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Crianças
e jovens
e a preparação
do “craque”
RESUMO ABSTRACT
como uma das alternativas para ascensão social e en- Etapa de iniciação A fase de iniciação é carac-
contram mais facilidades para experimentar e praticar terizada pela descoberta e identificação com a mo-
outras modalidades esportivas coletivas e individuais. dalidade. Os primeiros contatos com a bola podem
Exemplos bem-sucedidos podem ser observados acontecer em vários lugares (família, escola, clube),
em países tradicionalmente fortes nas competições mas as escolinhas de futebol é que se destacam como
internacionais de futebol. A França, antes de sediar os espaços preferidos para o batismo.
a Copa de 1998, procurou organizar a formação das A literatura tem demonstrado que os jogadores que
crianças e adolescentes. Centralizou a supervisão do obtiveram êxito em suas carreiras iniciaram preco-
método de treinamento escolhido e implantado no cemente a prática específica do futebol. A iniciação
país, treinando os profissionais responsáveis pela sua aconteceu por volta dos 8 anos de idade e contraria o
aplicação nas diferentes regiões. que se recomenda sobre a necessidade de proporcionar
A Alemanha, ao encontrar dificuldades para re- múltiplas experiências motoras para essa faixa etária.
novar o potencial das suas equipes, sem recorrer à A surpreendente constatação gera interessante
contratação de estrangeiros, criou 29 centros espe- debate sobre a especialização prematura porque os
cializados distribuídos pelo país visando à busca e à estudos não avaliaram quantas crianças desistiram
formação do talento futebolístico. do futebol tão precocemente iniciado. Por outro lado
A Espanha, atual campeã do mundo, acumula vi- aumenta a responsabilidade dos treinadores das cate-
tórias nas categorias de base. O Barcelona é, sem dú- gorias menores. A antecipação dos treinos especiali-
vida, um dos clubes mais visitados pelos candidatos a zados precisa de respostas para questões relacionadas
treinar crianças e adolescentes. com métodos a serem aplicados, intensidade dos trei-
O modelo brasileiro de treinamento para crianças e nos, pressão por resultados, acompanhamento médi-
adolescentes, na maioria dos clubes de futebol, sempre co, psicológico e nutricional além de monitoração das
foi adaptado e regionalizado. Os profissionais respon- relações familiares.
sáveis pela formação dos garotos, remanescentes do
futebol profissional, ainda aplicam os mesmos tipos de “O treino tem que ser divertido. As crianças praticam
treino que aprenderam durante a fase em que atuaram esportes para se divertir, portanto as atividades pre-
como atletas. Poucos treinadores procuram conhecer cisam ser estimulantes” (Sports Illustrated For Kids
melhor os aspectos técnicos, táticos, físicos e psicoló- Readers).
gicos da modalidade para adaptá-los à faixa etária sob
sua responsabilidade. Inexplicavelmente continuamos No passado era diferente, as crianças participavam
atribuindo à diminuição dos espaços, dos campos de de brincadeiras de rua, e os campos de “pelada” eram
várzea, a falta de competência para formar talentos os espaços livres onde as irregularidades do terreno de
na proporção numérica dos praticantes de futebol. jogo e os diferentes tipos e dimensões da bola exigiam
São raros os treinadores que conhecem como fa- contínua improvisação. Com criatividade as crianças
cilitar a aprendizagem e o controle das habilidades se acomodavam em novas dimensões para o espaço
motoras aplicadas à modalidade, a maioria ignora a de jogo e se adaptavam a todas as formas esféricas
diferença entre idade fisiológica e idade cronológica, ou ovais ousando na originalidade dos movimentos.
bem como a importância de respeitar as etapas de O futebol era praticado com os pés descalços, com
crescimento e desenvolvimento motor. bolas improvisadas e regras consensuais. Os pais não
pressionavam os filhos porque a “profissão” de jogador
P
de futebol não era bem remunerada e nem bem-vista
ROCESSO DE FORMAÇÃO DO JOGA- pela sociedade.
DOR DE FUTEBOL O processo visando A ocupação imobiliária dos terrenos, a falta de se-
à formação de jogadores de futebol de gurança nas ruas e o aparecimento de novas formas de
ambos os sexos é muito longo e com- lazer contribuíram para dificultar a prática e a recrea-
plexo, contemplando diversas etapas de ção espontânea e sem cobranças.
treinamento e seleção até o nível de alto rendimento. As classes menos favorecidas foram deslocadas
Da infância até a adolescência duas fases se destacam: para núcleos residenciais distantes e desprovidos de
iniciação e especialização. qualidade de vida. A falta de condições de saúde, de
Esse modelo de escola pode não ser o melhor para desconhecimento desses fatores que influenciam nas
o aprimoramento da compreensão do jogo, estratégia e respostas neuromusculares faz com que a maioria dos
tática, mas tem papel importante no desenvolvimento treinadores exclua jogadores habilidosos e potencial-
das relações sociais, formação do caráter, melhora da mente talentosos do processo de formação.
aptidão física, das habilidades motoras e do prazer A especialização esportiva, a busca do talento e a
pela prática esportiva. excessiva competitividade podem levar a um esgota-
Do ponto de vista organizacional, as boas esco- mento prematuro da capacidade de rendimento, preju-
linhas devem contar com pessoal qualificado para a dicando o processo de formação esportiva. As situações
atividade fim, que não é formar garotos para o esporte estressantes associadas à fadiga física podem afetar
profissional. A criança, independente do seu potencial, negativamente o crescimento e o desenvolvimento.
deve percorrer etapas no processo de formação espor- Fato comum que ocorre nas competições organiza-
tiva. Planos de treinamento intensos, com exigências das para as categorias de base no futebol é a não ade-
físicas e psicológicas estressantes, prejudicam o pro- quação das regras e regulamentos, do local da prática e
cesso de ensino-aprendizagem. da bola. A falta de padronização dos procedimentos e
As escolas formadoras vinculadas aos grandes clu- da adequação do tamanho e peso da bola, dimensões do
bes de futebol em nada se assemelham aos modelos ci- campo e das metas, etc., para as diferentes faixas etárias, é
tados. Para fazer parte dos programas de treinamento incompreensível porque deixa, a critério de pessoas nem
das categorias de base dos principais clubes, o garoto sempre qualificadas, a responsabilidade para decidir.
já passou por etapas anteriores. A estrutura seleciona-
dora que encaminha as crianças e os adolescentes para Modelos europeus A escola de futebol da Holanda,
o profissionalismo é composta por olheiros, empresá- particularmente a do Ajax, um dos clubes mais tradi-
rios, franquias de escolinhas com o nome de times, etc. cionais daquele país, é um dos exemplos do sucesso da
competência dos responsáveis pela seleção e formação
Etapa de especialização A etapa de especia- de garotos talentosos. Cada jogador é avaliado de acor-
lização deve priorizar, com mais frequência, o aper- do com o sistema denominado TIPS, que engloba técni-
feiçoamento técnico, tático e da condição física. Os ca, inteligência, personalidade e velocidade (speed). A
treinos são caracterizados pelo aumento da carga de avaliação da personalidade é centrada em aspectos tais
trabalho (maior número de sessões semanais) e pela como criatividade, audácia, carisma e autoconfiança.
especificidade (situações de jogo). Os jovens, entre 14 A escola de futebol da Real Federação Espanhola
e 20 anos, são mais testados emocionalmente, com também parte de uma fórmula idealizada por Iñaki
maior exposição às situações de competição. Sáez (treinador da seleção espanhola entre 2002 e
O delicado período de crescimento e desenvolvi- 2004) para a seleção de talentos. As crianças precisam
mento na faixa etária entre 13 e 16 anos de idade, que ser diferenciadas em relação:
não acontece na mesma velocidade para todos, exi-
ge individualização de procedimentos considerando n aos três Cs – calidad, carácter e competitividad;
a precocidade de alguns e o desenvolvimento mais n aos dois Vs – velocidad física e velocidad mental;
tardio de outros. n a um E – equilibrio psíquico.
Participações 1 2 3 4 5
Equipes 66 32 17 15 43
Ver o Barcelona jogar é aprender que um passe Atualmente os pequenos que se destacam são as-
bem-feito é um drible, não dá chance para o adversário sediados pela rede de olheiros ligados a empresários
se antecipar e não facilita ações faltosas de jogadores e, muitas vezes, os pais aceitam ficar presos a compro-
limitados. Na Europa as equipes só contratam técnicos missos na esperança de oportunidades para os filhos.
que se habilitaram nas escolas de formação de treina- Equipes são formadas sem a menor perspectiva de su-
dores e vocacionados para o trabalho com crianças. cesso porque os alicerces não são construídos sobre
estruturas de apoio sólidas e nem com a mão de obra
No Brasil O Brasil é caracterizado mundialmente especializada para o trabalho com jovens.
como o grande exportador de jogadores. Além disso, A frágil arquitetura que sustenta empresários am-
o país possui milhares de equipes de diferentes níveis biciosos, comissão técnica leiga e mal remunerada e
competitivos espalhadas por todo o território nacional. garotos sonhadores, mas sem embasamento físico, téc-
Todas elas, mais os olheiros nacionais e interna- nico e emocional, nasce fadada ao insucesso.
cionais, formam uma grande rede de captação de jo- A Copa São Paulo de Futebol Júnior é um reflexo
gadores modulada pela força econômica. dessa desastrosa realidade. Mais de noventa equipes,
Desde cedo os clubes mais fortes fazem processos de diferentes regiões do Brasil, não conseguem reve-
seletivos para a formação de suas equipes de futebol lar jogadores diferenciados na proporção do número
e futsal, e os melhores jogadores, que se destacaram de participantes. Bem diferente daquilo que acontecia
defendendo equipes menores, são seduzidos pelas quando o futebol era praticado com mais liberdade.
agremiações de maior prestígio. As crianças, preco- Recente levantamento realizado pelos membros do
cemente introduzidas no sistema competitivo, ou so- Grupo de Estudos e Pesquisas em Futebol e Futsal
frem pela frustração de serem descartadas ou ficam (Gepeffs) da Escola de Educação Física e Esporte da
inseguras quando são obrigadas a viver longe de suas USP mostrou que 38% das 173 equipes que participa-
famílias em alojamentos coletivos. ram de cinco (2008, 2009, 2010, 2011 e 2012) das seis
A pressão sobre elas aumenta com a chegada de últimas edições da Copa São Paulo só se apresentaram
novos candidatos, com mudanças de técnicos e diri- uma vez na competição (Quadro 1).
gentes e, principalmente, com a cobrança dos empresá- Se contabilizarmos as equipes que só participaram
rios responsáveis pelas carreiras das jovens promessas. de uma das edições com aquelas que marcaram pre-
No passado os clubes do interior e os campos da sença em duas, chegaremos a 56% do total. Portanto,
várzea formavam gerações espontâneas de craques mais da metade das equipes não tem tradição e é mon-
que jogavam sem ser persuadidos e controlados por tada apenas para explorar a visibilidade proporcionada
empresários ávidos pelo lucro imediato. Os jovens pela importância da Copa São Paulo.
não eram premidos pela sociedade consumista e nem A maioria delas pertencia a empresários que con-
pela necessidade de proporcionar melhores condições seguiram a inscrição de equipes com pouca chance de
financeiras para a família. O prazer de jogar e a li- sucesso e nítida intenção de colocar, na maior vitrine
berdade para criar eram a receita para a formação de do futebol, garotos que sonham com a possibilidade
jogadores versáteis e descontraídos. de jogar em grandes clubes.
O que se viu foi que, das 66 equipes que só par- O objetivo do curso nível A, treinador básico, que
ticiparam de uma das copas, 63 foram eliminadas na visava à formação de especialistas para trabalhar
primeira fase e, pior, algumas saíram sem conquistar na iniciação e especialização, tinha como discipli-
uma única vitória (Quadro 2). nas teóricas obrigatórias:
Nossos clubes investem muito e errado nas equipes n c rescimento e desenvolvimento das crianças e ado-
rentes, que gostem de vencer e de bons espetáculos, n t reinamento físico, técnico e tático (sistemas e orga-
QUADRO 2
Equipes que participaram UMA vez
Colocação 1F 2F 4F
Equipes 63 2 1
C
tro do processo educacional.
ONCLUSÃO “Toda criança tem direi- O modelo vigente, em que se buscam o alto rendi-
to de ser ou não um campeão” (Carta mento, vitórias, status e satisfação da vaidade e dos ob-
dos direitos da criança no esporte ela- jetivos financeiros dos pais e dirigentes, afasta grande
borada por treinadores esportivos de número de praticantes. Muitos garotos talentosos não
Genebra). se submeteram a lideranças autoritárias e abandona-
ram, precocemente, o futebol. Aos clubes formadores,
No processo de formação para a prática de futebol, cabe a responsabilidade de oferecer estruturas compa-
tanto na etapa de iniciação quanto na de especialização, tíveis com as necessidades das diferentes faixas etárias
o sucesso não se dimensiona, apenas, pelo número de e a contratação de profissionais competentes compro-
garotos e adolescentes que chegaram ao profissionalis- metidos com a qualidade dos procedimentos de treino.