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Rogério de Almeida
envelopes e pacotes que chegam pelos correios, quase sempre livros ou convites
para eventos. No dia 17 de janeiro deste ano de 2017, após retornar de uma
a mim destinada, por um estranho texto guardado num envelope sem remetente. A
carta nele contida também não estava assinada. Não fosse por seu conteúdo
renovada crença, não teria eu perdido o meu sono nem escrito este relato, que é um
A carta não vinha datada, mas o carimbo dos correios, levemente borrado,
apontava para o dia 13 do 11 (ou do 12) de 2016. Era, portanto, recente. A agência
de origem situava-se em Casa Branca, uma cidade paulista para mim desconhecida.
Como não havia mais indícios que essas poucas páginas digitadas em fonte arial,
ABNT, não pude atinar com o possível autor, embora, ao tomar conhecimento do
(acrescido do impacto de ser o primeiro brasileiro a ter tal distinção) ou, o que seria
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Tentei, com invariáveis fracassos, descobrir alguma pista sobre o autor do
texto. Conversei com colegas do meu departamento (afinal, por que a carta fora
avanços. Tentei também contato com outras faculdades, outras universidades, com
especialistas no tema, mas com a exceção de dois ou três que riram de mim, apesar
de minha discreta abordagem, não obtive nenhuma reação útil aos meus propósitos.
me ajudou, insistindo para que eu esquecesse essa história, pois os riscos de eu ser
mal interpretado eram enormes. Mesmo a ideia não sendo minha, poderiam atribui-
que isso significaria. Mas o texto era meu zahir e, por mais que eu tentasse
esquecê-lo, ele sempre voltava, até mesmo nos meus sonhos (ou pesadelos). Em
Demócrito, quero ver rires agora". Ele dizia isso em grego antigo, mas no sonho o
sentido já vinha traduzido. O que não encontrei tradução foi para minha angústia.
Por duas ou três vezes acendi o fósforo e ensaiei queimar aquelas malditas folhas
que haviam me tirado a paz. Por que foram direcionadas a mim? Com qual
propósito? Para que fim? Essas perguntas martelavam-me dia e noite, como se
minha cabeça estivesse na forja de Hefaistos. Foi então que tive a ideia de escrever
esse relato e passar o zahir adiante. Se não logrei êxito questionando diretamente
as pessoas, talvez pudesse pescar alguma pista publicando a carta que recebi. Que
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A descoberta da inexistência de Sócrates
Caro professor,
Esta carta certamente causará estranheza e não consigo imaginar que possa
ser diferente, já que se trata de uma das descobertas mais importantes da história
ou de um dos maiores equívocos que jamais cometi em minha vida. Sou incapaz de
decidir e não ouso também confiar em ninguém; já estou velho demais para me
deixar levar por vaidades ou manchar minha história, meu passado e o nome que
carrego e, além do mais, tudo resultou de mero acaso, não tive na questão mérito
maior que este, de ter sido um dado arremessado pela sorte, um cavalo da fortuna a
hospital após algumas semanas jogando xadrez com a morte. Desde que havia se
aposentado, uns pares de anos antes, que não a via, então fui visitá-la, já advertido
de que sua memória havia sido duramente golpeada. Aquela mente inteligente e
cumprimentá-la, um tanto atordoados, eu e ela, e por diferentes razões; ela por não
se recordar de mim e eu por me lembrar de tudo o que ela já não podia ser: a
diferimento, pois sabia que eu a admirava, que lhe tinha afeto, mas apesar do
se ela fosse uma escritora numa sessão de autógrafos, esforçando-se para sorrir ao
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desconhecido, no caso eu, que lhe atira à mão um exemplar, ávido pela eterna
vida em que nos satisfazemos com pouco e eu, que nunca fui um leitor voraz, me
comprazia, de tudo que já li e esqueci, com o que ainda recordava. Na parte inferior
–, escritas a mão e coladas esparsamente, de modo que não era simples adivinhar
réplicas de livros, cujas páginas são lidas da esquerda para a direita, de cima para
baixo, linha a linha, consoante nosso costume, pois há línguas que se lê de outro
modo, embora, quer numa quer noutra, se busquem sentidos nem sempre certos de
se atinar.
o texto oculto que os livros formavam, até que me deparei com a etiqueta "outros".
Não pude conter um leve esboço de sorriso, como se já soubesse que, dentro da
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sem nenhum constrangimento um exemplar sobre os arquétipos do tarô, um de
cabala, outro de doces e sobremesas para diabéticos, uns oito ou nove livros de
combinações de palavras escondidas em suas páginas, até que um deles com suas
mais de trinta anos, mas que não correspondia ao autor do livro, Roque Henrique de
Moura Matos, embora o sobrenome fosse o mesmo. O sumário trazia títulos frívolos,
com exceção de um, não só mais extenso como também com uma linguagem mais
seca e sóbria, sem os floreios retóricos e coloridos dos demais. O título chamou
Como a minha velha amiga ainda estava confiada aos cuidados medicinais,
um artigo acadêmico, mas poderia ser um conto, talvez na tradição jamais inventada
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pois havia no tom da escrita a frieza organizacional de quem presta contas, contudo
não era bem isso, pois havia também uma emoção, ainda que contida, perpassando
inesperada.
Sócrates jamais teria existido. Esse manuscrito de menos de uma página, fragmento
sete das onze peças de Aristófanes. Havia uma cópia de sua comédia mais citada,
As nuvens, e na sequência o tal fragmento, que provavelmente fora ali parar por
Tal epístola, de existência até então insuspeita, parecia revelar um pedido de Platão
personagem inventado por Aristófanes, e que Platão elege como seu mestre, na
e impertinentes. Tal Sócrates em nada nos faz lembrar o austero mestre desenhado
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alguma contradição que o faça repensar suas ideias, até chegar numa suposta
prudente e perfeito, o mais afortunado dos homens, o mais justo dos mestres.
Teríamos, portanto, não um Sócrates, mas três. O filósofo que aparece nos
textos de Platão é quem valida seus próprios pensamentos, uma vez que Platão põe
Quem diria, com tamanha retórica e na mais absoluta ataraxia as palavras que se
seguem? "Nenhum homem usufruiu de uma vida melhor que a minha. Vivi minha
vida com piedade e justiça, de modo que, tendo por mim próprio grande estima,
sinto que aqueles que convivem comigo me consideram de igual modo. Se minha
pois, que agradecer ao deus que me facultou morrer não só no momento mais
agradável como também pela morte mais fácil." Por fim, se há pontos de contato
algum comentário sobre o calor ou outra amenidade qualquer, mas ao me ver com
um livro quis saber sobre o que era. Tomando-o de minhas mãos, logo reconheceu a
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capa e, como se de repente despertasse de um sono de séculos, passou a discorrer
sobre o autor, Roque Henrique de Moura Matos, que fora seu professor de grego, na
sonhadora. Apesar da pouca idade (estimava não ter chegado aos cinquenta anos),
viagem à Grécia, onde fez pesquisas de doutoramento. Pouco depois de sua morte,
como forma de homenageá-lo, sua filha reunira suas crônicas em um livro, já que
ele, embora escritor dedicado e exímio tradutor, jamais publicara nada. A dedicatória
memória, sobre sua impressão do livro. “Não o li inteiro”, ela me disse, “embora
fosse um excelente professor, faltava-lhe imaginação para a escrita. Seus textos são
aborrecidos e confesso que não passei das primeiras páginas”. Sobre “A descoberta
resumi. Ela riu. Até que seu antigo professor não era tão sem imaginação assim.
recentes, mas então ela voltou a ficar confusa, de modo que preferi deixá-la à
vontade para conduzir a conversa. Ela me relatou uma série de episódios de quando
imagem bonita, embora soubesse que, inevitavelmente, tanto a imagem quanto ela
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um rugoso corpo sem história. Como recordação daquele nosso encontro, trouxe o
livro comigo, já que em seu julgamento ele havia me interessado. Não era verdade,
Essa história não teria maior relevância se dois anos depois, em viagem de
férias à Grécia, não tivesse me deparado com o Monte Athos e recordado, mais do
Monte e visitei alguns de seus mosteiros, como o de Filoteu, Dioniso (um dos mais
mar, fiquei tocado pela vida silenciosa e altiva de seus 35 anacoretas. Angelopoulos,
o monge que me recebeu, embora inicialmente desconfiado pelo meu interesse nos
passasse algumas horas na biblioteca. Desconfio que o fato de ser brasileiro tenha
ajudado, pois assim como a Grécia ativa, a nós que não somos gregos, nosso
imaginário sobre seus heróis, o contrário também deve ocorrer, gostemos ou não de
Embora eu imaginasse, talvez por força das imagens que O nome da rosa
companhia de minha família, a quem prometera não trabalhar durante as férias, fui
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direto às Nuvens, virando as folhas na procura da última, exatamente como narrado
Confesso que fui preparado para descobrir que, de fato, aquele conto era uma
mas que nunca descobriu nada que merecesse qualquer tipo de atenção. É claro
que também cogitei, em meu íntimo, a possibilidade de que tudo fosse verdade, o
passou jamais povoou meus devaneios, por mais fantasiosos que pudessem ser. A
surpresa foi tal que não me contive e acabei por causar um alvoroço no silencioso
provava coisa alguma, mas que também não desfazia por completo a hipótese de
que Sócrates nada mais era que um personagem criado por Platão para validar sua
própria obra, já que a escrita, naquela ocasião, era uma técnica recém-criada e,
que interesse, ou ainda poderiam jazer em meio a outros alfarrábios, o que me levou
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a causar a referida confusão, uma vez que passei a exigir enfaticamente que me
biblioteca de obras raras, como sói suceder em toda parte do mundo e bem o sabe a
"Recries minha apologia como bem entenderes, mas não te esqueças da injustiça,
pois os que leem se indignam das coisas injustas mais que das que causam terror e
piedade e este meu mestre que me ajudas a criar será de todos os personagens o
mais verdadeiro, pois que ele não será outro que o próprio mestre da verdade". O
termo que aparece no texto para criar é fantasia, que não deve ser confundido com
fantasia, como hoje conhecemos, mas entendido como ficção, que no latim assume
a forma de fingere, o mesmo que fingir, mas também o que é manipulado, tocado
com os dedos. Assim, o autor, supostamente Platão, pede para seu interlocutor
ajudá-lo a inventar, a criar um homem fictício. Seria Sócrates? Quem outro ficou
O trecho considerado isoladamente não diz nada, mas quando cotejado com
das palavras, de modo que o que eu mesmo achei parece se confundir com a
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Dado que não me foi permitido vasculhar a biblioteca, por mais que eu
suas impressões do que é ser brasileiro –, resolvi investigar a outra ponta, isto é, o
que teria motivado Roque Henrique de Moura Matos a escrever seu texto.
Mas não consegui nada além de uma rápida conversa com seu neto, que
não tinha muitas lembranças dele como nenhum interesse por filosofia. Nos arquivos
não encontrei nada de interessante. Minha hipótese são duas: ou Roque Matos
encontrou o mesmo que eu e inventou o conto, talvez para suprir a lacuna do que
poderia ter? Eu mesmo poderia tê-lo escrito. E é provável que o fizesse melhor. Se
fosse a verdade, como prová-la? Por que colocaria em risco minha reputação
É por isso que decido escrever esta carta e endereçar-lhe. Vi em seu Lattes
que é jovem, ousado, que não tem medo de se arriscar com publicações polêmicas
nem de orientar teses sobre temas que a Universidade prefere ignorar. Quem sabe
você tenha mais coragem que eu e traga essa história ao palco do mundo. A mim
Transcrevo o conto de Roque Henrique de Moura Matos. Pode ser que algo,
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A descoberta da inexistência de Sócrates
que sabemos do que acontece enquanto acontece? Lábios se beijam sem que
fosse um meteoro que colidisse com a Terra e nos extinguisse no exato momento
Foi assim que eu, um pesquisador brasileiro, fiz a maior descoberta de todos
todos eles fictícios, é o suficiente para fabricar uma verdade. A própria ideia de
heterônimos, é possível que acreditássemos que Alberto Caiero era uma pessoa de
verdade. Será que não o foi? Eu mesmo ouvi de meu avô que um amigo dele
almoçou com Ricardo Reis, quando esteve exilado no Brasil, antes de retornar em
1935 para Lisboa, onde morreu um ano depois. Se Shakespeare, que muitos dizem
não ter existido, escrevesse não tragédias, mas biografias, quem não acreditaria na
existência histórica de Hamlet ou Macbeth? São personagens muito mais reais que
pregava em Atenas. Enquanto eu acreditava que ele de fato tinha existido, nutri
contra ele um profundo e silencioso ódio. Silencioso porque Sócrates foi alçado a
uma espécie de herói da filosofia, uma figura mítica. Seus pés descalços, sua roupa
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suja, seu discurso salvacionista tornou-se o arquétipo do mestre. Como um profeta,
seu palavrório prometia não o céu da religião, mas outra mentira adorada, a verdade
ideia de que a verdade pode ser atingida por meio do diálogo é tão absurda quanto
humano poderia ser facilmente controlada com dez regrinhas? Como não roubar
quando se está com fome? Como não cobiçar a mulher do próximo quando o amor
assim o exige? Como não matar diante da fúria insaciável do inimigo? O mundo
idiota. Hípias, por exemplo, o maior entre os sofistas, é defenestrado por Sócrates,
que insiste em saber o que é a beleza, mesmo ouvindo de sua boca numerosos
exemplos de coisas belas. Sócrates não gostava de uma bela mulher ou de uma
bela tragédia. Para ele, só interessava a beleza, algo que ninguém sabe o que é.
pode imaginar como me irritava ouvir "só sei que nada sei" a cada início de ano
ignorância com as palavras do embusteiro grego. Isso sem contar que, como
Sócrates nada escreveu, sua voz nos chega através da boca de Platão, um filósofo
tão pretensioso quanto mesquinho, capaz de liderar uma repulsiva campanha contra
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Dupréel, professor da Universidade de Bruxelas. Ele questiona o modo como a
da filosofia grega antiga, questionando as fontes que chegaram até nós. A apologia
de Sócrates não seria mais do que mera ficção, inventada com propósitos políticos
por Platão, que foi quem mais lucrou com sua condenação. É nesse contexto que
ganha força toda a perseguição contra os sofistas, até hoje os sábios menos
ser levada a cabo em poucos anos. Mas trabalhando sozinho, as investidas eram
do que parecia ser uma carta. A dificuldade de leitura de alguns trechos somada à
alguns dias e muito da paciência dos monges, incomodados com minha presença
diária na biblioteca.
hipóteses do significado de minha descoberta. Mal podia esperar o dia raiar para
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Embora não houvesse nenhuma indicação clara de quem havia escrito o texto e
para quem o endereçara, ou qualquer outra marca que permitisse datá-lo, o teor era
muito claro para que pairasse qualquer sombra de dúvida. Era uma missiva de
Platão para seu colega Xenofonte, orientando-o a produzir material escrito sobre
sua própria filosofia, a ser expressa por meio de diálogos, cuja expressão retórica
De posse do troféu, não tenho outra coisa a fazer que mostrá-lo ao mundo,
para que a farsa se desfaça e a filosofia possa seguir o caminho do qual jamais
deveria ter se desviado, caminho aberto pelos sofistas e impedido de ser seguido
por Platão. O fragmento que se segue talvez seja o documento mais importante
deste século, senão de todos os tempos, e é por isso, constatada minha frágil
saúde, que me apresso a torná-lo público. Que o mundo das ideias desabe de
Fragmento do manuscrito
Demócrito. Não tenho, bem o sabes de minhas ambições, compromisso com o riso,
a arte ou mito, mas precipuamente com o mundo das ideias; mister é ensinar a
corrupção e à superstição, para que fundem uma Politeía na qual dos cidadãos
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emane um poder probo, escrupuloso e diáfano, isto é, que se exercite a verdadeira
areté mediada pelo lógos. Que melhor expediente escriturário que a dialética posta
for não terei eu criado o mestre mais verdadeiro e autêntico dentre todos esses
falsos mestres que vivem de circular pelas ruas galardeados pelos nobres a troco de
parvos ensinamentos sobre retórica e as demais artes do bem enganar? Esse meu
todos sobre o verdadeiro poder da aletheia. É por isso e para isso que necessito de
ti e de teu talento para a gramática designatória deste Sócrates, símil aos homens,
mas só comparável aos deuses. Sei que podes escrever a seu respeito, como se
nosso mestre o fosse, memórias e elogios sem que nunca descubram a razão.
Recries minha apologia, tens aí um modelo, como bem entenderes, mas não te
esqueças da injustiça, pois os que leem se indignam das coisas injustas mais que
das que causam temor e pena e este meu mestre que me ajudas a inventar será de
todos os personagens o mais verdadeiro, pois que ele não será outro que o próprio
tão...
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