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“Novo”

Velho Estado [Jurídico] Novo (ou sobre “os


juristas que roubavam cadáveres”)




Thiago Aguiar de Pádua
Professor de Direito Constitucional e Civil (UniCEUB e UDF)
Doutorando e Mestre em Direito
Ex-Assessor de Ministro do STF
Advogado Constitucionalista


“Institucionalizamos uma democracia social, a mais
ambiciosa do mundo, quando jamais fôramos sequer
uma incipiente democracia social. Constitucionalizamos
valores e objetivos já agredidos de modo selvagem pela
globalização plenamente triunfante em fins da década
de oitenta e lhes emprestamos o caráter de cláusulas
pétreas. Aprisionamos tudo na camisa de força da
constitucionalização, transformando nosso Pacto
Máximo em um caleidoscópio de pretensões ingênuas.
Fizemos de nossa Constituição um código do trabalho,
um estatuto do servidor público, uma lei orgânica da
magistratura e do ministério público e outros
apêndices, um mini direito de família, nem esquecemos
os silvícolas, os idosos, os deficientes físicos, as
mulheres, os infantes. Só deixamos de fora os mortos,
por não termos tido a suficiente fé de que nosso poder
constituinte seria capaz de ressuscitá-los”.




1. INTRODUÇÃO

Se por um lado, como na epígrafe de J. J. Calmon de Passos, não tivemos
suficiente fé em nossa ambição constitucional para ressuscitar os mortos, por
outro lado, neste aniversário de 30 anos da Constituição de 1988, e de 100 anos
da Faculdade de Direito do Maranhão, só podemos comemorar da maneira mais
crítica possível, em razão de termos nos tornado uma espécie de “ladrões de
cadáveres”, conforme o presente artigo aborda a partir do famoso conto de
Stevenson.
É com elevada honra que recebi o convite formulado pelo estimado
professor e jurista maiúsculo José Rossini Correa para participar desta efeméride
tão relevante para a tradicional e sempre renovada Faculdade de Direito do
Maranhão, em seu centenário, que deve merecer todas as atenções para a força

de sua tradição, como polo formador de juristas e políticos que sempre


estiveram à frente das lideranças deste belíssimo Estado, para o bem e para o
mal.
Neste artigo, cuidarei de refletir sobre o fato de que nossos juristas tem
se transformado em “ladrões de cadáveres”, na exata medida da metáfora de
Robert Louis Stevenson, e o pano de fundo para esta constatação é a nossa
aposta no “livre convencimento motivado”, na discricionariedade e no desapego
da crítica mais profunda.
Para isso, o exemplo colhido de recente artigo “defensivo”, escrito pelo
professor Luís Roberto Barroso, no qual ele propõe que se use
“discricionariedade transparente”, para que o STF possa escolher os recursos
que vai julgar, algo que recebeu a devida crítica do professor Lenio Streck, que
comparou a proposta de Barroso a “colocar buzina em avião”, pois conferir
transparência a discricionariedade é um “quase-engodo”: “Como posso controlar
algo que, em si, depende de um ato discricionário? Garantir transparência em um
ato discricionário é colocar buzina em avião” 1.
É que nossa preocupação em “resolver problemas” sempre parece estar
ligada a uma preocupação em diminuir o número de processos, do que em
garantir a efetividade das normas Constitucionais, algo que se demonstra pela
engenharia institucional normativa, que prefere criar cirandas e óbices para o
acesso recursal aos Tribunais, com julgamentos em lista, que passam longe de
atender aos comandos constitucionais, com súmulas e decisões que caracterizam
uma “jurisprudência defensiva”.
Se por jurisprudência defensiva podemos dizer que os Tribunais em
geral, (STF e o STJ em particular), se defendem contra os jurisdicionados, quem
defenderá os jurisdicionados contra atos discricionários e arbitrários destes
tribunais?
É neste sentido que o presente artigo pretende realizar uma outra
reflexão crítica sobre outra parte do mesmo artigo do professor Luís Roberto
Barroso, com vistas a ampliar o diálogo, e convidar para o debate para que os
tribunais passem a pensar de um jeito constitucionalmente mais eficaz, desde o
ponto de vista do adensamento da força normativa do texto constitucional.


2. ENTRE PARLAMENTOS, TRIBUNAIS E INVERSÕES DE PAPÉIS

O grave momento pelo qual atravessa nossa sociedade é oportuno para
uma série de reflexões sobre o papel do direito, da política e das instituições
democráticas. Debatendo com o colega e professor Eduardo Mendonça, tive a
oportunidade de dizer recentemente que não é papel do Supremo fingir exercer
diante do espelho os papéis majoritário e contramajoritário, nem que seja com


1 STRECK, Lenio. E o que seria a discricionariedade transparente do ministro
Roberto Barroso?. Conjur de 26.02.2018.

os trajes eufemistas de “poder contrarepresentativo”, exceto se estivéssemos


diante do espelho invertido de Alice, desde o País da Democracia2.
Também buscando diálogo há alguns anos com o professor Luís Roberto
Barroso, critiquei a perspectiva de que o Supremo eventualmente exercesse o
papel iluminista, nos exatos termos de quem não enxerga no texto constitucional
guarida para metáfora sobre ativismo judicial do bom e ativismo judicial do
ruim, como se fosse colesterol, senão como a vulgata da judicialização da
política3.
Recentemente, a propósito, o professor Conrado Hübner Mendes
escreveu denso texto4, com críticas a um grande número de problemas que
enxergou no atual exercício das atribuições institucionais do Supremo, sendo
respondido pelo professor Lenio Streck5, que vislumbrou análise política, sem
resquícios mínimos de enfrentamento dos problemas jurídicos, realmente
relevantes.
Agora, também recentemente, o professor Luís Roberto Barroso 6
analisou as críticas de Conrado, respondendo com propostas e soluções, dentre
as quais é preciso uma análise mais densa, e sobre a qual cuidarei de fazer
algumas breves reflexões, de modo a contribuir com o debate.
Cuida-se de resposta à alegação crítica de Conrado, no sentido de que:
“o argumento constitucional do Supremo já não vale o
quanto pesa e tornou-se embrulho opaco para escolhas de
ocasião. Basta olhar com lupa as incoerências na
fundamentação de casos juridicamente semelhantes que
recebem decisão diversa. A expressão "jurisprudência do
STF" sobrevive como licença poética, pois perdeu
capacidade de descrever ou nortear a prática decisória do
tribunal. Perdeu dignidade conceitual e até mesmo
retórica.”7
Ao responder, o professor Barroso mencionou que seria um exagero,
pois apenas um pequeno número de ministros deixa de seguir as decisões do

2 PÁDUA, Thiago Aguiar. Alice no país da democracia, ou através do espelho parlamentar

da jurisdição constitucional: um diálogo com o professor Eduardo Mendonça sobre o


neotribunado da plebe. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, 2017.
3 PÁDUA, Thiago Aguiar. A Expressão ativismo judicial, como cliché constitucional, deve

ser abandonada: uma análise crítica. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5.


n. 2, 2015.
4 HÜBNER MENDES, Conrado. Na prática, ministros do STF agridem a democracia,
escreve professor da USP. Ilustríssima, Folha de SP, de 28.01.2018.
5 STRECK, Lenio. O perigo da simplista crítica de que "tudo é culpa do STF", Opinião,

Folha de SP, de 04.02.2018.


6 BARROSO, Luís Roberto. 'Operação Abafa' tenta barrar avanços do STF. Ilustríssima,

Folha de SP, de 23.02.2018.


7 HÜBNER MENDES, Conrado. Na prática, ministros do STF agridem a democracia,
escreve professor da USP. Ilustríssima, Folha de SP, de 28.01.2018.

plenário, mas que isso seria devido a formação dos juízes, pois estariam
circunstancialmente inseridos:
“na tradição romano-germânica, [e que] ainda não se
adaptaram à cultura de respeito aos precedentes, que é uma
novidade trazida do direito anglo-saxão. O problema, que é
residual, em breve estará superado.”8
Para o professor Barroso, o problema restringir-se-ia à formação dos
juízes, mas entre o que foi dito, e a realidade, parece haver um universo de
distancia. E o universo que distancia realidade e fala, é animado por dados e
historicidade que não podem ficar de fora de qualquer análise minimamente
séria sobre a construção de nossa identidade, enquanto tradição jurídica,
permeada por muitas e inúmeras influencias.


3. A (DES)NOVIDADE DO COMMOM LAW E NOSSO CONFLITO DE
IDENTIDADE

O professor Barroso pareceu sugerir, dentre outras coisas, que nós agora
estivéssemos inseridos no sistema de commom law, numa transição de saída do
sistema romano germânico (ou civil law). Até seria verdade se o professor
Barroso estivesse pronunciando sua fala em 1890, por conta do art. 386 do
decreto 848, de 1890, mas mesmo assim não seria de todo exata a sua
manifestação, por variados motivos.
Há uma muito parecida complexidade em ambos os sistemas (civil law-
common law), que embora sejam de origens diferentes, permitem muitas
observações aproximativas, pois as distinções podem ser menores do que
costumamos refletir.9
Se falássemos “apenas” sobre o Processo Civil, em termos de reformas,
os americanos preferiram reformar sua norma federal geral que regula o sistema
procedimental, com aperfeiçoamento de institutos a partir de indagações
empíricas. No caso brasileiro, alteramos de forma drástica pela terceira vez as
normas gerais federais de processo civil (1939-1973-2015) embora em menos
tempo do que dura o sistema americano (1934-2018).
E a mudança necessária, pode necessitar ocorrer não apenas no plano
das mentalidades. Há quem critique as várias reformas inerentes –
especificamente - ao Poder Judiciário brasileiro, da qual o novo CPC de 2015
seria uma espécie ou fragmento, sob o fundamento de que inexistiria uma crise

8 BARROSO, Luís Roberto. 'Operação Abafa' tenta barrar avanços do STF. Ilustríssima,

Folha de SP, de 23.02.2018.


9 FRANK, Jerome. Civil Law Influences on the Common Law - Some Reflections on
‘Comparative’ and ‘Constrastive Law’. University of Pennsylvania Law Review, vol.
104, n. 7, may-1956; FRANK, Jerome. La influencia de Derecho Europeu
Continental em el ‘Common Law’ Algunas reflexiones sobre el Derecho
‘comparado’ e ‘contrastado’. Barcelona: Bosch casa editorial, 1957.

específica desse Poder, mas sim do Estado brasileiro, e que qualquer tentativa de
reforma que se restrinja ao Poder Judiciário seria de todo inoperante, aliado ao
fato de que haveria a necessidade, também, de se ter em conta que há uma
‘infecção externa’, vale dizer, uma força incidente e preponderante do econômico
e do político sobre o direito.10
Em termos do que nossa doutrina chama de ‘constituição analítica’, há a
crítica de que tal faceta nos deu uma espécie de ‘catálogo telefônico
constitucional’, em que tudo está constitucionalizado, e que ao lado da
convivência entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade, uma
suposta ‘incompatibilidade de gêneros’, obrigando a criação de óbices para o
jurisdicionado, que ao lado da centralização política (que traz consigo
centralização legislativa), nos obrigaria a corrigir os problemas de nosso
federalismo para resolvermos o problema dos recursos de índole extraordinária,
mas preferimos criar óbices para a admissibilidade recursal.11
As preferências de institucionalização e reforma legislativa com vistas a
‘filtragem’ e implemento de óbices aos julgamentos de ações e recursos podem
ser ideias antigas, agravadas com o decorrer dos anos, pois há muito se fala em
crise do Recurso Extraordinário, nascido sem nome, e portanto inominado,
através do Decreto 848, de 1890, e assim mantido sob a Constituição de 1891 e
sobe a reforma de 1926, e o acúmulo recursal sempre foi o leitmotiv reformista:
‘é a sobrecarga decorrente dos recursos extraordinários a pedra de toque de
quase todas as sugestões reformistas’.12
Se a função ou finalidade do Recurso Extraordinário, a partir dos
julgamentos do STF antes de 1988, segundo pensamento clássico, era a de
‘tutelar a autoridade e a unidade do direito federal’, e assim ‘sendo


10 Baseando suas observações críticas em duas obras de autores específicos, Giovani
Sartori (Engenharia Constitucional: Como mudam as constituições) e Adam
Przeworski (Democracia e mercado no leste europeu e na América Latina), alega que
“Institucionalizamos uma democracia social, a mais ambiciosa do mundo, quando
jamais fôramos sequer uma incipiente democracia social. Constitucionalizamos
valores e objetivos já agredidos de modo selvagem pela globalização plenamente
triunfante em fins da década de oitenta e lhes emprestamos o caráter de cláusulas
pétreas. Aprisionamos tudo na camisa de força da constitucionalização,
transformando nosso Pacto Máximo em um caleidoscópio de pretensões ingênuas.
Fizemos de nossa Constituição um código do trabalho, um estatuto do servidor
público, uma lei orgânica da magistratura e do ministério público e outros apêndices,
um mini direito de família, nem esquecemos os silvícolas, os idosos, os deficientes
físicos, as mulheres, os infantes. Só deixamos de fora os mortos, por não termos tido a
suficiente fé de que nosso poder constituinte seria capaz de ressuscitá-los”. Cfr.
CALMON DE PASSOS, J.J. Reforma do Poder Judiciário. Em: CALMON DE PASSOS, J.J.
Ensaios e Artigos, v. I. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 484.
11 CALMON DE PASSOS, J.J. Ensaios e Artigos, v. I. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 488-

489.
12 VILLELA, José Guilherme. Recurso extraordinário. Revista de Informação
Legislativa, ano 23, n. 89, jan.-mar., 1986. p. 237-238.

eminentemente política’,13 após 1988 esse papel passou a ser compartido com o
STJ, com a extinção do Tribunal Federal de Recursos e a criação dos Tribunais
Regionais Federais.
Com essa operação de engenharia constitucional, trocamos um tribunal
(TFR) por dois (STJ e TRF’s), com a realocação de algumas competências do STF.
Antes de 1946, no entanto, o STF exercia a função de tribunal de 2ª instância
para as causas de interesse da União. Entre 1946 e 1988, a segunda instância da
União foi exercida pelo então existente Tribunal Federal de Recursos.
Nossa história tem sido a de tentar encontrar a maneira mais adequada
de dar (ou de conter) a vazão do crescente número de processos, com efetividade
e celeridade. E esta história jurídico-processual muitas vezes tem utilizado de
meios já testados, como no singelo exemplo acima, de primeiro transferir do STF
para o TRF certas competências de julgamento, e de num momento posterior
transferir do STF para o STJ algumas outras competências.
Ao lado de manter um recurso que seja a um só tempo o mantenedor da
autoridade e da unidade do direito, observamos em 2004 a criação da Súmula
Vinculante, tida como instituto jurídico de caráter político14, com vistas a tentar
tornar vinculantes (obrigatórias) as decisões do STF, mas algo parecido pode ser
visto, mutatis mutandis, no famoso e antigo instituto dos Assentos, de origem
portuguesa e com raízes remotas nas ordenações Manuelinas e Filipinas, ao lado
de uma tentativa de impor força obrigatória às decisões do STF na década de
1930 através da edição do Decreto nº 23.055, de 9 de agosto de 1933.
Antes disso, não esqueçamos, a observação de que muitos dos
mecanismos que adotamos seriam uma tentativa de suprir a falta ou carência do
“stare decisis”, quando nós importamos o modelo do common law como fonte
subsidiária do direito, tal como previsto no art. 386 do Decreto 848/1890, mas
importamos apenas o modelo e o ideário (tal como se pode observar na
exposição de motivos daquele Decreto), sem nos darmos conta de estávamos
importando algo sem saber do que efetivamente se tratava, rompendo com uma
tradição jurídica de forma atabalhoada sem as cautelas mínimas de qualquer
importação jurídica.
Pior, fizemos a importação a partir de uma síndrome de “americanismo”,
que disse expressamente que estávamos adotando as fontes dos países
civilizados, nomeadamente a equity e o commom law dos Estados Unidos da
América do Norte, numa transposição acrítica, motivada pelo enamorado desejo
de emular, como num rompante de paixão de namorados, sem nos atentarmos
para nossas próprias características, e para nossa condição de país submisso e
colonizado, mental, política e juridicamente.


13 VILLELA, José Guilherme. Recurso extraordinário. Revista de Informação
Legislativa, ano 23, n. 89, jan.-mar., 1986. p. 237-238.
14 NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança Jurídica e Súmula Vinculante. São Paulo:
Saraiva, 2010; NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança Jurídica. Revista dos
estudantes de direito da UnB, v. 6, 2007.

Tal reflexão nos leva a considerar aquilo que José Levi Mello do Amaral
Junior15 identificou como 8 sucedâneos normativos ao stare decisis; e isto porque
teríamos importado o commom law, sem trazer com ele o mecanismo da cultura
jurídica anglo-saxônica (como se fosse possível) que representa seu verdadeiro
coração: o stare decisis.
Para suprir a suposta carência, teríamos criado os seguintes sucedâneos:
(i) a competência do Senado para suspender no todo ou em parte Lei declarada
inconstitucional no controle difuso; (ii) a regra do full bench para o juízo
colegiado na declaração de inconstitucionalidade, por maioria absoluta; (iii) a
representação interventiva; (iv) a adoção do controle concentrado e abstrato de
normas, através da EC 16/65, (v) e já sob a égide da constituição de 1988, o
efeito vinculante das decisões do STF; (vi) as Súmulas Vinculantes; (vii) a
adoção do mecanismo da repercussão geral para o conhecimento do recurso
extraordinário, e sob o prisma do Novo Código de Processo Civil uma infinitude
de outros “sucedâneos” pela suposta carência do “stare decisis”.
É bem verdade, entretanto, que antes de José Levi, alguns autores como
Mauro Cappelletti16 e Keith Rosenn17 já haviam feito reflexão semelhante, citados
por nós em trabalho anterior, ao realizarem um exercício de perplexidade e de
reflexão. Não podemos dizer que nossos problemas sejam apenas estes, quais
sejam, transposição de modelo jurídico de maneira inadequada e permanente
tentativa de (inconscientemente) suprir a suposta carência dos mecanismos.
Trata-se de um problema de matriz teórica do direito, mais
especialmente vinculado a determinadas áreas, como a separação de poderes e o
controle de constitucionalidade. Precisamos refletir sobre a institucionalização
do judicial review não apenas no Brasil, mas na América Latina como um todo.
Como explicar que uma região caracterizada pela crônica instabilidade
política, aliada a existência de constituições de vida curta, de países inseridos na
tradição do civil law, teria sido solo tão infértil para o enraizamento das
sementes de Marbury v. Madson, como apontado por Keith Rosenn18. Segundo
sua análise, inteiramente baseada em Mauro Cappelletti, o desenvolvimento do
controle concentrado de constitucionalidade (centralized judicial review) foi uma
resposta para três dificuldades que os países de civil law enfrentaram ao tentar
implementar o controle difuso (decentralized judicial review) desenvolvido em
um país de common law.
Primeiro, os países de civil law teriam aderido mais rigidamente à
doutrina da separação de poderes, uma vez que a declaração de
inconstitucionalidade da lei é percebida como uma função política, e, portanto,
incompatível com o poder judiciário de sua tradição. Segundo, os países de civil

15 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Controle de constitucionalidade: evolução
brasileira determinada pela falta do stare decisis. Revista dos Tribunais, v. 101, n.
920, p. 133–149, jun., 2012.
16 CAPPELLETTI, Mauro. Judicial Review in the Contemporary World, 1971.

17 ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35,
1974.
18 ROSENN, Keith. Judicial Review in Latin America. Ohio State Law Journal, v. 35, 1974.

law não desenvolveram a doutrina do stare decisis, e, portanto, cada pessoa


afetada pela declaração de inconstitucionalidade precisaria ajuizar a sua própria
ação judicial, criando o ambiente propício para o surgimento de decisões
conflitantes. Terceiro, os juízes inseridos na tradição do civil law estariam em
situação incompatível para o exercício dos poderes inerentes ao judicial review,
uma vez que os tribunais supremos, no sistema da civil law, seriam grandes e
desajeitados com suas múltiplas divisões, mas, curiosamente, na América Latina,
desenvolveram-se modelos híbridos para tentar superar tais dificuldades,
ignorando matrizes teóricas e suas implicações. Para o professor Keith Rosenn, o
modelo de súmulas no Brasil, desde a década de 1960, teria o efeito análogo ao
stare decisis, numa clara confissão de que as súmulas enfraquecem o apego à
separação de poderes de nossa tradição, sem embargo de outros problemas
jurídico-teóricos que surgem da observação, trazendo a lume não apenas a
tentativa de percepção desta busca constante pelo stare decisis, mas os
problemas por trás de uma importação acrítica e inadequada, que gera mais
problemas e mais complexidades.
A presente abordagem é um misto de proto-história do direito e de
ensaio jurídico com finalidade, também, de um esboço de proposta de caminhos
para a “sistematização”. No primeiro caso, as sugestivas palavras recordadas por
Carlos Fernando Mathias e outros, sobre os riscos e os perigos da mistura da
história e do direito:
“Identifico, no momento presente, o historiador do direito
com a imagem do marinheiro, cismado na proa do seu
navio acerca do rumo a tomar, quando, em plena
imensidão oceânica, ninguém o olha, mas ele domina
perfeitamente a linha do horizonte. Talvez sentisse no
rosto a mordaz carícia daquela aragem cortante do mar,
tão bem retratada por Hans Thieme. O historiador do
direito, escreveu Thieme, é tido frequentemente entre os
juristas como um bom historiador e entre os historiadores
como um bom jurista. Representa a figura do sujeito
errante que arrosta a carga do caminheiro fronteiriço.
Incômodo aos historiadores pela sua mentalidade jurídica.
Motivo de alvoroço para os estudiosos do direito pela sua
vocação de retroagir historicamente o estado das
questões”.19
É que muitas vezes a história do direito se presta para a realização de
atividade com finalidade legitimadora e apologética, numa relação equivocada.20
Por outro lado, o tempo é o pior lugar para se perder.21 O risco se agrava, pois

19 MATHIAS, Carlos Fernando; NORONHA, Ibsen; MARCOS, Rui de Figueiredo. História

do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 5.


20 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e História: uma relação equivocada.
Londrina: Humanidades, 2004, p. 13.
21 Conforme a advertência de Douglas Adams, “o tempo é o pior lugar, digamos, para

alguém se perder! Pelo menos, estar perdido no espaço mantém você ocupado”. Cfr.
ADAMS, Douglas. Vida, Universo e sabe lá o que mais. Brasília: Brasiliense, 1988, p.
2.

conforme já se observou, aliás, as profissões ligadas ao direito são, de todas as


existentes, as que seriam mais historicamente orientadas.22
Recordemos, a propósito, um dos mais significativos escritos da Revista
da Faculdade de Direito de São Paulo 23 sobre ‘o processo’, anterior à
promulgação dos três Códigos de Processo Civil Nacionais (1939, 1973 e 2015),
da lavra de João Arruda, em 1912, quando ainda se aplicava o velho Regulamento
737, abordando alguns ‘problemas antigos’, como a demora na prestação
jurisdicional, e de como ela estava ligada ao regime de custas que então se
cobravam, quando o promotor, os oficiais de justiça e o juiz recebiam de acordo e
na intensidade da diligência a ser praticada.24
No referido artigo, João Arruda preocupa-se com costumes que seriam
inúteis, embora as leis fossem boas, e que neste panorama de nada adiantaria a
alteração legislativa. Menciona, com base em Spencer, que certos capitães e
capitalistas fugiram de certo país europeu, bastante impressionados com o fato
de que as disputas entre os particulares eram resolvidas à bala, em razão da má
distribuição da justiça. Neste sentido, o autor menciona (em 1912) que se
deveria procurar fazer qualquer coisa para que o Brasil não chegasse a tal
extremo, mas que na expressão ‘qualquer coisa’ não estaria inclusa a modificação
legislativa, mas sim a modificação dos costumes.25

22 Observa-se que a prática do Direito, dentre todas as profissões seria a mais orientada

historicamente, pois venera a tradição, o precedente, o 'pedigree', o ritual, o costume,


as práticas antigas, os textos antigos, terminologias imbuídas de arcaísmo,
maturidade, sabedoria, antiguidade, gerontocracia e cuja interpretação é concebida
como um método de recuperação da história. Cfr. POSNER, Richard. Frontiers of
Legal Theory. Cambridge: Harvard University Press, 2001, p. 145-169; POSNER,
Richard. Fronteiras da Teoria do Direito. Trad. Evandro Silva e outros. São Paulo:
Martins Fontes, 2011, p. 167-202.
23 A Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, como se sabe, foi publicada entre os

anos de 1893 e 1934, mas com a criação da Universidade de São Paulo, a Faculdade
foi incorporada à USP juntamente com a sua Revista, e a partir de então passou a ser
publicada com o título de Revista de Direito da Universidade de São Paulo. Observa-se
que a Revista da Faculdade de Direito de São Paulo publicou, ao todo, 33 volumes,
sendo 29 volumes individuais anuais de 1893-1933, e no ano de sua
extinção/transformação, em 1934 publicou 4 números no volume de nº 30. Houve,
no entanto, um interstício no qual não ocorreram publicações entre 1914 e 1925, por
atraso. Menciona-se a seguinte informação: “Tendo ficado em atrazo a publicação da
Revista, foi resolvido reunir em um só volume a matéria relativa aos annos de 1914 a
1925. A Redacção deixa aos Autores dos artigos nella publicados a maior liberdade
de doutrina.”. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rfdsp/issue/archive?issuesPage=1#issues>, acesso em
27.02.2018. Por outro lado, a partir de 1935 aos dias atuais retomaram-se as
publicações, ora com volumes anuais divididos em 2, 3 ou 4 números. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rfdusp/issue/archive?issuesPage=4#issues>, acesso
em 27.02.2018.
24 ARRUDA, João. Simplificação processual. Revista da Faculdade de Direito de São

Paulo, v. 20, 1912.


25 ARRUDA, João. Simplificação processual. Revista da Faculdade de Direito de São

Paulo, v. 20, 1912.


A partir de então tivemos a elaboração e promulgação de três Códigos de


Processo Civil nacionais, conforme mencionado: (1) O Código de Processo Civil
de 1939 – Decreto-Lei nº 1608, de 18 de setembro de 1939. (2) O Código de
Processo Civil de 1973 – Lei Federal nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e, (3) O
Novo Código de Processo Civil de 2015 – Lei Federal nº 13.105, de 16 de março
de 2015.
O “Novo” Código de Processo Civil (2015), aliás, utiliza um grande
número das mais variadas palavras possuidoras de tecnicidade, como
“jurisprudência”, “precedente”, “súmula”, “paradigma” que teriam a finalidade de
uniformizar e tornar obrigatórias as decisões dos Tribunais, com “filtros”
recursais como forma de “racionalização” do julgamento do grande número de
processos.
Através dos anos, adotamos no Brasil inúmeras soluções legislativas
para os mais diversos problemas. Algumas não seriam propriamente soluções,
mas sim imposições de outro país para evitar a interpretação divergente, como o
caso dos Assentos, de origem portuguesa, aplicados no Brasil durante muito
tempo, e depois declarados inconstitucionais por parte do Tribunal
Constitucional Português, 26 cujo exame doutrinário definitivo parece ser de
Castanheira Neves;27 há um fecundo campo para o estudo comparativo entre os
Assentos e a Súmula no direito brasileiro.28


4. A PERDA DO TREM DA HISTÓRIA: ENTRE O PAPÉL DE GUARDIÃO E
TRAIDOR DA TRADIÇÃO

Como visto acima, é simplista e largamente omisso o argumento de que
os nossos juízes deixam de cumprir as decisões anteriores de outros tribunais
(precedentes) porque seriam formados na tradição do modelo romano-


26 É importante fazer menção ao Acórdão nº 810/1993, do TC de Portugal, que declarou

inconstitucional o art. 2º do então vigente CPC português, de 1966, em face do art.


115 da Constituição de Portugal. Também são importantes, a propósito, os acórdãos
nos 407/94, 410/94 e 743/96, especialmente este último que - tendo por base aquele
primeiro - declarou a inconstitucionalidade parcial do Decreto-Lei 329-A/95, que
alterou o CPC, o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais.
27 CASTANHEIRA NEVES, A. O Instituto dos <<Assentos>> e a função jurídica dos

Supremos Tribunais. Coimbra: Almedina, 2014;


28 FERREIRA NETO, Osly da Silva. Os assentos no Direito português e as súmulas no

Direito brasileiro: efetividade, segurança e imobilidade. Anais do VII Encontro


Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, Salvador, 2008; FERREIRA
NETO, Osly da Silva. Os assentos no Direito português e as súmulas no Direito
brasileiro: efetividade, segurança e imobilidade. Revista Evocati nº 32, 2008.
Disponível em:
<http://www.evocati.com.br/evocati/artigos.wsp?tmp_codartigo=270>, acesso em:
27.02.2018.

germânico (civil law), além de sua não adaptação ao “novo” modelo dos
precedentes do commom law.
Dizer isso, como o professor Barroso, é como perder o trem da história,
mas principalmente, fazer do Supremo o “traidor da tradição”, e não o seu
guardião, como parece ser o caso. Outrossim, é desconsiderar o fato de termos
inúmeras influencias que complexificam nossa identidade em termos de
perfilhamento às chamadas famílias do direito, e portanto, como consequência,
para cada proposta simplificadora sem considerar adequadamente as
complexidades, teremos (provavelmente) uma proposta equivocada.
O argumento parece apostar em uma “commonlização” do direito pátrio,
como se fosse uma novidade ou algo parecido, mas deixou de lembrar que nossa
tradição jurídica é marcada por um conflito de identidade mais antigo e
complexo, desde a tentativa de ruptura, operada (como já mencionado) pela
segunda parte do art. 386, do Decreto 848 de 1890, que tentou trazer como fonte
o commom law dos Estados Unidos, um dos berços da cultura dos precedentes,
mas não nos demos conta, e lá se vão 128 anos, que não se consegue transportar
uma cultura jurídica numa transposição [mixagem] de ideias de maneira
equivocada.
É possível que também tenha olvidado nossa tentativa pretérita de
conferir “obrigatoriedade” às decisões do Supremo, com a antiga norma que
determinava “conferir força normativa à jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal”, por meio do Decreto no 23.055, de 9 de agosto de 1933, embora tal
diploma normativo não tenha prevalecido, segundo o falecido jurista Barros
Monteiro, porque por mais insistente que seja a jurisprudência, ela “não
constitui norma imperativa, a cujo comando não se possa fugir”, pois “o único
compromisso que teriam os juízes [ainda segundo Barros Monteiro], é com a lei e
a própria consciência”29.


5. O VELHO “NOVO” ESTADO NOVO “REFUNDADO”?

O que o professor Luís Barroso pareceu sugerir, considerando a parte
final de seu artigo, propositivo de um suposto papel iluminista para o Supremo, é
uma espécie de substituição da palavra “lei” por “precedente”, sem se atentar
para o fato de que permanecerá o problema do desapego às fontes tradicionais,
aliado a um pendor pelo livre convencimento motivado, que por sua vez se liga
ao famoso “decido conforme minha consciência”, pouco importando para isso a
tradição jurídica a que vinculado o ordenamento30.
Se não compreendermos adequadamente o conflito de identidade que
marca a construção e a desconstrução de nossa tradição jurídica, modelando

29 MONTEIRO, Washington de Barros. Da jurisprudência. Revista da Faculdade de
Direito da USP, v. 56, n. 2, 1961.
30 STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2010.


nosso modo de ser, e (de)formando nossa percepção da realidade, não haverá


modelo algum que permita segurança jurídica e seus consectários que animam o
Estado Democrático de Direito, por mais bem intencionadas que sejam as
propostas.
Não fosse isso, ainda assim ficaria o mal estar da comparação, e da
constatação de que nos Estados Unidos da América, a Suprema Corte altera com
muita frequência seus próprios “precedentes”, tornando a questão sobre o
“problema da formação dos juízes” algo secundária, e fragilizado, como numa
cortina de fumaça que homizia o verdadeiro problema apontado pelo professor
Lenio Streck, qual seja, o realismo jurídico que supostamente permitiria a uma
Suprema Corte exercer a política indevidamente, de maneira ilegítima, já que a
Constituição seria aquilo que a Suprema Corte disser que ela é.
Tenho defendido, sob marcada influência do professor Lenio Streck, que
isso é fruto de nosso Constitucionalismo “invertebrado”, que anima o “necro-
constitucionalismo” 31 brasileiro. Sem me estender sobre o tema, é preciso
reconhecer que temos confundido Direito com Política, e Parlamento com
Judiciário, numa mixagem teórica e institucional que faz lembrar “Alice no País
das Maravilhas” e “Alice Através do Espalho”.
A resposta do professor Barroso pode ser melhor visualizada se
analisada conjuntamente com a recordação de antiga anedota, contada por
Jerome Frank, embora precise ser visualizada de maneira invertida:
“Recordo um destacado jurista alemão que me visitou nos
anos 20, quando todavia, me dedicava ao exercício da
advocacia. Me perguntou a explicação sobre como
utilizamos nossos livros de Direito. O levei a biblioteca de
nosso escritório e lhe mostrei os repositórios dos
Tribunais e o ‘West Digest’. Com desdém ele me
perguntou: ‘Você̂ quer me dar a entender que para
contestar uma manifestação deve ler todas as opiniões
emitidas pelos Tribunais?’ Falou como se fôssemos
completamente bárbaros. De maneira cândida, lhe
redargui: “E como fazem vocês?” Ele respondeu: “Como?
Nos basta olhar o Código”. Insisti: “Isso é tudo?”. Ele
respondeu: “Bom, também consultamos comentários”. “E
nunca as decisões judiciais?”, insisti uma vez mais. E a
resposta: “Ah, claro, evidentemente que também”32
Se invertermos o episódio, não sei se não seriamos nós a sermos
considerados “bárbaros”, mas teríamos que dizer que por aqui nos basta “o
precedente à brasileira e a própria consciência”, embora juristas como Lenio

31 PÁDUA, Thiago Aguiar. O ministro Sebastião Lacerda, do STF (1912-1925): Uma breve

Biografia de sua judicatura Constitucional como sugestiva evidência do “necro-


constitucionalismo” e do “constitucionalismo invertebrado”. Revista da AGU, v. 16, n.
4, 2017.
32 FRANK, Jerome. La influencia del Derecho Europeo Continental en el “Common

Law”: Algunas reflexiones sobre el Derecho ‘comparado’ y ‘contrastado’. Traducción de


José Puig Brutau. Barcelona: Casa Editorial Bosch, 1957, p. 90-94.

Streck venham denunciando há muito tempo o equívoco da elaboração, sendo


urgente entre nós a adoção de uma postura teórica de unicidade,
constitucionalmente renovada, de 4 elementos, sem os quais jamais deixaremos
de ser juridicamente atrapalhados: (1) teoria das fontes; (2) teoria da norma;
(3) teoria da interpretação; e (4) teoria da decisão33.
A questão é bastante simples, pois: se a fonte primacial for o precedente
à brasileira (1), e a norma extraída do enunciado normativo (2) for “filtrada” por
interpretação e decisão decorrentes de postura conivente com o realismo
jurídico-iluminista discricionário (3 e 4), será muito pouco provável que o fruto
decorrente desta raiz traga segurança jurídica minimamente tolerável, que é o
elo invisível entre a crítica de Conrado e a resposta de Barroso.
O fio condutor do raciocínio do professor Barroso, também parece ser a
“refundação” do Brasil, ao mencionar que é possível “que o Brasil esteja vivendo
um momento de refundação, um novo começo. Aos 30 anos de democracia, as
instituições estão sendo construídas e consolidadas”34.
O combate à corrupção, a atuação em prol da igualdade, a atuação para
se evitar a apropriação do espaço público, e os avanços contra o
acumpliciamento entre poderosos seriam aquilo que teria adiado a caminhada
em direção ao futuro, segundo o professor Barroso, mas agora, no presente, o
Supremo estaria auxiliando a refundar o “novo” Brasil. Mais um equívoco.
Não é possível deixar de recordar o discurso do Estado Novo Varguista,
desde as páginas da publicação panfletária da revista Cultura Política, que falava
na refundação do Brasil, ainda na década de 1930, num misto de discursos,
doutrinas, depoimentos, relatos e relatórios que irão desenhar o retrato de um
“novo” Brasil, a partir da publicização da propaganda oficial do regime, conforme
mencionado por Tiago Losso:
“O Brasil social, intelectual e artístico há de espelhar-se
aqui, no seu surpreendente espetáculo de renascimento,
testemunhando, como um depoimento vivo e irretorquível,
os benefícios de paz, de concórdia, de tolerância e de
unidade, que hoje desfrutamos.”35
Assim, o artificialismo do Velho Estado Novo Varguista se aproxima do
“Novo” Velho Estado Novo publicizado pelo professor Luís Roberto Barroso, se
olharmos para a reflexão da velha estrutura cénica:
“Dos escombros de um Estado transformado em palco de
circo no velho regime, assiste-se, portanto, ao surgimento
de um Estado que é a união dos interesses dos indivíduos.
O Estado Novo emerge como o grande aglutinador das


33 STRECK, Lenio. Crise de Paradigmas Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina

diz. Conjur, 05.01.2006.


34 BARROSO, Luís Roberto. 'Operação Abafa' tenta barrar avanços do STF. Ilustríssima,

Folha de SP, de 23.02.2018.


35 LOSSO, Tiago. Estado e democracia no discurso oficial do Estado Novo. Política e
Sociedade, n. 12, de abril de 2008.

forças políticas nacionais, centralizando a decisão política


e conformando uma ordem que possui a democracia como
um valor a ser obtido, independente- mente dos meios
utilizados para obter-se a ordem pretensamente
democrática e adequada aos interesses gerais dos
indivíduos a ela subordinados.”
Com isso, a “nova” refundação do Brasil propugnada pelo professor
Barroso encontra difícil recepção sem o mal estar de percebermos o “novo” como
“velho”, especialmente se estivermos diante da principal crítica presente nesta
réplica, que se relaciona ao fato de o professor Barroso ter percebido “novidade”
na “cultura de respeito aos precedentes”, atrapalhada supostamente pela
formação jurídica brasileira baseada no modelo “romano-germânico”,
singularizando a sua análise político-jurídica, embora sejam temas inclusive
anteriores ao Estado Novo (os já mencionados Decreto n. 848 de 1890 e o
Decreto n. 23.055, de 9 de agosto de 1933).
Mais do que qualquer outra coisa, quando vislumbramos juristas
tomando o “velho” pelo “novo”, com percepções de “refundação” do Brasil,
quando realmente não é o caso, é preciso recorrer a outras reflexões para tentar
compreender nosso apego à determinadas temáticas “mágicas”, que
supostamente seriam o “estalo” de novidades e refundações.

6. OS JURISTAS QUE ROUBAVAM CADÁVERES
Por isso, é possível — extremamente possível — que o Brasil esteja
vivendo a emulação de alguns aspectos do conto de Robert Louis Stevenson
denominado “O Ladrão de Cadáveres” 36, especialmente com relação ao papel dos
juristas.
No citado conto, dois assistentes estudantes de medicina, providenciam
a aquisição de cadáveres para que fossem dissecados, auxiliando no avanço das
novidades da medicina, até que em um determinado dia um dos cadáver
adquiridos aparentava estar mais “fresco” que de costume, e para espanto de um
deles, era uma bela moça conhecida de um deles, vista respirando poucos dias
antes.
Surge então a discussão sobre a prudência e o “espanto” dos assistentes
de medicina, pois quem compra cadáveres sem se perguntar de onde eles viriam,
poderiam se dizer chocados se tais cadáveres estivessem sendo propositalmente
assassinados para posteriormente serem vendidos? Mais que isso: o espanto e o
choque somente surgiria quando um dos cadáveres fosse de alguém conhecido?
Uma das passagens do conto, nos dá notícia do momento do pagamento
pelo “cadáver conhecido”, o ajuste do preço, e a recusa inicial em pagar o valor,
com o diálogo que transpira cinismo:


36 STEVENSON, Robert Louis. O Ladrão de Cadáveres. Em: COSTA, Flávio Moreira da. Os

melhores Contos Fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 143-162.


“Não me atrevo a entrega-lo de graça, você não se atreve a recebe-lo de


graça; isso comprometeria a nós dois (...) Quanto mais erradas estiverem
as coisas, mais devemos agir como se estivessem certas.”37
Esse parece ser o problema de nossos juristas, que apostam no livre
convencimento motivado, na ampliação da força das decisões judiciais num
contexto de papel iluminista do STF, mas na condição de torcedores de times de
futebol, aplaudindo quando o gol, ou a cor da camisa lhes agrada, e vaiando
quando ocorre gol contra ou a camisa da agremiação não agrada. Somos como
“juristas que roubam cadáveres”, cujo espanto se manifesta apenas quando o
cadáver é de alguém conhecido, e as vezes nem isso; aplaudimos a
discricionariedade, o iluminismo ou livre convencimento se ele não nos
prejudica.
É importante registrar o esforço acadêmico do professor Lenio Streck de
criticar e conseguir que o “Livre Convencimento Motivado” fosse expurgado do
CPC de 2015 (art. 371), além de seus esforços que culminaram na famosa
“emenda Streck, que conseguiu incluir - de forma exemplar - o modelo do art.
926 do CPC, sobre a qual reiteradamente tenho falado para meus alunos de
Direito Constitucional 3 e Processo Civil 3, de modo a buscar atribuir
integridade, coerência e estabilidade, mas isso não pode ser feito num artificial
consenso de “colegialidade” como defendem Barroso e Conrado.
Como no conto, podemos terminar como aquele cadáver que foi
exumado, dissecado, e posteriormente inumado para posteriormente ser
exumado, uma segunda vez, no surpreendente final que assusta nas horas
sombrias, mas depois de bem refletido somente poderia ser o único final
aceitável.
É por isso que investidas acadêmicas que sejam proposital e
conscientemente voltadas contra discricionarismos, escolhas (e não decisões)
por um certo “livre convencimento motivado”, como feito pelo jurista Fábio Luiz
Bragança Ferreira 38 , toca nas entranhas de temas que estão no centro do
problema de nossa crise de identidade, igualmente permeada por incursões de
posturas que fragilizam o direito, como a “decisão” prévia à fundamentação, e a
igualação entre direito e política (dois dos maiores mantras do realismo
jurídico).


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linha de conclusão provisória, mas refletida, o problema não é a
formação de nossos juízes no modelo do sistema romano-germânico ou uma

37 STEVENSON, Robert Louis. O Ladrão de Cadáveres. Em: COSTA, Flávio Moreira da. Os

melhores Contos Fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 154.


38 BRAGANÇA FERREIRA, Fábio Luiz. A Possibilidade de superação da
discricionariedade judicial positivista pelo abandono do Livre Convencimento
no CPC/2015. Salvador: Juspodivm, 2018.

suposta “novidade” do precedente e do commom law. Nem seria o caso. O


problema é muito mais profundo, e não admite posturas de “pretensa refundação
do Brasil”, pois esse Novo “velho” Brasil só pode ser a vulgata de um Novo Velho
Estado [Jurídico] Novo, explicado também por nosso pendor em emularmos,
consciente ou inconscientemente, o papel de “juristas que roubavam cadáveres”.
Por tais motivos, parece equivocado o posicionamento do professor Luís
Roberto Barroso, no ponto em que analisado neste breve artigo, que busca
diálogo e conclama à reflexão conjunta, para uma melhor percepção das
instituições, sobretudo do Supremo Tribunal Federal.
É por tais motivos, a propósito, que podemos dizer, diferentemente do
professor Barroso, que se nossos juízes dos Tribunais Superiores ou do STF
deixam de cumprir decisões pretéritas, não se deve ao fato de não estarem
acostumados ao commom law, ou por causa de sua formação do sistema do civil
law. Antes, o problema está em não percebermos a complexa trama de fios que
foram entrelaçados na urdidura de nossa tradição.
Olvidar isso, é fazer do passado um baluarte luminoso da estação na qual
apanharemos o trem do futuro, bonita, iluminada, mas indo na direção errada. E
assim sendo, não pode ensejar proposta de atuação de seletividade discricionária
para “filtragem” de recursos, e nem muito menos servir de sustentáculo a
“commonlização” do direito pátrio, já suficientemente “commonlizado”.
O que devemos fazer, neste sentido, é deixar de lutar para que o
jurisdicionado seja penalizado pela jurisprudência defensiva (que defende os
tribunais dos jurisdicionados), e passe a ser ele mesmo defendido contra atos
discricionários dos tribunais (defendê-lo do defensor).


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