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Wilson de Figueiredo
Redator-Chefe;
Valdomiro flutran Dourado
Redatores:
Sábato Magaldi
EDIFÍCIO Otto Lara Resende
Edmur Fonseca
«E AGORA, JOSÉ ?» — Carlos Drummond de Andrade Pedro Paulo Ernesto
VANESSA NETTO
LUCY TEIXEIRA
FERNANDO SABINO
WILSON DE FIGUEIREDO
HÉLIO PELLEGRINO •
PEDRO GIANNETTI
OTÁVIO ALVARENGA
FRANCISCO IGLESIAS
AMARO DE QUEIROZ
J. ETIENNE FILHO
PREÇO - CR 2,00
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Esboço para apresentação de "EDIFÍCIO"
— Que século meu Deus! diziam os ratos. do tempo, mas cedem a elas nas possibilidades das suas
E começaram a roer o edifício. prerrogativas intangíveis.
Onde encontrar, então, o laço que une o grupo de gente
Carlos Drumond de Andrade nova dos cafés de Belo Horizonte ?
Se olharmos um por um, veremos que as diferenças
não são tão grandes. Ao lado da semelhante formação li-
"J-RATÁ-SE de uma revista de moços. E' de se presu-
terária, que dá à linguagem uma gíria particular, os pro-
mii, portanto, que tenha veleidades revolucionárias,
blemas de todos tem aproximações incontestáveis. Algu-
deseje conquistar o mundo ou salvar a honra da pátria.
mas horàs pela noite, e a angústia estabelece um clima que
Não ouso dizer que uns não acariciam o propósito de res-
desfaz a aresta mínima. Ademais, o caminho literário tem
taurar a dignidade humana. Mas o nosso "edifício", em
muito de comum.
geral, é habitado por tristes moradores.
Agora, a neva geração de Belo Horizonte em conjun-
Seria difícil estabelecer um denominador comum a essa
to. Não esquecemos os perigos de generalizar, e os casos
turma de jovens. A heterogeneidade das tendências, de-
pessoais que fogem ao processo sistematizador. Porém,
íeiminada sobretudo com os acontecimentos políticos, lan-
existe o mesmo problema do homem, em face do mundo,
| "0U í?ac,a Um a uma PosiÇão definida, obrigando a distân- que permite a busca de unidade.
| cias irrecusáveis em certos princípios.
Não há húvida em afirmar que à nossa geração coube
| i_ início, havia um grupo que se afirmava católico, a mais deplorável das situações. 0 passado não tinha sei-
j a.>as rnadiugadas confidenciais, o ódio ao apodrecido mun-
va para oferecer-lhe apôio, com a descrença nos valores que
do burguês era aceso com o compromisso ao heroísmo da
fcle reputava universais. Faleceu o mito das verdades eter-
| í eligião primitiva, Essa atítrirlD oi<(( desajústamento.
nas, em que uns procuram ainda se proteger, econômicos e
necessidade inquieta de não estar alheios. No .fundo to-
medrosos do aniquilamento.
dos precisavam de metáforas, úteis ao cultivo individual
i das._fJocubrações literárias. Quando se tentava reconhecer a base íntima da perso-
Ainda hoje alguns confessam testemunhar o sangue de nalidade, vieram as definições precipitadas, origem de ati-
Cristo. Insuflados de um suposto vigor maritainiano, que- tudes dúbias.
renx imprimir à sociedade desvitalizada a fôrça pura do E' através da posse de si mesmos que muitos afirmam
cristianismo. Talvez sinceros, talvez presos ao receio de 0 coletivo, levando a um coletivismo vesgo, diferente das
se negar e admitir os avanços do tempo, ou presos aos ar- acutrinas reais.
|iemedo3 familiares, formaram um sólido núcleo à parte, A vertigem do presente só faz crescer o desencanto.
j eme-se que por preguiça mental; curiosidade pouca de es- 1 cicebem-se vazios os impulsos nos quais se empenhava a
! tudo serio, e exploração incansável da infância perdida, "vida, reduzindo os sentimentes a uma indefinição completa,
j Js postulados católicos permanecem num plano de absolu- o mesmo que morte para êles. Os despejos guardam ape-
to longínquo, que a vida e as afirmações individuais se en- nas a ridícula presença do ser, que traz o egoísmo de afir-
; carregam de negar. Para romper a contradição a queda mar-se secretamente. Não se encontra solução para a tra-
sinal doloroso da contingência humana, passou a ter o valor gédia, mas é preciso um pretexto capaz de manter a apa-
dc mito, presente nos gestos mais vulgares. Pior há sofri- lência. Êsse pretexto é conseguido na crença do mundo
mento verdadeiro ás vezes. novo.
Outros membros do grupo inicial, insatisfeitos com a
Na verdade, pela experiência que se tem, sabe-se que
sua definição intimamente falsa, acabaram por tomar um
não passa de um engano, buscado conscientemente na cer-
rumo oposto. Apesar do esforço de segurar algum destro-
teza de que é frágil, porém o último possível de sobrevi-
ço da doutrina que falia, já tinham mergulhado no deses-
vência. A entrega ao homem novo é uma espécie de morte
pero e no desencanto. para prosseguir a vida, já que no fundo tudo existe como
Precipitou-se a política nacional, exigindo uma reno- morte.
vação de energias. O movimento de luta ao fascismo ofe-
Há, também, um esforço heróico no sentido de ver se
recia vários aspectos, por um dos quais era necessário de-
se constrói, pelo atrito, qualquer coisa durável. Talvez seja
ímir-se imediatamente.
o testemünho vibrante da nossa fx-aqueza, da covardia em
^ Certas preferências, mais imposição de um equilíbrio não aceitar o profundo aniquilamento. Por ser racional e
salvador, embora sincera se ainda não amadurecidas foram almejar o sustento (mesmo ridículo) do mundo, encerra
abraçadas num impulso total. Estava aceito o extremismo também generosidade.
de esquerda.
Numa visão simples da vida social, nota-se uma injus-
Em meio a essa turma, talvez mais coerente^ uns con-
tiça inominável, sôbre a qual se falaria somente em têrmos
tinuaram fiéis à sua solidão. Compreendem as exigências
demagógicos. A exploração do homem pelo homem, no
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trabalho, não pode ser aceita, e isso conduz ao ideal de uma çao iiierana irooia sei Cl V ClJLLUi cl * toLiuecimemu u
ordem mais justa. Nesse ponto, os jovens da nova gera- África de Rimbaud. Não acreditamos mais em África. O
ção tem secretos contactos. destino parece traçado: a quase fuga pela literatura.
Depois, a descrença não é tão definitiva. Pouco im- Certos caracteres foram vistos com exagerada ênfase e
porta que as afirmações mais veementes não passem de um impiedade. Contudo, esconde-se em todos um coração enor-
grito de desespero. No fundo, mesmo descrendo de tudo, me, cuja maior tragédia é talvez compreender demais.
todos acreditam demais em seus fantasmas. Resta uma lembrança: que o amor não seja a genero-
Já não é intenso o apêlo do filho pródigo. A sua ex- sidade do rico, pródigo por não lhe interessar uma ou ou-
periência foi superada, e se exteriofiza através da realiza- tra migalha.
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Um casual ajuste de contas
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gou no restaurante dos oficiais. Serviu nesse emprêgo meses de prato. Se Aliantor se recusasse a atender o novo freguês, disfar-
abatimento e de descrença. Afinal, por intermédio de uma tia, çando-se com súbita indisposição, a gerência seria bastante carran-
amante de qualquer major, escolheram-no para substituir alguém que cuda para lembrar-lhe seu preciosismo. Ao sair, o jornalista lar-
se desligara. No momento, êle e sua farda foram destacados para garia na mesa uma larga gorgeta. Conduzia com essa liberalidade
o Sul. uma das cenas do meu reencontro com Aliantor.
Wilson enriquecia de detalhes, a meu pedido, cenas como a da Mas, ise o jornalista não reconhecesse o amigo no garção, Alian-
visita em que Aliantor resolveu perdoar a tia para utilizá-la ermo tor se salvaria, continuaria ausente da mesma forma. E, para a
instrumento de sua ambição. Ignorava se a carreira lhe desvendaria ntória da minha superioridade, Aliantor devia convencer-se que ha
seus desejos queridos. Pensava que, como cultivara mentirosa- via sentido na gorgeta exagerada. Se o encontro ocorresse, e o jor-
mente, a amizade dos padres, no Colégio, com seu impudor de pobre nalista ignorasse o nome querido do companheiro ginasial, Alian-
arranjaria um método de ser inestimável aos seus superiores mili- tor, pelo seu orgulho, jamais se daria a conhecer. Sim, não se des-
tares . viaria num canhenho, mas, confiante e admirativo, assentaria à
— "Êle vencerá, não?" mesa, chamaria o servente e, numa linguagem universal de freguês,
Wilson me respondeu que os fatos um dia chegariam para nós exporia ao rapaz as exigências de seu apetite.
sabermos. Pelas costas,, ou defronte (não era êle que ocupava o lugar mais
baixo) examinaria, com nitidez de profissão, o quanto corroera no
rosto moreno o tempo e o fracasso.
Retardaria o almoço por um prazo de preguiça. Observaria,
Os sonhos que encenam atos de vingança contra humilhações bem visivelmente, sua atitude perante fregueses totalmente desconhe-
passadas são os que me ocorrera de olhos abertos. Agradeci a Wilson cidos. Até o chamaria, autoritário, para informar-se o Comandante
e ipedi-lhe que na gerência do hotel S... chamasse o n." 15. E me D... almoçava ali, àquelas horas. Oh! os cardápios lançara tais
desprendi dos gracejas com que rememorávamos os anos de Co-
associações no cérebro que, por respingo, não duvidava que alu-
légio .
disse ao Colégio, ao passado de ambos. Se Aliantor se vingaisse...
Na rua comecei a rir imaginando o bravo Aliantor a carregar
pratos em pilhas, sério. A dolorida maneira como seu corpo me Eu parava, molhado na garganta pela emoção, enxergando a
aparecia curvado. cena daquela vingança. E, Aliantor, meu caro Aliantor, poderia
Vi-me entrando no restaurante, transformado numa forte perso- desde então, eu, pensar em outras barreiras, de frente, e não me em-
nalidade, talvez jornalista enviado à entrevistar algum comandante. baraçar nessas cêrcas de arame que nos agacham, entre uma e outra
Não reconhecia o rapaz que me devia servir. Colocaria sôbre a região de nossa vida.
mesa um canhenho e, perdido em anotações, só levantaria o queixo
rapidamente para ordenar minha preferência por êste ou aquele 11-11-1945.
"Para trás, não conduz nenhum caminho, nem para o lobo, nem
para a criança. No princípio das coisas não há simplicidade nem
inocência; tudo o que foi criado, até o qu'e par&ce mais simples é
já culpável, já complexo, foi lançado ao sujo torvelinho do desenvol-
vimento e já não pode, não poderá nunca mais, nadar contra a cor-
rente. O caminho para a inocência, para o incriado, para Deus, não
se dirige para trás, mas sim para diante; não para o lobo ou a crian-
ça, mas cada vez mais para a culpa, cada vez unais fundamente den-
tro da encarnação humana". (Hermann Hesse).
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Cardinal! Cardinal!
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O Natal de Gl oríana
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Mas Clemência berrou indignada. Atravessou a rua, subiu as Quando bateram à porta, Gloriana se debruçou tanto na ja-
escadas e se precipitou na sala. nela, que teve mêdo de despencar na calçada.
— Gloriana, tu és louca — gritou a outra. O que viste na rua? Clemência entrava, as violetas na mão.
— Suas flores -— Gloriana sorriu. ■— Isto é demais, Gloriana. E' demais. Receberes flores quan-
No Natal, Clemência contou cento e cinqüenta lírios. do todos sabem que tens a casa cheia delas. E muito mais boni-
Guardou na mala os restos de papel e pôs um vestido de gase tas, cores mais vivas; nem parecem flores, são como doces. Não
ciclame, com babados na barra. De vez em quando acertava ura sei, tudo foge à minha compreensão. Anda daí, Gloriana. Não
lírio nas jarras. sei porque sorris. Estás amando com certeza. Não há motivo para
Gloriana sacudiu o elefante vermelho, um cofre tirado numa estares feliz. Só porque recebes flores de qualquer um. Nem ou-
barraquinha, e os níqueis cairam na cama. tras flores estremecem nas jarras como estas.
Desceu as escadas e atravessou muitas ruas. Cedia passagem Olha esta rosa. Esta pétala, que beleza, que perfeição! E aque-
às pessoas apressadas, e que sorriam porque era Natal, todos de- las? São misteriosas, são pássaros!
viam sorrir muito e ninguém se importava de carregar embrulhos. Clemência apertou os olhos. Atirou as flores na mesa e desa-
Gloriana apertava o dinheiro nas mãos. pareceu na outra porta, carregando seu vestido ciclame, tremulante
Entrou na casa de flores. e leve como uma bandeira.
Comprou violetas, dando o seu endereço ao empregado sorri- Mas Gloriana queria estar como todos, inteiramente parte do
dente, uma espécie de obrigação de ser feliz. Natal luminoso.
Esperou em casa, dando voltas, muito séria. Jogou-se no divã, apertando as flores, rindo.
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A c a s a
Nao se pode ■,
v encerrar uim homem nos seus atos, nem nas ■ suas
obras; nem mesmo nos seus pensamentos, pois sabemos, poi expe
... própria
nenciai . . e continua
. que nao. e, nosso aquno nue
u pensamos e
fazemos a cada instante; mas ora um pouco mais, ora um pouco me-
nos, ou muito menos do que podemos esperai de nos . au
Valery).
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Crisálida
Lucy TEIXEIRA
DOZE anos. Fôra-se a despreocupada alegria. Cristina achava
horrível isso de não ser criança nem gente grande. Positi-
vamente desamparada. E, cada manhã, se sentia outra criatura menino? Mandava tudo pra caixa prego! Ia ao cinema sozinha,
como se uma vasta coleção de Cristinas fôsse desfilando dentro dela. ficaria na rua até tarde e ninguém viesse contar vantagem pra cima
Tôdas, porém, mal acabadas, incompletas. Em compensação, a ti- dela. isso sim! Infeliz! Infeliz e desamparada! Santo Deus!
midez, essa marca de sensibilidade potencial*aperfeiçoava-se ago- Por que então aquilo não parava de crescer? Ou então por que não
ra. Podia-se compará-la a hera que rastejando encontra o muro, virava logo moça duma vez? Ser como a prima Antonieta: tôda
agarra-se, sobe, estende-se e o envolve. Assim, aquele nariz terri- cheia de corpo, tôda harmoniosa. Os moços olhavam pra ela dum
velmente arrebitado nada significava no que se pretendia afirmar jeito tão diferente... A prima parecia gostar. Quando virasse
de insolência ou abelhudice. Não passava de "blague" da na- moça queria ser como a Antonieta.
tureza. O diacho é que, com os outros, ninguém reparava; a tia Fer-
nanda, a dona Letícia então... Só porque ela estava crescendo
Quando a criança diminui a gente cresce. Eis a verdade. A achavam de ficar assim plantado, grelando. Se pudesse, virava
regra é perder a criança para o alargamento do espírito e prepara- fumaça nessa hora."
ção à dor. Que as pernas de Cristina, pois, se alonguem e que o Cristina cabeceou. O livro se lhe figurava voar pela janela.
corpo desengonce pela extensão dos membros. Quando o sono firmou-se sonhou que era fumaça subindo pro céu.
Usava uns vestidinhos estampados que sempre ficavam desajei- Recreio. À ordem de debandar os meninos corriam disputan-
ladíssimos. Mas isso não a preocupava. 0 que a fazia sofrer eba do os balouços. Dora e Júlia-avançavam para a mesa de pingue-
aquilo aparecendo. Esforçava-se a todo o custo para esconder. pongue. Cristina vinha atrás, sozinha. Há muito não jogava, em-
Quando ia para a escola carregava a bolsa contra o peito num abra- bora morresse de vontade. Sentava-se num banco a desenrolar va-
ço forçado. As colegas indagavam: garosamente a merenda. Pão com goiabada. Comia devagarinho,
— Cristina, que jeito é êsse de segurar a pasta? abrindo e fechando a bôea, alheada do mundo. Às vêzes, o in-
Poi q Dr. Braga que me recomendou — mentia tropeçando lerêsse pelo jôgo a dominava. Então, a cabeça não tinha descanso;
nas palavras — que a gente fica torta levando a pasta só dum lado. acompanhava o ir e vir da bola — teque teque, teque teque. Es-
Sabe, é porque estou crescendo... quecia a merenda, o rosto adquiria tal arrebatamento que os om-
As companheiras se entreolhavam relutantes. Não enguliam bros, sem que ela percebesse, voltavam espontaneamente ao natural.
a desculpa. Cristina percebendo o "risco" cuidava de rechear o — Que saque formidável, Dorinha! Quanto está?
silêncio. — Oito a seis. Não fala agora! E' a "negra"!
Dona Letícia marcou uma lição do tamanho dum bonde!
Cristina abria mais os olhos pequenos e verdes. Tinha a ca-
Vocês já viram? Guerra do Paraguai não se aprende só assim! Pre- beça como pêndulo. Ritmo infalível. Direita, esquerda, direita,
cisamos reelgmar. esquerda. A bolinha branca saltitava incessante, surrada pela ra-
— Deixa de ser tola, . Cristina — atalhava Rosinha. Com Dona quete. 0 peito de Cristina subia e descia como onda atormenta-
Letícia ninguém pode. E' uma fera! A gente decora ou deserta! da. A respiração era curta, rápida. E os seios (a razão de suas
Cristina se via salva. Graças a Deus desviara o perigo . desventuras), os seios despontavam livres sôbre a carne lisa do
Aquêle assunto de pasta a horrorizava. Perdia o fôlego. Porque busto. Vinham como frutos de duas sementes iguais, irrompendo
não queria que notassem. Tinha uma vergonha incrível. Tremia na pele., idreandõ-se, firmando-.se irreverentes e claros. Agora, fi-
só a ura olhar mais demorado. Em casa, curvava os ombros e as cavam. tumescentes e rijos quase a romper a blusa, Como flores
clavículas salientes pela posição forçada. que ameaçassem desabrochar simètricamente em quatro pétalas.
— Desce os ombros, Cristina! - a mãe gritava — que mania Doia. A vida, com certeza, latejava ali. Mas logo no pátio a. si-
é essa de andar tôda encolhida? Por detrás é ver um caramujo en- neta batia e ela se levantava atontada.
roscado! ]7m forma! — grilava a vigilante Eudóxia a bater palmas
Cristina automàticamente obedecia. Mas, daí a pouco, estava pelos corredores. As meninas enfileiravara-se risonhas e barulhen-
de novo procurando disfarçar. tas. Cristina, porém, não se alegrava; era uma ilha que tragicamen-
À noite, ao estudar as lições, ficava muito sofrida por causa te se isolara. Durante o resto da aula não compreendia mais nada.
daquela martelagem do pensamento. O teque teque do pingue-pongue sobrepunha-se às .explicações de
"Por que aquilo havia de nascer logo agora? Agora que iam
dona Letícia. Cada palavra que ela dizia parecia sair da bôea
passar as férias na praia, agora que Rosinha, Dora e Júlia tinham em forma de bolinha branca. A cabeça doia muito. Dentro, havia
organizado o time de vôlei, agora... Deus! Como usar maiô?. Na
de ter uma bol.a de pingue-pongue. Sem sossêgo. Teque, teque,
certa notariam. Iam dizer gracinhas, mexer com ela, atentar. As teque. . . teque. . .
blusas já estavam apertando. E, cada dia, êles ficavam maiores...
Era ver a hora dos vestidos romperem. Que horroí !
/]Síão sg gsqugÇcI de tomíir leite, menina a mae passava pia Naquela tarde, à saída, Rosinha segredou-lhe, ao portão;
rezar. E so fique até às nove. Não sei onde vai parar com .essa — Cristina, quero falar contigo.
Que é? e comprimiu ligeiramente a bolsa sôbre o peito.
magreza!
— Não nota que estou crescendo feito bananeira? — arriscava. Olha, tu não sabes, o Marcelo, aquêle de testa larga que
A senhora vê pelos meus vestidos: tudo curto. E preciso ir até às senta do meu lado?
dez, mamãe. Tenho prova amanhã. — Sei sim, que tem êle? — indagou sem qualquer juízo.
Êle me disse... bem — e fingiu hesitar procurando des-
— Não senhora, só até às nove.
— Mas mamãe, dona Letícia... pertar curiosidade.
-— Dona Letícia nada. Nove horas. Já disse. — Que disse êle? — perguntou já afobada. E' sôbre minha
Cristina emburrava. Metia o rosto no livro. As letras fu- pessoa?
giam. Lia o pensamento que êle não a descansava. — Naturalmente. Se fôsse sôbre a velha Eudóxia eu vinha te
"Infeliz! Muito infénz que ela era! Por que não tinha nascido procurar? — Rosinha tinha um jeito brusco; era sempre muito des-
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pachada. Cristina invejava a amiga. Mas logo se consolava. "Ela olhar de Marcelo. Tinha mudado de côr não sei quantas vêzes.
é mais nova do que eu. Quero ver quando tiver doze anos. Vai No caderno, o mar que ela coloria, transbordava, ameaçando in-
ficar asúm... Também é tão entanguida... " vadir uma terra pintada de marrom.
— Escuta, tu agora deste pra andar apatetada. 0 Marcelo raan- De repente, algo caiu em sua carteira. Apanhou disfarçada-
Oou perguntar se tu queres namorar com êle. mente. Era um pequeno envelope branco. Quis abri-lo. Não teve
— O quê?! Èle está ficando maluco? coragem. Pôs o envelope dentro dum livro. Marcelo a observava
— Parece que estou falando de coisa do outro mundo — mas mais que nunca; tinha agora um riso desconfiado. Cristina fêz
Cristina fez-se séria e a amiga puxou-a pelo braço. como quem mergulha a cabeça no mar imaginário, e bem desejou
— Vem cá. Debaixo daquela árvore a gente conversa melhor. que fôsse água de verdade.
Que sol mais danado!
— Conta logo. Aliás, isso não me interessa. (Estava mentindo). Dentro do envelope havia dois corações de cartolina. Uma
— Se não te interessa por que queres saber? seta os traspassavaj Num, estava escrito eu com tinta verde.
— E' se quiser contar. Se vens me amolar vou andando. Noutro, tu com tinta azul. Havia também um bilhete em letra in-
— Cristina, deixa de ser trouxa. Olha, vou te dizer o que certa e grossa:
Marcelo conversou. Foi assim: (Cristina fitava a bôca da amiga e
via os lábios de Marcelo a se moverem) disse, que na nossa clas- "Cristina, ■
se só tem pirralhada, que êle tem treze anos e meio, que não vai
namorar criança, que a Dora. é engraçadinha mas muito faladeira e se você aceita (aceita vinha escrito com s) o meu amor
que tu... a voz baixou de tom — és o tipo dêle... Bem, está dado me dê amanhã o seu coração. Se não quer me
o recado. Acho que não deves perder esta "chance". (Rosinha or- volte o meu.
gulhava-se de falar um "chance" americanizado). Marcelo é bamba
cm matemática. Além disso, tem máquina de retrato e um riso Marcelo."
lindo, Eu só não namoro com êle porque sei que me acha pirralha.
"Bamba em matemática, máquina de retrato, riso lindo" — À noite, Cristina pôs o envelope debaixo do travesseiro. Não
soavam como sinos em torres que para o céu se erguiam desa- tinha sossêgo. Daí a pouco tornou a tirá-lo. Colocou-o sôbre o
fiantes e móveis... Mas, foi como se clelirasse. Logo tornou, coração. Sentiu um pêso enorme. Os seios pareciam perdidos sob
assustada com a ousadia do pensamento. a camisola de laçarotes. .Fechou os olhos mansamente. Marcelo
— Está doida, Rosinha? Se mamãe soubesse eu morria de era o bamba em matemática. As outras eram pirralhas. Aos pou-
apanhar! cos, um riso alcançou a bôca de Cristina. Dormiu.
— E quem disse que ela vai saber? Só se tu disseres!
— Deus me livre! — "Bamba em matemática, riso lindo..." — Escola-Modêlo "Duque de Caxias". Algazarra geral no portão
soavam agora os sinos como em festa de largo, um largo imenso, de saída. Marcelo esperava na ponta da calçada, disfarçando. Ro-
com bandeirolas, carrocéis e lanternas multicores. sinha e Cristina, juntas se aproximavam. A primeira cochichou de
— Mas eu não sei namorar. repente:
— E' mesmo trouxa! Ninguém me ensinou e eu sei. Escuta, — Emrega agora. Fico espiando dali.
amanhã na certa êle vai te olhar (Cristina apertou a bolsa no seio Cristina, num passinho de boneca, distanciou-se da amiga.
em antecipada defesa). Tu olha também. Pronto. Se êle rir, Marcelo aguardava ansioso. Quando ela passou mais perto, mur-
ri também. murou :
— Mas Rosinha, se êle vier falar... — Cristina...
— Fala! Ela deixou cair qualquer coisa. Marcelo abaixou-se. Era o
—- Não, Rosinha, não quero. Meu Deus, amanhã vai ser hor- coração que êle queria. Suas mãos tremiam, frias e assustadas.
rível encontrar cora êle. — Cristina...
— Até amanhã, tola. Quando estiveres "posando" não te es- Esta voltou-se já no fim da calçada e, ao encontrar o "riso lin-
queças de me reservar uma chapa. do", inexplicavelmente a bolsa lhe foi escorregando das mãos...
E Rosinha, acenando irônica, saiu a correr. Cristina ficou um Mas, em vez de envergonhar-se como sempre, pareceu não perce-
instante a olhá-la. "Como que ela é sabida!" — pensou. Cuidou ber, porque Marcelo... bem, Marcelo olhava o nariz arrebitado, de-
porém de andar. Estava atrasada. pois ficava preso à blusa bnancai e, agora, voltava ao nariz que se
erguia triunfalmente vitorioso.
Aula de desenho. 'Cristina pintava de azul ura mar imaginário Como se ambos se adivinhassem, com a naturalidade que dá o
a se estender na folha branca do caderno. Desde o início conser- velho hábito se foram a andar, um ao lado do outro. Cristina ia
vara-se calada, cabeça baix;». Rosinhla, por duas vêzes a chamara, num passo harmonioso, tinha o busto ereto e o queixo levantado.
com desculpa de pedir emprestado a borracha. Sem se virar ela E foi ao atravessarem a larga avenida que ela perguntou:
estendia o braço para trás. Sabia que Rosinha se danava c/ora — Marcelo, você acha que -eu pareço caramujo enroscado?
isso. Queria que ela olhasse. Não podia. Estava sentindo o — Ora Cristina... que idéia! Nunca! Você ,é linda!
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tipisodio
Fernando SAB1NO
"IVTO DIA 4 de setembro Jaques Olivério chegou ao hotel onde
' morava pouco depois de duas horas da manhã. Era um
hotel que era última análise em nada diferia dos de sua espécie ou alto, despertando num quarto vizinho. Escutou ainda um baque
da redondeza. Um hotel como os outros — e fôra mesmo essa ob- surdo, e depois mais nada, o silêncio.
servação que o fizera optar por aquele, o primeiro que lhe caira Debruçou-se febrilmente na sacada e olhou para baixo. A prin-
sob os olhos no caminho da estação para a cidade, quando ura ano cípio nada viu senão uma forma escura sôbre a calçada, os ferros
antes se mudara para o Rio. Nunca se detivera muito em pesar ua marquise que circundava o hotel amassados e retorcidos na-
as qualidades ou defeitos do hotel; viera para ali pensando em mu- quele lugar. Seu coração disparava, não conseguia pensar orde-
dar-se tão logo se arranjasse de alguma maneira na nova vida que nadamente, apenas se inclinava mais, tentando ver. O seu quarto
iria levar. Mas o modesto emprego que conseguiu inicialmente era era situado no terceiro andar, e a rua apenas um beco imundo e
o mesmo até agora, de auxiliar da revisão num jornal, e não lhe pouquíssimo iluminado que fazia esquina com a rua do hotel. Cada
havia servido como oportunidade para galgar postos mais elevados, vez via menos, a idéia agora se repetia maquinalmente na sua ca-
como a princípio imaginara. Era preciso ceder lugar aos mais beça sem despertar-lhe nenhuma reação; "alguém caiu lá de cima",
novos — justamente nisso vinha pensando naquela como em outras "alguém caiu lá de cima". Olhou para o alto, viu que no quarto
noites, de volta do serviço, enquanto ganhava a Lapa, cruzava os diretamente superior ao seu a luz estava acesa, a veneziana ainda
Arcos e percorria" longamente a pé a avenida Mem de Sá até atin- oscilava de leve, como se alguém a tivesse sacudido pouco antes.
gir o hotel. Às vêzes, quando regressava mais cedo, acontecia se Nem um minuto havia passado, e no entanto lhe parecia haver já
deter num bar para beber qualquer coisa, sem nenhuma pressa, decorrido horas desde que aquela coisa gritantemente vermelha pas-
justamente para matar o tempo e aguardar o sono, que o hábito sara como um raio diante de seus olhos, a voz do homem gritando
forçado de só dormir pouco antes de nascer o dia acabara pre- "que barulho, meu Deus" —- e agora aquêle silêncio.
judicando. Tornou a olhar para a rua. Mas seria mesmo "alguém"? —-
Dessa vez, porém, se recolhera mais cedo que de costume — pensava então. Contemplou as janelas das escuras casas em fren-
só o notou quando, já no quarto, dava corda ao relógio e o colo- te, sinistramente fechadas, cora as do próprio hotel, o silêncio cada
cava sôbre o criado-mudo. Chegou a pensar em sair novamente, vez mais angustiante, pesando como uma atmosfera dissolvente de
mas de súbito um tédio de tudo, de todos os gestos, dos pensamen- fatalidade ao redor de si.
tos mais simples, o assaltou de maneira impiedosa. Despiu-se com- A música distante já não se fazia ouvir, agora o que lhe che-
pletamente, ia vestir o pijama, mas mudou de idéia e estendeu-se gavam eram passos na noite, vindos de longe, cada vez mais ní-
na cama assim mesmo nu, pondo-se a pensar; "Um ano já se pas- tidos, cadeneiados. Seus sentidos se dilataram, tentando distin-
sou e até hoje não consegui esquecer. Nunca esquecerei, hei de' guir quem seria aquêle que viria agora, por onde êle viria. Em
querer sempre voltar. O jeito seria acabar comigo de uma vez, pouco um vulto assomou na outra esquina do beco, afravessou-o
acabar com isso, seria o jeito." Â força de repisá-las, tôdas as diagonalmente, ganhou a calçada do hotel. Ao "passa, .,.,h o globo
noites, sentia-se já cansado dessas e de outras idéias fragmentadas cie luz pôde vê-lo, era um rapaz, caminhava de mãos nos bolsos, as-
que agora lhe acudiam. Estendeu o braço e apagou a luz. "Se ao sobiando baixinho. Aproximava-se cada vez mais do volume
menos alguma coisa acontecesse! Alguma coisa de diferente, de curo sob o chão, Jaques sustinha a respiração na sacada, assns-
único, que eu não vejo todos os dias. Mas não. No máximo pode- Uido, ansioso. Súbito o assobio se deteve em meio, os passos tam-
rei estar aqui amanhã, nestó mesma posição". bém se detiveram — o rapaz olhava com surpreza hesitante o vulto
Passou a mão pelo peito magro, olhou para a^pequenina sacada estendido a poucos metros, receoso de chegar-se mais. Tudo es-
por onde uma lua meio oculta entre nuvens repontava, num dos curo, quase não se podia ver. Ganhou coragem, deu mais alguns
ângulos, projetando uma claridade fraca e informe pelo chão do passos, curvou-se, riscou um fósforo. Na repentina claridade os-
quarto. "Se há uma coisa besta nesse mundo, essa coisa é a lua", cilante da chama, como o rapaz, pôde Jaques da janela distinguir
pensou. De longe lhe chegava aos ouvidos o som de "blues" to- um vestido vermelho violentamente arregaçado, duas pernas bran-
cados em algum cabaret. Sentiu apossar-se dêle um ódio irrepri- cas estendidas, parte do corpo que sua vista alcançava por sôbre a
mível da vida, dos homens. "Dançam em cabarets, tocam música, marquesa caído de bruços entre o meio-fio e a sargeta... A chama
fazem sonetos à lua, amam, brincam, se divertem, e eu aqui sem se extinguiu logo, o rapaz olhava para um lado e para outro, deses-
fazer nada". Sob a mão espalmada no peito nu, a aspereza dos perado, sem saber o que fazer •— não vendo ninguém disparou a
pêlos lhe dava a impressão de estar tocando o corpo de outra pes- correr, desaparecendo na esquina. Jaques sentia o corpo tremer,
soa. Ergueu a cabeça e olhou na penumbra para as próprias per- as temperas latejando, não lhe ocorria nenhuma idéia. Era uma
nas estendidas, a ponta dos pés voltadas para cima. De repente, mulher! Uma mulher caira lá de cima, via nitidamente agora parte
sem o mínimo propósito, e sem que êle esperasse, lhe vera uma do seu corpo, o vestido suspenso, as pernas estendidas... Teve a
percepção múltipla e violenta da morte. impressão de que uma delas se mexia, julgou haver-se enganado.
"A morte, a morte física, a vida sé esvaindo, apagando-se agora, Mas agora também a outra perna, parecia que se encolhera total-
neste instante", pensou. "Nada mais rfestando senão a própria mor- mente... Então ela estava viva!
te, se prolongando na vibração do vazio completado". Não sabe Quanto tempo estaria ali olhando? 0 que era preciso fazer?
porque lhe veio êsse pensamento, sente tudo quieto, parado ao redor Não sabia, não sabia nada, olhava apenas, ainda sem compreender.
ne si, como se tivesse surpreendido o tempo num instante de tran- Estranhou pela primeira vez ninguém mais ter visto senão êle, nin-
sição, expondo a nu a inútil realidade das coisas, numa vida que guém ter aparecido em outras janelas. Uma mulher caira lá de
já não lhe oferecia sentido algum. A sensação de mal-estar que lhe cima, e ninguém aparecia. Lá de cima, do quarto andar de sú-
veio em seguida é tão penosa e insuportável que se levanta para bito se impôs à sua mente perplexa a necessidade urgente de fazer
sacudir o torpor, caminha assim mesmo despido até a janela. Nesse alguma coisa, de avisar, chamar os outros. Voltou-se, ia saindo
mesmo momento, sem que um segundo houvesse decorrido, alguma do quarto, só então se lembrou de que estava completamente des-
coisa vermelha e informe, como um saco, passa vertiginosamente a pido. Vestiu apressadamente uma capa de chuva sôbre o corpo,
menos de dois metros de seu rosto, ouve-se o ruído violento de uma ganhou o corredor, precipitou-se até o telefone. O porteiro do
pancada em ferros e latas. "Meus Deus, que barulho", alguém falou hotel o atendeu com voz sonolenta.
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— Uma mulher caiu lá de cima, do quarto andar! Corra lá brotados da terra àquela hora da madrugada, em breve uma peque-
fora! na multidão se comprimia ao redor do corpo. O guarda se afastou
— Aonde? 0 que? — perguntou o homem, espantado, já com- correndo, ouvia-se um perguntar incessante de janela à janelà, al-
pletamente desperto. guém a seu lado explicava:
— Eu bem ouvi um barulho, quando o corpo bateu na coberta.
— Caiu lá de cima! Aí fora, no beco. A ambulância que o guarda fôra chamar chegou logo, em dis-
Repôs o fone no gancho, voltou correndo para a sacada, es- parada, dois enfermeiros de branco abriram caminho, recolheram
perando angustiadamente o porteiro aparecer na esquina. "Vai ver cuidadosamente a mulher, e se foram de novo, como chegaram.
que o imbecil..." Nem teve tempo de pensar: o porteiro surgira Comentários partiam ainda de um e de outro lado, agora mais es-
a correr, da outra esquina apontara como por encanto um guarda- paçados, as janelas começaram a se fechar. Lá na rua o povo se
civil também a correr. Agora janelas se abriam no hotel e nas afastava, aos grupos de dois e três, conversando.
casas fronteiras, luzes se acendiam aqui e ali ao longo do beco, Dentro em pouco tudo serenava, como se nada houvesse acon-
caras sonolentas assomavam. Das esquinas surgiam curiosos como tecido .
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"E agora, José?"
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frimento estúpido de se ver destituído das "mentiras vitais". E* ou um físico. Se começa a achar tudo muito esquisito, é possível
apenas uma expressão de Ibsen. Mas como doi". que dê um poeta. Quando Newton viu a maçã cair, quis compre-
— Que relações podem ou devem existir entre Arte e Política? ender o mundo: descobriu uma lei e tornou-se um cientista. Se
"Entre Política e Arte arte verdadeira, há um divorcio tido êle fôsse poeta, acharia somente muito estranho o fato de as maçãs
pelo próprio conteúdo de uma coisa e outra. As relações possíveis caírem. E escrevia um soneto.
são fortuítas, simples aventuras amorosas que não justificara um A arte é um luxo. A política e a ciência são fatalidades ne-
cessárias. Para o artista, as coisas são o que ele imagina. A fan-
matrimônio. Há, como disse, um impedimento básico. A política
tasia é o seu negócio. Mesmo numa "arte inteligente" o que se
é uma técnica, uma arte de inteligência. Ora, o que caracterizou
requerer é a lógica misteriosa da imaginação. Já para o político,
até hoje o artista é a "falta de inteligência", a ausência de técnica antagônicamente, as coisas devem ser o que são. Mas já se falou
cognoscitiva, enfim a incompreensão e não a compreenisão, que é tanto nesse assunto, já se discutiu de tal maneira, que é melhor ter-
um privilégio dos políticos e dos cientistas. Se uma criança co- minar. Além disso, não gosto de perguntas. Quando respondo a
meça à entender o mundo, é provável que acabe um revolucionário elas, tenho a desagradável impressão de estar mentindo."
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Terceiro Poema
Wilson de FIGUEIREDO
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eram possuídos de um silêncio corporal que me advertia.
E foi somente então que compreendi que em breve seria tarde demais.
Desenho
^ linha no papel
corre justa exata
livre ressalta
a orgânica forma.
A figura aparece
no espaço limitada
e a mão que traça
esconde a intenção.
Impossíveis labirintos
ou altos sobrados
da alma os segredos
jamais bem guardados.
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Povo e Poema
Hélio PELIEGRINO
T30RQUE não dizer povo! povo! com os lábios ardendo e o coração à espera do milagre?
Porque não dizer — povo! — vendo a rápida multiplicação das sombras nas árvores,
E o canto recortado de um pássaro sem luz?
Do sentimento da morte nasce o grito — povo! — e se curva, depois, à sombra dos abismos,
Com um abraço de sal, com lágrima e soluço;
Povo na rosa, no diadema, na conversa
Que absorve o couro de animais sacrificados.
Povo nos parques lentos onde a brisa
E' calma e amor e passo desvelado.
Povo ao sol, em largos passos flexíveis,
Em avanço e recuo de respirações elementares.
Porque a traição dos pomos de ouro? E a deserção da prata e a voz tombada.
Sangrando como látegos abertos?
Porque a voz ciosa das artérias,
Fechadas como canais de sombra, como a angústia
De noite e precipício sem vertente?
Povo! — na espiga de milho dourado pelo sol -— povo!
No tronco das árvores um novo nome de amor — povol
Nas águas a inscrição de esperança, a voz da treva,
O passo, a lama, o sofrimento — povo!
Um movimento velado acende a vida
De nova côr, de nova nostalgia —
Porque não gritar ainda -— povo! — se há um muro caido e pouco musgo,
E a mesma sêde em mãos que se compreendem,
E a viagem do amor, no mesmo mar sombrio,
Marcado pelo punho dos vendidos?
Porque não giãtar — povo! — vendo o trigo esquecer a sua origem.
Vendo o pássaro negado, o sol cuspido
Pelo arroto de bárbaros pançudos?
Povo! — no gosto do petróleo — povo!
Na escureza das minas, nos embates
Da água contra pedras inseguras — povol
No cais, nos porões desmantelados,
Na fúria elementar das tempestades
Negras de negro acento — ainda povo!
Nas fábricas, na tosse do suicida
Resistindo à injustiça, no protesto
Que se ergue com o peito de um possesso — povol
Na calma dos domingos, no passeio
Vestido de humildade, no segredo
Que em sorriso se afasta, na doçura
Da tarde onde se esquece a mão crescida — povo!
Povo, povo, sangue e diadema, sol quebrado
Palma de glória, fogo que se acende
No calor da justiça, povo, povo,
Na marcha, na avançada, no silêncio —
Sempre povo
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Marco final
Ofávio ALVARENGA
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Os pensamentos perigosos
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existe no domínio das idéias. E' a região proibida onde o perigo tistas que se deixam prender até agora. Não foram capazes de se
espreita, o homem em todos os seus passos. Interessante é que os despojar de um manto de fantasia, alguns por temor d-e uma vida
antigos denominavam o ponto extremo até onde se podia chegar sem os falsos encantos dados pela sua imaginação ou formação
em viagens marítimas de Cabo Não. No terreno ideológico a de- defeituosa. Não se espantaram ainda.
nominação é tanto mais perfeita, pois a região começa bem naquele Alguns espíritos em que o amor à sutileza é mais forte que
ponto em que o homem se rebela e nega. Quando a sua voz se er- o amor à verdade costumam dizer, fazendo jôgo de inteligência,
gue contra o que lhe impunham e passa a procurar por conta que o homem é sempre prêsa de crenças dogmáticas. Para todos
própria. Há uma grandeza enorme nessa atitude de revolta. Co- há, pois, zonas perigosas de pensamento que não admitem to-
mo em todas rs revoltas, aliás. Não é atôa que dizem que Lueifer que. Se têm os olhos em muitos que se dizem livres não há dú-
era o mais belo dos anjos. vida que têm razão. Se querem atingir a todos, porém, incidem em
A procura 6 dificultada, em primeiro lugar, por conta pró- erro. Há uma posição pelo menos em que não há atitudes de su-
pria. 0 indivíduo já formado mal consegue se libertar da carga ficiência, de julgamentos definitivos, a não ser quando mal com-
que o impede viver como desejaria e muitas vezes não há psica- preendida-. Apesar de uma crença firme em certo ideal que apela
nálise que consiga- a transformação: o indivíduo compreende para todas as energias e as põe em movimento, apesar da luta
apenas mas não faz avanço. Não há, portanto, superação. A não sem descanso por uma estréia que brilha distante, não há dog-ma-
ser que consideremos a simples compreensão como superação. E t-ismos ou -endeusamentos. Nenhuma atitude mística ou fuga ro-
o que importa é vencer êsse impedimento. Vencido, o indivíduo mântica, mas apenas resultado de análise racional que leva à
pode então se realizar. ação com lucidez. Ademais, não se tratai de nenhuma atividade
lotalizadora, de uma dessas "verdades eternas" que animam os
Não fica aí, contudo, a ação que contraria a manifestação espíritos crentes. Trata-se de uma solução para o momento e que
completa da personalidade humana. Há ainda obstáculos exterio- pode ficar — e não temos dúvida nenhuma que ficará, sem cren-
res, resultantes mais diretos da organização da sociedade e que ça religiosa, — como método, como maneira de encarar as coisas,
se apresentam como forças coercitivas. Não é prèciso adotar a es- como uma posição do espírito que vive a analisar tudo, sem mes-
cola de Durkheim para reconhecer que a coerção social é um fato mo se poupar. Sem quaisquer preconceitos, portanto. Quando ama-
que tem de ser considerado. Era certos temas é proibido pensar; nhã os problemas forem outros e a realidade fôr de1 todo diferente
muito menos pensar alto. Ainda nos nossos dias, nos centros mais subsistirá ainda, não sabemfos era que forma. Em sua substância
adiantados, há assuntos cujo tratamento é vedado: o indivíduo mais íntima tem a autenticidade que os fatos, por mais contradi-
que ousa tocá-los recebe marca e fica como cidadão pernicioso tórios que sejam, só fazem confirmar. Verdade eterna? Absoluta-
que é preciso evitar. E' que êle desafiou passando dos limites, to- mente não, salvo terminologia imprópria.
cou cora mão profana no santuário intocável. E' sem receio de qualquer espécie que o estudioso ou o homem
As proibições variam de pais a país, de lugar a lugar, de tem- simplesmente se entrega à vida ou ao trabalho. Para êle não deve
pos em tempos. Ontem pecado, hoje coisa normal como costume, haver zonas perigosas: todas as partes do mar são navegáveis e as
amanhã relíquia de arquivos. Há forças interessadas na manuten- minas explosivas ou os redemoinhos fatídicos só existem para os
ção de certa ordem que tudo fazem para impedir a divulgação ou incautos ou inexperientes. Longe de nós a pregação da inteligência
o desenvolvimento de certas idéias. Consideram-nas perigosas ao como jôgo gratuito, volúpia ou divertimento capaz de pôr de lado o
seu poder, tementes de possível abalo. E nao há duvida que têm tédio. Menos ainda como dissolução, abandono de tôdas as normas
iüzão. Como medida preventiva tolhem logo qualquer possibilida- e princípios numa subversão de valores pelo simples gôsto de de-
de de pregação das idéias que temem, cercando-as de uma auréo- sordem. Não é o gôsto de fruto proibido que nos anima na análise
la de pecado ou de crime grave. de todos os temas; não é o gôsto único de fazer aquilo que fora
0 melhor -exemplo dèsse procedimento cremos encontrar no proibido fazer, como brincadeira s-em conseqüência.
que foi feito no Japão. Conta Louis Wirth, Pt-ofessor da Universi- A experiência que o mundo inicia agora, muitas vêzes denun-
dade de Chicago, que os dirigentes daquele país, interessados em ciada como perigo ou obra demoníaca, se decompõe em inúmeras
seu progresso e desejosos de figurar no plano internacional com perspectivas. Até onde se chegará? Impossível resposta. Só estamos
o exercício do perigoso imperialismo amarelo, trataram de domi- certos que se traía de algo profundamente novo e de que é a única
nar tôda a técnica do Ocidente; não houve conquista que não coisa que tem vitalidade hoje. Basta considerar que os que a com-
absorvessem -em sua ânsia de equiparação a outros povos. Man- batem o fazem em nome do passado, das glórias que viveram um
dando os s-eus filhos buscar instrução no estrangeiro, recebendo clia; não apresentam possibilidades para o futuro. Enquanto nós
as suas lições, os dirigentes nipônicos impediam a entrada na vivemos em função dêsse futuro e do que achamos haver de grande
ilha das idéias ocidentais; nada daquelas extravagâncias que os no passado ou no presente. E' a nossa vitalidade que nos torna pos-
filósofos pregavam, falsas noções de autoridade e liberdade. A essa sível o espanto. Podemos sentir espanto diante das coisas, enquan-
parte do pensamento que poria em jôgo o domínio aberto e comple- to outros só sentem temor. Foi Joaquim Nabuco que, em um de seus
to das classes dirigentes abjuraram como idéias nocivas e deram pensamentos que Machado de Assis mais apreciava, disse que a mo-
o nome de "klkenshiso"; os "pensamentos perigpsos". E o Ja- cidade era o espanto diante da- vida. E nós sabemos o que é o espan-
pão tornou conhecimento da técnica, em poucos anos se firmou to. Não só sabemos como temos ainda a coragem de proclamá-lo
•como potência e a ordem social injusta e primitiva continuou Outros rirão e não há de faltar mesmo quem passe um atestado so-
sem modificações. lene de pobreza mental. Ou liquide o Eissunto dizendo tratar-se de
Todos os países têm também a sua "zona de perigo". E' mes- arroubo adolescente. Não faz mal, questão de palavras, de julga-
mo êsse o motivo que faz com que as ciências sociais sejam mais mento apenas. A que poderemos responder com desprêzo dizendo
estacionárias que as ciências naturais. E' que nelas as transfor- ser opinião de quem tudo teme e só se alimenta do mêdo que se
mações têm repercussão ampla, pondo em cheque muitas vêzes consome incolor. E, questão de julgamento ainda: palavras de ve-
tôda uma ordem social. Karl Marx estava certo ao dizer que as lho; senilidade que só pode causar dó.
Afinei, de tôda essa experiência, coletiva ou individual, aven-
idéias que governam uma época são as idéias de suas classes di-
rigentes. E são as classes dirigentes, elas principalmente, que te- tura do espírito ou realização efetiva, 0 que restará? O desespêro
mem as idéias novas, tornando-as fantasmas com que pretendera inútil? A volta a oponto de partida? Não cremos. Se esta se realizar,
assustar o pobre homem que não teve oportunidade de s-e instruir. no entEinto', não será — estamos certos — como a volta arrependi-
0 que é lamentável é que muitos que tiveram ocasião de estudar da e derrotada do filho pródigo que a Bíblia apresenta. Não haverá
arrependimento — mas cansaço —, nem a detestável recepção fes-
ainda não se tenham libertado de sombras e se atemorizem com
tiva. A parábola da criação de Gide para nós tem mais autenticida-
a ameaça de fantasmas. De tudo, o que há de mais entristecedor
é a certeza de que hâ grandes inteligências e sensibilidades de ar- de. Se o retorno fôr a última solução só há de restar a certeza de
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que o caminho não foi bem tentado e que tudo não passou de êrro, revolta. O fracasso da nossa experiência será a luz que lhe evitará
a não ser a revolta e a conseqüente fuga. O que não dizer que o os tropeços que encontramos e lhe apresentaremos como auxilio, da
ponto que existia antes e torna a existir agora seja uma verdade. mesma forma que o filho que voltara segurava a luz que havia de
Será bastante mais amargo, mas talvez já estejamos suficientemente iluminar ao irmão mais moço os degraus da escada' na fuga liber-
batido para não nos importarmos nem com êle. E como na tentado- tadora que realizava aproveitando-se da noite. Irá cora êle o nosso
ra cena gidiana nada mais faremos que entusiasmar o que quiser protesto, o protesto de todos os homens que não se conformam. E
partir ainda — haverá sempre —, tentar a nova vida que começa da a solução há de ser certa um dia.
Filosofia e História
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zendo ao presente, muna visão sistemática, um passado uno e ver- preensão do presente temos de buscá-la no passado. E nisto con-
dadeiro. siste a essência da função da história, que é um reconhecimento de
O reconhecimento do vinculo que liga tôdas as idades, da con- nós mesmos, a análise introspectiva de nassa auto-consciência.
tinuidade do fluxo da vida que prende todos os fenômenos no es- Èste o significado da chamada contemporaneidade da história, o da
paço e mantém no tempo a fusão de tôdas a» épocas, a noção da sua correspondência a um interôsse vivo e presente.
"durée" para usarmos a terminologia bergsoniana, a compreensão Esta, aliás, como já se observou, é uma das técnicas dominan-
de que as idades, filhas do tempo, apresentem as conquistas do pas- tes no pensamento moderno e que, no plano subjetivo, tçm sido o
sado, procurando avançar ativamente na direção do futuro; a con- caminho do romance contemporâneo de Proust, Virgínia Woolf e
cepção de que, na evoluçâoi das artes e das ciências, o resultado das Joyce — essa concentração de todos os dias num só dia, esta inser-
atividades anteriores se transformam' sempre num instrumento da ção do passado no presente, procurando captar o tempo perdido,
atividade posterior de novas conquistas, resultou da teoria do pro- para exprimí-lo através de uma categoria de atualidade, constatação
gresso, da afirmação da continuidade do desenvolvimento intelectual psicológica e metafísica que é evidente na vida dos homens como
e práticoi do gênero humano. "A Humanidade, — dizia LEIBNITZ, na vida dos povos.
— é como um homem que vive sempre a aprender continuamente; A unidade da história com a filosofia não poderá ser encon-
em todos os momentos é ainda filha do passado, está vivendo o pre- trada nas investigações particulares, mas só na visão total da his-
sente e já está grávida do futuro." tória. A interpretação filosófica é visada sintética. A história nos
O princípio de continuidade da história é assim afirmado por explica a formação da cultura humana e a filosofia procura o sen-
LEIBNITZ tão claramente quanto o será pelos representantes clás- tido desta cultura, e nisso consiste o elo que as une, indissohivel-
sicos da teoria do progresso no século XVIII: — TURGOT e CON- mente.
UORCET — preparando a visão de LESSING, para quem a histórh, O verdadeiro estudo da história, ainda mesmo no campo da
era urna "Educação Progressiva do Gênero Humano", como indica própria filosofia, tem que ser genérico e ■orográfico. E nisto está
expressivamente o título do seu livro, e o conceito da história, como o valor da história da filosofia que nos apresenta, através da suceis-
uma cadeia de cultura que une todos os povos e tem por fim a Hu- são dos sistemas, o desenvolvimento compreensivo dos problemas.
manidade. E' uma história particular que, inquestionavelmente, tem o seu do-
A continuidade do viver histórico é conhecida, hoje não apenas mínio próprio, mas não está isolada do desenvolvimento total. Ne-
como a raiz das ciências históricas, da sua visão das coisas, nas suas nhuma história particular, ajheia à história universal, é verdadeira.
transformações e nas suas descobertas. Esta excursão através das Uma história da fisolofia profundamente pensada é tôda a his-
perspectivas, e horizontes do homem histórico, bem como através tória —• igualmente uma história da literatura ou de qualquer outro
ainda do seu presente, na medida em que êsse o impele para o fu- aspecto da cultura não porque acumule em si as outras, senão por-
turo, e enfim ainda, através do seu mundo histórico em cada mo- que tôdas as outras estão presentes nela, e disso resulta a necessi-
mento, a "situação" em uma palavra, é que hoje é apresentada como dade de os historiadores se tornarem espíritos universais, e o repú-
o fecundo fundamento de tôdas as ciências históricas. Pode-se di- dio, conseqüente dos historiadores especialistas, exclusivamente filó-
zer que a história nada mais é do que um constrnte esforço da exis- sofos, exclusivamente literatos, exclusivamente economistas, etc., os
tência humana para se compreender a si mesma e para do passâao quais, precisamente pela unilateralidade de sua visão, não podem
extrair o seu sentido da vida. compreender sequer a especialidade que pretendem conhecer èm sua
A história é a vida desenrolando-se no tempo diante de nossos pureza, pois êles ouvem o galo cantar, mas não sabem onde.
olhos; ela tem ura longo passado, mas também pòssue um iutensís- Só se compreende modernamente uma história da filosofia que
simo presente. O presente c o passado se fundem na mesma cor- abarque e esgote tôda a vida material e moral do período a que .-:e
rente evolutiv ; um não pode ser compreendido isem o outro. refere. Cada história particular projeta os seus raios para iluminar
O presente sem o passado não tem sentido. O passado sem o um centro no campo vastíssimo da evolução humana, mas dêste toco
presente não tem vida. O presente é uma continuação e uma atua- central a luz tem que irradiar-se sôbre todo o restante para que a po-
lização da própria história. sição e o movimento interior do campo que se observa possa ser com-
SPENGLER, ao esboçar a sua concepção circular da história, preendido e explicado adequadamente.
baseada num estudo comparativo de tôdas as culturas do Oriente e A história só alcança a isua grande função e o seu grande valor
do Ocidente, vivas e mortas, passadas e presentes, e de cujas varia- quando concebida como a atualizaçãp permanente da essência do
ções, no espaço e no tempo êle retirou um sentido novo para a inter- homem e da cultura, daquela essência sintetizada nas duas catego-
pretação do mundo real, concebeu o universo inteiro como história rias do ser humano de Heidegger; a existência banal e a existên-
e fêz dela a explicação, viva da natureza humana, na totalidade das cia autêntica.
suas manifestações espirituais e materiais, sociais e individuais. A Essa concepção composta da história transformou-a num ins-
vida é função da história. Todo sêr vivo, indivíduo ou sociedade, trumento de melhor compreensão do homem, porque, como dizia Dil-
é uma história que se desenrola, sempre atual em cada momento, they, "não é pela introispecção que podemos apreender a natureza
novo, sempre viva através da influência permanente que exerce sôbre do homem, mas só pela história." Só pela história chegaremos a
a formação das gerações e sôbre todos os elementos da cultura. compreendê-lo na sua grandeza e na imensidade das suas misérias.
Resulta da compreensão da indivisibilidade do tempo — de que -A história poderia dizer como Terêncio: "nada do que é humano
tudo é presente, que estamos vivendo a cada momento o passado, o me é estranho."
presente e o futuro "o Eterno do presente e o presente no eterno", No seu esforço heróico para compreender-se a si mesmo e ao
na fórmula de Kierkegaard — que para a consciência de si mesma cenário da sua ação, quando busca no passado um sentido para a
a humanidade tem que tomar consciência da sua evolução. A com- vida, o homem encontra na história a melhor de tôdas as filosofias.
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Bilhete aos ainda mais
CINEMA
novos
Ponfes de PAULA LIMA
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de Minas
O , que é a Faculdade de Filosofia — Não só filosofia, mas iambém ciências e lefras — Esfudo e compreensão
dos mais altos problemas—Os alunos e professores na inlimidade de sua vida escolar.
Ia-se à Faculdade de Filosofia de ônibus. Um ônibus matinal sobem conosco. E mais uma logo na entrada, onde moças e rapazes
e alegre como nos contava uma reportagem de "Folha de Minas" aguardam a aula. Camaradagem e compreensão, vontade de se apro-
«m janeiro de 42. Funcionava no Colégio Marconi e atraia por sua ximarem. Contudo o professor Eduardo Frieiro iniciará uma aula,
calma e tranqüilidade. Somente se agitava no riso envolvente das uma oportunidade excelente. O ilustre escritor mineiro ensina li-
moças, na simpatia agradável dos rapazes. teratura, no curso vestibular, e letras espanholas, na secção de lín-
Hoje, a história se contaria da mesma forma. Apenas um hovo guas e literaturas neo-latinas.
prédio, um novo abrigo comporta a Faculdade: A Escola Normal Eduardo Frieiro começa por ministrar noções gerais, que o
Modêlo. programa pede para o vestibular. Que magnífica aula nos dá sôbre
Na calma dignidade de suas linhas serenas, cercado de tufos o função que desempenham, na atividade literária, os sentidos, a
de verduras, num dos recantos de Belo Horizonte mais convidativos imaginação, a memória! Fala pausadamente, com clareza, acentuan-
ao estudo e à meditação, o prédio da Escola Normal assegura clima do as palavras. Faz largas digressões. 0 fotógrafo aproveita e bate
favorável e atraente ao desenvolvimento de sua obra de inteligência uma chapa, enquanto Eduardo Frieiro escreve no quadro, para que
e cultura. os alunos a fixem, uma "boutade" de Anatole. 0 velho bruxo de
Vila Said quis realçar o valor das emoções que a arte nos proporcio-
UM EQUIVOCO LAMENTÁVEL- na. Terminada a aula, ■abeiramo-nos do autor de "Ilusão Literária",
para pedir-lhe algumas impressões.
Foi o que nos levou a tentar esta reportagem. E também, o equí-
voco, perfeitamente lamentável, que nos cerca quando se fala em FLOR E REMATE DO ENSINO SECUNDÁRIO EM MINAS
Faculdade de Filosofia. Mesmo as pessoas que se supõem informa-
— Contente com a Faculdade? perguntamos.
das imaginam que se trata exclusivamente de um instituto para
— Contentíssimo, como aliás o estão todos os meus compa-
pesquisas metafísicas, onde os jovens mergulham em lucubrações
profundas e estéreis sôbre a natureza do ser ou a "coisa em si". nheiros do corpo docente. Todos nós estamos empenhados numa
tarefa idealista, desinteressada, numa verdadeira campanha, de fé.
Mas êsse estudo de Filosofia, êsse terror para as inteligências
Todos nós estamos levando ao triunfo esta campanha, com fervor
medrosas, apenas se faz em uma das secções da Faculdade, que são de crentes. Uns, como o professor Bra-z Pellegrino e o Aii.n cio ,
e-m número de doze. Nas demais, ministram-se cursos de Ciências por exemplo, crêem duro como ferro nos altos destinos . ai?
Naturais, Matemática, Línguas e. Literatura, tendo além do mais, Faculdade e agem em conseqüência, lutam pertinazmen . c ,àé se
"m objetivo bem prático e imediato de formar professores capaci-
sacrificam. Outros, como eu, crêem beatificamenle na feliz predes-
tados para o ensino secundário.
tinação de um instituto que há muito deveria ser uma bela realida-
Nenhum estabelecimento, portanto, entre nós, se torna tão ne-
de — flor e remate do ensino universitário em Minas. Eu por mim
cessário no momento, poi- não é acerliva apressada o afirmar-se
ser da qualidade do ensino secundário que depende a do ensino tenho outro motivo especial de contentamento: o de professor numa
Faculdade — a literatura, de minha maior predileção — a espanholai
superior e, particularmente, a de uma infinidade de cursos técnicos
de que tanto necessita o Brasil atual. — E está satisfeito com o resultado de seu ensino?
A Faculdade de Filosofia visa, assim, a formação de profes- — Muito. Tive turmas pequenas, mas de primeira ordem. Este
sores em todos ramos. ano a. turma será grande, também da melhor qualidade, oriunda de
vários ginásios da Capital e do interior. Alguns dos matriculados
Até agora, nossos professores não se forraram ao mal do auto-
são detentores do "Prêmio Faculdade de Filosofia de Minas Gerais",
didatismo e da improvisão. Daí, conseqüências desastrosas para
o ensino: falsas vocações, .preparo insuficiente, orientação capri- concedido por êste instituto aos melhores alunos de ginásios do Es-
chosa, ausência de técnica didática. tado. Estou dando agora, na Faculdade, um breve curso de litera-
Este, como já dissemos, o seu fira precípuo: formar professo- tura a estudantes que se preparam ao vestibular. E' uma turma
res capazes, imunes aos inconvenientes da improvisação. numerosa e no olhar inteligente e atento dos jovens que o freqüen-
tam eu noto curiosidade do espírito, o desejo de conhecer, a vonta-
de de .exercitar as faculdades da inteligência que precisam de cons-
O ESTUDO DESINTERESSADO tante exercício, porque senão enferrujam e se tornam imprestáveis.
Não quer isto dizer que a Faculdade menospreze os estudos REFUGIAMO-NOS EM TEÓCRITO
desinteressados. Aqueles que têm, por natural pendor do espírito,
preferência pelas investigações superiores da inteligência, não ins- De uma aula de grego do professor José Altiminas, saem juntos
piradas pelo imediatismo, ali encontrarão ambiente propício para o professor Artur Veloso, o poeta Emílio Moura e o romancista Ciro
a sua atividade intelectual. Diga-se, de passagem, que nenhum es- dos Anjos.
tudo é propriamente desinteressado: foi contemplando o céu, por Surpreendemo-nos. 0 professor Eduardo Frieiro se afasta e
mero sentimento estético, que os homens descobriram as leis que perguntamos aos que se aproximam se também êles são alunos.
régem o curso dos astros. >— Por que não? respondeu-nos Artur Veloso. Somos professo-
res e também alunos. Acompanhamos as aulas do nosso amigo Alti-
OS PROFESSORES EM ATIVIDADE miras. Não imagina como é delicioso o grego antigo nesses tempos
agitados. Refugíamo-nos em Teócrito... Entretanto, se quizerem
Mas, começamos a subir os degraus da Faculdade e logo fica- poetas belicosos, podemos também fornecer-lhes o elegíaco Tirteu,
tnos um pouco para trás e batemos uma chapa — de alunos que ou seu contemporâneo Calino de Efeso. A Grécia dá de tudo...
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OUVINDO ALUNOS tamente. Já é indiscutível a importância que ela adquiriu no desen-
volvimento da cultura em Minas. Por isso, somente o fortalecimen-
Alguns alunos conversa,vam num grupo, com os professores to e ampliação de nossa Faculdade permitlr-nos-ia a formação de
Mário Casassanta, Wilson Castelo Branco e Hilton Cardoso. Acerca- uma verdadeira universidade do tipo moderno, permitindo por ou-
mo-nos dêles. Queríamos a opinião dos jovens que freqüentam a tra parte, um coordenamento mais fácil dos valores mais reais e
Faculdade. positivos que temos.
A senhorita Clarisse J. Santos, vestibular para ai secção de Para terminar Cristiano Nogueira Filho, também do curso de
Matemática, afirmou: — "Gostando muito. Pensava antes que nos neo-latinas, responde-nos:
saturariam de problemas de soluções metafísicas e pouco matemá- — Penso que seria preciso que a mocidade nos visitasse. Nos-
ticas. Isso me amedrontava. Mas, o que nos teem feito é estudar sos e nossas colegas de colégio nunca souberam o que é Faculdade
muita álgebra, muito mais do que poderíamos imaginar". de Filosofia. Eis o único motivo por que, ás vezes, não vêem
E Agenor Soares dos Santos, recém diplomado pelo curso de pana cá.
letras néo-latinas e já professor nos Colégios Marconi e Santo Agos- Encerramos assim a nossa entrevista. Sentiamo-nos contentes
tinho, acrescenta: com o que víramos e ouvíramos. Dificilmente aparecem-nos
— Chega a me assustar que através de tantos e tamanhos sa- oportunidade tão atraentes.
crifícios, a; Faculdade de Filosofia venha se realizando tão comple- Descemos com alguns dos alunos... e prometemo-nos voltar.
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