mito epistêmico da verdade ou a avaliação de pro- ignorar o que pensam e dizem os cidadãos quando
cedimentos democráticos sob a perspectiva de seus atuam na sociedade e não como eleitores, quan-
bons resultados; o populista ou o mito da unifica- do não se manifestam por intermédio da decisão (ou
ção do povo sob a opinião da maioria conduzida seus votos), mas por meio de sua opinião. Os cida-
por um líder; e o mito plebiscitário ou participação dãos formam suas opiniões e criticam quem detém
como a coroação de um líder. Essas são mutações o poder; sua expressão de ideias pública e livremente
possíveis do caráter procedimental e deliberativo é a condição para a elaboração e mudança de todas
da democracia representativa e, em particular, da as decisões. Essa é uma forma de participação ou
forma parlamentarista de democracia representati- cidadania ativa na democracia representativa, embo-
va, um sistema no qual a soberania é composta de ra não se converta diretamente em leis e não possa
procedimentos e opinião. exercer autoridade. Os cidadãos assim usam todos
Esclareço agora os principais traços básicos do os meios de informação e comunicação disponíveis,
que chamo de uma ordem diárquica. Considero a de maneira a manifestar sua presença – algo que não
democracia como um governo por meio da opinião é menos valioso que os procedimentos e as institui-
e a democracia representativa como a forma que ções, apesar de carecer de poder de comando.
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O desafio à espera da democracia representa- se trata de características extemporâneas, mas de


tiva é que embora “decisão” e “opinião” não pos- sinais de um problema fundamental dentro das
sam estar “verdadeiramente” separadas, elas pre- democracias de massa relacionado às transforma-
cisam operar de modo separado, embora sejam e ções da esfera pública da formação da opinião pelo
permaneçam diferentes. Obviamente, falamos aqui impacto de fenômenos simultâneos, tais como o
de separação normativa: não queremos que nossas declínio dos partidos políticos no gerenciamento
opiniões políticas sejam enfraquecidas ou silencia- da ligação entre representação e participação, e a
das em nome da opinião competente de expertos escalada da desigualdade econômica, com um im-
ou da opinião imparcial dos juízes; não queremos pacto direto na distribuição da oportunidade de
que a opinião da maioria se torne uma só e a mes- “voz” ou influência na política. Lembremos que,
ma coisa que a “vontade” do soberano; e tampouco em meados do século XIX, John Stuart Mill pre-
queremos que nossas opiniões se convertam numa conizava que os meios de comunicação poderiam
reação passiva ao que os líderes colocam no palco. recriar esse tipo de proximidade nos diálogos na-
Que a democracia representativa é o governo com cionais em grandes sociedades, do qual gozavam
base na opinião implica no fato de o fórum público as repúblicas antigas, por reunirem seus cidadãos
manter o poder do estado aberto à criticas, sendo numa assembleia interagindo diretamente na ágo-
portanto público, seja porque a lei assim o exige, ra ou no fórum. Além disso, eles iriam erigir um
sob os olhos do povo, seja porque ele não perten- fórum imaterial de opiniões introduzindo assuntos
ce a ninguém, pois a designação eleitoral significa de interesse popular na arena pública mantendo os
precisamente que o poder político perdeu qualquer políticos e as instituições sob o julgamento de um
possessão especifica. Como podem ver, doxa dese­ público de escritores e leitores (Mill, 1977, p. 432).
mpenha três papéis: cognitivo, político, e estético. Um século depois, Jürgen Habermas afirmou que o
O fórum de opinião se destina a difundir informa- fórum público é essencial para a democracia, sob a
ção, checar e monitorar instituições, expressar dis- condição de manter-se sempre “público”, pluralista,
sensão pública e crítica, e observar o que os políti- e com autonomia em relação aos interesses privados
cos fazem. Em relação a esses três papéis, detectei de qualquer tipo. Com palavras premonitórias, já
as três formas de desfiguração acima mencionadas em 1962, Habermas retratou o perfil aclamatório
– que consistem em radicalizar ou reforçar um ca- que caracteriza a esfera pública numa democracia
ráter exclusivamente de opinião e dessa maneira de massas. A questão, nas democracias constitucio-
romper a ordem diárquica da democracia. Sugiro nais atuais, não parece ser mais a de simplesmente
então uma interpretação das versões epistêmica, proteger os direitos básicos de votar e de competir
populista e plebiscitária: elas são possivelmente ra- em eleições. A questão parece pertencer mais ao do-
dicalizações que nascem de dentro da democracia mínio da formação da opinião, pois a questão não
representativa bem como de suas margens internas é a de “como proteger a liberdade de expressão do
e extremas. Embora essas mudanças não produzam poder do Estado”, mas a de “como o fórum público
nenhuma modificação de regime, podem modificar de ideias pode ter êxito em permanecer um bem
a configuração externa da democracia de uma for- público” (Habermas, 1991, pp. 211-222) e atuar
ma visível e propícia à abertura de uma porta para a no seu papel de monitorar, conhecer e discordar, se
mudança de regime. o poder televisivo afeta a política de modo tão ra-
Completo agora o argumento da diarquia. Há dical e se (como argumentam John Dunn e G. Sar-
pouco, teóricos políticos chamaram nossa atenção tori) a indústria da informação “em muitas partes
para o surgimento de dois preocupantes fenômenos do mundo pertence a um pequeno grupo de indivi-
simultâneos: de um lado, a privatização e concen- dualidades privadas” (Dunn, 2005, p. 175; Sartori,
tração de poder na esfera da formação da opinião 1997, p. 133).1 No mundo de hoje, o que está em
política; de outro, o crescimento de formas dema- jogo não é a liberdade de expressão como direito
gógicas e polarizadas de consenso que dividem a individual, mas como direito dos cidadãos. Numa
arena política em grupos de facções inimigas. Não arena política na qual uma “disposição de ânimo de
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inclinação aclamativa” tende a predominar e as cor- Assim, não é devido a alguns resultados desejáveis
porações privadas ocupam o fórum público, a dis- que seria importante a democracia repousar sobre
persão de proprietários de mídias de massa, como um debate público sem inibições, robusto e aberto,
alguns acadêmicos sugeriram, seria capaz de preve- mas sim por apreciar e proteger a liberdade. Um
nir o “efeito Berlusconi” ou a desfiguração plebisci- fórum livre e público é um sinal de liberdade polí-
tária que me inspirou a escrever este livro (Baker, tica e é em si e por si um bem; primeiramente, por-
2007, p. 18). Outros acadêmicos expressaram ain- que a chance de contestar e controlar um regime
da a preocupação de que esta dispersão da infor- atinge o ponto em que as opiniões de seus cidadãos
mação não é em si condição suficiente para limitar não estão confinadas ao domínio de suas mentes
a homogeneidade. Como escreve Cass Sustein, a ou não são consideradas como opinião privada; em
Internet produz uma formidável dispersão da in- segundo lugar, por ser consonante com o caráter da
formação mas tende também a criar a agregação de democracia como sistema político que engendra a
milhões em torno de pontos de vista endossados dispersão do poder e baseia-se nela. Dessa forma,
pela imitação e identificação a blogueiros, o que re- enquanto o poder eleitoral é sem dúvida a garantia
produz e radicaliza as velhas lealdades prejudiciais e básica da democracia, a “garantia substancial é dada
sectárias (Sunstein, 2006, pp. 5-19). A dispersão da pelas condições sob as quais os cidadãos adquirem
informação da Internet não é menos inocente que informação e são expostos à pressão de formadores
a concentração de mídias em dispor os cidadãos a de opinião... Se assim for, as eleições são um meio
um sectarismo militante e à formação de nichos au- para um fim, um “governo da opinião, um governo
torreferentes e homogêneos de militantes de cabeça que reage à opinião pública e que é responsável por
feita. O declínio (nas sociedades ocidentais) da par- ela” (Sartori, 1987, pp. 86-87). Esta é a ideia cen-
ticipação eleitoral e do papel dos partidos políticos tral da democracia como diarquia.
e a fragmentação do público em nichos de opiniões A igual oportunidade que os cidadãos têm de
privadas são fenômenos interligados que merecem fazer parte da formação e expressão de opiniões po-
ser tratados como indicações de metamorfoses da líticas no exercício de sua influência política sobre
democracia representativa. Neste cenário atual, que as instituições representativas e a qualidade do fó-
concerne a todas as democracias consolidadas, situo rum público de ideias são componentes interliga-
a analise teórica das três formas de desfiguração da dos e essenciais da sua liberdade política. Eles são
política democrática: a epistêmica, a populista e a fatores primordiais, assim como o direito ao voto,
plebiscitária; assim como a reação contra ou o uso e, como o direito de votar, não precisam de evi-
instrumental do fato de que a democracia é uma dência empírica: um fórum de opiniões aberto é es-
forma de governo de, e baseada em, recursos de sencial ainda que não aprendamos a votar votando;
opinião. Aqui é necessária uma digressão antes de ainda que um debate público aberto e robusto não
voltarmos ao plebiscito de audiência. garanta que tomemos decisões corretas e racionais;
Giovani Sartori escreveu anos atrás que votar e ainda que a informação não se traduza em co-
é o que conta numa democracia, e que os cidadãos nhecimento. Neste sentido eu sustento com Nor-
não aprendem a votar votando (Sartori, 1987, pp. berto Bobbio que normas e procedimentos (regras
117-118). A arena aberta de discussão, indepen- do jogo) são bens primários e que temos de consi-
dentemente de sua riqueza e articulação, não muda derar numa concepção normativa de democracia.
o caráter arbitrário do voto e não torna os cidadãos Vou dar um exemplo para mostrar por que a força
mais competentes. Então, por que insistimos tanto indireta das opiniões e o seu pluralismo com suas
na necessidade de uma arena de opinião livre, pú- expressões conflitantes caracterizam a democracia
blica e pluralista? Seria por visarmos algum êxito moderna mais do que o sufrágio.
em particular, como, por exemplo, decisões compe- Se a democracia representativa revela o tra-
tentes e verdadeiras? A teoria da democracia como balho milagroso do voto isto é, a substituição da
diarquia é apropriada para abarcar mais uma visão violência pelo ato de contar votos, ou de contar ca-
procedimental do que substancial da democracia. beças em vez de quebrá-las) é porque o peso dos
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votos excede o dos números (este foi o argumento Ainda por essa natureza diárquica, os gover-
de Antonio Gramsci para responder à crítica de Pa- nos devem engajar-se no esforço de resguardar a
reto à democracia como pura ideologia). Quando a oportunidade que os cidadãos têm de participar da
política está estruturada em termos eleitorais e nas formação da soberania informal. Diante da ligação
propostas políticas que os candidatos incorporam, inevitável entre a opinião pública e a decisão polí-
as opiniões criam uma narrativa e uma temporali- tica, a preocupação com a possibilidade despropor-
dade. Criam uma espécie de sabedoria coletiva ou cional que os ricos ou a maior força social têm para
entendimento comum que ligam os votantes indi- influenciar os eleitores e o governo é sacrossanta.
viduais através do tempo e fazem um balanço da Pesquisas empíricas provam que esta preocupação
representação da sociedade como um todo, de suas é bem caracterizada quando demonstram como a
aspirações e de seus problemas (Gramsci, 1973, p. desigualdade econômica e a desigualdade política
1625). Isso explica o fato de que as opiniões nunca “se reforçam mutuamente, resultando no fato de
têm o mesmo peso, nem mesmo no caso hipotéti- que a riqueza tende mais a reforçar do que a dis-
co de duas opiniões diferentes que obtivessem um tribuir o poder com o passar do tempo” (Dawood,
mesmo número de votos. Se o valor das opiniões 2007, p. 147). Os teóricos da democracia tomam
fosse o mesmo, a dialética partidária e o próprio ato esta evidência como uma justificativa para argu-
de votar fariam pouco ou nenhum sentido. Votar mentar que na democracia representativa os cida-
é uma tentativa de dar peso a ideias, mas não para dãos padecem de um novo tipo de corrupção, uma
igualá-las em valor. Além disso, opiniões buscam “dupla corrupção” que consiste em excluir aqueles
visibilidade para além do dia de eleição, e ainda que de igual cidadania de uma presença significativa
elas não possam clamar por nenhuma legitimidade nos fóruns de opinião. De tal modo que os excluí-
mantida na tomada de decisões, elas têm o poder dos não podem sequer provar sua exclusão por te-
de influenciá-la e fazê-la seguir seus movimentos. rem eles direito a introduzir as “pedras de papel” na
Elas se elevam a um fórum aberto e público de jul- urna eleitoral, o que seria uma evidência fatual da
gamento político, que gera um saldo positivo na igualdade de cidadania. John Rawls descreveu este
atividade política. A especificidade e unicidade da problema com expressões muito felizes: “Devemos
democracia representativa têm por base os lança- tomar como admitido que o regime democrático
mentos das “pedras de papel”, por intermédio das pressupõe a liberdade de expressão e a assembleia,
cédulas, mas não se encerram ali. Residem muito a liberdade de pensamento e a consciência” (Rawls,
mais no movimento circular das opiniões existentes 1971, p. 225), e essas condições não são apenas re-
entre as instituições do Estado e a sociedade. Isso queridas pelo princípio da liberdade, mais do que
dá sentido à democracia como diarquia. isso, são essenciais para tornar qualquer assunto po-
Isso dá sentido também aos riscos contidos nes- lítico aberto ao escrutínio.
ta estrutura diárquica. A interação do povo com seus Para concluir a primeira parte de minha apre-
candidatos e representantes, antes e depois do dia da sentação, quando a opinião é introduzida em nossa
eleição, pode nos induzir a pensar que a maioria dos compreensão da soberania democrática, a teoria da
cidadãos curiosos, ou os debates públicos da televi- representação deve focalizar o problema das cir-
são assim como os lobbies de pesquisas de opinião cunstâncias da formação de opinião, uma questão
são legítimos ao reivindicar um poder soberano. Os que diz respeito aos direitos políticos dos cidadãos,
fenômenos populistas e plebiscitários são incubados dos quais, como se pressupõe, todos devem gozar
dentro da própria democracia diárquica como um igualmente. Os direitos iguais dos cidadãos para
anseio de se triunfar sobre a distância entre decisão e uma divisão igualitária na determinação da von-
opinião, por meio de uma idealização da unanimida- tade política devem caminhar junto não somente
de que tem caracterizado as comunidades democrá- com as oportunidades significativas de se informar,
ticas desde a antiguidade. Nesse sentido, argumento mas também para formar, expressar, dar voz às suas
que essas desfigurações são possibilidades internas das ideias e dar a elas um estatuto público e de influên-
facetas da democracia e não acidentes externos a ela. cia. Embora a influência seja difícil de ser nivelada
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e estipulada por cálculos rigorosos, isso pode e deve democracia quanto fomentar mudanças em suas
tender a ser feito quando está em jogo a oportu- características observáveis. Fecho aqui o parêntese.
nidade de exercitá-la. Embora, como já dissemos, Em seu livro acima mencionado, Jeffrey Gre-
dificilmente possamos provar por meio de algum en afirma que o “plebiscitarismo promete restaurar
questionamento razoável que há uma relação causal a noção de povo como um conceito significativo
entre o conteúdo de mídia, entre a opinião publica da identidade coletiva na vida política contempo-
e a qualidade dos resultados ou decisões políticas rânea”, e o faz ao apresentar o povo em sua capa-
(não há dados que provem que Berlusconi ganhou cidade coletiva, “um espectador massivo das elites
três eleições graças ao seu império midiático-tele- políticas” (Green, 2010, pp. 27-28). No entanto, a
visivo), a oportunidade de participar da formação questão é que quando os líderes se dirigem direta-
das opiniões políticas deve ser igualmente usufruí­ mente ao povo, acabam por radicalizar as questões,
da por todos. fazendo com que a negociação entre as partes se
torne mais difícil; isso torna o terreno da política
naturalmente fértil à liderança ativista. O que não
II implica, no entanto, que haja um ativismo em geral
do povo. Os meios de comunicação de massa, bem
Tendo esclarecido o significado e a relevância como o sistema eletrônico de comunicação direta
de assumir a democracia representativa como diar- constituem um suporte sem precedentes para a de-
quia da decisão e da opinião, passemos à segunda mocracia de audiência. “O cidadão que conversa
parte deste trabalho, na qual tentarei ilustrar uma com outros cidadãos na Internet não existe” como
das três desfigurações da democracia como governo cidadão, mas como pessoa privada. Como Walter
baseado nos recursos da opinião. Lippmann antecipara há algumas décadas, a perfei-
Devo abrir um parêntese e dizer que o pen- ção da democracia do público corresponde à cria-
samento acadêmico da teoria política nos Estados ção de um mundo que não tem nenhum ponto de
Unidos me inspirou na reflexão acerca do plebis- referência externo à consciência e à vida da pessoa
citarismo do público desde que se testemunhou o privada, e para o qual a perspectiva de evidência
renascimento do interesse e simpatia em relação à não é mais possível (Lippmann, 1955, pp. 22-24).
democracia plebiscitária. Dois trabalhos publicados Isso quer dizer que o mundo criado pelos meios de
em 2010 testemunham esse renascimento: The exe- comunicação de massa é o próprio mundo, uma
cutive unbound, de Eric A. Posner e Adrian Vermeu- realidade única e total. De acordo com Niklas Luh-
le, e The eye of the people, de Jeffrey Edward Green. mann, não se trata de um mundo de comunicação
Este fenômeno não é exclusivamente americano, ainda por fazer, porque, com estes instrumentos, já
mas podemos notar uma guinada explícita que é está descartada a interação entre emissores e recep-
teoricamente apreciada e justificada. O intuito de tores de imagens (Luhmann, 2000, p. 2). E é pre-
meu exame crítico é trazer à tona este novo entu- cisamente esta interrupção do contato direto (com
siasmo pela democracia plebiscitária, e apresentar a audiência) que garante um nível de liberdade ele-
algo como uma ilustração do intrigante papel do vado dos meios de comunicação, acrescentando-se
público como uma força que pode transformar a isso que os receptores são de fato os destinatários
radicalmente sua feição, já que fazer democracia é passivos, na mesma proporção em que os meios são
algo bem diferente de todos os outros regimes. Para verdadeiramente livres. É provável também que
antecipar em poucas palavras o meu argumento, a isto altere o significado de publicidade e de esfera
democracia plebiscitária é um destino possível que pública, ao minar a ideia que Jeremy Bentham faz
está incubado na própria democracia representati- do público como um tribunal. A diarquia da deci-
va. Podemos detectar isto quando consideramos a são e da opinião capacita o público, pois incorpo-
esfera da opinião pública em suas multifacetadas ra uma ideia reguladora (a do cidadão como uma
funções: cognitiva, política e estética, e como um identidade que pertence igualmente a todos e que
complexo fenômeno que pode tanto fortalecer a não é idêntico à realidade social da pessoa privada),
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operando também como um ponto de referência de cio oneroso: este é o único recurso de controle que
avaliação externa para quem opina ou julga. Isso faz a audiência tem. O custo pago pelo líder em troca
do julgamento em si um ato “público”, porque nele da manutenção das ferramentas do poder de Estado
há um parâmetro, em que todo cidadão está ciente é a renúncia de parte de sua liberdade individual.­O
sobre como manuseá-lo, e graças ao qual ações e líder está nas mãos do povo porque ele está, per-
decisões do Estado são julgadas como corretas ou manentemente, sob os olhos das pessoas. Este é o
equivocadas. Mas o desaparecimento do político “fardo extra sobre as figuras públicas” que uma de-
como o ator geral (ou a artificialidade da identi- mocracia plebiscitária ocular carrega.
dade do cidadão) significa que a própria opinião À primeira vista, a ideia parece interessante,
sofrerá uma mudança, tornando-se mais atrelada pois é inegável que aqueles que competem pelo
ao ponto de vista ou à preferência idiossincrática poder devem estar cientes de que não desfrutam,
da pessoa individual, e também à reação direta aos nem podem reivindicar, como cidadãos comuns, da
eventos que a pessoa observa. mesma extensão de uma liberdade negativa. Maior
Mas vamos discutir a ideia principal dos teó- poder implica maior responsabilidade e, portanto,
ricos do plebiscito de audiência: eles argumentam menor a liberdade de dissimular. O poder político
que a função ocular das pessoas dá ao povo um anseia pelo Anel de Giges, o poder de tornar-se in-
novo poder sobre o líder, algo que o direito de voz e visível, com o objetivo de se tornar capaz de fazer
de opinião são incapazes por si sós. Imagens – esta é o que de outra forma não poderia. O segredo é um
a ideia – são fatais para a popularidade, muito mais bem primário da vida privada do indivíduo, mas
do que as palavras, porque os atores dificilmente pode ser um obstáculo intransponível para oficiais
podem esconder-se, enquanto suas palavras podem públicos. É claro que um ministro, ou primeiro-
ser elaboradas de forma manipulada. Desse modo, -ministro, está protegido pelos seus direitos básicos
embora os líderes de todos os tempos e lugares te- como qualquer outra pessoa. No entanto, para que
nham sido tentados a manipular o consentimento a sua vida privada possa ser transparente e legítima,
das pessoas, é o uso das palavras que dá a sua in- talvez uma maior vigilância seja necessária. Nesse
tenção mais chances de sucesso. As imagens estão caso, a confiança não se dá ex ante, como um che-
muito mais à disposição dos espectadores do que que em branco, mas implica e requer comprovação
as palavras. Os líderes estão à mercê da influência por evidências. Por uma questão de fato, concorrer
da moda como todo mundo, e é isto que torna o a um cargo político é uma escolha livre do candida-
poder das imagens mais igualitário e sua capacidade to, cujo triunfo vem acompanhado de um misto de
de constranger mais efetiva. Assim, quando o povo honra e de fardo.
se torna audiência, adquire um poder muito maior Esta ideia é convincente? Ora, da ideia de que
do que quando é um ator político no sentido tradi- tornar o líder o objeto dos espectadores se traduz
cional. A política plebiscitária pensa que é possível em mais poder para o povo, Posner, Vermeule e
transformar a condição passiva dos espectadores Green concluem que o público pode substituir os
numa força racional, uma força que, na realidade, procedimentos e as instituições de controle, e isso
nem as palavras nem a deliberação racional têm, até mesmo na divisão de poderes limitando o poder
porque obriga “aqueles que possuem autoridade e estatal. Em outras palavras, a democracia de audi-
poder muito desproporcionais numa democracia ência pode romper a relação diárquica entre insti-
em certo sentido a “recompensar o público por este tuições e opinião, sem alterar o caráter do governo
privilégio” (Green, 2010, p. 26). Fazer do público o democrático.
aspecto central significa reconhecer e aceitar a exis- Questiono essa visão e o caso italiano vem em
tência do desequilíbrio de poder entre governados meu apoio. Para começar, o “motivo pelo qual os
e governantes, sujeitos às normas do mercado – em políticos usam uma máscara socialmente aceitável
resumo, a democracia ocular permuta a autonomia não desapareceu com o advento da democracia mo-
dos cidadãos pela publicidade dos líderes. Ser um derna” (Green, 2010, p. 29), e o argumento oti-
líder político no governo de audiência é um negó- mista para o controle do poder por parte de um
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público ocular é pouco convincente e injustificável. tratégias que poderiam gerar consentimento: “deve
Baseia-se em considerações abstratas sobre o papel haver esperança de se chegar a um acordo mútuo;
do público ocular, o que as experiências reais pa- é preciso, portanto, ser capaz de contar com fun-
recem refutar. O primeiro-ministro Silvio Berlus- damentos para o juízo que não têm apenas uma
coni estava sob um permanente olhar da mídia, e validade meramente privada e, portanto, que não é
quem se intrometeu em sua vida não o fez necessa- meramente subjetivo, o que é, no entanto, comple-
riamente para revelar o seu comportamento desre- tamente contrário ao princípio fundamental de que
grado, mas apenas para satisfazer a sede de notícia Todo mundo tem seu próprio gosto” (Kant, 2000, pp.
escandalosa do público, o que, por sua vez, criou 214-217).2 Então, o que se presume de imagens e
um mercado de escândalos, dando um formato de gosto? “O desfecho é este: que as prioridades da te-
tabloide à opinião pública. Colocar a vida priva- levisão são o furo, uma boa imagem e os índices (o
da do primeiro-ministro sob os olhos das pessoas maior público possível)” (Sartori, 1997a, p. 149).
também não serve para controlar ou limitar o seu Assim, a hegemonia do ocular poderia conduzir
poder; além do mais, isso nunca o impediu de viver o público exatamente para a direção oposta daquela
a sua vida como preferia. O fato de que Berlusco- que fora pretendida pelos defensores da democracia
ni possuía ou controlava seis estações de televisão plebiscitária. Na verdade, se o que dissemos sobre
nacionais foi, naturalmente, um fator agravante; o gosto está correto, então o que nos parece é que
entretanto, este não foi o único motivo que fez do o público não controla o líder, mas sim que ele su-
público italiano uma democracia passiva que difi- gere ao líder o que ele deve fazer ou evitar, indo ao
cilmente poderia controlá-lo. encontro do favor e do gosto das pessoas (o que
De fato, mais ainda do que o domínio dos não é necessariamente idêntico aos interesses dos
meios de informação, o império ocular ou a infla- cidadãos). Além disso, o império do visual arruí-
ção de imagens foi o fator que construiu a visão na, inevitavelmente, o curso e o estilo do discurso
de um poder de inspeção especialmente inepto. O político. A experiência italiana confirma este diag-
paradoxo de ressaltar o fator estético da opinião nóstico, porque, nos anos Berlusconi, ele governou
pública, em detrimento da compreensão e parti­ como um líder plebiscitário numa democracia de
cipação política, faz com que não se preste atenção audiência, em que os assuntos da conversação polí-
para o fato de que as imagens são a fonte de um tica foram ditados pela lógica do marketing comer-
tipo de julgamento que avalia mais os gostos parti- cial e da publicidade. Os assuntos políticos foram
culares (reações emocionais) do que o fato político expurgados do discurso público, simplesmente
ou moral. porque não eram atraentes nem os proprietários e
O que é o gosto? O gosto, assim explicou Im- responsáveis da televisão, nem para os espectadores.
manuel Kant, é o que exalta, e não o que contém O paradoxo do vídeo-espectador total, ou espec-
as potencialidades retóricas da visão, além de torná- tadores que colocam um “fardo extra” sobre figuras
-la isolada, em vez de promover a comunicação. De públicas, é que as decisões políticas permanecem in-
fato, enquanto é possível “discutir sobre o gosto”, é visíveis e veladas porque são, na maioria das vezes,
impossível “disputá-lo”, porque nenhuma disputa é pouco atraentes para o gosto estético e os desejos
avaliável para além da determinação conceitual no espetaculosos da multidão televisiva. Ter pouca ciên-
domínio do próprio gosto. Gosto não se discute. O cia do que os políticos eleitos estavam fazendo foi o
máximo que podemos fazer com o gosto é acreditar preço pago pelos cidadãos italianos, tornando-se uma
que chegamos a um “acordo mútuo” e trabalhar- audiência ocular poderosa, alimentada com um tipo
mos para torná-lo possível. O gosto é individual e de informação que tinha por intuito impressionar a
dificilmente pode ser um meio para acordos entre mente das pessoas, o que foi feito através de imagens
os espectadores. Pelo contrário, ele é um raciocínio que fervilhavam de temas relacionados ao gosto ou às
hipotético (a imaginação, nas palavras de Kant), emoções instintivas. Assim, tornando visível a vida do
que tem o poder e a capacidade de despertar a von- líder, como um objeto de espetáculo, foi possível, sob
tade, e o faz conduzindo a nossa razão a elaborar es- pretexto de publicidade, gerar uma nova opacidade.
CRISE E METAMORFOSES DA DEMOCRACIA  13

O caso italiano demonstra que a transforma- é apenas o conteúdo e seu agente que fazem com
ção de uma base política para a publicidade dos que um fato seja um fato público, mas também
programas de partidos deixou o povo não só com a forma como se realiza. Os cidadãos contribuem
menor controle, mas, na verdade, incapaz de olhar. para construir o que é público quando induzem o
Além disso, o domínio da política tornou-se mais Estado a fazer o que deve, segundo Kant: subme-
vulnerável à corrupção. Alessandro Pizzorno há ter as suas ações ao julgamento dos cidadãos, a fim
alguns anos atrás interpretou esse paradoxo, reve- de serem avaliadas de acordo com os princípios do
lado por tal transformação, como um sinal do de- uso público de sua razão, isto é, pela igualdade de
clínio da linguagem e julgamento políticos, assim consideração e liberdade. O uso público da razão
como sua consequente substituição pela linguagem dos cidadãos exige que as ações do Estado sejam
e julgamento da moralidade e gosto subjetivos. A públicas. Mas, em que ponto começa a publicidade
centralidade dos símbolos sobre os programas, da das ações públicas? Começa quando ainda está sob
personalidade do líder sobre o conjunto dos apoia- a forma de um plano mentalizado pelos políticos,3
dores do partido, traduz-se na centralidade de qua- ou quando está em debate nas instituições públicas,
lidades morais sobre as qualidades políticas, na for- como numa assembleia ou fórum público?4
mulação do juízo político por parte dos cidadãos. Ao comentar a máxima kantiana da razão pú-
Assim, o declínio das virtudes políticas (prudência, blica, Bobbio, anos atrás, indagou: se o fato de um
competência etc.) e das virtudes pessoais (estética, governo esconder as suas ações é por si só admissão
sexual etc.) tornam-se centrais. E um resultado de que são motivo de escândalo, então “o que cons-
comprovado dessa transformação pode ser visto titui um escândalo?”. “Quando surge um escânda-
no aumento da ocultação de questões políticas aos lo?” Quão expostas ao público devem estar as ações
olhos do público, pois o que deveria ser o objeto para serem consideradas sob o olhar das pessoas?
de visibilidade pública não é tão interessante para Caso contrário, nenhuma decisão pode ser tomada
os espectadores e especialistas da mídia quanto a de forma totalmente transparente, particularmente
figura do líder. A política torna-se então mais pro- quando ocorre numa democracia, na qual a liberda-
fissional, no sentido de que se converte numa ati- de individual é o princípio que norteia o compor-
vidade que vive de barganhas às escondidas. Em tamento político (não apenas privado), já que ela é
suma, o plebiscito de audiência facilita a corrupção a condição graças à qual a negociação e o compro-
(Pizzorno, 1998, pp. 45-63). misso podem ser alcançados entre partidos e inte-
Dar ao povo uma potência ocular total não lhes resses plurais (Bobbio, 1984, p. 93). Parafraseando
dá qualquer garantia de que o que eles verão seja o Hannah Arendt, os direitos criam uma opacidade
mais importante no governo ou nas atitudes políti- saudável, sob a qual uma pessoa pode se esconder e
cas, e menos ainda o que a sociedade quer e preci- viver, e que através dela vive a sua própria intimida-
sa (Sartori, 1997a, pp. 149-150). Mas, para que as de. Mais do que isso, esta é a maneira pela qual as
opiniões sejam públicas, não é suficiente que este- ações públicas se tornam públicas (quando, de que
jam apenas difundidas, é necessário que pertençam forma, por meio de que tipo de imagens etc.), o
à “coisa pública”, à res publica; e o julgamento sobre que é, em si mesmo, não é uma questão transparen-
esta pertinência é algo que os cidadãos desenvol- te. Apesar do clamor persistente de transparência,
vem livremente, quando participam da elaboração nem sempre a democracia plebiscitária parece levar
de suas decisões e de suas opiniões enquanto cida- em conta esta opacidade: “A franqueza é útil para
dãos, e não simplesmente como espectadores priva- regular de modo secundário temas não relativos às
dos (Sartori, 1987, p. 87). Assim procedem quando políticas legisladas, mas aos líderes que tomaram
fazem outras coisas além de assistir: como partici- posse para legislar” (Green, 2010, p. 203). O po-
par de movimentos, associações e eleições, fazendo der ocular do povo opera mais sobre a figura do
seus representantes conscientes de seus problemas e líder do que sobre as políticas. Isto é o que torna
interesses, contestando-os e colocando-os para den- esta questão um capítulo ligado mais à política da
tro ou para fora por intermédio da votação. Não liderança do que à democracia. Como James Tully
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 82

escreveu, ao analisar a liderança wilsoniana, “deba- a dos líderes partidários e militantes para ser a dos
tes presidenciais, consultas públicas e coletivas de especialistas em comunicação. “Democracia popu-
imprensa” são as estratégias da democracia ocular, lar é a regra para o media expert” ou a celebração do
que pertencem essencialmente ao “ato de assistir” poder ocular. Enquanto as eleições da democracia
aos comportamentos (Green, 2010, pp. 200-203). partidária baseavam-se fortemente no aspecto oral
Mas, como argumenta Luhmann, de maneira con- e volitivo da política – a participação foi o destaque
vincente, a opacidade está implícita no paradigma central da soberania popular – a aparição em públi-
do público como espectador total, pois “ao ser ofe- co agora define a arte da política. Palavras, debates
recido de fora, o entretenimento tem como obje- e conflitos entre ideias e interesses foram centrais
tivo ativar o que nós mesmos experimentamos, a num caso, enquanto no outro o são a transparência
esperança, o medo, o esquecimento – como no e a franqueza, em que o órgão do poder popular é
mito” (Luhmann, 2000, p. 58). O público ocular “o olhar, mais do que a decisão, e o ideal crítico do
estimula a identificação e empatia com o performer, poder popular [é] mais a franqueza do que a auto-
dois fenômenos que dificilmente conduzem a uma nomia”. A democracia de audiência de Manin é um
atitude crítica ou controladora, de julgamento e avanço perspicaz e influente em direção à participa-
monitoramento, de disposição cética e desconfiada ção considerada como ato de assistir.
em relação àqueles que detêm o poder. Embora seu livro tenha instigado o renasci-
Juntamente com Weber e Schumpeter, Carl mento da teoria da democracia plebiscitária, Manin
Schmitt é um ponto de referência evidente desta não teve a intenção de apoiar um movimento em
democracia plebiscitária. Como sabemos, Schmitt direção a uma democracia pós-partidária. De fato,
reinterpretou a democracia plebiscitária a partir da seu diagnóstico sobre a transição da democracia
perspectiva da mudança do sentido de “público”, partidária para a de audiência baseava-se na ideia
de algo que é definido num sentido jurídico-nor- de que o público espectador é um juiz soberano, e
mativo (o que diz respeito ao estado civil) para o por isso assumiu a ideia tradicional de que consen-
que está exposto à visão ou que existe num senti- timento e debate são essenciais para a legitimidade,
do teatral (aquilo que é feito diante dos olhos dos e que apenas o julgamento não é sinal de que haja
outros). Esta é a visão de público que remonta a autogovernança. Assim, Manin avaliou a transição
um plebiscitarismo contemporâneo de audiência. da democracia partidária para a de audiência em
A ressurreição das ideias que levaram a uma crítica termos de declínio do poder soberano do povo,
do parlamentarismo no início do século XX na Ale- entendendo que isso significou um enfraquecimen-
manha foi um indicador interessante de uma ten- to do poder de decisão dos cidadãos. Quando as
dência nova e preocupante na teoria democrática. É pessoas costumavam votar em partidos, através de
bom lembrar que essa crítica veio no momento de uma plataforma em que exerciam seus julgamentos
uma crise econômica dramática, quando as pessoas sobre a política futura, o voto delas não continha
começaram a duvidar da eficácia das instituições li- apenas a confiança na figura de algum notável. Na
berais e representativas. democracia partidária, a imagem do candidato não
O livro de Bernard Manin sobre o governo re- substitui a expectativa futura dos votantes como na
presentativo é talvez o documento mais importante democracia plebiscitária, em que as eleições ocor-
desta nova tendência – e não por acaso Schmitt é rem com base na imagem do candidato, e a referên-
um dos autores mais importantes de sua obra (Ma- cia aos programas e plataformas é quase irrelevante.
nin, 1997, capítulo 6). O tema central do livro de A consequência é que a própria prestação de contas
Manin é o diagnóstico do declínio da democracia torna-se sem sentido, já que os eleitores não têm
partidária e a emergência da democracia do públi- nenhum controle sobre os assuntos e sobre as po-
co, em que tanto a confiança no líder como a acei- líticas, nem mesmo durante a campanha eleitoral.
tação de um chamado para o poder discricionário Claramente, Manin julgou a transição de debater
do executivo vão ao encontro de uma mudança na e participar para assistir e olhar como um sinal de
organização das eleições políticas, deixando de ser “mal-estar”, e não como uma melhoria. A bem di-
CRISE E METAMORFOSES DA DEMOCRACIA  15

zer, ele concluiu, em seu livro, com estas palavras ainda é insuficiente para torná-los expostos ao po-
desconfortáveis: “o governo representativo parece der de controle das pessoas.
ter cessado o seu progresso rumo a uma autogover- A hegemonia do homo videns e a radicalização
nança popular”. de opiniões demagógicas são os sintomas de um de-
Assim, embora a transformação visual do pú- feito que hoje é disseminado pela televisão e por
blico gere uma “presença constante” do mesmo, uma nova e mais sofisticada tecnologia da infor-
isto não significa uma presença que tenha controle. mação. É claro que as tecnologias da informação
Ver mais e constantemente não implica, necessaria- e comunicação dão aos cidadãos comuns possibi-
mente, ver tudo, e o que é importante no sentido lidades extraordinárias de mais conhecimento e
de julgar ou sustentar os líderes em suas decisões. participação do que menos (um dos nossos mitos
Nesse ponto, uma questão surge de forma espontâ- modernos fala de uma República Virtual e numa
nea: desde que o povo é assumido como apenas um ágora na Internet para um novo tipo de crítica e de
público visual que não tem nenhum papel no pro- drama social) (Taylor, 2005, p. 640). No entanto,
cesso de decisão, o que só poucos têm, a partir de o que é bom não vem desacompanhado de nenhu-
que momento ele passa a assistir? Ao excluir as pes- ma mazela, e é sobre esta contradição que a teoria
soas de sua “capacidade de serem autoras de normas democrática deve voltar sua atenção. Os riscos para
e leis” (direta ou indiretamente), faz-se com que a a democracia vêm do interior do complexo mundo
esfera pública desempenhe um papel meramente da formação de opinião, nessa panóplia dos meios,
estético, que tem seu impacto mais por entreter do abrangendo o poder indireto de ideias que a liber-
que controlar. O povo, na democracia ocular, não dade de expressão e a liberdade de associação criam
tem objetivo, ou, mais precisamente, não tem ne- e reproduzem. Eles vêm, como eu disse, tanto na
nhum outro objetivo do que o próprio assistir. A forma de identificação plebiscitária com algum lí-
diarquia da decisão e da opinião é o que faz com der público, cuja popularidade faz com que ele se
que as pessoas na democracia sejam atores contro- pareça tão carismático, ou sob a forma de reivin-
ladores porque ela contempla uma comunicação dicações populistas que procuram representar um
estrutural entre representantes e representados (re- povo inteiro ou atribuir um verdadeiro significado
gulada por procedimentos e normas constitucio- dos valores e da história de uma nação. Essas apa-
nais, mas também operadas por associações inter- rentemente autoafirmativas funções da mobilização
mediárias, como partidos e organizações civis). O das pessoas são, de fato, um fenômeno preocupante
espectador não é um tribunal imparcial que julga da passividade e da docilidade políticas, que podem
as ações dos atores, mas identifica-se com eles com mudar a fisionomia da democracia.
empatia – como no Fórum Romano, uma massa
de espectadores indistintos que vaiam ou aplaudem
como o público no teatro. Notas
Assim, gostaria de propor uma inversão do ar-
gumento plebiscitário e salientar que estar sob os * N.T.: Plebiscite of audience no original.
olhos das pessoas pode ser uma estratégia astuta. O 1 O mesmo pode ser dito, de modo geral, acerca das
redes de comunicação que “largamente são proprieda-
líder ou simplesmente os media experts costumam
des e administradas por corporações multimedias glo-
fazer com que as pessoas tenham menos controle bais” e ainda que os estados sejam parte destas redes,
sobre o próprio poder do líder. Isso ocorre quando “[...] o coração da comunicação global é largamente
algumas providências não são tomadas e que não di- conectado a, e dependente de investidores e mercados
zem respeito simplesmente à regulamentação de sua financeiros” (Castells, 2009, p. 424).
aparição em público. O executivo ou o presidente 2 Cf. Steinberger (1993, pp. 153-238).
podem manter entrevistas coletivas regulares ou os 3 Cf. Michael Walzer (1973, pp. 160-180), e Thomas
candidatos podem envolver-se num debate franco e Nagel (1978, pp. 75-91).
aberto na televisão – em suma, para fazer da arena 4 Esta questão é particularmente relevante quando en-
da política uma experiência de gladiadores – o que
16  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 82

volve a religião: como a religião acredita dever entrar LUHMANN, Niklas. (2000), The reality of the
na esfera pública? E deveriam os cidadãos sempre tra- mass media. Tradução de Kathleeon Cross.
duzir a sua visão religiosa privada na linguagem da Stanford, Stanford University Press.
razão pública? (cf. Rawls, 1999; Habermas, 2006, MANIN, Bernard. (1997), The principles of repre-
pp. 1-25.) O artigo de Habermas foi publicado re-
sentative government. Cambridge, Cambridge
centemente com pequenas alterações, através do tí-
tulo “Cognitive presuppositions for the ‘public use
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of reason’ by religious and secular citizens”, no livro MILL, John Stuart. (1977), “Considerations on re-
Between naturalism and religion, de 2008, do próprio presentative government”, in John M. Robson
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  247

CRISE E METAMORFOSES DA CRISIS AND METAMORPHOSES CRISE ET mÉtamorphoses de


DEMOCRACIA OF DEMOCRACY la dÉmocratie

Nadia Urbinati Nadia Urbinati Nadia Urbinati

Palavras-chave: Democracia represen- Keywords: Representative democracy; Mots-clés: Démocratie représentative;


tativa; Crise, Governo parlamentarista; Crisis; Parliamentary government; Plebi- Crise; Gouvernement parlementariste;
Plebiscito de audiência scite of audience Plébiscite d’audience.

Proponho uma síntese de meu livro, ain- I will propose a synthesis of my book Je propose une synthèse de mon livre,
da em manuscrito, no qual exploro algu- manuscript in which I explore some encore sous forme de manuscrit, dans
mas das metamorfoses da democracia re- metamorphoses of representative de- lequel j’explore certaines métamor-
presentativa tal como elas se desenvolvem mocracy as they develop in the domain phoses de la démocratie représentative tel
no domínio da opinião. A democracia re- of opinion. Representative democracy is qu’elles se développent dans le domaine
presentativa é um sistema diárquico que a diarchic system composed of two pil- de l’opinion. La démocratie représen-
tem dois pilares: “a decisão” e a “opinião”. lars, the “will” and “opinion”; in today’s tative est un système dyarchique qui
Os desafios das democracias constitucio- constitutional democracies the challenges s’appui sur deux piliers : « la décision »
nais não decorrem tanto do primeiro de- come not so much from the former pil- et « l’opinion ». Les défis des démocra-
les (as regras do jogo), mas do segundo: lar (the rules of the game) but from the ties constitutionnelles découlent moins
o poder informal do julgamento político. last, the informal power of political judg- du premier d’entre eux (les règles du jeu)
Atualmente o desenlace da liberdade de ment. Today the issue of freedom of ex- que du second : le pouvoir informel du
expressão e formação das opiniões po- pression and formation of political opin- jugement politique. Actuellement, le dé-
líticas parece ser o modo pelo qual um ions seems to be how the public forum of nouement de la liberté d’expression et de
fórum público de ideias pode se manter ideas can succeed in remaining a public formation des opinions politiques semble
como um bem público, monitorando, good and play its monitoring, cognitive, être la façon par laquelle un forum public
conhecendo e contrariando radicalmente and dissenting role if video-power effects d’idées peut se maintenir comme un bien
o poder televisivo e seus efeitos políticos, politics so radically and if information public, en contrôlant, en connaissant et
dado que a indústria da informação em industry in many different parts of the en contrariant radicalement le pouvoir
muitas partes do mundo pertence a um word belongs to a relative small number télévisé et ses effets politiques étant don-
pequeno grupo de indivíduos privados. of private individuals. Within this sce- né que l’industrie de l’information appar-
Apresentado este cenário, pertencente a nario which belongs to all consolidated tient, dans plusieurs régions du monde,
todas as democracias consolidadas, ana- democracies, I will analyze one disfigura- a un petit groupe d’individus privés. En
lisaremos uma desfiguração da política tion of democratic politics in particular, présentant ce scénario, qui est commun à
democrática em particular: o que chamo what I call audience plebiscitarianism. toutes les démocraties consolidées, nous
de plebiscitarismo de audiência. analyserons une défiguration de la poli-
tique démocratique : ce que j’appelle de
l’adoption d’un plébiscite d’audience.

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