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Sociologia jurídica

Universidade do Sul de Santa Catarina


Este livro apresenta as relações existentes entre
sociedade e Direito, tendo como pressuposto o fato
de que o Direito situa-se dentro da sociedade, e não
acima dela. Nesta perspectiva, os temas tratados
em cada capítulo pretendem reconectar Direito e
sociedade, reproduzindo o percurso histórico da
construção epistemológica da Ciência Jurídica.

Sociologia

Sociologia jurídica
jurídica

w w w. u n i s u l . b r
Universidade do Sul de Santa Catarina

Sociologia
Jurídica

UnisulVirtual
Palhoça, 2013
Maria Terezinha da Silva do Sacramento

Sociologia
Jurídica

Livro didático

Designer instrucional
Luiz Henrique Queriquelli

UnisulVirtual
Palhoça, 2013
Copyright © Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
UnisulVirtual 2013 qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Livro Didático

Professora conteudista Projeto gráfico e capa


Maria Terezinha da Silva do Sacramento Equipe UnisulVirtual

Designer instrucional Diagramador(a)


Luiz Henrique Queriquelli Daiana Ferreira Cassanego

ISBN Revisor(a)
978-85-7817-607-5 Amaline Boulos Issa Mussi

340.2
S12 Sacramento, Maria Terezinha da Silva do
Sociologia jurídica : livro didático / Maria Terezinha da Silva
do Sacramento ; design instrucional Luiz Henrique Queriquelli. –
Palhoça : UnisulVirtual, 2013.
112 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7817-607-5

1. Sociologia jurídica. I. Queriquelli, Luiz Henrique. II. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


Sumário

Introdução | 7

Capítulo 1
Abordagem sociológica do sistema jurídico | 9

Capítulo 2
Definições sociológicas do Direito  | 23

Capítulo 3
Estado, poder e controle social e segurança  | 57

Capítulo 4
Criminologia e antropologia  | 85

Considerações Finais | 103

Referências | 105

Sobre a Professora Conteudista | 111


Introdução

Este livro pretende levá‑lo/a a refletir sobre a sociedade e sobre o Direito.


O pressuposto é que o Direito situa‑se dentro da sociedade, e não acima dela.
Nesta perspectiva, os temas tratados em cada capítulo pretendem reconectar
Direito e sociedade, reproduzindo o percurso histórico da construção
epistemológica da Ciência Jurídica.

A abordagem sociológica do Direito representa a oportunidade de revelar os


muitos atalhos que marcaram o surgimento do Direito. Há, porém, dois pontos
que unem sociedade e Direito: a busca incansável da ordem e a certeza de ser o
homem um ser gregário por natureza. Em qualquer civilização ou realidade social,
o operador do Direito é um agente da sua cultura. Seria, então, correto pensar o
Direito como uma singularidade da razão científica?

A resposta a esta questão é assegurada pela presente abordagem sociológica


do sistema jurídico, a identificação dos pontos de conexão entre Sociologia
Jurídica e Ciência Jurídica, e, consequentemente, a diferenciação do monismo
e pluralismo jurídico.

Boa leitura!

Prof.ª Maria Terezinha da Silva do Sacramento

7
Capítulo 1

Abordagem sociológica
do sistema jurídico

Habilidades Identificar e relacionar a origem da Sociologia


Jurídica como processo interpretativo do Direito e
extrair dos movimentos e das Escolas do Direito
e da Sociologia, conclusões e fundamentos para
julgar o melhor método de aplicação do Direito.

Seções de estudo Seção 1:  A origem histórica do Direito

Seção 2:  As principais escolas do Direito

9
Capítulo 1

Seção 1
A origem histórica do Direito
Quando se tenta reproduzir a história do Direito a partir da modernidade até
os dias atuais, há um risco iminente de se reter a lógica do Direito na política.
Esse risco decorre de uma relação com o poder, dentro da qual o efeito
coercitivo da norma acaba diluindo a função e o efeito da razão humana na
busca incessante da ordem. A abordagem sociológica não se satisfaz com a
explicação positivista e evolucionista do Direito. (FREUND, 1987, p. 78). Esta é
uma afirmação de Max Weber, considerado um dos mais importantes clássicos,
juntamente com Hans Kelsen, na discussão da temática jurídica moderna.

Weber sustenta sua crítica ao positivismo e às doutrinas evolucionistas,


combatendo as pretensões generalistas de extrair leis de processos de
interação mecânica para explicar o progresso; e, por conta desse progresso,
a personalidade coletiva. Esta suposição colocaria à margem da razão aquelas
instituições ou tipos de sociedades que divergem da forma paradigmática do
progresso na cultura ocidental.

Até onde nos é permitido conhecer, os estudos arqueológicos indicam que o


controle social e as leis estiveram diretamente associados à evolução do homem.
(HOEBEL; FROST, 1976, p. 302‑318). As fontes místicas, como a adivinhação e
a maldição condicional, foram as formas mais comuns praticadas pelos povos
primitivos. A frase “Se o que eu digo não for verdade, então possa o sobrenatural
me destruir”, segundo Hoebel e Frost (1976), sempre aparece num processo de
julgamento. O juízo de Deus foi uma prática no Ocidente até a Idade Média, e,
com algumas variações, em toda a Ásia, Indonésia e África. Aí, o juízo de Deus,
incluindo o envenenamento do réu, não constitui prática rara. Entre outros povos,
o réu podia beber uma bebida envenenada durante o julgamento. O vômito,
ou não, era decisivo para levar o réu à morte.

Na história do Direito escrito, foi na região situada entre os rios Tigres e Eufrates
que se encontraram os primeiros documentos em escritas cuneiformes. Nestes
documentos, o Direito estava também ligado à noção de sagrado: o Código de
Ur‑Nammu, as Leis de Eshnunna, as leis Lipti‑Ishtar e o Código de Hamurábi.
(PALMA, 2011, p. 31‑35).

Nossa primeira tarefa é desvendar, a trajetória do Direito no pensamento


jurídico, tentando identificar, de um lado, como as escolas apresentam a sua
compreensão da origem do Direito, e, ainda, como o conhecimento jurídico,
em sua evolução histórica, contribui para o aperfeiçoamento da justiça.

10
Sociologia Jurídica

Seção 2
As principais escolas do Direito
Se examinarmos, no percurso das ideias, a discussão em torno do Direito,
é possível perceber que o pensamento jurídico traduz o modelo de racionalidade
em cada época, assim como as condições sociais existentes. Quanto mais nos
aproximamos da modernidade, mais centrais as preocupações com as fontes
da ordem. Impõe‑se, neste tópico, desviar dos paradigmas dogmáticos para
alcançar uma linguagem metajurídica que permanece subjacente ao esquema
dialógico das escolas.

2.1 Escola jusnaturalista


Conhecido também como Direito natural, o jusnaturalismo chegou a nós pela
teoria do contrato social. Mas a teoria do Direito natural, para muitos dos
estudiosos, começa pelo pensamento político grego, com Heráclito, Sócrates
Platão entre outros, cabendo o lugar de destaque a Aristóteles. (NAY, 2007,
p. 49‑50). Sua reflexão sobre a natureza humana apresenta uma teoria organicista
da sociedade, inspirada numa concepção de ordem espontânea, por analogia ao
organismo vivo. O homem, na sua concepção, é um animal político zoon politikon.
A pólis seria uma extensão da natureza, por um desejo natural do homem de viver
em comunidade. Segundo esta concepção, a evolução consiste na constituição
e adequação de novos agrupamentos ordenados por necessidades que variam
com o tempo e a capacidade destes de prover ao homem as condições morais e
materiais de subsistência.

Platão afirmou que a justiça ideal seria reservada aos deuses e que os homens
deveriam imitá‑los incessantemente. Já, no livro As Leis, ao deslocar seu eixo
temático para a cidade, a ordem nas relações políticas ganha outra preocupação,
agora com o equilíbrio, ou seja, a justa medida. Contudo, tanto Platão quanto
Aristóteles não veem oposição entre os dois conceitos, e sim complementaridade.
Tanto é que, imbuídos dessa convicção, orientam a filosofia a buscar um código
moral ditado pela natureza. (MORRAL, 2000, p. 30).

As preocupações de Platão com a justiça colocam a vida moral acima do poder.


O ideal da vida é a realização de um bem espiritual. Assim, o sentido da educação
só se materializa na sabedoria. Educar o corpo é frear os impulsos e moderar os
apetites irracionais. É possível verificar que o pensamento grego toma a natureza
como ente ordenado. Na cosmologia grega, a ordem é tão natural como o é o
homem. Neste contexto, os valores humanos devem ser estáveis, porque é deles
que a razão se alimenta.

11
Capítulo 1

Quando se consulta qualquer obra do pensamento político antigo, pode‑se


verificar que toda forma de organização social se sustenta na trilogia: Deus,
Natureza e Lei.

Figura 1.1 – Trilogia do pensamento Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino segue
político antigo
preconizando a ordem como originária de Deus,
Deus
em sua Summa Theologiae (Suma Teológica).
Seguindo o mesmo paradigma evolutivo, definiu
a lei eterna, à qual tudo estaria subordinado.
A lei natural diz respeito a todos os seres que,
ao abrigo da natureza, realizam sua função vital:
Natureza Lei
proteger‑se e reproduzir‑se. Nesta inclui‑se
Fonte: Elaboração do autor (2013).
o homem, para quem não basta o instinto
da sobrevivência e da procriação. Na lei da
natureza, inscrevem‑se padrões de conduta racionalmente desejáveis para todos
os seres humanos. Por exemplo, fazer o bem e recusar o mal.

A lei humana ou lei positiva segue o imperativo da razão prática, mas sem
modificar os imperativos da lei natural. A lei positiva faz a adaptação do homem
ao seu tempo histórico ou circunstâncias, mas não pode desobedecer às
premissas da lei natural, caso contrário estas seriam consideradas injustas.

Em resumo, as leis naturais não são aquelas que encontramos nos códigos, mas,
os valores determinantes dos princípios e das obrigações, os quais criam a ordem
social e estabelecem padrões de conduta em sociedade.

2.2 Escola contratualista ou racionalista


A escola racionalista, também conhecida como escola positivista, contra a qual
combateu a escola histórica do Direito, é algumas vezes confundida com o
positivismo sociológico de Augusto Comte. Este último, na primeira metade do
século XIX, publicou diversas obras, pelas quais desenvolveu, numa sequência
lógica, a lei dos três estados e a classificação das ciências como um processo
evolutivo que marca a passagem da idade teológica para a idade metafísica
e, desta, para a idade positiva. A ordem social, segundo o pensador, segue um
processo evolutivo que se revela pela inteligência humana.

Entretanto um olhar atento ao movimento racionalista na história verificará que


a Escola Positivista se identifica com o monismo que predominou na teoria
contratualista do século XVII e XVIII, iniciada por Thomas Hobbes na Inglaterra.
Em O cidadão (HOBBES, 2002 [1651]) e, depois, em O Leviatã (HOBBES,
2003 [1651]), o pensador inglês dá início a uma exposição sistemática sobre
o estado de natureza, onde imperaria o reino da irracionalidade, “a guerra de
todos contra todos”, para chegar à conclusão que o homem seria incapaz de

12
Sociologia Jurídica

se auto‑organizar. Nessa exposição, o mundo de Hobbes é desprovido de


ordem, dominado pelo caos e pelo conflito, até a fundação do Estado. Do ponto
de vista político, Hobbes inaugura, no dizer de Duso (2006, p. 111), uma nova
ciência, a qual seria tão somente uma estratégia política racionalista para o
estabelecimento da paz. O cenário desta construção racionalista da ordem
política e jurídica seria o contrato social.

Identificada como um movimento de oposição ao Direito natural, Hobbes funda


uma concepção de representação política, amparada na força legítima do pacto
social. Na interpretação de Weber, Hobbes precisaria de um corpo de indivíduos
que formasse uma coletividade para servir de base de constituição da autoridade.
É esta autoridade que, uma vez incorporada na pessoa pública, se impõe de cima
a todos os que estão submetidos à lei. Na interpretação de Weber, a dogmática
jurídica faz parte da composição desse tipo complexo de dominação que envolve o
aparato político, administrativo e legal, denominada pelo autor como racional legal.

Figura 1.2 ‑ Hans Kelsen Hans Kelsen, de acordo com Norberto Bobbio
(1881‑1973)
(2004, p. 340), é um dos maiores teóricos do
Estado moderno e, no meio jurídico internacional,
é considerado o principal representante do
positivismo ou dogmatismo jurídico.

Filho de pais judeus, Hans Kelsen nasceu na


cidade de Praga (Boêmia austríaca), integrante
do Império Austro‑húngaro, em 11 de outubro de
1881. Ingressou na Universidade de Viena e, sob a
influência de Otto Weininger, iniciou seus estudos
em ciência jurídica.

Fonte: LABORATORIO HANS Em 1905, por força do antissemitismo que se


KELSEN (2013).
expandia até a Universidade de Viena, converteu‑se
ao catolicismo e, no ano seguinte, completava o seu
doutorado, obtendo o título de doutor.

Em 1908, conseguiu uma bolsa de estudos, seguindo, então, para Heidelberg,


onde se dedicou ao livro intitulado Principais Problemas da Teoria Geral do Estado.
Por problemas financeiros, teve que retornar a Viena, deixando sua obra incompleta.

As primeiras tentativas de profissionalização não foram tão fáceis. Prestou


concurso para uma vaga de professor na Universidade de Viena, mais tarde
passou a trabalhar em um escritório de advocacia, mas logo o abandonou,
para se dedicar às funções junto ao secretariado do Kaiser‑Jubilaums‑Ausstellung.

Talvez esta fosse a maior oportunidade de alçar voo rumo ao reconhecimento e


à consagração internacional. Em 1912, tornou‑se editor da Revista Austríaca de

13
Capítulo 1

Direito Público. Embora tivesse que interromper suas atividades durante a Primeira
Guerra Mundial, prestou serviços militares. Para alguns dos seus intérpretes,
isso teria contribuído para ampliar os conhecimentos e experiência que viriam
consolidar a sua concepção do Direito e a convergência deste com o Estado.

Em 1918, foi efetivado no cargo de professor da Faculdade de Direito da


Universidade de Viena. Daí em diante, seu nome e experiência acadêmica
consagraram a sua biografia como pai do dogmatismo jurídico. Trabalhou
na elaboração da Constituição da República, a qual criou a primeira Corte
Constitucional da história do Direito. No ano seguinte, publicou um trabalho
onde comentava a Constituição da República Austro‑alemã e, no mesmo ano,
tornava‑se catedrático da Universidade de Viena.

Em 1º de outubro de 1920, entrava em vigor a Constituição Austro‑alemã e,


com ela, a consagração internacional de Hans Kelsen. Em 1930, atuou como
professor na Universidade de Colônia, e, em 1940, mudou‑se para os Estados
Unidos, onde, na Universidade de Harvard, atuou como conferencista. De 1942 a
1945, foi professor de Ciência Política na Universidade da Califórnia. Publicou sua
segunda obra de consagrado valor em 1944: trata‑se da Teoria Pura do Direito.

O controle concentrado de constitucionalidade é o mais importante legado do


autor. Para Kelsen, o que tem valor é apenas o conteúdo normativo. A sanção é
consequência normativa da violação de um preceito primário. O Direito é a única
fonte da ordem social. Com isso, ele nega qualquer possibilidade de a Sociologia
do Direito se constituir como uma ciência fora do universo do fenômeno jurídico.
Contrariando qualquer outra fonte de ordenamento não jurídico, Kelsen não
admite qualquer tipo de ordenamento que não seja coativo.

O Direito como sistema normativo se realiza, segundo a concepção racionalista


de Kelsen, mediante o exercício máximo do poder: o Estado. Na interpretação de
Norberto Bobbio, para Kelsen o Estado não existe fora do ordenamento jurídico,
na medida em que concebe o poder a partir do Direito.

Dessa interpretação, é possível concluir que o caráter imutável do Direito decorre


da convergência com o homem artificial de Hobbes (1971 [1666], p. 55 apud
BRANCO, 2009, p. 52) “It is not Wisdom, but authority that makes the Law” (não é
a sabedoria, mas a autoridade, que faz a lei). Equivale dizer que, ao conceber a
monopolização estatal da norma, Kelsen está se referindo à razão expressa na
força e na lei de onde derivaria o poder. A lógica desta submissão é a mesma que
faz resultar a sociedade como um corpo civil (artificial body, artificial man) que não
admite outra subordinação a não ser ao Estado. (PONCCININI, 2005, p. 123‑124).

Numa interpretação das teorias positivistas, Sabadell (2002. p. 37) comenta que,
no pensamento jurídico, as teorias do Direito positivo estão centradas na sua
aplicação. Equivale dizer que a interpretação do Direito fica restrita aos tribunais.

14
Sociologia Jurídica

2.3 Escola histórica do Direito


A Escola Histórica do Direito foi fundada na Alemanha, no século XIX, como
um movimento de oposição ao racionalismo iluminista dos séculos XVII e XVIII.
Para alguns dos seus intérpretes, essa reação incluiu uma forte rejeição à
Revolução Francesa e à ocupação napoleônica. (LOWY, 2000, p. 66).

É consenso que a Escola Histórica do Direito foi fortemente influenciada pelo


romantismo alemão, tendo a sua frente Gustav Hugo (1764‑1844), mas coube
ao jurista alemão Friedrich Carl von Savigny (1779‑1861) o título de fundador da
Escola Histórica do Direito.

Figura 1.3 ‑ Friedrich Carl von Savigny veio de uma família cuja tradição estava
Savigny (1779‑1861)
ligada ao nome do castelo Savigny, localizado
nas proximidades de Charmes, no vale do rio
Mosela. Entrou para a Universidade de Marburg
em 1795, onde se formou em Direito, e, na mesma
universidade, foi admitido como Privatdozent,
ensinando Direito Penal e Direito Romano.

Em 1803, publicou seu primeiro trabalho, o qual


se tornaria um famoso tratado: Das Recht des
Besitzes (Tratado da Posse). Seu livro teve uma
enorme aceitação na Europa. Seu empenho na
pesquisa das fontes sobre o Direito Romano
Fonte: GAEDDAL (2006).
ganhava publicidade e o reconhecimento viria,
de imediato, do governo bávaro, com a nomeação
para o cargo de professor de Direito Civil romano em Landshut. Em 1810, já
ocupava o cargo de professor de Direito Romano na nova Universidade de Berlim.
Ali recebeu a incumbência de criar um tribunal extraordinário, competente para
emitir opiniões aos casos encaminhados a ele por outros tribunais ordinários.

O que tornou Savigny uma figura notável no meio jurídico alemão e em toda a
Europa foi o seu projeto, considerado um empreendimento filosófico‑jurídico.
Opôs‑se ao racionalismo iluminista e se destacou no combate:

a. à ideia do contrato social, recusando‑se a aceitar o Direito como


fruto da vontade dos homens.
b. ao positivismo e, nesse combate, valorizou outras fontes do Direito
contra o centralismo constitucionalista do positivismo.
c. ao esquecimento do Direito Romano, resgatando a identidade
cultural das cidades e das doutrinas eclesiásticas.
d. à desvalorização dos costumes locais e a tradição. Recuperou
o sentimento e a sensibilidade no tratamento do Direito como a
identidade de cada povo.

15
Capítulo 1

Para alguns intérpretes (HERKENHOFF, 1977, p. 41; ALBUQUERQUE, 2008, p. 19),


a Escola Histórica engloba duas linhas: a dogmática e a evolutiva. A primeira,
filiada a Savigny e seus seguidores Eichhorn e Henry Maine, defende a não
vinculação exclusiva do intérprete à letra da lei, mas a inclusão na sistemática
jurídica, da interpretação da lei em acordo com todo o ordenamento jurídico.

A linhagem evolutiva, seguindo os teóricos Saleilles e Köhler, preconiza uma


interpretação a posteriori do sentido da lei, e acrescenta uma função criadora
do Direito. A partir daí, o intérprete deve compreender não apenas a intenção do
legislador (a mens legis) mas transpor aquela intenção para o momento ou época
da aplicação da lei.

Cavalieri Filho (2010, p. 22) lembra que, pela primeira vez, ao combater a
concepção prevalecente da existência de um Direito natural, permanente e
imutável, o movimento antirracionalista, impulsionado pela Escola Histórica
do Direito, desloca o eixo da preocupação do que deveria ser o Direito, para
a preocupação de saber como o Direito se forma na sociedade.

Por sua vez, o evolucionismo se volta para a sociedade ao negar que o Direito
seja produto exclusivo da história, de Deus ou da razão. Mais adiante, veremos
que, à semelhança do que Durkheim havia proferido em seu livro As Regras do
Método Sociológico, a norma moral assim como o Direito formam a consciência
coletiva dos povos (Volks geist).

Na concepção evolucionista, essa consciência nada mais é do que a construção


gradual e paulatina do Direito pelas tradições e costumes. Ao contrário de um
Direito imutável, permanente, nos postulados da Escola Histórica do Direito ele se
configuraria entre o conjunto dos elementos da cultura – à medida que as relações
sociais se tornam mais complexas, o Direito vai‑se readequando por força das
necessidades e usos e costumes dos povos. (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 22).

As posições favoráveis a essa escola são muitas, mas o ponto favorável mais
destacado é o mérito do movimento antirracionalista de recuperar o caráter social
dos fenômenos jurídicos. Em vez de ser na letra da lei, é na vida social que o
operador do Direito vai buscar os fundamentos do Direito.

2.4 Escola da livre pesquisa científica


Considerada uma das matrizes histórico‑teórica da Sociologia do Direito de
Eugen Ehrlich, a Escola da Livre Pesquisa Científica contribuiu para ampliar o
movimento para além da influência da filosofia alemã.

François Gény estudou Direito em Nancy, França, de 1878 a 1887. Logo que concluiu
seus estudos, tornou‑se professor de Direito Romano em Algier, de 1888‑1889.
Ensinou Direito Civil e Direito Internacional na Universidade de Dijon (1890‑1900).

16
Sociologia Jurídica

Introduziu a noção de livre pesquisa científica para a interpretação da lei positiva.


Para Gény, a lei é uma importante fonte do Direito, mas não a única. Não sendo
Figura 1.4 ‑ François Gény suficiente, ante as lacunas da lei o jurista deve
(1861‑1959)
apoiar‑se em outras fontes, como os costumes,
as jurisprudência e as doutrinas.

Uma das mais fortes influências sobre a Escola


do Direito Livre é a proposição de caráter
metodológico possivelmente inspirada no
movimento positivista da França, em que Gény
atribui ao operador do Direito a competência de
criar normas para solucionar os conflitos. Essa
competência seria adquirida pela livre investigação
científica do Direito, pautada na realidade social.

Fonte: Freysselinard (2009). Para alguns intérpretes (ALBUQUERQUE, 2008),


esse método ou técnica, como denominam
alguns dos seus intérpretes, permite uma conciliação entre o dispositivo da lei e o
trabalho científico do operador do Direito. Em que consiste essa técnica? Extrair da
realidade social os elementos que definiriam a convivência humana, com base na
tradição do povo, nos fatores econômicos e nas condições históricas de cada povo.

Para muitos dos intérpretes, o Direito foi desdobrado em duas fontes: dados e
construído. O Direito dado corresponde às fontes originárias da convivência entre os
homens. Essas fontes guardam semelhanças com as da Escola Histórica do Direito.
São as tradições, os valores de um povo e os fatores econômicos que representam
as condições históricas de cada sociedade. Já o Direito construído corresponderia
às normas construídas pelo jurista na sua concepção metodológica. Portanto a Livre
Pesquisa Científica é o âmbito do Direito construído. Nele, o operador do Direito
deve buscar o material real, ou seja, aquela dimensão da vida social que independe
da vontade do legislador, mas que, na lide do jurista, se interpõe entre a lei e as
motivações e conduta das pessoas na sua convivência em sociedade.

O que se pode notar nesta leitura do Direito proposta por Géni é que, embora
não negando o Direito positivo, ele interpõe à concepção racionalista do Direito,
uma outra concepção de racionalidade com base na realidade concreta da
convivência humana. Assim, a realidade – e não o dever ser somente – ganha
um status normativo de Direito, independente da vontade do legislador. Muito
próximo das preocupações de Montesquieu, Saint Simon e de Comte, Gény toma
a moral e os fatores econômicos como elementos das regras do Direito, o que
denota uma identidade com o raciocínio positivista, na tradição francesa.

Coelho (1979, p. 249) destaca quatro categorias componentes dessas regras


do Direito:

17
Capítulo 1

1. Dados reais ou naturais: Fazem parte da realidade física e psicológica


que estão relacionadas com o clima e as tradições religiosas.
2. Dados históricos: Traduzem os fatos físicos e psicológicos
manifestos nos hábitos e na indumentária de um povo.
3. Dados racionais: São os valores de um povo, de onde se extraem
os fundamentos da justiça como o caráter sagrado da vida humana.
4. Dados ideais: Constituem os princípios jurídicos dedutíveis da
realidade social como contextualização histórica e material da
moral numa dada sociedade e em dada época.

Da análise de Coelho, deduz‑se que Gény dá um passo qualitativo em relação


aos seus predecessores, com destino a uma Sociologia – enquanto física
social – identificada com os postulados de uma ciência da sociedade que
pretendia o mesmo status da ciência, cujo objeto de estudo é a física, a química
e a fisiologia. Adotar‑se‑ia o mesmo sistema intelectual que havia inspirado a
economia política da época de Jean Baptiste Say, Saint‑Simon e Comte, cuja
pressuposição seria estabelecer leis invariáveis entre sociedade e natureza.
Equivale dizer que a ciência da sociedade participaria do mesmo sistema das
ciências naturais. (LÖWI, 2009, p. 27). Géni, seguindo o raciocínio positivista da
época, vai definir uma hierarquia que ele chama de dados em três níveis:

1. Dados absolutamente gerais: Diz respeito a um valor intrínseco e


indiscutível, porque, além de abstrato, não permite a discussão
pelo grupo. Por exemplo, o bem está acima do mal e, por isso,
deve ser realizado.
2. Dados relativamente gerais: Diz respeito a fatos concretos, podendo ser
passíveis de contestação. Por exemplo, a vida humana pode ser um
valor axiológico por outro discutível. Um dos exemplos é a eutanásia e
o aborto. Um grupo de pessoas pode ser a favor, e, outro, contra.
3. Dados mais precisos: São aqueles que, por sua concretude no
plano da existência humana, são contingentes como a própria
vida, podendo, por isso, ser debatidos. Nos dias atuais, o aborto é
aceitável em muitas sociedades.

Esses dados são originários, imutáveis, gerais e independentes da vontade do


legislador. O conjunto de normas construídas pelo jurista a partir desses dados é
que constitui a tarefa da Livre Pesquisa Científica. Trata‑se do âmbito do Direito
construído. É no construído, segundo a interpretação de Albuquerque, que
François Géni articula a função sociológica como uma técnica jurídica sobreposta
a outras técnicas como a legislativa, doutrinária e gramatical.

18
Sociologia Jurídica

2.5 Escola sociológica do Direito


Embora a Sociologia do Direito apareça muitas vezes associada a Herbert Spencer
e sua obra, Principles of Sociology, ao positivismo de Augusto Comte e à Émile
Durkheim (ROSA,2009), é no desdobramento epistemológico da Ciência do Direito
que encontramos a origem da Escola Sociológica do Direito.

A razão disso é que, como se pode notar, o Direito surge como uma ciência
autônoma mas incapaz de se desvencilhar do seu objeto de estudo: o homem
e sua vida em sociedade. Até mesmo Hans Kelsen, em Teoria Pura do Direito
(KELSEN, 2009, p. 68), para quem o fenômeno jurídico é um sistema de normas
válidas, reconheceu que as “normas morais prescrevem uma conduta do homem
em face de si mesmo” e que “o Direito e a moral constituem diferentes espécies
de sistema de normas”. Esta questão ocupa grande parte do livro Economia e
Sociedade, de Weber. (WEBER, 1999, p. 3‑85).

Parece inequívoca a conclusão de que os movimentos nascidos do diálogo entre


as diversas escolas e o positivismo jurídico contribuíram para a fundação da
Sociologia Jurídica. É consenso na literatura ter sido Eugen Ehrlich o fundador
da Sociologia do Direito. Contudo este mérito deve ser compartilhado entre
outros juristas: Friedrich Carl von Savigny, François Géni e Hermann Kantorowicz.
Certamente o Movimento do Direito Vivo e o Movimento do Direito Livre vão
encontrar um ambiente intelectual propício ao embate das vertentes positivistas.
A receptividade do meio jurídico é o outro fator que não pode ser isolado da
evolução e da revolta antiformalista.

2.5.1 Movimento do direito vivo


Considerado o fundador da Sociologia do Direito, Eugen Ehrlich tornou‑se
uma referência obrigatória na literatura, por ser o primeiro crítico do positivismo
jurídico a escrever um livro intitulado Grundiegung der Soziologie des Rechts
(Fundamentos da Sociologia do Direito). (EHRLICH, 1986). O Direito Vivo
representa a maior expressão dos movimentos que concorreram contra o
positivismo jurídico.

Nascido na cidade de Czernowtz, capital da província de Bukovina, na Áustria,


Ehrlich estudou Direito em Viena, tendo ocupado em 1897 a cadeira de professor
de Direito Romano na universidade de sua cidade natal. Faleceu em 1922.

Os princípios sociojurídicos de Eugen Ehrlich serviram de pilares de sustentação


do Movimento do Direito Livre. O método da sua Sociologia Jurídica se baseia no
predomínio da decisão judicial sobre as normas.

Uma das contribuições de Ehrlich no conjunto dos movimentos que marcaram o


percurso da Ciência do Direito foi, para Claudio Souto, o combate ao tecnicismo, que
privilegiou as doutrinas em detrimento da realidade social. (SOUTO; SOUTO, 1997).

19
Capítulo 1

É importante perceber que a Sociologia do Direito de Eugen Ehrlich nasce


num contexto em que a crítica ao positivismo jurídico tornava‑se mais acirrada.
O jurista estudou, em Bukovina, diversos grupos étnicos, analisando seus
costumes e seus estilos de vida próprios. Observou que, apesar de todos os
grupos étnicos respeitarem as normas gerais do país hospedeiro, dentro dos seus
grupos étnicos praticavam seus costumes, seguiam e respeitavam suas leis na
convivência interna dos grupos.

Esse estudo serviu de laboratório antropológico para a sua observação. A partir


daí, extraiu os principais postulados do método do Direito Vivo. Pôde deduzir
da maneira como funcionava a interação entre as normas jurídicas e as regras
internas dos grupos étnicos, que os princípios técnicos só valem para uma
sociedade homogênea onde a norma somente é válida para aqueles que se
identificam com ela.

Contra o positivismo jurídico, defendeu os Fundamentos da Sociologia do


Direito com a publicação em 1912, afirmando que a lei é um fenômeno social e,
em consequência desse fato, a Ciência do Direito seria uma ciência social.

Sua crítica ao positivismo jurídico incidia sobre a jurisprudência. Um saber


que, segundo Ehrlich, se esgota na teoria prática do Direito, um conjunto de
conhecimentos, cuja prerrogativa de ciência propriamente dita do Direito está
limitada a, apenas, o que está disposto na lei. Para Ehrlich, a realidade é mais
complexa do que a letra morta da lei. Daí insurgir‑se contra o dogmatismo jurídico
de Hans Kelsen com o Direito Vivo, conforme denominou o objeto de estudo da
sua Sociologia do Direito.

A ideia do Direito Vivo é, para o autor, o que alimenta a sociedade. São fontes do
Direito que motivam e definem a vida em sociedade. Portanto, de acordo com o
que postula a Sociologia de Eugen Ehrlich, o Direito não se funda nas proposições
jurídicas, mas na lógica da vida social. Esta lógica aparece nos códigos de conduta,
nos costumes, no comércio, nos contratos de casamento, nos contratos de crédito,
nos testamentos, nos direitos sucessórios, nos estatutos de associações, e não
apenas no parágrafo do código. A norma consuetudinária constitui para o autor a
fonte originária do Direito como regra do agir humano.

Ehrlich situa com destaque o sistema de regras na sociedade, reivindicando


o trabalho investigativo, por acreditar que essa realidade vai muito além do
conhecimento na jurisprudência e na doutrina.

Anteriormente, quando afirmamos que o Movimento do Direito Livre sucedeu


outros movimentos no percurso da História do Direito, fez‑se referência ao
ambiente intelectual propício do século XIX contra o racionalismo iluminista.
A discussão em torno do modelo de cientificidade que nasce da ideologia
liberal‑individualista e tecnoformal já demonstrava sinais de esgotamento.

20
Sociologia Jurídica

Embora reunindo diversas correntes doutrinárias, estes movimentos têm em


comum a crítica ao formalismo tecnicista do Direito.

2.5.2 Movimento do direito livre


O Movimento do Direito Livre surge em 1906, na Alemanha, com Hermann
Kantorowicz, ano em que publica A luta pela Ciência do Direito. Eugen Ehrlich
esteve ao lado de Hermann Kantorowicz na fundação deste Movimento.

Figura 1.5 ‑ Hermann Jurista, natural da Posnânia, na antiga Polônia alemã,


Kantorowicz (1877‑1940)
Kantorowicz é referenciado como um dos mais
notáveis líderes do movimento do Direito Livre.

Em 1906, com o pseudônimo de Gnaeus Flavius,


editou um manifesto intitulado Der Kamp um die
Rechtswissenschaft (A luta pela Ciência do Direito).

Se François Gény, por meio do movimento da Livre


Pesquisa Científica, abalou a certeza da dogmática
jurídica, o Movimento do Direito Livre vai dar um
passo decisivo na emancipação da ciência do Direto
identificada, agora e radicalmente, com a sociedade.
Fonte: Meyer‑Pritzl (2013).
Ao partir da crença de que, na lei, há tantas lacunas
quanto palavras, Kantorowicz está reiterando o que
Gény e Ehrlich vinham afirmando, ao admitir que o juiz deva ou possa prescindir
da lei quando a solução por ela não levar em conta o que é, ou não, justo;
ou quando não houver compatibilidade entre o que estabelece a lei e a resolução
do conflito. A interpretação de Albuquerque leva a concluir que, segundo os
postulados do Movimento do Direito Livre (ALBUQUERQUE, 2008, p. 24‑25),
caberia ao magistrado decidir segundo sua convicção sobre o dispositivo da lei
quando aplicável ao fato concreto. Caso o magistrado venha a se sentir incapaz
de formular a sua convicção, a alternativa é inspirar‑se no Direito Livre. Há duas
linhas de pensamento filiadas a esse movimento: uma, moderada, identificada
por alguns analistas ao pensamento de Ehrlich – que defende a criação de norma
pelo magistrado quando ocorrer lacuna no ordenamento jurídico; e a segunda,
considerada mais radical, identificada com a postura de Kantorowicz, – que
vai propugnar a autonomia e competência do magistrado na criação da norma
quando considerá‑la injusta.

O que se pode concluir da abordagem de Löwi (2009, p. 30) sobre o contexto


histórico alemão é que os movimentos aqui analisados não representam uma
atividade exclusiva do Direito. Os economistas foram “os primeiros a proclamar
que as leis sociais são tão necessárias como as leis físicas”. Com isso, também
propugnaram a autonomia das leis do mercado, identificada com a lógica e

21
Capítulo 1

dinâmica da sociedade. Da mesma forma, o Movimento do Direito Livre reivindicava


a autonomia do saber jurídico, refutando a exclusividade do Legislativo na
produção de leis. (ALBUQUERQUE, 2008, p. 26).

Ehrlich e Kantorowicz não estiveram imunes a críticas. Na discussão que Weber


trava em Economia e Sociedade em torno da Sociologia Jurídica, seu ponto de
divergência – que abrangeu outras áreas do conhecimento além do Direito, está
na refutação de que o conhecimento possa ser uma reprodução, ou então, uma
cópia fiel da realidade. Aqui se trava uma disputa entre conhecimento e método.

22
Capítulo 2

Definições sociológicas
do Direito

Habilidades Detectar e contextualizar as contradições nos


argumentos que motivaram as divergências
internas na história epistemológica da ciência
jurídica. Utilizar o raciocínio jurídico com
argumento sociológico, aproximando o Direito
da realidade social.

Seções de estudo Seção 1:  O contexto histórico do surgimento


da Sociologia

Seção 2:  Os fundadores da Sociologia

23
Capítulo 2

Seção 1
O contexto histórico do surgimento da Sociologia
O surgimento da Sociologia como ciência da sociedade está associado à
conjunção de diversos fatores: o declínio da estrutura feudal, o surgimento da
classe burguesa, a mudança do modo de produção feudal para o modo de
produção capitalista. Tudo isso relacionado às Revoluções Industrial e Científica
do Século XVII. Dentro desse contexto, nasce o Estado moderno, amparado
sobre duas forças: política e jurídica.

Não foram apenas as mudanças que trouxeram a desestabilização da política


e da economia feudal. As novas tecnologias se refletiram em todas as esferas
da vida social, provocando mudanças profundas nas instituições, nas relações
sociais, na cultura e na vida política de toda a Europa, com impacto em grande
parte do mundo.

As transformações na economia se fizeram sentir de maneira mais problemática


na urbanização das cidades europeias, pela saída das famílias das zonas
rurais para as cidades. É preciso lembrar que, até a segunda metade do
século XVIII, o mundo era, em grande parte, rural. De acordo com Hobsbawm
(2004, p. 23‑189), na Rússia e na Escandinávia, a população era quase, na sua
totalidade (90 a 97%), rural. Observa que, mesmo naqueles países onde as
cidades se desenvolveram a partir de forte atividade comercial, como nas cidades
italianas, por exemplo, predominava a atividade e o estilo de vida do campo.
Mesmo na Inglaterra, a população urbana ultrapassou a rural somente em 1851
(2004, p. 41‑43).

Além do aumento populacional, a mobilidade foi um fator que afetou profundamente


o modo de exercer a sociabilidade. Os meios de transporte, pelo tamanho dos
povoados, permitiam o fácil deslocamento a pé para as igrejas e praças. Já, com
a migração para as cidades, sucumbiu o desejo de celebração dos cultos e das
conversas entre vizinhos ante o sacrifício do deslocamento a grandes distâncias.

Para se ter a dimensão dos conflitos: as garantias da propriedade privada na


Inglaterra reconheceram o Direito de cercamento das terras abertas (enclosures)
pelos proprietários, intensificando não apenas o êxodo rural como a oferta de
mão de obra e, por consequência, a proletarização do trabalho. As condições
degradantes de moradia e de trabalho agravavam as condições de saúde da
população, multiplicando, assim, os problemas sociais em quase todas as
cidades. Além disso, o preconceito das classes urbanizadas contra a população
rural se refletia no desprezo dos eruditos pelos “analfabetos e ignorantes”
do campo. Conta‑se que as comédias alemãs ridicularizavam as pequenas
populações rurais, como “caipiras da roça”.

24
Sociologia Jurídica

A demarcação entre a população rural e o modo de vida burguês, identificado


com a erudição, se fazia sentir não apenas no erguimento das muralhas, mas
na aparência. Entretanto era a população do campo quem produzia o alimento
que ia para as mesas dos burgueses. A classe média era constituída, na maior
parte, de negociantes de trigo, gado e o beneficiamento dos insumos agrícolas.
Outro estrato social, componente da classe burguesa, era constituído de
profissionais como advogados e tabeliães. Este estrato crescia pelas demandas na
intermediação dos interesses e litígios entre o patrimônio dos nobres, a propriedade
da terra e as atividades de crédito, pelo crescimento dos empréstimos aos
empresários mercantis que exploravam outras atividades, como a dos tecelões,
mais tarde o comércio de produtos têxteis.

Com a evolução das relações capitalistas de produção, não demorou muito para
que os problemas sociais se avolumassem: prostituição, homicídios, suicídios,
alcoolismo entre tantos outros problemas que culminariam com as revoltas da
população e os protestos dos trabalhadores nas fábricas. Em tese, os ideais de
uma sociedade livre eram identificados com o racionalismo progressista de uma
ordem social fortemente amarrada aos interesses econômicos da burguesia.

Contudo o desenvolvimento industrial foi, sem dúvida, o propulsor da interação


da pesquisa científica com a tecnologia. As demandas de novas tecnologias e da
produção em maior escala estenderam‑se para outros campos do conhecimento,
intensificando as realizações experimentais. E é nesse processo que a Sociologia
se desenvolve, associadamente à necessidade de construir a sua identidade com
os postulados científicos, e será apenas no século XIX que ela se volta para as
explicações dos fenômenos sociais.

Se analisarmos as premissas metodológicas do positivismo sociológico, ver‑se‑á


que, dentro do debate epistemológico, a priorização do conhecimento científico
deu‑se em decorrência do esgotamento do conhecimento abstrato e dos valores
tradicionais. Nesse contexto, ganharam mais importância as premissas da
neutralidade valorativa, o que vai orientar, segundo a interpretação de alguns
sociólogos (LÖWY, 2009, p. 20), o paradigma evolucionista. Não é sem razão
que a teoria crítica marca o surgimento da análise de uma sociedade que era
comprometida com o conhecimento científico, mas desvinculada, num primeiro
momento, da realidade histórico‑social das classes sociais.

No decorrer do século XIX, as contracorrentes vão formular hipóteses sobre a


dinâmica da sociedade em sua relação com a economia, a política, o Direito, entre
outras esferas da vida social, de maneira empiricamente controlável e verificável
em sua variação temporal e local.

25
Capítulo 2

1.1 Os precursores da Sociologia


Quando examinamos a história do pensamento político, percebe‑se que o interesse
pela explicação da realidade social surge ainda na Grécia, numa época em que
a Sociologia não havia se constituído como uma ciência formal. Não são poucos
os estudos que remontam aos filósofos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles,
passando de São Tomás de Aquino aos pensadores iluministas, na tentativa
de buscar explicações para os fenômenos sociológicos. Entretanto como bem
observa Machado Neto (2007, p. 72), é no Século XIX, com Augusto Comte e,
marcadamente, com as preocupações metodológicas de Émile Durkheim e de
Weber, que a Sociologia se constitui como Ciência da Sociedade.

A questão aqui me parece convergir para a análise de Raymond Aron (1982, p. 21‑34)
quando introduz a obra de Montesquieu, L’Esprit des Lois (O Espírito das leis), como
a primeira etapa do pensamento sociológico. O autor contra‑argumenta os que
classificam a obra de Montesquieu como política quando afirma que a relação entre
regime político e sociedade é estabelecida, em primeiro lugar e de modo explícito,
na tomada de consciência da dimensão da sociedade. Segundo Montesquieu, cada
um dos três tipos de governo corresponde a certa dimensão da sociedade.

A análise de Aron permite compreender o duplo sentido da classificação da


obra de Montesquieu no pensamento político: de um lado, ele chama a atenção
para a sociedade que constituiria o centro do Espírito das Leis, como a base
teórica principal de onde Montesquieu traçaria os critérios para a elaboração das
formas de governo. Do outro, Aron fornece, por consequência, um quadro mais
abrangente do objeto sociológico, quanto às preocupações de Montesquieu de
resolver a relação entre liberdade e poder, um problema obstinado da sociedade
da sua época, para o qual ele procura explicações no fenômeno das leis. Como
observa LÖWY (2004, p. 21‑22), a ideia de leis naturais sugere uma digressão dos
fatos que haviam marcado a vida social, sobretudo das instituições, tornando‑se
uma forma recorrente de combate à ordem social feudal.

Saint‑Simon, por exemplo, reconhecido por Durkheim como antecessor de Comte,


defendeu a concepção de leis como forças na sociedade, atuando como novos
vetores da coesão social. Os intérpretes de Saint‑Simon, como François Perroux,
afirmavam a seus seguidores que “nos tempos modernos era necessário buscar
explicações para a nova realidade social”. (LUKE, 1977, p. 29‑37).

O conjunto de mudanças que aconteceram no século XIX sem dúvida propiciou,


como se pode deduzir, a receptividade da Sociologia como uma área especializada
do conhecimento. Nossa intenção, daqui para frente, é fazer uma incursão pelas
escolas sociológicas, tentando mostrar quais são as implicações metodológicas da
teoria sociológica e como ela completa a técnica jurídica.

26
Sociologia Jurídica

Seção 2
Os fundadores da Sociologia

2.1 Augusto Comte


Considerado, por consenso, o fundador da Sociologia, Augusto Comte nasceu
em 1798, em Montpellier, França. Desde muito jovem, já demonstrava uma grande
capacidade literária e matemática. Aos dezesseis anos,
Figura 2.1 ‑ Auguste Comte
(1798‑1857) ingressou na Escola Politécnica de Paris, no curso de
Medicina. Logo se envolveu com um movimento de
protesto estudantil e, em consequência disso, a Escola
Politécnica foi fechada, e Comte, expulso. Retorna em
uma breve temporada a Montpellier, sua terra natal,
mas retoma, em pouco tempo, seus estudos agora
voltados para a atividade política.

Torna‑se conhecido no meio intelectual francês


e logo é atraído para o circulo de Saint‑Simon,
vindo, mais tarde, a ser convidado para ser seu
secretário. No decorrer do período em que atuou
Fonte: Maelstrom (2005). com Saint‑Simon, Comte escreveu seu trabalho
Plano das Operações Científicas Necessárias para
a Reorganização da Sociedade. Para Lukes (1977, p. 38), foi esta obra que deu
consistência ao pensamento de Saint‑Simon.

Comte conduz seus estudos para a sociedade, buscando um modelo teórico que
ele definiu como uma nova consciência da realidade social. Essa consciência seria
a científica. Comte queria tornar a realidade inteligível, anulando a subjetividade
na explicação dos fatos. Ele desenvolveu um método explicativo da realidade
social, rigoroso, que exigia a produção do conhecimento somente nas condições
em que os fenômenos podem ser observáveis, postulando que o método
positivista da Sociologia deveria ser amparado na observação, na comparação e
na experimentação. A intenção de Comte era fornecer um método que viesse a ter
aplicação nos diversos estudos do comportamento humano e da sociedade. A Lei
dos Três Estágios tornou‑se a obra de referência da Sociologia. Nesta obra, Comte
mostra que, para responder aos impulsos mais elementares de compreender os
fenômenos da natureza e do seu papel no mundo, a humanidade teria passado
por três estágios: o teológico, o metafísico e o positivo. No primeiro estágio,
o teológico, a humanidade explicava os fenômenos como ato e vontade dos seres
espirituais. Deus estava no centro do mundo e tudo a ele era atribuído. No segundo

27
Capítulo 2

estágio, o metafísico, a sociedade passa a ser vista como algo natural e já não
confia plenamente nas explicações de que a sociedade teria resultado de causas
sobrenaturais. No estágio positivo, Comte associa as descobertas e as conquistas
que o homem europeu havia alcançado no século XVIII com os avanços da Física e
da Química, que ele denominou de as primeiras ciências positivas, tentando incluir
a Sociologia, que ele denominou, num primeiro momento, de Física Social. Comte
seguiu explicando o progresso da humanidade a partir das leis invariáveis dos
três estágios.

2.1.1 O Direito e o Positivismo de Comte


Tem sido frequente a associação entre o positivismo jurídico de Hans Kelsen com
o positivismo de Augusto Comte. No entanto essa associação tem sido negada e
seu equívoco advertido. De qualquer modo, é inegável a contribuição de Comte
ao apresentar o estudo das leis do desenvolvimento histórico, introduzindo dois
elementos na concepção da sociedade: a estática e a dinâmica.

Comparando a sociedade a um organismo, Comte vai tomar como ponto de


partida que não se pode compreender o funcionamento de um órgão sem
identificar a sua função no conjunto: no corpo. Por analogia, toma o Estado e a
política como órgãos; e o corpo, a sociedade. Nessa conjunção dinâmica dos
órgãos em relação ao funcionamento do todo, Comte vai alcançar a compreensão
dos laços de solidariedade recíprocos, o que equivale pensar a função de cada
instituição por analogia com a relação do órgão e o corpo, e, nesta relação,
a interdependência como um processo cuja dinâmica baseia‑se essencialmente
na reciprocidade. É aqui que Comte extrai o fundamento da ordem.

Na interpretação de Aron (1982, p. 71‑104), a estática social de Comte traz à luz a


ordem social de toda a sociedade humana; e, a dinâmica, o processo que retraça
as mudanças ou variações que se alternam ao longo do tempo.

A religião seria, em resumo, a primeira fonte de unidade social, por exigir o


reconhecimento de todos os indivíduos, para que possa realizar a unidade.
A fonte da unidade, ao mesmo tempo em que se recria, se desloca como uma
necessidade determinante da ordem social. É nesse processo que Comte explica
o Direito positivo, em sua relação entre estática e dinâmica, como princípios que
justificam a coexistência e a sucessão; e, necessariamente, o progresso como o
desenvolvimento da ordem.

28
Sociologia Jurídica

2.2 Émile Durkheim


Na linha de sucessão de Comte, Émile Durkheim é considerado o mais notável
estudioso da sociedade. Não é raro ser considerado o pai da Sociologia, por ter
consolidado, através da investigação científica, os fenômenos sociais.

Émile Durkheim nasceu em Epinal, região de Lorraine,


Figura 2.2 ‑ Émile Durkheim
(1858‑1917)
na França, em 1858, numa família de ascendência
judaica. Estudou filosofia na Escola Normal Superior
de Paris. Passou boa parte da sua vida em meio a
um turbulento período da história da França. Prestou
concurso para ensinar filosofia, sendo nomeado,
em 1882, como docente em Sens e Saint‑Quentin.
Em 1885, licencia‑se naquelas instituições para estudar
ciências sociais em Paris e, depois, na Alemanha,
com Wundt, onde permanece até 1886. Em 1887,
é nomeado professor da Universidade de Bordeaux,
na Sorbonne, para ministrar o primeiro curso de
Fonte: Burton (2011).
Sociologia nas universidades francesas. O tema
principal de suas aulas era os laços sociais que ligavam
o homem à sua sociedade. Em 1896, funda L’Année Sociologique, um jornal que
orientava o pensamento e a pesquisa sociológica na França.

Para muitos dos seus intérpretes, o ambiente político da França na III República
teve influência na seleção dos temas que ele elegeu para seus estudos.
Esse tempo foi marcado por vários acontecimentos: além das disputas
franco‑alemãs e da derrota francesa, como foi o caso de Lorraine, sua cidade
natal, outros temas tornaram‑se preocupações mais imediatas: o endividamento
do país pela guerra e as medidas deliberadas pelo poder público, uma delas, a lei
Naquet, que instituiu o divórcio na França em meio a um acirrado debate entre
parlamentares que perdurou de 1882 até 84, e a instituição da educação laica
pelo Ministro da Instrução Pública, Jules Ferry, em 1882.

A nova decisão tornava a escola obrigatória e gratuita dos 6 aos 13 anos e proibia o
ensino de religião nas escolas. No lugar da religião, era ensinado o dever patriótico.
Este fato, segundo comentário de José Albertino Rodrigues (1984, p. 8‑9), levaria
à declaração de Alfred Fouilé, escritor francês, em uma publicação de 1900: uma
das grandes preocupações de Durkheim é “a dissolução das crenças morais”.
O próprio Durkheim diagnosticou na vida social da época uma crise ou vazio moral
da III República.

Uma das suas maiores preocupações era o enfraquecimento das instituições


tradicionais de educação: ele defendeu, obstinadamente, que a educação seria
uma função essencialmente social. Sua preocupação com o método sociológico,

29
Capítulo 2

portanto, não esteve alheio a essa questão. Numa de suas obras mais antigas,
Da Divisão Social do Trabalho, Durkheim diverge da base contratualista do
utilitarismo inglês, argumentando que a vida em sociedade – tomando a ordem
como inerente a ela – não poderia ser explicada em termos de interesses
individuais. As fontes da ordem seriam externas à vontade dos indivíduos, e sua
função seria criar e manter a solidariedade.

A explicação para a solidariedade, Durkheim vai buscá‑la nas formas mais


primitivas de organização social. Ali ele descobre que o sentimento do grupo seria
propriamente as crenças religiosas e a solidariedade, um fenômeno explicável
pelo respeito à hierarquia e pela divisão social do trabalho. Com isso ele mostra
que as ideias ou categorias do pensamento têm uma origem social.

Como ele explica as mudanças sociais da sua época?

Pela mudança de um estágio mecânico, caracterizado por uma solidariedade


com baixa diferenciação funcional, para uma solidariedade com mais complexa
diferenciação funcional. Esta ele chamou de solidariedade orgânica, onde a
solidariedade estaria expressa nos códigos legais e nas formas de ordenamento
jurídico hoje conhecidos.

É possível perceber que o seu compromisso com o positivismo de Comte vai


além dos postulados deterministas das leis dos três estágios. Em sua aula
inaugural do curso de Ciências Sociais em Bordeaux, no ano de 1887, evocou
a necessidade de se aplicar o método sociológico para se ter a compreensão
do objeto de estudo da Sociologia: o fato social. E denominou como método,
a observação e a experimentação indireta ou método comparativo, afirmando
que, a partir disso, pode‑se rejeitar ou confirmar as teorias.

Na sua preocupação de delimitar o objeto sociológico, distinguiu os elementos


especificamente sociais dos psicológicos e biológicos. Definiu quatro critérios
que, segundo sua concepção, constituem tarefas obrigatórias do sociólogo
estudar. Em grandes lindas, são os que seguem. (CASTRO; DIAS, 1992, p. 28‑96).

Em toda sociedade, existem ideias e sentimentos comuns, compartilhados pelos


membros da sociedade e transmitidos de geração para geração, garantindo
a unidade da vida coletiva. É o caso das lendas populares, das tradições
religiosas, das crenças políticas, da linguagem etc., que não são de ordem
psicológica individual.

Em toda sociedade, as práticas compartilhadas pela universalidade dos cidadãos


ultrapassam a vontade do indivíduo, visam à prática e têm o caráter de ser
obrigatórias. Têm um caráter de anterioridade, o que obriga os cidadãos a se
conformarem a elas.

30
Sociologia Jurídica

Algumas dessas máximas têm uma força de tal modo obrigatória que a sociedade
impede, por meio de medidas precisas, que elas sejam infringidas. Não deixa por
conta da opinião pública a responsabilidade de zelar pelo respeito a elas, mas
atribui essa responsabilidade aos representantes especialmente autorizados,
mediante a aplicação de fórmulas jurídicas.

Os fenômenos econômicos são fenômenos sociais e, para a sua compreensão,


é preciso que renuncie a pretensão de uma ciência autônoma.

No seu livro As Regras do Método Sociológico, Durkheim separa o positivismo


da filosofia e constrói uma ciência empírica voltada para a compreensão
da realidade social. Isso implicou a concepção do fato social como coisa
(DURKHEIM, 1977, p. XX‑XXI), algo que exerce uma coerção sobre o indivíduo.
Durkheim chamou‑o de representações mentais, que nada mais são do que
imagens da realidade empírica.

O que é o fato social?

A obra As Regras do Método Sociológico, publicada em 1895, é considerada a


primeira de caráter metodológico. Nela Durkheim estabelece os critérios para uma
investigação científica e explicação sociológica. Embora, cronologicamente, tenha
sido Division du Travail Social (Divisão do Trabalho Social) um trabalho de pesquisa
anterior a esse, Durkheim testou os princípios metodológicos e, a partir dele,
diversos outros trabalhos de investigação foram realizados.

Em a definição dos fatos sociais, Durkheim apresenta os primeiros delineamentos


do método sociológico: “Antes de indagar qual é o método que convém ao estudo
dos fatos sociais, é necessário saber que fatos podem ser assim chamados.”
(DURKHEIM, 1977, p. XX).

Na verdade, há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos com


caracteres nítidos, que se distingue daqueles estudados pelas outras ciências
da natureza.

Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo


ou de cidadão, quando me desincumbo de encargos
que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de
mim e de meus atos, no Direito e nos costumes. Mesmo
estando de acordo com sentimentos que me são próprios,
sentindo‑lhes interiormente a realidade, esta não deixa de
ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi‑os
através da educação. (DURKHEIM, 1977, p. XX‑XXI).

31
Capítulo 2

Durkheim está referindo‑se à maneira característica de toda sociedade exprimir‑se


simbolicamente em seus costumes e suas instituições. São formas simbólicas,
segundo ele, porque devem ser entendidas como construção do coletivo. Equivale
dizer que esses deveres se impõem a cada um de nós, porque não dependem da
vontade individual de exercê‑los, ou não.

Começa‑se a perceber que Durkheim está tratando o comportamento do indivíduo


a partir da obrigação de cumprir normas. Quando se trata da conduta do indivíduo,
definido por ele como resultado de fontes coercitivas de normas, o fato social tem a
função de garantir a ordem.

Portanto as obrigações, as leis, os costumes têm, na concepção de Durkheim,


existência externa e, por isso, muitas vezes o indivíduo é constrangido pelos
costumes e pelos códigos legalmente estabelecidos.

Além do estabelecimento das premissas de uma teoria sociológica do


conhecimento, Durkheim dedicou seus estudos a diversos fenômenos sociais
que, até então, eram diagnosticados como doença ou transtornos psicológicos.
Em estudos sobre o suicídio e o homicídio, concluiu que, na passagem da forma
mecânica para a orgânica, haveria uma quebra da ordem social. Associando os
recursos do método quantitativo, ele mostra, em O Suicídio, dois aspectos dessa
conclusão: o primeiro é que o método estatístico pode revelar outra realidade
e desestabilizar certas convicções, como a que explicava o suicídio como
causas individuais ou psicológicas. O segundo aspecto é que, na passagem da
forma mecânica para a orgânica, a divisão social do trabalho não produziria os
elementos necessários para a solidariedade, havendo uma ruptura da ordem
social que chamou de anomia.

Nesse processo de transformações, as formas de relacionamento sofreriam


mutações para um modelo de relações sociais individualizadas, dificultando
a integração social. O apego demasiado ao ego resultaria no fortalecimento
do individualismo, tornando as relações sociais instáveis e frágeis, e mais
frequentemente surgiriam os conflitos sociais e toda uma gama de distúrbios
como suicídio, criminalidade, etc.

Concluiu, das pesquisas que realizou, haver tendência para o suicídio altruístico
nas sociedades organizadas pelo tipo de solidariedade mecânica e, nas
sociedades onde o tipo de solidariedade é orgânico, o suicídio tenderia a ser
egoístico. Durkheim aplicou o mesmo método estatístico, como pode ser
conferido em a Divisão Social do Trabalho (DURKHEIM, 1999, p. 127‑150),
a diversos outros fenômenos sociais, como o divórcio, a delinquência e

32
Sociologia Jurídica

problemas econômicos. Na pesquisa comparativa, constatou que os índices


ocorrentes nos tipos mecânicos e orgânicos apresentavam uma variação das
taxas, na mesma proporção que havia verificado no suicídio.

A influência de Durkheim na pesquisa sociológica perdura até os dias atuais.


Após sua morte em 1917, o sociólogo Marcel Mauss, seu sobrinho, levou
adiante sua obra, agregando outros elementos que deram mais sustentação
teórico‑metodológica ao fato social de Durkheim. Entre as contribuições está
a noção de fato social total. Com essa noção, a abordagem sociológica dos
fenômenos sociais permite ampliar a compreensão das diferenças, que se pode
resumir no seguinte trecho da Introdução à obra de Marcel Mauss (1974, p. 15):
“estudo do concreto que, por isso, é do completo”, afirmando a necessidade de
perceber sobre os comportamentos dos seres humanos “não é a oração ou o
Direito, mas o melanésio de tal ou qual ilha, Roma, Atenas”.

2.2.1 A sociologia jurídica na teoria e método de Émile Durkheim


Nos livros A Divisão Social do Trabalho e As Regras do Método Sociológico,
quando classifica as formas de solidariedade e define o fato social, Durkheim faz
a seguinte afirmação sobre o princípio da solidariedade, independente de ser do
tipo mecânica ou orgânica: “a norma, as obrigações, os contratos, as leis e os
costumes são fatos sociais, porque estabelecem, de maneira coercitiva, padrões
de conduta cuja função é a solidariedade do grupo e o respeito recíproco dos
membros.” (DURKHEIM, 1999, p. 149). Para Durkheim, a solidariedade, expressão
da vida em sociedade, é totalmente moral, e, com o mesmo sentido que Kant
(2008, p. 37‑45) empregou para distinguir a norma moral da norma positiva,
usando a expressão internalidade e externalidade, Durkheim deduz que o “fato
interno nos escapa”, mas o fato externo é o que simboliza o interno. Esse símbolo
é o Direito.

Conclui, ainda, (1999, p. 34) que, “onde existir a solidariedade social”, ela orienta
“fortemente” a conduta do homem para viver em permanente contato uns com os
outros: “coloca‑os frequentemente em contato, multiplica as ocasiões de se relacionar”.

É importante lembrar que, ao analisar a passagem da forma mecânica para a


orgânica, Durkheim previu que nem sempre a divisão social do trabalho produziria
os elementos necessários para a solidariedade, podendo ocorrer uma ruptura
da ordem social, que ele denominou de anomia. Nesta situação, ele demonstrou
que as normas entrariam em colapso e a sociedade perderia o controle sobre as
ações individuais dos seus membros – em condições de normalidade, elas seriam
compartilhadas pelos membros do grupo. Isso levaria a mutações na conduta dos
indivíduos, dificultando a integração social, provocando distúrbios como suicídio,
criminalidade, etc., que ele demonstrou empiricamente na décima lição Deveres
Gerais do Livro Lições de Sociologia, quando analisa o Homicídio.

33
Capítulo 2

Os deveres que os homens têm uns para com os outros porque


pertencem a um grupo social determinado, porque fazem
parte de uma mesma família, de uma mesma corporação,
de um mesmo Estado. Mas há outros que são independentes
de qualquer agrupamento particular. Devo respeitar a vida,
a propriedade, a honra de meus semelhantes mesmo que não
sejam meus parentes nem meus compatriotas. (DURKHEIM,
2002, p. 153).

Durkheim prossegue argumentando em todas as suas obras, que a relação entre a


ordem social com os deveres que todos os indivíduos têm uns para com os outros
é que garante a organização da sociedade. Isso constitui regra geral da sociedade,
a ponto de já estar impresso na consciência de cada um. Neste sentido, Durkheim
considerou a tarefa da educação essencial. A sua reação contra a instituição
da educação laica na França, em 1882 – que substituiu a religião pelo dever
patriótico – ficou demonstrada no que ele classificou como crise ou vazio moral da
sociedade da III República. É preciso ter em mente que Durkheim enfatizou estar no
íntimo a obrigatoriedade do compromisso de uns com os outros. A educação seria
para Durkheim o meio através do qual toda sociedade prepararia “o íntimo dos
seus membros” para sua existência como sociedade.

Mas essa função da educação que ele considerou desejável, nos países
desenvolvidos tendeu a se diversificar e a se especializar. Durkheim alertou para a
necessidade de a Sociologia atentar para as tendências sociais. Essa preocupação
ele demonstra empiricamente quando compara o significado dos crimes nas
sociedades arcaicas e modernas. Mostra que há variações na forma de cada grupo
étnico, ou sociedade, atribuir significados a determinadas práticas, o que, para ele,
demonstra o maior ou menor valor do qual dependeria a gravidade da pena. Mostra
que, na Grécia antiga, o homicídio somente era punido mediante solicitação da
família, e esta punição podia se limitar a uma indenização pecuniária. Já, em Roma,
na Judeia, o homicídio era considerado um crime público, o que não acontecia para
casos em que a vítima não chegasse a óbito. Da mesma forma, o roubo. Mesmo
assim, cabia às vítimas buscar a reparação, se quisessem, podendo permitir que o
culpado se redimisse mediante uma indenização.

Mostra Durkheim que esses atos somente eram responsabilizados civilmente,


quando envolvia perdas e danos. Mas não constituíam atos tão graves para
justificar a repressão pelo Estado. Ao contrário, Durkheim nos mostra que

Os verdadeiros crimes são então aqueles dirigidos contra


a ordem familiar, religiosa, política. Tudo o que ameaça a
organização política da sociedade, toda falta para com as
divindades públicas, que não são mais que expressões
simbólicas do Estado, toda violação dos deveres domésticos
são punidos [...]. (DURKHEIM, 2002, p. 155).

34
Sociologia Jurídica

Que conclusões se pode extrair do estudo de Durkheim?

A resposta não é difícil. Devemos lembrar que, em Da Divisão Social do Trabalho,


o que é vital para a ordem social é a solidariedade. A ênfase de Durkheim na
educação justifica isso.

Em Lições de Sociologia, permanece sua preocupação de mostrar o que ameaça


a organização da sociedade. Argumenta que, nas sociedades mais antigas,
onde o tipo de solidariedade é mecânico, os sentimentos coletivos são mais
fortes, porque são as que menos toleram as infrações às regras. Nestes casos,
a intolerância, explica ele, se deve a que a razão de ser da norma é a existência e
manutenção do grupo, seja ele familiar, político ou religioso.

Se, na Grécia antiga, a vítima somente era punida se a família solicitasse, ficando
muitas vezes sujeita a reparação parcial pela indenização pecuniária, era porque
o dever de punir era da família. Tanto quanto o grupo religioso, a família é
um emblema da vida coletiva. Não é o indivíduo o objeto do respeito, mas a
instituição família. Neste caso, diz Durkheim, na solidariedade mecânica “a dor
do indivíduo comove pouco”. Já, nas sociedades orgânicas, “o grupo já não nos
parece ter valor por si mesmo e para si.” (DURKHEIM, 2002, p. 156).

Nas sociedades contemporâneas, o Direito do indivíduo é o primeiro a ser


reconhecido, o que torna o homicídio uma prática proibida, sob forte ameaça
de punição. O valor que, num tipo de solidariedade mecânica, era dirigido à
família, aos deuses ou às coisas como a terra, os mananciais de água, etc.,
é deslocado para o indivíduo, nas sociedades modernas. Esse deslocamento,
no entanto, que caracterizou a passagem do Direito natural para o Direito positivo,
se contribuiu, de um lado, para a redução do homicídio, por outro não coibiu novas
configurações: os roubos, corrupção, abusos contra a criança, espancamentos e
diversas formas de fraudes.

A principal contribuição de Durkheim para o Direito, considerando a convergência


das Escolas Históricas do Direito, a Escola da Livre Pesquisa Científica e a Escola
Livre do Direito, é a reconexão da norma com a noção de solidariedade, em cujo
fundamento a Sociologia Jurídica encontra a explicação para o caráter coercitivo
do Direito na sua proporcionalidade entre delito e sanção.

Quando Durkheim se refere à importância do Método no conhecimento sociológico,


ele situa o cruzamento da sincronia e da diacronia entre duas ordens, a mecânica
e a orgânica, e demonstra que o que dá sentido à ordem social nos dois tipos
de organização é a solidariedade. E, nos dois tipos, ele também demonstrou que
o Direito Penal é vital, porque, ao proibir, ele qualifica o agente que se opõe à
sociedade – o que ele chamou de o órgão da consciência coletiva. Ora, neste caso,
a autoridade do Direito fica evidenciada pela proteção contra o enfraquecimento da

35
Capítulo 2

solidariedade. Mas não se pode esquecer que Durkheim observou que nas áreas
onde uma ordem findava nem sempre surgia outra imediatamente. Foi neste vácuo
que ele identificou o suicídio anômico.

Estudos mais recentes mostram a atualidade do método durkheimiano na


Sociologia do Direito Internacional. Por volta de 1990 aproximadamente,
pesquisas sobre as relações litigiosas envolvendo culturas diferentes mostraram
a anomia nas divergências entre as partes pelo conflito de significado. Isto ocorre
quando, havendo indivíduos disputando judicialmente Direitos, uma das partes
procede de cultura diferente.

Na África, por exemplo, Comaroff e Comaroff (1999, p. 279‑303) detectaram


no tráfico de órgãos a apropriação, por parte do mercado internacional de
órgãos, das práticas rituais em algumas tribos onde isto não constituía crime.
Distorceu‑se, deste modo, o significado ritual para o tráfico de órgãos, uma
prática criminosa que teve ampla repercussão no mundo.

Geertz (1978, p. 225‑228), na pesquisa que fez sobre o Estado em Bali, chamou
atenção para o risco de se considerarem os agentes e as práticas fora do
contexto histórico e cultural. Criticando a unilateralidade do conhecimento em
culturas diferentes, desmistificou o racionalismo pela interpretação unilateral,
classificando‑a como ato de desprezo às crenças e à história local. Esclareceu,
ainda, que as interpretações leigas não conseguiam alcançar a alta complexidade
simbólica da disputa do poder naquele país, o que não poderia ser reduzido à
questão religiosa do islamismo.

A referência a Geertz ajuda a entender as preocupações que mobilizaram


Friedrich Carl von Savigny, François Géni e Hermann Kantorowicz e Eugen Ehrlich,
contra o racionalismo jurídico. Neste ponto, já se pode estabelecer conexão entre
a teoria do conhecimento sociológico com o que Durkheim chamou de anomia.

Dentro da própria Sociologia, a teoria da comunicação intercultural fez importantes


progressos no estudo das interações sociais em anos mais recentes. A esse
respeito, a Sociologia do Direito Internacional trouxe à luz diversos problemas e
irregularidades que ocorriam nas fronteiras entre países, por não haver normas
internacionais legais para a resolução dos conflitos individuais privados. Gessner
e Schade (1994, p. 267‑285) observam que, nos casos de alta restrição cultural,
o nível do limiar do conflito tende a ser fraco ou “inferior” na medida em que a
parte mais fraca (em termos da identidade cultural) acaba optando por estratégias
de persuasão e de prevenção. Isso não significa que o conflito de interesses não
exista ou persista. Além disso, os autores chamam atenção para a precariedade
do Direito Internacional, ao afirmarem: “Mesmo nos casos em que se aplica o
Direito unificado, este não realizou a menor unificação na prática judicial, nos
países signatários”. Os juízes domésticos, por exemplo, observam os autores,
são considerados incompetentes em assuntos internacionais.

36
Sociologia Jurídica

A hipótese formulada pelos autores é que o problema da precariedade do Direito


unificado não se deve tanto à falta de normas, mas à orientação dos agentes,
os quais acabariam remetendo‑se às leis do seu próprio país, o que colocaria a
posição dos agentes em situação anômica.

Na Inglaterra, por exemplo, comenta Laraia (2012, p. 55‑65), os advogados


criminalistas ingleses se defrontam com casos de agressões e até de
assassinatos praticados por pais hindus contra suas filhas, pelo fato de elas não
aceitarem a interferência dos pais na escolha dos cônjuges. Observa o autor que
esses pais não são ingleses; emigraram da Índia, onde, em grande parte das
etnias locais, são os pais os responsáveis pela união conjugal dos seus filhos.
A escolha é uma decisão tomada em geral muito cedo, quando a menina nem
sempre chegou a alcançar a puberdade. A recusa das filhas é considerada uma
ofensa grave, que pode ser punida com medidas extremas. Embora os pais
estejam sob o ordenamento e os costumes ingleses, o advogado deve conhecer
a cultura do réu.

Nesses casos, a Escola da Sociologia Interacionista vem reinterpretando a anomia


como um sintoma; e a causa, como estrutura de ação. Neste caso, a norma não
perderia a sua vigência, mas ela não teria controle suficiente sobre a conduta de
seus membros.

Essa hipótese não vai muito além do que Durkheim já havia demonstrado quando
comparou o homicídio nas sociedades mecânicas com as sociedades modernas.
No caso do pai hindu na Inglaterra, a anomia está no vácuo entre a cultura
hindu – onde o valor da solidariedade está na família, e é esta que autoriza a
decisão do pai na escolha do cônjuge para a filha, mantendo a obediência da filha
sob forte ameaça de punição; e a cultura Inglesa, que é o ambiente onde a filha
está sendo educada e socializada, e onde o tipo de solidariedade não está mais
na família, mas no Direito do indivíduo, que é o primeiro a ser reconhecido. Neste
caso, a intensidade da força se desloca da família para a imposição das normas.

No Brasil, diversos estudos têm mostrado os conflitos sociais como anomia,


fornecendo dados que confirmam as hipóteses de Gessner e Schade. Estudos
recentes sobre as práticas de violência conjugal (RIFIOTIS, 2012, p. 300‑306)
revelam que as políticas públicas de combate à impunidade, nos casos de violência
contra a mulher, resultaram no amplo acesso à Justiça, porém um dado mais
revelador do trabalho de Rifiotis é que as medidas de curto prazo reapropriadas
pelas próprias mulheres que procuram as delegacias para apresentarem suas
queixas, no curto prazo alteraram a figura do agressor como réu, quando se
aproximaram mais dos procedimentos típicos dos mecanismos informais de
resolução de conflitos. Disso deduz o autor que a interpretação “criminalizadora”
representava uma série de obstáculos à compreensão dos conflitos interpessoais
e às possibilidades de neles intervir. E conclui: a judicialização, neste caso, como

37
Capítulo 2

um processo, não se limitou à violência conjugal, mas, ao ampliar o acesso à


Justiça, acabaria desvalorizando outras formas de resolução de conflitos. Há nesta
análise de Rifiotis convergência com a análise de Gessner e Schade quando
estes concluem que não é a falta de norma, mas que, ao se limitar ao texto da
lei, o agente do Direito cria a anomia quando não interpreta adequadamente o
comportamento dos litigantes e a natureza do conflito incorrendo em problemas
de comunicação. Aqui está se referindo a duas lógicas: a lógica social do
comportamento grupal e a lógica técnica do Direito.

Diversos estudos e pesquisas sociológicas no Brasil, quando apontam o abandono


de crianças e adolescentes nos centros urbanos das grandes cidades brasileiras,
como a causa da violência e da criminalidade, demonstram convergência com
os estudos da sociologia internacional com relação à anomia. Nestes casos,
a reinterpretação da anomia pela Escola da Sociologia Interacionista pode ser
sugestiva para se avaliar a eficácia do artigo 227 da Constituição Brasileira e o
Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. Isso vale para a compreensão do
comportamento humano frente a outras normas.

2.3 Max Weber


Max Weber nasceu em Erfurt, Turíngia na Alemanha, em 1864. Seu pai era jurista
e influente político de uma família de comerciantes de linho e proprietária de
indústrias têxteis na Alemanha Ocidental. Aos 13 anos, Max Weber já escrevia
Figura 2.3 ‑ Max Weber ensaios históricos e, ainda jovem, criticou Cícero
(1864‑1920)
como um “diletante das frases”, classificando‑o
como mau político e orador irresponsável.
Aos 17 anos, segue para Heidelberg e se matricula no
curso de Direito. Estudou, simultaneamente, História,
Economia e Filosofia com celebridades da época.

Aos 19 anos, teve que prestar um ano de serviço


militar, experienciando os problemas das fronteiras
germano‑eslavas que já se haviam revelado como
uma fronteira cultural.

Weber concluiu o curso de Direito e começou a


Fonte: Löser (2005). trabalhar nos tribunais de Berlim. Dedicou‑se a
uma área específica onde as histórias econômica e
jurídica se confundiam. Escreveu sua tese de doutorado em 1889, sobre a história
das companhias de comércio da Idade Média. Em 1889, prestava seu segundo
exame de Direito, habilitando‑se para o Direito Comercial alemão e romano.
Escreveu, em 1891, um tratado que intitulou Instituições Agrárias. Neste trabalho,
seus intérpretes teriam identificado, no modesto título, uma brilhante análise
sociológica, econômica e cultural da sociedade antiga, tema ao qual ele
repetidamente retomava.

38
Sociologia Jurídica

Em 1895, Weber proferiu sua aula inaugural na Universidade com o tema o Estado
Nacional e a Política Econômica. Em 1896, sucedeu seus mestres nas cadeiras
que haviam ocupado, tornando‑se respeitado pelo brilhante desempenho do
trabalho intelectual.

Em 1917, foi professor visitante na Universidade de Viena e, em 1919, foi


convidado a ocupar a mesma cadeira em Munique. Escreveu diversas obras e
realizou inúmeras pesquisas. Em 1918, por problemas de saúde, se afasta da
atividade docente, mas continua escrevendo para diversos jornais alemães e
colaborando com eles até sua morte em 1920.

Durante o período em que esteve licenciado, dedicou‑se ao estudo do método


na pesquisa comparativa. Estudou as civilizações chinesa, hindu e judaica. Nutria
tão forte interesse pela política, que, na República de Weimar, serviu no comitê de
peritos que redigiram a Constituição. Embora tenha reconhecidamente assimilado
de Marx a crítica ao capitalismo e à democracia burguesa, defendeu o governo
constitucional democrático, como um governo do povo e para o povo. Acreditava
que a democracia constitucional seria a única solução para os problemas internos
e externos do seu país.

Max Weber é considerado, ao lado de Comte e Durkheim, o fundador da


Sociologia. Publicou diversas obras, dentre as quais Economia e Sociedade,
a qual destinou boa parte ao estudo da Sociologia Jurídica.

Suas obras resultaram de pesquisas e, sempre com espírito crítico e analítico,


avaliou os contrastes. Comentam seus intérpretes que, em viagens a Nova York,
observou a falta de leis e a violência, ao mesmo tempo em que comparava
os palácios com as choupanas, a mistura de povos e divisões de classes.
Impressionou‑se com as condições precárias de transporte dos trabalhadores.
Suas impressões sobre os Estados Unidos deram origem ao livro A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo. Comparou a influência da religião na
economia, sugerindo que o protestantismo constituíra‑se num importante fator de
consolidação do capitalismo.

É consenso entre seus biógrafos e intérpretes que Weber foi um homem sensível
aos problemas filosóficos, metodológicos e teóricos da Sociologia. Mas, na
leitura de suas obras, fica evidenciado que todas essas preocupações estiveram
associadas aos problemas políticos de seu país e de seu tempo. Um de seus
primeiros estudos científicos foi a investigação das condições dos trabalhadores
rurais na Alemanha Oriental. Mas, a par desse problema, Weber, também em
A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, ocupou‑se da interpretação da
mentalidade humana do Ocidente.

Weber definiu a Sociologia como uma ciência interpretativa; e, a ação social,


como o seu objeto de estudo por excelência. Uma das características do seu
posicionamento ante uma Sociologia interpretativa deve‑se à sua concepção

39
Capítulo 2

da ciência moral como cultura. Não se pode esquecer que Weber perseguiu
o problema da teoria do conhecimento em toda sua teoria da ação, ao opor o
conceito à realidade e a relação entre lei e história.

Para Weber, o homem pode compreender suas próprias intenções pela


introspecção e pode, inclusive, interceptar os motivos da conduta de outros.
Partiu, então, do conceito de ação e, dele, alcançou as motivações dos agentes.
Neste processo, considerou o indivíduo planejando as suas ações, agindo de
acordo com os seus impulsos mais primários, ou, ainda, agindo de acordo com
o que um espera do outro.

Como Weber definiu a ação social?

A ação para Weber é toda conduta humana. O indivíduo que age, o faz segundo
uma motivação interna ou externa. Esta motivação indica o sentido que o sujeito
dá a ela. A partir deste critério, Weber vai construir um conceito de grupo, tomando
esse ator como aquele que age levando em consideração a conduta dos outros.

Na proposta teórica de Weber, estão os tipos de ação que ele deduziu, como
vimos antes, dos elementos de dada estrutura social. Então todo indivíduo age de
acordo com as seguintes motivações:

•• Racional conforme fins determinados. Trata‑se de ações


motivadas por fins específicos. Para alcançá‑los, o agente
avalia racionalmente os fins e utiliza as condições e os meios
ao seu alcance.
•• Valores. São ações racionalmente motivadas por crenças, por
valores éticos, religiosos, estéticos. São ações estritamente
determinadas por valor.
•• Afetivas. É todo tipo de ação motivada pelo afeto ou por emoções
que não são previstas nem planejadas. São irracionais.
•• Tradição. Trata‑se de condutas orientadas por determinados
costumes arraigados.

A partir desses tipos de motivações, Weber vai concluir que existem critérios que
podem ser deduzidos como externos, porque orientam com certa regularidade a
conduta dos indivíduos e dão sentido às suas ações em certas condições, pela
manifestação simbólica e pelos tipos de relações sociais.

40
Sociologia Jurídica

Figura 2.4 – Indivíduos praticando ações

Fonte: GBE Facts (2013).

Weber extraiu tal conclusão dos elementos da cultura que teriam influenciado o tipo
de escolha do indivíduo. Disso se pode deduzir que ele distinguiu as motivações
externas, as essencialmente culturais, das internas, aquelas presentes nos tipos
de ação afetiva que ele denominou de irracionais. Estas ele deduziu dos impulsos
mais primários. Mas, até mesmo os tipos de ação deduzidos das experiências mais
subjetivas e das reações mais profundas como as que expressam os sentimentos
entre pais e filhos por exemplo, Weber pôde objetivá‑los pela linguagem e pelos
símbolos que unem uma pessoa a outra.

Quais foram as mais importantes contribuições de Weber à Sociologia?

Não é uma resposta fácil. Diversas foram as contribuições de Weber, e muitos dos
seus fundamentos teóricos e metodológicos se propagaram por diversas áreas do
conhecimento.

Raymond Aron destaca quatro entre os temas que Weber tratou em suas obras:

•• Estudo do método
•• O Estudo da História
•• A Sociologia da Religião
•• Economia e Sociedade: temas gerais da sociedade

No estudo do método, Weber não apenas focou diversos países, mas concentrou
grande esforço na compreensão da cultura ocidental. Nela, apontou a racionalização
e a intelectualização como um processo que implicaria um modelo de dominação

41
Capítulo 2

amparado na ideia de progresso que teria destituído o homem das suas certezas
acerca do mundo e de si mesmo.

A partir daí, seu maior empreendimento intelectual foi no sentido da definição


dos critérios metodológicos com os quais combateu a parcialidade, ou seja,
o julgamento de valor no processo de conhecimento. Esse foi o ponto sobre
o qual apoiou sua crítica a Kantorowicz e a Eugen Ehrlich. De algum modo,
isto é compreensível, pois Weber foi, segundo seus intérpretes, extremamente
rigoroso na relativização da história e da cultura. Contra‑argumentou com os
juristas alemães, seus contemporâneos, que o trabalho sociológico somente seria
possível, se desvinculado do julgamento de valor.

Em Economia e Sociedade, Weber descreve e analisa com profundidade e


erudição reconhecida pelos intelectuais contemporâneos, as peculiaridades da
religião, da economia e do Direito em diversos países: China, Índia, África, Europa.
De acordo com Freund (1987, p. 22‑23), Weber conhecia demais “os disfarces e
as reviravoltas da história” para chegar à conclusão de que a Sociologia deveria
devotar‑se “aos postulados que fizeram dela uma ciência”.

Como se pode interpretar essa preocupação de Weber em construir a


autonomia da Ciência da sociedade?

É importante levar em conta que Weber insistiu que a primeira tarefa da Sociologia
deveria ser o estudo da sociedade e da cultura. Nesta tarefa, caberia esclarecer os
“elementos unidos” numa estrutura para formar com esses elementos, um “tipo ideal”.

Se considerarmos a sua trajetória intelectual, não será difícil concluir que Weber
havia acumulado mais informações que seus contemporâneos juristas acerca da
vida em sociedade. Este diálogo talvez seja o que motivou o seu trabalho teórico
e a preocupação de desmistificar a simplicidade atribuída à tradição, à religião,
aos costumes. Com esta sensibilidade para uma sociologia compreensiva, Weber
deu provas que, ao tratar a Sociologia, dever‑se‑ia tratar a mentalidade humana.
Como tal, não poderia privar‑se do rigor científico, dando provas de que é nos
cânones da ciência que deveria pautar‑se a Sociologia. Isto se pode deduzir pelo
esforço de Weber em construir o “tipo ideal”. Esta noção, numa forma mais simples,
equivale à ideia de protótipo: que vai permitir a observação e a medida. Weber
duvidava dos modelos generalizantes. Um dos seus importantes empreendimento
metodológicos foi construir, nas duas estruturas sociais da Alemanha, a feudal e a
capitalista, os elementos que vieram a constituir esse “tipo ideal”.

Em uma de suas primeiras investigações, ele testou o método ao analisar os


trabalhadores rurais na Alemanha Oriental, detectando o choque de duas culturas
e de dois modelos de relações sociais. Numa parte, sobreviviam restos de uma

42
Sociologia Jurídica

ordem feudal sob o domínio dos grandes proprietários; na outra, uma ascendente
economia de mercado.

Weber chegou a essa conclusão a partir de dois elementos: os traços da teologia


calvinista e a ética capitalista. Demonstrou sociologicamente que havia entre os
dois fenômenos uma relação factual. Weber, nesse sentido, dá um passo
importantíssimo na consolidação da Sociologia Empírica, uma preocupação que,
segundo seus intérpretes, esteve alheia ao historicismo alemão.

Guildas, ou corporações Dos estudos sobre a Índia, a China e a antiga Palestina,


de ofício, eram, na Idade deduziu os tipos de autoridade e de administração
Média, associações de
operários qualificados
legítima. Estudou em cada uma delas, a religião,
numa determinada a política, a economia, as guildas, o sistema de
função, que se uniam parentesco, as classes sociais e os referidos grupos de
em corporações, a fim
status, além disso ocupou‑se dos tipos de leis e dos
de se defenderem e de
negociarem de forma sistemas de produção.
mais eficiente. Entre
as mais destacadas, Weber extrai do conceito de autoridade um dos pontos
estão as corporações centrais dos diversos estudos que iria realizar dali em
dos construtores diante. É importante lembrar que, nas suas preocupações
e dos artesãos.
com o método, Weber (1991, p. 279‑385) estava
advertindo que os padrões de comportamento nem
sempre são conscientes e observáveis. Por exemplo, ao estudar as religiões,
chamou atenção para o conceito de divino que vai além do que normalmente
conceituamos no Ocidente como Deus. Existem, diz ele: “religiões mágicas
ou animistas que não conhecem Deus, mas somente espíritos benfeitores ou
malignos.” (WEBER, 1999, p. 26‑31). É importante lembrar que, quando Weber
fala da religião, ele está buscando a fonte da autoridade e da legitimidade.
Uma questão do poder, que atravessa toda a estrutura social e, sobretudo,
a estratificação social, em seu livro Economia e Sociedade.

A estrutura de classes, nos países onde estudou a religião, constitui uma das
suas mais importantes contribuições. Weber concluiu que cada um dos tipos
estudados possui uma lógica e dinâmica própria. Com relação ao poder, um
dos pontos centrais de onde ele extrai teoricamente a lógica da ordem social,
os sistemas de autoridade evoluem segundo a relação lógica entre autoridade
e a obrigação de obediência. Estudou a influência da religião sobre a ética e
a economia e acabou chegando a conclusões importantes sobre a educação
e a política. Mostra que a conduta do homem não tem sentido por si mesma.
A religião é que dá significado à vida em torno dela, a toda uma estrutura:
econômica, política, moral, psicológica e sociológica, que é o que ele designa
de sociedade. Na Europa, Weber se volta à compreensão da administração e
estratificação da cultura ocidental.

43
Capítulo 2

Divergindo de Karl Marx acerca da estratificação social, Weber não se convenceu


de que a economia fosse o determinante exclusivo da luta de classes. Para Weber,
diversos componentes estruturais como as condições históricas da propriedade
dos meios de produção, dos bens de consumo, o poder de dispor dos meios
lucrativos para interesses privados, comerciantes, armadores, industriais,
banqueiros e financistas, profissões liberais (advogados, médicos, engenheiros,
etc.), o monopólio técnico do conhecimento e privatização dos recursos de
conhecimento e monopolização das classes profissionais, os destituídos
da propriedade que ele denominou de “classes proprietárias negativamente
privilegiadas”, os servos, os devedores, os pobres. Em resumo, de acordo com a
interpretação de Castro e Dias (1992, p. 126‑127), Weber define classe social de
acordo com os seguintes critérios:

•• quando for comum a certo número de homens um comportamento


causal específico e suas probabilidades de existência, na medida
em que
•• tal componente esteja representado exclusivamente por interesses
lucrativos e de posse de bens
•• nas condições determinadas pelo mercado (de bens ou trabalho)
(situações de classe).

É importante notar que Weber distingue os diversos status enquanto um processo


coordenado pelo mercado e em função dele, o funcionamento dos grupos em
termos distribucionais e de prestígio em relação a uma sociedade mais ampla.

Weber prosseguiu mostrando em toda a extensão de Economia e Sociedade,


como a administração burocrática, as tradicionais e as modernas, estão
“amarradas” a um processo mais amplo a partir do qual ele pôde compreender
as estruturas da sociedade capitalista no Ocidente. As contribuições de Weber
para o estudo da política e do poder continuam usufruindo grande reputação nas
atividades intelectuais modernas.

Entre seus discípulos, Talcot Parsons vai buscar nas convergências entre Durkheim
e Weber uma proposta teórico‑metodológica de maior alcance, que resultou em
fundamentos importantes para a Sociologia do Direito Contemporâneo. Uma teoria
do sistema que revitaliza a ideia dos papéis de Durkheim e da ação social de Weber,
e que Luhmann vai reinterpretar na teoria dos sistemas.

44
Sociologia Jurídica

2.3.1 Max Weber e a sociologia do direito


Embora a Sociologia do Direito, de que Max Weber trata no Livro Economia
e Sociedade, não se constitua referência recorrente entre os juristas que
escreveram sobre Sociologia Jurídica, é inegável o empreendimento de Weber na
fundação da Sociologia do Direito.

Em primeiro lugar, é importante considerar que o interesse sociológico de


Weber distinguiu‑se da proposição teórica de Kantorowicz e de Eugen Ehrlich,
precursores do Movimento do Direito Livre. Weber esteve sintonizado com as
preocupações que levaram Comte e Durkheim à fundação da Sociologia, mas
também esteve preocupado como jurista na sua lide no âmbito do Direito, com a
diversidade infinita do real a que, somente através do método compreensivo, ele
pode ter alcance.

No seu método – Sociologia Compreensiva – Weber estudou as religiões e


chamou a atenção para as fontes de legitimidade do poder na cultura ocidental,
onde ele encontrou a razão da racionalidade científica, um traço que, em a
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, fica demonstrado como uma
peculiaridade da cultura ocidental. Neste mesmo processo em que investiga a
história e a religião da China, Índia e diversos outros países, Weber mostra que
a história não pode ser reduzida a um único acontecimento. Disto deduz que o
Estado com suas instituições especializadas não encontrou equivalente em outras
culturas. Aqui Weber está se referindo à racionalidade econômica, política e
jurídica que ele via no Ocidente.

No mesmo contexto, ele já mostrou, em Economia e Sociedade, que o Direito


havia se constituído numa atividade dominada pela racionalidade técnica. Não
seria coerente, com seus postulados sociológicos, se a Sociologia como uma
ciência da sociedade se deixasse reduzir à racionalidade técnica e submeter‑se à
validade axiológica da cultura ocidental, tema que ele já havia tratado no âmbito
daquilo que ele definiu como dominação racional. A Sociologia, estava claro para
Weber, não nasceu com a vocação para ser uma Sociologia do Ocidente, mas sim
uma ciência que pudesse desenvolver métodos que permitisse a ela o alcance
de todas as formas de organização social. Não é sem razão que Weber partiu da
China, Índia, Palestina, passando pela Polinésia, para chegar à compreensão da
lógica de organização da sociedade ocidental.

Quando Freund (1987, p. 129) examina a importância que teve nas obras de
Weber o estudo da racionalidade cientifica na cultura ocidental, ele observa a
ênfase que Weber dá à desumanização: “a racionalização ocidental exprime um
desencanto do mundo, traduz também uma espécie de confiança por assim
dizer desarrazoada do homem em suas obras e suas criações”. Esta confiança
se refere à parcialidade, ou julgamento de valor que Weber tanto condenou no
processo de conhecimento.

45
Capítulo 2

A autonomia da Sociologia, tão defendida por Weber, se justificaria, neste sentido,


em relação à visão introspectiva do Direito. Não se pode deixar de levar em conta
que Weber preserva, como jurista, a classe a que ele próprio pertencia. Weber
não pretendeu, pelo que se deduz de suas obras, desmistificar o valor da ciência
jurídica, mas diferenciá‑la do papel que caberia à Sociologia Jurídica. Isso ele faz
através da Sociologia compreensiva, da qual extrai a definição das duas ordens:
a ordem das relações sociais, onde a “comunicalização” e a “socialização” são
entendidas como atividade social unificadora – esta unidade diz respeito às
práticas e à identidade de um grupo ou classe de atores segundo os tipos de
ação; e a ordem do constrangimento, que ele entende fundar‑se na validade de
uma crença, seja de caráter tradicional, afetivo ou de convicção, com base no
conceito de liberdade, igualdade ou no interesse, associações, ideologias, etc.

Nesse contexto, esclarece Weber, a validade do Direito é garantida por


constrangimento físico (institucional). O elemento que distingue o Direito é a
existência de uma instância oficial de coerção. Freund (1987, p. 11) lembra que a
concepção de ciência em Weber – e disto, deduz‑se: do Direito – , é comandada
pelo poder político.

A partir desta compreensão, Weber diverge da posição de Eugen Ehrlich e


Kantorowicz. Sua posição, que, sem dúvida nenhuma, tem coerência com a
neutralidade axiológica, revela‑se contra a justaposição da ciência jurídica e da
Sociologia Jurídica. Para Weber, há duas ordens do Direito diferenciadas: uma
formal, que corresponde à dogmática jurídica; e outra, material, que corresponde
ao estudo do comportamento do indivíduo frente às normas vigentes.

Na primeira ordem, o Direito, refere‑se ao ordenamento jurídico, que se deixaria


deduzir unicamente por seus pressupostos intrínsecos. Neste aspecto o
pensamento de Weber tem convergência com a dogmática jurídica de Hans
Kelsen. Na segunda, o objeto de estudo são os elementos extrajurídicos.
Weber não estava convencido de que a razão científica tivesse sucumbido ao
desejo do homem de compreender o irracional.

A explicação que Weber dá à diferença está em considerar o Direito como um


tipo de conhecimento alcançável apenas pelo método lógico‑normativo, ou
seja, a disposição jurídica que seria dedutível apenas dos pressupostos de um
ordenamento jurídico. Neste caso, Weber tem uma concepção racionalista do
Direito, que ele diferencia das formas tradicionais do Direito consuetudinário.
A validade da norma jurídica está no poder, segundo Weber, mais especificamente
na racionalização deste poder configurado no monopólio do Estado, em relação à
força e à lei intermediada pelo modelo de racionalidade burocrática que ele diz ter
conhecido somente no Ocidente.

Nessa interpretação, percebe‑se uma proximidade da racionalidade técnica e


burocrática do Direito em Weber com os fundamentos racionalistas do monismo

46
Sociologia Jurídica

hobbesiano. O encontro entre a maneira de pensar o desencantamento do homem


moderno com o artificialismo do corpo civil de Hobbes ilumina toda a concepção
weberiana da racionalidade técnica tão predisposta ao desenraizamento do homem
das suas tradições.

A questão que Weber propôs à Sociologia do Direito é a de dar conta da


experiência vivida pelos homens nas suas atividades polimórficas. Isso significa
o conjunto das estruturas da sociedade: as instituições, as crenças, os costumes.
Ele mostrou como fazer, ao fornecer o protótipo de agrupamentos, instituições,
Direito, burocracia, o qual ele denominou de “tipo ideal”.

2.4 Karl Marx


Karl Marx foi um dos mais influentes pensadores do século XX. Suas obras
tiveram uma enorme receptividade na teoria sociológica e continua contribuindo
até os dias atuais na explicação dos fenômenos sociais.

Figura 2.5 ‑ Karl Marx Marx nasceu em Tréveris, Alemanha, em 1818, numa
(1818‑1883)
família de origem judia. Para fugir à perseguição
antissemita, que se espalhava por toda a Alemanha
dessa época, a família converteu‑se ao luteranismo.
Para alguns dos seus intérpretes, esse fato pode
ter contribuído para a hostilidade que Marx nutriu
pela religião. Aos dezessete anos, ingressa na
Universidade de Bonn para estudar Direito.

Um ano depois, se transferia para a Universidade


de Berlim, onde se unia a um grupo conhecido
por jovens hegelianos. Este grupo trabalhou
intelectualmente, para mostrar que a dialética da
Fonte: Tets (2006).
História, do filósofo Hegel, não havia construído
uma explicação suficientemente clara que
pudesse levar à plena emancipação da humanidade. Em 1841, Marx obteve
o título de doutor com uma tese intitulada A Diferença da filosofia da natureza
entre Demócrito e Epícuro, que defendeu em Iena, naquele ano. Mas foi o seu
engajamento político que determinou a sua biografia. Homem de grande erudição,
escreveu diversos artigos jornalísticos, panfletos políticos e importantes obras
que denunciavam as estratégias filosófico‑políticas da época do Iluminismo.
Entre 1848‑1850, tornou‑se jornalista da Nova Gazeta Renana e, ao mesmo
tempo, atuou na organização da Liga dos Comunistas. A partir de 1864, fundou
e dirigiu a primeira Internacional dos Trabalhadores. Começou sua atividade
intelectual dando prioridade, em suas obras, ao tema da alienação, partindo de
uma análise antropológica e filosófica da condição do trabalhador no capitalismo.

47
Capítulo 2

Em 1867, Marx publicou o primeiro volume que se tornaria a sua mais conhecida
obra: Das Kapital (O Capital). Antes disso, Marx produziu diversas obras, em
cooperação com Engels, em que criticou a filosofia alemã. Segundo seus
intérpretes (VANDENBERGHE, 2012, p. 100‑102), o tema da alienação, que Marx
havia herdado da preocupação filosófica de Hegel, estava na aceitação da teoria
hegeliana da transformação histórica, reinterpretando esse movimento da história
não como o desenvolvimento da mentalidade humana, mas como a realidade
econômica e social. O tema da alienação, segundo Vandenberghe (2012, p. 105),
na evolução dos fatos, foi deixado de lado, enveredando por um caminho mais
curto para atingir o cerne da sua questão: a luta de classes. Neste processo,
ele busca uma compreensão na história, para o antagonismo entre lucro e salário.

Não se pode deixar de registrar as perseguições que Marx sofreu em decorrência


de sua postura intelectual contra a ideologia liberal, o que lhe impediu que viesse
a realizar uma de suas pretensões de ocupar uma cadeira nas Universidades
alemãs. Por conta disso, foi exilado, indo viver, inicialmente, em Paris, onde
grupos que defendiam o socialismo e o anarquismo estavam bem articulados,
permitindo não apenas a sua receptividade como o desenvolvimento do seu
trabalho. Em 1848, quando começou a eclodir a revolução em muitos países da
Europa, Marx e Engels lançam o Manifesto Comunista, mas veem seu projeto
esmorecer com o fracasso das revoluções. Nesse mesmo ano, os dois deixam
Paris para viver na Inglaterra. Engels assume a administração dos negócios
da família em Manchester, e Marx, com a ajuda financeira de seu amigo, fixa
residência com sua família em Londres. Continuou escrevendo e influenciando
a revolução em todo o mundo. Torna‑se, assim, o maior inspirador e referência
intelectual do Movimento Operário, até a sua morte em 1883. Engels dá
continuidade à sua obra, publicando dois dos últimos volumes de O Capital.

Embora Marx tenha sido reconhecido por sua influência no pensamento sociológico
até os dias atuais, não há consenso sobre ser ou não um sociólogo. Foi pioneiro,
sim, segundo seus intérpretes, da História Econômica. Para Spagnol (2013,
p. 133‑134), Marx foi um dos mais importantes humanistas. Sua participação
como matriz teórico‑metodológica do pensamento social se deve à reputação
do materialismo dialético como método do conhecimento. Sua importância no
pensamento sociológico está na forma como pensou a sociedade. A base dos seus
pressupostos metodológicos pode ser assim resumida:

•• A aparência da sociedade não é a sua realidade.


•• O que se esconde atrás dela é a estrutura econômica.
•• A sociedade é historicamente a exploração dos trabalhadores pela
burguesia detentora dos meios de produção.
•• A política é a violência e o poder de uns poucos.

48
Sociologia Jurídica

•• A religião é a consolação de muitos.


•• A ciência é a base técnica do poder econômico e do interesse.
•• A filosofia é ideologia.

Como se pode perceber, as preocupações de Marx e os temas de suas obras


atravessaram a Antropologia, a Filosofia, a Sociologia, a Economia e a Política,
para explicar como, em dado contexto histórico, o homem produz o seu modo
de vida. Marx não se concentrou em um único tema – Sociedade, Economia ou
Política – mas se utilizou dos recursos antropológicos, sociológicos, políticos
e econômicos para desvendar a estrutura da sociedade, e, a partir dele,
denunciou a corrupção das ideias no capitalismo, pela vantagem de uma classe
sobre a outra. Por que Marx entrou para a lista dos precursores da Sociologia?
Para muitos dos seus intérpretes, Marx explicou a constituição da sociedade
capitalista e, a partir dela, desenvolveu requisitos importantes, os quais mostram
que, ao longo da história, os homens produzem seus modos de vida. Marx via
os homens criando relações que seriam necessárias à produção social de sua
existência: produção de alimentos, habitação, os instrumentos de caça, pesca e
os artefatos, agricultura, indústria, etc.; e o modo de produção, que é a maneira
como a produção é socialmente organizada e distribuída. Isso implica o modo
como socialmente se estabelece a propriedade dos meios de produção e quem
realiza o trabalho. Aqui Marx concentrou um grande esforço em mostrar que
essa distribuição é a estrutura de classe de toda sociedade. A forma como essa
distribuição ocorre, independe de vontade dos homens, mas da forma como a
propriedade é transformada historicamente.

Para Marx, as relações sociais de produção e o modo de produção variam de


acordo com os níveis de desenvolvimento. Disso deduziu que o conjunto dos
dois formaria a base material da sociedade, ou seja, a estrutura econômica.
Esta estrutura condiciona a consciência dos homens. De acordo com as fases
evolutivas da propriedade, o homem tem uma consciência de si e das coisas.

Engels, numa cooperação com Marx, escreveu A Origem da Família, da


Propriedade Privada e do Estado (ENGELS, 2000). Nesta obra, faz uma análise
materialista da história, com base no estudo antropológico de Lewis Morgan
(1980). Com este estudo, mostra que a sociedade evolui segundo três formas de
propriedade, até o desenvolvimento do capitalismo.

1. A fase inicial corresponde à propriedade tribal. A população se


alimentava da caça e da pesca. A propriedade tribal era constituída
de terras improdutivas. A estrutura social estava apoiada na família,
e a divisão do trabalho se limitava a ela.

49
Capítulo 2

2. Na segunda fase, a propriedade comunal prevalecia em toda


a antiguidade. A base da produção e distribuição era coletiva.
A produção era essencialmente escrava, mas já marcava a
oposição campo‑cidade. A estrutura social era demarcada por duas
classes: a classe dos cidadãos constituída de livres proprietários e
os escravos.
3. Numa terceira fase, a propriedade é essencialmente feudal. A mão
de obra escrava desaparece e o trabalho passa a se concentrar nas
mãos dos servos e dos pequenos camponeses que trabalhavam em
glebas de terras que pertenciam aos senhores feudais. A produção
era muito pouco desenvolvida e as condições de cultivo das terras
muito precária, típica da indústria artesanal.

O capitalismo nasce com o desaparecimento da propriedade feudal. A propriedade


privada dos meios de produção representa a fase mais avançada das contradições.
A consciência social é determinada ou condicionada por essa base material ou
estrutura econômica. A consciência, ele a denominou de superestrutura. Aqui reside
a explicação de Marx sobre a estratégia de alienação. Seguindo esse raciocínio
a classe dominante exerce o poder material na sociedade, porque tem, sob seu
domínio, os meios de produção, mas, da mesma forma, a superestrutura: as leis,
o governo, a educação, a religião, os valores e as crenças. Estas prestam, segundo
Marx, um serviço fundamental à manutenção do poder dominante, fazendo crer ao
povo que a ordem social é natural e legítima.

Mas Marx também previu a derrocada do capitalismo. Quando as contradições


do sistema capitalista se tornassem mais extremas e os trabalhadores estivessem
mobilizados para a ação coletiva – como os sindicatos, constituir‑se‑ia um partido
revolucionário, formado pelo proletariado, que aniquilaria o sistema rumo a uma
sociedade comunista.

2.4.1 O Direito no pensamento marxista


As implicações mais profundas do pensamento de Karl Marx sobre o Direito
estão no seu conceito de superestrutura. Na sua tese sobre a formação da
sociedade civil, Marx desenvolveu uma crítica ao que ele denominou um
sistema de exploração a ser reproduzido pelas instituições do poder no Estado
moderno. Todo o seu empenho, como se pode notar no que foi discutido na
seção precedente, foi denunciar a concepção burguesa de sociedade civil.
Nesse ponto, Marx enfaticamente argumenta que a consciência, tal como ela
se manifesta na linguagem política, nas leis, na moral, e na religião, no sistema
capitalista, corresponde a projeções da estrutura. Não se pode esquecer que,
para Marx, as formas de exploração da burguesia atingiram mais especificamente

50
Sociologia Jurídica

as garantias da propriedade privada como uma relação de subordinação


da superestrutura jurídica e política à estrutura econômica, que é a base da
sociedade capitalista.

A ideia de classe dominante que aparece insistentemente em a Ideologia Alemã e


nas demais obras de Marx e Engels, teve a intenção de denunciar que o status do
poder estava no centro do sistema político e jurídico. Desse sistema procederiam
as forças normativas que regulariam a produção e a distribuição. Assim, Marx
não apenas acusava o conceito de sociedade civil de essencialmente ideológico,
como o poder de produzir as desigualdades sociais e de regular as atividades
não econômicas.

Löwy (2009, p. 113), comentando sobre o conceito de ideologia e de ciência em


Marx, observa que em A ideologia Alemã, de 1846, ele se teria referido às formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, como ideologia de uma
classe. Evidentemente, é essa ideologia que garante a legitimidade da burguesia
como classe dominante e sua representação na estrutura jurídico‑política, das
sociedades capitalistas.

O trabalho assalariado vai ocupar no conceito de ideologia um lugar central.


Para Marx, o trabalho, ao ser transformado num bem e valor de troca, não
somente aliena o trabalhador da sua força de trabalho como o transforma
numa ideologia, o que, para Marx, seria uma utopia a qual se instituiria pelo
médium jurídico.

Esta crítica atravessa toda a concepção marxista de sociedade civil. Por exemplo,
em O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann (MARX, 1977, p. 30‑31), quando em
comentário sobre a elaboração da Constituição republicana de 24 de junho a 10
de dezembro de 1848, Marx afirma que a burguesia manipulou os seus interesses
quando instituiu o estado maior das liberdades de 1848: a liberdade individual,
a liberdade de imprensa, de palavras, de associação, de reunião, de educação,
de religião, etc. É justamente nesta manipulação que vai situar a dominação
burguesa por meio da relação entre Estado e Direito.

Onde residiria, neste contexto da concepção marxista da luta de classes,


o Direito? Löwy (2009, p. 118‑119) nos lembra que é no Posfácio à segunda
edição alemã de O capital (1873) que Marx deixa mais claro que, por meio da
análise sócio‑histórica das classes sociais, pode‑se compreender a história
da ciência. Löwy conclui a esse respeito que, para Marx, uma vez instalada no
poder, a burguesia se tornaria conservadora, exigindo uma versão apologética
da constituição do poder contra qualquer movimento socialista ou comunista
que ameaçasse a reversão da ordem. Assim, nesta concepção marxista, o Direito
como uma forma ideológica estaria a serviço dos interesses privados dos
detentores dos meios de produção, e não dos interesses da maioria, constituindo,
deste modo, uma forma histórica de dominação.

51
Capítulo 2

2.5 Georges Gurvitch


Figura 2.6 ‑ Georges Gurvitch Georges Gurvitch nasceu em Novorossiysk, Rússia
(1894 – 1965)
em 1894, e morreu em Paris, em 1965. Jurista e
sociólogo, participou com Lênin da Revolução
Bolchevique de 1917. Foi professor em Petrogrado,
Praga, Paris, Bordéus e Estrasburgo. Considerado
discípulo de Eugen Ehrlich, em 1949 assumiu a
cadeira de Sociologia da Sorbonne, na França,
filiando‑se a tradição sociológica de Durkheim.

Especialista em Sociologia do Conhecimento, foi


considerado um dos mais destacados sucessores
de Durkheim. Com a interrupção pela Guerra, nos
anos 40, Gurvitch levou adiante a preocupação
Fonte: Bozan (2010).
com a Sociologia, tendo fundado, em 1944,
a revista Cahiers Internationaux de Sociologie
e a Bibliothèque de Sociologie Contemporaine, o mais importante acervo de
obras sociológicas publicadas na França. Entretanto, salvo sua notoriedade na
contribuição para a Sociologia do Direito, não têm sido raros os comentário sobre
a sua ausência entre os sociólogos que mereceram destaque na literatura e na
crítica sociológica norte‑americana, inglesa, nórdica e, até mesmo, francesa.
Na França, teve publicações importantes, como os Archives Européennes de
Sociologie e outras obras de grande destaque.

Em 1960, a marginalidade de Gurvitch fazia suspeitar de um desinteresse da


Sociologia Moderna por todas as tentativas de teorização dos sistemas globais
ou globalizantes. De fato, Gurvitch divergia da orientação metodológica que havia
notabilizado o positivismo sociológico francês, o qual devotou à experimentação,
desde Comte, uma preocupação obstinada em fornecer um método que viesse a
ter aplicação nos diversos estudos do comportamento humano e da sociedade.
Com isso, buscou agrupar a Sociologia às Ciências Naturais, razão pela qual a
denominou de Física Social.

A Sociologia de Gurvitch distingue as tarefas da Ciência da Sociedade pela sua


tridimensionalidade (SOROKIN, 1969, p. 440‑442):

1. Microssociologia ou Sociologia Sistemática: estuda as manifestações


mais simples da realidade social como função das formas de
sociabilidade e as múltiplas maneiras de ser ligadas ao todo. As duas
formas principais desta dimensão é a “nostridade”, o nós de uma
família, grupo ou classe, e o “alter”, ele ou outro. Esta relação implica
uma oposição parcial da consciência da instituição individual e da
coletividade. A sociabilidade é aqui considerada nas duas formas da
estrutura social. O que varia é a intensidade.

52
Sociologia Jurídica

2. Sociologia Diferencial: tem como função o estudo da


multidimensionalidade e os diferentes níveis de profundidade
que são indissociáveis dos fenômenos sociais totais, sem
excluir certas descontinuidades das tipologias dos grupos
particulares e das sociedades globais, assim como os níveis
de profundidade e as possibilidades de conflitos entre eles.
3. Macrossociologia: trata dos principais níveis de profundidade
da realidade social total e seus conjuntos estruturáveis. Começa
pelos níveis mais superficiais e termina pelos níveis mais
profundos: 1º nível – o morfológico e ecológico da realidade
social: ambiente geográfico e tecnológico, composição da
idade‑sexo‑raça da população, índices de natalidade, mortalidade,
casamento, migração, construções; 2º nível – os padrões de
organização: centralizados e hierarquizados de conduta coletiva;
3º nível – regras sinais e regras de conduta. Estes são guias
obrigatórios da conduta do indivíduo. São normas obrigatórias
para a conduta dos grupos. São, ao mesmo tempo, produtos
e produtores da cultura; 4º nível – a conduta coletiva regular,
exterior aos padrões organizados: a conduta ritual e procedimental
baseadas em regulamentações rigorosas; 5º nível – a rede de
papéis sociais assumidos, interpretados e aquilatados pela
coletividade; 6º nível – as atitudes coletivas, consideradas
como imponderáveis da realidade social; 7º nível – os símbolos
sociais mediadores entre o conteúdo que simboliza os agentes
coletivos e os símbolos individuais, por quem são criados e a
quem se destinam; 8º nível – as atividades coletivas inovadoras e
criadoras. As inconformidades regulares e tendências e os fatores
transformacionais de desenvolvimento e de declínio da estrutura
social; 9º nível – as ideias e valores coletivos que se ocultam por
trás de toda variedade de atividades, atitudes coletivas e todas
as formas de organização social; 10º nível – a mentalidade e atos
psíquicos coletivos.

Gurvitch, no livro Determinismos Sociais e Liberdade Humana (GURVITCH, 1962,


p. 136‑137), dá uma amostra mais clara da sua concepção sociológica da validade
normativa ao definir a liberdade pela validade das prescrições sociais delimitadas
no espaço por grupos locais fixados em um território, terreno, Estado, associações
nacionais ou mesmo internacionais. Defende que os comportamentos coletivos ou
individuais se estabelecem por analogia às formas plurais em que se organizam
essas coletividades segundo valores e significações coletivas.

53
Capítulo 2

Em função das situações múltiplas – conjunturas, estruturas, o indivíduo e o


coletivo – os grupos, as classes, as sociedades globais cumprem papéis sociais
que se reproduzem, se integram e se reintegram em escala ampliada. Entretanto
Gurvitch considera o desempenho dos papéis sociais em função da sua validade,
e esta, da eficiência do sistema social. Portanto o seu conceito de liberdade
está limitado a um conjunto de regras que são prescritivas e determinantes da
vida social. Contudo não negou que esse determinismo pudesse ser alterado
ou modificado. O que poderia causar as modificações? Os conflitos, as guerras,
as revoluções, a difusão de modelos de outras civilizações.

Gurvitch concebe o caráter determinístico das regras, sinais, signos e condutas


por sua função de garantir a regularidade das condutas na sociedade, contudo não
limita a concepção desses modelos às regras objetivas da conduta individual e
coletiva. Nos seus estudos sociológicos, inclui as formas subjetivas de regulação,
que são os efeitos mentais exercidos pelos rituais. Quando se refere às práticas
e costumes, Gurvitch está se referindo à natureza da sociedade e como ela se
revela através dos símbolos. Com isso, mostra que o sistema de sinais de que
os indivíduos se utilizam para se relacionar uns com outros é a forma como a
sociedade se revela. A isso Gurvitch chamou de realidade social total. Os sinais,
as regras, as crenças seriam prescrições e, por vezes, normas que “aspiram à
validade e reclamam a obediência”.

Pode‑se deduzir de alguns exemplos como o batismo, a oração, assim como as


obrigações dos genitores com seus filhos, e, em algumas culturas, os deveres
e Direitos extensivos à família ampliada, que esta seria a forma consciente
e inconsciente de ligar o individuo à sociedade. E, numa escala mais ampla,
a relação entre o nós e o alter.

A concepção sociológica da realidade social total de Gurvitch pode ser, assim,


resumida em três principais pressupostos:

1. A pluridimensionalidade do social. A sociedade é composta e


disposta em camadas que podem servir de referência para a
reconstrução global. Cada camada está ligada ao seu todo.
2. Os fenômenos sociais totais. Tais fenômenos trazem na sua
composição os sentimentos constitutivos das massas, das
comunidades, das comunhões dos agrupamentos particulares,
das classes sociais, a família. Cada um forma o micro e os
macrocosmos do “nós”. O Estado, por exemplo, é macrocosmo
de nós; a família é microcosmo de nós.
3. A dialética. Os fenômenos sociais totais, tomados pelas partes
em relação com seu todo, isto é, as unidades coletivas – classe,
grupos, sociedade global – são relações dialéticas, porque seus

54
Sociologia Jurídica

elementos são anestruturais, estruturais, estruturáveis e


estruturados. Em resumo, são relações que implicam conflitos:
um movimento que envolve o espontâneo e o organizado.
Os desequilíbrios estruturais, neste processo, correspondem ao
movimento dialético.

Partindo de uma Sociologia Dialética, método amplamente utilizado a partir de


Hegel, Marx e Proudhom entre outros economistas e sociólogos que também se
valeram dos conceitos dualistas de polaridade como dois tipos contrastantes de
sistemas sociais e culturais, Gurvitch (1962) explica a estrutura social como um
processo de transformação permanente.

Para os intérpretes de Gurvitch, nos seus pressupostos teóricos o método


dialético consiste na “demolição” (SOROKIN, 1969, p. 436) dos conceitos
adquiridos e cristalizados. A decomposição deste todo é fundamental para que
suas partes possam ser explicadas, o que seria impossível numa concepção
dogmática. Portanto o método dialético é necessariamente antidogmático,
na medida em que os dogmas impedem o alcance daquilo que encobrem,
segundo o autor.

2.5.1 A sociologia do direito de Georges Gurvitch


Na Sociologia de Gurvitch, o Direito entra na composição da microssociologia,
ao referir‑se às relações nas formas principais e superficiais do ‘nós’ de uma
família, de um grupo ou classe e o outro. A proposição metodológica de Gurvitch
é investigar o fenômeno gerador do Direito social, nas formas de sociabilidade
por interdependência (proximidade, afastamento) e que define, em função dele,
a interdependência das camadas e o grau de proximidade ou de afastamento
com o Direito interindividual. A partir daí, se determinariam os níveis de
profundidade do Direito.

Na Sociologia Diferencial, Gurvitch toma a multidimensionalidade e os diferentes


níveis de profundidade que são indissociáveis dos fenômenos sociais totais,
para estudar as relações do Direito e o fenômeno gerador em cada tipo de
agrupamento social. A propósito deste conceito de multidimensionalidade,
deu ênfase à forma como cada grupo trata a soberania e as relações das diversas
ordens jurídicas com o Direito estatal.

Na macrossociologia, também denominada de Sociologia Genética do Direito


(CAVALIERE FILHO, 2010, p. 98‑99), o Direito faz a interface com a base
ecológica da sociedade – a economia, a religião, a moral, a psicologia coletiva,
dependendo dos níveis de profundidade destas camadas na relação com a
realidade social total.

55
Capítulo 2

O método sociológico de Gurvith coloca desta maneira em questão os argumentos


de Eugen Ehrlich por subordinar a Sociologia do Direito às premissas dogmáticas
da Ciência do Direito. Na interpretação de Albuquerque (2008 p. 77), esta crítica
de Gurvitch a Ehrlich incide na incapacidade de Ehrlich alcançar o que Gurvitch
denominou de realidade social total e nesse esquema lógico de compreender a
realidade profunda e estruturante do Direto. Assim, a falha de Ehrlich decorreria do
equívoco de tomar o Direito da sociedade – que se encobriria, afirmou Gurvitch,
sob as camadas superficiais da sociabilidade – pelas diversas espécies jurídicas.
Conclui Gurvitch que Ehrlich não distinguiria os gêneros do Direito, ordens jurídicas
e sistemas de Direito. Esta deficiência lhe impossibilitou identificar as correlações
funcionais entre a realidade do Direito e as diferentes camadas da sociedade.

56
Capítulo 3

Estado, poder e controle


social e segurança

Habilidades Compreender a função social e institucional da


segurança no contexto da ordem pública como
expectativa produzida pelo Estado de Direito e
refletir criticamente sobre as antinomias entre
Direito e coerção.

Seções de estudo Seção 1:  O poder

Seção 2:  A origem e a concepção histórica


do poder

Seção 3:  Controle social

Seção 4:  Segurança pública

57
Capítulo 3

Seção 1
O poder
Sempre que se procura definir o poder, a dificuldade é situar dentro das diversas
formas de concepção e representação social do poder, um ângulo que atenda às
demandas explicativas, específicas do Direito. Neste particular, a abordagem do
poder aparece no pensamento sociológico intimamente associada aos conceitos
de política, Estado e às formas de controle social.

Numa arqueologia do poder, desde as formas mais simples de organização


social, vamos constatar que o poder está intimamente relacionado com o sistema
político. Em sociedades primitivas, o que define o poder de um dirigente – seja
ele um chefe ou governante –, é o exercício da autoridade dentro de limites
reconhecidos por seu Direito de comando. As fontes em geral são de origem
teocrática ou mística.

Em sua acepção mais genérica, a autoridade de um governante ou de cargos


administrativos tem sido definida pelo uso legítimo do poder e pelo Direito de
comando e de manutenção da ordem. (MAIR, 1979, p. 128‑129).

Dentre os pensadores da modernidade, Thomas Hobbes tem sido um dos mais


destacados estrategistas que, sem uma referência explícita ao conceito de poder,
fez alusão, em sua obra Leviatã, aos meios, associando poder e ação, para
alterar, no curso da história, as formas de poder tradicional e recriar uma nova
forma de poder, com base juspositiva, para assegurar a ordem numa sociedade
em colapso. Incluiu na sua arquitetura filosófica uma compreensão do homem
em constante conflito no seu estado de natureza, contra o qual defendeu a ideia
do Contrato Social. Nela, construiu a base empírica e o fundamento do poder
do soberano, consolidando a unificação do corpo civil. Com essa ideia, Hobbes
legitima o poder e recria as novas fontes de ordenamento político jurídico em
uma única fonte: O Estado. A doutrina de Hobbes constitui o mais importante
fundamento do monismo. Segundo esta doutrina, o Estado é o detentor absoluto
da lei e da força.

Entre os estudos do poder, o de Max Weber tem sido referenciado como o mais
completo. (WEBER, 1982, p. 184‑201). Neste estudo, vamos nos ater à explicação
do autor sobre as formas como o poder se encontra infiltrado nas classes, nos
estamentos, nos partidos, e como ele se liga à dominação. Partindo da definição
“Por poder entendemos, genericamente, a probabilidade de uma pessoa ou
várias impor, numa ação social, a vontade própria, mesmo contra a oposição
de outros participantes desta” (WEBER, 1999, p. 175‑176), Weber vai chegar à
dominação legítima como uma estrutura formal. Essa estrutura constitui a fonte
que autoriza o exercício do poder e exige a obediência dos atores. De acordo

58
Sociologia Jurídica

com a interpretação de Giddens (2001, p. 33), o conceito de poder em Weber


combina, assim, ação e a estrutura.

É interessante reter desta definição três aspectos:

1. A análise de Weber tem a preocupação de compreender,


em primeiro lugar, a estrutura do poder.
2. O poder não se justifica na forma superficial das classes,
estamentos ou partidos. É a partir da estrutura que Weber vai
buscar os fundamentos do progresso da razão que, para ele,
é imanente à História.
3. O progresso enquanto racionalização das técnicas e da ciência
está a serviço do poder.

Com esses três elementos, pode‑se compreender uma conexão lógica entre ação
e poder. Esta explicação toma a estrutura como um fator determinante da ordem
e a ação como a variabilidade com que a cultura processa essa lógica segundo
as motivações tipológicas da sua teoria da ação.

Nesse sentido, a ideia do poder se diferencia, na sociedade ocidental, pela razão


científica e técnica, e sua particularidade em relação a outras sociedades, como
as orientais, é a desincorporação do poder de suas formas místicas.

Onde reside a peculiaridade?

Na explicação das formas típicas de legitimação da ordem, as convenções e o


Direito são as duas fontes típicas que vieram a substituir, nas culturas ocidentais,
o poder de Deus ou das divindades.

1.1 Poder e direito


Quando Weber examina as formas de poder e de funcionamento da dominação,
chega à conclusão que “todas as formações políticas são de força”. Contudo ele
distingue o grau e a natureza da aplicação dessa força. Ela pode ser aplicada na
busca de simples prestígio ou da honra ou, ainda, constituir‑se numa fonte de
autoridade formalmente regulamentadora, que, em determinadas circunstâncias,
assume um caráter autoritário.

O poder é o elemento definidor do controle social. Este tipo de poder ele chama
de “heterocefalia”. O que significa isso? Que o poder não fica concentrado, mas
se expande, servindo‑se do aparato dos recursos técnicos e científicos existentes,

59
Capítulo 3

as convenções, por exemplo, para estabelecer uma relação “associativa do poder


de mando e do aparato coativo” (WEBER, 1999, p. 190‑191). Este é o processo de
dominação que Weber entende como “uma situação de fato, em que uma vontade
manifesta – “mando” – do dominador ou dos dominadores quer influenciar as ações
de outras pessoas.

Neste tipo de dominação racional, estariam contidas, segundo Weber, as normas


do Direito, que são entrelaçadas a outras estruturas sociais. Como se explica
a transformação das fontes tradicionais do Direito: a religião, as divindades,
a magia, a família? No momento em que a validade do Direito torna‑se uma
necessidade para garantir, por meio da coerção, a ordem.

Essa relação associativa do poder do mando não pode, segundo Weber,


prescindir da técnica e da ciência, por serem os elementos vitais do aparelho
de constrangimento formal do Direito. A polícia, o poder de coação na cobrança
de impostos e de toda formalidade funcional do aparelho do Estado, que Weber
chama de dominação burocrática, justificam, além da dinâmica do poder,
a violência legítima.

Segundo essa lógica, o poder de influência de um regime político sobre o Direito


Público e inclusive sobre o Direito Privado, como observa Cavalieri Filho (2010,
p. 54) é tal que, nos regimes socialistas, o corpo social é colocado em primeiro
plano; e, o Direito individual, em segundo. A dinâmica do Direito obedece, neste
caso, essa mesma necessidade de o Direito garantir a ordem. Esta necessidade,
entretanto, é ritualizada pelo poder dos tribunais, das burocracias cartoriais e do
escritório. É neste processo que a explicação weberiana que relaciona técnica e
ciência ao Direito atravessa toda a obra Economia e Sociedade.

1.2 Direito e formalismo: a dominação burocrática


Todo tipo de dominação funciona através da administração, afirma Weber, em
Economia e Sociedade. Mosca e Bouthoul (1987, p. 20‑21) mostram que, do Egito
antigo, passando por todos os impérios orientais, uma das características gerais
era a divisão das funções do governo, que se estendia por todo o território sob
seu comando. Diversas atribuições eram exercidas por funcionários, os braços
do governo nos território e nas províncias longínquas. Os impérios, comentam
os autores (MOSCA; BOUTHOUL, 1987, p. 21), eram tão extensos que seria
impossível serem governados por uma única autoridade central. Além disso,
as diferenças geográficas, a natureza do solo de província ou território demandava
atenção específica: na agricultura, na distribuição da água ou na coleta de
impostos. Um dos caracteres mais comuns era a divisão das funções do governo.
Para denominar a maneira como, em certas circunstâncias históricas, o poder se
multiplicava, Weber referiu‑se ao fenômeno da “heterocefalia”. A fim de garantir

60
Sociologia Jurídica

a centralidade da fonte que autorizava o poder, os serviços eram executados por


meio de formalismos extremos, que controlavam o procedimento oficial da coisa
pública. A função dos ritos formais já nas formas mágicas, afirmava Durkheim,
tinham a função coativa.

Por que a coação se faz presente na formalização do aparato coativo


do poder?

Quando se analisam as fontes históricas, desde as formas mais remotas de


organização política, observa‑se que o chefe local tinha independência do poder
central, provocando, no caso do Egito, lutas constantes pelo controle do poder.
A forma teocrática cumpriu, assim, a função de resolver a descentralização,
ao construir uma estrutura do poder do rei, que era absoluta. Observa Mosca e
Bouthoul que o Estado muçulmano não conheceu outra fonte de poder que não
o livro santo, o qual era, ao mesmo tempo, um código religioso, político e civil.
A formalidade cumpria a obrigação de resguardar o conjunto de interesses que
constituía a razão de ser do aparato do poder: fosse a fonte teocrática, ou não,
o instituto jurídico se adaptava às necessidades da ordem.

No Ocidente, por exemplo, as antigas burocracias romanas do século XIII,


no reinado de Diocleciano, eram essencialmente patrimonialistas. Como observa
Barbosa (2013, p. 53), na marcha da história o Direito continua cumprindo sua
função sociológica da ordem, embora se deslocando entre um e outro instituto
jurídico. No caso de Roma, a família e a propriedade.

Na modernidade, a Burocracia, segundo Weber, desenvolveu‑se com a economia


financeira mas a racionalização do Direito e a centralização crescente do Estado
justificaram a sua intervenção formal nos domínios mais diversos da vida social.

A burocracia no sentido que Weber a empregou, como tipo de dominação,


justifica, na opinião de Barbosa (2013, p. 53), o exemplo mais típico da
dominação legal. Ao regrar juridicamente os papéis na vida social moderna,
o tipo de administração burocrática que hoje se conhece, estabeleceu uma
generalização na forma do poder “heterocéfalo”. A legitimidade é garantida
pelas tipificações funcionais dos papéis através da legalidade do cumprimento,
como descreve Freund (1987, p. 170‑172).

1. A existência de serviços definidos por competência rigorosamente


determinada pelas leis ou regulamentos.
2. A proteção dos funcionários no exercício de suas funções, em virtude
de um estatuto que torna os funcionários públicos uma profissão.

61
Capítulo 3

3. A hierarquia das funções é fortemente organizada por estrutura de


cargos e distribuição de funções desde os serviços subalternos até
os cargos de direção, com possibilidades de recursos da instância
inferior à instância superior.
4. O recrutamento é feito por concurso, exames ou títulos, o que exige
dos candidatos uma formação especializada.
5. A remuneração é regular na forma de salário fixo e de aposentadoria
quando completa o tempo de serviço pré‑estabelecido.
6. Os servidores têm direitos garantidos pela legislação.
7. A possibilidade de promoção dos funcionários com base em
critérios objetivos.
8. A separação entre o cargo, sua respectiva função e a pessoa que
o ocupa.

Weber chama atenção para o poder como o elemento de transformação das


sociedades modernas e das prerrogativas do poder da racionalidade técnica
e científica na exigência da impessoalidade e da subordinação do aparato
burocrático ao poder do Estado.

Seção 2
A origem e a concepção histórica do poder

2.1 A origem do Estado


As origens do Estado têm sido objeto de discussão, e a imprecisão do
conceito, em virtude das divergências em torno da sua anterioridade à origem
da sociedade, será aqui analisada dentro de quadro de referência teórico e
conceitual mais amplo, o que inclui um número maior de concordâncias sobre as
teorias que justificam a sua origem.

Um dos clássicos que tem merecido a credibilidade, por conciliar a dupla


perspectiva – a sociológica e a jurídica – é a obra de Jellinek (2000). Na sua
concepção, o Estado é um fato social, na medida em que teria existência externa,
mas, ao mesmo tempo, seria parte constitutiva das relações sociais e humanas.
Assim o Estado seria determinado por duas dimensões não excludentes mas
complementares: a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva.

62
Sociologia Jurídica

Na subjetiva, vamos encontrar o Estado como fenômeno social. Nesta dimensão,


encontra‑se a vida concreta do Estado. Poderíamos, deste ângulo, explicar o
Estado por sua origem histórico‑política, suas transformações e decadência.

A segunda concepção se refere ao aspecto jurídico do Estado. Neste conceito,


o Direito não se completaria pela totalidade das normas, mas, da realidade
que assume consistência quando expressa a vida concreta de um povo e pela
exigência de ser transformada em ação. Na concepção de Jellinek, a natureza
jurídica do Estado e as prerrogativas de suas instituições devem completar a
concepção social do Estado. As duas esferas, a sociológica e a jurídica, seriam
as condições para que o Estado pudesse garantir a ordem, não podendo ser
reduzido ou subordinado a uma ou a outra esfera.

2.1.1 O Estado na teoria contratualista


Os dois fundamentos sobre os quais se sustenta a Teoria de Geral do Estado
de Jellinek pouco têm variado nas teorias sobre as fontes originárias do Direito.
A divergência está em ser o Estado ou originário da sociedade ou do poder
político. O filósofo inglês Thomas Hobbes, um dos mais destacados teóricos
do Estado moderno, recria a ordem social a partir do Estado. Sua estratégia
político‑filosófica está no argumento de que era preciso combater as paixões
humanas. O egoísmo e os impulsos primários que, para Hobbes, seriam mais
fortes que a razão, levariam o homem a um estado de guerra permanente.
Para garantir a segurança e o controle dos sentimentos mais instintivos da
natureza humana, funda o Estado (Leviatã) sobre dois pilares: o político e o
jurídico. O fundamento lógico da ordem social estaria, portanto, na supremacia
do soberano. Se o homem, em seu estado de natureza, é incapacitado para se
organizar, a resposta de Hobbes a essa guerra de todos contra todos é o Leviatã.

Enfim, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que


é a consequência necessária – conforme demonstrado – das
paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível
capaz de os manter em respeito, forçando‑os, por medo do
castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas
leis naturais [...] (HOBBES, 2003. p. 127).

Na substituição da natureza pela racionalidade, surge um corpo civil onde os


indivíduos desfrutariam a igualdade social. Em Hobbes, o indivíduo desempenha
um papel fundamental no conceito de sociedade. Muitos dos seus intérpretes
atribuem a este conceito o fundamento das ideias liberais e da tradição monista
do Estado e da cultura jurídica que vigora até os dias atuais.

A necessidade de instituir o Estado laico e acima de qualquer partido político


ou crença religiosa é que justificaria o positivismo jurídico. (CASTELO BRANCO,

63
Capítulo 3

2008, p. 79). O Direito, segundo esta interpretação, constituiria o nexo entre o


corpo civil e lei formal. É importante lembrar que Hobbes tinha que justificar a
vontade que levou o indivíduo a estabelecer o pacto, e, assim, a manutenção da
ordem dependeria do Direito. Há nessa estratégia dois elementos que se impõem
como condições do modelo de Estado proposto: o primeiro, a vontade racional
e o resultado, o poder constituído; segundo, a necessidade de uma concepção
de ordem derivativa da autorização. Neste sentido, os atores do pacto são
considerados os que autorizam o poder, mas a condição desta autorização é a
exigência da renúncia em favor do soberano.

Deve‑se considerar que a teoria contratualista não pretendeu uma unanimidade


sobre as condições da natureza e os critérios do que viria a ser o fundamento
das garantias da ordem social. Por exemplo: em John Locke (2007, p. 142‑143),
o fundamento contratualista da ordem civil não implicaria a renúncia do indivíduo
nem a impetuosa irracionalidade do poder egoístico, mas a necessidade de
preservação da property (vida, liberdade e riqueza). A questão da ordem é
motivada em Locke pela necessidade de punição contra os ataques daqueles
que não respeitam o Direito originário do estado de natureza. O poder político do
governo civil instaura pela via do contrato civil, o Direito de preencher a ausência
do juiz no estado de natureza e o Direito político de fazer leis. Já, em Rousseau,
o contrato social, em um breve resumo, recupera a soberania do povo tomando
o povo como a única e legítima fonte da vontade política. Contra qualquer ato
do poder concentrado no Estado, Rousseau vai fundar as relações sociais
sob o argumento da supremacia da lei feita pelo homem, opondo‑se, assim,
a toda forma de arbítrio. A ordem social em Rousseau não deriva, portanto, do
Estado, mas da legitimidade pela obediência do homem às leis que ele próprio
prescreveria para si.

2.1.2 O Estado na teoria sociológica


A explicação sociológica do Estado decorreu de uma coerência lógica em todas
as escolas sociológicas ao estabelecer em quais das instituições sociais reside a
maior responsabilidade de garantir a ordem social. Neste aspecto, verifica‑se uma
convergência das escolas ao situar o Estado na lógica do poder político.

Talvez seja nos clássicos do pensamento político, desde Aristóteles aos pensadores
iluministas, que se vá perceber uma linha tênue separando o social do político.
A convergência entre ambos, Jellinek elucidou, quando se refere à busca da ordem
na dimensão política do sistema social. Dependendo do ângulo em que se analisa,
na história do pensamento político, a trajetória do poder, ele se revela como uma
condição dialética em que, em determinado momento, o Estado ressurge não
identificado como uma fonte da ordem, mas se deixa constituir num meio de
dominação. Por exemplo, Karl Marx desenvolveu uma concepção do Estado como
a expressão do antagonismo irreconciliável das classes. Neste sentido, o Estado

64
Sociologia Jurídica

enquanto ideologia burguesa seria uma estratégia para “ocultação” dos conflitos
das relações sociais de produção.

Na sua análise das transformações sociais, Marx (1973), em toda a extensão do


livro, mostra que, nas formas de organização das sociedades, o Estado havia
se desenvolvido como um meio a serviço da ordem social. Na velha tradição
das gens, da sociedade romana, por exemplo, a ordem era formada por laços
de sangue e ligada a um determinado território. O poder nascido da sociedade
orientava os Direitos e deveres à preservação dos padrões normativos do domínio
domiciliar, uma composição, segundo Marx, comum a todas as formas originárias
do Estado. Esta forma é radicalmente transformada em condições em que a
economia se estabelece como estrutura da sociedade.

Observa Melo (2013, p. 25), numa passagem de O Capital, que Marx teria
afirmado: “o poder do Estado foi adquirindo cada vez mais o caráter de poder
nacional do capital sobre o trabalho, de força pública organizada para a
escravidão social, de máquina do despotismo de classe.

Fica evidenciado que a definição do Estado não se identifica apenas como ente
jurídico ou político. Outros elementos integram esta concepção: a econômica
como aparece na concepção marxista, onde foi possível apreender as
implicações das classes e a ideologia como forma de conter as tensões e os
conflitos imanentes da luta de classes.

Noutra concepção sociológica, Durkheim toma por analogia o funcionamento


do corpo para definir o Estado como órgão do corpo social. O Estado, neste
raciocínio, é chamado por Durkheim (1999, p. 36‑37) de cérebro social, o órgão
de onde provém a força que dá consistência ao social.

Em outras palavras, Durkheim está referindo‑se ao poder diretor do Estado


segundo a regra de conduta sancionada. Não se pode esquecer que Durkheim
está interessado em explicar a força motriz da solidariedade e como ela se
reproduz na consciência coletiva. Assim, o Estado não constitui a sede única da
força de coesão social. A efetividade da unidade atuando na consciência comum
de uma coletividade depende, necessariamente, de como essa força se difunde
por extensão do corpo social. É aí que reside o poder de reação do próprio
Estado. Conclui: “O cérebro tem sua importância, mas o estômago também é um
órgão essencial e as doenças de um são tão ameaçadoras para a vida como as
do outro.” (DURKHEIM, 1999, p. 54‑56).

A intenção de Durkheim nessa analogia do Estado com o corpo, pelo que


se depreende de suas obras, é explicar de onde e como um poder diretor se
estabelece. No caso do cérebro, a função principal deste órgão é fazer respeitar
as crenças, as tradições, as práticas coletivas de modo geral, no esforço
permanente de preservar a consciência comum. Portanto a menor violação dos

65
Capítulo 3

valores que definem essa consciência coletiva deve ser punida. Em Durkheim,
portanto, o ordenamento jurídico – como um sistema de representações
coletivas – não constitui nenhuma propriedade autoritativa para se desprender
do corpo social. Nessa concepção de solidariedade, destaca‑se o papel do
Estado na preservação da unidade do corpo coletivo, não podendo confundir‑se
com uma função difusa do poder, mas se impor por seu papel institucional e
orgânico. Essa imposição, contudo, não tem uma conotação negativa do poder,
mas, por analogia aos mecanismos cerebrais no comando do corpo – Durkheim
toma os valores, as crenças os costumes para a forma orgânica de solidariedade,
a mesma função que deveriam ter as normas jurídicas –, para garantir a ordem e
o funcionamento do corpo social.

O contrário desta função, Durkheim explicou nos processos anômicos na


sociedade. Neles encontrou os fenômenos patológicos – suicídio, conflitos
e perturbações de diversas naturezas – fenômenos que a concepção do
funcionamento biológico do corpo comparou a doença.

Na perspectiva sociológica de Weber, talvez seja o lugar onde se encontre a forma


mais explícita de definição do Estado. Fundado em documentos históricos, Weber
dá uma extensão muito maior à função orgânica das relações sociais e conclui
que o Estado é um aparelho de dominação e que, no racionalismo ocidental,
adquire, na sua forma burocrática, o meio efetivo de reivindicar o monopólio do
uso legítimo da violência física dentro de determinado território. (WEBER, 1982,
p. 98). Notadamente, há uma coerência lógica entre o raciocínio hobbesiano
e os fundamentos racionalistas do poder e do Direito em Weber. Em primeiro
lugar, é necessário, para se entender a lógica da dominação de Weber – que
a burocracia seja entendida como um meio de neutralização da identidade
do agente. Com isso, ele atribui uma artificialidade ao corpo civil, onde busca
a legitimidade no racionalismo técnico para uso do poder. Este aspecto tem
inspirado argumentos contra a democracia procedimentalista. Por exemplo,
a distância entre os representantes e a sociedade suscita outras questões como o
tamanho do aparelho do Estado e, no caso específico do Judiciário, a morosidade
e o formalismo lógico do Direito.

Giddens (2001, p. 42‑43) também destaca, na análise weberiana, alguns


elementos que não apenas se diferenciam da perspectiva sociológica de
Durkheim – com respeito à função social do Estado, que está baseada na
centralidade da ordem – como cria novos elementos, que é a externalidade
do poder. Se, em Durkheim, o cérebro da sociedade é o Estado, e como seria
impossível a sua externalidade, em Weber esta externalidade se justifica na
racionalidade técnica e científica como força política onde vai alocar o aparato
da violência legítima.

Em que consiste este aparato segundo Giddens?

66
Sociologia Jurídica

Consiste em:

•• suporte administrativo regular e capacitado;


•• sustentação do Direito de monopólio legítimo do controle dos
meios de violência; e
•• manutenção desse monopólio dentro de uma determinada
área territorial.

Ora, em Weber, o poder precisa de legitimidade e, numa nova versão racionalista,


o Estado é o meio adequado para veicular o aparelho de dominação sem o qual a
sociedade civil deixa de coexistir ligada, de modo intrínseco, à dimensão política.

2.1.3 Estado, Direito e Sociedade


2.1.3.1 O Monismo Jurídico
O Estado, na ótica da Escola Monista, é considerado a fonte única do Direito
e o centro único do poder e o detentor de produção das normas. (CARVALHO,
2010, p. 14‑15). A orientação legalista em que se pautam os seus representantes,
nega as fontes históricas do Direito e todo argumento que justifica a ordem fora
do Estado como fonte válida para qualquer suposição jurídica. Henry Lévy‑Bruhl
(2000, p. 24) define o monismo como uma escola “onde se situam quase todos os
juristas” e sua instituição se pauta na convicção de que somente o poder político
teria a legitimidade para fazer leis. Na visão de Machado Neto, o legalismo deve
ser entendido pelo êxito da revolução enquanto instauradora da ordem social pelo
Direito positivo.

Este entendimento conjuga força política e competência jurídica como monopólio


da aplicação do Direito. Entre os seus principais defensores, o nome mais
destacado é o de Kelsen.

Numa interpretação sociológica do monismo kelseniano, Carnio e Gonzaga (2010)


chamam a atenção para uma contribuição que ambos têm como esquecida dentre
as de Kelsen à Sociologia e à Antropologia. Para os autores, a preocupação do
jurista não se resume à defesa do positivismo jurídico, mas da sistematização de
uma série de estudos sobre como a justiça se apresenta substrato na Filosofia,
na Religião e na Poesia. Neste sentido, a interpretação desses autores sugere uma
teoria positivista talvez induzida pelo evolucionismo e positivismo comteano. Nesta
interpretação, segundo os autores, Kelsen teria desenvolvido uma explicação para
o racionalismo jurídico a partir da mentalidade primitiva do homem e da noção de
eficiência. Como os padrões de coesão e de ordenamento tornavam‑se mais ou
menos eficientes, concluiria Kelsen que, nas sociedades primitivas, a eficiência da
coesão social está associada à quantidade de regras e de obrigações sociais. Já a
moral moderna se caracterizaria pelo sentido qualitativo.

67
Capítulo 3

Depreende‑se dessa interpretação que Kelsen considera o sentido qualitativo pelo


monopólio do controle da ordem. O sentido desta concepção de “qualidade” sugere
afinidade com a formalidade do aparato de controle social que, diferentemente
de Weber, estaria para Kelsen no poder político. Esse formalismo que troca a
legitimidade pela legalidade torna a concepção monista o móbil do processo de
racionalização do Direito. Assim, o argumento evolucionista de Kelsen concentra
todo o esquema rígido do que para ele seriam as formalidades de uma ciência
jurídica, para negar qualquer possibilidade de reconhecimento da sociedade como
fonte de ordem normativa.

Desse fundamento, Carno e Gonzaga (2010, p. 92‑93) extraem que, para Kelsen,
uma proposição jurídica não precisa ser basicamente da ordem do ser. Segundo
esse entendimento, um juiz que, ao tratar o objeto jurídico, dispensa a realidade
social pelo texto legal emanado do poder legislativo como única fonte válida,
porque externo e despojado de qualquer sentimento ou valor humano, encontra
resistência entre as correntes pluralistas.

Seja qual for a interpretação que se queira dar às tentativas de Kelsen de buscar
na sociedade o nexo entre moral e Direito, o positivismo, da forma como se
sustenta no monismo, se resume ao procedimento formal e à autossuficiência
do ordenamento jurídico. A interpretação de Carvalho (2010, p. 15) em torno da
constituição do formalismo remete ao argumento weberiano da racionalidade
burocrática: é preciso a neutralidade ou externalidade para justificar o aparato
do poder. Este racionalismo ou formalismo, na visão de Carvalho, não satisfaz
às demandas no âmbito do Direito Penal, ao reduzir a preocupação de saber
se “determinado crime é formal ou material ou ainda se admite tentativa ou se
pode ou não ser consumado por uma conduta omissiva”. Outros elementos
não entram, segundo o autor, na composição dessa preocupação, como, por
exemplo, o caráter seletivo do sistema penal ou o fato de que a defensoria
pública não possui estrutura para oferecer serviços adequados aos assistidos.

2.1.3.2 Os fundamentos do pluralismo jurídico


Além das Escolas que combateram o racionalismo jurídico, as escolas pluralistas se
fundaram por um conjunto de teorias que justificam, com amparo na legitimidade,
as fontes não estatais do Direito.

Nos últimos anos, essas Escolas e vertentes pluralistas vêm agregando à agenda
do Direito, novas questões que desafiam o monismo jurídico não somente pelas
demandas de novos conhecimentos, mas, sobretudo, pelas transformações
sociais que, no final do século XX, já desafiavam as mesmas instituições que
fundaram o positivismo jurídico, à busca de novos paradigmas, e à ciência do
Direito, uma exigência velada de chamar para si a competência de responder às
demandas sociais do século XXI.

68
Sociologia Jurídica

Alguns elementos motivadores das vertentes teórica do pluralismo têm‑se


destacado por diversas demandas. Segundo Iamundo (2013, p. 108‑109), as mais
prementes seriam:

•• A necessidade de compreender a lógica de coesão social e, a partir


dela, a causalidade e as formas de conflito, visando adequar novas
formas de mediação e de resolução de conflitos.
•• Aprofundar a discussão sobre as novas demandas por novos Direitos.
•• Aprofundar o conhecimento sobre as fontes geradoras de Direitos.
•• Aprofundar o conhecimento sobre as demandas culturais e os
aspectos da identidade social tal como a preocupação com a
alteridade de grupos.

No conjunto, diversas áreas de conhecimento têm contribuído para este ajustamento


do formalismo jurídico às novas demandas da sociedade. A ineficácia de algumas
leis na contenção da criminalidade, por exemplo, e a falta de preocupações com
a realidade social coloca, hoje, o monismo jurídico em constante tensão com as
correntes que já vêm da longa História do Direito voltadas para essa realidade.

Em que consistem as teses pluralistas? Em geral, defendem um novo paradigma,


partindo dos problemas que, segundo seus intérpretes, constituem os mais
destacados óbices ao acesso à justiça. Por exemplo, a morosidade do judiciário,
o excesso de burocracia, a perda da funcionalidade das instituições estatais e a sua
incapacidade de dar respostas às novas demandas sociais. Contra o argumento
monista da insegurança jurídica, Wolkmer (2010, p. 14) rebate, indicando a
legitimidade do Direito vivo que surge nas favelas, nos grupos de minoria.

O argumento de Wolkmer encontra convergência com a posição de diversas


escolas e linhas de pesquisa na Filosofia, Sociologia e Antropologia. Lévi‑Bruhl,
por exemplo, tem sido amplamente referenciado por sua postura em favor do
pluralismo jurídico. Negando o argumento de que a segurança jurídica esteja no
monopólio da fonte estatalista do Direito, aponta as seguintes fontes de Direito:

•• Fontes supraestatais do Direito: Direito religioso: Direito canônico


(católico e protestante), Direito muçulmano, Direito judaico antigo,
Direito das religiões do Oriente e do extremo‑oriente.
•• Organizações Internacionais: Regulamentações editadas pelos
organismos internacionais. Agrupamento de Estados (União Europeia),
Organização das Nações Unidas. As recomendações da Corte
internacional de Justiça de Haia e outras que vieram posteriormente.

69
Capítulo 3

•• Direitos infraestatais: Agrupamentos inferiores ao estado;


os Direitos costumeiros de famílias, costumes e práticas de
julgamento locais e regionais.
•• Nos Estados modernos: Os agrupamentos humanos, associações.
Aperfeiçoamento da norma existente com os valores dos costumes
e demandas de grupos específicos.

Outro nome que se tornou referência unânime na literatura é o do sociólogo


português Boaventura de Sousa Santos (1988). Em um breve resumo, seu
diagnóstico sobre o formalismo jurídico no Brasil e a distância da realidade,
resultou de sua pesquisa no Brasil numa favela do Rio de Janeiro, na década
de 70. O autor teve oportunidade, em sua pesquisa, de constatar como a
maneira de viver de uma comunidade da favela estimulou o isolamento da
comunidade e a viver a marginalidade como uma identidade: a identidade dos
excluídos. O desconhecimento do saber formal e a ausência do Estado levaram a
comunidade a criar mecanismos alternativos para preservar a “ordem interna” na
comunidade e resolver os seus conflitos no dia‑a‑dia. Assumindo a ”identidade de
ilegais”, vetaram os canais de comunicação dos indivíduos da comunidade com
os órgãos estatais – criando alternativas para satisfazer as necessidades internas.
Observou o autor diversos fatores que impediam o acesso à Justiça, criando
assim uma resistência ao formalismo do judiciário. Por exemplo: a linguagem
inacessível dos operadores do Direito, os custos de serviços advocatícios, entre
outros obstáculos que tornavam para esta comunidade, inacessível o judiciário.

Diversos estudos e pesquisas, no campo da Antropologia e da Sociologia, apontam


outros obstáculos muitos semelhantes aos apontados por Boaventura Santos,
na violência conjugal, violência familiar, aborto entre outros (cf. LIMA, 2012).
Outros estudos se multiplicam nos últimos anos no Brasil, apontando igualmente
situações que demandam um tratamento pluralista para atender uma diversidade
de demandas de justiça. Entre elas, está a ilegitimidade da instituição judiciária
como instância que deteria a autoridade para dirimir disputas de naturezas diversas
e muitas delas estranhas ao judiciário. (cf. MATOS, 2010).

70
Sociologia Jurídica

Seção 3
Controle social

3.1 O conceito de controle social


Na Sociologia, o conceito de controle social remete o homem às suas formas
mais antigas de organização social. Isso inclui todo o conjunto de dispositivos
que é próprio da sociedade:

•• religião;
•• costumes;
•• leis;
•• instituições sociais; e
•• sanções.

Para garantir a integração dos indivíduos à sociedade e o estabelecimento


da ordem, essas instituições funcionam no sentido de criar os valores que
determinam a forma e o tipo de controle social. Dois tipos caracterizam a forma
de pressão e legitimidade: o formal e o informal.

O controle social tem, portanto, uma função social tão importante, que, para
preservar a estrutura da sociedade, cria uma diversidade de técnicas culturais
voltadas à garantia da socialização do homem no seu convívio social. Essas técnicas
compreendem pressões visíveis e invisíveis que se interligam aos costumes, às leis
e às instituições de vários tipos. Como as instituições estão interligadas, segundo foi
abordado na sociologia de Durkheim, Weber e Gurvitch, o seu reconhecimento dá‑se
pelas identidades sociais. Estas exercem, de maneira inconsciente, pressões através
dos papéis que exercemos na sociedade. Para que o desempenho desses papéis
possa garantir o funcionamento das instituições, é fundamental o controle social para
guiar o processo de aprendizagem e o desempenho das atividades humanas diárias.

Hoebel e Frost (1976, p. 302) definem o controle social como um processo de


aprendizagem de todos os membros da sociedade no desenvolvimento de
costumes comportamentais corretos. Estes padrões de conduta desejáveis,
os autores chamam de comportamento social. Dentro do que prescreve a cultura
em cada sociedade, o comportamento social dos membros deve ser previsível
dentro de uma margem aceitável de desvios. Os pressupostos básicos do controle
social, afirmam os autores, residem no fato de que: “a sociedade só é possível
numa ordem demarcada”. (1976, p. 20). Assim, a limitação dos comportamentos é,
não somente uma necessidade social, como também individual.

71
Capítulo 3

Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que toda sociedade possui


sua seleção para desenvolver as potencialidades humanas. Esta seleção é
determinada por certos valores que funcionam de maneira integrada às suas
instituições, de forma a garantir a coerência lógica e preservar a ordem e o
equilíbrio da estrutura social.

Johnson (1997, p. 54), no Dicionário de Sociologia, associa controle social e


coerção. Em cada tipo de sociedade, afirma o autor, o controle social é exercido
por meio de várias formas de coerção, variando a capacidade do agente de
restringir fisicamente o indivíduo. A autoridade para exercer a coerção, entretanto,
depende da legitimidade. Entre a autoridade de um pai para restringir fisicamente
a conduta de um filho e a autoridade do sistema de justiça para condenar à prisão
réus culpados por cometimento de crimes existe diferenças, e estas diferenças
dependem da força de legitimidade da instituição que autoriza o agente a exercer
a coerção. A autoridade de um médico para aplicar certo tipo de droga para
controle de um mal em pacientes depende, também, da fonte de legitimidade
que lhe autoriza praticar o procedimento. Contudo a coerção não é o único meio
de controle social. Para o autor, o processo de socialização é mais importante
na medida em que o indivíduo é integrado à sociedade e levado a conhecer os
valores e as normas da sua sociedade.

A pressão psicológica que exerce a exclusão de um indivíduo numa sociedade


resulta no medo do ridículo ou da sua exclusão. Esse processo é reconhecido
na Sociologia como um induzimento de culpa. Este induzimento é a pressão
psicológica que leva à internalização de padrões morais durante a socialização.

O estudo do antropólogo Brosnislaw Malinowski, considerado pioneiro na


pesquisa experimental sobre o controle social dos selvagens, prova que as
leis firmes de tradição rigorosa dos povos primitivos eram determinadas pelas
necessidades biológicas, mentais e sociais da natureza humana.

Crime e Costume ‑ Bronislaw Malinowski

Malinowski, em seu texto “A lei primitiva e a ordem”, vai abordar motivos pelos
quais regras de conduta são obedecidas em sociedades primitivas. Até então,
se apresentavam respostas redutivas para esses problemas como, por exemplo,
“submissão instintiva” ou “sentimento de grupo”, mas Malinowski concentra‑se em
uma visão mais abrangente da lei, como maneira de explicar a natureza das forças
que fazem com que se torne obrigatório o cumprimento de regras.

72
Sociologia Jurídica

A ameaça de coerção e o medo da punição não afetam o homem comum, seja ele
selvagem ou civilizado, há que se saber que sociedade alguma poderia funcionar
sem que houvesse uma maneira espontânea de obediência à regra, sem que seja
excluída a necessidade de punição dos crimes. A respeito dos conceitos usados
“submissão instintiva” ou “sentimento de grupo”, Malinowski afirma não concordar
com as expressões, assumindo que sentimentos como solidariedade, orgulho da
comunidade existem e são necessários para a manutenção da ordem social.

No texto, Malinowski rompe a ideia de que a lei primitiva seria uma lei negativa,
assim como a ideia de que tais sociedades apenas desenvolveriam leis penais.
Tais regras, denominadas por analogia como lei civil, são, de maneira geral, o que
rege a vida tribal, não sendo fruto de organização expressa e nem constituindo
um ordenamento jurídico. As leis, para Malinowski, constituem um mecanismo de
garantia de que o nativo não irá descumprir suas responsabilidades sem sofrer
algum tipo de sanção.

Diz Malinowski que o selvagem, longe de ser a criatura livre e desimpedida de


Rousseau, é tolhido de todos os lados pelos costumes. Preso às cadeias de uma
tradição imemorial, sua obediência não se limita as suas relações sociais, mas,
sobretudo, às crenças religiosas, à prática da sua medicina, à indústria e à arte.

3.1.1 Controle social e Direito


O controle social na Sociologia Jurídica possui um significado mais restrito
mas igualmente fundamental por sua função sociológica de preservar a
ordem social. Duas formas o caracterizam, segundo Sabadell (2002, p. 131):
a orientação e a fiscalização.

Como se manifestam?

Por exemplo: os sinais de trânsito visam orientar o motorista e o pedestre.


Os guardas de trânsito e os policiais fiscalizam os pedestres e os motoristas
para o cumprimento das normas de trânsito. A lógica social aí se manifesta pelas
condutas orientadas. O pedestre e o motorista cumprindo papéis respectivos;
o policial e o guarda, a fiscalização.

Castro (2009, p. 237) define o controle social como fenômeno jurídico a partir
de duas características: a norma e a conduta. A norma teria na sua origem a
conduta social e, por sua função sociológica, a relação entre norma e conduta
seria de causalidade.

73
Capítulo 3

A partir dos critérios que conjugam coerção e legitimidade segundo Johnson, Castro
também caracteriza a norma jurídica como um instrumento institucionalizado. Se a
conduta social, conclui, nasce da sociedade, o poder da instituição depende da
institucionalização para o exercício do controle. Referido nesta lógica, Castro extrai o
Direito como o elemento conectivo que liga indivíduo e sociedade.

Como se explica do ponto de vista da Sociologia Jurídica, o induzimento


do controle social?

Pela coerção. Referindo‑se a Bertrand Russel, Castro (2009, p. 238) lembra


que: “o bom comportamento do cidadão mais exemplar, deve muito à existência
da polícia.”

Segundo o critério da coerção, as características mais comuns no âmbito jurídico


são aquelas que diferenciam o controle institucional do controle moral:

•• A norma jurídica é a formalização do controle e, para isso, passa a


dispor da força coativa.
•• O domínio jurídico vai se expandindo progressivamente, na medida
em que novos Direitos são reconhecidos, as formas psicológicas
de pressão moral vão perdendo força e sendo substituídas pela
coerção física.
•• O Direito como forma de controle institucionalizado se realiza
mediante o aparelho burocrático detentor da autoridade coativa.

Na explicação organicista de Durkheim, o cérebro não pode estar fora do


corpo. Este aspecto indica a convergência da concepção jurídica do Direito,
embora, na concepção weberiana, a racionalidade para manter a ordem através
dos mecanismos coercitivos tenha de criar o aparato burocrático, garantindo,
assim, de forma independente, a eficácia da coerção para preservar a ordem
social. Entende Weber que a lógica social em determinado momento da
História precisa adequar‑se a novas exigências. A ciência e a técnica passam,
assim, a justificar os mecanismos de coerção formal em que o Direito – como
norma jurídica – amplia‑se e, com os recursos formais mais estáveis, passa a
desenvolver todas as suas potencialidades de influência sobre o sistema social.

Controle jurídico
A partir do século XX, o controle social por meio dos mecanismos judiciais tende
a se constituir cada vez mais como um meio válido para preservar a ordem social.
Nestes termos, o controle jurídico das condutas se impõe por um sistema de poder

74
Sociologia Jurídica

no sentido de conter num mínimo, as possibilidades de conflito. Dias (2009, p. 177)


apresenta sete atributos como tarefas necessárias do controle jurídico:

a. A outorga a determinadas pessoas de autoridade para criar ou


aplicar normas.
b. Existência de normas que descrevem as condutas aceitas, ou não.
c. Prêmios e sanções atribuídas às condutas orientadas pelas normas.
d. O uso do poder, por indivíduos autorizados.
e. Procedimentos oficiais de resolução e intermediação de conflitos.
f. Delegação de atribuições de controle social aos subtipos lícitos de
controle social.
g. Autorização para perseguição e castigo, aos detentores de cargos
públicos e de subtipos lícitos de controle social.

Em linhas gerais, o autor conclui que as formas de controle social jurídico,


na forma técnica com que o controle jurídico representa a validade do controle
nas sociedades modernas, seriam uma forma manifesta com que a sociedade
se revela como estrutura social. O Direito como tipo de controle social ordena,
sistematiza, controla e reprime.

Dentre as classes de subtipos de controle social lícito, o autor descreve alguns:

•• o exército;
•• a polícia;
•• as empresas;
•• os sindicatos;
•• as igrejas;
•• a família;
•• os partidos políticos.

O que define os limites de atuação destes subgrupos são as normas sociais válidas,
mas eles só podem agir diante daquilo que estiver fora dos limites, isto é, diante
daquilo que for considerado desvio, e respeitando a autoridade de cada subgrupo.

A tendência nas análises dos mecanismos de controle social indica o predomínio


do controle social pelo monopólio da violência legítima, que tenderia a reduzir a
intervenção do Estado por meio da lei e da força.

75
Capítulo 3

Seção 4
Segurança pública

4.1 Conceito
Definir a Segurança Pública não tem sido uma tarefa fácil, dada a polissemia do
termo, na tentativa de abranger as suas múltiplas funções nas sociedades modernas.

Em geral a Segurança Pública tem sido definida como uma atividade pertinente
aos órgão estatais e à comunidade como um todo. Suas ações estão voltadas
para a proteção da cidadania, prevenção e controle das manifestações da
criminalidade, das violência efetivas ou potenciais, propiciando as condições de
segurança para o pleno exercício da cidadania nos limites da lei.

4.2 Origem histórica da segurança pública


Fora a igreja, império e nobreza, o quarto tipo de organização política que seria
superado para dar lugar ao estado foram as comunidades urbanas.

No sul da Europa, muitas dessas comunidades eram remanescentes dos tempos


romanos. Essas comunidades, diferentemente das formas modernas, tinham
os resquícios das fortificações e ruas estreitas. Outras comunidades surgiram,
espontaneamente, do comércio e de locais propícios à distribuição.

Por volta de 1340, pouco antes das cidades serem dizimadas pela peste negra,
grande parte da população vivia nas cidades, e estas se multiplicavam em
centenas e centenas.

Quais eram as características desta nova forma de organização?

Desde o início, as cidades eram corporações. Independente do modo como


haviam sido conquistadas, um traço característico era que não pertenciam a um
indivíduo, mas a todos os cidadãos, que, sendo diferentes da população rural,
possuíam status de livres, ou seja, não eram servos.

Dessa maneira, as cidades contradiziam os próprios princípios do governo


feudal, os quais se fundamentavam nos Direitos interligados dos superiores
sobre os inferiores, não obstante, do ponto de vista dos aspirantes a monarcas
centralizadores, o problema que as cidades apresentavam era quase igual ao da
nobreza. Cada nobre era seu próprio senhor, mas exercia poder inferior ao do
rei. Assim, as cidades tinham seus próprios órgãos de governo. Como se pode
concluir, a cidade nasceu como um processo de burocratização do poder.

76
Sociologia Jurídica

As cidades tinham seus próprios órgãos de governo. Esses órgãos contavam


com um ou mais magistrados superiores, conhecidos por diferentes títulos:
Echevins – França e Holanda; Cônsules – Itália; Schöffen – Alemanha; e,
Regedores – Espanha. Além disso, as cidades tinham uma série de outras
autoridades e uma câmara municipal, também eleitas; um sistema independente
de tributos municipais; o Direito de fazer suas próprias avaliações para fins
de coleta de impostos reais e, às vezes, como instituição ao mesmo tempo
lucrativa e simbólica: um, a casa de moeda também. Por fim, as cidades eram
diferentes das aldeias, porque, além desses privilégios, possuíam suas próprias
fortificações, guardas responsáveis pela manutenção da ordem pública e,
na forma de milícia (especialmente na Itália) e mercenários, suas próprias forças
armadas. Até certo ponto, essa organização e essas forças – sustentadas pela
riqueza proveniente do comércio e da indústria – permitiram‑lhe afirmar sua
independência tanto perante seus fundadores quanto perante a autoridade
superior representada pelo rei.

Tal capacidade, na maioria das vezes, estendeu‑se a ponto de declararem guerra.


Também à semelhança dos nobres, a influência das cidades não era apenas local,
mas complementada pelas ligações que mantinham entre si, através de suas
fronteiras territoriais.

As relações comerciais representavam um alicerce sobre o qual era possível


construir essas ligações; outro alicerce eram as instituições que tinham em
comum, já que as cidades recém‑fundadas quase sempre recebiam ou tomavam
para si as leis e a organização política das já existentes e eram sensíveis a
toda tentativa de revogá‑las. Qualquer que fosse suas crenças ou sentimento
de solidariedade, a necessidade de defender seus interesses quase sempre
constituiu o motivo de formar alianças ou ligas com o objetivo de proteger as
estradas, manter a paz e defender os interesses da comunidade. Entre esses
interesses, a isenção de pedágios era comum entre as cidades que se fechavam
entre muros.

De acordo com Creveld (2004, p. 378), desde o início a nobreza concentrava o


poder e torna‑se por isso inimiga das cidades, ao ameaçar o comércio pacífico
com turbulência. Comenta o autor que, na Inglaterra, o poder do rei chegou a tal
ponto que, por um simples mandado judicial, poderia convocar os serviços de
qualquer burgo.

A transição das hostes (tropas) feudais para as forças mercenárias e destas para
o exército e as marinhas regulares pertencentes ao Estado, surgidas em 1648,
ocorreu com o surgimento da pólvora inventada na China.

A evolução tecnológica militar e surgimento de uma economia comercial


urbana começou a pôr dinheiro nas mãos do povo. Em consequência disso,

77
Capítulo 3

os governantes liberavam seus vassalos da obrigação de lutar por eles, exigindo


pagamento de um imposto especial, o scutagium.

Esse imposto, segundo Creveld deu origem à contratação de mercenários e, na


segunda metade do século XV, estes mercenários já substituíam quase todas as
formas precedentes de segurança, exceto nos níveis mais altos de comando.
A maneira mais comum dessa época, de formar um exército, era um empresário
convocar soldados, fornecendo uniformes, equipamentos e treinamento. Os serviços
eram altamente rentáveis. Como a maior demanda vinha das autoridades, o exército
de mercenários quase sempre se mantinha fiel ao governo que pagasse melhor e
enquanto durasse o pagamento.

4.3 A origem do monopólio da segurança pública


Por volta do século XVI, as guerras que, em toda a Idade Média, eram travadas por
motivos pessoais, começaram a mudar de direção para o Estado. O monopólio
estatal da guerra criava também uma nova categoria jurídica: os feridos.

Segundo Creveld, a partir de 1666, aproximadamente, os combatentes foram


elevados à categoria de servidores do estado. Os uniformes ganharam significado
nacional, e os soldados se tornaram um símbolo do poder. Entre 1790 e 1830,
os governantes competiam entre si pela qualidade e aparência dos uniformes.
Depois disso, em função da tecnologia, ganham valor as armas de disparo rápido
como o símbolo de poder nacional.

Passaram em seguida ao confinamento nos quartéis. Uma vez confinados


os comandantes e seus soldados, a racionalização da segurança cria uma
cultura própria, da impessoalidade. Passou o Estado a exigir comportamento
diferenciado e um distanciamento cada vez maior da população. Surge o código
independente da justiça militar.

Creveld chama a atenção para o fato de que, neste processo, os governantes


passaram a exercer um maior controle sobre as cidades. A polícia ganhou
destaque na pacificação, sobretudo no controle da movimentação dos cidadãos
e para evitar que saíssem do país. Neste momento, houve a separação entre as
forças armadas e a polícia.

4.4 Os fundamentos sociológicos da relação segurança


e Estado
Com o surgimento do Estado moderno, Giddens (2001, p. 61‑78) vê uma tendência do
poder independente da política tornar‑se a arma uniformizada do Estado moderno.

Esta interpretação revela uma forte semelhança com a análise de Creveld. Numa
passagem do seu livro, este historiador conta que o primeiro europeu ocidental

78
Sociologia Jurídica

a usar o termo polícia foi Melchior Von Osse por volta de 1450. Comenta Creveld
que, na opinião de Nicholas de La Maré, que havia publicado um Tratado da polícia
em 1750, este elevava o papel da polícia ao patamar mais alto do significado da
“ordem pública”.

No contexto da evolução da ordem moral para a civil, a polícia se revela


progressivamente pela íntima vinculação com o poder político. Duas características
que se pode notar na análise de Creveld e Giddens é que o desenvolvimento e o
crescimento da cidade são os dois propulsores do status da segurança pública,
transformando‑a no esteio orgânico do Estado.

Aqui caberia uma pergunta para reflexão: A função da polícia é mais


pacificadora ou orgânica?

Os estudo de Weber não deixam dúvidas que um resulta do outro. Na interpretação


de Giddens (2001, p. 47), a força como forma de garantir que a expansão da
solidariedade orgânica no sentido empregado por Durkheim não fosse difusa
demais para impedir os laços sociais, foi recriada unindo a solidariedade pela
conjunção do Estado Nação. Nesta conjunção, o Estado, segundo o autor, constitui
uma comunidade política dentro da qual Direito e cidadania não se relacionam,
não para se configurar como um suporte do poder militar, mas do Estado Nação.

4.5 A origem e evolução histórica da polícia


Quando se analisa, na história, a função da polícia, é possível perceber uma
identidade com a cidade. Segundo alguns estudos, a palavra polícia tem sua
origem na palavra grega politeia, evoluindo para a tradução latina politia.

O que se pode se deduzir da história, segundo os estudos de Creveld (2004,


p. 350‑351), é que, a partir da idade Média, quando a função das cidades
tornava‑as mais povoadas que as comunidades rurais, as atividades comerciais
de uma burguesia ascendente demandaram a atividade da polícia. Inicialmente
essas atividades quase sempre eram de acendedores de postes, guardas‑noturnos,
supervisores de mercados e abatedouros, companhias de guardas e carcereiros.
Eram funcionários dos governos municipais, contratados para as tarefas de níveis
mais baixos. Conhecidos como funcionários urbanos (na França, prévôt) (CREVELD,
2004, p. 235), no século XVIII os governadores de províncias empregam‑nos para
reprimir a desordem e preservar a segurança pública.

Na França e em outros países europeus, os governadores de Províncias adotaram


guardas em caráter misto público e privado. Mas suas funções já se identificavam
com a segurança pública. Tinham autoridade para reprimir a desordem, manter
a segurança pública, cuidar dos assuntos criminais entre outros. Foi somente

79
Capítulo 3

em 1760 que as primeira polícias nacionais, a maréchaussée, aparecem como


homens da segurança: eram patrulhas que tinham a missão de evitar assaltos e
cuidar da ordem pública. Acrescenta o autor que, se comparada às forças do rei
para combater seus inimigos externas, a polícia tinha um contingente bem menor.

Mais tarde, os chefes de polícia passaram a ser nomeados pelos prefeitos


municipais, que eram nomeados pelo rei. Observa Creveld (2004, p. 237) que,
na ausência de um aparato burocrático, a polícia desempenhava uma variedade
de obrigações, que iam do saneamento público até o controle da segurança
das cidades, passando pela supervisão dos mercados, além do trabalho policial
de impor penas. As mais frequentes eram as multas, confiscos de bens e
humilhações que obrigavam o culpado a tipos severos de constrangimentos
como uso de trajes que tinham a intenção de expor os culpados ao ridículo,
o exílio, surras, entre outros que eram execuções em praças públicas como
espetáculos edificantes.

Segundo Creveld, o maior mérito de ter criado a primeira força policial nacional
responsável por todas as formas de segurança interna foi atribuído a Napoleão

Logo após a criação da polícia, surgiu outro recurso característico do Estado moderno:
as prisões. Observa Creveld (2004, p. 238) que as polícias anteriores à criação do
Estado raramente foram empregadas como método de punição. Com o surgimento
dos Estados modernos, a polícia tornava‑se mais poderosa e mais “feroz”.

Na medida em que o Estado moderno se torna o monopólio da força e da lei,


a polícia tanto uniformizada quanto sem uniforme se integra à segurança pública.
Convergente com a concepção do racionalismo hobbesiano e a dominação
burocrática de Weber, Creveld mostra que a violência, agora autorizada pelo Estado,
passa a se constituir uma tarefa administrativa como expressão do poder político.

4.6 Polícia, ordem e Direito


Na interpretação de Sabadell (2002, p. 197), a polícia integra o sistema de justiça,
na aplicação do Direito. Para a autora, a polícia se configura neste sistema,
como agente do controle social nos seus aspectos mais repressivos. O papel
da polícia nesse contexto consiste, segundo a autora, em filtrar os casos que
potencialmente tornam‑se os “futuros cliente” do sistema judiciário.

A interpretação da autora sugere que a atuação da polícia varia de acordo com


políticas de atuação e, dependendo, dessa orientação, as incidências tornam‑se
expressivas, o que poderia implicar uma compreensão equivocada da ineficácia
do desempenho da polícia.

De certa forma, a análise da autora tem convergência com a análise de Giddens


(2005, p. 182‑183), no que tange à produção de índices estáticos sobre a

80
Sociologia Jurídica

criminalidade, em geral com base na intervenção da polícia. Segundo o autor,


não haveria segurança nas estatísticas, dado que muitos dos delitos não
aparecem nos censos oficias.

A análise sociológica das teorias de controle policial empregado pelos governos


americanos, o chamado policiamento de tolerância zero, teria tido receptividade
por seu êxito na restituição da ordem no metrô da cidade de Nova York, mas a
expansão desses tipos de programas, sem uma sistematização na identificação
estrutural da desordem, poderia levar a uma autonomia da autoridade da polícia
no combate aos mais diversos tipos de desordem.

O exemplo que ficou mais conhecido como A teoria das “janelas quebradas” de
Wilson e Kelling (apud GIDDENS, 2005), em 1982, consistiu numa representação
social de janelas quebradas
Figura 3.1 – Janelas quebradas
em bairros, sem um critério
mais rigoroso de diagnóstico
da desordem como força de
induzimento das pessoas a
tomarem este símbolo como
sinal de desordem pela
ausência da polícia.

Esse símbolo tornou‑se


um meio de resolução da
desordem, o que, neste
caso, serviu de base para o
Fonte: Cigale (2006). policiamento de tolerância
zero. Um critério que tornaria
permanente, segundo o autor, a atuação da polícia para a redução de crimes,
em detrimento do diagnóstico e da atuação sistemática dos governos.

A análise de Hobsbawm (2007, p. 138) se conduz pelos argumentos de Giddens


quanto ao diagnóstico da causa da desordem. Para Hobsbawm, o tamanho
das forças policiais na Grã‑Bretanha, em função do combate ao terrorismo,
teria aumentado numa proporção tão expressiva que o aparato oficial da
segurança – por não dar conta das demandas – acabou por promover uma
indústria privada de segurança altamente rentável. O autor chama a atenção para
a assimetria entre o ritmo da sofisticação das armas e da tecnologia do combate
à desordem urbana e a simplicidade das armas usadas pelos criminosos.
Em grande parte, observa o autor, os maiores crimes foram praticados por meio
de bombas caseiras e facas, desestabilizando as certezas e sofisticação da
segurança policial.

81
Capítulo 3

4.7 A segurança pública no Brasil


No Brasil, o sistema de Segurança Pública está definido na Constituição da
República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, que instituiu
a segurança pública como dever do Estado, Direito e responsabilidade de todos,
sendo sua função a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas
e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

•• Polícia federal
•• Polícia rodoviária federal
•• Polícia ferroviária federal
•• Polícias civis
•• Polícias militares e corpo de bombeiros militares

Nela, estão definidas as missões e os níveis de responsabilidades dos órgãos


que a integram. Compõe‑se dos subsistemas preventivo, investigativo, judiciário e
penitenciário, envolvendo a União, os Estados, os Municípios e a sociedade como
um todo.

A maioria dos estudos sobre a segurança pública considera os precedentes


históricos do poder político colonialista, uma forte influência na concepção da
Segurança Pública no Brasil.

Entre os fatores dessa influência está o regime de capitanias hereditárias. A lógica


deste regime teria determinado, segundo este raciocínio, pela maneira absolutista,
a ocupação do território brasileiro e a autoridade dos seus donatários para exercer
o poder político no Brasil. Este processo teria definido um modelo que integrava o
poder político à atividade policial.

Com a criação das capitanias hereditárias, os donatários ganharam poderes para


exercer o seu jugo, cível e criminal, em sua área de jurisdição. Assim, o poder
político e administrativo colonial, teria, segundo essa interpretação, influenciado o
modelo de atuação da Segurança Pública no Brasil.

Nos diversos estudos, o modo de atuação da polícia tem sido, não raro, conforme
mostra Caldeira (2000), associado ao racionalismo tardio da política brasileira.

Outra linha de raciocínio, como mostra a interpretação de Carnoy (1998, p. 219‑220),


refletiria a penetração do capitalismo de tendência globalista nas instituições políticas.
Segundo o autor, o modelo racionalista da política europeia, quando transportada
para os países da América Latina, sofreria as vicissitudes dos determinantes de uma
realidade bem distinta das condições históricas das revoluções inglesa e francesa.

82
Sociologia Jurídica

Esta análise encontra convergência com a História do Brasil onde o governo colonial,
preocupado com a ocupação e exploração, tornou o poder político uma autoridade
obrigatória sobre todos os atos.

83
Capítulo 4

Criminologia e antropologia

Habilidades Compreender como as sociedades humanas


tratam a desordem social e como reagem à
violação das normas. Compreender como as
sociedades humanas se organizam, como surgem
os conflitos e quais os modos de resolvê‑los.

Seções de estudo Seção 1:  O homem e a repressão

Seção 2:  O conceito de crime e desvio

Seção 3:  Crime, castigo e punição

Seção 4:  Teoria dos grupos sociais

Seção 5:  Teoria do conflito

Seção 6:  Os tipos de conflito e as motivações


clássicas

Seção 7:  Modos formais e informais de resolução


de conflitos

85
Capítulo 4

Seção 1
O homem e a repressão
Acerca da sua natureza, o homem tem‑se lançado ao desafio de compreender a
lógica dos valores humanos e, entre as questões, o significado social do crime.

A questão inicial com que se depararam os pioneiros da Antropologia levou‑os a


investigar as sociedades primitivas pelo enunciado difundido no século XVII – a doutrina
política de Thomas Hobbes rebaixava o homem à condição mais inferior das espécies
pela expressão: “O homem é o lobo do próprio homem”. Uma metáfora criada por
consideração, segundo Balandier (1978, p. 132‑133), ao tratamento cartesiano adotado
por Hobbes na solução dos problemas políticos da época. A ideia de corpo civil por
oposição à natureza humana, egoísta, colocava o Estado como a solução definitiva
para a saída da desordem: a “guerra de todos contra todos” do estado de natureza.
O Estado como fonte única da ordem, tomado por analogia do corpo orgânico do
homem, colocava a segurança pública como o estado em repressão permanente.

Na concepção de Pierre Clastres (1982, p. 52), o racionalismo do “homem civil”,


enquanto identidade definida pela artificialidade do corpo civil, teria colocado o
Estado contra a sociedade. Esta vertente, além de denunciar o etnocentrismo na
concepção política do Estado, proclamava a necessidade de resgatar o homem
em seu estado de natureza.

Em Weber, esta explicação vai receber maior atenção quando identifica na


transformação do corpo social em corpo civil, a necessidade da razão científica
se adequar a novas demandas da ordem social. A convergência das duas
vertentes estaria na cultura ocidental. A crítica, portanto, volta‑se para a razão
iluminista, que transforma a civilização ocidental no paradigma da ordem social.

1.1 A ordem e a desordem nas sociedades humanas


As investigações durante a expansão colonialista da Europa possibilitaram o
conhecimento do homem em sua essência. Os relatos de navegadores aos poucos
foram substituídos por estudos do homem efetuados com mais rigor científico.

De tais estudos, as Ciências Sociais extraíram importantes dados que culminaram


na conclusão de que a ordem não seria um traço essencial do comportamento
político ocidental, mas uma condição do comportamento social típica da
humanidade. (BALANDIER, 1997, p. 24‑25).

A guerra e a violência constituíram, em função da concepção do século XVII,


uma área de estudo, como afirma Leinhardt (1973, p. 42). Essa nova área enxerga
o homem como um ser integrado aos recursos naturais: a geografia, o ambiente e

86
Sociologia Jurídica

as diferenças étnicas passaram a ser estabelecidos como condições necessárias


à sua existência.

A partir do início do século XX, as Ciências Sociais promoveram uma consciência


do homem ecológico, ressaltando a dimensão ecológica do comportamento
humano. Diversos estudos sobre a violência, as guerras e os conflitos humanos
passaram a ser investigados e, com eles, as formas de controle social.

Seção 2
O conceito de crime e desvio
A definição de desvio, mais que o termo crime, tem sido efetuada pelas Ciências
Sociais como qualquer conduta que viola as normas.

Para Scott (2010, p. 65), o desvio é todo tipo de comportamento que envolve as
maneiras, as atitudes, as crenças e estilos que quebram as regras, as normas,
a ética e as expectativas de uma sociedade.

Contrariando as explicações biológicas e psicológicas – que veem o crime e os


desvios de comportamento como inerentes a certas condutas ou pessoas – o autor
afirma que, para a Sociologia, o desvio é um aspecto de situações e estruturas
sociais. Em face desse conceito, não há concordância sobre a essência do desvio.

Johnson (1997, p. 70), no Dicionário de Sociologia, destaca três perspectivas


de definição do desvio: a funcionalista, a perspectiva do conflito, a perspectiva
interacionista e a criminalista. Para efeito de elucidação dos múltiplos aspectos
que envolvem os conceitos de desvio em cada perspectiva, convém detalhar
cada escola:

2.1 Teoria funcionalista


Para a teoria funcionalista, o desvio é todo comportamento que viola uma norma.
O desvio, portanto, somente pode ser definido pela relação norma‑desvio.
Dessa perspectiva, o funcionalismo toma o desvio como não negativo. Segundo
seus postulados sociológicos – da centralidade normativa da ordem – o desvio
revelaria a lealdade dos indivíduos às suas normas, visto que, sem as normas,
seria impossível a existência da sociedade. Assim, a obediência, ou não, a uma
norma revelaria a divergência e o conflito com a lei ou norma.

Durkheim é reconhecidamente uma referência importante no estudo do desvio.


Definiu o crime e, por extensão, todo desvio da ordem social, como próprio dos

87
Capítulo 4

mecanismos de funcionamento da sociedade. Afirma ele que o vínculo social gera


o Direito repressivo: a pena.

É importante destacar neste aspecto que a pena, e não o crime ou desvio, é a


condição sociológica da ordem social. Se, para Durkheim, as regras individuais
têm por função fixar, na consciência, as bases fundamentais e gerais de toda
norma de convivência, os desvios desta consciência coletiva devem ser punidos.
Contudo Durkheim viu no desvio a razão funcional da ordem, na medida em que
a quebra da norma implicaria que a desordem se opõe à ordem. O sentimento
coletivo que provém deste fenômeno é o julgamento coletivo. Neste processo
a função da desordem seria a de evidenciar a força dos valores e das normas.
Não se deve esquecer que Durkheim concentrou muito dos seus esforços na
ênfase da socialização como o processo através do qual os indivíduos seriam
preparados para participar da sociedade. Aí residiria o perigo da anomia como
causa dos comportamentos desviantes.

Durkheim (1999, p. 40) chama atenção para a o sentimento que o crime causa nas
sociedades: “se quisermos saber em que consiste essencialmente o crime, será
necessário pôr em evidência as características que se revelam idênticas em todas
as variedades criminológicas dos diferentes tipos sociais. Não há uma que possa
ser desprezada.”

Entretanto Durkheim precisou explicar o elemento permanente e geral e a


variação temporal e espacial do crime. Por exemplo, no Direito Penal dos povos
civilizados, o homicídio é considerado o maior dos crimes. Entretanto observou
que, numa sociedade em que a atividade econômica é fundamental para a ordem
social, uma derrocada na bolsa de valores ou falência de uma grande empresa
pode ter um impacto social maior que um homicídio isolado.

Disso deduz que um ato criminoso é aquele cujo impacto produzido na


sociedade é maior do que as regras ou as leis penais. O potencial ofensivo,
portanto, dependeria não tanto do quanto as leis penais são violadas mas
o quanto o ato praticado viola em profundidade as condições essenciais da
vida social. Neste aspecto, é importante lembrar que Gurvitch reiterou essa
explicação na sua noção de realidade social total, quando abordou o grau do
Direito segundo a relacionalidade do ato individual com a estrutura social e a
profundidade do efeito do ato em termos do quanto ele afeta os valores no seu
esquema lógico, que classificou de Sociologia diferencial.

Nesse sentido, a abordagem de Durkheim é mais elucidativa quando tratou o


crime em seus múltiplos e profundos aspectos. Por exemplo, quando define o
crime como uma ofensa coletiva, ele trata as mudanças dos sentimentos coletivos
numa escala evolutiva, sendo que, na passagem da idade média para a sociedade
positiva, o tipo de solidariedade que predomina é o orgânico. Como já foi referido

88
Sociologia Jurídica

antes, na Grécia antiga, comenta (DURKHEIM, 2002, p. 154‑167), o homicídio


era punido mediante solicitação da família, e esta podia se contentar com uma
indenização pecuniária. Já em Roma o homicídio era considerado um crime
público. Os acordos somente eram permitidos nos casos em que a vítima era ferida
e nos roubos.

Disso concluiu que o maior ou menor potencial ofensivo dos crimes podiam
ser deduzidos do grau de domínio que eles exerciam sobre a consciência, pelo
respeito que lhes é conferido. Assim deduziu que os homicídios nas formas de
solidariedade orgânica – as sociedades civilizadas – seriam mais ofensivos pelo
valor da pessoa humana sobre todas as coisas. Por meio do método estatístico,
observou (DURKHEIM, 2002, p. 158) uma variação dos homicídios: na medida
em que o valor da pessoa humana aumentava no tempo e espaço, a redução dos
homicídios chegava a 62% em um período de 55 anos.

Mas também descobriu que outros crimes surgiam com a civilização: os roubos,
os atentados ao pudor contra as crianças e, também, os espancamentos. Sua
explicação está no centro da norma. Quando a sociedade é uma coisa sagrada e
constitui o centro e fonte das normas, tudo a ela se subordina. Então o valor do
homem não pode ser maior do que o de Deus. Quando este valor se desloca para
o Estado, a sua grandeza seria o bem maior por excelência. Assim conclui que
o homicídio diminui em presença do Estado, porque o culto místico do estado
torna‑se um valor menor que o respeito ao homem.

Robert Merton (apud SCOTT, 2010, p. 65) tratou as tensões sociais – a partir
da anomia de Durkheim – como a assimetria entre a cultura e a estrutura
social. Há dificuldades de adaptação, por isso muitos dos estudiosos da
Escola Sociológica de Chicago associaram o crime e a delinquência às zonas
desorganizadas dos centros urbanos. Outros seguidores dessa mesma escola
enfatizaram as subculturas desviantes como soluções aprendidas para problemas
e processos grupais de frustrações e desorientações no quadro do status social.
Este estudo aproxima‑se da pesquisa de Boaventura Santos nas favelas do Rio
de Janeiro e o diagnóstico do autor sobre a noção de “identidade marginal”.

Seção 3
Crime, castigo e punição
Pierre Clastres (1982, p. 52), a propósito da discussão sobre o desconhecimento
do termo etnocídio e a criação em 1949 – no processo de Nuremberg – do conceito
de genocídio, diz que o conceito jurídico de genocídio recuperaria a tomada de

89
Capítulo 4

consciência no plano legal, de um tipo de crime até então desconhecido, mas que,
desde o século XV, vinha sendo praticado pelos europeus.

O delito de genocídio que marcaria o conceito de crime pelo extermínio dos


judeus europeus pelos nazistas alemães tornava agora uma questão jurídica o
delito de genocídio juridicamente definido contra atos de racismo.

Lembra o autor que, embora o genocídio antissemita dos nazistas tivesse sido o
primeiro a ser julgado em nome da lei, a expansão colonial europeia do século XIX
esteve a serviço do extermínio de povos nativos, e ressalta que os povos
pré‑hispânicos, a partir da descoberta doa América em 1492, foram subjugados
ao domínio dos europeus, tendo a colonização funcionado como uma máquina de
destruição de contínuos massacres de índios do Brasil, Colômbia e Paraguai.

A questão embora não recente remete à formulação inicial do crime, castigo


e punição, uma questão do Direito como cultura e a relação de subordinação
da cultura minoritária pelas culturas majoritárias. A respeito da impressão dos
exploradores sobre os nativos do Brasil, a carta ao rei de Portugal referia‑se aos
indivíduos como um povo sem rei e sem lei.

A conclusão mais abrangente a que os diversos estudos, independente das


correntes, chegaram, pode ser resumida com Malinowski (2003, p, 15): “a hipertrofia
de regras, e não a falta de leis, era a características da vida primitiva.”

A partir da publicação dos trabalhos do antropólogo polonês Bronislaw


Malinowski, e, mais especificamente, Crime e Costume na Sociedade Selvagem,
o autor responde com os povos nativos de Trobriand, os quais, não sendo uma
comunidade ou um corpo civil fruto de um ordenamento jurídico, suas regras e
as leis de convivência constituem a essência da vida tribal e do Direito primitivo.
Este Direito é a garantia de que nenhum membro da comunidade irá descumprir
suas responsabilidades perante o seu povo, a sua família, as divindades, os seus
parentes, os chefes, entre outros.

A ameaça de coerção e o medo da punição não dominam a consciência nas


ilhas Trobriand. Longe de serem rígidas, afirma Malinowski, absolutas ou emitidas
em nome divino, são mantidas pelas forças sociais compreendidas por todos
como racionais e necessárias. A infringência existe, mas o drama vivido pela
comunidade é tão grande que a transgressão encontra na força do grupo o maior
óbice para a prática do crime.

A pena aplicada pelos membros da comunidade é chamada a perda da paz.


Aquele que infringe uma regra compartilhada pela comunidade é condenado
à expulsão do clã, e como o isolamento é a maior barreira da sobrevivência
do homem, o infrator é condenado a viver isolado fora do seu meio ambiente,
entregue a sua própria sorte e às adversidades das forças da natureza.

90
Sociologia Jurídica

Seção 4
Teoria dos grupos sociais
A concepção sociológica de grupos é bastante ampla, compreendendo desde um
dado sistema social onde os membros interagem de maneira regular, até outras
composições mais abrangentes, variando as formas mais superficiais de interação,
como os grupos de interesse, até as mais profundas, como o grupo familiar.

Em The Humann Group, Homans (1950, p. 1‑3) desenvolveu um amplo estudo sobre
grupos e definiu o termo como um número de pessoas que se comunicam entre si
com regularidade entre seus membros e que interagem com grupos secundários por
intermédio de formas diferentes de identidade grupal. Segundo esta definição, o que
caracteriza um grupo é a identidade, ou seja, o sentimento de nós. Por sua natureza
os laços podem ser mais fortes, ou não. Por exemplo, a família é um grupo cujos
membros são unidos por consanguinidade e parentesco; dentro deste grupo, os
membros desempenham papéis em função da reprodução das condições materiais
e morais, segundo regras sociais estabelecidas, constituindo assim os Direitos e
deveres de cada membro em relação à posição que cada membro ocupa no grupo.

Para Gurvitch, a sociabilidade designa o princípio das relações entre pessoas e a


capacidade de estabelecer laços sociais. A sociabilidade depende, portanto, das
regras que estabelecem os limites e as obrigações dentro dos grupos.

Na maior parte, as definições tomam o grupo pelo senso do “nós”, que é


desenvolvido pela socialização, e, quanto mais profundo o laço e o valor que
habilita determinados membros a certos e definidos papéis em relação aos
demais membros, mais as relações e os sentimentos de pertencimento do grupo.

Homans destaca as diferenciações dos grupos por certas características como


comunidades, cidades, regiões, grandes organizações empresariais e destaca o
grupo familiar como a característica mais antiga de grupo humano.

Baechler (1995, p. 65), fazendo um exame mais amplo das conceituações, conclui
que, em face da diversidade de conceitos, o “bom senso” seria definir grupo por
três características essenciais:

1. Sodalidade – A capacidade humana de construir grupos, definidos


como unidades de atividades: casais, famílias, empresas, equipes
esportivas, igrejas, exército, polícia, etc.
2. Sociabilidade – A capacidade humana de estabelecer redes, através
das quais as unidades de atividades, individuais ou coletivas, fazem
circular as informações seus interesses, gostos, paixões e opiniões.

91
Capítulo 4

3. Socialidade – A capacidade humana de manter coesos os grupos e as


redes, de lhes assegurar a coerência e a coesão que os constituem em
sociedade. As formais mais características deste tipo de solidariedades
e conhecidas por sua morfologia de solidariedade social são a tribo,
a cidade e a nação (as mais comuns).

Em cada uma, a constituição dos membros e efeito psicológico da identidade


na indução do indivíduo ao grupo é o que permite entender a lógica do conflito.
É importante sobre isto destacar que, enquanto a função do grupo é coletiva,
o conflito, dependendo das circunstâncias, é individual.

A partir dos elementos que definem as formações grupais, a teoria sociológica do


conflito chega de maneira geral a um domínio de análise sobre a importância da
relação consenso/conflito para definir o conflito como o contrário do consenso.

Entretanto o tema do consenso/conflito na abordagem sociológica assume uma


conotação muito mais ampla, na medida em que, na tradição anglo‑saxônica
(BOUDON, 1995, p. 65‑ 247), a dualidade consenso/conflito passou a ser tratada como
ponto de partida de grande parte da literatura que trata da
Entendem‑se
como evolução os
origem das sociedades ocidentais. Assim, o termo conflito
fundamentos da suscitaria, segundo o ponto de vista dos que compartilham
ordem social, pela do paradigma da ordem social na contemporaneidade, uma
racionalização do
discussão sob diversos ângulos em torno de que o termo
consenso segundo os
fundamentos jurídicos conflito em sua evolução teria reduzido a força das clivagens;
do Estado. e, ao mesmo tempo, reforçaria o valor do consenso.

Seção 5
Teoria do conflito
O antropólogo Ernest Gellner (1997, p. 38), ao estudar o conflito e a coerção nas
sociedades humanas, chega a três hipóteses causais, sugerindo que a guerra e a
coerção se apresentam como uma lei em três estágios de evolução:

1. No primeiro estágio, a violência seria contingente e opcional.


O homem coletava o alimento, mas, por ser ofertado pela natureza
em pouca quantidade, dificilmente haveria excedente para
armazenamento. Assim sendo, os conflitos em torno da disputa
ou defesa do suprimento alimentar não era relevante no primeiro
estágio da evolução humana.

92
Sociologia Jurídica

2. No segundo estágio, a hipótese da violência se tornaria obrigatória


e normativa. Isso porque, sendo pouco ou nenhum alimento
armazenado e não havendo razão para disputa ou defesa,
a violência e a coerção seriam aplicadas na defesa de outros bens
e coisas indispensáveis às necessidades humanas. Por exemplo,
o território de caça e coleta para garantir o suprimento alimentar,
o acesso às fêmeas e a posição na hierarquia interna do grupo
social. Porém sugere o autor que, devido ao pequeno tamanho dos
grupos, a disputa em torno desses bens não constituiria uma razão
maior para conflitos.
3. No terceiro estágio da evolução humana, a hipótese do autor se
baseia no paradigma do pacto social, o que implica a aceitação do
monopólio da coerção, que se torna um componente imperativo da
ordem social. Para o autor, esse processo levaria à eliminação de
rivais, o que predominaria sobre o aprimoramento da produção,
culminando com o poder político. Esta tese comporta a aceitação
do postulado do pacto social como um processo universal.
Entretanto este argumento esbarra em outras correntes que rejeitam
o caráter monopolista da cultura positivista ocidental conferido ao
paradigma do pacto social.

Devemos lembrar que Montesquieu, em Do Espírito das Leis, estabelece uma


relação direta entre regime político e morfologia social. Mas é o consenso
social, segundo interpreta Aron (1982, p. 34), a motivação principal que levaria
Montesquieu a buscar na tripartição dos poderes,
As leis, no seu a legitimidade do governo. Da teoria da separação dos
significado mais
poderes, conclui Aron que sua teoria dos regimes políticos
amplo, são as relações
necessárias que derivam é uma teoria da organização social na qual procurou
da natureza das coisas; explicar o despotismo como uma forma de impor o
e, nesse sentido, diz ele: consenso por meio do medo.
todos os seres têm
suas leis; a divindade Nesse caso, é a ausência de consenso que dá origem ao
tem suas leis, o mundo
conflito. O medo não significa, contudo, a condição para
material tem suas
leis, as inteligências a legitimidade. Assim, a teoria das formas de governo de
superiores ao homem Montesquieu, sobre um soberano absoluto, pela falta de
têm suas leis, o homem oposição, suscita uma reflexão, ao mesmo tempo em que
tem suas leis.
cria uma polêmica em torno da centralidade da coerção
nas mãos do Estado.

Se considerados válidos os dois elementos conflito/consenso como inerentes à


lógica social, teria que se buscar na razão humana, e não na institucionalidade da
coerção, a solução para os conflitos.

93
Capítulo 4

Por essa questão, as correntes pluralistas recusam as explicações deterministas


do comportamento social. Principalmente aquelas que recusam aceitar a ideia
de liberdade sem questionamento sobre as antinomias do Estado de Direito
contemporâneo. O que seriam estas antinomias? Alguns apontam o avanço da
ciência e da tecnologia, de um lado promovendo a prosperidade do primeiro
mundo, e a miséria, a violência e as reivindicações por justiça como a condição
das populações pobres do planeta.

Em todo o mundo, os conflitos políticos e interétnicos marcaram o século XX e


continuam configurando na agenda política do século XXI como os temas mais
urgentes do momento. As duas Grandes Guerras representaram os maiores
conflitos de âmbito mundial, porém sua proporção, para muitos historiadores
e cientistas políticos, não pode deixar de levar em conta outras causas não
essencialmente políticas: como o fator ideológico e o fator econômico, que
arrastaram também conflitos étnicos, por exemplo, o nazismo e outros de
diversas naturezas.

Diante da crescente importância do Estado na sociedade civil, as populações dos


países democráticos são tentadas a buscar soluções no legislativo e no judiciário.
Esse processo, contudo, não tem produzido um maior conhecimento sobre a
natureza dos conflitos e a motivação dos infratores. Lembra Durkheim que o conflito
e a ordem são dois aspectos intrínsecos à natureza do sistema social. Assim como
a ordem precisa da desordem para qualificar a consciência da desordem,
o conhecimento sobre os conflitos necessita das imagens para evocar as antinomias
entre o consenso e o dissenso; entre o que integra e o que desintegra.

Um dos pontos críticos dos conflitos sociais no Brasil tem sido em grande parte
discutido pelo tema da eficácia da lei. Cavalieri Filho (2010, p. 103), por exemplo,
define a eficácia pela “força do ato para produzir os seus efeitos” e conclui
que uma lei só tem força quando está adequada à realidade social, ajustada às
necessidades de grupos.

Segundo o entendimento do autor, a sociedade é anterior à iniciativa do


legislador. Neste caso, caberia ao legislador ajustar o Direito positivo às
demandas da sociedade.

Entretanto é consenso na teoria sociológica que o conflito somente pode ser


entendido na sua relação consenso/conflito ou norma/desvio. O pressuposto
dessa dualidade é que toda sociedade se define por um conjunto de normas,
o conflito, contudo não terminaria com a eficácia da lei, visto que outros conflitos
ressurgiriam pela necessidade de recriação e fortalecimento dos valores sociais.

Na interpretação de Durkheim (2008, p. 27), Platão teria sonhado com a eliminação


dos conflitos por meio da Constituição. O remédio constituiria, assim, em instaurar
a razão contra a opinião pessoal. Nessa interpretação, o consenso ocorreria por
meio da coerção.

94
Sociologia Jurídica

A concepção juspositivista da sociedade de Hobbes representa um dos mais


influentes paradigmas do Estado moderno, sobretudo, no pensamento jurídico
dos nossos tempos. Conforme discutido e justificado nos capítulos anteriores,
a questão, que não raro produz divergências entre as posições mais radicais de
resolver o conflito por leis mais severas, leva a outro argumento: o da ordem.
Por este argumento, o conflito, ao ser resolvido pelo poder soberano do Estado,
impediria o alcance das motivações do conflito. O paradoxo do conflito/consenso,
ao ser tratado por meio da superação da desordem, privilegiaria assim o combate
à desordem, mas não restauraria o consenso.

Norberto Bobbio (2003, p. 24), ao referir‑se aos fundamentos da norma jurídica,


conclui sobre a inexorabilidade das regras na história humana, “como uma
barragem que, através da religião, da moral, da justiça e dos valores sociais,
detém os impulsos: as paixões, os interesses, os instintos, dentro de certos
limites, para constituir assim, as sociedades com suas instituições e seus
sistemas de ordenamento.” Quando esses impulsos não são contidos, fatalmente
ocorre o conflito. O argumento do autor não conflita com a concepção sociológica
da essencialidade da norma. A questão é saber até onde os impulsos são
contidos por meio da vontade do legislador.

Por exemplo, os fundamentos do contrato social rousseauniano foram uma


reação ao pessimismo antropológico de Hobbes. Na concepção de Rousseau,
a natureza do homem é benévola, e o conflito, fruto do progresso social. Neste
progresso, acusou a desigualdade social, e não a falta de leis ou de ordem.
Ao contrário, teria sido o modelo ou valor estabelecido a causa da alienação do
homem da sua liberdade natural.

O paradigma marxista, com outros parâmetros, também interpreta as forças


econômicas como a causa do conflito de classes. Marx definiu o conflito pela
alienação, formulando a partir dela uma teoria dialética do desenvolvimento social.
Marx reconhecia nesse processo um estado de desequilíbrio permanente em razão
das contradições da sociedade moderna e do consequente conflito de classe.

Já o paradigma positivista ao qual se filiam Comte e Durkheim, interpreta a


sociedade como um processo em permanente movimento. Esse processo
instaura ordens e posições sociais diferentes e, até mesmo, cria posições
sociais que sequer existiram. Saint‑Simon, um dos precursores da Sociologia,
por exemplo, identificou na sociedade industrial do final do século XVIII, carreiras
profissionais que acompanhariam a expansão técnico‑científica do século XIX.
Estas profissões seriam uma resposta, por meio da ciência, à Revolução
Francesa. O estado transitório no entendimento do autor representaria uma crise
das instituições, derivada das mutações e rupturas, que levaria ao conflito quase
generalizado pela exigência de uma nova ordem social emergente.

95
Capítulo 4

Contudo, na perspectiva teórico‑metodológica de Saint‑Simon, os conflitos


se apresentariam como uma noção autocriadora da ordem. O que isso
significa? Em primeiro lugar, que o conflito seria a manifestação de uma crise:
social, política, jurídica, econômica, religiosa, etc. Um conhecimento novo,
uma demanda nova implicaria uma nova organização social. Nesse sentido,
o conflito em Saint‑Simon nada mais é do que a interação e oposição das forças
heterogêneas da sociedade. Esta oposição entre força, isto é, grupos ou atores
sociais, não implicaria um processo deletério da ordem, mas, ao contrário, a
criação constante da ordem social.

Augusto Comte leva adiante este paradigma, ao deslocar o enfoque dado por
Saint‑Simont às forças da sociedade, para um conceito evolucionista da razão
humana. Para Comte, a sociedade torna‑se caótica quando novas maneiras de
pensar entram em conflito com as existentes. Quanto mais coerentes forem os
valores sociais, maior seria, acreditava ele, a possibilidade de superação dos
conflitos próprios do processo transitório. A religião foi uma referência importante
da sociologia comteana. Os intérpretes de Comte consideram a unidade dos
homens, o foco da tese comteana, ao lembrar que a representação simbólica
era o seu requisito necessário à convicção, pela crença. O respeito à religião no
estágio teocrático e, da mesma forma, o respeito pelo Estado, no estágio positivo,
funcionariam como o culto da própria sociedade em razão de sua vontade e da
predisposição dos homens à unidade.

O tema da evolução social como ponto central do positivismo sociológico tem


continuidade na sociologia de Durkheim, ao agregar à concepção comteana
da unidade social outros elementos como, por exemplo, a consciência coletiva
e a existência de regras que garantem a regularidade das relações sociais.
É importante lembrar que, na referência à solidariedade mecânica e orgânica,
Durkheim tem em mente que a vigência do sistema de normas, – valores sociais,
maneira de pensar e agir, imagens, enfim – é autônoma e, portanto, quando a
sociedade sofre mudanças, é porque esse sistema sofre mutações. O conflito
é presumido desse processo de mudança, por ocorrer uma suspensão das
normas. O conflito neste sentido é justificado como consequência da crise.
Quando o indivíduo não pode servir‑se dessas normas para orientar a sua vida
em sociedade. A isso chamou de anomia. Para Durkheim a anomia é menos uma
violação das normas que um vácuo deixado pela suspensão dessas normas.

Outro paradigma sociológico importante provém do conceito de sociedade de


Max Weber. O autor introduziu o individualismo metodológico e, por meio deste
método, desenvolveu uma sociologia interpretativa das ações e interações
humanas. Para muitos dos intérpretes de Weber, a preocupação com o método
sociológico trouxe à luz um conceito de ação, ou seja, de escolha, que recoloca
em outros termos a motivação sociológica de Durkheim do agir em sociedade,
o que, para Weber, seria histórico‑social. Assim as diferenças culturais podem
interferir na comunicação e gerar conflito. Isso porque a organização social para

96
Sociologia Jurídica

o autor é ela própria constituída pelo ordenamento de regras, um complexo


normativo que orienta os indivíduos na sua interação diária com os membros
da sociedade. Esse complexo normativo seria constituído de normas materiais
(Direito natural) e formais ( Direito positivo). Isso significa que, para Weber,
não obstante a racionalidade ser o traço característico da sociedade moderna,
a norma material subsiste como poder de coação. Assim Weber refere‑se àquelas
ações motivadas racionalmente e às ações não racionais que seriam orientadas
pela razão legal, mas também pelas emoções. A ideia de uma sociedade
ordenada, contrariando o paradigma legalista kelseniano do ordenamento
jurídico, não teria assim surgido com o Estado moderno, a partir de normas
positivas. Para Weber, em cada sociedade os indivíduos fazem suas escolhas,
sempre orientados pelo duplo caráter das normas, sendo a racionalidade positiva
um traço contingencial da sociedade moderna, mas não excludente. O Direito
subjetivo dá possibilidade de escolha e, ao não proibir a liberdade de escolha,
outros tipos de motivação se tornaram possíveis. Isso justificaria o conflito por
motivações irracionais: paixão, afeto, raiva, etc.

A tese de Weber teve uma propulsão no estudo das normas com o sociólogo
americano Talcot Parsons. Este reúne a concepção weberiana às teses de
Durkheim sob outra perspectiva, a da sociedade como sistema e as normas
como estrutura desse sistema.

A cultura é então colocada no centro do estudo da ação onde estas ações são
tidas como sistemas simbólicos que veiculam significados autônomos. Assim,
a partir das premissas metodológicas da teoria do sistema social de Parsons,
o que ganha relevância não é o indivíduo, mas os papéis.. Desta perspectiva,
a lógica social é determinada pela interação dos papéis, que compreende grupos
diferenciados e complementares de expectativas.

Disso deduz‑se que a liberdade de agir não significa o livre arbítrio, uma vez
que a liberdade de opção é dada pelos limites dos papéis. Assim a teoria do
sistema social de Parsons fornece uma nova condição, em que a frustração do
papel pode ser a causa da desordem ou conflito. Bauman e May (2010) indicam
essa possibilidade quando observam que os critérios com que somos julgados
pelas instituições são partes compósitas de um critério de liberdade sob certas
condições em que podemos ser aceitos ou recusados por elas, dependendo
de atendermos, ou não, aos critérios por elas estabelecidos. Sejam critérios
mais amplos ou oficias no caso de uma escola ou universidades, ou mais
restritos como nos casos de clubes, confrarias e associações. Os exemplos
mais ilustrativos dos critérios informais descritos pelos autores são as posturas,
a linguagem, a conduta de certos profissionais, além de outras atitudes esperadas
dos pais em relação aos filhos, maridos em relação às esposas ou estas em
relação aos esposos, os pais em relação aos filhos ou vice‑versa, controladas por
fortes constrangimentos.

97
Capítulo 4

Para esses estudiosos, a informalidade desses constrangimentos não diminui o


efeito do estado psicológico das vítimas. O exemplo do bullying tem recebido
atenção dos meios midiáticos como um tipo comum de conflito entre estudantes
nas escolas, mas outros tipos de constrangimentos afetam igualmente o Direito
às diferenças e o respeito à dignidade humana.

Estudos mais recentes, como o do sociólogo americano Howard Becker, indicam


que a violação de regras é a causa mais comuns dos conflitos, mas conclui
que, apesar de as maiorias das regras terem a concordâncias dos grupos e da
sociedade, há variações. Em algumas facções, um indivíduo pode divergir dentro
de seus grupos ou facções, quando violam regras de conduta segundo sua
vontade, e isso comumente leva a conflitos.

Em Outsiders, Becker (2008, p. 27) estuda o comportamento desviante


buscando as variáveis das causas do conflito. Um dado curioso que o autor
levanta desse estudo é que o comportamento desviante tem explicações
diferentes por parte dos membros das sociedades. Assim os comportamentos
considerados desviantes incluem a doença entre a quebra de uma regra de
conduta, dependendo do significado dessa regra para esse grupo. O que define
o conflito, na interpretação sociológica de Becker, é o julgamento da sociedade
ou de grupos a partir de certos códigos de ética ou regras experienciadas por
este grupo. Neste caso, o desvio de comportamento pode ser interpretado
como oposição às regras e, dependendo das consequências do desvio para
a estabilidade deste grupo, a acusação pode ser mais ou menos rigorosa e o
conflito mais ou menos intenso.

A perspectiva de análise do conflito de Dahrendorf (1992) aponta as revoluções


como um processo sócio‑histórico onde o poder, os valores, os interesses
entram em confronto. As incertezas decorrentes das mudanças provocariam
a crise. (DAHRENDORF, 1992, p. 17). Deste ponto de vista, conclui que os
estados de emergência próprio dos conflitos representam a liquefação de uma
ordem social, e os sintomas da desordem são levados a cabo na esfera da
política. Nas sociedades ocidentais e nos regime democrático, os conflitos,
na interpretação do autor, transformam‑se em disputas partidárias, e as tensões
sociais passariam a ser domesticadas por critérios constitucionais e legais.
Entretanto essa domesticação das crises sociais não eliminaria, segundo esta
interpretação, as causas do conflito. Por exemplo, o desemprego, as tensões,
o capital e o trabalho, os conflitos étnicos, a criminalidade, a homofobia,
o racismo, as demandas por saúde, educação, as desigualdades sociais e entre
nações, enfim, seriam as causas latentes dos conflitos sociais modernos.

Nota‑se nesse quadro de referência teórico‑metodológico da análise do conflito,


pontos de convergência no que diz respeito à influência cultural e política na
dinâmica das causas e da interpretação dos conflitos.

98
Sociologia Jurídica

No paradigma político do conflito, a relação formal comando‑obediência‑culmina


com a visão contemporânea da construção jurídico‑política das relações humanas,
que levaria a uma domesticação do conflito, mas não o impediria, visto que as leis
não atingiriam a lógica profunda do conflito.

Segundo Giddens, a explicação dada pela teoria do conflito ao desvio é que


este resulta de uma escolha ativa dos indivíduos como reação às desigualdades
impostas pelo sistema capitalista. A explicação da teoria do conflito tem acolhido
diversos movimentos de contracultura na contemporaneidade: os movimentos
gays, os movimentos negros, os movimentos de operários, entre outros.

Seção 6
Os tipos de conflito e as motivações clássicas
Quando se examina, nas teorias sociais, a maneira como o conflito se manifesta na
construção social da desordem, a dimensão moral se revela não apenas no confronto
físico, nas formas de violência ou de tensões nas relações sociais. Outras formas
de tensão também se revelam, mas pelas crenças. Por exemplo, o nascimento
de gêmeos, e de crianças com anomalias, a doença e a morte, por exemplo, são
representadas, em muitas culturas, como castigo por transgressões das regras
sociais. Nesses casos, tocar objetos ou ingerir alimentos tabus para mulheres
grávidas ou doentes constitui causas potenciais de conflito.

Acerca dessa forma velada de conflito, como por exemplo, a AIDS é considerada
em muitas culturas fonte de maldição, Balandier (1997, p. 201), e um mal plural
que difunde o preconceito pelo medo da contaminação. A lógica do conflito
físico, neste caso, explica o autor, emerge da busca do culpado e de uma
vítima expiatória. No caso da AIDS, o preconceito atinge a vítima expiatória e se
expande para a sexualidade minoritária, para a homofobia, assim como o mesmo
preconceito contra os dependentes químicos. A doença nas suas proporções
epidêmicas acarreta reações extremas, levando às vitimas ao isolamento/exclusão.

A proibição do incesto em diversas culturas e a punição – quando a regra proibitiva


é transgredida – suscita a intervenção dos deuses e a punição ao transgressor
gerador do caos. A busca de solução culminando com a vingança e muitas vezes
a morte, resulta como vitória sobre a pulsão selvagem manifestada no incesto.

O princípio normativo da cooperação sociológica é compreendido em sua origem


como uma história natural em que a solidariedade entre os membros de um grupo
ou sociedade implica o acordo tácito dos membros, de abrir mão de interesses
individuais em favor de um grupo mais amplo ou norma superior, na expectativa

99
Capítulo 4

de que esta disposição seja imitada pelos demais membros do grupo. Mas, nos
diversos casos estudados, a luta pelo estabelecimento desse acordo convive com
as forças contrárias, ou seja, com a resistência.

A influência do ethos religioso tem sido apontada como a causa mais comum
dos tipos de resistência e conflitos interétnicos. Nesse jogo de forças, as tensões
manifestam‑se em atitudes e ações racistas que explodem na homofobia,
xenofobia e na oposição e ódio aos estrangeiros. Disso resulta o processo
de dominação/subordinação cooptado pelas forças políticas que marcou o
antissemitismo nazista da Europa do início do século XX e nos conflitos mais
recentes entre a cultura islâmica e a ocidental, culminando com o ataque de
11 de setembro de 2001 em Nova York.

Rousseau viu o conflito como consequência da individualidade humana, e assim


o filósofo Charles Taylor (1994, p. 45.), interpretando a origem dos conflitos
multiétnicos, identifica três elementos causais dos tipos de conflitos que
ocorrem no mundo contemporâneo. Os conflitos, neste caso, decorrem de uma
nova ordem social global que coloca frente a frente grupos, etnias, minorias
culturalmente minoritárias.

Olhando desse ângulo, Dahrendorf também viu os conflitos expressos nas


revoluções ou nas tensões entre grupos ou classes sociais, como afirmações
de novos critérios de organização social. Esta conclusão acaba remetendo à
concepção durkheimiana do conflito pela necessidade de reafirmação da ordem
social. Contudo, é importante considerar que, na análise de Taylor, os conflitos
não ocorrem numa ordem simbólica, mas real, como nos casos das lutas
interétnicas nas cidades dos países desenvolvidos.

Quando Dahrendorf (1992, p. 69) chama a atenção para a necessidade de


se tomar o papel da burocracia como processo de politização dos conflitos,
ele argumenta que a fé na democracia com a indispensabilidade da máquina
administrativa, a coerção da polícia como monopólio da força, também
representam um tipo de conflito que, em geral, é visto como meio de solução.

A partir daí, poder‑se‑ia dizer que o conflito não significa apenas um confronto
entre indivíduos, mas uma crise que se instalou no momento em que as escolhas
ou comportamento de uma pessoa ou instituição não encontram respaldo na
estrutura social.

100
Sociologia Jurídica

Seção 7
Modos formais e informais de resolução
de conflitos
As formas de resolução de conflitos clássica como o contrato social de Hobbes à
Rousseau, não são suficientes para resolução das múltiplas e complexas formas
de conflito social.

Esta conclusão tende a ocorrer, na avaliação de alguns analistas (CARNIO;


GONZAGA, 2011, p. 189), quando, da perspectiva da sociedade, o Estado
deixou de ter o monopólio da produção e distribuição do Direito. Concluem os
autores que o declínio relativo da litigiosidade civil, longe de reduzir e conter
a conflituosidade social, seria resultado do desvio dessa conflituosidade para
outros mecanismos de resolução.

Alguns pesquisadores como Rifiotis (2012, p. 300) e Wootmann (2012, p. 336),


entre outros, concluíram que o Direito positivo, via de regra, não tem sido
favorável à harmonia dos grupos sociais. Ao contrário, conflitos decorrentes
da anomia, como conflitos conjugais e conflitos entre proprietários de terra e
trabalhadores rurais, nem sempre chegam a uma solução. No caso dos conflitos
conjugais, Rifiotis verificou que a intervenção judicial é considerada pelos grupos
de conflitos uma medida extrema não desejável pelas famílias como solução
de conflitos. Da mesma forma, conclui o autor, situação semelhante ocorre no
Canadá. O tipo de mediação esperada não é a intervenção da polícia, mas a
mediação de outros tipos de profissionais que não atuam como repressores e
que tentam compreender o motivo e realizar a conciliação sem acarretar conflitos
ou quebra na harmonia ou convivência do grupo familiar.

Uma análise de Carnio e Gonzaga aponta a morosidade do judiciário como uma


entre as causa da recorrência a outros tipos de soluções alternativas.

7.1 Tipos de Resolução de Conflitos

7.1.1 Mediação
A mediação é uma forma de resolução de conflitos empregada por uma terceira
pessoa neutra, chamada de mediador, que auxilia os grupos ou pessoas
envolvidas a recuperarem a sua condição normal, buscando, através do diálogo,
o entendimento ou a reparação dos danos. É um processo voluntário, no qual
as decisões são restritas às partes, sendo o mediador apenas um facilitador.
A mediação pode ser utilizada na solução de diversos conflitos. A mediação visa
devolver às partes a responsabilidade pelos seus conflitos, e o mediador, ouvir as
partes, facilitando o acordo.

101
Capítulo 4

7.1.2 Arbitragem
De acordo com Carmona (apud CARNIO; GONZAGA, 2010. p. 191), a arbitragem
consiste numa técnica para alcançar a resolução de controvérsias mediante a
intervenção de uma ou mais pessoas que recebem poderes de uma convenção
privada, e, com base nesta convenção, sem a intervenção do estado, preparar a
decisão destinada à eficácia da sentença judicial.

A arbitragem está prevista na Lei 9037/96. Observa Carnio que esta técnica, pelo
desconhecimento dela pelos mais desfavorecidos socialmente, acaba sendo
pouco recorrente.

7.1.3 Conciliação
Esta é uma técnica que compreende a presença de uma terceira pessoa alheia à
causa do conflito em questão. Para os autores, trata‑se do meio mais conhecido
na resolução de conflitos, uma vez quem na lei dos juizados especiais, a figura do
conciliador é prevista.

Com o aumento das demandas, o Conselho Nacional de Justiça criou o


Movimento Nacional pela Conciliação; a partir daí, diversos Mutirões têm sido
realizados, e eventos como a Semana da Conciliação têm sido promovidos,
visando maior inclusão e uso de práticas para facilitar a solução de conflitos.

102
Considerações Finais

No conjunto dos temas abordados neste livro texto, o elemento constante é


a ordem. Ela conecta Sociedade e Direito em todos os tempos e espaços.
Podemos, entretanto, notar que os esforços para substituição de paradigmas no
Direito não constituem tarefa fácil. O paradigma racionalista continua pautando
suas posições no direito subjetivo e no formalismo técnico. Associadamente
aos ideais do liberalismo, tanto a desordem como os conflitos – vistos como
próprio da natureza humana – , na medida em que continuarem como argumentos
válidos, impedirão que a crise dos direitos tenha visibilidade. A aplicação desse
argumento teve inflexão importante na crítica de Marx e na análise de Weber
sobre o Estado como meio de dominação. A dúvida em face destes argumentos
é se o Estado pode ser considerado um órgão de reconciliação dos conflitos
sociais e de classes na medida em que a solução implicaria o reconhecimento
das antinomias do Estado de direito: as desigualdades sociais, as desigualdades
de acesso à justiça, a pobreza crônica, a exclusão das comunidades e a
marginalidade das favelas e grupos de minorias étnicas e de grupos especiais.

Os valores sociais assim como suas transformações não mais podem ser tidos
como mito. A evolução deste argumento teve uma influência considerável nas
escolas Histórica do Direito e no Movimento do Direito Livre no século XIX e início
do século XX, na Alemanha.

O surgimento da Sociologia como ciência da sociedade por seus próprios


fundamentos coloca em dúvida as certezas do positivismo de Kelsen.
Por exemplo, quando Durkheim faz sua analogia do Estado com o corpo,
ele adverte que o cérebro tem a função principal de fazer respeitar as crenças,
as tradições, as práticas coletivas de modo geral, no esforço permanente de
preservar a consciência comum (coletiva). Mas adverte: sua função para manter
o funcionamento do corpo e a vida é tão importante como a de outro órgão,
e cita o estômago ou o coração, como exemplo. A influência de Durkheim
na Sociologia Jurídica está em explicar a evolução da ordem social e dos
novos atratores da solidariedade. Com isso colocou em destaque a anomia e
reacendeu a discussão entre Sociologia Jurídica e dogmática jurídica. O que
se pode deduzir é que o mérito das escolas do Direito livre e as influentes
posições de François Géni, Herman Kantorowicz e Eugen Ehrlich foi tornar
o Direito um sistema aberto. Com isso condenou o positivismo jurídico pela
ausência da sociedade. É importante lembrar que as escolas sociológicas,
embora não negando a validade normativa do direito positivo, mostram que as

103
Universidade do Sul de Santa Catarina

regras sociais, por seu caráter de constrangimento e de coerção, têm eficácia


sobre a conduta dos indivíduos na vida social. Mesmo no individualismo
metodológico de Weber, as escolhas são motivadas por forças sociais.

O Estado, portanto, tem nesse contexto a função do estabelecimento da ordem


social moderna. Isso levou à discussão o controle social, inclusive a Segurança
Pública como processos interligados ao poder, o que não pode ser visto como
algo etéreo. O Estado, ao recriar uma nova ordem social moderna, substitui
as formas tradicionais de controle social pela violência física como um direito
amparado no controle formal da lei e da força, como explica Weber quando
chamou‑a de monopólio da violência legítima.

A teoria sociológica do conflito reabre na atualidade a discussão entre o uso


racional da força e os atos irracionais do crime. Ao mostrar que o crime somente
existe enquanto desvio da norma, as escolas sociológicas, em suas diversas
perspectivas, apontam para os aspectos plurais e para a intangibilidade do
conflito, o que acaba por ressaltar a explicação de Durkheim sobre o valor da
norma. Talvez aí esteja a questão de se aprofundar quais atos na atualidade
representam para a sociedade maior ou menor potencial ofensivo. Neste aspecto,
a corrente pluralista do Direito vem operando uma proposta contra‑hegemônica
na Teoria Crítica do Direito, que vislumbra um novo paradigma do Direito por sua
capacidade emancipatória de grupos oprimidos.

Esta questão busca nas formas originárias da ordem social, a capacidade


humana de auto‑organização social. As pesquisas de Malinowski nas Ilhas
Trobriand têm sido objeto de análise, não raro, entre os operadores do Direito,
para embasar proposições analíticas da criminologia, uma tendência que se torna
marcante no pluralismo jurídico, para ressaltar a necessidade de incluir, no debate
jurídico, a dimensão política da capacidade de resistência e de articulação da
sociedade civil. Essa proposição inclui, da mesma forma, uma nova perspectiva
da mediação na solução de conflitos, valorizando o grupo social na mediação e
resolução de conflitos.

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Sobre a Professora Conteudista

Maria Terezinha da Silva do Sacramento


Possui graduação em Ciências Sociais (1977), mestrado em Ciências
Sociais (1988) e doutorado em Engenharia de Produção (2000), todos os três
pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professora da
Universidade do Sul de Santa Catarina. Tem experiência na área de Sociologia
Geral, Sociologia do Direito e Antropologia, atuando principalmente nos
seguintes temas: estratégias organizacionais, direitos humanos, Direito da
Família, Criança e Adolescente, pluriculturalismo e identidade cultural.

111
Sociologia jurídica
Universidade do Sul de Santa Catarina
Este livro apresenta as relações existentes entre
sociedade e Direito, tendo como pressuposto o fato
de que o Direito situa-se dentro da sociedade, e não
acima dela. Nesta perspectiva, os temas tratados
em cada capítulo pretendem reconectar Direito e
sociedade, reproduzindo o percurso histórico da
construção epistemológica da Ciência Jurídica.

Sociologia

Sociologia jurídica
jurídica

w w w. u n i s u l . b r

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