BRAUDEL Documento de Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Associado à Fundação Armando Alvares Penteado

PAPERS

Nº 10 - 1995
Capital social e democracia
Robert D. Putnam

Capital social e democracia 03

Capital social e inflação no Brasil 15

 BRAUDEL
PAPERS
Instituto Fernand Braudel de
Economia Mundial
Associado à Fundação 03 Capital social e democracia
Armando Alvares Penteado (Robert D. Putnam)
Rua Ceará, 2 – 01243-010 “A vida comunitária anima o desenvolvimento
São Paulo, SP – Brasil político”
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06 Tendências em engajamento
Conselho Diretor: Rubens Ricupero (Presidente), Beno cívico
Suchodolski (Vice-Presidente), Roberto Paulo César de
Andrade, Roberto Appy, Alexander Bialer, Diomedes (Robert D. Putnam)
Christodoulou, Geraldo Coen, Roberto Teixeira da Costa, “Desde a clássica investigação de Tocqueville, os EUA
Wagner da Costa, Hugo Miguel Etchenique, Edward têm sido um...”
Launberg, Rolf Leven, Carlos Alberto Longo, Amarílio
Proença de Macedo, Luiz Eduardo Reis de Magalhães,
Idel Metzger, Masayoshi Morimoto, Mailson da Nóbrega
e Yuichi Tsukamoto.
14 O que é capital social?
(Robert D. Putnam)
Diretor Executivo: Norman Gall “Capital social refere-se a características da
organização social, tais como...”
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Boveri | Bamerindus | Bosch | Brascan 15 Capital social e inflação no Brasil
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Copene | Ericsson | General Eletric “O ensaio de Robert Putnam sobre “Capital social e
Grupo Fenícia | Hoechst | IBM | Itaú democracia” coloca o problema...”
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Braudel Papers é publicado pelo Instituto
Fernand Braudel de Economia Mundial

Editor: Norman Gall

Jornalista Responsável: Pedro M. Soares
MT8960-26-41
Promoção e Marketing: Nilson V. Oliveira
Versão online: Emily Attarian
Layout por Emily Attarian
Copyright 1995 Instituto Fernand
Braudel de Economia Mundial
www.braudel.org.br
Braudel Papers é uma publicação
bimensal do Instituto Fernand Braudel
de Economia Mundial com o especial
apoio da The Tinker Foundation e
Champion Papel e Celulose
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 1. Capital Social e Democracia
Robert D. Putnam
Nota do editor: Robert Putnam levantou algumas inclinação dos americanos para a associação civil como
questões perturbadoras na conferência internacional doa chave para a capacidade deles, única em seu tempo,
Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial sobre de fazer a democracia funcionar. Recentemente, temos
Governabilidade: a economia política de escala, realizada
visto vários indícios mostrando que seu argumento não
em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Fortaleza é menos verdadeiro hoje, e não apenas nos Estados
em maio de 1994. Por que o sucesso da democracia esta Unidos. A qualidade da vida pública e das instituições
aparentemente ligado ao desenvolvimento do capital social,
sociais são poderosamente influenciadas por normas e
encarnado na cooperação dos cidadãos em pequenos grupos,
redes de engajamento cívico, agora sob contínua tensão,
tais como sociedades corais, clubes de boliche e associações
perturbação e transformação.
de pais e mestres? Por que esse engajamento cívico esta Tocqueville foi um dos muitos viajantes do
declinando nos Estados Unidos? O que significa a erosão
século XIX que, tal como Alexander von Humbldt e
das relações comunitárias face-a-face para o futuro daCharles Darwin, contribuíram para que os europeus
democracia? compreendessem melhor o Novo Mundo. Ele era
Quando uma versão diferente do ensaio de Putnam um juiz assistente de 25 anos, ansioso para estudar o
apareceu no início deste ano, sob o título esquisito de
funcionamento da democracia, quando arranjou uma
“Jogando boliche sozinho”; provocou tanto elogios quanto
comissão não remunerada do governo francês para
controvérsia em Washington. Tomou-se leitura obrigatória
pesquisar as condições das prisões norte-americanas.
na (Casa Branca depois que Putnam foi convidado para Financiados por suas famílias, Tocqueville e um
uma conversa que durou seis horas com o presidente BiII
amigo percorreram o jovem país durante nove meses,
Clinton e sua esposa Hillary no fim de semana anteriorviajando a cavalo, em diligências e vapores, avançando
ao discurso de State of Union de Clinton. O senador Bill
para o sul até Nova Orleans e para oeste, até Sault St.
Bradley fez eco: “Tal como peixes boiando na superfície de
Marie, em Michigan. Ao voltar, Tocqueville publicou
um rio poluído, a rede de associações voluntárias na América
sua obra clássica Democracia na América, de sucesso
parece estar morrendo “A descoberta de Putnam sobre o imediato entre os círculos políticos europeus que
declínio dos clubes de boliche como uma forma de capital
debatiam calorosamente sobre liberdade e despotismo
social foi usada pelo colunista conservador George Will
após a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas.
para advertir sobre a necessidade de “resgatar os pequenos
Em uma de suas observações mais agudas, Tocqueville
destacamentos dos grandes batalhões do governo federal.
escreveu: “A liberdade produz animosidades privadas,
Assim, se você está procurando um pequeno indicador mas o despotismo dá origem à indiferença geral”. E
do sucesso do conservadorismo, olhe para a participação
perguntou: “Que potência política poderia levar a cabo
crescente em, entre outras coisas, clubes de boliche”.a vasta multidão de empreendimentos menores que os
William Powers, do The Washington Post, colocou outrascidadãos americanos desempenham diariamente, com a
questões: “E se os americanos, na verdade, vêm batalhando
ajuda do princípio da associação?”
durante séculos para se afastarem uns dos outros? E se a vida
Essa pergunta está diante de nós hoje, em democracias
neste país tenha sempre sido mais uma questão de fugir da
estabelecidas como as dos Estados Unidos e da União
comunidade do que entrar para clubes e associações? E se
Européia, e em democracias novas, como as do Brasil e
não quisermos parar de jogar boliche sozinhos?” O ensaio de
de outras repúblicas latino-americanas, assim como nos
Putnam nesta edição do Braudel Papers, bem como o texto
estados recém-liberados do antigo bloco soviético. Ela
de Norman Gall sobre o Brasil na página 2, fazem pane de
abrange questões como propriedade privada ou pública
nosso diálogo continuo sobre os papéis da ação individual e
de empresas econômicas e infra-estruturais, federalismo
comunitária no desenvolvimento da democracia. e descentralização e o papel político das comunidades
locais.
Ao visitar os Estados Unidos na década de 1830, Pesquisa recente em uma ampla gama de contextos
o pensador francês Alexis de Tocqueville considerou a confirma que as normas e redes de engajamento cívico

Robert Putnam é diretor do Centro para Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard e membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.
Suas idéias sobre capital social estão desenvolvidas em Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy, Princeton University Press, 1992.

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(agora rebatizadas de
capital social) podem
melhorar a educação,
diminuir a pobreza,
inibir o crime, incentivar
o desempenho econô-
mico, promover um
governo melhor e até
reduzir a mortalidade.
Ao contrário, as
deficiências de capital
social contribuem para
muitos males sociais,
econômicos e políticos.
Indícios recentes, no
entanto, sugerem que o
engajamento cívico de
todos os tipos declinou
inesperadamente nos
Estados Unidos ao longo
da última geração.
Este ensaio analisa
a recente diminuição
de capital social nos
EUA que, em 1965, se
encontrava na liderança
mundial em confiança
social e engajamento
cívico. Em 1990, o
país caíra em ambas as
categorias. A deterioração sociais e todos os tipos de disposição estão sempre
recente foi tão acentuada formando associações. Não há apenas associações
que outro quarto de
século de mudança nesse
mesmo ritmo colocará os
EUA em um ponto médio
nessa escala equivalente
ao da Coréia do Sul ou
da Bélgica hoje. Um
declínio de duas gerações
no mesmo ritmo deixará
o país no mesmo nível tempo a arte de buscar em conjunto os objetos de
atual de Chile e Portugal.
As tendências esboçadas
neste ensaio são
perturbadoras. Pesquisas
recentes nos EUA e
no Brasil revelam uma
desilusão crescente com
partidos e políticos, uma Alexis de Tocquevilk Democracy in America
tendência que parece se
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estender aos eleitores
de outros países latino-
americanos, da Europa,
do Japão e da Índia.
No Brasil, a ausência
de engajamento cívico
tem sido um obstáculo
importante para o
desenvolvimento político.
No World Values Survey
de 1990-91, realizado
pelo Institute for Social
Research da Universidade
de Michigan, entre 35
países pesquisados, o
Brasil, ocupava o lugar
mais baixo em confiança
social e um dos mais
baixos em engajamento
cívico.
Em seu discurso
sobre o estado da nação,
de 25 de janeiro de 1995,
o presidente Clinton
descreveu essa dimi-
nuição de engajamento
civil: “Vemos nossas
famílias e comunidades
esfacelando-se. Nosso
Americanos de todas as idades, todas as posições chão comum está-se
abrindo sob nós. A APM,
a reunião na prefeitura, o
industriais e comerciais de que baile público — é difícil
para muitos americanos
todos fazem parte, mas outras de mil tipos que trabalham demais
diferentes — religiosas, morais, sérias, fúteis, achar tempo e espaço
muito amplas e muito limitadas, enormes e para fortalecer os laços
diminutas... Assim, o país mais democrático de confiança cooperação
entre os cidadãos. E
do mundo de hoje é aquele em que os homens muitas de nossas crianças
levaram à mais alta perfeição de nosso não têm os pais e avós
que lhes poderiam dar as
desejos comuns e aplicaram essa nova técnica ao experiências que precisam
para construir o caráter e
maior número de objetivos... fortalecer a identidade”.
Nada, em minha opinião, merece mais Há várias explicações
atenção do que as associações intelectuais e possíveis para essa
morais na América. mudança. As mulheres
ingressaram maciçamente
no mercado de trabalho. A
mobilidade geográfica de
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indivíduos e famílias enfraquece os laços comunitários.
As mudanças tecnológicas estão privatizando o lazer.
Quaisquer que sejam as causas complexas desse
enfraquecimento das ligações sociais, elas contribuem
para muitos dos males sociais e políticos que afligem
os Estados Unidos e outras democracias. Precisamos
descobrir novas maneiras de reinvestirem capital social.
Há muitas facetas nessas mudanças. Para além
da conhecida queda no comparecimento às urnas,
muitas outras formas de participação política também
declinaram significativamente nas duas últimas
décadas, ao mesmo tempo em que a alienação política
e a desconfiança nas instituições públicas aumentaram.
Caiu (amiúde vertiginosamente) a participação em
muitos tipos de associações cívicas, de grupos religiosos
a sindicatos, de clubes de mulheres a irmandades e
de reuniões de vizinhos a clubes de boliche. Todos os
segmentos da sociedade foram virtualmente afetados por
essa diminuição da conexão social e essa tendência, por
sua vez, está fortemente correlacionada com o declínio
da confiança social. Em suma, o capital social americano
desgastou-se fortemente no último quarto de século.
Na educação, por exemplo, pesquisadores descobriram
que as escolas bem-sucedidas distinguem-se menos pelo
conteúdo de seus currículos ou pela qualidade de seus
professores do que por seu engaste numa trama mais
ampla de famílias e comunidades de apoio. Estudiosos
e profissionais preocupados com a pobreza urbana e o
desemprego também enfocaram de modo semelhante o
papel das redes e normas comunitárias.
Embora o veredicto empírico ainda não esteja
completo, um estudo cuidadoso de Ann Case e Lawrence
Katz das perspectivas dos jovens em Boston ilustra o
fenômeno que tem atraído tanta atenção. Fixando como
variáveis de controle todas as características individuais
relevantes (tais como raça, gênero, instrução, instrução
dos pais, estrutura familiar, envolvimento religioso
etc), os jovens cujos vizinhos freqüentam a igreja têm
maior probabilidade de obter emprego e menor de
usar drogas ou se envolver em atividades criminosas.
Em outras palavras, a freqüência à igreja (a forma mais
comum de engajamento cívico nos EUA) influencia o
comportamento e a perspectiva de vida de quem está
por perto, mesmo que não esteja tão engajado.
Da mesma forma, pesquisas sobre a variação de
sucesso econômico de diferentes grupos étnicos nos EUA
demonstraram a importância dos laços sociais dentro de
cada grupo. Esses resultados são consistentes com uma
pesquisa numa ampla gama de cenários que demonstra
a importância vital das redes sociais para a obtenção de
emprego e muitos outros resultados econômicos.
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Ao mesmo tempo, um corpo de pesquisas,
aparentemente sem relação com isso, sobre a sociologia
do desenvolvimento econômico também centrou
sua atenção no papel das redes sociais. Um segmento
desse trabalho foi feito em países em desenvolvimento,
e parte dele explica o peculiarmente bem sucedido
“capitalismo de rede” do Extremo Oriente. Mesmo em
economias ocidentais menos exóticas, os pesquisadores
descobriram distritos industriais altamente eficientes
e flexíveis, baseados em redes de colaboração entre
operários e pequenos empresários. Longe de constituírem
anacronismos paleo-industriais, essas densas redes
interpessoais e inter-organizacionais sustentam indústrias
ultramodernas, da alta tecnologia do Vale do Silício à
alta costura da Benetton.
O controle da criminalidade e das drogas é
outro campo em que a pesquisa recente enfatiza a
importância das normas e redes comunitárias. O assim
chamado movimento de policiamento comunitário,
que desempenhou um papel importante em reformas
recentes em todo o país, baseia-se na evidência empírica
de que o controle social informal é muito mais eficaz do
que a polícia para reduzir a criminalidade e a violência.
Da mesma forma, vários estudos recentes sugerem a
eficácia das coalizões comunitárias na redução do abuso
de drogas e bebidas alcoólicas. Embora alguns tenham
questionado as implicações políticas desse trabalho,
argumentando que organizações comunitárias viáveis
não podem ser criadas onde já não existam naturalmente,
poucos discordam que, onde existem, os laços sociais de
vizinhança proporcionam um dissuasor poderoso e uma
defesa contra as pragas inter-relacionadas das drogas e
do crime.
As normas e redes de engajamento cívico também
afetam fortemente o desempenho do governo
representativo. Esta, pelo menos, foi a conclusão
central de meu estudo quase experimental de vinte anos
dos governos regionais da Itália. Embora parecessem
idênticos no papel, os níveis de eficácia desses governos
foram extremamente variados. A investigação sistemática
mostrou que a qualidade do governo era determinada
por velhas tradições de engajamento cívico (ou sua
ausência). Comparecimento às urnas, leitura de jornais,
participação em sociedades corais e clubes de futebol
indicavam uma região bem sucedida. Na verdade, a
análise histórica sugeriu que essas redes de reciprocidade
organizada e solidariedade cívica, longe de serem um
resultado da modernização socioeconômica, constituíam
uma pré-condição para ela.
Os epidemiologistas acham que os laços sociais afetam
até a morbidade e mortalidade física. Um estudo ainda
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não publicado da eficácia comparativa de intervenções
anti-Aids em populações de risco (prostitutas, usuários de
drogas injetáveis etc) de várias comunidades americanas
parece mostrar que um determinado programa será
substancialmente mais eficaz quando a população-alvo,
por mais que estiver desconectada da sociedade mais
ampla, se caracterize por uma conexão interna maior.
Outra pesquisa da população em geral encontrou que
pessoas com comparativamente poucos laços sociais e
comunitários defrontam-se com riscos substancialmente
maiores de doenças mentais e físicas e mortalidade,
independentemente do status socioeconômico e dos
fatores de risco fisiológicos. Unir-se, em resumo, é bom
para a sua saúde.
Não há dúvida de que os mecanismos através dos quais
o engajamento cívico e a conexão social produzem esses
resultados miraculosos — escolas melhores, crescimento
mais rápido, menos crime, governo mais eficaz e até
vidas mais longas — são múltiplos e complexos. Todavia,
as semelhanças entre centenas de estudos empíricos de
uma dezena de disciplinas díspares são notáveis. Os
cientistas sociais sugeriram recentemente um quadro de
referência comum para compreender esses fenômenos,
um quadro baseado no conceito de capital social.
Por analogia com as noções de capital físico e capital
humano — instrumentos e treinamento que aumentam
a produtividade individual —, o capital social refere-se
a características de organização social, tais como redes,
2. Tendências em engajamento cívico
Desde a clássica investigação de Tocqueville, os EUA
têm sido um foco essencial dos estudos sistemáticos
sobre as relações entre democracia e sociedade civil.
As tendências da vida americana são freqüentemente
consideradas como precursoras da modernização social.
Os Estados Unidos também foram tradicionalmente vistos
como uma terra de vocação cívica extraordinariamente
forte. Também por esses motivos este ensaio se concentra
no caso americano, embora desdobramentos como
os aqui analisados possam estar ocorrendo em muitas
sociedades contemporâneas. Uma precaução preliminar:
embora as normas e redes informais constituam formas
muito importantes de capital social, usam-se aqui
quase exclusivamente medidas de engajamento cívico
em contextos institucionais, formais e organizacionais.
A razão é simplesmente metodológica: para avaliações
quantitativas e confiáveis de mudança, precisamos de
dados que tenham sido coletados regularmente ao longo
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normas e confiança social, que facilitam a coordenação e
cooperação para o benefício mútuo.
Por várias razões, a vida é mais fácil numa comunidade
abençoada com um estoque substancial de capital social.
Em primeiro lugar, as redes de engajamento cívico
criam normas vigorosas de reciprocidade generalizada e
estimulam a emergência da confiança social. Essas redes
facilitam a coordenação e a comunicação, amplificam
reputações e assim permitem a resolução de dilemas
de ação coletiva. Quando a negociação política e
econômica está fundada em redes densas de interação
social, reduzem-se os incentivos para o oportunismo. Ao
mesmo tempo, as redes de engajamento cívico encarnam
o sucesso passado da colaboração, que pode servir como
padrão cultural e precedente para a cooperação futura.
Por fim, redes densas de interação ampliam o sentido
da individualidade, desdobrando o eu no nós, ou (na
linguagem das teorias da escolha racional), realçando o
gosto por benefícios coletivos.
Este ensaio não faz pesquisa nem contribui para o
desenvolvimento da teoria do capital social. Em vez
disso, a premissa central desse corpo de trabalho crescente
— que as conexões sociais e o engajamento cívico
influenciam de modo penetrante nossa vida pública,
bem como nossas perspectivas privadas — constitui
nosso ponto de partida para um levantamento empírico
das tendências em capital social nos EUA hoje.
de anos, senão décadas. Tais dados estão geralmente
confinados a contextos formais.
Começamos com os indícios familiares de mudança
de padrão na participação política, com o bem conhecido
declínio no comparecimento de eleitores nas eleições
nacionais americanas das últimas três décadas, devido a
sua relevância para as questões da democracia em sentido
estrito. Uma perspectiva de mais longo prazo mostraria
que o declínio pós-1960 foi essencialmente uma retomada
de uma tendência de declínio na participação eleitoral
de todo este século. De um ponto relativamente alto no
início da década de 1960, o comparecimento às urnas,
em 1990, diminuíra em quase um quarto; dezenas de
milhões de americanos tinham abandonado a disposição
habitual de seus pais de participar do ato mais simples
de cidadania. A eleição presidencial de 1992, com seu
terceiro candidato inusitadamente forte, assistiu a uma
reviravolta parcial, mas a durabilidade dessa recente
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alteração é altamente questionável. Tendências similares
em sentido amplo caracterizam também a participação
em eleições estaduais e locais.
Não apenas a cabine de votação foi sendo abandonada
progressivamente. Uma série de perguntas idênticas feitas
pela organização Roper a amostras nacionais dez vezes por
ano nas duas últimas décadas revelou que, desde 1973, o
número de americanos que disseram que compareceram
no último ano a uma reunião pública sobre assuntos
municipais ou escolares caiu em mais de um terço,
de 23% em 1973, para 13% em 1993, equiparando-
se aos baixos níveis de participação registrados no
Brasil. Outros declínios em participação política
nos EUA encontram-se nas respostas a
perguntas sobre escrever para membros do
Congresso, comparecer a uma passeata
ou comício, participar de uma
comissão de alguma organização
local e trabalhar para um
partido político. Mesmo
como um esporte de
simples espectador,
o engajamento cívico
tornou-se mais raro
nas décadas recentes.
A leitura diária de
jornais caiu quase um
quarto entre 1970 e
1993. Segundo quase
todas as medidas, o
engajamento direto em política nos EUA caiu constante
e agudamente na última geração, apesar de os níveis
médios de instrução — o melhor prognosticador ao nível
individual de participação política — terem aumentado
bastante ao longo desse período. A cada ano das últimas
décadas, milhões de cidadãos a mais omitiram-se dos
assuntos de suas comunidades.
Não é coincidência que os americanos também
tenham se desengajado psicologicamente da política e
do governo nesse período. Duas séries de dados de longo
prazo revelam isso.
Desconfiança no governo. Quanto você confia no
governo de Washington para fazer o que deve — sempre,
quase sempre, ás vezes ou quase nunca? O número de
americanos que escolheram as duas últimas alternativas
aumentou de 30%, em 1966, para 75%, em 1992.
Séries de dados mais longas mostram que a confiança no
governo teve seu pico em 1964 e continuou a declinar
depois de 1992.
Alienação social. O Índice de Alienação Harris
baseia-se no nível médio de concordância com cinco
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afirmações feitas anualmente em amostras
nacionais de americanos desde 1966:
As pessoas que governam o país não se
preocupam realmente com o que acontece com
você.
A maioria das pessoas no poder tenta tirar
vantagem de gente como você.
Você é deixado de fora das coisas que
acontecem em torno de você. O que você
pensa não é mais levado em consideração.
Os ricos ficam mais ricos e os pobres,
mais pobres.
Cada item desta lista obteve mais e
mais concordância dos americanos em
anos recentes. Sob qualquer critério,
a alienação e o desengajamento
político dispararam nas últimas
três décadas.
As tendências que aca-
bamos de ver são bem
conhecidas e, tomadas
isola­damente, parecem
ter explicações políticas.
Por exemplo: talvez
a longa litania de
tragédias e escândalos
iniciada nos anos 60
(assassinatos, Vietnã,
Watergate, Irãgate)
tenha desencadeado um
compreensível desgosto pela política entre os americanos.
Não duvido que essa interpretação comum tem seus
méritos, mas suas limitações ficam claras quando
examinamos as tendências de engajamento cívico de um
tipo mais amplo.
Nossa pesquisa sobre participação dos americanos
em organizações pode começar com uma olhada
nos resultados agregados do General Social Survey,
uma pesquisa nacional por amostra realizada catorze
vezes nas duas últimas décadas. O número total de
pessoas associadas a alguma organização (70% dos
pesquisados afirmaram pertencer ao menos a uma delas)
é substancialmente maior do que em muitos outros
surveys, refletindo o quão exaustiva é a pesquisa do GSS.
Os grupos relacionados a igrejas constituem o tipo mais
comum de participação, especialmente das mulheres,
mas também dos homens. Outros tipos relativamente
comuns de participação feminina incluem grupos
relacionados a escolas (em sua maioria, associações de
pais e mestres), grupos esportivos e sociedades literárias
e profissionais. Entre os homens, clubes esportivos,
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sindicatos, sociedades profissionais, irmandades, grupos
de veteranos e clubes de serviço são todos freqüentes.
Na análise que se segue, exibimos os melhores indícios
de tendências em participação em quase todos esses
tipos de organização, usando tanto os números efetivos
de associados (quando disponíveis), como dados de
pesquisas.
A afiliação religiosa é de longe a participação em
organização mais comum dos americanos. Com efeito,
os EUA continuam a ser (mais ainda que no tempo de
Tocqueville), uma sociedade espantosamente igrejeira.
Por exemplo: o país tem mais casas de culto per capita do
que qualquer outra nação da Terra. Contra as expectativas
generalizadas de que a modernização e a secularização
fariam a religião organizada definhar, a maioria dos
sociólogos da religião americana tem enfatizado que a
afiliação religiosa é provavelmente mais dominante no
americano contemporâneo e que as crenças e práticas
religiosas têm permanecido relativamente estáveis no
último meio século: Por outro lado, é também verdade que
a freqüência às igrejas mais tradicionais tem se esvaziado
nas últimas décadas, conseqüência da rápida expansão
das congregações evangélicas e fundamentalistas.
Ademais, o sentimento religioso nos EUA parece estar
se tomando mais auto-definido. Como disse o principal
estudioso do comportamento religioso norte-americano,
estamos nos tornando menos fundamentados teológica
e institucionalmente e mais inclinados a construir
nossa própria fé à medida que avançamos. Como essas
complexas correntes entrecruzadas atuaram ao longo das
últimas três ou quatro décadas em termos de engajamento
dos americanos na religião organizada?
A observância religiosa formal nos últimos 40 anos,
foi testada durante todo esse período pelo Gallup com
uma pergunta direta sobre freqüência à igreja na última
semana. O padrão geral é claro: na década de 1960 houve
uma queda significativa da freqüência à igreja, de cerca
de 48%, no final da década de 1950, para cerca de 41%
no início dos anos 70. A partir de então, a freqüência
registrada pelo Gallup manteve-se em 40-42%, embora
outras pesquisas mostrem um declínio contínuo.
Evidentemente, o engajamento religioso significa
mais do que freqüentar os cultos semanais, pois muitos
americanos envolvem-se intensamente numa ampla
variedade de outros grupos associados às igrejas, tais como
escolas dominicais, grupos de estudo da Bíblia, grupos
de solteiros etc. Na década de 1980, o movimento desses
pequenos grupos pode ter crescido muito, especialmente
quando os líderes religiosos viram seu potencial para
revitalizar as congregações em declínio e de obter um
crescimento rápido de congregações novas. Porém,
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diante de provas contraditórias e incompletas, a melhor
estimativa que podemos arriscar é que a participação
efetiva dos americanos, tanto em serviços religiosos
como em grupos associados às igrejas, provavelmente
diminuiu modestamente (talvez em um sexto) desde a
década de 1960.
Durante muitos anos, os sindicatos proporcionaram
uma das associações mais comuns para os trabalhadores
americanos. Isso continuou a ser verdade em décadas
recentes. Porém, a afiliação a sindicatos vem caindo há
quase quatro décadas, com o declínio mais acentuado
ocorrendo entre 1975 e 1985. Desde a metade dos anos
50, quando a sindicalização atingiu seu auge, a parte
sindicalizada da força de trabalho não-agrícola diminuiu
em mais da metade, de 32,5% em 1953, para 15,8% em
1992. Atualmente, quase todo o crescimento explosivo
da sindicalização associado ao New Deal foi desativado.
A solidariedade dos auditórios dos sindicatos é hoje uma
lembrança evanescente de homens idosos.
Uma forma importante de engajamento cívico nos
Estados Unidos no século XX tem sido a Associação
de Pais e Mestres (APM). Ela é importante não apenas
porque é (ou, pelo menos, era) uma das formas mais
comuns de participação em associação, como também
porque o envolvimento dos pais no processo educacional
representa uma forma particularmente produtiva de
capital social. Assim, ficamos consternados ao descobrir
que a participação em organizações de pais e mestres
caiu de mais de 12 milhões, em 1964, para 5 milhões,
em 1982, para recuperar-se e subir para cerca de 7
milhões hoje. Para interpretar essa mudança com mais
acuidade, devemos fazer ajustes relacionados com as
mudanças demográficas. A queda começou de fato em
1960 e continuou sem parar por mais de duas décadas.
A recuperação pós-1982 em números absolutos esta
inflada pelo aumento do número de matrículas. Assim,
a proporção de pais americanos engajados nas escolas de
seus filhos caiu em mais da metade entre 1960 e 1975 e
mal se recuperou desde então.
A participação como membro ou voluntário em
organizações fraternais ou cívicas também declinou. A
participação nas bases de grupos femininos tradicionais
declinou constantemente desde a metade dos anos 60. O
número de sócios da Federação de Clubes de Mulheres,
de âmbito nacional, diminuiu em mais da metade (59%)
desde 1964, enquanto que a Liga das Mulheres Eleitoras
encolheu em 42% desde 1969.
Reduções semelhantes ocorreram no número de
voluntários para as organizações cívicas tradicionais,
tais como os Escoteiros (queda de 26% desde 1970) e
a Cruz Vermelha (queda de 61% desde 1970). Mas que
BRAUDEL PAPERS 0
dizer da possibilidade de os voluntários terem se dirigido
para outras organizações? Dados sobre voluntariado só
se tornaram disponíveis recentemente e estão infestados
de imprecisões sobre o que se considera trabalho
voluntário. Deve-se levar em conta o recolhimento de
jornal para um vizinho que viaja, como em algumas
pesquisas nacionais? No entanto, dispomos de dados
sobre voluntariado regular (em oposição ao aparecimento
ocasional) levantados pelo Current Population Survey
do Departamento do Trabalho em 1974 e 1989, cujas
estimativas, baseadas em amostras imensas de 60 mil
residências, cuidadosamente montadas para serem
comparáveis no tempo, sugerem que o voluntariado sério
declinou em cerca de um sexto nesses quinze anos, de
24% dos adultos em 1974, para 20% em 1989. Embora
um declínio de quatro por cento possa parecer modesto,
ele representa quase 8 milhões a menos de voluntários
em todo o país.
As irmandades têm sido uma forma importante de
engajamento social para os homens americanos. Houve
uma substancial e quase simultânea queda na afiliação
a muitos desses grupos nas duas últimas décadas.
Mesmo desconsiderando o crescimento populacional,
a participação diminuiu muito em grupos como Lions
(queda de 120/o desde 1983), Elks (queda de 18% desde
1979), Shriners (queda de 27% desde 1979) e Jaycees
(queda de 44% desde 1979). A afiliação à maçonaria,
a maior e mais antiga irmandade do mundo, caiu em
39%, de um pico de 4,1 milhões em 1959, para cerca
de 2,5 milhões atualmente. Enquanto a participação
em organizações que reúnem principalmente mulheres
(inclusive as APMs, onde cerca de 90% dos membros
são do sexo feminino) começou a declinar nos anos
60, a queda na maioria das organizações masculinas se
iniciou de dez a quinze anos depois. O que quer que
isso signifique, o fato é que, depois de se expandirem
ao longo da maior parte deste século, as principais
organizações cívicas de muitas comunidades americanas
sofreram um substancial e quase simultâneo declínio em
número de associados nas duas últimas décadas.
A mais desconcertante forma de desengajamento
social na América contemporânea que encontrei foi esta:
mais americanos do que nunca estão jogando boliche
hoje, mas o número de jogadores federados despencou
nos últimos 10-15 anos. Entre 1980 e 1993, o número
total de praticantes do boliche nos EUA aumentou
em 100/o, enquanto diminuía em 40% o número de
associados a clubes de boliche. (Antes que se julgue o
exemplo trivial, devo observar que quase 80 milhões de
americanos jogaram boliche em 1993, quase um terço
a mais dos que votaram nas eleições para o Congresso
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de 1994 e o mesmo número de pessoas que afirmam
freqüentar a igreja regularmente.) Mesmo depois do
esvaziamento posterior a 1980, quase três por cento dos
adultos americanos jogam boliche em clubes. A ascensão
do boliche solitário ameaça a sobrevivência dos donos de
boliches porque os federados consomem três vezes mais
cerveja e pizza do que os jogadores solitários e o dinheiro
do negócio está na comida e na bebida, não nas bolas e
sapatos especiais. Porém, o significado social mais amplo
está na interação social e conversas cívicas ocasionais em
tomo da mesa, atividades dispensadas pelos solitários.
Seja o boliche mais importante ou não que o voto para a
maioria dos americanos, o fato é que os clubes de boliche
mostram mais uma forma de declínio do capital social.
A essa altura, no entanto, devemos enfrentar um
contra-argumento sério. Poder-se-ia dizer que as formas
tradicionais de associação cívica cuja decadência traçamos
até aqui foram substituídas por novas organizações. Por
exemplo, organizações ambientalistas nacionais, como o
Sierra Club, e grupos feministas como a Organização
Nacional das Mulheres, cresceram muito nas décadas
de 1970 e 1980 e hoje contam com milhares de
associados. Um exemplo mais impressionante é a
Associação Americana dos Aposentados, que passou
de 400 mil membros em 1960, para 33 milhões em
1993, tomando-se (depois da Igreja católica) a maior
organização privada do mundo. Os administradores
nacionais dessas organizações estão entre os lobbystas
mais temidos em Washington, graças a seus enormes
cadastros de membros supostamente fiéis.
Essas novas organizações de massa são politicamente
muito importantes. Em termos de conexão social,
porém, são tão diferentes das associações secundárias
clássicas que precisamos inventar um novo rótulo para
elas — talvez associações terciárias. Para a vasta maioria
de seus membros, o único ato de participação consiste
em preencher um cheque para pagar a mensalidade, ou
talvez ler um boletim. Poucos comparecem a alguma
reunião dessas organizações. Os laços entre dois
membros do Sierra Club assemelham-se ao que têm em
comum os fãs de um clube de futebol ou os fanáticos
de um tipo de motocicleta. Eles torcem para o mesmo
time e compartilham alguns interesses comuns, mas não
têm consciência uns dos outros enquanto indivíduos.
Em suma, sua ligação é com símbolos comuns, líderes
comuns e, talvez, ideais comuns, mas não uns com os
outros. A teoria do capital social afirma que a participação
em organizações deveria, por exemplo, aumentar a
confiança social, mas esse prognóstico é muito menos
direto para associações terciárias. Em termos de ligações
sociais, colocar o Fundo de Defesa Ambiental e um
BRAUDEL PAPERS 0
clube de boliche na mesma categoria constitui um erro
conceitual básico.
Se o crescimento das organizações terciárias representa
um contra-exemplo potencial (mas provavelmente não
real) de minha tese, uma segunda contra-tendência
está representada pelo papel crescente das organizações
sem fins lucrativos, em especial das agências de serviços
desse tipo. Esse assim chamado Terceiro Setor inclui
tudo, desde a Oxfam e o Museu Metropolitano de
Arte até a Fundação Ford e
a Clínica Mayo. Em outras
palavras, embora a maioria
Boa vizinhança e
das associações secundárias
não tenha fins lucrativos, a maioria das agências sem
fins lucrativos não é associação secundária. Identificar
tendências de crescimento do setor não-lucrativo com
tendências à conexão social seria outro erro conceitual
básico.
Uma terceira contra-tendência potencial é muito
mais relevante para avaliar o engajamento cívico e o
capital social. Pesquisadores como Robert Wuthnow
argumentam que nas últimas décadas houve uma
rápida expansão de grupos de apoio de vários tipos. O
fascinante estudo de Wuthnow registra que 40/o dos
americanos afirmam estar atualmente envolvidos em
grupos pequenos que se encontram periodicamente e
proporcionam apoio ou atenção para seus membros.
Muitos desses grupos têm afiliação religiosa, mas muitos
outros não. Quase 5% da amostra nacional de Wuthnow
afirmam participar regularmente de grupos de auto-
ajuda, tais como os Alcoólicos Anônimos, e quase outro
tanto diz que pertence a grupos de discussão de livros
e clubes de hobbies. Embora os dados de Wuthnow
venham de uma pesquisa única e, portanto, não possam
provar tendências, ele argumenta que esses grupos
pequenos se tornaram uma característica ainda mais
comum das comunidades americanas em anos recentes.
Estejam ou não proliferando, esses grupos pequenos
descritos por Wuthnow constituem inquestionavelmente
uma forma importante de capital social e devem ser
levados em conta em qualquer avaliação das tendências
em conexão social. Por outro lado, eles não desempenham
o papel típico das associações cívicas tradicionais.
Todas as três contra-tendências potenciais —
organizações terciárias, organizações sem fins lucrativos
e grupos de apoio — devem ser pesadas em comparação
com a erosão das organizações cívicas convencionais.
Uma forma de fazer isso é consultar o General Social
Survey, que tem reunido nas duas últimas décadas dados
comparáveis longitudinalmente de amplas sondagens
sobre vários tipos de participação em associações.
www.braudel.org.br
Tendo em vista que os níveis de instrução estão
correlacionados à associação cívica e que esses níveis
aumentaram muito nos EUA nas últimas décadas, é
instrutivo separar as mudanças em afiliação a associações
em três categorias amplas de instrução: menos que
segundo grau, segundo grau e mais que segundo grau.
Em todas as categorias, a afiliação total caiu bastante
entre 1967 e 1993. Entre os que freqüentaram a
universidade, o número médio de associados caiu de
2.8 para 2.0 (uma queda de
confiança social 26%); entre os que possuem
o segundo grau completo,
o número caiu de 1.8 para
1.2 (32%); e entre os que têm menos de doze anos
de instrução, caiu de 1.4 para 1.1 (25%). Em outras
palavras, em todos os níveis de instrução (e, portanto,
sociais) da sociedade e computando todos os tipos de
participação em grupos, o número médio de afiliação
em associações caiu nos últimos 25 anos em cerca de um
quarto. Desconsiderando-se os níveis de instrução, essa
tendência não fica tão clara nos dados brutos.
Para avaliar as mudanças no engajamento
participativo precisamos levar em conta tendências
demográficas mais amplas na sociedade americana. Por
exemplo, a participação nas APMs depende do tamanho
da população em idade escolar e nossa análise levou em
conta as mudanças no número de matrículas. Da mesma
forma, o movimento de profissionalização das mulheres
aumenta o número potencial de membros femininos das
organizações profissionais. É preciso lembrar também
que a participação em organizações atinge seu pico no
final da meia idade e, portanto, devemos levar em conta
mudanças demográficas que colocam uma grande parte
da população dentro ou fora dessa faixa etária. Para dar
conta desses problemas, devemos fixar como variáveis
de controle fatores como instrução, idade, gênero, status
familiar e ocupacional. O resultado dessa análise: mais
americanos do que nunca estão em circunstâncias sociais que
estimulam o envolvimento em associações (mais instrução,
meia idade etc), mas a participação nessas organizações é
estacionária ou declinante.
Separando-se por tipos de grupo, a tendência de
declínio é mais marcante para grupos relacionados
a igrejas, sindicatos, organizações de veteranos,
irmandades e APMs. Essa diminuição é consistente
com os dados levantados junto às organizações, como
já vimos. Por outro lado, o tamanho das associações
profissionais aumentou nesses anos, embora menos do
que se poderia prever, tendo em vista a grande elevação
do nível de instrução e de ocupação nesse período. Em
essência, identificam-se as mesmas tendências para
BRAUDEL PAPERS 10
homens e mulheres na amostra. Embora não tenhamos
ainda terminado nosso estudo de todos os sub-grupos da
população, análises multivariadas detalhadas, mantendo-
se como variáveis de controle idade, estado civil, número
de filhos, instrução, status socioeconômico e participação
na força de trabalho, mostram um significativo e mais
ou menos linear declínio da participação em associações
nos últimos 25 anos. Em resumo, os dados disponíveis
de pesquisas confirmam nossa conclusão anterior:
o capital social americano, na forma de associações
cívicas, desgastou-se significativamente durante a última
geração.
Vimos antes que os dados quantitativos mais
facilmente disponíveis sobre tendências da conexão social
envolvem cenários formais, tais como a cabine eleitoral,
o salão do sindicato ou a APM. Uma exceção gritante é
tão conhecida que nem precisamos comentá-la: a forma
mais fundamental de capital social é a família e as provas
maciças de enfraquecimento dos laços familiares são
bem conhecidas. Essa tendência é consistente
com a descapitalização social e pode
ajudar a explicá-la.
Um segundo aspecto
do capital social
informal sobre o
qual temos dados
de séries de tempo
razoavelmente
confiáveis envolve a
boa vizinhança. No General
Social Survey, desde 1974
pergunta-se: com que freqüência
você se encontra com um vizinho
numa reunião social noturna? A proporção
de americanos que se reúnem socialmente com
vizinhos mais de uma vez por ano declinou lenta, mas
constantemente nas duas últimas décadas, de 72%, em
1974, para 60%, em 1994. Encontra-se esse padrão
entre ambos os sexos e em todos os níveis de instrução.
Ele corresponde à experiência pessoal de quase todos os
americanos que lembram dos anos 50 e 60. No mundo
maltratado e às vezes ameaçador em que vivemos,
poucos passam o tempo jogando bridge ou conversando
por cima da cerca, como faziam nosso país.
Também somos menos confiantes. Uma vez que a
confiança é tão essencial na teoria do capital social, seria
desejável que houvesse indicadores comportamentais
de tendências em confiança social ou misantropia. Não
descobri medidas desse tipo, mas uma medida simples de
confiança social baseada em questionário foi usada nos
EUA e outros lugares durante 30 anos: Alguns dizem
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que se pode confiar na maioria das pessoas, enquanto
outros dizem que todo cuidado é pouco ao lidar com
os outros. Em qual das duas alternativas você acredita?”
Uma forte e constante tendência mostra que a proporção
de americanos que dizem que se pode confiar na maioria
das pessoas caiu de 58%, em 1960, para 35%, em 1994.
Essa inclinação aparece em todos os grupos de instrução.
Tendo em vista que a confiança está correlacionada à
instrução e que os níveis de instrução aumentaram
bastante, a diminuição da confiança social é ainda mais
dramática se mantivermos a educação como variável de
controle.
As tendências em conexão social e engajamento
cívico correlacionam-se coerentemente nos indivíduos.
Com muito maior probabilidade que os outros, os
membros de associações participam da política, passam
tempo com vizinhos e expressam confiança social. Em
contrapartida, pesquisa recente afirma, por exemplo,
que o declínio da conexão social constitui uma pane
importante da explicação do declínio
no comparecimento às
eleições. Uma vez
que todos esses
indicadores de
capital social estão
correlacionados com
a instrução (e outras
medidas de situação
socioeconômica),
vale a pena observar
que as inter-correlações
entre medidas de capital
social persistem mesmo
quando mantemos a instrução
como variável de controle. A participação
em associações e a instrução estão ambas forte e
independentemente correlacionadas com a confiança
social, não apenas no tempo e nos indivíduos, mas
também nos países. Baseando-se em dados do World
Values Survey de 1991, podemos demonstrar esse fato
e, ao mesmo tempo, estabelecer marcos para avaliar as
tendências em capital social americano esboçadas neste
ensaio, enfatizando dois fatos:
1. Em 35 países, confiança social e engajamento
cívico estão fortemente correlacionados; quanto maior
a densidade de participação em associações, mais
confiantes seus cidadãos. Confiança e engajamento são
duas faces do mesmo fator subjacente — capital social.
2. Por padrões internacionais, tal como Tocqueville
afirmava, os EUA ainda se situam em posição
relativamente alta nessas duas dimensões de capital social.
BRAUDEL PAPERS 11
Mesmo nos anos 90, depois de várias décadas de erosão, aumentaram modestamente desde 1965. Elas são
os americanos são mais confiantes e mais engajados certamente maiores agora do que nos anos 50, quando
civicamente do que a maioria dos povos do mundo. o engajamento cívico e a conexão social, segundo nossas
Porém, essas tendências recentes (a grosso modo, entre medidas, eram muito maiores.
1965 e 1990) rebaixaram bastante os Estados Unidos na Várias outras mudanças transformaram a família
classificação por capital social. americana desde a década de 1960 — menos casamentos,
Até agora espero ter mostrado que há bons motivos mais divórcios, menos filhos, salários reais mais baixos
para suspeitar de que algo aconteceu nos EUA nas últimas etc. Cada uma dessas mudanças pode ser responsável por
duas ou três décadas para diminuir o engajamento cívico um pouco do afrouxamento do engajamento cívico, pois
e a conexão social. O que poderia ser isso? Vou delinear pais casados de classe média envolvem-se socialmente
várias explicações possíveis, junto com alguns indícios mais do que outras pessoas. Ademais, as mudanças
sobre cada uma delas, a favor e contra. em escala que varreram a economia americana nesses
Nessas mesmas duas ou três décadas, milhões de anos — como a substituição da mercearia de esquina
mulheres americanas saíram do lar para trabalhar fora. pelo supermercado e agora, talvez, a do supermercado
Essa é a principal, embora não única, razão do aumento pelo shopping eletrônico em casa, ou a substituição de
das horas semanais de trabalho do americano médio empresas com base na comunidade por filiais de distantes
nesses anos. Parece plausível que essa revolução social firmas multinacionais — podem ter enfraquecido a base
tenha reduzido o tempo e a energia disponível para material e até física do engajamento cívico.
acumular capital social. Para certas organizações, como Há motivo para acreditar que tendências tecnológicas
a APM, a liga das Mulheres Eleitoras, a Federação dos que vieram para ficar estão radicalmente privatizando
Clubes Femininos e a Cruz Vermelha, isso é certamente ou individualizando nosso uso do tempo de lazer e
uma pane essencial da história. Relembre-se também que assim acabando com muitas oportunidades de formação
o maior declínio da participação cívica feminina parece de capital social. O instrumento mais óbvio e poderoso
ter ocorrido na década de 1970 e agora chega a cerca dessa revolução é a televisão. Estudos de gasto de tempo
de 50% na organização típica. na década de 1960 mostravam
Em contraste, a maior pane que o crescimento do tempo
do declínio nas organizações A tecnologia introduz uma cunha devotado à televisão deixava
masculinas ocorreu dez anos muito para trás as outras
depois e agora chega a 25% na organização típica. mudanças no modo como os americanos gastavam seus
Por outro lado, os dados da pesquisa implicam que os dias e noites. A televisão tomou nossas comunidades mais
declínios agregados para homens são virtualmente tão amplas e mais rasas. Em vez de jogar futebol nos fins de
grandes quanto os para mulheres. Talvez os declínios semana, assistimos outras pessoas jogarem no outro lado
masculinos representem o efeito da liberação feminina, do continente. Em vez de confiar em amigos íntimos,
na medida que a lavagem de pratos esvaziaria a loja assistimos Oprah discutir assuntos espantosamente
maçônica, mas estudos de gasto de tempo sugerem que a íntimos com completos estranhos na TV.
maioria dos maridos de mulheres trabalhadoras assumem Esses efeitos da tecnologia do lazer não se limitam
apenas uma parte pequena do serviço doméstico. Em à televisão. Embora os americanos passem mais tempo
suma, algo além da revolução feminina parece estar por do que nunca ouvindo música clássica e jazz, muitos
trás da erosão do capital social. teatros e clubes de jazz parecem cada vez mais vazios.
Muitos estudos de envolvimento organizacional A fita cassette, o CD e o walkman permitem-nos
mostram que a estabilidade de residência e a casa própria ouvir música em particular, o que culturas anteriores
estão claramente associados a um engajamento cívico julgariam inconcebível. A lógica dessa tendência é clara.
maior. A mobilidade, tal como a mudança freqüente Se eu (um devoto das sinfonias românticas) for a um
de vaso para as plantas, tende a romper as raízes. concerto da Sinfônica de Boston, deverei aguentar
Demora tempo para que um indivíduo desenraizado longos trechos de Shoenberg antes de a orquestra chegar
lance novas raízes. O automóvel, a suburbanização e o a Brahms. Meu aparelho de CD permite-me concentrar
movimento em direção ao Sun Belt podem ter reduzido no tipo exato de música que quero ouvir naquele
o enraizamento social do americano médio. É tentador momento. O CD também satisfaz meu amigo que adora
explicar o enfraquecimento das redes sociais em termos música atonal e acha Brahms xaroposo. O resultado,
de mobilidade maior, mas os melhores dados recentes porém, é que raramente nos vemos no teatro hoje em
mostram que a estabilidade residencial e a casa própria dia.

www.braudel.org.br BRAUDEL PAPERS 12


Na linguagem da economia, a tecnologia eletrônica
permite que os gostos pessoais se satisfaçam mais
plenamente, mas ao custo das externa-lidades positivas
associadas às formas mais primitivas de entrete-nimento.
A mesma coisa aconteceu quando o cinema substituiu o
vaudeville e o vídeo, o cinema. Os novos capacetes de
realidade virtual que em breve usaremos para nos entreter
em isolamento constituem a apoteose dessa tendência.
A tecnologia está assim introduzindo uma cunha entre
nossos interesses individuais e nossos interesses coletivos
— ou, pelo menos, trata-se de uma hipótese que vale a
pena explorar mais sistematicamente.
O problema colocado por este ensaio é o da
erosão das relações face-a-face — em famílias, escolas
e comunidades — que assumem responsabilidades
primárias e geram o capital social necessário para operar
sociedades complexas. Para agir sobre esse problema,
precisamos primeiramente delimitar as dimensões do
capital social, que não é um conceito unidimensional,
apesar da linguagem (mesmo a deste ensaio) que supõe
o contrário.
Que tipos de organizações e redes geram capital
social, no sentido da reciprocidade mútua, da solução
de dilemas da ação coletiva e do alargamento das
identidades sociais? Este ensaio sublinha a densidade da
vida associativa. Em Making Democracy Work (1992),
enfoquei a estrutura de redes, argumentando que os laços
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horizontais, os de compartilhamento e cooperação entre
iguais, representam um capital social mais produtivo
que o de laços verticais autoritários, como aqueles entre
patrões e empregados, ou entre senhores e camponeses.
O fato de as redes verticais ajudarem menos do que as
horizontais na solução de dilemas da ação coletiva pode
ser uma das razões de porque o capitalismo veio a ser
mais eficiente do que o feudalismo no século XVIII e
de porque a democracia mostrou-se mais eficaz do que a
autocracia no século XX.
Outra dimensão poten-cialmente importante reflete
a distribuição de redes: talvez redes mais diversificadas
e abrangentes incorporem um capital social mais
produtivo. Essa noção, ou algo parecido com ela,
inspirou o movimento de integração racial e direitos
civis da década de 1960, embora mais tarde tenha se
tomado altamente controvertida, como na discussão
sobre escolas de bairro. Por fim, precisamos explorar
com mais cuidado os mecanismos que ligam o capital
social aos resultados institucionais.
Outro conjunto importante de questões abrange as
correntes macro-sociológicas que podem se entrecruzar
com as tendências descritas neste ensaio. Qual será o
impacto das redes eletrônicas sobre o capital social, por
exemplo? Meu pressentimento é que o encontro em um
fórum eletrônico não se equivale ao encontro em um
boliche — ou mesmo num bar —, mas é preciso pesquisar
empiricamente. E o que dizer do desenvolvimento do
capital social no local de trabalho? Ele está crescendo
em contraponto ao declínio do engajamento cívico,
refletindo uma analogia social com a primeira lei da
termodinâmica — o capital social não é criado nem
distribuído, apenas redistribuído? Ou as tendências
descritas neste ensaio representam apenas uma perda de
peso morto?
Uma avaliação das mudanças do capital social
americano no último quarto de século precisa levar
em conta tanto os custos quanto os benefícios do
engajamento comunitário. Não devemos idealizar a vida
cívica da cidade pequena de classe média nos EUA dos
anos 50. Além das tendências deletérias enfatizadas neste
ensaio, as décadas recentes testemunharam um declínio
substancial em intolerância e provavelmente também
em discriminação aberta, e essas tendências benéficas
podem estar relacionadas de maneira complexa com
a erosão do capital social tradicional. Ademais, uma
contabilidade equilibrada dos livros de capital social
precisaria reconciliar os insights desta abordagem com
os indiscutíveis insights oferecidos por Mancur Olson
em The Rise and Decline of Nations, enfatizando que
organizações sociais, econômicas e políticas muito
unidas estão propensas à cartelização ineficiente e ao
BRAUDEL PAPERS 13
que os economistas políticos chamam de rent-seeking e
os homens comuns, de corrupção.
Por fim, e talvez com mais urgência, precisamos
explorar criativamente como as políticas públicas
vão (ou podem ir) de encontro à formação de capital
social. Em algumas situações famosas, as políticas
públicas destruíram redes e normas sociais eficazes. As
políticas de limpeza dos bairros pobres das décadas de
1950 e 60, por exemplo, renovaram o capital físico,
mas a um custo muito alto do capital social existente.
A consolidação de agências de correio e pequenos
distritos escolares no interior do país prometeu eficácia
administrativa e financeira, mas a contabilização dos
efeitos dessas políticas sobre o capital social poderia
produzir um veredito mais negativo. Por outro lado,
iniciativas do passado como o sistema de agente agrícola
de condado, escolas comunitárias e dedução de imposto
para contribuições caritativas ilustram que o governo
tem o poder de estimular a formação de capital social.
Até mesmo uma recente proposta de lei em San Luis
Obispo, Califórnia, exigindo que todas as casas novas
tenham um vestíbulo na entrada, ilustra o poder das leis
de zoneamento de influenciar onde e como as redes se
formam.
3. O que é capital social?
Capital social refere-se a características da organização
social, tais como confiança, normas e redes, que podem
aumentar a eficácia de uma sociedade facilitando ações
coordenadas. A cooperação voluntária é mais fácil numa
comunidade que tenha herdado um estoque substancial
de capital social, na forma de normas de reciprocidade e
engajamento cívico.
As redes de engajamento cívico constituem uma
forma essencial de capital social. Quanto mais densas são
estas redes numa comunidade, com maior probabilidade
seus cidadãos serão capazes de cooperar para o benefício
mútuo. As redes de engajamento cívico — tais como
associações de moradores, sociedades corais, círculos
de crédito rotativo, cooperativas, clubes esportivos e
partidos de massa — representam interação horizontal
voluntária.
A confiança exigida para sustentar a cooperação não
é cega. Confiança compreende uma previsão sobre o
comportamento de um ator independente. Normas de
reciprocidade generalizada e redes de engajamento cívico
De Robert D. Putnam, Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy. Princeton Universityy Press, 1992
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O conceito de “sociedade civil” desempenhou um
papel central no recente debate global sobre as pré-
condições para a democracia e a democratização. Nas
democracias recentes como o Brasil, essa expressão
chamou apropriadamente a atenção para a necessidade
de fomentar a vida cívica em solos tradicionalmente
inóspitos ao auto-governo. Nas democracias estabelecidas,
ironicamente, um número crescente de cidadãos está
questionando a eficácia de suas instituições públicas no
momento em que a democracia liberal venceu no campo
de batalha ideológico e geopolítico.
Nos Estados Unidos, pelo menos, há motivos para
suspeitar que esse desarranjo democrático pode estar
ligado a uma erosão ampla e contínua do engajamento
cívico que começou há um quarto de século. No topo
de nossa agenda deveria estar a questão de se uma erosão
comparável do capital social pode estar em andamento
em outras democracias avançadas, talvez em diferentes
formas institucionais e comportamentais. No topo
da agenda política dos Estados Unidos deveria estar a
questão de como reverter essas tendências adversas em
conexão social, restaurando assim o engajamento cívico
e a confiança cívica.
estimulam a confiança social e a cooperação porque
reduzem os incentivos à defecção, reduzem a incerteza e
fornecem modelos para a cooperação futura.
A confiança em si mesma é uma propriedade
emergente do sistema social, tanto quanto um atributo
pessoal. Os indivíduos são capazes de ser confiantes
(e não apenas ingênuos) devido às normas e redes
sociais dentro das quais estão encaixadas suas ações. Os
estoques de capital social, tais como confiança, normas e
redes, tendem a se auto-reforçar e acumular. Os círculos
virtuosos resultam em equilíbrio social com altos níveis
de cooperação, confiança, reciprocidade, engajamento
cívico e bem-estar coletivo. Ao contrário, a ausência
desses traços na comunidade incívica é também auto-
reforçante. Defecção, desconfiança, tergiversação,
exploração, isolamento, desordem e estagnação
intensificam-se mutuamente em um miasma sufocante
de círculos viciosos. Tal como todos os bens públicos, o
capital social tende a ser subvalorizado e subfornecido
por agentes privados.
BRAUDEL PAPERS 14
 4. Capital social e inflação no Brasil
Norman Gall
O ensaio de Robert Putnam sobre “Capital social e
democracia” coloca o problema da erosão das relações
face-a-face — em famílias, escolas e comunidades — que
assumem as responsabilidades primárias e geram o capital
social necessário para operar sociedades complexas.
Uma sociedade complexa é uma comunidade de gente
realizando atividades especializadas, coordenadas por
vários tipos de interação entre forças de mercado e um
aparato formal de estado. O progresso do conhecimento,
especialmente nos dois últimos séculos, fortaleceu a
eficiência e a coesão das sociedades complexas. A beleza
e o sucesso da complexidade está no desenvolvimento da
espontaneidade e do controle dentro de uma comunidade
dinâmica e perecível que, tal como os indivíduos, é
histórica e biologicamente única.
A obra pioneira de Putnam sobre capital social
examina a conexão entre unidades maiores e menores das
sociedades complexas e adverte que o enfraquecimento
das instituições comunitárias solapa a força da
democracia. Ele descreve a diminuição de capital social
nos EUA, um líder mundial em graus de engajamento
cívico e confiança social, bem como em renda per
capita.
No Brasil, a falta de engajamento cívico enfraquece
o desenvolvimento político. O trabalho de Putnam
encaixa-se na questão levantada pelo presidente
Fernando Henrique Cardoso que, ao propor as reformas
constitucionais, afirmou que, com o estabelecimento da
democracia, “paralelamente à reconstrução institucional,
o Brasil passou por uma mudança a nível de sociedade.
Hoje o clamor não é só pela liberdade, é pelo direito,
que é uma coisa um pouco diferente da atmosfera de
liberdade. E esta existe, mas o clamor pelos direitos e
a capacidade de organização da própria sociedade civil
são alguma coisa de notável”. A débil capacidade da
sociedade civil brasileira de se organizar foi comprovada
em décadas de inflação crônica e escalada da violência.
Quais são as exigências culturais para que uma
sociedade complexa se organize dentro do capitalismo
e da democracia? Na tradição de Adam Smith, o
prêmio Nobel F.H Hayek escreveu: “Quase todos nós
servimos a gente que não conhecemos e cuja existência
até ignoramos; e por nossa vez, vivemos de serviços
de outras pessoas de quem nada sabemos. Tudo isso
Norman Gall é diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial
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é possível porque vivemos dentro de uma grande
estrutura de instituições e tradições — econômicas,
legais e morais — nas quais nos encaixamos ao obedecer
certas regras de conduta que jamais fizemos e que jamais
compreendemos no sentido em que compreendemos de
que modo funcionam as coisas que fabricamos”.
O fenômeno da cooperação humana permanece um
mistério. Filósofos, economistas e cientistas não foram
capazes de nos dar explicações claras. Quão importante
são as relações comunitárias face-a-face? Não vacilamos
em identificar a televisão e a necessidade e vontade das
mulheres de trabalhar como forças destrutivas de nossas
comunidades e de nossa cultura. Com freqüência,
deixamos de reconhecer o poder de informação e
comunicação mobilizado por essas inovações. As
mulheres que trabalham fora do lar e a televisão são
agora fontes decisivas de informação para lares e
empresas. Assistir ao noticiário noturno da TV tomou-
se um ritual nacional nos Estados Unidos, no Brasil e
em muitos outros países. A televisão cria comunidades
instantâneas nacionais e internacionais, não apenas para
jogos da Copa do Mundo, a caçada de O. J. Simpson
pelas vias expressas de Los Angeles e a morte de Ayrton
Senna, como também para eventos políticos como o
assassinato de Kennedy em 1963, a doença e morte de
Tancredo Neves em 1985 e a batalha pelo parlamento
russo em 1993.
Serão esses laços mais vitais que as relações
comunitárias face-a-face que, segundo Putnam, estão
sendo descartadas? Não sabemos. Porém, sabemos que
atualmente os cidadãos, apesar de todas as deficiências
educacionais, estão recebendo informações melhores
para tomar decisões públicas. Embora possamos
discordar de políticas específicas para criminalidade,
saúde e tributação, a comunicação entre os governos
democráticos e seus cidadãos melhorou muito em
décadas recentes. Enquanto, em algumas áreas, a ação
do governo tem levado a uma comunicação carregada
de interesses de grupos de pressão, duas tendências bem-
vindas apareceram nas últimas décadas em conseqüência
do engajamento cívico mais forte, tanto nacional
como internacionalmente. Uma delas é que as grandes
potências estão cooperando mais e evitando guerras de
maiores proporções. A segunda é que a qualidade das
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finanças públicas aumentou muito sob a pressão dos
cidadãos, tanto nos países ricos como nos pobres nas
duas últimas décadas. Um dos frutos mais espetaculares
desse progresso é o eclipse da inflação crônica na
América Latina desde 1985. Governos eleitos superaram
o pesadelo da hiperinflação enquanto aumentava o
respeito pelos lideres democráticos.
Essa estabilidade está sendo testada pela atual crise
mexicana e suas ramificações no Brasil, na Argentina
e em outros países. Estamos aprendendo mais uma
vez que a estabilidade não é uma condição natural
da sociedade humana. A cooperação é um processo
dinâmico de adaptação contínua que envolve um certo
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custo. Devemos ou aceitar esse custo, ou enfrentar as
dificuldades maiores de uma maior desordem.
No Brasil, como em outros lugares, a estabilidade dos
preços tornou-se essencial para a estabilidade política.
No sobe-desce das pesquisas de opinião pública, a
inflação fornece o indicador mais forte de como o povo
se sente em relação à qualidade do capital social e da
administração pública. O destino dos líderes depende
da questão da inflação, como vimos com o sucesso de
Fernando Henrique, que chegou à Presidência montado
no Plano Real. Ele e o povo brasileiro sabem que não
haverá justiça, estabilidade ou capital social se ressurge
a inflação.
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