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1 STRECK, Lenio. E o que seria a discricionariedade transparente do ministro
Roberto Barroso?. Conjur de 26.02.2018.
plenário, mas que isso seria devido a formação dos juízes, pois estariam
circunstancialmente inseridos:
“na tradição romano-germânica, [e que] ainda não se
adaptaram à cultura de respeito aos precedentes, que é uma
novidade trazida do direito anglo-saxão. O problema, que é
residual, em breve estará superado.”8
Para o professor Barroso, o problema restringir-se-ia à formação dos
juízes, mas entre o que foi dito, e a realidade, parece haver um universo de
distancia. E o universo que distancia realidade e fala, é animado por dados e
historicidade que não podem ficar de fora de qualquer análise minimamente
séria sobre a construção de nossa identidade, enquanto tradição jurídica,
permeada por muitas e inúmeras influencias.
3. A (DES)NOVIDADE DO COMMOM LAW E NOSSO CONFLITO DE
IDENTIDADE
O professor Barroso pareceu sugerir, dentre outras coisas, que nós agora
estivéssemos inseridos no sistema de commom law, numa transição de saída do
sistema romano germânico (ou civil law). Até seria verdade se o professor
Barroso estivesse pronunciando sua fala em 1890, por conta do art. 386 do
decreto 848, de 1890, mas mesmo assim não seria de todo exata a sua
manifestação, por variados motivos.
Há uma muito parecida complexidade em ambos os sistemas (civil law-
common law), que embora sejam de origens diferentes, permitem muitas
observações aproximativas, pois as distinções podem ser menores do que
costumamos refletir.9
Se falássemos “apenas” sobre o Processo Civil, em termos de reformas,
os americanos preferiram reformar sua norma federal geral que regula o sistema
procedimental, com aperfeiçoamento de institutos a partir de indagações
empíricas. No caso brasileiro, alteramos de forma drástica pela terceira vez as
normas gerais federais de processo civil (1939-1973-2015) embora em menos
tempo do que dura o sistema americano (1934-2018).
E a mudança necessária, pode necessitar ocorrer não apenas no plano
das mentalidades. Há quem critique as várias reformas inerentes –
especificamente - ao Poder Judiciário brasileiro, da qual o novo CPC de 2015
seria uma espécie ou fragmento, sob o fundamento de que inexistiria uma crise
8 BARROSO, Luís Roberto. 'Operação Abafa' tenta barrar avanços do STF. Ilustríssima,
específica desse Poder, mas sim do Estado brasileiro, e que qualquer tentativa de
reforma que se restrinja ao Poder Judiciário seria de todo inoperante, aliado ao
fato de que haveria a necessidade, também, de se ter em conta que há uma
‘infecção externa’, vale dizer, uma força incidente e preponderante do econômico
e do político sobre o direito.10
Em termos do que nossa doutrina chama de ‘constituição analítica’, há a
crítica de que tal faceta nos deu uma espécie de ‘catálogo telefônico
constitucional’, em que tudo está constitucionalizado, e que ao lado da
convivência entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade, uma
suposta ‘incompatibilidade de gêneros’, obrigando a criação de óbices para o
jurisdicionado, que ao lado da centralização política (que traz consigo
centralização legislativa), nos obrigaria a corrigir os problemas de nosso
federalismo para resolvermos o problema dos recursos de índole extraordinária,
mas preferimos criar óbices para a admissibilidade recursal.11
As preferências de institucionalização e reforma legislativa com vistas a
‘filtragem’ e implemento de óbices aos julgamentos de ações e recursos podem
ser ideias antigas, agravadas com o decorrer dos anos, pois há muito se fala em
crise do Recurso Extraordinário, nascido sem nome, e portanto inominado,
através do Decreto 848, de 1890, e assim mantido sob a Constituição de 1891 e
sobe a reforma de 1926, e o acúmulo recursal sempre foi o leitmotiv reformista:
‘é a sobrecarga decorrente dos recursos extraordinários a pedra de toque de
quase todas as sugestões reformistas’.12
Se a função ou finalidade do Recurso Extraordinário, a partir dos
julgamentos do STF antes de 1988, segundo pensamento clássico, era a de
‘tutelar a autoridade e a unidade do direito federal’, e assim ‘sendo
10 Baseando suas observações críticas em duas obras de autores específicos, Giovani
Sartori (Engenharia Constitucional: Como mudam as constituições) e Adam
Przeworski (Democracia e mercado no leste europeu e na América Latina), alega que
“Institucionalizamos uma democracia social, a mais ambiciosa do mundo, quando
jamais fôramos sequer uma incipiente democracia social. Constitucionalizamos
valores e objetivos já agredidos de modo selvagem pela globalização plenamente
triunfante em fins da década de oitenta e lhes emprestamos o caráter de cláusulas
pétreas. Aprisionamos tudo na camisa de força da constitucionalização,
transformando nosso Pacto Máximo em um caleidoscópio de pretensões ingênuas.
Fizemos de nossa Constituição um código do trabalho, um estatuto do servidor
público, uma lei orgânica da magistratura e do ministério público e outros apêndices,
um mini direito de família, nem esquecemos os silvícolas, os idosos, os deficientes
físicos, as mulheres, os infantes. Só deixamos de fora os mortos, por não termos tido a
suficiente fé de que nosso poder constituinte seria capaz de ressuscitá-los”. Cfr.
CALMON DE PASSOS, J.J. Reforma do Poder Judiciário. Em: CALMON DE PASSOS, J.J.
Ensaios e Artigos, v. I. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 484.
11 CALMON DE PASSOS, J.J. Ensaios e Artigos, v. I. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 488-
489.
12 VILLELA, José Guilherme. Recurso extraordinário. Revista de Informação
Legislativa, ano 23, n. 89, jan.-mar., 1986. p. 237-238.
eminentemente política’,13 após 1988 esse papel passou a ser compartido com o
STJ, com a extinção do Tribunal Federal de Recursos e a criação dos Tribunais
Regionais Federais.
Com essa operação de engenharia constitucional, trocamos um tribunal
(TFR) por dois (STJ e TRF’s), com a realocação de algumas competências do STF.
Antes de 1946, no entanto, o STF exercia a função de tribunal de 2ª instância
para as causas de interesse da União. Entre 1946 e 1988, a segunda instância da
União foi exercida pelo então existente Tribunal Federal de Recursos.
Nossa história tem sido a de tentar encontrar a maneira mais adequada
de dar (ou de conter) a vazão do crescente número de processos, com efetividade
e celeridade. E esta história jurídico-processual muitas vezes tem utilizado de
meios já testados, como no singelo exemplo acima, de primeiro transferir do STF
para o TRF certas competências de julgamento, e de num momento posterior
transferir do STF para o STJ algumas outras competências.
Ao lado de manter um recurso que seja a um só tempo o mantenedor da
autoridade e da unidade do direito, observamos em 2004 a criação da Súmula
Vinculante, tida como instituto jurídico de caráter político14, com vistas a tentar
tornar vinculantes (obrigatórias) as decisões do STF, mas algo parecido pode ser
visto, mutatis mutandis, no famoso e antigo instituto dos Assentos, de origem
portuguesa e com raízes remotas nas ordenações Manuelinas e Filipinas, ao lado
de uma tentativa de impor força obrigatória às decisões do STF na década de
1930 através da edição do Decreto nº 23.055, de 9 de agosto de 1933.
Antes disso, não esqueçamos, a observação de que muitos dos
mecanismos que adotamos seriam uma tentativa de suprir a falta ou carência do
“stare decisis”, quando nós importamos o modelo do common law como fonte
subsidiária do direito, tal como previsto no art. 386 do Decreto 848/1890, mas
importamos apenas o modelo e o ideário (tal como se pode observar na
exposição de motivos daquele Decreto), sem nos darmos conta de estávamos
importando algo sem saber do que efetivamente se tratava, rompendo com uma
tradição jurídica de forma atabalhoada sem as cautelas mínimas de qualquer
importação jurídica.
Pior, fizemos a importação a partir de uma síndrome de “americanismo”,
que disse expressamente que estávamos adotando as fontes dos países
civilizados, nomeadamente a equity e o commom law dos Estados Unidos da
América do Norte, numa transposição acrítica, motivada pelo enamorado desejo
de emular, como num rompante de paixão de namorados, sem nos atentarmos
para nossas próprias características, e para nossa condição de país submisso e
colonizado, mental, política e juridicamente.
13 VILLELA, José Guilherme. Recurso extraordinário. Revista de Informação
Legislativa, ano 23, n. 89, jan.-mar., 1986. p. 237-238.
14 NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança Jurídica e Súmula Vinculante. São Paulo:
Saraiva, 2010; NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança Jurídica. Revista dos
estudantes de direito da UnB, v. 6, 2007.
Tal reflexão nos leva a considerar aquilo que José Levi Mello do Amaral
Junior15 identificou como 8 sucedâneos normativos ao stare decisis; e isto porque
teríamos importado o commom law, sem trazer com ele o mecanismo da cultura
jurídica anglo-saxônica (como se fosse possível) que representa seu verdadeiro
coração: o stare decisis.
Para suprir a suposta carência, teríamos criado os seguintes sucedâneos:
(i) a competência do Senado para suspender no todo ou em parte Lei declarada
inconstitucional no controle difuso; (ii) a regra do full bench para o juízo
colegiado na declaração de inconstitucionalidade, por maioria absoluta; (iii) a
representação interventiva; (iv) a adoção do controle concentrado e abstrato de
normas, através da EC 16/65, (v) e já sob a égide da constituição de 1988, o
efeito vinculante das decisões do STF; (vi) as Súmulas Vinculantes; (vii) a
adoção do mecanismo da repercussão geral para o conhecimento do recurso
extraordinário, e sob o prisma do Novo Código de Processo Civil uma infinitude
de outros “sucedâneos” pela suposta carência do “stare decisis”.
É bem verdade, entretanto, que antes de José Levi, alguns autores como
Mauro Cappelletti16 e Keith Rosenn17 já haviam feito reflexão semelhante, citados
por nós em trabalho anterior, ao realizarem um exercício de perplexidade e de
reflexão. Não podemos dizer que nossos problemas sejam apenas estes, quais
sejam, transposição de modelo jurídico de maneira inadequada e permanente
tentativa de (inconscientemente) suprir a suposta carência dos mecanismos.
Trata-se de um problema de matriz teórica do direito, mais
especialmente vinculado a determinadas áreas, como a separação de poderes e o
controle de constitucionalidade. Precisamos refletir sobre a institucionalização
do judicial review não apenas no Brasil, mas na América Latina como um todo.
Como explicar que uma região caracterizada pela crônica instabilidade
política, aliada a existência de constituições de vida curta, de países inseridos na
tradição do civil law, teria sido solo tão infértil para o enraizamento das
sementes de Marbury v. Madson, como apontado por Keith Rosenn18. Segundo
sua análise, inteiramente baseada em Mauro Cappelletti, o desenvolvimento do
controle concentrado de constitucionalidade (centralized judicial review) foi uma
resposta para três dificuldades que os países de civil law enfrentaram ao tentar
implementar o controle difuso (decentralized judicial review) desenvolvido em
um país de common law.
Primeiro, os países de civil law teriam aderido mais rigidamente à
doutrina da separação de poderes, uma vez que a declaração de
inconstitucionalidade da lei é percebida como uma função política, e, portanto,
incompatível com o poder judiciário de sua tradição. Segundo, os países de civil
15 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução
brasileira determinada pela falta do stare decisis. Revista dos Tribunais, v. 101, n.
920, p. 133–149, jun., 2012.
16 CAPPELLETTI, Mauro. Judicial Review in the Contemporary World, 1971.
17 ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35,
1974.
18 ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35, 1974.
alguém se perder! Pelo menos, estar perdido no espaço mantém você ocupado”. Cfr.
ADAMS, Douglas. Vida, Universo e sabe lá o que mais. Brasília: Brasiliense, 1988, p.
2.
anos de 1893 e 1934, mas com a criação da Universidade de São Paulo, a Faculdade
foi incorporada à USP juntamente com a sua Revista, e a partir de então passou a ser
publicada com o título de Revista de Direito da Universidade de São Paulo. Observa-se
que a Revista da Faculdade de Direito de São Paulo publicou, ao todo, 33 volumes,
sendo 29 volumes individuais anuais de 1893-1933, e no ano de sua
extinção/transformação, em 1934 publicou 4 números no volume de nº 30. Houve,
no entanto, um interstício no qual não ocorreram publicações entre 1914 e 1925, por
atraso. Menciona-se a seguinte informação: “Tendo ficado em atrazo a publicação da
Revista, foi resolvido reunir em um só volume a matéria relativa aos annos de 1914 a
1925. A Redacção deixa aos Autores dos artigos nella publicados a maior liberdade
de doutrina.”. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rfdsp/issue/archive?issuesPage=1#issues>, acesso em
27.02.2018. Por outro lado, a partir de 1935 aos dias atuais retomaram-se as
publicações, ora com volumes anuais divididos em 2, 3 ou 4 números. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rfdusp/issue/archive?issuesPage=4#issues>, acesso
em 27.02.2018.
24 ARRUDA, João. Simplificação processual. Revista da Faculdade de Direito de São
26 É importante fazer menção ao Acórdão nº 810/1993, do TC de Portugal, que declarou
germânico (civil law), além de sua não adaptação ao “novo” modelo dos
precedentes do commom law.
Dizer isso, como o professor Barroso, é como perder o trem da história,
mas principalmente, fazer do Supremo o “traidor da tradição”, e não o seu
guardião, como parece ser o caso. Outrossim, é desconsiderar o fato de termos
inúmeras influencias que complexificam nossa identidade em termos de
perfilhamento às chamadas famílias do direito, e portanto, como consequência,
para cada proposta simplificadora sem considerar adequadamente as
complexidades, teremos (provavelmente) uma proposta equivocada.
O argumento parece apostar em uma “commonlização” do direito pátrio,
como se fosse uma novidade ou algo parecido, mas deixou de lembrar que nossa
tradição jurídica é marcada por um conflito de identidade mais antigo e
complexo, desde a tentativa de ruptura, operada (como já mencionado) pela
segunda parte do art. 386, do Decreto 848 de 1890, que tentou trazer como fonte
o commom law dos Estados Unidos, um dos berços da cultura dos precedentes,
mas não nos demos conta, e lá se vão 128 anos, que não se consegue transportar
uma cultura jurídica numa transposição [mixagem] de ideias de maneira
equivocada.
É possível que também tenha olvidado nossa tentativa pretérita de
conferir “obrigatoriedade” às decisões do Supremo, com a antiga norma que
determinava “conferir força normativa à jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal”, por meio do Decreto no 23.055, de 9 de agosto de 1933, embora tal
diploma normativo não tenha prevalecido, segundo o falecido jurista Barros
Monteiro, porque por mais insistente que seja a jurisprudência, ela “não
constitui norma imperativa, a cujo comando não se possa fugir”, pois “o único
compromisso que teriam os juízes [ainda segundo Barros Monteiro], é com a lei e
a própria consciência”29.
5. O VELHO “NOVO” ESTADO NOVO “REFUNDADO”?
O que o professor Luís Barroso pareceu sugerir, considerando a parte
final de seu artigo, propositivo de um suposto papel iluminista para o Supremo, é
uma espécie de substituição da palavra “lei” por “precedente”, sem se atentar
para o fato de que permanecerá o problema do desapego às fontes tradicionais,
aliado a um pendor pelo livre convencimento motivado, que por sua vez se liga
ao famoso “decido conforme minha consciência”, pouco importando para isso a
tradição jurídica a que vinculado o ordenamento30.
Se não compreendermos adequadamente o conflito de identidade que
marca a construção e a desconstrução de nossa tradição jurídica, modelando
29 MONTEIRO, Washington de Barros. Da jurisprudência. Revista da Faculdade de
Direito da USP, v. 56, n. 2, 1961.
30 STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre:
33 STRECK, Lenio. Crise de Paradigmas Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina
36 STEVENSON, Robert Louis. O Ladrão de Cadáveres. Em: COSTA, Flávio Moreira da. Os