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Elisabeth Roudinesco

História da Psicanálise
na França
A Batalha dos Cem Anos
Volume 1:
1885-1939 .
"
c L( ro II
Tradução
Vera Ribeiro
Psicanalista

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
PRIMEIRA PARTE

A DESCOBERTA DA HISTERIA

- Ah! sim - retrucou Félicité .- a se-


nhora é igualzinha à Guérine, a filha
do meu amigo Guérin, pescador de
Pollet, que conheci em Dieppe antes
de vir para sua casa. Ela era tão
triste, tão triste, que vê-Ia de pé na
soleira de casa tinha o efeito de uma
mortalha pendurada na porta. O mal
dela, ao que parece, era uma espécie
de névoa que ela trazia na cabeça, e
os médicos não podiam fazer nada a
respeito, nem tampouco , o padre.
Quando isso a atacava com muita
força, ela ia sozinha para a beira da
praia, tanto que o oficial da alfânde-
ga, fazendo a ronda, muitas vezes a
encontrava estendida de bruços e
chorando sobre os seixos. Então, de-
pois do casamento, dizem que passou.
- É, mas comigo - respondeu
Emma - foi depois do casameruo que
isso apareceu.
Gustave Flaubert
t
I I

"Sobre Essas Causas Genitais"

I. A escola de cadáveres

Paris, setembro de 1885: o viajante descobre uma cidade moderna, separada


pelas margens de um rio pardacento. Do alto da cidade, contempla o Sena e
gosta daquele cheiro de rio repleto de lembranças. Um barqueiro lhe fala de
mortos misteriosos, que carregam em seus corpos encolhidos pelo frio e co-
midos pelos insetos os relatos de uma vida sinistra. As lendas do rio contam
a tragédia de uma sociedade, dramas íntimbs e farsas banais.
O viajante olha para as grandes artérias de uma cidade recém-pavi-
mentada; imagina tumultos sangrentos, a construção apressada das barricadas
e os tiros dos versalhéses; já se vão quinze anos: a Comuna* foi para as
masmorras; dizimaram os chefes da Revolução e deportaram os federados;
desde 1880, eles estão anistiados, mas vencidos; Marx está morto e os socia-
listas vão-se integrando na vida parlamentar da Terceira República.
No calor enevoado da manhã, ele troca alguns comentários amargos
com um barqueiro da Pont-Neuf sobre as doen as ue semeiam o medo na
o inião ública.
O honrado cidadão sabe que a cólera vem de uma região rríisteriosa, di-
zem que de Bengala, onde está permanentemente causando estragos. O pro-
gresso do intercâmbio comercial e da navegação contribuiu para sua disse-
minação na China, no Irã, na Síria, no Egito e, depois, em toda a bacia do
Mediterrâneo. Ele ouviu do pai o relato atroz da primeira das seis pande-
mias.

* Tentativa revolucionária feita pelos trabalhadores, em março-maio de 1871, num contexto muni-
cipalista e sem recurso ao Estado, para garantir a gestão dos assuntos públicos. Instalada em Paris de-
pois de suspenso o sítio da cidade pelos prussianos, foi derrubada após um novo cerco da capital pelo
exército regular do governo de Thiers, provisoriamente fixado em Versa1hes. A repressão foi brutal
(N. T.).

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"sobre essas causas genitais" 17
16 a descoberta da histeria

o viajante é um homem de ciência, encarregado de colher testemunhos além disso, mas a origem colombiana lhe parece suspeita. Se'a como for,
da memória coletiva: O barqueiro lhe conta os estragos devastadores da está convencido do caráter hereditário da doença.
grande doença: a transmissão direta se dá por via oral, pela ingestão de água ••. O barqueiro já não dá ouvidos a seu companheiro, que lhe pede para ]
ou alimentos contaminados, pelo contato com as fezes infectadas; o contágio \ ser levado ao grande hospício da Salpêtríere, e o homem compreende que o
indireto é ainda mais aterrador; há que desconfiar das roupas de cama úmi- estrangeiro talvez esteja sofrendo de sífilis, de tísica, ou seja artista, nervoso
ou alcoólatra. Tomado pelo pavor, evoca a lembrança de seus ancestrais,
das, das frutas e legumes consumidos crus e lavados em água inadequada. O
flagelo dizima populações inteiras; os homens morrem em meio a convulsões
pavorosas. O corpo fica ressequido, os membros se atrofiam e tomam-se es-
t mortos de lepra ou de cólera.
O viajante cruza os portões da Salpêtriere e descobre uma vasta cons-
curos. O doente emagrece a olhos vistos, esvaindo-se de suas substâncias e trução, formada por casas de um andar dispostas em quadriláteros e cercadas
seu sangue. As aldeias transformam-se em braseiros; as cidades, em cemité- de jardins. Esse antigo arsenal, construído no reinado de Luís XIV e desti-
rios. Fala-se numa punição coletiva enviada através da calamidade, onde a nado à fabricação de pólvora, abrigara outrora uma estranha população de
palavra de Deus assemelha-se a um rugir do inferno. alienados. O hospício era reservado às mulheres e moças; em 1657, o édito
O viajante também dá informações a seu interlocutor: um estudioso do encarceramento dos pobres foi publicado ao som de trombetas e afixado
alemão, o Dr. Robert Koch, acaba de descobrir o germe da morte negra. em todos os muros da capital. A mendicância foi proibida e uma nova corpo-
Anunciou o desaparecimento próximo do flagelo. Mas o homem se mantém ração policial, os Archeiros de Paris, recebeu a missão de internar os mendi-
imóvel, incrédulo e fechado. gos, os vagabundos e os loucos. O grande encarceramento transcorreu sem
A conversa desliza então para a escrófula, doença de que a Dama das ~ incidentes; durante muito tempo, a Salpêtriere foi o maior hospitaly Europa
Camélias é portadora, por causa de seus pecados da carne. O homem não sa- J e encerrou cinco a oito mil pensionistas. As alcoólatras e as prôstífutas colo-
be ler, mas está a par de tudo. Os boatos circulam. Contam que essa mulher cadas lado a lado com velhos dementes e crianças débeis. As loucas eram
de compleição fraca, que conheceu a miséria na infância e depois praticou isoladas no pavilhão especial de incuráveis e presas a correntes; assim fica-
um incesto, tirou sua desforra. Entretanto, vencida no corpo pela consump- vam abandonadas seminuas, em meio a suas excrescências; pelas barras de
çâo, teve de renunciar ao amor e à maternidade para morrer na solidão. O uma grade, distribuíam-lhes uma alimentação composta de sopas frias e res-
barqueiro conta ao viajante o trajeto terrível da tísica rumo aos abatedouros, tos; elas comiam na mesma palha que Ihes servia de leito.
para tragar de um só gole o sangue dos animais. Mais uma vez, o estrangeiro
As epilépticas contavam pesadelos, histórias de membros mutilados e
tenta explicar-lhe os progressos da ciência, os méritos daquele mesmo sábio
mares em chamas; eram devoradas por uma espécie de crustáceo com cabeça
alemão, que identificou o bacilo da tuberculose, um ano antes da descoberta
de pássaro; os gritos, choros, lamentos e contorções davam a esses prédios o
do vibrião colérico. Acrescenta ainda a grande reviravolta do último século:
ar de uma casa mal-assombrada, surgida das trevas da Idade Média As histé-
a publicação em Veneza, pelo célebre Morgagni, de um importante tratado
ricas cuidavam de suas com anheiras, simulando maravilhosamente as doen-
de anatomopatologia, e, em Viena, a de uma obra de Auenbrugger, sobre a
ças delas; estavam.possuídas pela mania de encenar o sofrimento dos outros:
exploração do tórax através da percussão. Esses trabalhos permitiram a
tinham o espírito do riso, das tragédias e dos solu os; assemelhavam-se aos
Laennec e Corvisart, dois médicos franceses, fazer progressos consideráveis
acrobatas e aos bufões: /pouladas ifvantes e esfarrapadas .• ensinavam a lou-
na identificação e no tratamento do mal. O barqueiro, por sua vez, continua
cura do mundo, a miséria do povo.
a falar sobre as taras da pecadora.
Associa a esc.r.ifula à figura da sífilis. Invoca a santa imagem da Ima- Tal orno o Hôtel-Die [hos i I munici ~i ant :s o tIlorredou ,a
culada Conce~ção~.12~_exorcizar o nome pagão d~ Vlnus,_deusa sedutora Sa ê . e te un a o estado do saber médico ali onde o asilo e o hos-
responsáv~Lpelasc.feit.í.çarias-.saídas do..úter.o das mulhem..s. O viajante tem di- p(cio eram pátios de milagres habitados pela gangrena e pela penúria. Sob a
ficuldade em dissociar a sífilis da histeria, mas sente, confusamente, que uma Monarquia de Julho, Paris sofrera uma epidemia de cólera; os médicos não
é uma doença do organismo, e outra é uma curiosa excitação dos nervos. / sabiam se se tratava de uma doença "contagiosa" ou "infecciosa" e a noção
Gostaria de explicar a seu companheiro as duas doutrinas que se chocam de contágio inspirava-Ihes verdadeiro terror. Com um intervalo de vinte
quanto à origem da sífilis: a "colombiana" afirma que a doença foi trazida ào anos, duas frases semelhantes foram pronunciadas na Academia de Medici-
Novo Mundo pelos marinheiros de Cristóvão Colombo; a tese "unicista", ao na: "Mesmo que a cólera fosse contagiosa, o dever seria silenciá-Io" (1849);
contrário, calcula que ela tenha existido desde a pré-história e que foi con- "Se a tuberculose for contagiosa, há que dizê-Io bem baixinho" (1867).1
fundida com outros flagelos, sobretudo a lepra. O estrangeiro presume a Passados outros vinte anos, em 1886, o sexo causava medo; na boca de
existência de um agente responsável, como na tuberculose. Não sabe nada Charcot, sofria as mesmas tribulações da doença contagiosa: "Não se deve

I
"sobre essas causas genitais" 19

18 a descoberta da histeria

dele barão do Império e afirmou: "Não acredito na medicina, acredito em \


falar ( Corvisart." Este foi o criador do ensino anatomoclínico junto ao leito do en-
nos. das causas genitais da histeria", murmurava ele -ao ouvid o d e seus al u-
( fermo, tal como ainda hoje ~ praticado: estudos de casos, observações ~ re- )
gistro dos sintomas, visitas, discussões com os alunos, cursos pedag6gtcos,
Se a c~!?,a se tomara uma prática nobre, impulsionada pelos "trata-
dores ~e fend-as que percorreram desde Valmy os campos de batalha da Eu-
ropa, ainda era marcada pela herança dos barbeiros artesãos
L<:>go~tes do. início do século, Xavier Bichat, o fundador da anatomia
L etc. Graças aos poderes que sua posição lhe conferia, ele atuou como refor-
mador e trans AS ara: a r6 ria ar uitetura
í ~.
_ do hos ital os ideais
.. da no.,Y1!

Na Charité, mandou con..struir uma sala de patologia, ~ an!i~atro de


clí- •••1

patoI6~ca, nao obtivera o tí~lo de ~outor em medicina, embora praticasse anatomia, uma sala de operaçoes e um local para expenenclas eletncas; de-
autópsias e. exercesse as funçoes de cirurgião militar Ao tri ta doi I pois, transcreveu na prática o princípio da unidade do saber médico: a cirur- \
feriu se d te di _ . s n e O1Sanos, gia figurava numa boa posição, ao lado da medicina, que se enriquecia com
- uran. ~ sse~çao e morreu em conseqüência de um "envenena-
mento c~da~énco ,como diziam na época. Filho de um médico formado na os progressos da física e da química e esboçava uma aproximação dos far-
~s~ola vitalista de Mon~llier, aprendera anatomia em Lyon e depois reunira macêuticos e dos sanitaristas; começou a haver interesse pelos medicamento,s
~:)1S ram?s do saber médico para dar fundamento à recente anatomia atolõ- e uma tentativa de combater a insalubridade das instalações hospi~l~~-. \À .•...
1- morte súbita de Bichat veio opor-se a agonia racional de Corvisart~do
g~cal:MUl~Oem,?ºra. Pio~tl!~e.!.se ficado surdo aos ensinamentos de!a dis-
de hemiplegia em 1816, ele temeu que a doença o fizesse cometer erros de
.Clp ma, , BlchaLmspu:ou=.se..eIlL.sl,lanosoJooia-para
1'. . 'b juntar '" ob-servaçao
.LaL.... - :---anato-A
nuca a c nuca numa acomodação recíproca. Com ele portanto reuni } diagn6stico e parou de lecionar e de tratar de doentes. Passou seus últimos
d fi h A ' ,umram-se
uas iguras eter?gen~as do saber: "De modo", sublinha Foucault, "que o anos observando a evolução de seu mal.
grande corte na hist6na da medicina ocidental data do t Nessa época, a abertura de cadáveres suscitou um debate litigioso em
experiê . líni momen o em que a

1
ncia c ca transformou-se na visão anatomoclíni "2
que as velhas crenças pareciam opor-se à luminosa racionalidade do progres-
~ B· h ôd ca. so científico. Imaginou-se o século precedente como um período conturbado,
lC at ~ e comparar sua descoberta à de Lavoisier; a química ssuía'
seus corpos simples, que formavam, através de combinações diversas ~orpos feito de missas negras e sepulturas evisceradas; tinha-se o sentimento de que
c?mJ><?stos;a anatomia ~a agora seus tecidos simples, que, r suas com- a dissecação era pro,:eniente da clínica e ~e que uma ~o~~ maneira de trans-
:~:;~~'
~
~~vamda6rgaos., Acima de tudo, porém, ele conte~~)U os defen-
lsmo. A escola de Montpellier; estes recusavam a anexa ão de
t gredir o corpo podena enfrentar as obscundades da rehglao ou nortear a cla-
reza de uma visão enfim aberta à razão pensante.

=.
suas pesquisas às ciências da natureza e defendiam a idéia de um .ça,. Rayer, que viria a ser mestre de Charcot, declarou com entusiasmo, em
vital '. de uma alma ou de" e u~ torça que regeria todos os processos pnnclplo bioló g i- 1818, que o novo espírito médico estava ligado à revolução anatomopatol6-
mdependenten;tente dos fatores físicos, que eram fixos e uniformes e gica: "Uma nova época para a medicina acaba de começar na França ... ; a
. l~ ser submetidos a um cálculo. Pois bem, Bichat foi aclamado los análise aplicada ao estudo dos fenômenos fisiológicos, o gosto esclarecido
;~~h,~~~~o m?,mento. e~ que se distanciou da doutrina do princípio J::co. pelos textos da antiguidade, a reunião entre a medicina e a cirurgia e a orga-
A .lsmo consistia, de fato, em demarcar o caráter específico do fe- nização das escolas clínicas efetivaram essa surpreendente Revolução, ca-
nomeno VlV?, sem ~duzi-lo a um mecanismo físico; ao mesmo tem o rom- racterizada pelos progressos da anatomia patológica."3 Michel Foucault
:u~o. con~~lt~ de VIda ao relativizar o de morte. A doença que abal~v~ o vi- mostrou que essa reconstituição mítica, que se deu no início do século XIX,
m ~a isa a. d~ ~nto de vista da morte, de uma morte- decaída de seu teve por função fabricar uma ilusão retrospectiva. De fato, no século XVIII,
~a:o .•~nsmo e dlS~bUlda na pr6pria vida dos 6rgãos: mortes 1~n.taS,mortes cinqüenta anos antes dos trabalhos de Bichat, Morgagni, Hunter e outros
ClaIS ou .evoluti:-as, mortes subterrâneas ... Esse exame foi ins irado a Bi- praticavam aut6psias com facilidade. Depois deles, o século XIX conferiu ao
c~at pela dissecação de cadáveres: no Hôtel-Dieu ele experim entava . Antigo Regime a orientação de uma nova Idade Média, tanto que os contem-
CIosamente os e f eitos . d os novos remédios sobre ' as propriedades vitais mmu-e porâneos de Bichat e Corvisart tiveram a sensação de redescobrir a anatomia
mos tr ou-se capaz de au toosi ,.. patológica, já existente, embora a organizassem de conformidade com uma
cadáveres. opsiar, num umco mverno, as vísceras de seiscentos
figura do saber fundamentada na clínica. A coerência anatomoclínica se rea-
lizou e deu origem a uma nova visão, opondo-se a um pensamento clínico
vame;~r:~~~h~t, C0rv.isart ~esen,:o!v~u a anatomoclínica. Sendo suceSSi_)
que impedia a medicina de ouvir a lição de Morgagni: "A partir do dia em
ris e depoi da dO ChOSPlt~1 d••Chante, titular da cadeira de medicina de Pa-
, lS, que se admitiu que as lesões explicavam os sintomas e que a anatomia pato-
naparte . .,..o olégio de Fran ça, -era també m o médico. pessoal de Bo-
( giene ai~~~~ di~túrb~OS~ge~tivos ele dissipava através de uma severa hi- lógica fundamentava a clínica, foi realmente necessário convocar uma histõ-
ria transfigurada, onde a abertura dos cadáveres, pelo menos a título de exi-
dor de ferimen~oseg:~: ~m:ps:~ dedse~ ':l~liente.", eartic:ipando, como trata-
, as a ta Ia e oa Austria; o Imperador fez
20 a descoberta da histeria "sobre essas causas genitais" 21

gência científica,· precedia a observação, fmalmente positiva, dos doentes; a ou a reformulação dos diferentes campos da clínica das "doenças nervosas":
necessidade de conhecer a morte já devia existir quando surgiu a preocupa- neurologia, psiquiatria, psicopatologia, psicologia e "psico-anãlise".
ção de compreender o vivo. Assim, imaginou-se por completo uma conjura- ) A fabricação de uma história transfigurada permitiu à medicina do
ção negra da dissecação, uma igreja da anatomia militante e sofredora, cujo , primeiro quarto do século XX reconhecer-se na anatomoclínica e pôr em
espírito oculto teria permitido a clínica antes de vir à tona, ele próprio, na destaque uma nova conceituação da morbidez; o princípio de Broussais fez
prática regular, autorizada e diurna da autÓpsia."4 com que essa outra clínica ingressasse no campo aberto pela fisiolo 'a re- b
Essa ilusão e os conflitos internos que agitaram a história da medicina solvesse o problema das febres essenciais, deixado intacto pelos anatomo-
francesa, ao longo de todo o século XIX, permitem compreender as defasa- patologistas." Depois de 1832, seja no debate sobre a cólera, seja no tocante
gens existentes entre a realidade de uma descoberta e as fantasias que ela às doenças infecciosas, a questão da transmissibilidade das doenças pelos
despertou numa dada época. Como veremos posteriormente, uma prática mé- "agentes provocadores", e depois, da hereditariedade das "taras", encontrou
dica "aberrante" ou a convocação de uma história transfigurada podem en- um começo de resposta nos trabalhos de Pasteur. Em 1885, a ~cro IoogIa
cobrir uma reformulação exemplar da clínica; não podemos estabelecer cor- estava em via de revolucionar o saber médico, e Charcot ' mew..-e.p.c;u-
respondências estreitas entre as opções políticas e filosóficas de que se 'vale zilhada" e mnar duas verdades ap-arentemente c ntraditórias:
o corpo social e os antagonismos que constituem a história do saber médico; uma "pasteuriana", segundo a" qual a histeria era uma nça nervosa
nesse aspecto, tanto faz Bichat como Broussais ou Charcot: tomando as coi- "transmissíve ". xía.hereditãria, e outra "neurológica", para a qual a
sas por alto, poderíamos dizer que o or anicismo da esc Ia tomoclínica histeria não era uma simulação, mas uma doença nervosa completa, autôno-
....representou os ideais do anticlericalismo republicano, e que o vitalismo teve ma, funcional e sem traços lesionais. Através dessa dupla proposição, ele re-

!
r
I
a preferência dos que sentiam saudades do passado. Assim, para Léon Dau-
det, "a histeria e as localizaç§es cerebrais fazem parte dO~l!rograma republi-
cano"": A rigor, as coisas não transcorreram dessa maneira; se é verdade,
por exemplo, como o demonstrou Georges Canguilhem, que o método posi-
tivista, inaugurado por Auguste Comte em sua análise dos fenômenos sociais,
novou o ges o e ,inel: desacorrentou as "loucas" e lhes ofereceu o,s gri-
lhões de uma nosologia adequada. Para consumar esse ato, convocou os
grandes princípios da clínica anatomopatolõgica e da fisiologia, e construiu
uma nova neurologia cujo funcionamento inscreveu na hereditariedade, ao
preço de reevocar o sexo, noção vaga e embaraçosa descoberta nos corredo-
aderiu ao princípio nosolõgico de Broussais segundo o qual as doenças eram res da Salpêtriere.
o efeito de simples modificações ,na ação dos estimulantes indispensâveis" à Dentro do grande hospício, o visitante da atualidade já não ouvia gri-
manutenção da saúde, não se pode concluir disso que uma posição filosófica tos. O sofrimento cotidiano do doente hospitalizado exprimia-se agora no
seja o reflexo de uma descoberta científica, De um campo a outro, existem silêncio: silêncio das roupas de cama alvejadas, silêncio dos instrumentos
. correspondências ou reformulações, mas isso não significa que uma dada fi- esterilizados, silêncio dos corredores nus, iluminados pelos raios de uma luz
gura do saber seja dominada, em sua historicidade interna, por um sistema capaz de cegar, silêncio dos quartos de repouso, onde se recebiam, como um
cujo efeito de verdade possamos organizar a posteriori. ritual, as pílulas coloridas de uma medicação douta, e, enfim, silêncio moral:
E no entanto, ao narrarmos a história, não escapamos de uma espécie o doente moderno não podia queixar-se ou gemer; qualquer que fosse seu
de liquidação das contas ,que permite tornar legíveis o imaginário de uma mal, sempre acreditava que os outros estavam mais afetados do que ele.
época e o sentido de uma doutrina; a história nunca é "imparcial", mas par- Nossa época forjou uma nova maneira de "viver" a doença: já não
cial e engajada, e entremeada, tal como a narrativa ou a ficção, de monólo- herdamos um mal como um destino; nós o "fabricamos" no corpo. O doente
gos, comentários ou flash-backs, O historiador é, ao mesmo tempo, um nar- de hoje participa de seu tratamento: sua doença depende do Ministério da
rador louco, capaz de afirmar com Michelet que cada século é mais inventivo Saúde e sua morte faz parte de sua vida; já não é o trágico além de uma his-
do que o anterior, e um sábio pronto a ratificar o princípio de Claude Ber- tória, mas o sintoma de uma cura possível, donde a idéia de que a medicina
nard segundo o qual, nas ciências, somos obrigados a passar pelo erro antes progride fazendo retroceder o fim inevitável do organismo, ao preço de uma
de chegar à verdade. morte parcial dos órgãos malsãos. O bisturi de Bichat e o princípio de Clau-
Dentro dessa oscilação podemos reconhecer o solo "arcaico" sobre o de Bernard triunfaram sobre os mitos antigos; em nossos dias, a cirurgia dos
qual se desenrolaria a introdução da psicanálise na França, no início do sé- õrgãose as diversas quimioterapias, o emprego dos rastreadores, dos lasers e
culo XX, Esse solo constituiu-se, através do ensino de Charcot, das figuras dos raios converteram-se no quinhão comum de uma medicina em que as do-
dominantes que regiam o moderno saber médico: anatomopatologia, anato- res geradas pelo próprio tratamento são silenciosamente aceitas, já que sim-
moclínica, anatomofisiologia, microbiologia, localizações cerebrais, heredi- bolizam a maneira pela qual o corpo pode combater os sofrimentos provoca-
tariedade-degenerescência, etc.: todas essas noções presidiram a elaboração dos pela doença.
"sobre essas causas genitais" 23
22 a descoberta da histeria

Outro lugar, outra cena: em 1885, o público parisiense apaixona-se


No século anterior, não sabíamos dominar a dor; a anestesia geral pas-
pela atriz Sarah Bernhardt, cuja voz e olhar hipnotizam as multidões. Sarah
sou a ser empregada a partir de 1847, nas intervenções importantes. As
possui o olhar de Charcot, e seus gestos evocam as convulsionárias da Sal-
anestesias locais com cocaína só se difundiram depois de 1884, ao mesmo
pêtriêre; ela transporta para os palcos as interrogações de sua época sobre a
tempo que os primórdios da assepsia. O ópio era oneroso, o clorofórmio era
ambivalência da sexualidade humana, desempenhando ora o papel de ho-
escasso e as populações recorriam, para cuidar de nevralgias, reumatismos e
mens confrontados com sua ferninilidadev.ora persongens de mulheres devo-
afecções crônicas, a magnetizadores, algebristas e cauterizadores. De 1815 a
radas por uma libido que parece pertencer ao sexo masculino. A atriz é a
1870, os exércitos foram dizimados pelo tifo, pela tuberculose, pelas vermi-
imagem do "sujeito dividido" da síndrome histérica: homem afeminado em
noses e pela fome. Os moribundos dilacerados, vítimas do fogo de artilharia,
busca de uma identidade masculina, mulher fálica à procura de uma feminili-
caíam presa de cirurgiões-chefes que faziam amputações em série. A neve e
dade sem disfarces - Hamlet, a uiazinha, Lourenço e Fedra, Frou-Frou ou
o láudano eram os únicos ingredientes utilizados, en uanto o ferro em brasa
a Dama das Camélias. Ou e a guerra de 1870, Sarah permanece em Paris
cauterizava na carne viva as feridas infeccionadas, ameaçadas pela gangrena e organiza um ambulatório no Odéon; abandonando seu camarim, dedica-se
e pelo tétano. aos feridos. Certo dia, cui de um rapaz que lhe pede sua foto com uma de-
Os hospitais das cidades abrigavam outra forma de sofrimento: os por- dicatória; ele tem dezenove anos e se chama Ferdinand Foch. Em 1915, com
tadores de febres, os mendigos, as crianças, os velhos, os casos sociais e os uma perna amputada, ela parte para o front e serve a esse mesmo homem, já
alienados, acotovelando-se em dormitórios imundos. Nos períodos de guerra então marechal. Em 1897, vai atéZola para convencê-I o de que a degrada-
ou de crise, a superpopulação multiplicava os riscos de contágio e a miséria ção do capitão Dreyfus é uma injustiça; em 1898, após a publicação de Eu
era devastadora: os doentes dividiam o mesmo leito e os órfãos ou os insanos Acuso, uma multidão de manifestantes cerca a casa do escritor; Sarah Ber-
assistiam às operações, por vezes praticadas nas salas comuns. A promiscui- nhardt abre a janela; tão grande é sua ascendência que a turba se dispersa."?
dade era o destino cotidiano desse inferno hospitalar onde os convalescentes Em 6 de novembro de 1886, Freud foi ao teatro da porta Saint-Martin
eram colocados lado a lado com os pacientes crônicos, os incuráveis se aco- assistir à representação de um melodrama de Victorien Sardou. Ocupou um
tovelavam com os cegos, sob a supervisão de atendentes analfabetos, en- assento de orquestra muito desconfortável. Já nas primeiras falas da atriz,
quanto outros pensionistas arrastavam-se pelas salas mal aquecidas sobre as- estava pronto para crer em tudo o que ela dissesse. Numa carta a Martha, fez
soalhos imundos ou recobertos de serragem espessa. Em meio aos farrapos, a a descrição completa do drama, com sua fragilidade e seus costumes bizanti-
água potável era um luxo, a higiene não existia, nem tampouco as salas de nos; seria um acaso? Tratava-se da história de uma aventureira apaixonada
isolamento ou as áreas de convalescença." por um jovem patrício de sentimentos republicanos, que ignorava o passado
tempestuoso de sua amante. No final, ela morre estrangulada.
As "lições", os "quadros" e os "cursos magistrais" dos mestres da
Em 1885, a França burguesa tornou-se uma entidade; desenvolveu sua
medicina estavam em via de se transformar num gênero literário. Junto às
doutrina moral e econômica, sua unidade espiritual e constituída. A educa-
esplêndidas descrições de Laennec, que, durante a Restauração, "inclinou
ção e a fannlia eram as duas grandes preocupações, e o burguês francês cul-
pela primeira vez o ouvido para o peito das mulheres't.? e aos famosos qua-
tivava um certo bom gosto, que oscilava entre o conservadorismo e o es-
dros de Charcot sobre os infortúnios da histeria, as infinitas variações dadas
palhafato. Acreditava-se dotado de uma inteligência fora do comum e estava
por Émile Littré às palavras da língua francesa assemelhavam-se a verdadei-
convencido de que seu país era o mais belo do mundo: "Os outros estrangei-
ros exercícios de anatomia patológica. Elas selaram o encontro entre o "es-
ros que encontro por aqui", escreveu Freud, "têm a mesma opinião que eu a
tilo" do discurso médico e a retórica dos grandes juristas da língua. Nesse
respeito da suposta amabilidade dos franceses. "11
país que viu nascer a gramática de Port-Royal e foi a pátria dos enciclope-
distas, antes de forjar, durante a Revolução, o princípio de uma língua na- A partir de 1875, a maioria monarquista ficou deslocada; graças à ação
cional, o espírito codificador caminhou de mãos dadas com uma espécie de de Gambetta, o partido republicano progrediu rapidamente; os orleanistas de
universalismo, onde as palavras, a sintaxe e a gramática tiveram o encargo centro-direita aproximaram-se dos conservadores de centro-esquerda. Para se
de restaurar as regras "cartesianas" do pensamento humano. Fascinado pela instalar, a República não hesitou em fazer compromissos. Não tendo conse-
língua de Hip6crates, cujas obras traduzira, Littré não praticou a medicina ... guido restaurar a realeza, a Assembléia acabou por dotar o país de uma
mas, como Corvisart, observou-se morrer; depois dessa aula de anatomia es- constituição republicana.
crita em sua própria carne, extraiu o prefácio de seu dicionário, dando teste-
munho de um trabalho em que o tempo reencontrado da língua se enunciava
no silêncio do apodrecimento de um corpo.
24 a descoberta da histeria "sobre essas causas genitais" 25

11. Encontros çâo de Breuer com o judaísmo não deixa de se relacionar com a de Jung com
o protestantismo.iê nascido em 1842, era quatorze anos mais velho do que
Freud e, como este, fizera a essência de seus estudos de medicina com Brüc-
Freud chegou a Paris numa manhã de outubro de 1885, às vésperas da crise ke: suas pesquisas no campo da fisiologia forneceriam uma das bases con-
da República inaugurada pelo boulangismo*. A cidade era pouco acolhedora ceituais da teoria freudiana da histeria. Enquanto seu amigo caçula era ainda
para os estrangeiros, vistos como bárbaros. O futuro inventor da psicanálise um jovem estudante, Breuer o ajudara financeiramente e, à guisa de agrade-
era um jovem médico judeu de vinte e nove anos, apaixonado por sua noiva, cimento, Freud deu a sua filha primogênita o nome de Mathilde, ou seja, o
a quem enviava uma correspondência volumosa. Viera à França para desco- da mulher do amigo.
brir sua verdadeira vocação. Será que já sabia? A hist6ria de Anna 0_ tornou-se lendária e funciona hoje como um dos
Após estudos no laborat6rio de fisiologia de Brücke Freud ingressara, mitos fundado s=da históri da 'Psicanálise. Se Freud descobriu o incons-
em 1882, no serviço do professor de medicina-geral õt1magel, iniciador, em ciente Bertha Pa enheim "inventou" o tratamento analítico. Seu nome
Viena, da eletrofisiologia. Em seguida, passara algum tempo como interno no verdadeiro foi ~ela o por Jones, que fez dela uma heroína de ficção. Ba-
serviço psiquiátrico de ~, considerado em sua época o maior anato- seando-se nas formulações de Freud enunciadas a posteriori, Jones fabricou
mista do cérebro. Transformado em psiquiatra depois de ter sido neurolo- a hist6ria da contratransferência de Breuer. Segundo ele, de fato, o caso de
gista, este procurava dar uma explicação anatomofisiolõgica de todos os Anna O. absorveu o médico a tal ponto que sua mulher passou a sentir gran-
distúrbios mentais. Freud ficara fascinado com seu ensino, mas já se sentia ~ de ciúme dela. Assim, ele resolveu interromper o tratamento e se despediu de
atraído pelo nome de Charcot e por um método anatomoclínico mais flexível sua paciente; na mesma noite, tornou a ser chamado à cabeceira dela e a en-
f em comparação com a !isiologia. Decidiu obter o grau de Docente antes de ir
a Paris dar prosseguimento a seus estudos. Em sua mala, carregava a história
controu presa de sintomas de um parto imaginário, que atestavam uma gravi-
dez histérica da qual ele não se apercebera, a tal ponto estava convencido do
de Bertha Pappenheim, mais conhecida pelo nome de Anna 0.12 caráter assexuado dos distúrbios da paciente. No entanto, Breuer pareceu
De 1880 a 1882, o médico vienense Breuer ocupara-se dessa jovem de afetado pelo comportamento de Anna; acalmou-a momentaneamente e, a se-
vinte e um anos, que apresentava sintomas histéricos ligados à enfermidade guir, pegou a bengala e o chapéu e partiu para Veneza com sua mulher, ali
do pai. Tinha uma paralisia de três membros, distúrbios da visão e da lin- passando uma segunda lua-de-mel. Essa viagem, sempre de acordo com Jo-
guagem e uma tosse nervosa incessante; além disso, era anoréxica e nela se nes, teve como conseqüência o nascimento de uma filha, chamada Dora, que
observavam dois estados distintos: em certos momentos, ficava calma e bem se suicidaria em Viena sessenta anos depois, para escapar dos nazistas.
comportada, enquanto, em outros, conduzia-se como uma criança insuportá- Henri F. Ellenberger restabeleceu a verdade, e hoje sabemos que a fi-
vel, incomodando incessantemente as pessoas a sua volta com seus gritos e lha de Breuer, Dora, nasceu em 11 de março de 1882, sendo portanto impos-
queixas. A passagem de um estado para outro era acompanhada por fases de Í\ ~ sível que tenha sido concebida, como afirmou Jones, depois do suposto inci-
auto-hipnotização das quais ela despertava lúcida e tranqüila. Breuer a visi- dente, que se situaria em junho de 1882. Além disso, a comunicação de
tava durante esses períodos, e ela adquiriu o hábito de contar-lhe suas aluci- . 1\ Breuer sobre Anna não mencionou os sintomas da gravidez histérica e a pa-
nações, suas angústias e os diferentes incidentes que lhe perturbavam a \j . lavra catarse não foi empregada: a doente não fora "curada", portanto, e o
existência; um dia, depois de fazer o relato de alguns sintomas, ela os fez famoso protótipo da cura catártica não é nem uma cura nem uma catarse.t"
desaparecer por si mesma, e em seguida deu nome a suas descobertas: cha- Depois do tratamento, Anna tornou-se morfinômana e conservou parte de
mou de "cura pela fala" ou "limpeza da chaminé" ao processo que a condu- seus sintomas mais manifestos. Isso não impediu Breuer de apresentar esse
zia à cura. Sabemos agora que Anna o. literalmente "inventou" a psicanáli- caso inicial, juntamente com Freud, como um modelo de cura pelo método
se; essa invenção foi feita em inglês, numa época em que a moça havia es- catártico.
quecido sua língua materna, o alemão, e falava diversas línguas estrangeiras. Nessa história, não podemos acusar Jones de falsificação. Ele inventou
Joseph Breuer era filho de um rabino de condição modesta, muito res- uma ficção, mas essa invenção testemunha uma verdade histórica à qual não
peitado dentro da comunidade judaica vienense. Ao contrário de Freud, ve- podemos opor a argumentação simplista de uma "realidade" dos fatos. Com
nerava o pai e era apegado aos valores religiosos da tradição judaica. A liga- efeito, quando acreditamos demais na transparência do acontecimento, cor-
remos o nsco de denunciar a atividade fabulatória como uma intencionalida-
de mentirosa, posição esta que é difícil de sustentar, uma vez que a psicaná-
lise contestou, a propósito da histeria, a própria noção de simulação. A ver-
* Ver nota da tradutora na p. 32. dade dessa história, portanto, prende-se a sua lenda e remete à maneira como
"sobre essas causas genitais" 27
26 a descoberta da histeria

meno da sexualidade seria mais pr6xima da de Breuer que da do estudioso


o movimento psicanalítico narra para si mesmo as fantasias iniciais de um francê .
nascimento. Em seu "reexame da pendência";" Frank J. Sulloway retomou os ar-
Na realidade, Breuer não foi o personagem imaginado por Jones. Mas o gumentos desenvolvidos por Ellenberger contra Jones para complementá-Ios
"corte" entre Freud e Breuer passou, efetivamente, pela problemática do sexo através de uma demonstração pouco convincente: explicou, citando numero-
e a relação trans erencial. Visivelmente, Breuer mostrou certa repugnância sas fontes, que a separação entre Freud e Breuer não teve por causa a ques-
tão sexual, e que o cenário inventado por Jones foi o sintoma de um desvio

o
em falar no caso de Anna O. e sublinhou, a respeito dele, que o elemento
sexual era pouco acentuado. Assim, no prefácio de 1908 à segunda edição freudiano da verdade da história. Sulloway não analisou as causas do con-
dos Estudos sobre a Histeria, após o rompimento com Freud, ele insistiu no flito entre os dois homens e permaneceu na vaga hipótese da tirania de Freud
fato de ter há muito deixado de se ocupar daquele "assunto" e de não ter tido e de sua intolerância perante as opiniões dos outros. Baseando-se em decla-
nenhuma participação em seu desenvolvimento. Freud ao contrário, afirmou: rações autênticas de Breuer, mostrou que este reconhecera a importância da
"O leitor atento encontrará em germe, neste livro, tudo o que foi posterior- sexualidade na etiologia da histeria.
mente acrescentado à teoria catártica: o papel do fator psicossexual, e do in- / Podemos opor a essa argumentação um ponto de vista bem diferente:
fantilismo, a significação dos sonhos e o simbolismo inconsciente. O melhor /!lá' final do século passado, todos os especialistas em doenças nervosas reco-
conselho que posso dar a todo aquele que se interessar pelo encaminhamento nheciam a importância do fator sexual na gênese dos sintomas neuróticos;
da catarse para a psicanálise é começar pelos Estudos sobre a Histeria e tri- entre eles, porém, ninguém sabia o que fazer com essa constatação, que aliás
lhar, assim, o caminho que eu mesmo percorri."15 remonta à antiguidade. Em outras palavras, Sulloway negligencia um fato

l
epistemol6gico fundamental: Freud não se contentou em-constatar o que todo
Freud transformou a hist6ria da psicanálise, não para falseá-Ia, mas pa-
munao conhecia, "roubando" as idéias de seus contemporâneos, mas tradu-
ra explicar o sentido de um percurso te6rico; estava convencido de que sua
ziu uma evidência em novos conceitos. Dentro dessa perspectiva, ele é real-
descoberta lhe pertencia, sem no entanto afirmar que as idéias fossem pro-
mente o único estudioso de sua época que se mostrou capaz de trazer uma
priedade definitiva de um autor. A posteriori, reconstituiu certas declarações
solução teórica para o célebre problema das causas genitais. Ao acusá-lo de
de Breuer sobre as relações "secretas" da histeria com o leito conjugal. Mas
falsificar a história, Sulloway raciocina, a despeito de sua grande erudição,
recordou também as colocações que Charcot formulara diante dele a seu as-
como se uma teoria fosse da mesma natureza de uma evidência concreta,
sistente Brouardel, em 1886, a propósito do impacto da "coisa genital": "No
como se o conceito de cão fosse produzido por um latido.
que me conceme", escreveu ele, "eu observaria que não tinha nenhuma
Esse tipo de argumentação é freqüente e deve ser reinscrito, na história,
idéia preconcebida no tocante à importância do fator sexual na etiologia da
como uma das formas da resistência à descoberta freudiana. Essa resistência
histeria. Os dois pesquisadores de quem eu era aluno quando comecei a es-
consiste em demonstrar que Freud não inventou nada, já que aquilo de que
tudar esse assunto, Charcot e Breuer, estavam bem longe de tal suposição;
fala existia antes dele como a coisa mais bem compartilhada do mundo. Na
ao contrário, tinham uma repugnância pessoal por essa idéia, que a princípio
realidade, ela só serve para criar obstáculos à compreensão real dos diferen-
----
me inspirou os mesmos sentimentos. "16
Nesse sentido, Freud transmi iu a Jones que se transformou no "se-
tes modos de apreensão da sexualidade, de Breuer a Freud, de Charcot a
Jung e de Floumoy à escola francesa.
gredo de polichinelo" da psicanálise, -7 e com isso O histori6 o fabricou Freud ficara impressionado com o caso de Anna O., do qual Breuer lhe
uma ficção ue rmanece verdadeira do ponto de vista do percurso te6rico falara longamente. Durante sua estada em Paris, contou-o a Charcot,' que não
do freudismo. De fató, fOI r nte por causa do sexual que sobreveio a
ruptura entre os dois amigos. O "segredo", assim falado ao pé do ouvido,
C) o ouviu. Os pensamentos do mestre estavam em outro lugar: no cenário de
um teatro "público" da histeria, e não no cerne de um relato íntimo.
tomou-se uma grande tese da nova doutrina da tristeria, enquanto a história A verdadeira Anna O., Bertha Pappenheim, era uma mulher de inteli-
de suas origens é contada através de uma lenda. gência viva e encanto certeiro; numa foto que ficou célebre, está vestida de
. ? o~stáculo constituído pelo reconhecimento do sexual na etiologia da preto, usando um chapéu-coco e segurando numa das mãos uma bengala e,
histena nao funcionou da mesma maneira nas hipóteses de Charcot e de na outra, um par de luvas. Criada em Viena por uma mãe terrível, conservou
Breuer. Na doutrina da Salpêtriere, o afastamento do sexual foi uma necessi- a graça e o humor da capital austríaca. Foi ao se aproximar o final da década
dade te6rica que permitiu uma nova definição do conceito de neurose. m de 1880 que se interessou pelas atividades humanitárias: sendo primeira-
Breue arejei ão não foi ordenada ar de teórica, mas r u a re- mente diretora de um orfanato judaico em Frankfurt, viajou depois pelos
pugnância moral e feligiosâ, a mesma que Freu conseguiu superar depois Balcãs, pelo Oriente Próximo e pela Rússia, em investigações sobre o tráfico
do encontro com Charcot. Nesse sentido a-posição de Jung diante do fenô-
"sobre essas causas genitais" 29
28 a descoberta da histeria

das orelhas, traços muito expressivos e lábios cheios e largos: em suma, tem
de mulheres brancas. Em 1904, fundou a Liga das Mulheres Judias e, em tudo do sacer~ote secular cujo espírito esperamos que tenha e mostra gosto
1907, um estabelecimento de ensino filiado a essa organização. Permanecen- pelas boas COlS~ d:ste mundo. Sentou-se e pôs-se a examinar os doentes.
do no cerne do judaísmo, estudou a situação das mulheres judias e dos cri- Causou-me admiraçao por seu diagnóstico brilhante e pelo vivíssimo interes-
minosos judeus e, já no fim da vida, reeditou antigas obras de religião ju- ~ ~ue _dem~ns~ por tudo. Nenhuma relação com os ares de superioridade e
daica, escrevendo depois a história de um de seus ancestrais. Quando Hitler distinção artificial a que nos habituaram nossos grandes figurões. "20
tomou o poder, ela se pronunciou contrária à emigração, antes de falecer em Mas, quem era ~sse "Meister" de sessenta anos (e não cinqüenta e oi-
1936; seria lembrada, no campo do trabalho social e das idéias feministas, to) e que estava no ãpice de sua glória?
por um selo postal exibindo sua efígie na República Federal da Alemanha. ~ascido ~m 1825 numa farm1ia modesta, Charcot fizera seus estudos se-
Bertha Pappenheirn figura na realidade histórica de sua época como um cund~os no h~eu B?naparte. Seu pai era um operário que fazia carruagens
personagem tão lendário quanto o das origens da psicanálise; não se casou, e a mae ~ dedicava a educação dos filhos; por volta dos vinte anos, Charcot
mas o sexo em suas diversas formas ocupou grande parte de sua vida; um r~solve~ mgress~ na carreu:a .de medicina e alugou um quartinho no Quar-
dia, escreveu que, se ainda houvesse justiça no futuro, as mulheres fariam as tier Latin, próximo, sem dúvida, do hotel onde mais tarde se hospedaria
leis e os homens cuidariam dos filhos. Nunca falou sobre sua "história" com ~reud. AO ?omem era um "visual", e seu estrabismo não era um detalhe sem
Breuer, opôs-se a que as mocinhas confiadas a ela se fizessem analisar e lmp~rtancla. Logo teve por .mestre a Rayer, que fora médico pessoal de Na-
afirmou, muitas vezes, que a psicanálise é para o médico o que a confissão é ~leao III e ?Cupara, a parur de 1862, uma cadeira de patologia comparada,
para o padre: uma arma "de dois gumes'L'" cnada\ eSFc~almente para ele. Rayer apresentou Charcot ao Ministro das Fi-
Freud apaixonou-se por sua estada na capital francesa; nessa época, nanças..Achille Fould, que fez com ele uma viagem à Itália antes de tomá-lo
entretanto, era pobre e estava deprimido, tendo como único recurso uma bol- como médico da família; isso lhe ~anjeou a simpatia dos bonapartistas; no
sa de estudos conferida pelo fundo do jubileu da Universidade de Viena. mesmo ano (1862), tornou-se o médico do hospício da Salpêtriere e ali per-
Hospedou-se num hotelzinho próximo ao Panthéon e à Sorbonne, onde mo- maneceu até sua morte. Claro está que sua orientação científica se transfor-
rou por cinco meses. Manteve-se casto, pouco inclinado a tirar proveito das mou no contato com os doentes do asilo, já que, até então, ele pouco se inte-
facilidades da vida parisiense, falava o francês com dificuldade e passava re~sara pela patologia do sistema nervoso. Entre 1862 e 1870, tornou-se o
suas noites redigindo longas cartas à noiva, Martha; na primeira delas, data- cnador de uma nova neurologia, depois de ter debutado com observações
da de 19 de novembro de 1885, descreveu seus passeios ao longo do cais de sobre a esc1erose em placas, as artropatias tabéticas e as localizações medu-
Orsay, nos jardins do Palácio dos Inválidos e no bairro elegante dos Champs- lares. Tod?s os anos fazia. conferên~ias sobre as doenças dos velhos, a gota,
Elysées; na praça da Concórdia, admirou o obelisco de Louqsor, e de lá foi os reumatismos, a ~a~offila e a fisiologia do sistema nervoso. Na época de
ao Museu do Louvre, onde ficou impressionado com os bustos dos impera- sua .entrada n~ Salpêtriere, Charcot desposou uma jovem viúva, filha de um
dores, "representados diversas vezes sem nunca se parecerem". A falta de ~lf~late"conceltuado por suas coleções de quadros: sempre a atração pelo
dinheiro e a enxaqueca foram evocadas e Freud contou sua noite no Teatro visual ...
Francês, onde assistira à representação de três peças de Moliere; numa carta A partir de .1872, adquiriu uma reputação importante. Foi nomeado
de 19 de outubro de 1885, comenta as desventuras dos republicanos: "Vi-me prof~ssor_ da cadeira de anatomia patológica e começou a dar aulas sobre as
em meio à mais insensata algazarra parisiense até o momento em que, depois / localizações cerebrai~ e a ep~lepsia cortical. Em pouco tempo, Charcot tor-
de abrir passagem na multidão, cheguei aos famosos grandes boulevards e à ~ou-~e consul~or. na.clOn~ ~ !nternacional; as farru1ias reais da Espanha, do
rua Richelieu. Na praça da República, vi uma gigantesca estátua da Repúbli- . rasil e da Rüssia l~ visitá-lo, e depois os escritores, os atores, os jorna-
ca trazendo as datas de 1789, 1792, 1830, 1848 e 1870. Isso dá uma idéia da hstas e .gente da SOCIedade;suas aulas cativavam o olhar do público como
existência descontínua dessa pobre República." v~rdadeuas cenas teatrais: ele redigia de antemão o texto de suas conferên-
A novidade mais importante foi anunciada através de uma carta de 21 eras e as decorava, para extrair delas o melhor efeito; exibia seus doentes e
de outubro: Freud estivera pela segunda vez na Salpêtriere e tudo correra revelava-~ capaz de desempenhar vários papéis ao mesmo tempo.
bem; num recibo, fora designado como sendo o "Senhor Freud, aluno de E~ Julho de 1881, por iniciativa de Gambetta, o Parlamento aprovo

(j
medicina", e às dez horas vira-se na presença de Charcot: "É um homem de umcrédito para a criação de uma cadeira de clínica das doenças nervosas~
estatura elevada", escreveu, "com cinqüenta e oito anos e chapéu de copa ~arc?t tomou-se seu titular: em 1882, a neurologia foi reconhecida pel
alta; tem olhos escuros e estranhamente doces (principalmente um, porque o ~nmeIra :ez ~omo disciplina autônoma. Nessa ocasião, Charcot interesso -
outro é desprovido de expressão, sendo afetado por um estrabismo conver- pela histena e pelo hipnotismo e deu um novo conteúdo ao conceito e
gente); tem o rosto escanhoado, longas mechas de cabelos puxadas para trás
30 a descoberta da histeria "sobre essas causas genitais" 31

I neurose, o que acarretou uma primeira polêmica sobre a questão da etiologia lógica com os setores limítrofes da biologia são i.ndissolúveis. Situada numa )
das doenças "nervosas". Adepto de uma clínica fundamentada na teatraliza- espécie de posição intermediária entre a anatomia normal, de um lado, e a
ção dos sintomas, Charcot foi um dos primeiros a adotar aparelhos de proje- patologia, de outro, ela as une estreitamente, ao mesmo tempo que se co~-
ção durante suas conferências; seus esboços e fotografias forneci~ uma do- ) de com elas por uma transição imperceptível." Charcot ~d~tou ~sta ~SI.:-
cumentação espetacular sobre as angústias de toda uma geração. As vésperas ção de Claude Bernard: "Não se deve subordinar a patologia a fisiologia. E
da chegada de Freud a Paris, foi morar numa bela mansão no bairro de o inverso que se tem de fazer. É preciso, primeiramente, c~locar o problema
Saint-Germain; ali mandou arrumar um imponente gabinete de trabalho, com médico tal como é dado pela observação da doença, e depois procurar forne-
o pé-direito alto e revestido de estantes desenhadas segundo o modelo das cer a explicação fisiológica. Agir de outra maneira seria expor-se a perder o
dos Médicis em Florença. Substituiu os vidros por vitrais, para escurecer o .
doente de vista e a descaractenzar a d oença. "22 .
aposento e conferir-lhe um ar de mistério. "Ele se sentava a uma mesa", su- Sensível àscootorções do corpo e fascinado pela cancatura, Charcot
blinha seu biógrafo Georges Gui11ain, "e convocava imediatamente o doente instalou em seu palacete wn estúdio de pintura em esmalte e em ~rcelana.
a quem devia examinar. Este era então completamente despido. O interno lia Para decorar a fachada da casa, copiou a Dança dos loucos,.de Du~r, .mas
o resumo clínico do caso, enquanto o mestre escutava atentamente. Seguia-se não manifestava nenhum interesse pela arte moderna, pelos llDpr~ssI~m~
um longo silêncio, durante o qual Charcot não parava de olhar para o enfer- ou pela nova \poesia. Em contrapartida, publicou com Richet um h.vro mtI~-
mo, tamborilando os dedos na mesa. Seus assistentes, de pé ao lado dele, lado i:es~JWniaques dans Lart, ilustrado com gra~~ de _extátlc~s e epI=
aguardavam ansiosamente por uma palavra de esclarecimento. Charcot con- lépticos; essa obra destinava-se a comprovar que a histena nao 2;ora mve.nt~
tinuava a guardar silêncio. Por fim, pedia ao doente que fizesse um movi- da pela ciência, como se dizia, mas e.x!strr:aem todas as épocas. Sua paixao
mento, convidava-o a falar e mandava examinar seus reflexos e controlar pelo domínio das alucinações e da feitiçaria re~o_ntava a 1~5~, quando fizera
suas reações sensoriais. E novamente o silêncio, o misterioso silêncio de uma experiência com o haxixe e narrara suas VISoeS,substituindo as palavras
Charcot. Finalmente, convocava um segundo paciente, examinava-o como o por desenhos. . af . .
primeiro, mandava vir o terceiro e, sempre sem dizer uma só palavra, entre- Sempre na ordem do visual, as pesquisas de C~arcot s?bre a asia ti-
gava-se a comparações entre eles. Esse tipo de exame clínico meticuloso, de nham por objetivo estabelecer relações entre as teonas ,da lffiag~m e as da
natureza essencialmente visual, estava na base das descobertas de Char- linguagem. Para isso, ele se apoiou nos trabalhos d~ Theodule ~~bot e ~on-
coto"21 siderou que a palavra possuía quatro elementos:. a Imagem audltIV,a, a Ima-
Charcot era silencioso, preferindo o olhar à fala. Parecia temer o con- gem visual, a imagem motora de articulação e a imagem m~tora gráfica, En-
tato com os seres humanos e tinha verdadeira paixão pelos animais. Ao lon- carou a afasia como uma amnésia, produzida pela supressao. d~ uI?a des~as
go de toda a s a vida, cercou-se de cães de todos os tamanhos, e viveu muito memórias parciais. Essa noção explicari~, ~~. ele, :odos o~ dIS~rl)10S da 110-
tempo em companhia de uma macaquinha que, à mesa, sentava-se numa ca- guagem, e em sua opinião o sistema Iingüístico nao funCI?nana da. mesma
deira alta de criança. Ele cuidava de sua alimentação e se extasiava quando maneira em todos os indivíduos, em quem um centro podena'pr;ct~mmar so-
ela lhe furtava alimentos do prato. Charcot se opunha à vivissecção, fez bre outro. Através dessa elaboração, Charcot sustentou a existência de uma
campanha contra a caça e era apaixonado pelo circo e pelos palhaços. tipologia da percepção humana, baseada numa classificação que opunha os
Em 1887, tomou a defesa de Pasteur, atacado por todos os lados pelos auditivos aos visuais.
defensores da "geração espontânea", hostis à vacinação anti-rábica. Essa
tomada de posição não se explica apenas pelas opiniões decididamente mo-
dernas de Charcot: a raiva é uma doença infecciosa do sistema nervoso e,
nessa época, era possível supor, como mais tarde faria Calmette, que existis- 111. Filiaçóes
sem micróbios ainda desconhecidos com uma afinidade especial pelo sistema
nervoso. O próprio Charcot a . à . é'a de d o a tinha
sua autonomia~~u ela originasse sem um fundamento Nas noites de terça-feira, na man~ã? do Boule~~d Saiht~Germain, encontra-
orgânico; era herdei aJJ:aW.ção anatomo atológic q vam-se os maiores nomes da medicina, da política e da hteratura. Gam~tta,
acrescentara as descob.e.~te Çl,.ilucl!Bernard em matéria de fisio- Alphonse Daudet e seu filho Léon sentavam-se ~o l~do do profess~r Lépine,
logia Em sua aula inaugural, deixava claro: "A anatomia patológica não te- Gilles de Ia Tourette, Vulpian, Brouardel, Babinski, etc: Um~ no~te., Fre~d
ria senão uma existência incerta se fosse realmente reduzida tão-somente à foi convidado para jantar, em companhia de wn certo Richetti, médico vie-
contemplação da lesão morta ... Na realidade, os vínculos da anatomia pato- nense que usava sempre roupas surradas; ,nessa noite, porém, estreou um ter-
32 a descoberta da histeria "sobre essascausas genitais" 33

no novo, tinha a barba bem-feita e os cabelos cortados. A Sra. Charcot, sen- ciência não é de nenhum país e não pertence realmente a nenhuma raça. "26
sível ao encanto desse poliglota, perguntou a Freud quantas línguas ele pró- Mostrou que a França permanecera surda por mais de dez anos ao movi-
prio falava: "Alemão, inglês, um pouco de espanhol e muito maio francês", mento intelectual alemão e que, no momento em que a CIência de além-Reno
foi sua resposta. Foi então que Jean Martin Charcot proferiu esta frase pro- foi enfim reconhecida, os estudiosos germânicos, embriagados com seu su-
fética: "Ele é modesto demais", disse, "só lhe falta acostumar o ouvido." cesso, pareciam convencidos de que o império da ciência lhes pertencia. Es-
Radiante, Freud confirmou a afirmação e acrescentou com humor: "Muitas se posicionamento foi rofétic . futuro da sicanálise na Fran a; com
vezes, s6 entendo o que acabei de dizer depois de meio minuto";24 em se- efeito, to encontro C arcot-Freud teve lug~num período c~~cterizado pe a
guida, comparou sua maneira de reagir a um sintoma da tabes. opõ'S"lção entre a escola alemã de anatomopatologia c a escola francesa de
Nessa noite, Freud observou que Charcot fora tão pobre quanto ele e neuropatologia. Meynert, de um lado, e Charcot, de outro, foram tributários
devia sua riqueza ao casamento. Sentiu-se também muito atraído pela filha de uma orientação da ciência que viu o despontar das localizações anatômi-
do mestre, Jeanne Charcot. Esta não era bonita, mas tornava-se interessante cas, enquanto Freud, mais moço, beneficiou-se do ensino conjugado dos dois
por causa de uma "cômica semelhança" com o pai. Entendia o alemão e o mestres. Viu inaugurar-se uma nova época, na qual o triunfo das localiza-
inglês, e Richetti fez-lhe um pouquinho a corte, enquanto .Freud ficou a noite ções cerebrais já era visto como tendo dado margem a esperanças excessivas
inteira perto dos "velhos senhores": "Imagine s6", escreveu ele a Martha, e na qual as teorias funcionalistas do sistema nervoso eram predominantes,
"se já não estivesse apaixonado, e sendo, além disso, um verdadeiro aventu- graças ao desenvolvimento da ftsiolo ia e g~ e.1etroftsiologia.21.Já observa-
reiro, eu poderia ter sucumbido a uma forte tentação, pois nada é mais peri- mo e co aSSUnIara parte dos ensinamentos de Clau e Bemard. Mais
goso do que uma moça que tem os traços de um homem a quem admiramos. tarde, tomar-se-ia partidário de uma anatomofisiologia em que o método
Aí então zombariam de mim, me expulsariam, e não me restaria nada além de anatomoclínico seria dorni-iante, tendo por princípio o estudo metódico dos
ter vivido uma bela aventura. Afinal, é melhor assim. "25 sintomas e a constatação da sede das lesões após a morte.
De fato, afinal foi melhor assim. Podemos imaginar qual teria sido o A esse respeito, Freud conta a seguinte hist6ria: "O acaso lhe enviou,
destino de Freud se ele tivesse cedido a suas tentações. Numa manhã de pri- quando era estudante, uma criada que sofria de um tremor particular e que,
mavera, teria desposado a filha de mestre Charcot, uma moça meio gordinha, por seu desajeitamento, não conse~. a encontrar nenhuma colocação. Char-
feia e muito rica. O explorador do inconsciente ter-se-ia transformado no cot reconheceu seu estado como a aralisia coreiforme, já descrita por Du-
genro do inventor do moderno conceito de neurose histérica e a aventura da chenne, mas cujos fundamentos não eram conhecidos. Conservou essa inte-
psicanálise neste país teria sido diferente. No entanto, no salão iluminado do ressante doméstica a seu servíçoc.muíto embora ela lhe custasse, ao longo
Boulevard Saint-Germain, a literatura, a teoria e os "affaires" de família es- dos anos, uma pequena fortuna em pratos e travessas, e quando ela veio fi-
tavam ligados. Jeanne, que se parecia com o pai, estava enamorada de Léon nalmente a falecer, pôde demonstrar em sua aut6psia que a paralisia corei-
Daudet, que não queria saber dela, e Charcot experimentou com isso um forme era-a expressão clínica da esclerose cerebrospinal múltipla."28
violento ressentimento. Por um curioso acaso, esse rapaz se casaria mais tar- De fato, ao proclamar a neutralidade da ciência em relação às raças e
de com a neta de Victor Hugo, cujo prenome era Jeanne e que fora, ante- às nações, Charcot afmnou-se como adversário de uma ampla tradição chau-
riormente, mulher de Jean-Baptiste Charcot, filho do mestre e explorador de vinista da medicina e se situou como defensor de uma concepção da pesquisa
banquisas, embora o pai o pretendesse médico. Assim, Daudet viria a ser em que a verdade interna à ciência deve primar sobre as condições sociol6-
neto por afinidade de um poeta a quem recriminava por sua "libido", seu gicas, nacionais ou "raciais" de sua prática. Essa profissão de fé não se des-
"despudor" e suas "fantasias" extraconjugais. vinculou do esquecimento que iria atingir sua descoberta.
Charcot era um liberal, defensor da república e crítico tio sistema reli- A partir do quadro da neurologia, Charcot deu um estatuto preciso à
gioso. Por ocasião do caso Boulanger, * não dissimulou sua aversão à ditadu- histeria, criando um novo conceito de neurose que estaria na origem da des-
ra. Sempre manifestou opiniões patri6ticas, sem confundi-Ias com o interesse
da ciência. Após a guerra de 1870, na introdução de suas aulas sobre a pa-
1 coberta do inconsciente. Nesse sentido, a introdução da psicanálise na França
começou em 1885, com o encontro entre Freud e Charcot, que tornou pa-
tologia dos idosos, declarou: "Não é facultado a ninguém esquecer que a tente a idéia de que a histérica inventa sintomas e conduz o estudioso pelo
caminho de sua compreensão. Através desse acontecimento, o doente fábri-
ca, mostra e exprime, enquanto o médico descobre.
* O General Georges Boulanger foi um Ministro da Guerra extremamente popular, que reuniu os Com O caso de b-nna O., Freud pos~~ía desde 18~0 uma experiência de
insatisfeitos a seu redor, mas, triunfalmente eleito em Paris, hesitou diante do golpe de Estado, em escuta com a qual não sabia o que fazer, e foi a Paris para ver Charcot reinar
1889, e fugiu para a Bélgica sob a ameaça de prisão, ali cometendo suicfdio em 1891 (N. T.). em meio ãs-h stéricas; este não se interessou pela hist6ria de Anna, mas cria-
34 a descoberta da histeria "sobre essas causas genitais" 35

. .a sintomas através de- uma fala -.sugestiva. Mostrou, à parte qual- os charlatães e os curandeiros gozavam de um prestígio importante, tanto no
va e supnrru 1 . b e
- . que os fenômenos da histeria obedeciam a eis; tratou as o s r- interior quanto nas cidades. A distinção entre a ciência e a arte de curar es-
que: maglltn,a'l'cascomo fatos e delas extraiu conjeturas neurológicas, contra- tava sujeita a controvérsias, mas nenhuma regulamentação era imposta. A
vaçoes c . d t d
riamente aos clínicos alemães, que se baseavam ~uma teona os es a os maioria das pessoas e dos médicos estava convenci da do caráter "hereditá-
morol os. ~'Ch arco,t" sublinhou Freud , "nunca deixou de defender os di- rio" de todas as doenças, e trens inteiros transportavam multidões para os
reitos do trabalho puramente clínico, que consiste em ver e ordenar~ em opo- locais sagrados, onde todos os males eram "curados" por milagre.
si ão às invasões da medicina teórica. Estávamos, cert~ vez: ~eum?os num Durante o Segundo Império, começou-se a condenar os charlatães e os
ç inho de estrangeiros e, formados pela escola alema ?e fIs,lOlogl.a, pus~- médicos que praticavam tratamentos imaginários para doenças incuráveis.
grup
mo-nos a I, importuná-Io contestando suas novidades clínicas: . Mas
. d ISSOnao
Y Em seguida, na Terceira República, uma nova era pareceu inaugurar-se com
pode ser' objetou-lhe um dia um de nós, 'isso contradiz a teona ~ oung- o triunfo do positivismo; entretanto, os costumes da população e dos médi-
Helmholtz.' Ele não respondeu que 'é muito lamentável para a teona que os cos em matéria de tratamento estavam longe de ladear com a ciência contra o
fatos clínicos tenham preeminência', ou outra coisa. do me:mo ,teor: rn:s nos obscurantismo.
disse, ainda assim, o que nos causou uma grande Impr~ssao: teona_ e bom, A maioria dos grandes médicos parisienses compunha-se de rnecenas
as isso não impede de existir'f? [em francês no texto].)" arcot prrvi egra-\ cultos; eles freqüentavam os salões literários e os corredores do poder. Ri-
~a u~a con"cepção • expenrnenta' a clínica e, favorável a suas obse,:a- camente instalados, tinham a arte do ornato ou do bem-viver. Seus palacetes
ções Freud foi levado a conceber a possibilidade d~ um pensan:ento des':II~- eram opulentos, decorados à antiga. Uma das características dessa classe es-
cUlado da consciênc.ia) este"produ~iri~ efeitos so~átlcos a reveha dos IDdIVI- tava em suas "manias". Todos os médicos dos bairros abastados tinham uma
duos 'á ue a histénca era ssuída r seus smtomas.) . atividade privada, cultivavam seus dons íntimos ou eram colecionadores
Num segundo momento, de volta a Viena, reud separou-se progressi- apaixonados de arte pictórica; alguns professavam um culto pelos vasos chi-
vamente da clínica dominada pela função do olhar, pelo culto. do ~uadro e neses ou por fragmentos dos templos gregos; outros eram bibliófilos e per-
10 da aula; instaurou uma nova prática, fundamentada na pn~a:I~ da es- corriam a Europa em busca de edições raras; outros ainda entusiasmavam-se
:ta e do relato. Ao término dessa dupla invers.ão, na ~ual ~ .hlsté~c~ tev~ pelos romancistas, músicos ou escultores. Esses médicos eram "voyeurs" de
um lugar central, a noção de inconsciente emergiu e a pSlcanah.se veio a luz.
o médico renunciou ao ver e ao tocar, distanciando-se dos dOIS termos que
um talento que não possuíam e:ro qual revelavam os estigmas de um dom li-
gado à patologia. A teoria da h reditariedade-degenerescência fazia furor e
selavam a existência da clínica no século XIX; ao mesmo te~po, a fala r ,mu- havia uma tendência a encontr nas aptidões artísticas o traço de uma doen-
dou de campo: o estudioso calou-se, guardando seus comentanos p~a SI, re- ça própria da criminalidade. Cada médico célebre possuía em sua clientela,
traiu-se
. no SI'IAenci"0 , deix ando ao enfermo o cuidado de curar a SI mesmo. no auge de sua carreira, um artista famoso com quem mantinha um diálogo
Com a entrada em cena da "orelha freudiana", o paciente passou a ocup.ar o sobre a gênese da faculdade criadora. Assim, o Dr. Blanche era o consultor
lugar outrora reservado ao médico; tornou-se criador, relator e romancista, de Van Gogh e Maupassant, Édouard Toulouse o de Zola e Artaud, etc.
inventando um discurso e fabricando seu caso. . _ . Charcot pertencia a essa "raça" de médicos franceses, marcados por
- No momento em que Charcot estava em condições de ocup.ar uma POSI- uma época em que a ciência médica se constituiu, reunindo no último lam-
ção de inovador, tratava-se de um personagem público den~nclado por s~u pejo de uma clínica do olhar o talento de uma vidência e o de uma objetivi-
cesarismo. Pertencia à categoria de médicos elevados na hierarquia SOCial dade racional. Obcecados pela sífilis, esses estudiosos eram fascinados pelo
pelos casamentos abastados. Como outros parisienses antes dele, fora exer- poder do sexo, onde buscavam o segredo das paixões e da decadência das
cer a prof.ssão num bairro elegante. .. , . . civilizações. A histeria, a loucura, a melancolia e a epilepsia, ainda não des-
Nessa época, os médicos não podiam viver dos h~norano~ percebidos ligadas de seu suporte orgânico, desvendavam-lhes as face tas de um gênero
da gente do povo e, muitas vezes, ligavam-se a uma clientela nca 9u.e lhes humano em que encontravam, como que no espelho, a violência e os horro-
permitia cuidarem gratuitamente dos p,~bres. C~~cot chegar~ ao apice da res que temiam ver germinar neles mesmos. A mulher, o homossexual, o lou-
glória sendo um dos "grandes patronos da medicina .francesa, nessa condi- co e o criador lhes ofereciam a imagem do que eles queriam ser. O culto do
ção, estava cercado de alunos respeitosos, que fa~oreclam ~eu n~potlsm.o. , belo e a mania da compra e venda de objetos encobriam suas tentações in-
A profissão médica desfrutava, na burguesia, uma Slm?a~la con~ldera- confessáveis.
vel, pois era sinônima de independência. Nela se era seu propno patrao e se Pelas polêmicas suscitadas por seu personagem, Charcot pertencia à li-
tirava proveito do culto habitualmente reservado aos d~t~ntores de algum sa- nhagem de Broussais, que fora, antes dele, um dos mais controvertidos de-
ber misterioso ou de poderes mágicos. Tal como os médicos, os algebristas, fensores da tradição médica francesa. Para numerosos cronistas, esse homem
"sobre essas causas genitais" 37
36 a descoberta da histeria

eloqüente caracterizara, no início do século XIX, as aberrações do saber mé- que Freud recebeu das histéricas e da qual se apoderou, no limiar do século,
dico. Ele afirmava que a inflamação intestinal era a causa de todas as d?en- para advertir os homens de sua ferida originária. A psicanálise é uma manei-
ças e, para curá-Ia, prescrevia sangrias, aplicação de sanguessugas e dietas ra particular de contar a história de Édipo; a angústia, o esquecimento, a
severas. Seus pacientes, esfaimados ou prejudicados pela perda de sangue, lembrança, o tempo, o despedaçamento e os olhos vazados: termos diversos
que simbolizam a perda de um domínio incessantemente reconstituído pela
morriam como moscas. .
Para o historiador das ciências, a posição de Broussais tem utn alcance ilusão de um ego. Quanto à história da psicanálise, ela se confunde com a de
inteiramente diverso. Michel Foucault ressalta que ele ocupou na crise das um útero enganador. O que era preciso arrancar das mulheres da Salpêtriere
febres um lugar de inovador, já que, com seus trabalhos, a anatomia patoló- para entender-lhes o sexo? A esse enigma nenhuma clínica pôde responder,
gica abriu-se para uma fisiol~gia do fenô~en? .mórbid.o: ~'~rous,~ais fez o pois sa _ <Jfei ue Ç),Catlle tom pato ógico não fornece de
axioma da localização passar a frente do pnncipio da vIS1blhdad~ .' escr~ve modo algu l}..s:;Pavda.histeria. E, no entanto, era preciso prová-Io: Charcot
ele: "a doença estava no espaço antes de ser visível C ..) e a medlcma abnu- esgotou-se nisso, demonstrando assim a existência da histeria masculina;
se então para um campo de investimento inteiramente especializado e ?eter- Freud, seguindo-se a ele, correu o risco do bisturi, separou o órgão de sua
minado de ponta a ponta por valores locais." Dentro dessa perspectiva, a função, amputou o sexo do corpo anatômico, ao preço de romper o contrato
causa das doenças pôde ser definida a partir de uma concepção que engloba- que unia, desde a antiguidade, útero e sexo, doença nervosa e medicina, o
va o agente externo e a modificação interna, donde o vínculo entre essa des- clínico e seu ór ão.
coberta e os costumes terapêuticos aberrantes: "Ele só conseguiu contornar a  atuação do inconsciente de Freud em sua relação com Charcot de-1
idéia das doenças essenciais mediante um preço extraordinariamente eleva- sempenhou um papel importante no nascimento da psicanálise. Permitiu de-
do; precisaria ter novamente angariado si~I?atia par:a a vel~a noção tão criti- marcar as condições de produção de um novo conceito de neurose, a partir
[
cada (e justamente pela anatomia patológica); tena precisado retoma: ao de uma cena "visual" em que a histérica ocupava o lugar central.] Em sua
conceito halleriano de irritação; ele se inclinara novamente para um momsmo admiração pelo mestre, reüd Irlefltificõu-se-;-Sém' saber" disso, com um
patológico que lembrava Brown, e repusera em jogo, na lógica de seu sis~e- doente histérico; tendo sempre sofrido de distúrbios "nervosos", acreditou-
ma, as velhas práticas da sangria (...). Tudo se justificava nos ataqu:s t:un<; se atacado de neurastenia./ ~
sos que os contemporâneos de Broussais lançavam co~tra ele. Mas nao ~tel- Este último termo, introdu ido por Beard nos Estados Unidos, nos anos
ramente: essa percepção anatomoclínica, enfim conquistada em sua totahda- de 1880-1884, correspondeu à rime ira instauração de uma teoria psicosso-
de e capaz de controlar a si mesma, essa percepção em nome da qual os ou- ciológica da doença mental. Dizia-se que as condições da vida moderna,
tros tinham razão contra ele, era à sua 'medicina psicológica' que eles a de- criadas pela industrialização capitalista, eram julgadas suficientes para pro-
viam, ou que deviam pelo menos a forma definitiva de equílfbrio.t'P? vocar esse distúrbio nervoso; dizia-se também que a histeria era uma doença
De Bichat a Charcot, passando por Broussais, o saber médico se cons- da rnoda. E Freud, ao separar a neurastenia da histeria, constatou ao mesmo
tituiu através de perdas e esquecimentos: os partidários da anatomoclínica ti- tempo a identidade nocional das duas formas de neurose: "É possível for-
nham a impressão de estar transgredindo os preceitos do obscurantismo ao mular a hipótese", sublinha J. Nassif, "de que a neurastenia, como neurose,
abrir cadáveres. Mais tarde, Broussais fez com que desaparecesse "o ser da não seja outra coisa senão o termo a partir do qual Freud pôde construir o
doença", opondo à idéia de doença essencial uma fisiologia dos órgãos en- conceito de neurose obsessiva. "31
fermos. Depois, Charcot "esqueceu" o sexo, que desordenava sua nova no- A identificação de Freud com a histérica e seus vínculos ambivalentes
solo ia. com respeito ao mestre da Salpêtriere fazem-nos levar em conta a problemá-
Será que é sempre preciso caminhar pelo erro para aceder a uma par- tica das filiações imaginárias. Com efeito, a dimensão da transferência é es-
cela de verdade? Será o esquecimento uma maneira de reencontrar o tempo? sencial para situar, na história das ciências, a divisão introduzida por Freud
Uma verdadeira simbólica da castração, que confina por instantes à realidade entre saber e verdade. Num texto antigo, 0_ Mannoni'" observa que não po-
de uma perda incontornável, percorre a história das ciências: o câncer de demos compreender a gênese da teoria freudiana através da referência a um
Freud, semelhante às devastações do inconsciente, o bisturi de Bichat, pare- modelo de linearidade e progresso, e que é preciso distinguir, ou até mesmo
cido com a disposição das entidades mórbidas no organismo, a "loucura" de opor o saber adquirido por Freud junto a Charcot e Breuer, que se constituiu
Littré diante da resistência das palavras, a de Flaubert, impedido pela morte como um corpo de hipóteses, ao saber trazido pelo desejo inconsciente, cuja
de terminar Bouvard et Pécuchet, e, mais tarde, as errâncias de um Pichon, experiência o estudioso fez junto a Fliess em seu retorno a Viena, no curso
pressionado pelo demônio de uma nova nomeação das coisas; e ainda Lacan, de sua "auto-análise". ssa "análise originária" situa o saber teórico sob
obcecado pelo "acaso mallarmeano". Loucura do saber: tal foi a "doença" o ângulo de uma situação transferencial. Nessa ótica, a teoria do incons-
"sobre essas causas genitais" 39
38 a descoberta da histeria

ciente não saiu nem da cabeça de Freud nem de uma lógica da razão, ~s do mente prevalente da histeria, como se acreditava, mas o modelo de seu me-
encontro contradit6rio entre uma prática espon~ea e um == ~e6nc~ em
canismo, quer existissem sintomas somáticos ou não; isso pressupunha preci-
samente que se operasse uma conversão na abordagem e no tratamento da
ue "eulade se diz p erro. Assim, não deve s c nfundrr a dentldade
histeria: os recursos não mais seriam diretamente buscados nos lugares do
simbólica de uma descoberta com a I a de se enitor ain ue este se
tome permanentemente r ai de sua obra.. o separar teoricamente os dOIS co~, ~ na atuação da fantasia, com suas leis espaciotemporais próprias,
e nao mais no quadro gestual e fixo, mas nas posições identificatórias variá-
domínios, compreendemos como, na reali de, eles es~o sempre ~ist1lfados.
veis, múltiplas e ocultas. "36
Por sua identificação com a histérica, Freud dana ao conceito de ne';l-
rose um novo estatuto, mas, com o mesmo movimento, levado por seu desejo A palavra "histeria" designa, desde a antiguidade, uma doença orgâni-
inconsciente, iria tornar-se, tal como Charcot, um mestre fundador. Essa po- ca. de ·origem uterina, -que afeta o corpo em sua totalidade; Hip6crates foi
sição ambivalente caracteriza, para o movimento psicanalítico, uma filiação'" o inventor do termo. Os distúrbios nervosos eram observados, antes de mais
que coloca cada discípulo na relação transferencial com o saber. e a pessoa nada, em mulheres que não tinham engravidado ou que abusavam dos praze-
res carnais. O tratamento recomendava o casamentp para as moças e um no-
do mestre. Daí a importância de estudar como se perpetua a Imagem do
"grande homem" na história da formação dos analistas. • v~ casame~t<:>para ~ viúvas. Na Idade Média, sob a influência das concep-
ço~s_agostimanas, VIU-senas manifestações histéricas a intervenção do de-
momo. A caça às bruxas durou dois séculos, e dentre as vítimas ditas "pos-
suídas" figuraram sobretudo as histéricas. Já nessa época, a opinião médica
resistia à concepção demoníaca da histeria. No século XVII, antes de Char-
IV. O sexo, a mulher e a histeria
cot, Charles ~pois afirmou que essa doença provinha do cérebro, já que
afetava os dOIS sexos: a teoria "uterina", portanto, foi contestada. Paralela-
Pierre Marie um discípulo de Charcot, garante que foi o "acaso" que mer- mente, evocou-se o papel das emoções na origem dos distúrbios. O vínculo
gulhou seu ~estre em plena histeria; o prédio ~~nte-~ure, n~ Salpêtriêre, entre o cérebro e o útero:irmaneceu, mas foi deslocado; o cérebro desem-
achava-se em tal estado de velhice que a administraçao hospitalar teve de ~nhava o papel de retrans issor e distribuidor de um mal cuja origem seria
mandar evacuá-lo. Aproveitou a oportunidade para separar os loucos ~os visceral. "Até o fim do séo 10 XVIII", escreve M. Foucault, "até Pinel, o
epilépticos.não-alienados e das histéricas. Uma vez .que essas ~uas categorias útero e a matriz permaneceriam presentes na patologia da histeria, só que
de doentes apresentavam crises convulsivas, considerou lÓgICOreum-las e graças a um privilégio de difusão pelos humores e pelos nervos, e não por
criar para elas um setor especial: o setor dos epilépticos simples. Freud, ~ um prestígio particular de sua natureza. "37
dando pouca importância ao acaso, sublinhou que Charcot reconhecera a ne- Charcot inaugurou um modo de classificação que diferenciava a crise
cessidade de submeter esses enfermos a uma observação constante, e asso- histérica da crise epiléptica e libertou os enfermos da acusação de simulação;
ciou essa "revolução" à de Pinel: "Charcot havia repetido em pequena es- entretanto, a ciência oficial passou a afirmar que as histéricas de Charcot
cala o ato de libertação em memória do qual o retrato de Pinel estava pendu- eram ~xcelentes atrizes e que o mestré fabricava a doença tal como um mági-
rado na Salpêtriêre, na sala de conferências. "34':0 ser nomeado .~~dic~ do co r~trra.coelh<?s de sua cartola. De fato, a essência da descoberta de Charcot
recai .n~s seguintes pontos: ele abandonou a antiga definição da histeria e a
hospício em 1862, ele percorreu as salas do prédio e fez esboços. Os tipos
clínicos" escreveu "oferecem-se à observação, representados por numero- SU?StltuIUpela definição moderna de neurose; remontou esta última a uma
sos exem~lares que' permitem' considerar a afecção de maneira, por as~im di- ongem traumática, dotada de um vínculo com o sistema genital, e em segui-
zer, permanente, pois os vazios que se formam com o tempo. logo serao pr~- da de.monstrou a existência da histeria masculina, na qual realmente não se
enchidos. Estamos na presença de uma espécie de museu cujos recursos sao acr~tava, passando assim de uma espécie de semântica dos fluidos, que cir-
culanam da matriz para o cérebro, para uma semiologia da neurose. Aban-
consideráveis. "35
O espaço do hospital confundia-se, para Charcot, com os id~ais de u~ donou, portanto, a questão do útero, fazendo da histeria uma doença nervosa
nosografia. A divisão em prédios devia coincidir com a das entidades deh- ?e o~gem hereditária e orgânica, e, para destacá-Ia da simulação, renunciou
mitadas pela nova clínica: "Ali, a setorização foi nosográfica", sublinha J.B. a antiga etiologia sexual de que Freud se iria apoderar, desvinculando então
Pontalis. [...] O espaço psíquico era o grande ausente. Seria preciso que a neurose do campo da doença orgânica. Numa noite de 1886, o jovem
Freud percorresse todo um caminho, com seus obstáculos, s';las emboscad~ Freud sou~ .pela boca de Charcot que o mestre "sabia" da primazia das
e suas armadilhas, para constituir esse espaço e para díferenciá-lo. Ser-lhe-Ia causas gerutais, mas que elas deveriam permanecer secretas em suas aIcovas.
preciso reconhecer na conversão (metáfora espacial), não a forma efetiva- Reconcovar o sexo seria, para Freud, à luz do caso de Anna O., sair do es-
40 a descoberta da histeria "sobre essas causas genitais" 41

paço da doença e dar . ao conceito de neurose um estatuto que escapava aos nho; considerava a capital francesa um lugar de libertinagens e tentações:
quadros da neurologia, . . "Creio", escreveu a Martha; "que seus moradores ignoram o pudor e o me-
Para explicar que a histeria não era uma doença do s.~ulo mdust:r:tal, do. Tanto as mulheres como os homens se comprimem ao redor dos nus, bem
mas uma afecção precisa, passível de receber uma descrição nosol~gtc~, como em tomo dos cadáveres do necrotério, ou de horríveis cartazes nas
Charcot demonstrou que seus estigmas eram identificãveis n~ obras ~lctón- ruas anunciando um novo romance neste ou naquele jornal, e fornecendo ao
cas de épocas anteriores. Reencontrou nas crises de possess~o e nos ex~es mesmo tempo uma amostra de seu conteúdo. É o povo das epidemias psíqui-
conhecidos desde a antiguidade os sintomas de uma enfermidade que amda cas, das convulsões históricas de massa, e não se modificou desde a época
não recebera sua defmição científica: "A histeria", afirmou, "é a mesma por da Notre-Dame de Paris, de Victor HUgO."39~s assistentes da Salpêtriêre
tod arte " O estudo do quadro de Rubens sobre Santo lnácio curando as tinham um estilo de vida mais livre do que Fre d; estavam habituados às brin-
a p . I. r .
possuídasê" forneceu-lhe a oportunidade de ~esc.rever, com u?Ia m~ típ ICI- cadeiras da sala de plantão*, percorriam os b rdéis e eram ávidos de rela-
dade de detalhes, as fases do grande ataque histénco: a fase epileptôíde, com ções mundanas. Nesse .ültímo quarto de século, o sexo era dissociado dos
seus movimentos tônicos, na qual a enferma se encolhe comq u~.bola e faz valores conjugais; viamo-lo afixar-se ao corpo das histéricas, e, para uma
uma volta completa sobre si mesma, assumindo uma postura te~a.mca; a fase ampla faixa da intelectualidade, ele era sinônimo de revolta ou traduzia o
de clownismo, com suas contorções, seu movimento num ~co crrculw: e .seus ódio às tradições familiares. Assim, Maupassant freqüentava bordéis, mas
gritos de ódio; a fase passional, acomp~hada po~ suas atitudes de suphca e assistia também às aulas.de Charcot.
de paralisias extáticas; e por fim o pertodo terminal, com su~ c~ntraturas Muitos anos depois do encontro de Freud com Paris, os adversários
generalizadas, na qual os braços e pernas se retorcem de ~e~ra rrregular. franceses da psicanálise acusaram o "pansexualismo" freudiano de ter por
Charcot acrescentou a isso uma variedade demoníaca da histena, na qual a origem a situação corrupta da cidade de Viena: assim, o chauvinismo proje-
Inquisição vira os sinais da presença de Satã no útero das mulheres. tou numa cultura estrangeira suas próprias fantasias eróticas; aliás, os vie-
Através dessa relação da histeria com a obra de arte, Charcot fez do nenses recriminaram Freud, num mesmo movimento, por ter-se sujado no
pintor uma espécie de médico da transparência anatõmica dos coIJ?Os.Para contato com os prazeres parisienses.
J~ verdade que a conivência estabelecida por Freud entre a sexualida-
tigos a marca de seu talento, e a o~~ de -=
ele, o artista era um copiador que apunha em sua época ou no~ penOd?s ~-
era uma espécie ~e histeria
bem-sucedida. Essa concepção da cnaçao foi a dos terapeutas do seculo XIX
de e a histeria se enraíza nas novas formas de representação do sexo surgidas
no final do século, quando á burguesia instalada no poder substituiu a "sim-
e da primeira metade do século XX, que viam"no dom. a ma;,ca da loucw:.a. bólica do sangue" por uma "analítica da sexualidade". Assim se explica a
Freud iria contestar essa concepção da arte. A modernidade ~r certo nao afirmação de D.H. Lawrence: "Hoje em dia, a compreensão do instinto se-
o afetou, mas ele foi atingido por um. verdadeiro golpe de força, Já que, com xual importa mais do que o próprio ato sexual." O burguês gerava sua des-
ele, a histeria recebeu uma definição "inversa" à que lhe atribuíra Charc.?t; cendência no aconchego de uma família fechada, mas experimentava seus
perfilando-se no conceito de conversão, ela se transformou em deformaçao, instintos junto das mulheres públicas. Mesclava a higiene à defesa da raça, e
fantasia, deslocamento, torção de palavras, romance, sexo... Nessa brecha, amava o prazer temendo suas doenças; a sífilis e a histeria vinham abalá-lo
Freud transformou o conceito de neurose e desembocou numa nova apreen- dentro de seus progressos e suas tradições, em seu patrimônio hereditário,
são da criação e das formas, as mesmas preconizadas pelos d~fensores da como se as casas suspeitas derramassem seu veneno nas entranhas dos valo-
modernidade. Assim, no momento em que a histeria estava em VIa de receber res conjugais. Daí o desejo de analisar o sexo, tratá-Io e passá-Io pelo crivo
do discurso médico.
uma defmição que punha em jogo a primazia da sexualidade, n~ ?Iomento
em que assumiu autonomia frente à hereditariedade. e ao organlcls?Io, n? Charcot dissociou a histeria da sexualidade no contexto de uma organi-
momento em que o olhar se apagou e em que se amphou uma fala, ~OI p?SSl- zação visual da clínica, mas transmitiu "discretamente" a coisa genital. O
velafrrmar-se uma concepção freudiana da arte, desvinculada dos ideais da murmúrio ouvido por Freud começaria a efetivar a ruptura entre o cenário da
imitação. Ao sustentar que "a histeria é uma obra de arte de~o~ada", Freud consulta pública e o do consultório particular, onde a poltrona e o divã tor-
estabeleceu uma nova relação entre a arte e a neurose, a genialidade e a lou- naram-se os instrumentos ritualísticos de um "espaço psíquico" sem nenhu-
cura, o inconsciente e a letra. Foram os escritores, mais do que os psicana- ma medida comum com o espaço gestual hospitalar.
listas, que difundiram essa mensagem.
A história de Anna O. sugeriu a Freud a idéia da origem sexual da
histeria, mas o espetáculo das manifestações eróticas da Salpêtriêre, orque~- * Em francês, sal/e de garde, designa o lugar onde o médico fica, quando não está atendendo. As
tradas por Charcot, não deixou de emocioná-lo. Em Paris, Freud estava SOZl- brincadeiras a que se refere a autora são as canções obscenas que ali circulavam (N. T .),
42 a descoberta da histeria "sobre essas causas genitais" 43

Em Viena, em Paris e sob.o reinado do puritanismo vitoriano, falava-se ria masculina e feminina por Charcot desdobraram-se no momento em que o
muito na sexualidade. Dois contemporâneos de Freud, Krafft-Ebing e Ha- feminismo assumiu um aspecto singular: ele foi iniciado pelos homens (C.
velock Ellis,4o um vienense e um inglês, puseram no papel seus desregra- Fourier, V. Considérant, P. Leroux) e foram os homens que o fizeram triun-
mentos e perversões. O primeiro redigiu um manual para utilização pelos ju- far. Não havia movimento feminista de massa, pois a França era dominada
ristas e pelos médicos. Introduziu os termos masoquismo e sadismo e veicu- pela influência oculta dos burgueses no lar, conscientes do poder de seu do-
lou, no vocabulário da ciência, as grandes fantasias dos literatos. De fato, mínio sobre as tradições familiares.
domesticou-os através de um voyeurismo sutil; serviu-se de bom grado de Na ocasião da primeira estada de Freud em Paris, o divórcio acabara de
um vocabulário complexo, recheado de termos latinos, para esvaziar o cará- ser restaurado pela República, mas o adultério permanecia como crime puní-
ter erótico das histórias narradas. Descreveu em páginas a fio as aventuras vel por lei. A "possessa" exprimia as contorçõ,sde uma sexualidade excluí-
da necrofilia, da flagelação, da pederastia, da claudicação, do fetichismo e da da fanulia. Já não sendo simuladora, revel~ao mundo que os artifícios
da zoofilia, com detalhes e comentários bem formulados. Freud passou por do sexo frágil não eram apanágio das mulhere . transformada em "neurose",
dizer obscenidades extramédicas, enquanto Krafft-Ebing, sob a capa da pes- a doença podia atingir os homens. A Sra. Charco reinava como "patroa" na
quisa científica, foi considerado um autor sério: "Assistimos hoje em dia", casa do marido: os dois comiam fartamente; apetecia-lhes a gastronomia
sublinhou J. Clavreul em 1970, "a uma estranha inversão das coisas, que faz francesa, à qual Freud não conseguiu se acostumar; a Sra. Charcot orgulha-
com que aquele que passou por obsceno tome-se agora um autor seriíssimo, va-se do marido. Durante toda a sua existência, desdobrou-se para criar para
enquanto o grave professor vem alimentar a biblioteca dos eróticos."41 ele um lar agradável e facilitar-lhe os trabalhos científicos. Habituado às en-
Havelock Ellis foi sex6logo e escritor.' Em contraste com Freud, que ti- cenações da Salpêtriêre, o "patrão" mostrava-se frio e reservado na vida
nha uma vida familiar "normal", viveu na paixão e no sofrimento, casando- doméstica. Não admitia ser perturbado quando estava trabalhando e nunca
se com uma homossexual que enlouqueceu. Ele próprio era pederasta e pas- jantava fora: iam jantar com ele, suntuosamente. Seu "cesarismo" não ultra-
sava o tempo lutando contra os códigos morais da Inglaterra vitoriana. Freud passava as fronteiras do hospital; ele reinava sobre as histéricas, mas a "pa-
estava freqüentemente em conflito com Krafft-Ebing, mas tinha por Ellis um troa" o dominava: "Quando queríamos obter alguma coisa do chefe", escre-
evidente respeito; este último acolheu favoravelmente as teorias vienenses veu um aluno, "e duvidávamos de sua aquiescência, era à Sra. Charcot que
sobre a histeria, mas manteve a origem hereditária das neuroses, sobretudo a solicitávamos providenciar a aprovação de nosso pedido, e isso funcionava,
da homossexualidade. De fato, Ellis assemelha-se à histérica do final do sé- quando não pedíamos o impossível. "43
culo: experimentou no corpo os estigmas de um sofrimento que tinha por Podemos apostar que esse "impossível" marcava a fronteira entre o lu-
origem a sexualidade e a partir do qual fez seu texto. gar do saber médico e o da vida privada. A histérica era "a coisa" do mes-
Se a França foi o país onde a histeria começou a receber uma nova de- tre, e o marido volúvel era "Problema" da mulher legítima. Entre esses dois
finição, talvez tenha sido porque, paradoxalmente, a figura da histérica evo- espaços, compartimentalizados mas simétricos, desenrolavam-se os ritos de
cava uma visão de pesadelo. Michelet reabilitara a imagem da feiticeira, uma sexualidade de época, reprodutora e silenciosa em sua vertente conju-
substituindo a fraqueza da alma pela posição da mulher. Com ela, esta se gal, agitada em suas faces externas.
tornou o produto de uma "alienação social". "Isolada em seu casebre", es- Charcot foi o iniciador de uma clínica da neurose histérica. O termo
creveu Roland Barthes, "a jovem esposa do servo dava ouvidos aos demô- "neurose" fora introduzido por um médico escocês, W. Cullen, por volta de
nios levianos do lar, remanescentes dos antigos deuses pagãos que a Igreja 1777. Sob essa categoria alinhavam-se as afecções mentais a que se atribuía
expulsara (. ..). Michelet datou o nascimento da feiticeira do momento em uma origem orgânica precisa; eram chamadas "funcionais", isto é, sem in-
que a relação humana fundamental foi destruída, em que a mulher do servo flamação nem lesão do órgão onde aparecia a dor. Assim, eram tomadas por
excluiu-se do lar, ganhou as matas, fez um pacto com Satã e acolheu em seu doenças nervosas.
deserto, como um depósito precioso, a Natureza expulsa do mundo.i'< A Antes de Charcot, Briquet descrevera a histeria segundo uma clínica
feiticeira curava os males e consolava os enfermos. Michelet afirma que seu que integrava os fenômenos "sociológicos"; ele introduzira na doença as
reinado durou três séculos: o século leproso (XIV), o século epiléptico (XV) coisas da vida, as reproduções ritmadas da natureza, os movimentos dos as-
e o século sifilítico (XVI). Se o século XIX foi aquele em que a ciência tros, os sangramentos do útero, a idade e as condições de vida. Em suma, de-
tentou triunfar sobre as doenças, a feiticeira, na figura da histérica, tomou ra à histeria um ar de Proteu inapreensível. Charcot rejeitou essa concepção
sobre si as enfermidades do mundo. Ela fora terapeuta, tomou-se doente. e, ao contrário de Briquet, procedeu a uma classificação que vinculava a
, Na sociedade francesa do final do século XIX, a libertação das "demo- descrição do sintoma à pesquisa das diferenças e das correlações, bem como
macas", o enobrecimento da feiticeira por Michelet e a legitimação da histe- ao exame das peças anatômicas. Freud, yor sua vez, abandonaria o método
44 a descoberta da histeria

de Charcot para fundar uma nova clínica, tão "semiolõgica" quanto a do


mestre, mas que reintegrava em seu campo o domínio do "sociológico" por
intermédio do relato, da fantasia, da fala e da linguagem.
De fato, Briquet deslocara a sede da histeria dos órgãos sexuais para o
encéfalo. Com ele, o sintoma mudara de sentido: de sexual, transformara-se fi
em afetivo e sujeito a diversas transformações, donde a idéia de uma tipolo-
gia social da histeria. Num movimento contrário, Charcot construiu uma no- Os Magos, os Literatos e os Sábios
sografia desviando-se da problemática sexual. Quanto a Freud, ele reatuali-.
zou a doutrina das causas sexuais à luz da moderna teoria da neurose. As-
sim, não nos surpreenderemos ao constatar que ele nunca cedeu perante seus
adversários e sustentou a primazia da sexualidade na prática da psicanálise e
na teoria do inconsciente. Esta se confunde com o próprio objeto de sua des-
coberta. Foi tão necessário a Charcot afastar-se "teoricamente" da coisa ge-
nital, a fim de construir o conceito de neurose histérica e conferir-lhe um
estatuto de doença "verdadeira", quanto foi essencial para Freud afirmar o I. Os magnetizadores
papel central da sexualidade, a fim de desvincular a histeria do saber médico
e das antigas doutrinas morais ou sociológicas.
Charcot e Freud não foram os dois primeiros médicos a estabelecer um elo
científico entre. a Áustria e a França. Para compreender a inversão efetuada
por Freud a partir da nosografia de Charcot, urge que nos voltemos para o
passado e estudemos de que modo a hipnose foi convocada para a Salpêtriê-
re. Charcot "curava" seus doentes utilizando um método experimental her-
dado do século xvm, que se difundira no contexto da França pré-revolu-
cionária. Seu objetivo não era exatamente conforme ao do magnetizador à
moda antiga, pois ele procurava menos prestar cuidados do que teorizar uma
descoberta. A missão terapêutica não dominava a prática de Charcot, e foi
por isso que se deu a controvérsia com Bernheim e com a Escola de Nancy.
Esse debate iria marcar, em seguida, a posição adotada por Freud no tocante
à hipnose: ele abandonou esse método, considerado inadequado, depois de
atribuir a Bernheim e Charcot lugares simultaneamente complementares e
contraditórios na gênese da invenção da psicanálise.
A psicoterapia entrou em sua fase experimental com as teorias do aus-
tríaco Franz A. Mesmer sobre o magnetismo animal. Doutor pela Universi-
dade de Viena, ele tivera de abandonar sua cidade natal, pois a excentricida-
de de suas doutrinas provocava controvérsias apaixonadas. Mesmer não ti-
nha teorias médicas sobre a origem das doenças nervosas, mas afirmava que
elas provinham de um desequilíbrio na distribuição de um "fluido universal"
que corria pelo organismo humano e animal. A teoria fluídica inspirada pelas
doutrinas "secretas" da franco-maçonaria tinha, para Mesmer, um conteúdo
racional; esse estudioso era "fisiologista" e achava que o fluido era aparen-
tado com o ímã. Assim, o magnetismo animal levava ao hipnotismo, ou seja,
a uma prática terapêutica fundamentada na onipotência do olhar. Acreditava-
se que o fluido emanava do brilho dos olhos e que, colocando os doentes
nervosos em estado de sonambulismo, restabelecia-se o equilfbrio u.. circula-
ção' fluídica. O magnetizador procedia por uma série de manipulações

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