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18922016 2655
DEBATE DEBATE
do Sistema Único de Saúde: conquistas e limites
Abstract An historical analysis of Brazil’s pol- Resumo Análise histórica das políticas de Aten-
icies in Primary Healthcare, with emphasis on ção Primária no Brasil, com ênfase na Estratégia
the Family Health Strategy (FHS), and the Mais Saúde da Família (ESF) e no Programa Mais
Médicos Program (PMM). Studies were made Médicos (PMM). Realizaram-se estudos de do-
of documents and secondary official data, and cumentos e dados secundários oficiais, bem como
the bibliography that has been produced on this de produção bibliográfica sobre esse tema. Cons-
theme.It was found that primary healthcare has tatou-se que houve consolidação da Atenção Pri-
been established and successfully consolidated as mária como alternativa para o cuidado em saúde
an option in healthcare for a great part of the pop- para grande parte da população do Brasil. Obser-
ulation of Brazil. There have, however, been struc- varam-se, contudo, entraves estruturais que têm
tural hurdles, which have tended to compromise comprometido a efetividade e a sustentabilidade
the effectiveness and sustainability of this policy.It dessa política. Identificou-se que estes obstáculos
was identified that these obstacles arise principal- decorrem, principalmente, do financiamento in-
ly from insufficient financing and from inefficient suficiente e de modalidades de planejamento e
modes of planning and management. The Mais de gestão ineficientes. O Programa Mais Médicos
Médicos Program has widened care coverage and ampliou a cobertura assistencial e tornou mais
made the distribution of primary healthcare doc- equitativa a distribuição de médicos na Atenção
tors more equitable, although it has not resolved Básica, não conseguindo, entretanto, resolver pro-
the structural problems of the public system. blemas estruturais do sistema público.
Key words Primary Healthcare, Family Health Palavras-chave Atenção Primária em Saúde, Es-
1
Departamento de Saúde
Strategy, Mais Médicos Program, Health policy tratégia Saúde da Família, Programa Mais Médi-
Coletiva, Faculdade cos, Política de saúde
de Ciências Médicas,
Universidade Estadual
de Campinas. R. Tessália
Vieira de Camargo 126,
Barão Geraldo. 13083-970
Campinas SP Brasil.
gastaowagner@mpc.com.br
2
Departamento de Saúde
Coletiva, Faculdade de
Medicina, Universidade
Federal de Uberlândia.
Uberlândia MG Brasil.
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Campos GWS, Pereira Júnior N
lados para se aproximar da lógica de funciona- foi baixo, havendo ainda dificuldade no recruta-
mento da Estratégia Saúde da Família. A inclusão mento e fixação destes profissionais em regiões
destes serviços tradicionais elevou “administra- de grande vulnerabilidade social e sanitária. Na
tivamente” a cobertura oficial da Atenção Básica prática, verificou-se descontinuidade local dos
no país. serviços, identificando-se três tipos básicos de
Esta PNAB possibilitou a utilização de parte funcionamento da Estratégia Saúde da Família:
da carga horária dos membros das equipes (até algumas unidades básicas organizadas como se
8 horas semanais) em serviços da rede de urgên- fossem serviços de pronto atendimento com bai-
cia do município, realização de especialização em xa resolutividade; outros funcionando de forma
Saúde da Família, residência multiprofissional burocrática, segundo uma lógica programática
e/ou de Medicina de Família e de Comunidade, devido à influência deste modelo na cultura sani-
bem como atividades de educação permanente e tária brasileira; e, uma parcela, finalmente, ope-
apoio matricial. Nesse sentido, permitiu a habili- rando segundo diretrizes da Política Nacional de
tação de equipes com composições mais variadas Atenção Básica.
que a exigência anterior de um médico com de- Resultados obtidos nas avaliações do Pro-
dicação de 40 horas semanais. Tornou-se possível grama de Melhoria do Acesso e Qualidade de
haver dois médicos cadastrados na mesma equi- Atenção Básica (PMAQ-AB)20 evidenciaram que
pe, com carga horária de 30 horas, ou até mesmo enquanto 93% das equipes de Saúde da Família
com 20 horas semanais. Neste último caso, ha- declaram que reservam vagas em suas agendas
veria redução do repasse financeiro do governo para atendimentos no mesmo dia, acolhendo a
federal ao município. Buscou-se diversificar as demanda espontânea, 16,5% das equipes dizem
ofertas assistenciais na Atenção Básica, conside- agendar consultas apenas para usuários vincu-
rando populações específicas, como as equipes lados às ações programáticas, percentual que
de Consultórios na Rua e as equipes de Saúde da aumenta para 21,5% em municípios menores.
Família para o atendimento de população ribei- Se por um lado, 73% das equipes referem reali-
rinha da Amazônia Legal e do Pantanal sul-ma- zar atendimentos de urgência e emergência, por
togrossense. outro, 35% dos usuários entrevistados alegaram
Todas estas novas formulações da política fe- não procurarem as Unidades Básicas de Saúde
deral de Atenção Básica não alteraram a aborda- (UBS) para atendimentos de urgência e emer-
gem de planejamento e de gestão do Ministério gência por dois motivos principais: referem que
da Saúde, que prosseguiu com mecanismos pou- a UBS não atende urgência e emergência ou por-
co potentes de indução e de estímulo aos muni- que as unidades estavam fechadas no momento
cípios e estados. da procura21. A respeito da dimensão vínculo,
Desde sua origem, o PSF adotou perspectiva uma das diretrizes da Atenção Primária e da Es-
ampliada do processo de saúde e cuidado e reco- tratégia Saúde da Família, os resultados apontam
mendou a abordagem baseada na integralidade, que 65% dos usuários referem que sempre são
mediante ações possíveis e necessárias nos vários atendidos pelo mesmo médico, enquanto 19%
planos desse processo. Sempre se argumentou são atendidos na maioria das vezes e 17% nunca
que a integralidade dependeria da composição ou quase nunca22. Sobre o acolhimento, os resul-
multiprofissional das equipes de saúde da família tados mostram ampla capilarização dessa tecno-
e, mais tarde, dos NASF. logia no território brasileiro. Enquanto 80% das
Entretanto, se observa que na prática havia equipes disseram ter implantado o acolhimento,
heterogeneidade na forma concreta de operar passando a fazer a escuta e a avaliação de toda a
destas equipes. Como a gestão concreta é exer- demanda, somente 47,8% demonstraram a exis-
cida pelos municípios, e como as secretarias de tência de protocolos de avaliação de risco e de
saúde têm capacidades de gestão e disponibili- vulnerabilidade como orientação23.
dade de recursos muito diferentes, produziu-se Em experiências de APS em outros países
heterogeneidade no desempenho dos serviços de tem-se observado a adoção de modelos de gestão
Atenção Básica. Encontrou-se grande dificuldade que combinam um importante grau de autono-
na administração de pessoal, em particular dos mia dos profissionais com estratégias de controle
médicos. Houve problemas com salários, indisci- centradas nos usuários e em sistemas participa-
plina no trabalho e oposição corporativa contra tivos de avaliação de resultados24,25. No Brasil,
grande parte das diretrizes da atenção primária. particularmente em cidades com terceirização
O número de equipes com médicos especializa- da APS por meio das Organizações Sociais (OS),
dos em saúde da família e comunidade sempre mas não somente, observam-se dois fenômenos
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Outra diferença qualitativa do PMM foi exa- cos que estiveram, pelo menos, um ano no PMM
tamente essa disposição do governo federal em ou no PROVAB (Programa de Valorização do
redefinir a relação do SUS com a categoria médi- Profissional da Atenção Básica)36. Outro compo-
ca, tanto em relação ao fato acima citado, quan- nente deste conflito com as especialidades e en-
to pelas mudanças na reorientação da formação tidades médicas decorre da necessidade de o Es-
médica que a Lei nº 12.871/201314 determina tado brasileiro construir condições para planejar
para todas as escolas médicas, novas e já existen- e regular a quantidade e a formação de médicos
tes, públicas e privadas. Define também mudan- especialistas. A Lei do PMM determinou a cria-
ças na lógica da expansão de vagas de graduação ção do Cadastro Nacional de Especialistas, que
em Medicina. A demanda passou a ser regulada permite centralizar informações sobre formação
e planejada pelo Estado em função da necessida- e distribuição de especialistas em todo o Brasil,
de social da oferta da formação médica. A nova dados estes que, estranhamente, nenhum órgão
lógica aponta para a interiorização dos cursos e do governo federal possuía até o momento37.
para uma distribuição mais equitativa entre as Complementando as propostas de mudanças
regiões do Brasil, buscando reduzir as diferenças da graduação de Medicina, o PMM traz significa-
regionais em proporção de médicos e vagas de tivas mudanças nas diretrizes para formação de
graduação por habitantes. No entanto, tem sido especialistas. A principal delas é a priorização da
observado que esta expansão vem se realizando especialidade Medicina de Família e Comunida-
principalmente por meio de escolas de medici- de (que passa a ser chamada também de Medi-
na privada, com custos inacessíveis para grande cina Geral de Família e Comunidade - MGFC).
parte das famílias, o que indicaria objetivos não A Lei do Mais Médicos estabelece que esta resi-
explícitos de realizar controle do mercado de tra- dência dará acesso a todas as especialidades que
balho médico por meio do aumento da oferta de não são de acesso direto (que são apenas dez).
profissionais. Ou seja, para o médico entrar na maioria dos
Ratificando a Lei do Mais Médicos, o Conse- programas de residência disponíveis atualmente,
lho Nacional de Educação aprova as novas Dire- deverá fazer um ou dois anos da Residência de
trizes Curriculares Nacionais do Curso de Gradu- Medicina de Família e Comunidade. Ao colocar a
ação em Medicina35, em 2014, que determina re- medicina de família como a especialidade central
formulação do currículo médico, com ampliação na formação de especialistas, o Estado brasileiro
dos campos de saber e de prática da Saúde Coleti- aproxima-se da maioria dos países com sistemas
va, Saúde Mental, Urgência/Emergência, Atenção públicos de saúde no mundo38-41. Concomitante-
Básica e Saúde da Família. Determina que, no mí- mente, garante a médio e longo prazo, o provi-
nimo, 30% do internato (que deve corresponder mento de médicos de família e comunidade (for-
a, pelo menos, dois anos da formação) aconteça mados e em formação) na maioria das unidades
na Atenção Básica e em serviços de urgências do básicas de saúde, que hoje não contam com mé-
SUS. Essa mudança, caso venha a ocorrer de fato, dicos com essa formação.
articulada à inserção dos estudantes desde o início Outro aspecto relevante deste Programa foi a
do curso em unidades básicas de saúde e outros possibilidade de se planejar a distribuição destes
serviços, na lógica da integração ensino-serviço- novos médicos para a Atenção Básica segundo
comunidade, promoveria uma aproximação com critérios de equidade, vulnerabilidade social e de
o sistema de saúde, necessária para a aquisição de populações específicas. Mesmo após 28 anos da
competências, habilidades e atitudes adequadas a aprovação dos princípios e diretrizes do SUS na
uma prática médica voltada para as necessidades Constituição Federal, diversos obstáculos impe-
de saúde da população. Esse componente legal do dem sua efetivação, principalmente quando ana-
Programa Mais Médicos vem sofrendo forte re- lisamos as iniquidades sociais e as desigualdades
sistência da maioria do movimento médico e de regionais42,43. Pesquisas mostram que populações
outros setores conservadores. residentes em áreas de extrema pobreza, sejam
Além disto, a Lei restringiu o controle das elas distantes de grandes centros ou nas periferias
associações de especialidades médicas sobre os de regiões metropolitanas, áreas de difícil acesso,
programas de residência médica. Até o PMM, a populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas,
construção do SUS não havia produzido um con- povos do campo e da floresta, em geral têm mui-
flito explícito com grande parcela dos médicos e to mais dificuldade à atenção à saúde, inclusive
de suas entidades. Parte deste conflito foi atenua- aos serviços de Atenção Básica44,45.
da pela instituição de pontuação (discriminação O SUS vêm implementando políticas de pro-
positiva) nos concursos de residência para médi- moção da equidade, com o objetivo de diminuir
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