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Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Uma
Fotogra
Fotografia
Desbota
Desbotada
Atitudes e rituais do luto e o objeto fotográfico

2ª Edição
E-Book
Coleção Cadernos do GREM

Edições do GREM
2017

1
N. 2
2
Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Uma
Fotografia
Desbotada
Atitudes e rituais do luto e o objeto fotográfico
2ª Edição
E-Book

Edições do GREM
2017

3
Copyright Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Coleção Cadernos do GREM N. 2 [2ª Edição]
E-Mail: grem@cchla.ufpb.br

PUBLICAÇÃO DO GREM
Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções

LINHA DE PESQUISA: Emoções e Sociabilidade Urbana

CONSELHO EDITORIAL
Editor: Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Assistente Editorial: Raoni Borges Barbosa
Membros: Adrián Scribano – UBA-Ar; Alexandre Werneck – UFRJ; Fábio Alves –
UNIOESTE; Marcela Zamboni – UFPB; Maria Claudia Coelho – UERJ; Maria
Cristina Rocha Barreto – UERN; Roberta Bivar Carneiro Campos – UFPE; Simone
Magalhães Brito – UFPB; Vera da Silva Telles - USP

Revisão: Do autor
Capa: GREM
Produção Eletrônica: GREM
_____________________________________________________________
K88u Uma Fotografia Desbotada. Atitudes e rituais do luto e o objeto fotográ-
fico / Mauro Guilherme Pinheiro Koury –2ª edição – E-Book – João
Pessoa: Edições do GREM, 2017.
1ª edição, 2002 [Editora Manufatura]
78 p.

Coleção Cadernos do GREM; v 2


Inclui Bibliografia
1. Antropologia 2. Antropologia das Emoções 3. Sociologia 4.
Sociologia das Emoções 5 Antropologia Visual 6. Antropologia da
Imagem 7 Fotografia 8 Emoções 9 Sentimento 10 Ritual do luto
I Título II Coleção Cadernos do GREM; v 2

_____________________________________________________________
UFPB/BC CDU: 316

ISBN: 85-87939-25-4
E-Book no Brasil – 2017

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Sumário

Prólogo................................................................................................7
Um Sonho Infantil.............................................................................9
O sonho como anúncio da morte......................................................15
O ritual da dor e a necessidade de realização do sonho da criança...27
A realização do sonho infantil como elaboração do luto e como
possibilidade do filho seguir em paz.................................................37
O velório, a solidariedade da vizinhança e o sepultamento..............41
A fotografia, o trabalho de luto e a ressignificação do sofrimento...45
Fotografia, trabalho de luto e sublimação........................................59
Considerações finais........................................................................67
Referências......................................................................................69

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6
Prólogo

Este livro busca compreender as atitudes e os ritu-


ais da dor do luto a partir de um depoimento colhido pelo autor
em uma de suas estadas a campo. Tem como limite de análise
este único caso escolhido por sua singularidade em relação aos
demais depoimentos sobre processos de perda e vivências de
luto recolhido pelo autor no ano de 1997. A singularidade que
motivou a escolha dessa entrevista prende-se ao fato de toda a
ritualização do processo de luto e compreensão e introjeção do
objeto perdido ter-se realizado em torno de um outro objeto:
uma fotografia.
É sobre o objeto fotografia que este livro também
se debruçará. Através de uma análise do processo fotográfico
tentará compreender os significados da dor privada de quem
viveu a perda e os sentidos que foram sendo apreendidos no
processo de luto para introjeção do ente querido morto e da
reiteração dos laços sociais e de um novo investimento na vida
cotidiana, tendo uma fotografia como elemento estruturador do
todo acontecido.

7
O objeto fotográfico em suas relações com a morte
e com os significados precisos do luto, que em alguns momen-
tos parece estabelecer uma espécie de nostalgia amorosa entre
o olhar dos que ficam e a presença eternizada do ser que partiu
já foi tema de vários trabalhos (KOURY, 1995; MOREIRA
LEITE, 1993; RUBY, 1995; MERCADO, 1997; BARTHES,
1980, entre tantos outros). O mesmo acontecendo com estudos
que tratam da relação da fixação da imagem e de seus usos na
sociedade como registro amplo de situações que reforçam pa-
péis e relações sociais, com a instituição da pessoa, grupos ou
objetos simbólicos nos códigos da família, status e prestígio
social (BOURDIEU, 1967; SONTAG, 1977, KOURY, 1997;
MARCONDES DE MOURA, 1993; LIRA, 1997, entre vários).
Este livro se junta com os demais esforços de compreensão da
relação do papel da fotografia na sociedade contemporânea, e
os sentidos que ela empresta aos significados e modos de vi-
vência do processo do luto e aos rituais da dor que vão ponti-
lhando a experiência individual de reintegração social, daquele
que sofre a perda.
Sua singularidade em relação aos demais trabalhos
arrolados se expressa no modo como foi construído o lento
processo do trabalho de luto na pessoa enlutada. Como ela
construiu o seu luto e a recuperação simbólica do seu ente que-
rido morto. O longo trabalho de memória nela elaborado pelos
mecanismos específicos do luto, - enquanto reconstrução social
em que diversos tempos se tensionam em emaranhados de
lembranças, - até o recompor de um tempo de apropriação do
ente desaparecido em si. Um tempo de recomposição e apro-
priação vistos aqui como um tempo recriado ou em permanente
recriação que elabora razões que alicerçam os diversos frag-
mentos da dor, dos por quês, e permitem a pessoa enlutada
entender, embora a palavra mais adequada seja aceitar. Como
uma simbólica justificação daquela morte que possibilita, o
desde então continuar a viver e a conviver com sua perda.
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Um Sonho Infantil

Uma fotografia desbotada de tanto ficar dias e dias


presa entre o seio e o sutiã de uma mulher, e antes que se apa-
gasse de todo, plastificada e com o plástico já gasto, é tudo que
restou de uma criança feliz que aos nove anos morreu afogada,
apesar "de nadar feito um peixinho, porque foi criado solto
desde pequeno entre os moleques da vizinhança e entre os bar-
cos e jangadas de pesca". Fotografia que vive hoje, passados
quase três anos, numa gaveta de um pequeno criado mudo li-
gado à cama da mãe. Fotografia, enfim, que toda noite é retira-
da, admirada, sentida e presa ao corpo para mais uma noite ao
lado do filho. Ou do filho fixado no que resta de visibilidade na
foto, na eternidade da fotografia, passar mais uma noite ao lado
da mãe.
História banal que remete a velhas discussões sobre
a fotografia, e que a entendem tradicionalmente como expres-
são do real e com o sentido de produtora de memórias e do
significado de homem na sociedade atual, através da ilusão de
duplicidade entre o real e o real produzido como representação

9
(KOURY, 1997; MACHADO, 1984; BURGIN, 1982). A foto
servindo como consolo, como substituto simbólico do ente
querido em sua ausência definitiva e em sua presença eterniza-
da dos nove anos feitos quando fixado pelas lentes do fotógra-
fo.
A fotografia registrando a agora eterna criança fixa
em uma já desbotada, plastificada e confusa imagem aos olha-
res de um outro qualquer que a observe, mas que para a mãe
trás a nitidez da evocação. Sentimental sim, mas concreta de
um filho que possui, embora restrito aos contornos do retrato
acarinhado, guardado, cuidado, amado.
A história que se procura contar aqui é esta da rela-
ção entre o filho-fotografia e sua mãe, para procurar compre-
ender o trabalho de luto desta mulher-mãe que perdeu uma
criança "esperta e feliz" e que foi encontrada em uma tarde
jamais esquecida, após mais de cinco horas de busca, morto.
Preso às pedras dos arrecifes que margeiam a região praieira
em que habitava e brincava como conhecedor e conhecido que
era "daquelas bandas".
É a história de um luto, de uma dor individual, ba-
nal como são socialmente todas as dores pessoais, subjetivas. É
um depoimento comum. Comum aparente, porém. Igual a tan-
tos outros quando se referem ao sentimento da perda, ao inusi-
tado da morte a quem sobrevive com dor a ela, à luta ardorosa
para aceitar o singular da finalização de uma vida tão cara para
si, embora habitual em se tratando de um processo humano que
poderia acontecer a qualquer um.
Esta objetividade do poder acontecer a qualquer
um, se de um lado remete a vulgarização do acontecimento à
pessoa que sofre a perda e a necessidade social de que não se
perca nela, dando uma significação natural ou naturalizante
embora sempre incômoda a quem vivência, por outro lado, ao
objetivar o ato e a procurar responder a pergunta do "por que
comigo?", permite ao enlutado recompor trajetórias que, se
10
sociais no seu processo relacional entre a sociedade e as diver-
sas significações traçadas no desenvolvimento do processo
formativo da pessoa, são sempre singulares na forma em que
foram vividas, experienciadas. O singular para si, para a mãe
que sofreu a perda do seu filho, faz já os contornos que retira o
caráter de banalidade e de possível naturalidade, do ato da mor-
te e do sofrimento do luto. O torna pessoal ao conjunto do so-
cial.
Deleuze (1987, pp. 114 a 116) analisando Proust
remete ao leitor para uma estranha, mas profunda reflexão a
partir da comparação de dois momentos da narrativa proustiana
que ele denomina de as caixas e os vasos. As primeiras são
caixas entreabertas que projetam suas qualidades sobre o ser
que designam. São elementos de encaixe, de envolvimento, de
implicação. Os segundos são vasos fechados. Idéia dominada
pela imagem da coexistência de partes assimétricas e não co-
municantes. São figuras de complicação.
As caixas entreabertas são figuras de onde se extrai
o conteúdo nominativo próprio e social que, mesmo esvaziadas
pela decepção ou fatalidade na pessoa que busca compreender
o sentido do que está sendo buscado, o "por que comigo", or-
denam-se ainda umas em funções das outras, encerrando e en-
clausurando a história enquanto uma história social e universal.
Os vasos fechados por sua vez agem introduzindo no processo
de compreensão da perda, a elaboração de um discurso comum
e pessoal feito de pedaços não comunicantes de conteúdos ex-
perienciais no desenvolvimento formativo da uma pessoa. Mis-
to de engodos, de fantasias e de verdades, estes elementos
fragmentados adquirem o seu valor através da escolha pessoal
de quem se submeteu à busca do entendimento.
Os dois processos tencionam-se, ora um opondo-se
ao outro, ora se complementando numa complexidade de reta-
lhos costurados a cada objeto ou situação escolhida pelo sujeito
em luto. Nunca formando uma totalidade, porém, mas possibi-
11
litando as descobertas das partes elegidas e remontadas na ação
simbólica de reconstrução da pessoa amada em si. Deste modo
o trabalho de luto é um trabalho permanente de construção en-
tre os limites comunicantes das caixas entreabertas, sociais, e
os limites fechados da experiência pessoal do sujeito que inda-
ga sua perda. É uma oposição permanente entre toda uma sim-
bologia social que nomeia a perda e o seu significado no mun-
do objetivamente, e toda uma existência interiorizada. Experi-
ência subjetiva que busca reter, repor e relembrar substâncias,
ocasiões e sentidos nos diversos eus do objeto amado e perdido
em correlação aos diversos eus amorosos ou de engodos ou de
cristalizações da pessoa que busca entender.
"Eu perdi o meu filho a dois anos1. Ele tinha nove
aninhos. É até engraçado: na semana anterior ele tinha me pe-
dido para fazer uma roupa branca para ele. Toda todinha bran-
ca. Eu perguntei a ele porque e ele me disse que sonhou que
tinha uma roupa branca e que tinha bordado seu nome no bol-
so, e que eu o levava para tirar uma fotografia. Eu perguntei: de
primeira comunhão rapaz? Ele disse não. Era só o sonho que
ele sonhou e que ficava bonito todo de branco na foto". Este
sonho infantil inicia o depoimento da mãe e serve como costura
para todo o seu relato. Nele estão localizados pontos funda-
mentais para todo o desenlace da trama do trabalho de luto des-
ta mãe que aceitou o sonho de sua criança como merecedor de
tornar-se real, e que dedicou parte do seu tempo na realização
deste desejo infantil sonhado.
Ao reter esse sonho e apresentá-lo como significa-
tivo a si e ao outro2 como o elemento estruturador do seu dis-
curso e de retenção explicativa para todo o processo vivenciado
da perda, a pessoa enlutada parece romper com os diversos
enlaces associativos de composição social de sua vida enquanto

1
Em 1995.
2
O entrevistador, no caso aqui específico.
12
mãe e pessoa e enquanto filho e pessoa, aprofundando uma
operação de esvaziamento do ser amado e perdido enquanto
processos dissonantes, para um aspecto de uma especificidade
singular que procura restituir ao objeto narrado o seu próprio
eu. Como diria Deleuze (1987, p. 119), o narrador-interpréte
vai procurar "enclausurar o seu amado, encerrá-lo, seqüestrá-lo
para melhor explicá-lo, isto é, esvaziá-lo de todos os mundos
que contém".
Este exercício de retenção e apropriação permite a
pessoa enlutada fixar-se em um momento significativo onde
possa elaborar estratégias para a compreensão do fato da perda,
possibilita também um reencontro consigo mesma enquanto
intérprete do acontecimento doloroso do qual foi vítima, ao
mesmo tempo em que recupera o significado restrito da morte
ao re-significar o filho perdido através de uma solicitação satis-
feita. Cria assim uma temporalidade, no sentido dado por Mer-
leau-Ponty (1971, pp. 413 a 435), por decupagem onde o pro-
cesso de perda adquire coloridos específicos que norteiam o
processo doloroso do trabalho de luto, colocando como em um
quebra cabeça pedras sobre pedras nos lugares apropriados à
sua construção compreensiva dos mecanismos e sentidos da
morte do seu ente querido.
Essa temporalidade elaborada no processo doloroso
do luto retoma os diversos presentes vivenciados pela persona-
gem enlutada que configuram a totalidade do passado construí-
do desde a escolha de ficar com um filho, viver o processo de
gravidez até o por no mundo, criá-lo até o momento, para ela,
de sua incompreensível e estúpida morte. É um tempo revivido
e reposto no presente da morte enquanto busca de sentido para
a fatalidade, ao mesmo tempo em que uma estratégia no pre-
sente de re-significações dos presentes-passados, retomados e
repassados para a continuidade da vida, para ela, estupidamente
presa, obcecada ao momento da morte.

13
14
O sonho como anúncio da morte

A decupagem é um processo de retomada do pas-


sado no presente como forma de compreensão de um objeto
que se sobrepôs ao habitualmente referenciado caminhar de
uma existência. É uma forma de dar inteligibilidade a este so-
breposto, através de uma construção narrativa sobre um emara-
nhado de pequenos presentes fragmentados que enredaram até
aquele momento uma vida pessoal.
A noção de decupagem é produto de uma lingua-
gem usada em cinema. É uma espécie de síntese onde se toma
toda a imagem filmada durante o processo da montagem e se
opera “um modo de concentração de tempo” (OLIVEIRA,
1993, p. 82). O cineasta vai diretamente às imagens que ele
quer ver, deixando de lado as outras. Cria um tempo cinemato-
gráfico. Uma temporalidade construída que objetiva narrar uma
estória de acordo com um ponto de vista específico. Abre uma
janela para nela dar os sentidos desejados ao objeto fílmico
narrado, fundando assim um tempo e um espaço precisos, e
fecha ou ignora outras janelas, ou no dizer proustiano, esvazia

15
o conteúdo das demais janelas para que se possa contar a sua
estória, ter o objeto final fílmico sob seu controle e poder.
Essa apropriação de uma temporalidade, essa con-
junção de um tempo e um espaço próprio, opera um nível de
racionalidade que foge de um tempo meramente cronológico
ou biológico, para um tempo psicológico enquanto tempo de
descoberta que dará materialidade a narrativa proposta, - antes
das filmagens e redirecionadas ou não no processo da monta-
gem, - como essência da proposta originalmente formulada. A
decupagem assim permite ao cineasta revisitar o conjunto das
cenas ou tomadas durante todo o processo fílmico, escolher e
processar as imagens que comporão a sua narrativa, no conjun-
to fragmentado das imagens tomadas em sua totalidade. Opera
como uma construção objetiva que vai construir uma tempora-
lidade de uma outra maneira, dentro de um mundo possível
(ECO, 1986, pp. 103 a 150) proposto como uma das estórias
entre tantas outras que poderiam ser contadas pela totalidade
fragmentada das cenas rodadas que norteou as intencionalida-
des ou as hipóteses durante todo o período de filmagem e da
montagem do cineasta.
O conceito de mundo possível não parte do princí-
pio de um conjunto vazio e sim de um pleno conjunto de
“mundos ‘grávidos’ cujos indivíduos e propriedades” (ECO,
1986, p. 104) se deve conhecer. O mundo possível assim é um
construto cultural, dentro de um contexto narrativo próprio.
Nele é contada uma estória através dos elementos ou mobílias
(ECO, 1986, p. 104) dados a conhecer pela narrativa proposta.
Deste modo, segundo Eco (1986, p. 111), nenhum mundo nar-
rativo pode ser completamente autônomo do mundo real. "Não
é só impossível estabelecer um mundo alternativo completo,
mas também é impossível descrever como completo o mundo
real”. A leitura de uma narrativa assim penetra em um mundo
possível traçado e construído por um autor, gozar a leitura é
compreender as significações trazidas à tona nesse contexto
16
narrativo proposto enquanto produto. Daí, segundo Umberto
Eco (1986, p. 112) “a necessidade metodológica de tratar o
mundo ‘real’ como um construto; melhor, daí ser preciso mos-
trar que toda vez que comparamos um curso possível de even-
tos com as coisas da maneira como são, de fato estamos nos
representando as coisas como são sob a forma de construção
cultural limitada, provisória e ad hoc”.
Um mundo de referimento, ou ‘real’, assim, indica
qualquer mundo pelo qual um indivíduo julga e avalia os ou-
tros (alternativos e possíveis) (ECO, 1986, p. 115), são cons-
truções culturais que permitem o olhar e o sentir sob certos
ângulos o outro referenciado. O olhar está sempre referenciado
a um espaço cultural e histórico, e em cada busca surpreende
aquele que olha sempre com coisas que são imediatamente pre-
sentes e que, por isso mesmo, já são do passado. As leituras do
outro e de si são assim sempre dentro de ambivalências: o pos-
sível representando sempre uma tensão com o realmente acon-
tecido sob um ponto de vista, que também evoca passado a
cada momento presente que imediatamente passou.
O que permaneceu desaparece, ou só fica na recor-
dação. E essa recordação torna-se também possibilidade cons-
trutiva de experiências vividas. Mesmo se houver um distanci-
amento da narrativa como texto ficcional do qual falava Um-
berto Eco, e da narrativa fílmica de que falava Manoel de Oli-
veira, tomados aqui como processos metodológicos na busca
de entendimento de como se processa o trabalho do luto, o in-
tenso ritual da dor de quem perde um ente querido, as noções
de decupagem e mundos possíveis representam uma janela por
onde se pode enxergar melhor os campos da percepção (MER-
LEAU-PONTY, 1971, p. 47) do sujeito.
Para Merleau-Ponty (1971, p. 418), "é essencial ao
tempo formar-se e não existir, nunca estar completamente
constituído. O tempo constituído, a série de relações possíveis
segundo o anterior e o posterior, não é o tempo mesmo, é o seu
17
registro final, é o resultado de sua passagem que o pensamento
objetivo pressupõe sempre e não consegue apreender. É espa-
ço, pois seus momentos coexistem diante do pensamento, é
presente, pois a consciência é contemporânea de todos os tem-
pos. É um meio distinto de mim e imóvel, onde nada passa e
onde nada se passa”.
Deste modo, a existência “não pode ter atributo ex-
terior ou contingente. Ela não pode ser o que quer que seja -
espacial, sexual, temporal - sem sê-lo integralmente, sem reto-
mar e assumir seus atributos e fazer deles dimensões de seu
ser, de maneira que uma análise de cada um deles será concer-
nente, na realidade, à própria subjetividade" (MERLEAU-
PONTY, 1971, p. 113). Esta noção de subjetividade se indica,
de um lado, a intersecção do ser no processo criador do tempo
e do espaço próprio a cada sujeito individual, leva, por outro
lado, a percepção do eu-sujeito no mundo a partir da descober-
ta do outro-eu exterior, contemporâneo ou não a si. É através
do outro-eu que o eu-sujeito pode tomar consciência de sua
existência como indivíduo. Sua ação em relação ao outro é car-
regada assim de sentidos (WEBER, 1974) e de valores possí-
veis ou não de serem compartilhados em sua integralidade.
O entendimento do outro se cria a possibilidade no
eu de se ver e criar a si próprio, a partir dos referenciais rela-
cionados na ação social ordinária, cria também margens de
possibilidades de enfrentamento com esse outro, e nessa rela-
ção à criação possível de esferas de valores que passaram a
nortear as praticas possíveis das ações. O Um e o Outro se tor-
nam complementares enquanto regras e valores que norteiam
práticas e, ao mesmo tempo, autônomos na configuração do si
no outro e do outro em si. Os referenciais passam por uma fil-
tragem subjetiva que faz do olhar visões sempre parciais, vin-
culado que está a uma realidade que o contextualiza historica-
mente, e sempre única, enquanto leitura subjetiva desse mesmo
real vivido que ajudou a criar.
18
De novo o elemento proustiano de vasos e caixas
vem à tona enquanto elementos metodológicos de entendimen-
to dos intercursos comunicativo e não comunicante inerente a
um sujeito social qualquer. Se si ousar invadir sociologicamen-
te o campo da psicanálise, buscar-se-á nela um conceito que
poderá ser bastante útil ao processo que aqui se tenta compre-
ender das formas possíveis de realização de um trabalho de
luto, neste intercurso entre a dor pessoal e a construção social
da realidade da perda.
O conceito que aqui se refere é o de mundo interi-
or. Joan Riviere (1969, p. 56) define a noção de mundo interior
como sendo construído exclusivamente como “um mundo de
relações pessoais em que nada é exterior, no sentido de que
tudo quanto nele acontece refere-se ao eu, ao indivíduo em que
ele é uma parte. É unicamente formado na base dos próprios
impulsos e desejos do indivíduo em relação às outras pessoas,
assim como de suas reações a estas, como objetos de seus dese-
jos”. É, seguindo ainda a autora, o fundamento é o protótipo
do “processo-fantasia de internalização, que persiste ao longo
da vida em formas mais desenvolvidas, como característica
principal do funcionamento mental” (p. 56).
O que a autora busca afirmar com esse conceito é a
reação primordial das forças impulsionadoras do humano pre-
sentes em um processo de ambivalência, sempre tenso, entre o
“medo de perder e a ânsia de possuir algo fora de nós pró-
prios... da qual nossa vida parece depender” (p. 59). Fantasia
primordial que convive na tensão permanente do medo como
um elemento indissolúvel do desejo e o medo da frustração ou
total privação da satisfação do desejo: dois aspectos de uma
única e mesma emoção.
Embora como mundo interior, como mundo interno
de tensões individuais das pulsões que movimentam o sujeito
no seu processo formativo, durante toda a vida, enquanto pro-
cesso sempre tenso de emoções entre o medo de ter e o medo
19
de perder, não se pode considerar essa complexidade de ele-
mentos a partir de um indivíduo isolado. Pode-se mesmo para
fins analíticos isolá-lo como forma de compreensão do seu
mundo particular, que tem consigo já desenvolvido em elabo-
radas relações consigo próprio.
Essa complexidade de elementos que fundam em
um processo contínuo, tenso e sempre ambivalente esse mundo
interior de um indivíduo, porém, só pode ser considerada na e
através da mistura com outros seres humanos. Para Joan Rivie-
re (1969, p. 66), “cada personalidade é um mundo em si, uma
companhia de muitos”.
Essa vida própria de um, essas experiências emo-
cionais a qual está ligada e que forma um mundo interior, ou
uma subjetividade, “está ligada, pelo sentimento, a uma ou
mais pessoas em nossas vidas, aos objetos amados ou odiados”
(p. 66). Não a totalidade delas, mas às partes ou aspectos, ou
reações com as quais um indivíduo manteve relações emocio-
nais.
A existência de um mundo interior é a existência
das reações das diversas pessoas em um, e da existência desse
um no conjunto das pessoas ou objetos com os quais manteve
relações. Esse conjunto de indivíduos dentro de um indivíduo é
o processo próprio de criação social e individual que mescla as
apreensões de um ser humano como interioridade, como pro-
cesso de introjeção, tanto de estados de amor, quando o amor é
retribuído, quanto a situações de perda de alguém ou de algo
cujo valor era importante para quem vivenciou o processo.
Esse mundo interior é misto de perdas e ganho e-
mocionais. Nas sociedades ocidentais onde o individualismo
tem mais evidencia, parece tornar-se um elemento ou meca-
nismo escamoteado do processo social enquanto referenciais
subjetivos que só interessam a pessoa que os viveu, fora que
está dos padrões mercantilistas que movimentam o jogo con-
temporâneo das relações. O mundo interior torna-se assim pri-
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vado, no sentido de propriedade particular de quem o possui, e
privado no sentido oposto da negação social de sua importância
simbólica para o conjunto societário.
As recordações ou as percepções de um mundo in-
terior ficam submetidas aos processos de memória, cada vez
mais individual e impossível de nominação. Falar dos diversos
eus e dos diversos outros que compõem uma personalidade é
um exercício cada vez mais isolado nas trocas interpessoais.
Um exercício também profundamente doloroso de recordação
individual, que na avalanche de experiências de eus e outros
em si, se tornam como dissonantes acordes de um passado, que
parece que foi ontem, mas que não se retém enquanto organi-
zação e sistemática das recordações.
Como falar de sensações que nem a própria pessoa
compreende? Como falar de inomináveis? De emoções que
perfuram os espaços interiores em uma luta de amor e ódio na
dor impossível do exprimir de uma perda de um ente amado?
“Até hoje nunca falei com ninguém. Acho que nin-
guém tem a ver e que ninguém entenderia. Se já acham, pode-
riam pensar que eu fiquei louca de vez. Não sei nem mesmo se
você entende e nem quero saber. Só sei que o seu jeito de moço
bonito e atencioso, pouco falador, mas sabendo ouvir e conver-
sar sem se meter me tocou e eu falei... Basta! o que acontece é
que fui com a sua cara e que tô falando e meu peito tá mais
aliviado... Acho que estou bêbada... Não, ainda não, mas estou
ficando... olha, se você acordar amanhã na minha cama, saia
sem eu notar. Prefiro não saber que trepei com um cara que me
botou o coração pra fora”.
Com essas palavras terminou uma entrevista que
durou umas cinco ou mais horas, dentro de uma lanchonete
fechada, “para ninguém encher o saco”, uma garrafa de cana de
cabeça e inumeráveis caldinhos de peixe. O “cara” que botou o
coração desta mulher-mãe de posse de um filho-retrato, pra
fora, foi um profissional do ouvir em exercício de campo sobre
21
processos e vivências de luto. Alguém ausente das relações
interpessoais da pessoa enlutada, que estava interessado na
narrativa do seu processo de dor, dos rituais vividos pelo luto
do seu único filho. Um profissional que queria recolher uma
narrativa ou depoimento, sem nenhuma pretensão posterior de
encaminhamentos ou abertura de canais de intercâmbio que
minorassem ou possibilitassem trajetórias diferenciais para
aquele processo específico de luto narrado.
Talvez por isso houvesse uma abertura vencida
com lentidão da pessoa enlutada a narrar, a colocar o seu cora-
ção pra fora: um desconhecido com quem tinha feito um conta-
to telefônico anterior, que se mostrou gentil e profissional, ao
mesmo tempo distante, mas, com uma proximidade aconche-
gante de quem está disposto a ouvir sem interferir na narrativa,
a não ser para clarear pontos uns ou outros que ficaram por
acaso obscuros, no decorrer do depoimento.
O inominável, pela loucura aparente que parecia ser
para a própria pessoa enlutada, foi possível de ser narrado en-
quanto significações que vinham sendo costuradas no doloroso
e lento processo de compreender a perda de seu filho e do sig-
nificado preciso do abrupto corte proporcionado pela morte, e
sua relação com o fato do sonho que, “olhando de agora, pare-
cia predestinação, pela insistência do menino. Ele insistiu, in-
sistiu muito... mesmo”.
O isolamento da pessoa enlutada em seu mundo in-
terior, a desconfiança de relatar sua dor aos outros para não ser
má interpretada, como ser, possivelmente, chamada de louca,
inibe e torna ainda mais solitário o sofrimento e a elaboração
do luto. Ao mesmo tempo em que não compreende o processo
da qual foi vítima, o corte abrupto da morte do seu filho, inter-
põe-se um complicador que é a falta da eficácia dos rituais pes-
soalizados, mediadores sociais que retomam a dor pessoal co-
mo processos indicadores de caminhos para a introjeção do seu
morto e uma retomada à vida normal, integrativa à sociedade.
22
Mesmo vivendo em uma sociedade de patrões pro-
fundamente marcados por traços relacionais, uma comunidade
de pescadores, onde todos se conhecem a todos, e ainda existe
uma solidariedade quase mecânica nos padrões durkheimianos,
o ritual da dor parece passar por um processo de mudança sig-
nificativa caminhando para um padrão individualizante, onde o
trabalho de luto é um atributo interior da pessoa enlutada, sem
ou quase sem interferência da comunidade. Fechada em sua dor
a pessoa enlutada vive momentos de ambigüidade de aceitar a
ajuda dos de fora e ao mesmo tempo de sentir constrangimento
de sua própria dor continuada. Como se fosse doente, ou louca,
e nisso pudesse contaminar (ELIAS, 1989) os que dela se a-
proximassem pelo seu relato. A autocensura, mais do que uma
censura declarada parece se instalar entre os que sofrem a per-
da e os que convivem de modo mais próximo ou distante com
eles. Parece que um constrangimento toma conta das conversas
sobre a dor do luto que passa a ser mascarado, inominado.
A comunidade, ainda continua solidária nos mo-
mentos precisos da morte, e nos rituais de despacho do corpo:
velório, enterro, missas de sétimo, trigésimo dia e um ano, e
nas formas de ajuda econômica e pratica à pessoa enlutada.
Esse procedimento, porém, parece não exibir a mesma eficácia
simbólica de preparação da introjeção do morto na sociedade e
no interior da pessoa enlutada. São rituais cumpridos como
quase uma necessidade higiênica, social ou religiosa sem a fé
ou vontade, ou melhor, sem a verdade simbólica estarem pre-
sentes dando força a ação social em questão.
A permanência no luto é olhada com desconfiança
pêlos companheiros ou vizinhos da comunidade, e é tido como
coisa de nervos ou de loucura. É necessário sobreviver, voltar
ao tempo horizontal da sociedade, desligar-se de sua perda,
deixar de tratar dela como se fosse o elemento mais importante
(BACHELARD, 1985, pp. 181 a 189). E com isso o trabalho

23
de luto é reposto à subjetividade daquele que atravessa o pro-
cesso doloroso.
Daí a dificuldade de expressão da dor, ela torna-se
inominável porque cercada de atributos perniciosos que conta-
minam os laços comunitários e afasta os comunitários da pes-
soa, tratada ou vista, ou sentida pelo próprio enlutado, como
doente ou “doido”. Daí, também, os laços de nominação pare-
cerem só serem possíveis através de indiferentes – profissionais
dispostos, por motivos vários, a ouvir narrativas tais como elas
chegam ou são elaboradas. E a nominação passa a ser obra do
especialista, que ouve, busca dar sentido e tenta repassar a his-
tória narrada e compreender os significados e os laços estritos
do mundo possível criado no longo processo de descoberta em
que se passa o trabalho de luto.
O remontar a passagem do sonho da criança à mor-
te como uma explicação pessoal que indicasse formas possíveis
de apreensão do acontecido na sua vida, com a ruptura abrupta
da morte do seu filho, obrigou ou levou a personagem a burilar
os diversos instantes de sua vida com seu filho e se aproximar
de uma verdade que aliviava. Diminuía a tensão não só do seu
sentimento de culpa sobre o processo da morte do filho, mas
também encaminhava uma possibilidade, entre tantas outras
possíveis, de assegurar a permanência de sua criança em si, não
apenas como recordação, mas como presença fixa no tempo.
“Sabe, o dia em que ele vestiu a roupa branca com
o bordado do seu nome no bolso foi o dia do seu fim. Eu tinha
saído para trabalhar. Tinha arranjado alguém pra tomar conta
da lanchonete à tarde pra mim. Eu ia passar a tarde com ele e
ele ia vestir a roupa nova e tirar a fotografia num fotógrafo do
centro. Eu tava trabalhando quando de repente alguém vem
correndo e diz gritando pra mim que ele morreu. Eu caí no
chão. Dura. Não lembro de mais nada, lembro eu na praia atrás
do corpo. Morreu afogado, o pestinha que sabia nadar como

24
um peixe, criado na beira da praia junto com os meninos da
vizinhança”.
“Morreu sem vestir a roupa pronta. O corpo dele só
foi encontrado cinco horas depois e preso entre as pedras. Nin-
guém sabe explicar como. Mas tem explicação? O sonho não
era pra me dizer de sua ida? E eu não entendi”.

25
26
O ritual da dor e a necessidade de realização do sonho
da criança

Bachelard (1985, p. 187) falando dos diversos tem-


pos e instantes, detém-se em um tempo poético vertical: o ins-
tante do pesar sorridente. Instante que acontece “no momento
mesmo em que a noite adormece e estabiliza as trevas, quando
as horas mal respiram, quando somente a solidão é já um re-
morso!”. Neste momento que se pode chamar de mágico em
sua verticalidade, as ambivalências contidas no instante do
pesar sorridente se remetem um ao outro quase se tocando, e
podendo ser substituído um pelo outro em qualquer hesitação.
Para Bachelard (1985, p. 187), “o pesar sorridente
é, portanto, uma das mais sensíveis ambivalências do coração
sensível. Ora, com toda evidência, ele se desenvolve num tem-
po vertical, já que nenhum dos dois momentos – sorrir ou pesar
- é antecedente. O sentimento é aqui reversível ou, melhor di-
zendo, a reversibilidade do ser é aqui sentimentalizada: o sorrir
lastima e o pesar sorri, o pesar consola”.

27
Cria-se como que um instante estabilizado, onde o
tempo horizontal com sua sucessividade se confronta com o
tempo verticalizado, onde o instante imobilizado é revisto e
remoído, recoberto de perguntas de uma dor solitária que quer
explicação que quer reencontrar-se consigo e com o outro ago-
ra morto. “Peguei o corpinho das mãos dos pescadores que o
encontraram. Como era frágil o meu bebé. Estava roxo, meio
inchadinho, mas parecia olhar para mim e sorrir e dizer que
tudo bem, que ele estava bem. Estava apenas dormindo...”.
“Fui para casa. As vizinhas, os meninos, o pessoal
estava no maior alvoroço. Pedi pra ficar só. Não deixaram,
pensando lá o que. Que eu ia me matar? Coisa doida, mas eu
estava calma. Nunca estive tão calma. Não saia lágrimas, não
tremia, não movia um músculo. Meu filho, pequeno, cada vez
mais pequeno, nos braços. Nos meus braços. Disse, com voz
firme, que eu nunca tive: quero ficar só por um momento com
o meu filho. Posso? Dona M. entendeu, ou não, mas tomou a
iniciativa e pediu pra deixarem a casa, pra respeitarem o meu
pedido. Pra me deixarem sozinha”.
“Fechei as portas. Fechei a janela. Fiquei no escuro
de quase noite com ele nos meus braços. Tirei o peito e fiz... e
ofereci pra ele. Ele apenas parecia sorrir, mas não estava com
fome de peito. Imagine a minha loucura... com nove anos e eu
doida oferecendo o peito ao meu menino morto. Mas ele estava
tão frágil, tão pequenininho no meu colo que eu pensei nele
como o meu bebé que era e que sempre foi, mas que já foi...”.
O tempo imobilizado no instante da configuração
da morte, da evidência da morte com a criança sem vida nos
braços da mãe, que não podia admitir, sem deixar de sentir a
realidade obvia que continha em seu colo. A ambivalência de
ter o seu filho, “tão frágil, tão pequenino no meu colo” como o
seu bebê que um dia foi, e o outro pólo que configurava sua
“loucura... com nove anos e eu doida oferecendo o peito ao
meu menino morto”.
28
Essa ambivalência de um tempo verticalizado na
sua imobilidade de instante da presença e ausência do filho nos
seus braços permite a dor exercitar uma retomada do conjunto
da vida pessoal e a dois, com o filho, revendo as cenas enlou-
quecidas que repassavam pela sua cabeça e que configuravam
fragmentos intensos de sua vida e da vida da criança com ela.
Como um cineasta que rever de um só golpe o conjunto frag-
mentado de todas as cenas gravadas, num copião que ao mes-
mo tempo em que assusta porque se contrapõe aos fragmentos
dos quadros, em que aparecem não só o buscado como muitas
coisas mais que se intrometeram no percurso da gravação, buri-
la um percurso a ser percorrido na montagem. No processo de
decupagem.
“Não sei quantas horas se passaram. Ele nos meus
braços, próximo a mim como sempre esteve. Não, não, eu min-
to... próximo a mim como nunca esteve. Acho que até quando
estava na minha barriga ele não era tão meu. Eu não chorava.
Eu via. Eu revia cada cena como um relâmpago de luz que i-
luminava cada detalhe da vida pequena dele comigo...”. O re-
lampejar das cenas fragmentadas da vida do garoto com ela,
sua mãe, aproximavam mais e mais o corpo do filho a ela, ao
anseio de apropriação materno. As cenas relampejadas, ao des-
tacar e isolar cada detalhe da pequena vida dele, seu filho, a
fazia se sentir como proprietária simbólica daquele corpo em
seus braços como tão seu mais até do que quando ele estava na
sua barriga.
A força simbólica da apropriação do corpo morto
como meu, se de um lado encanta o processo da dor pela intro-
jeção de uma proximidade nunca sentida antes, do outro lado, o
desencanto aparece como um atordoamento que revive também
a cena da busca, da incerteza do encontrar o corpo, preso nos
arrecifes que cortavam o mar. O pesar sorridente que nos fala
Bachelard mostra aí toda a sua ambigüidade, de pólos que se
tocam a qualquer instabilidade do tempo fixado em instante,
29
que verticalmente corta o pensamento materno. O encanto de
possuir como nunca o teve e o desencanto, ou melhor, desespe-
ro, de um corpo morto. Seu, internalizado, apropriado como
nunca, mas rebelde à vida, morto que se encontrava.
O “relâmpago de luz que iluminava cada detalhe da
vida pequena dele comigo...”, riscava fundo às recordações até
o agora. Parecia querer, - ao repassar toda a trajetória dos dois
na memória ensandecida pelas recordações que flamejavam em
luzes iluminando detalhes esquecidos, adormecidos ou ainda
quentes de suas vidas, - apreender o absoluto do que foi, do que
está sendo naquele momento a vida dela à vida do seu filho.
A apropriação encantada do filho morto tão perto
dela como nunca esteve, necessita de um conhecimento preciso
da trajetória dos dois, da compreensão do processo de vida dele
na dela, da significação de sua existência, do esvaziamento
desse ser amoroso, no dizer proustiano, de todas as vidas outras
que ela não teve acesso, para concentrar-se apenas na vida dele
com ela, na apropriação do eu acessado pela memória de mãe,
e o afastamento dos demais eus não controlados. Daí o encan-
tamento da proximidade, do pesar sorridente, que parece con-
solar pela sentimentalidade que ele oferece a dor de quem bus-
ca explicar na pele, no sangue, na hora da morte, com seu filho
morto nos braços.
A criação de um mundo possível assim parece ir-se
processando. A fixação do instante parado verticalizado da
morte, o esvaziamento dos eus para um eu controlado e vivido
com a criança morta com a mãe, parece dar força a memória
para definir caminhos por onde devem ser percorridas as lem-
branças que iluminavam no relampejar o instante parado da
mãe com o filho nos braços. Com o filho morto nos braços.
Esse definir caminhos cria um campo perceptivo não muito
distante de um campo ficcional. A narrativa costurada pelas
lembranças e pelo burilar das recordações, pela tentativa de
esvaziamento do outro amado dos seus mundos para um mun-
30
do específico de apropriação pessoal do ser que ama e que o
retém em seus braços tão próximo como jamais esteve, parece
se dar em um processo de decupagem, onde a criação é dirigida
dentro dos padrões e da linguagem comum traçada pela mãe
em dor que retém junto a si tão perto como nunca o seu filho.
Morto.
A estrutura narrativa que envolve a dor do luto nes-
te instante parado, verticalizado, onde detém seu filho em seus
braços, tão pequeno, tão frágil, tão seu, é uma estrutura de cria-
ção de um mundo visível para ela, um mundo que não necessita
mais nada do que a experiência dela e dele, sob controle dela
que se apropria da do seu filho, morto. A idéia de um mundo
possível, discutido por Umberto Eco para a análise ficcional, é
uma noção possível de ser usada para entendimento do proces-
so de trabalho de luto, desse momento bachelardiano do pesar
sorridente, onde a ambivalência do perder, e do possuir como
nunca, se estabelecem em frágil equilíbrio sentimentalizado. O
mundo construído pela pessoa em luto, por esta mãe em dor, é
um mundo de acesso pessoal, que só diz respeito a ele, filho, e
ela, mãe. Todos os intervenientes são retirados, ou colocados
em planos secundários que apenas dêem o colorido necessário
à construção em processo. Ao mundo possível, dentre tantos
outros possíveis, mas não sob o seu domínio.
A noção de mundo possível, aqui trabalhada é a-
daptada do seu uso no campo ficcional para entendimento do
processo simbólico de apropriação de um objeto querido, em-
bora diferente da noção de mundo interior, trabalhada pelos
psicanalistas Kleinianos, aqui citada através do texto de Joan
Riviere, por dar mais liberdade ao narrador na construção da
elaboração do seu mundo. Porém, é possível estabelecer cone-
xões interessantes entre as duas noções: a noção de mundo in-
terior é repleta da configuração das figuras humanas ou obje-
tais que o povoam e o vão acrescentando a cada momento de
inter-relação de um indivíduo com o outro, ou com a socieda-
31
de, de um modo mais geral. Este mundo povoado no interior de
um sujeito possui uma realidade própria a ele, que permite uma
subjetividade e uma personalidade específica, e uma possível
troca com outros, que dão um caráter social a um percurso his-
tórico, ao mesmo tempo em que permitem uma autonomia cria-
tiva na visão e fundamentação do mundo interno e das dificul-
dades ou facilidades de se interrelacionar com o mundo exter-
no, social.
É essa autonomia da construção através das emo-
ções e das reações sensíveis aos fatos do mundo que pode in-
terconectar os dois conceitos de mundo interno e de mundo
possível, em um processo de elaboração de uma narrativa de
dor, de uma busca de elaboração de conteúdos simbólicos que
justifiquem, expliquem ou permitam continuar a sobrevivência
daquele que sofre com o fato abrupto que lhe aconteceu. Nesse
momento todas as reações interiores de um mundo não muito
visitado na cotidianidade de uma vida, repassam em flashes ou
“relâmpagos que iluminam” à vida daquele que sofre com o
objeto perdido e lamentado. Esse mundo interior devassado
pela rapidez com que vem à memória a recordação assusta e,
ao mesmo tempo, recompõe as unidades que permitem serem
revisitadas com mais vagar, pela decupagem, para um tempo
reconstruído ou em contínua redescoberta, em um segundo
momento da retomada das recordações. O que calar, o que e-
naltecer, o que ver, o que salvar para construção de uma vivên-
cia evocativa daquele que se foi. Vivência, se seguirmos o pen-
samento bachelardiano, sempre ambígua, sempre sentimentali-
zada, mas, sempre produto de uma construção pessoal. Arqui-
tetura baseada em um esvaziamento do outro para uma comple-
ta narrativa dele através de si. Nesse momento, a narrativa é
ficcional e ao mesmo tempo real, por se acreditar nela como
sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, de um temor de sua tro-
ca com outros, de sua publicização, por medo de ser considera-

32
do um outsider (BECKER, 1985) ou um estranho, ou mesmo
um louco na sua construção.
É aí que o conceito de mundo possível torna-se ve-
rossímil para compreensão das narrativas de dor, porque sem-
pre presa a códigos internos de construção, que para ser lida ou
se excursiona na elaboração do autor, ou se interpõe com códi-
gos também pessoais, de um vocabulário de um aparente “real”
social, e com isso compara e descrimina na limitação de um
outro código, o código criado pelo mundo interior do narrador
que sofreu a perda e a elaborou segundo cânones imaginários e
reais do seu próprio universo.
“O meu menino era uma luz. Veio de um namoro
maio amalucado e quando eu fiquei buchuda3, de barriga, o
cara nem mais existia. Era meu filho. Só meu. Sempre foi só
meu. Já era velha, tinha vinte e três anos. Já trabalhava. Aí jun-
tei dinheiro e comprei esta lanchonete e depois, aos poucos, fui
construindo a casinha que moro, ali perto da praia, junto de
outros barracos simples de pescadores, lugar onde sempre vivi.
O terreno tava ali, eu construí, e até hoje ninguém veio recla-
mar... como todos os outros de lá”.
“Meu filho cresceu por lá, feliz. Ele era um menino
feliz. Nasceu nadando junto com os outros moleques. Vivia da
escola pra praia, sempre alegre, carinhoso, responsável. Estu-
dava e queria aprender tudo. Com garra. Dizia que queria ser
rico e famoso. Dizia que não ia me largar nunca. Imagine só! A
gente sabe que um dia eles sempre vão embora. Eu fui. Todos
vão. É a lei da vida. Mas era bom ouvir que ele ia me deixar
nunca. Que ele me amava e que eu era dele. Importante pra ele.
Só dele”.
A elaboração sentimental de um discurso sobre o
ser amado evocado nas recordações costuradas durante a entre-
vista denota uma construção do sujeito que sofreu a perda so-

3
Grávida.
33
bre o objeto amado perdido, que o faz só seu, que preenche
todos os atributos de um filho amado e desejado pela mãe que
refaz o percurso dele a partir dos olhos ou do mundo interior,
ou do mundo possível que construiu. Na narrativa é enfatizado
o como “era bom ouvir que ele ia me deixar nunca”; “que não
ia me largar nunca”; “que ele me amava”, que eu era “só dele”.
O orgulho da mãe que retém em si o amor do filho,
embora na narrativa também deixe claro que “a gente sabe que
um dia todos eles vão embora. Eu fui”. Mas no roteiro senti-
mental traçado em decupagem nas evocações solitárias do ritu-
al da dor, do processo de luto que viveu e ainda de certa manei-
ra vive, a personagem-mãe retira qualquer mácula do relacio-
namento amoroso e inteiro do seu filho agora morto, com ela.
Mesmo quando afirma em tom de troça e em tom de confidên-
cia ao entrevistador que “sou namoradeira. Ele sempre soube.
Sempre levei os caras que quis lá pra casa. Era meu território.
Não sou mulher de ficar em qualquer canto. Ele nunca se in-
comodou. Até dizia brincando: ‘mamãe é fogo’”.
Nessa meia troça4 meia confidência se revela, de
um lado, o caráter de uma mulher de personalidade forte, como
ela mesma diz, “eu sou de ter o meu nariz no lugar”, o discurso
remete a quem ouve diretamente ao que ela quer explicar ou
afirmar, o caráter benevolente, o orgulho cuidadoso e amorifi-
cado do seu filho para com ela. O entendimento perfeito entre
os dois, que nenhum dos homens que por ali passavam amea-
çava o amor mãe-filho, pelo contrário, parecia até enfatizar o
lado fogoso de sua mãe como um elemento a mais no processo
de amorificação deste personagem-filho perfeito. Ele sabia que
o único homem verdadeiro que ficaria para sempre com ela,
nela, era ele, e sentia grato e orgulhoso por isso e até estimula-
va as aventuras da mãe que pareciam reforçar os laços de amor

4
Troça é uma expressão muito usada popularmente com o sentido de
brincadeira jocosa.
34
entre os dois personagens em relação, filho e mãe, ou mãe e
filho. Um só.
Um só, unido. Ao evocar essa união com um certo
sorriso, a personagem-mãe, como que nada, como por uma
ocasional oscilação no ato de recordar evoca também o tempo
imobilizado que parece viver desde então quando esteve com o
seu “filho, tão pequeno, morto em meus braços”. “Minha cabe-
ça relampejando os dias que se foram com ele. Os dias que não
mais virão”.
A união sentimental evoca também o pesar dolori-
do dos dias que não mais virão. O ritual da dor é retomado co-
mo uma chaga que não para de ser esfolada, machucada, e a
evocação caminha para a solidão de um filho morto nos braços.
“Eu e ele. Ele nos meus braços, no escuro, olhava para mim”.
O filho morto em seus braços olhava para ela, no
escuro da sala onde ela solitariamente o embalava. A dor era
tão grande que não saia uma lágrima, só relâmpagos da cabeça
iluminando os dias juntos até o momento do filho morto, frágil,
pequeno, cada vez menor, no seu colo. Mas eis, que numa nova
oscilação bachelardiana, o filho, no escuro, em seus braços,
olhava para ela. “Sorria. Dizia, ‘mãe, está tudo bem... ’”. De
novo o sentimento de acolhimento do personagem-filho parecia
querer acalmar a dor inominável da personagem-mãe com o
filho morto nos braços.
A narrativa nesse momento toma novo impulso, vi-
tal para compreensão do trabalho de luto desenvolvido por essa
mãe. No momento da evocação da lembrança do filho morto
em seu colo que dizia sorrindo, mãe, está tudo bem, vem à to-
na, mais uma vez, o sonho infantil de uma fotografia com uma
roupa toda branca, com o seu nome bordado pela mãe no bolso
da camisa, que ela ia realizar, quando houve o acidente que
levou o seu filho à morte.
“E a roupa? Foi aí que me lembrei da roupa. Do
sonho dele. Do trabalho que deu pra fazer aquela roupinha. De
35
aprender a bordar aquele nominho dele no bolso. Tal e qual o
sonho dele. Aí, quando lembrei, fiquei em pânico. E a roupa. A
roupa tava ainda na cama. Eu ia tirar a fotografia dele com ele
naquela tarde. Não tirei. Não deu tempo. O sonho dele não vai
ser completo, pensei. Eu tenho que completá-lo”.

36
A realização do sonho infantil como elaboração do
luto e como possibilidade do filho seguir em paz

A lembrança da roupinha que ainda estava estendi-


da na cama parece servir como uma espécie importante de pon-
te entre o instante verticalizado e paralisado pela dor, onde re-
lâmpagos de luz assombravam num repassar desconexo e con-
tínuo a vida desta mãe-personagem com o seu filho morto nos
braços, e o momento seguinte, ainda parado, é verdade, de rea-
lização do sonho infantil. Parece, através do seu relato, só ser
possível a realização do luto após a execução desse sonho de
criança. A mente, em acelerado processo de lembranças que se
acumulavam em explosões fragmentárias, nas buscas de um
roteiro onde pudesse seguir como encaminhamento para acei-
tação daquele fato de morte, daquela abrupta cena retida em
seus braços, em sua memória, agarrava-se a esse elemento no-
vo descoberto. A realização do sonho de uma criança parecia
se tornar o elemento central de um lado, como expiação de um
desejo não satisfeito, mesmo contra a sua vontade de mãe,
mesmo causado por uma fatalidade que arrancou o seu filho do
37
mundo dos vivos e, por outro lado, como elemento de passa-
gem do filho de uma forma de vida para outra. Esta transmuta-
ção parecia estar contida na realização mesmo que tardia da-
quele sonho pequenino da sua criança.
Na narrativa da personagem-mãe, durante o seu de-
poimento ao autor, a descoberta da roupa ainda na cama, o pâ-
nico do não ter dado tempo de torná-lo concreto, serve de me-
diação para uma nova retomada de reflexão sobre a sua vivên-
cia cotidiana com o seu filho, como uma forma a mais de apro-
priação desse corpo em seus braços que lhe sorria e dizia que
tudo estava bem, que não se preocupasse. De novo ela possui
um bebê em suas mãos, que retira sua roupa, dá banho, o per-
fuma: coisas que o filho-personagem aos nove anos já não
permitia. Essa apropriação nova se faz através da tomada de
posição abrupta de satisfação de reter, manipular, apropriar-se
com o olhar, com as mãos que o lava, o veste e, ao mesmo
tempo, na apropriação simbólica do filho através da realização
do sonho infantil. Movimento que parece facultar uma nova
mediação, como espécie de uma forma de sobrevivência desse
filho nela e fora dela.
“Aí, botei ele na mesa e dei um banho, como se dá
em um bebé. Fazia tempo que eu não via ele nu. Ele já não
deixava me mandava embora. Sabia fazer tudo sozinho. Mas
ele ali era de novo o meu bebé. Dei banho nele, o perfumei,
vesti a roupa branca nele. Coloquei-o sentadinho na melhor
cadeira da sala, aí eu saí quase a correr pra chamar Dona M.,
minha vizinha, e disse pra ela correr e achar um fotógrafo que
meu filho precisava tirar um retrato urgente. Ela não entendeu:
disse que precisava providenciar o velório. Eu gritei: Dona M.
arranje um fotógrafo! Não me mate mais do que eu já estou.
Ela saiu correndo. Pobre velha, boa pessoa, amigona. Saiu cor-
rendo e me trouxe um fotógrafo que andava pela vizinhança
fotografando e fazendo perguntas...”.

38
“Ele veio com Dona M., arfando, e deparou-se com
o meu filho sorrindo, vestindo a roupinha branca que eu fiz pra
ele como no sonho dele, impecável no seu olhar para o nada.
Ele (o fotógrafo) tomou um susto e perguntou enrolado o que
eu queria. Eu falei: só o retrato do meu filho pra ele ir em paz.
Para o sonho dele ficar completo... . Ele me olhou sem enten-
der, mas sem perguntar mais nada e tirou uma foto. Tirou o
retrato do meu filho vestidinho de branco. Perguntou se eu não
queria tirar uma foto junto com ele. Eu disse que não. Ele ficou
um pouco sem saber o que fazer, depois disse que ia embora e
foi”.
Uma espécie de rito de passagem (VAN GENNEP,
1978) parece se instaurar no momento da realização do desejo
sonhado por uma criança. Agora o filho morto poderia seguir o
seu caminho em paz. Poderia haver a ruptura entre o filho vivo
com um desejo à realizar e o filho morto satisfeito com a reali-
zação mesmo que tardia, do seu sonho.
O filho não mais vagaria como uma alma penada
(CASCUDO, 1954) por causa de uma não realização de um
sonho em vida, poderia seguir em paz em sua viagem ao des-
conhecido, ao mundo dos mortos. O que em certa medida, con-
cordando com Roberto DaMATTA (1987, p. 157), parece rea-
lizar uma aproximação entre os vivos e os mortos, onde “as
relações são mais importantes que os indivíduos nela implica-
dos”. O que parece compor entre o ente querido morto e o ente
que sofre a perda, uma espécie de “consumo moral” (DaMAT-
TA, 1987, p. 158), que teria como uma das funções a criação
de uma teia imperativa que negava a morte nas relações soci-
ais.
Através desse ato de mediação, se não é mais pos-
sível repor vida ao corpo do filho morto, a realização do seu
desejo não realizado, parece conduzir a um equilíbrio onde se
torna possível a sua vivência sofrida de uma forma menos lan-
cinante (RAMNOUX, 1977, p. 25). A realização do desejo
39
parece recolocar na narrativa da mãe-personagem, o retorno ao
cotidiano linear do tempo: “aí eu chorei, chorei, gritei, me ras-
guei por dentro e por fora, comecei a quebrar as coisas, mas
Dona M. não deixou e me fez parar e fiquei com ela agarrada,
aos prantos... só aí, eu acho que me certifiquei da morte do meu
bebé, depois de ter realizado o sonho dele”.

40
O velório, a solidariedade da vizinhança e o
sepultamento

“Os vizinhos se uniram e juntos providenciaram


um caixão azulzinho, as flores, as velas, tudo... Eles organiza-
ram e pagaram tudo, eu não tinha cabeça pra nada. Nunca vi
gente tão boa. Eu quis pagar depois, mas eles não deixaram...
Até o retratista estrangeiro não quis saber do pagamento do
retrato... aí começou o velório do meu filho. Os vizinhos esta-
vam todos e mais gente da redondeza. A molecadinha amiga
dele também chegou. Foi um chororô sem fim”.
“Dona M. sempre presente. Tomou conta da casa.
Minha cunhada e o meu irmão vieram. Eu estava descontrola-
da, desconsolada. Não tinha nada de preto... mas preto pra que,
pensei eu, se o meu filho queria branco? Tinha um vestido
branco decotado, de festa. Coloquei-o. Fiquei com ele. Minha
cunhada arranjou um pano e eu fiz uma espécie de manta co-
brindo o decote. E fiquei ao lado dele, do meu filho, até o fim”.
É interessante notar que após ter assumido para si o
cumprimento do desejo do filho, mesmo após a tragédia do
41
afogamento, a personagem-mãe consegue nominar a sua dor e
expressá-la de uma forma forte até agressiva para os outros.
Fica descontrolada, no que é acudida e amparada pela vizi-
nhança e familiares que começam a chegar ao velório.
Já no caixão, Dona M. notou que a criança morta
continuava ainda com os olhos entreabertos. Como uma pratica
popular antiga que percorre toda a região Nordeste do Brasil
(RODRIGUES & NUNES e SILVA, 1981; CASCUDO, 1954,
entre outros), alguém que permanece com os olhos abertos de-
pois de morto é que ainda quer ver pela última vez uma pessoa
determinada, assim que a vê permite ter os olhos fechados.
Dona M. chamou então a mãe para olhar bem de
frente para o filho, olhos nos olhos e então com a mão direita ir
fechando devagar os seus olhinhos. Na narrativa, a persona-
gem-mãe informa que ficou quase com os olhos colados nos
olhos do filho, e este refletiu uma pequena luz de contentamen-
to, ela ainda ficou fixada naqueles olhos que riam para ela e
aos poucos foi fechando. E eles permaneceram fechados. O que
para Dona M., segundo a narrativa da mãe enlutada, enfim a
criança pode seguir a viagem em paz, com a mãe amorosa nos
olhos a guiá-lo no seu caminho de luz.
A casa estava repleta de vizinhos, amigos, paren-
tes e curiosos. Todos a prestar a última homenagem àquele
pequeno ente morto. O corpo da criança vestido com a sua rou-
pa branca, coberto de flores, já no pequeno caixão rústico de
cor azul, tão comum nas casas funerárias do interior brasileiro,
reinava no centro da sala. Os moveis tinham sido afastados, o
pequeno caixão colocado entre duas cadeiras, velas acesas e
um pequeno altar improvisado com a imagem de Cristo Cruci-
ficado, e ao lado, numa pequena mesa coberta de branco, um
balde com água benta com galhos de arruda, que as pessoas
que chegavam molhavam a arruda na água benta e salpicava no
corpo da criança morta, como forma dela ter a sorte de seguir

42
em paz pelo caminho da luz, e desassombrar a casa de sua pre-
sença.
Durante toda a noite se ouvia ao longe as vozes em
versos fúnebres a cantar. Dona M. preparou café forte e passa-
va de tempos em tempos com o bule a distribuir entre os pre-
sentes, ajudada pela cunhada da mãe enlutada, além de bules de
chá de cidreira para as crianças e para os que ficavam mais
emocionados.
Pela manhã, por volta das nove horas, começou os
preparativos para a saída do enterro, emocionando mais as pes-
soas, na hora de fechar o pequeno caixão aos gritos da perso-
nagem-mãe que queria a presença do filho amado mais um
pouco. Nessa hora o fotógrafo aparece, vai até o lado da mãe
aos prantos e entrega a fotografia do filho morto com a roupa
branca sentado na melhor cadeira da sala.
"Ele disse que passou a noite revelando. Eu me a-
garrei a ele e chorei. Ele ficou meio assustado, mas deixou.
Depois me abraçou forte e me deixou ir fechar o caixão do meu
filho. Mas antes de ser fechado eu mostrei a ele a foto que ele
sonhou...
“Aí começou a saída do corpo do meu menino de
casa. Eu agarrada a fotografia dele fiquei mais forte. Eu o tinha
comigo, eu sabia. Vieram crianças vestidinhas de anjo que le-
varam a procissão com o corpinho do meu menino até o cemi-
tério. Outras crianças levavam o caixãozinho. Dona M. disse
para eu não ir, mas eu fiz questão de seguir o cortejo lá no fim.
“Eu ia atrás. O estrangeiro e mais minha cunhada
vinham junto de mim. O meu irmão ia logo depois da menina-
da, com a pá na mão para que a cova fosse aberta. Eu estava
mais calma, com a fotografia nas mãos, mas ainda choramin-
gava”.
Este modo de enterrar crianças até os 12 anos, antes
da puberdade, é comum em todo o país, sobretudo no interior e
periferias das grandes cidades do Nordeste. Fato citado por
43
muitos pesquisadores como Cascudo (1954), Koury (1993),
Rodrigues & Nunes e Silva (1981), Martins (1983) e tantos
outros.
Depois do enterro, as crianças com roupas de anjo
que iniciam o cortejo voltam para casa, tiram a roupa fora de
casa e põem estendida em um cabide estrategicamente coloca-
do na porta detrás de cada residência. Lavam os pés, tomam
banho e trocam de roupa, para só depois puderem circular por
todos os lados. Caso contrário podem trazer maus presságios
pela proximidade que tiveram com a morte. São elementos
fortes no imaginário popular esse se desfazer do contágio da
morte, após o sepultamento.
Do mesmo jeito, a roupa de anjo é lavada em água
separada e benta, e só assim pode ser guardada para um novo
enterro, quando este chegar.
A casa enlutada deve ficar pelo menos sete dias de
portas fechadas. Só as pessoas mais íntimas tinham acesso aos
enlutados. No caso a vizinha Dona M., “que se comprometeu
junto a minha cunhada que morava longe e tinha filhos peque-
nos, a me acompanhar”.
“Dona M. fazia o café pela manhã, um caldo forte
para o almoço e o jantar. Não me deixou nem pensar na lan-
chonete. Encarregou uma sobrinha dela que tomasse conta do
estabelecimento. Uma santa”.
“Eu me tranquei em casa. Não dormia, não ficava
acordada também. Às vezes sentada na cadeira que meu filho
sentou com a sua roupinha branca. E ficava a olhar o retratinho
dele”.

44
A fotografia, o trabalho de luto e a
ressignificação do sofrimento

“O retrato do meu filho vivia no meu


peito, agarrada. Na foto parece que meu menino
está rodeado de luz. Tudo ao redor escuro, só uma
rodela de luz e ele no meio, vestidinho com sua
roupinha do sonho, a sorrir”.
“Eu fiquei em casa por uma noite, por
outra noite, por outra noite... parecia que eu não ia
jamais sair dali, só eu com a foto do meu menino.
“E ficava a olhar o retratinho dele. A
foto não saia da minha mão, do meu olhar. Às ve-
zes eu a guardava no meu peito, como ele na foto
fosse de fato ele. Não sei dizer, nem o que você vai
achar, mas eu acho que a foto terminou pra mim
virando o meu filho”.
“Deixa-me explicar: ela era o desejo
dele revelado no sonho. Eu até hoje me pergunto e
45
tenho às vezes certeza, outras tantas vezes não: será
que era a mensagem do seu sonho? Deixar comigo,
em seu lugar, o retrato? Não sei... não sou muito de
pensar, embora só viva com isso na cabeça. E para
mim esse retrato é ele, o que o sonho dele quis di-
zer: eu tô bem, olhe eu nesse rastro de luz, feliz,
todo de branco. Não tem porque chorar, eu sou
agora o que a foto mostra. Estou com a senhora e
feliz aqui no reino da luz”.
O trabalho de luto desta personagem-
mãe está como que preso a um sonho e a uma reali-
zação desse sonho infantil: uma fotografia. Uma
realização efetivada a posteriori, após a tragédia
que se abateu entre ela e seu filho, com a morte por
afogamento deste último.
A solidão do sofrimento pela perda do
seu único filho coloca essa mãe numa posição de
exclusividade em relação à sua história com seu
filho, e em relação aos fatos recentes que antecede-
ram esta morte, como o sonho e o envolvimento
emocional e pratico dos dois em realizá-lo. A con-
fecção de uma roupa branca, com o nome da crian-
ça bordado no bolso da camisa, que serviria como
elemento de uma construção fotográfica pressenti-
da no sonho da criança.
O sonho indicava que se deveria foto-
grafar a criança vestida de branco, com o nome
bordado no bolso, e que toda a “feitura”, - da com-
pra do tecido, aos botões, até o bordado, - fosse
elaborada pela mãe. Com o filho morto nos braços,
trancada e sozinha na casa escura ela revive “em
relâmpagos de luz” toda a sua história até a gravi-

46
dez e depois até a morte do filho. Sua dor solitária
da exclusão havida com a abrupta morte do filho,
se a fazia única, enquanto perplexidade sobre o fato
a ela ocorrido, a especificava, ao mesmo tempo, no
absurdo da dor. Dor que a fazia retomar em flashes
acontecimentos só dela, com a sua significação
imprecisa e ao mesmo tempo imperiosa na "arma-
dilha que o destino tinha aprontado para mim".
Imperiosa porque prescindia de uma explicação, de
uma culpa que ela procurava para si e não parecia
encontrar, do por que ela. Do por que meu filho?
Para Ricoeur (1994, p. 60 e 61), o so-
frimento quando se abate sobre alguém é sempre
solitário e sempre inominável, porque incomunicá-
vel em sua perplexidade e extensão, o que faz de
cada sofredor um sofredor, específico na sua irreso-
lução e na sua incomunicabilidade. O ato do sofri-
mento reduz as esferas do outro que se apresenta
quase sempre como alguém ou algo que usurpa a
necessidade de silêncio e auto-referências com que
se reveste a tragédia causadora do seu sofrimento.
O outro é negado enquanto instância absoluta de
busca de compreensão do por que eu? Do por que
meu filho?
A necessidade de solidão parece ser
imposta pelo sofredor a si mesmo, numa sociedade
como a ocidental em que os pontos referenciais de
pessoalidade são ou estão se tornando frágeis no
apoio simbólico e ritualizado de sociabilidade ao
sofrimento, onde o sofredor se sente estigmatizado
e injustiçado na sua dor. Diferente de sociedades
onde o processo de individualização ainda não se

47
fez ou os hábitos são predominantemente comu-
nais. Nestas, o sofrimento de um torna-se parte
integrante e se refaz no interior da instância social
como um todo, ou de instituições específicas volta-
das para processos rituais que delimitam as frontei-
ras do social ao comportamento e à introjeção e
reintegração do sofredor ou daquele que sofre atra-
vés do que Durkheim chama de ritos piaculares.
Entendida as cerimônias piaculares co-
mo "ritos que se celebram na inquietude ou na tris-
teza" (Durkheim: 1996: 426), e cujo termo vindo
do latim piaculum, tem a vantagem de ser amplo e
sugerir além da idéia de expiação, a idéia de infeli-
cidade, de mau augúrio, dos sentimentos de angús-
tia ou temor, onde àqueles que estão em sofrimento
são ao mesmo tempo agentes e pacientes, sujeitos
não só a processos de interdição, mas, e principal-
mente, a processos integrativos positivos de restau-
ração da dor ao social em si, remetendo a dor indi-
vidual a uma dor social, e cuja cura individual é
fundamento para a sociedade também reintegrar-se
e manter-se coesa e una.
No caso em estudo, apesar de laços for-
tes de solidariedade ainda continuarem a existir na
comunidade de pescadores, onde vive a persona-
gem-mãe, a mecânica já não parece ser tão forte.
Presentes no processo de morte esses laços enfati-
zam mais os lados higiênico, econômico e senti-
mental, onde a religiosidade ainda que desempenhe
um papel importante na passagem do morto para o
outro mundo, não tem a importância simbólica es-
pecífica de acompanhamento do enlutado, a não ser

48
até o período do nojo - ou seja, período de recolhi-
mento que varia de três aos sete primeiros dias após
a morte de um ente querido (AZEVEDO, 1987, p.
63). Período considerado de descontaminação sim-
bólica do social e de compromissos morais dos
mais próximos com o enlutado.
A partir de então, o outro que sofreu a
perda deve evitar certas atitudes, de conteúdo mo-
ral, enquanto em luto estiver, e a sociedade volta ao
seu cotidiano. O outro também deve retomar uma
cotidianidade afastando-se do morto, e deixando
progressivamente de lembrar a sociedade de sua
dor. A dor torna-se individual e simbolicamente
podendo contaminar a sociedade na recordação
insistente. Instala-se uma espécie de autocensura,
onde a dor se torna privada e evitada socialmente
como uma vergonha.
O inominável da dor coloca àquele que
sofre uma perda, ou que vivência um sofrimento
abrupto e inesperado, em uma posição ambivalente
frente à sua própria dor. De um lado, nega ao outro
a possibilidade de invadir o seu espaço privado de
sofrimento e é acometido de um sentimento de in-
justiça ou culpabilidade frente ao universo da dor
que o permeia. Cria ao redor de si um isolamento
para a sua dor através de um movimento solitário e
nostálgico de individuação, onde se mesclam a per-
da de sentido do mundo, o sentimento de exclusão
social pelo refreamento das ações de partilha do
sofrimento e o mascaramento do morrer (KOURY,
1996, p. 30 e 31). De outro lado, essa negação da
morte acontecida que acomete a pessoa que perdeu

49
o ente querido, e que a remete a um mundo interior
cujos personagens são constantemente evocados
pela própria dor na sua angústia de significação, e
cujas características ainda não controladas apare-
cem em um turbilhão de sentimentos e ressenti-
mentos que são necessários burilar.
O trabalho do luto, o ritual da dor de
quem vivência uma perda, se constrói assim aos
poucos pelo esvaziamento dos personagens alheios
à vinculação pretendida de significação e vivência
de quem se foi. Ao mesmo tempo em que recons-
trói a relação do que se foi, também pelo esvaziar
progressivo das outras personagens ou vidas que
interferiam ou não eram de todo controladas pelo
enlutado.
Esse esvaziamento proustiano é uma
forma encontrada de purificação das relações do
enlutado com o ente que se foi. Purificação enten-
dida como um ato de apropriação do morto e suas
relações pelo enlutado, desfazendo todos os laços
outros, ou todos os outros eus possíveis do ente
querido não controlados, ou desagradáveis à sua
nova apropriação simbólica. Criando um universo
onde apenas o ente querido morto e o enlutado ha-
bitassem, como um segredo controlado apenas pe-
los dois, pelos dois compartilhados em um só que é
o que ficou, o que chora o luto.
Essa recriação simbólica remete a cons-
trução das novas relações entre o eu enlutado e o eu
perdido, como uma das muitas relações possíveis
que poderiam ser estabelecidas pelo enlutado. Essa
construção simbólica e sentimental por si, por só

50
resguardar ou dar ênfase aos elementos que interes-
sem lembrar ou serem evocados pela memória, é
uma forma de construção ficcional sobre o real
referenciado. Real onde se desenvolveram as rela-
ções da mãe com o filho e com o mundo, retomado
agora sob um ponto de vista sentimental de apro-
priação das lembranças que refiram essas relações à
construção simbólica que representa o esvaziamen-
to dos demais espaços possíveis do eu da criança
que se foi, para apropriação do espaço referencial
primordial de quem se sente guardião daquele ou
das lembranças daquele que não mais existe. Um
mundo possível interior é assim construído, e por
ele passará todas as lembranças filtradas no proces-
so de decupagem que possibilitaram o enredo desta
trama de relações vividas pelo personagem em luto
com o personagem que se foi, toda vez que evocada
como uma realidade acontecida.
Norberto Bobbio (1997, p. 121), nas
"Reflexões de um Octogenário" remete à responsa-
bilidade do ato de recordação de todos àqueles que
se foram e que de uma forma ou de outra passaram
por sua vida, e se pergunta: por que eles, por que
justamente eles? Trata-se de uma pergunta sem
resposta. E logo em seguida surge outra pergunta,
também esta sem resposta: - E se estivessem vi-
vos...? Mas ainda existe alguém que se recorde
deles? E se não houver mais ninguém para recordá-
los? E se restar apenas eu? Que tremenda responsa-
bilidade!”.
A nossa personagem-mãe, diferente de
Bobbio, não faz uma reflexão desse social mais

51
amplo que ficou na memória apenas dos sobrevi-
ventes, e que se vai, um dia, com a morte do últi-
mo. As memórias privadas das pessoas comuns, ou
dos mártires em batalha, ou, ou de tantas outras
possibilidades, se esgotam na memória pessoal de
quem sobreviveu, de quem em alguns momentos
retoma antigos momentos comuns e os vêem como
se fossem ou estivessem se passando no agora.
Momentos trágicos, momentos alegres, mas todos
sentimentais. Patrimônio de quem acompanhou e
vivenciou os processos passados, e também recons-
truiu enquanto mundos possíveis, ou enquanto o-
lhar daquele sobrevivente que recorda. Mas, seme-
lhante a Bobbio a mãe enlutada se sente guardiã, se
sente sobrevivente, se sente mais do que Bobbio
até, proprietária do seu ente querido que se foi.
Se em Bobbio a referência as lembran-
ças dos que se foram é remetida ao social, social
visto sob o olhar privado de quem sobreviveu aos
fatos, e que se vai também quando o sobrevivente
se for, para a mãe-personagem as lembranças são
de fato privadas, são retiradas do social ao máximo
possível para serem evocadas enquanto relação de
apropriação do filho em si. Ganham uma estrutura
narrativa de um mundo possível elaborado das re-
miniscências extraídas da vida dos dois, mãe e fi-
lho, filho e mãe, sob o olhar em dor e amorificado
da mãe em trabalho de luto.
Resgate que quebra o insólito do cotidi-
ano e prende-se aos elementos de uma rememora-
ção elaborada de um mundo possível, que satisfaz
ou pelo menos permite a ilusão de apropriação do

52
elemento amado no mundo interior de quem ama e
de quem se torna ou se toma como guardião da
presença dessa criança, seu filho, que se foi. Ou,
como conta Schulmann (1977, p. 173) "o tempo
morto, o devaneio, trajetos e transportes de um há-
bito a um outro que consumam ou consomem uma
parte notável de nossas existências, são abolidos".
A duração da narrativa no mundo possível elabora-
do pelo esvaziamento do outro amado para melhor
apreendê-lo, para melhor apropriá-lo, anda com
passo cadenciado. Há como "uma eliminação do
cotidiano por eliminação precisa do nada" (S-
CHULMANN, 1977, p. 173), o que permite como
que um ambiente favorável a elaboração mítica.
Onde quase não se dorme, a não ser um sono en-
cantado, onde a narrativa construída, onde o mundo
possível, elaborado e introjetado no mundo interior
do sujeito que sofre, ganha estatuto de realidade.
Onde sua história narrada encontra-se imbricada de
tantas escolhas sobre o real, que se confunde com
ele. Construção mítica, construção narrativa, cons-
trução de um mundo possível, reelaboração dos
processos do mundo interior, que possibilita uma
estruturação e ao mesmo tempo é estruturante de si
própria, no vivenciar da pessoa enlutada.
Uma mãe tomada pela dor embala o fi-
lho morto no escuro de uma casa fechada, ou que
se fecha ao mundo. Nesse ambiente mágico onde
só a dor entorna e preenche os espaços, "relâmpa-
gos de luz" vazam a escuridão com figuras do pas-
sado dos dois entes em estreita comunhão: o filho
morto e a mãe que o embala nos braços, que ofere-

53
ce o seio, que se surpreende com a fragilidade e de
como era pequeno o seu bebê. O tempo para, não
tem duração, não tem a chegada de futuro, o futuro
chega nos relâmpagos de luz do passado. A reme-
moração instigada pela dor, que rompe o cotidiano
com seu desencadear irresponsável de aconteci-
mentos que se vai agindo e formando novos presen-
tes (MERLEAU-PONTY, 1971), repassa os acon-
tecimentos em ritmos variados e em tempos desco-
nexos da vida do amado nos braços da mãe que o
embala e o busca reter preso a si. De uma mãe que
busca entender a insólita ruptura daquela morte,
que busca compreender por que ela, por que seu
filho; de uma mãe que não chora; que não sente
nada além do vazio que sua dor surda não para de
ampliar no seu peito, no seu corpo, na sua cabeça,
na sua sala, pela casa inteira.
Ensandecida pelas imagens que passam
como relâmpagos, vai aos poucos juntando elemen-
tos não necessariamente conscientes, mas que ras-
gam sua mente, seus olhos, seu corpo, e o corpo
frágil, cada vez mais frágil de seu filho. Nesse tem-
po vazio de futuro onde está concentrada uma mãe
em sua dor indignada, é retomado também de ima-
gens que vão e voltam dos últimos dias com o fi-
lho, do filho com ela. É revivido o sonho infantil. O
desejo não realizado do seu filho, e no qual ela tan-
to se empenhou.
Olha em sua volta e os olhos batem na
roupinha branca estendida na cama, ainda sem uso,
ou para sempre sem uso. Mas, jamais sem uso sig-
nifica que seu filho morreu com um desejo não

54
cumprido. Ela poderia permitir tal desatino? Ela,
que tanto quanto ele assumiu como importante o
fato do sonho realizado? Não. Isso ela não faria!
Como que de repente ela se toma pela
iminência da ação. Coloca seu filho em seus bra-
ços, o põe em cima da cama, prepara para ele um
banho, o banha, o perfuma, e se lembra que a muito
tempo não tinha tido acesso ao corpo nu do seu
filho, e se espanta e ao mesmo tempo se enternece
com essa imagem. O enxuga, veste peça por peça a
roupa branca por ela feita, com o nome da criança
bordado no bolso, como no sonho infantil, retoma a
criança nos braços e o põe sentado na melhor ca-
deira da sala. A criança parece sorrir feliz com essa
ação materna, como que aprovando a atitude da
mãe.
A criança vestida com a roupinha bran-
ca como no seu sonho, sentada na cadeira, parece
esperar pela continuidade da ação materna. O ato
fotográfico.
Afinal, o sonho da criança tinha como
desfecho a fotografia com ele todo de branco, com
uma roupa feita e bordada pela mãe. O que fazer?
A personagem-mãe relata que saiu co-
mo uma louca gritando pela vizinha, Dona M., "pra
ela correr e achar um fotógrafo que meu filho pre-
cisava tirar um retrato urgente". Dona M. alheia ao
sonho infantil e a premência de realização da mãe,
"não entendeu: disse que precisava providenciar o
velório e coisa e tal. Eu gritei: Dona M. arranje um
fotógrafo! Não me mate mais do que eu já es-
tou!...".

55
Ao nominar para si o desejo do filho
expresso em um sonho, que o filho insistia em rea-
lizar: "ele insistiu, insistiu muito. Parecia predesti-
nação". Um sonho que parecia uma predestinação,
que não tinha explicação para tanta obstinação na
realização desse desejo, que ela mesma acabou
cedendo e compartilhando o mesmo sonho do filho.
Um filho que morreu sem vestir a roupa pronta,
estendida na cama que se encontrava desde manhã,
para à tarde vesti-la e tirar a fotografia que era o
complemento final desse sonho infantil.
Ela se culpabiliza pela não realização
desse sonho. "Sabe, o dia em que ele vestiu a roupa
com o bordado do seu nome no bolso foi o dia do
seu fim". Essa culpa nominada precisava de uma
forma ou de outra ser "expiada". Ninguém encon-
trava explicação para um menino tão acostumado
naquele mar ter nele se afogado. "Ninguém sabe
explicar como. Mas tem explicação?", ao não ser
através do sonho. "O sonho não era pra me dizer de
sua ida? E eu não entendi".
Ao compreender, era urgente a expia-
ção antes que fosse tarde demais. Daí a saída de-
sesperada atrás de alguém, da vizinha, para procu-
rar um fotógrafo naquela hora, de todo jeito. O fi-
lho esperava, não haveria mais nada antes do dese-
jo do filho cumprido.
"Ela saiu correndo. Pobre velha, boa
pessoa, amigona. Saiu correndo e me trouxe um
fotógrafo que andava pela vizinhança fotografando
e fazendo perguntas. Acho até que tinha alugado
um lugar ali perto, porque só vivia ao redor já fazia

56
meses. Era um desses estrangeiros, ele morava ali
não sei direito por que...".
A mobilização da vizinha, a vinda do
fotógrafo que "deparou-se com meu filho sorrindo,
vestindo a roupinha branca que eu fiz pra ele como
no sonho dele, impecável no seu olhar para o na-
da", criara na mãe a ansiedade da realização do
desejo do seu filho, parecia tudo uma eternidade. O
fotógrafo olhando para o meu filho parecia que
"tomou um susto e perguntou enrolado o que eu
queria. Eu falei: só o retrato do meu filho pra ele ir
em paz. Para o sonho dele ficar completo...".
Sem parecer entender direito o que se
passava, "mas sem perguntar nada, tirou uma foto.
Tirou o retrato do meu filho vestidinho de branco".
O desejo parecia cumprir-se, a foto enfim foi bati-
da, o filho estaria nela com sua roupa do sonho.
O fotógrafo, após tirar a foto da crian-
ça, "perguntou se eu não queria tirar uma foto junto
com ele. Eu estremeci, quase branca fiquei de sus-
to, de ódio. Como ele se atreve... mas me contive e,
apenas, disse que não. Ele ficou um pouco sem
saber o que fazer, depois disse que ia embora e
foi".
Com o desejo do filho cumprido. Com
a compreensão da mensagem simbólica que estava
por trás do sonho de sua criança, que parecia pre-
destinação, "que queria dizer de sua ida, e da forma
de ficar que ele queria comigo, tal como no retrato
do sonho". Com o peito aliviado pela nominação da
culpa que a perseguia e do vazio que a imensa dor
do inusitado da morte tinha tomado sua mente e seu

57
corpo, a personagem-mãe pode enfim expressar
publicamente essa dor. Dar vazão a essa morte que
a marcaria para sempre: "aí eu chorei, chorei e gri-
tei, me rasguei por dentro e por fora... e só aí, acho,
me certifiquei da morte do meu bebé, depois de ter
realizado o sonho dele".
A morte do filho podia então ser pensa-
da, com dor imensa sim, mas possível de entender e
controlar, através do ato fotográfico que comple-
mentava o sonho infantil. O filho podia ir em paz.
O velório e o enterro podiam prosseguir. O seu
filho já estava eternizado na foto tirada pelo estran-
geiro que a vizinha encontrou naquela noite de sua
morte.
Os laços de solidariedade da vizinhança
e dos parentes tornavam-se bem-vindo e possível
no aconchegar-se em sua dor. Todos cuidaram da
compra do caixão, das flores, da vela, de armarem
o velório na sala, da saída do caixão, do cortejo dos
anjos até o cemitério, do cuidar dela no período do
nojo, quer nos cuidados da casa, quer nos cuidado
de sua lanchonete. Ela ocupou-se da fotografia.
"Eu estava mais calma, mas não parava
de choramingar. O retrato do meu menino no meu
peito, agarrada. Na foto parece que meu filho está
rodeado de luz. Tudo ao redor escuro só uma rodela
de luz e ele no meio, vestidinho com sua roupinha
do sonho, a sorrir".

58
Fotografia, trabalho de luto e sublimação

Sublimação pode ser designada como


uma tendência para uma reparação de um objeto
que se encontra despedaçado pelas pulsões de des-
truição, para Melaine Klein (1996, pp. 108 a 112),
este é um processo inconsciente e consiste no des-
vio da energia da libido para novos objetos, de ca-
ráter útil. Esta capacidade de trocar a meta originá-
ria por uma outra meta, que não a original mas que
se aparenta com ela, pode ser chamada de capaci-
dade de sublimação.
O objeto sublimado passa a ser avaliado
por um outro parâmetro que em certa medida per-
mite uma reorientação do sofrimento, que é transfe-
rido do objeto original perdido para uma possibili-
dade de um certo conforto ou atitude de aceitação
através da relação com o novo objeto, orientado ou
que ganhou espaço pela atitude de sublimar.

59
No caso analisado, tem-se, de um lado,
a impossibilidade de aceitação da morte do filho,
onde a personagem-mãe fecha-se em casa com o
filho nos braços, tendo sua vida com a do filho
sendo passada e repassada, sem controle, em "re-
lâmpagos de luz". Como flashes que estouram e
revelam cenas e situações desconexas que, se reme-
tem a situações da vida a dois, da sua importância
para a vida da mãe, a presença do filho remete
também a não significação do ato da morte que
ceifou a vida de sua única e amada criança. De ou-
tro lado, os "relâmpagos de luz" resplandecem
também sobre o sonho do filho. Sobre um sonho
trabalhado em solicitações e descrições pelo filho e
acalentado e confeccionado pela mãe.
Ilumina um sonho não realizado. Com a
morte do filho, na tarde em que se cumpriria a
promessa do sonho, com o filho todo de branco
indo a um fotógrafo para posar para a eternidade,
houve um abrupto e aparentemente irreparável fi-
nal. O sonho não se tornou realidade.
A roupinha toda engomada sobre a ca-
ma, do jeito que ela deixou ao sair para o trabalho
na sua lanchonete, ainda permanecia intacta. O
filho em seus braços, que parecia se fragilizar cada
vez mais, cada vez menor no seu colo, parecia sor-
rir com os seus olhos de morto, "com o seu olhar
para nada", e ao mesmo tempo parecia indicar, ou
cobrar um ato materno último, "para que ele pudes-
se ir em paz". Ato final que teria seu desfecho no
complemento do sonho infantil.

60
A fotografia. Esse era o legado do so-
nho infantil, a mensagem não entendida pela mãe,
até então. Era essa criança toda de branco com um
bordado do seu nome no bolso da camisa, numa
fotografia registrada, era esse "sonho que ele so-
nhou e que ficava bonito todo de branco na foto", a
recordação que ele queria deixar para ela.
O sonho infantil "não era pra me dizer
de sua ida? E eu não entendi". Só entendeu depois,
muito depois, com o filho morto em seus braços e a
roupa branca toda passada em cima da cama sem
uso.
Esse entendimento, como se viu acima,
transforma a inatividade que a dor, que o sofrimen-
to a prostrara, desde que recolheu em seus braços,
das mãos dos pescadores o corpo do seu filho sem
vida. A realização, o cumprimento final do sonho
infantil: a fotografia com o filho todo vestido com a
roupa branca que ela mesma confeccionara tal co-
mo no sonho descrito em minúcias por seu filho,
transformou-se em ação necessária, premente. O
filho não podia partir sem deixar o seu legado, a
fotografia, que mostraria como ele estava bem onde
estivesse. Era a lembrança dele na pós-morte, no
outro lado qualquer onde ela caminharia.
Essa compreensão transmuta a dor, o
sofrimento, do personagem-mãe. De um lado alivia
uma culpa que insistia em permanecer pela morte
do seu filho, e transforma essa culpa em um ato de
reparação. A realização do processo fotográfico
contido na narrativa do sonho infantil seria cumpri-
da. E não só. A presença do filho na foto seria de

61
fato a herança que o filho queria lhe ofertar quando
como "quase predestinação", a fez embarcar nesse
processo do sonhar, nesse devaneio infantil.
Esse outro lado transforma a fotografia
no próprio filho eternizado. O pensamento de Elia-
de (1989, pp. 175 e 176), nesse sentido, se for se-
guido em todas as suas conseqüências, levará ao
reconhecimento de que o sacrifício do filho não
terá sido em vão, como não terá sido em vão o so-
frimento da mãe. A fotografia apareceria como
uma espécie de ressurreição simbólica; uma espécie
de processo arquétipo do mistério da regeneração
espiritual, que "realiza-se todas as vezes que se
trata de por de parte um modo de ser para adotar
outro, superior" (ELIADE, 1989 p. 176).
Essa espécie de ressurreição simbólica
de um lado realiza o ato fotográfico em si quando o
transforma numa forma transmutada de vida. A
vida parece permanecer como situada em um outro
estágio, onde a possibilidade do eterno se evidenci-
a. A coroa de luz que o flash faz aparecer como
uma auréola em torno da criança toda de branco,
numa sala às escuras, destacando a criança ao
mesmo tempo em que a obnubilando pela intensi-
dade da luz refletida em um modelo de branco que
irradia ou parece irradiar ainda mais a atmosfera
fantásmica, ou dizendo melhor, do fantástico que a
fotografia transparece.
Para a mãe realidade e foto se confun-
dem na confirmação da realização do devaneio que
o sonho infantil parecia insistir em traduzir. A repa-
ração trouxe não só a possibilidade de uma diminu-

62
ição, de um abrandamento, do sentimento de culpa,
mas também e além, muito mais além, a transmuta-
ção do seu filho em uma espécie de ser de luz, real,
presente, no que a foto anuncia em sua realidade de
foto.
Não a ilusão costumeira que todos os
teóricos da fotografia costumam empregar buscan-
do configurar a ambivalência sentimental de repre-
sentação fotográfica e representação do real, para
os olhos que vêem amorosamente o retrato de al-
guém que nunca mais viu ou perdeu. Para a mãe-
personagem a representação fotográfica mais do
que a ilusão representada do real era verdadeira-
mente o real transmutado, revivido em outro plano,
renascido para a eternidade.
Este renascimento ultrapassa a simples
análise do real como ilusão e apresenta seqüências
novas e singulares sobre a presença e incorporação
do sagrado no ato fotográfico que eterniza o sonho
infantil. Para a mãe-personagem, no momento da
realização do sonho do filho, embora morto, houve,
como um que, como um acontecimento singular
que permitiu a passagem do elemento profano ao
sagrado. Esse ato de transmutação mítica, embora
pouco presente e evidente no período cristão atual,
é ainda reverenciado em várias atitudes de apari-
ções e visões na mística popular.
Não é objeto deste estudo a religiosida-
de popular e sua presença no cotidiano de um povo,
como o brasileiro, mas no caso estudado esse ele-
mento é o que menos interessa na composição da
mítica em torno do filho-personagem que ousou

63
sonhar com a representação não do seu fim, mas de
como estaria no pós-morte, ou na transfiguração
sagrada que daria passagem a uma ressurreição
simbólica pela mãe-personagem, em seu devaneio
de reparação e culpa.
O permitir repartir a sua dor em dois
momentos da sua narrativa, o momento da morte
antes da realização do desejo sonhado infantil, e o
momento da realização do sonho e a reparação de
sua culpa junto ao devaneio infantil, que não era
apenas dele, mas também dela, desde que o abraça-
ra a partir dos primeiros apelos da criança para que
ele se tornasse um fato, a personagem-mãe constrói
um enredo que revela a passagem de um corpo pro-
fano a um novo corpo sagrado eternizado na foto-
grafia.
Com essa construção ela recria toda a
história de sua dor, que não é outra que a história
da vida dela e do seu filho, que não é mais que uma
história de amor, cujo fim trágico, transmuta-se em
algo diferente, onde não houve punição nem da
criança, com sua morte, nem dela, por ter, mesmo
sem querer, permitido que ela morresse. O que
permite ousar aqui afirmar que a realização do de-
sejo costura uma narrativa de um luto não realiza-
do. De um luto impossível de ser realizado pela
transmigração da dor sobre um corpo morto para
um corpo renascido para a eternidade que a foto-
grafia revela.
Como Freud (1992) explica, a realiza-
ção do luto necessita de um distanciamento da pes-
soa que sofre uma perda através de um lento e

64
normal e doloroso processo de introjeção desta
perda em si. A necessidade de introjeção desse ob-
jeto perdido faz parte de uma economia moral da
dor que aos poucos vai refazendo sentimentalmente
o outro perdido naquele que sofre sua ausência, até
o ponto que essa ausência não passa de uma lem-
brança querida e ao mesmo tempo remota, no mun-
do interior do sujeito enlutado.
A impossibilidade do trabalho de luto
gera uma presença efetiva do ser que se foi na vida
do que permaneceu. A incapacidade de introjeção
leva a pessoa enlutada a reviver continuamente o
paradoxo da perda e da sua irreparabilidade. O sen-
timento de culpa presente não permite um abran-
damento e distanciamento do outro na memória. O
outro continua presente na sua ausência, como um
fantasma que não dá paz e de quem o enlutado não
consegue afastar-se.
Mas no caso da narrativa aqui analisada
essa impossibilidade do luto teve essas mesmas
características descritas acima, ou permite ao ob-
servador insinuar-se por caminhos diferentes do
acima anunciado? Pela narrativa construída pela
personagem-mãe, ao costurar dois momentos de
significação para sua história de amor e dor, para
sua história de luto, ela cria uma impossibilidade de
introjeção do corpo morto do seu filho, porque para
ela ele não existe, o que de fato ocorreu foi uma
transmutação de um nível inferior para um outro
superior, seu filho saiu de uma realidade profana
para uma realidade sagrada, onde renasceu simbo-
licamente pelo ato fotográfico. A imagem revelada

65
assim ganha ares de uma fantasia mítica incapaz de
ser revivida de outra forma na realidade criada pela
narrativa da mãe.
O mundo possível encontrado pelo per-
sonagem-mãe, embora encontre eco nos diversos
mundos de referencia que informam o real ao seu
redor (ECO, 1986, pp. 110 a 150), é um mundo
imaginado, e dentro dessa construção imaginária é
real, enquanto estrutura narrativa, ou mesmo, en-
quanto estrutura mítica (CALVINO, 1977, 75 a
80). Essa realidade mítica, de um lado impossibilita
o narrador que tece esta estrutura introjetar o corpo
morto do seu filho como um corpo que faleceu,
enterrado numa cova de terra em um cemitério de
pescadores. O leva, de outro lado, a não vivenciar a
morte do filho como uma dor de separação, mas
como, reparação pela realização do seu desejo, pre-
sentificado e eternizado no retrato. Retrato em vá-
rios anos vivendo entre os seus seios, e depois na
gaveta do criado mudo, toda noite retirado para
dormirem juntos a se ninarem e enternecerem-se na
sua união mãe-filho. Em sua união mãe-filho não
mais corpórea. Em sua união mãe-filho simbolica-
mente renascida para a eternidade. Em sua união
mãe-filho fotografia.

66
Considerações finais

Como toda estrutura narrativa, como


toda estrutura mítica que tem por trás de si uma
construção narrativa, possui um enredo frágil. Tra-
ma que faz dessa personagem que narra o seu luto
um ser em constante ambivalência com o seu pró-
prio discurso, quase fábula, para si, às vezes. Mas o
mito "age sobre a fábula como uma força repetiti-
va; ele a obriga a retornar sobre os seus passos
mesmo quando ela se perde em caminhos que pare-
cem conduzi-la para regiões inteiramente diferen-
tes", usando das belas palavras de Calvino (1977, p.
77).
O mundo possível elaborado pela mãe
em luto parece ser ameaçado pelos diversos mun-
dos possíveis que rondam seu mundo interior, em
seus vários eus inconscientes, ainda não dizíveis,
mas que investem nos lapsos, em sonhos, nas asso-

67
ciações espontâneas, criando às vezes enormes va-
zios e solidões que investem na estrutura fechada
do seu mito que povoa o mundo original que ela
ostenta para si, como verdade e como o mistério
ainda misto de dor e muito amor do filho que se
tornou mãe-filho no seu ato de cria e de criação
amorosa onde esvaziou todos os demais filhos-
personagem que povoariam o espaço circundante
além dela, para torná-lo um a sua imagem e seme-
lhança, um que se transfigurou em eternidade no
ambiente de magia que a fotografia ainda permite-
se ser.
Mesmo que desbotada, plastificada,
impossível de uma visualização nítida por um ob-
servador de fora da esfera significativa da vida
mãe-filho, mas que para ela, mãe-filho permanece
nítida na sua força repetitiva do olhar atento a uma
narrativa tecida e retomada freqüentemente, como
garantia (será que a palavra é essa?) da sobrevivên-
cia física de uma mãe que não suportou ou não su-
porta a idéia de um filho apenas morto.

68
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73
74
Sobre o Autor

Mauro Guilherme Pinheiro Koury é doutor em Sociologia.


Leciona no Curso de Graduação em Ciências Sociais e no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universida-
de Federal da Paraíba - UFPB. Coordena o GREM – Grupo
de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções e o
GREI – Grupo Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa em Ima-
gem, ambos ligados ao Departamento de Ciências Sociais da
UFPB. É autor, entre outros dos livros Sociologia da Emo-
ção. O Brasil urbano sob a ótica do luto (Vozes, 2003); Pra-
ticas Instituintes e experiências autoritárias (Garamond,
2012) e Estilos de vida e individualidade. Escritos em antro-
pologia e sociologia das emoções (Appris, 2014).

75
Sobre o GREM

O G R E M , Grupo de Pesquisa em Antropologia e Socio-


logia das Emoções é uma base de pesquisa do CNPq criada
em 1994 e integrada ao Departamento de Ciências Sociais e
ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Univer-
sidade Federal da Paraíba. Tem por objetivo compreender os
costumes, comportamentos, atitudes, percepções, representa-
ções e o imaginário oriundos de sociabilidades emergentes no
processo de constituição da sociedade ocidental, e brasileira
em particular, a partir do século XIX. O GREM se organiza
em linhas de pesquisa que congregam pesquisadores, estudan-
tes de pós-graduação e graduação no seu interior; estas se
relacionam com um Banco de Dados e um Fórum Interdisci-
plinar em Antropologia e Sociologia das Emoções. Edita a
RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, e a
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociolo-
gia e a série de livros Cadernos do GREM.

76
Cadernos do GREM

Números Publicados

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. As teorias do


.1 desenvolvimento social e a América Latina. João
Pessoa: Manufatura / GREM, 2002. (2ª edição em
formato E-Book, João Pessoa: Edições do GREM,
2017).
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Uma fotogra-
.2 fia desbotada. Atitudes e rituais do luto e o objeto
fotográfico. João Pessoa: Manufatura / GREM,
2002. (2ª edição em formato E-Book, João Pessoa:
Edições do GREM, 2017).
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Introdução à
.3 sociologia da emoção. João Pessoa: Manufatura /
GREM, 2004.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sofrimento
.4 social. Movimentos sociais na Paraíba através da
imprensa, 1964 a 1980. João Pessoa: EdUFPB /
Edições do GREM, 2007.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Rasguei o teu
.5 retrato. A ação destrutiva de fotografias no trabalho
de luto. João Pessoa: EdUFPB / Edições do GREM,
2007. (2ª edição em formato E-Book, João Pessoa:
Edições do GREM, 2017).
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. De que João
.6 Pessoa tem medo? Uma abordagem em antropologia
das emoções. João Pessoa: EdUFPB / Edições do
GREM, 2008.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA,
.7 Raoni Borges. Da subjetividade às Emoções. A
Antropologia e a Sociologia das Emoções no Brasil.
Recife: Edições Bagaço/ João Pessoa: Edições do
GREM, 2015.

77
BARBOSA, Raoni Borges. Medos Corriqueiros e
.8 Vergonha Cotidiana. Um estudo em Antropologia
das Emoções. Recife: Edições Bagaço/ João Pessoa:
Edições do GREM, 2015.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Quebra de
.9 Confiança e Conflito entre Iguais. Cultura Emotiva e
Moralidade em um Bairro Popular. Recife: Edições
Bagaço/ João Pessoa: Edições do GREM, 2016.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA,
. 10 Raoni Borges. A vergonha no Self e na Sociedade:
A Sociologia e a Antropologia das Emoções de
Thomas Scheff. Recife: Edições Bagaço/ João Pes-
soa: Edições do GREM, 2016.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Etnografias


N. 11 Urbanas sobre Pertença e Medos na Cidade: Estudos
em Antropologia das Emoções. Recife: Edições
Bagaço/ João Pessoa: Edições do GREM, 2017.
PONTES, Williane Juvêncio. Medos Corriqueiros &
N. 12 Cidade. Uma análise institucional do Grupo de
Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emo-
ções/UFPB. Recife: Edições Bagaço/ João Pessoa:
Edições do GREM, 2017.

78
79
Edições do GREM
Universidade Federal da Paraíba Campus I
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Bloco V –
Campus I – Cidade Universitária
CEP 58051-970 João Pessoa – Paraíba – Brasil
E-Mail: grem@cchla.ufpb.br

80

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