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Tutela do abandono afetivo do idoso
TUTELA DO ABANDONO AFETIVO DO IDOSO
Revista de Direito Privado | vol. 56/2013 | p. 345 358 | Out Dez / 2013
DTR\2013\11667
Eduardo Cambi
Pósdoutor em direito pela Università degli Studi di Pavia. Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor da Universidade
Estadual do Norte do Paraná (Uenp) e da Universidade Paranaense (Unipar). Coordenador do Grupo de Trabalho de Combate à
Corrupção, Transparência e Controle Social da Comissão de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público.
Assessor da Procuradoria Geral de Justiça do Paraná. Assessor de Pesquisa e Política Institucional da Secretaria de Reforma do
Judiciário do Ministério da Justiça. Promotor de Justiça no Estado do Paraná.
Nathália Pessini Cossi
Mestranda em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense (Unipar). Bolsista Capes.
Área do Direito: Civil
Resumo: O Estatuto do Idoso visa aos objetivos da República Federativa do Brasil presentes no art. 3.° e incisos da Constituição
de 1988. Com isso, a sociedade tem o dever de construir uma mentalidade de respeito, proteção e reconhecimento em relação aos
idosos. Nessa perspectiva, o presente trabalho visa a analisar a proteção dos direitos individuais dos idosos contra a situação de
abandono afetivo. Foca o estudo sobre a legislação protetiva dos idosos, bem como sobre o cabimento da tutela ressarcitória
referente à indenização do dano moral pelo abandono afetivo e a sua evolução jurisprudencial. Analisa, também, aspectos
relativos à legitimidade processual, à adoção de dispositivos legais específicos no direito comparado e às propostas legislativas em
trâmite no Brasil. No tocante à evolução da jurisprudência pátria, verificouse a mudança de entendimento do STJ, reconhecendo a
ilicitude e a indenizabilidade do abandono afetivo. Podese estender esse raciocínio para os casos de abandono afetivo em relação
aos pais idosos. Concluise que uma sociedade justa poderá ser alcançada se estiver baseada na dignidade da pessoa humana,
desde o seu nascimento até a sua morte.
Palavraschave: Abandono afetivo Pais Filhos Legitimidade Indenização.
Abstract: The Brazilian Elderly Statute aims the objectives of the Federative Republic of Brazil present in 3th article and
subsections of the 1988 Federal Constitution. Therewith, the society has a duty to build a mindset of respect, acknowledgement
and protection in relation to the elderly. In this perspective, this study aims to examine the protection of individual rights of the
elderly against the situation of affective abandonment (emotional distance). It focuses on the study of the protective legislation of
the elderly, as well as the appropriateness of procedural relief of indemnification for moral damages for affective abandonment and
its respective case law evolution. It also analyzes aspects of standing to sue, the adoption of specific legal provisions on
comparative law and bills pending in Brazilian Congress. Regarding the evolution of Brazilian case laws, there was a change in the
understanding of the Brazilian Superior Court, whom recognized affective abandonment as a tort to be compensated. We can
extend this reasoning to cases of affective abandonment to elderly parents. We conclude that a just society can be achieved if it is
based on human dignity, from his birth until his death.
Keywords: Affective abandonment Parents Son Standing to sue Indemnification.
Sumário:
1. Introdução 2. O Estatuto do Idoso e a situação de abandono 3. A tutela jurisdicional dos direitos do idoso em face do
abandono afetivo 4. Necessidade de extensão jurisprudencial da indenização do abandono afetivo na relação parental para a
devida proteção dos idosos 5. O exemplo chinês e a perspectiva legislativa no Brasil 6. Conclusão 7. Referências bibliográficas
1. Introdução
O Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) surgiu para preencher lacuna no ordenamento jurídico brasileiro, pretendendo regular de
forma clara, precisa e minuciosa os direitos dos idosos.
Estabeleceuse que idoso é aquele indivíduo com 60 anos ou mais (art. 1.° da Lei 10.741/2003), conforme critério utilizado pela
Organização das Nações Unidas (ONU).
A Constituição Federal (LGL\1988\3) e a legislação (em especial o Estatuto do Idoso) reconhecem a vulnerabilidade dos idosos e
visam a assegurar especial proteção a essa parcela da população.
A Constituição Federal de 1988 assegura o dever mútuo de assistência entre pais e filhos (art. 229) e o dever familiar de amparo
aos idosos (art. 230).
Apesar disso, não há menção expressa quanto à afetividade, fazendo nascer o debate sobre os efeitos jurídicos do abandono
afetivo dos idosos, em especial se é capaz de caracterizar dano moral indenizável.
Muitos idosos são vítimas de abandono por seus familiares, não apenas material, mas também no aspecto afetivo. Por isso, surge
a questão da reparabilidade e da incidência da tutela ressarcitória nos casos de abandono afetivo nas relações familiares,
especialmente no caso do abandono parental em relação aos filhos. Por outro lado, o debate jurídico acerca dos reflexos do
abandono afetivo na terceira idade ainda carece de aprofundamentos, tanto no aspecto material quanto no aspecto processual.
Nesse contexto, é necessário indagar se o abandono afetivo contra pessoa idosa pode ser passível de tutela jurisdicional; se tal
proteção se limita à tutela ressarcitória; e, ainda, se a condição de pessoa idosa gera tutela jurisdicional diferenciada.
2. O Estatuto do Idoso e a situação de abandono
A preocupação com o idoso, em âmbito mundial, ganhou força em 1982, quando a Organização das Nações Unidas promoveu, em
Viena, Assembleia visando a discutir o envelhecimento e a necessidade de estabelecer metas voltadas à inserção do idoso na
sociedade, além de buscar a promoção de sua tutela.1
No Brasil, a Constituição Federal (LGL\1988\3) dispõe sobre o idoso no Título VIII, relativo à Ordem Social, no Capítulo VII, que
trata da família, da criança, do adolescente e do idoso, sem, todavia, estipular a idade para o início da terceira idade. Apenas
estatui o constituinte, no art. 230, § 2.°, que: “aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes
coletivos urbanos”.
Em 01.10.2003, foi sancionado o Estatuto do Idoso, Lei 10.741, que garante os direitos das pessoas que estão acima dos 60 anos
de idade, que até então não tinham legislação específica que os resguardasse. O Estatuto do Idoso regulamenta os princípios já
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garantidos pela Constituição Federal de 1988.
Os principais direitos civis assegurados ao idoso, conforme dispõe a Lei 10.741/2003, são: (a) na saúde: os planos de saúde não
podem reajustar as mensalidades de acordo com o critério da idade; (b) nos transportes coletivos: os maiores de 65 anos têm
direito ao transporte coletivo público; (c) no lazer: todo idoso tem direito a 50% de desconto em atividades de cultura, esporte e
lazer; (d) no trabalho: é proibida a discriminação por idade e a fixação de limite máximo de idade na contratação de empregados,
sendo passível de punição quem o fizer; e (e) na habitação: é obrigatória a reserva de 3% das unidades residenciais para os
idosos nos programas habitacionais públicos.
Está previsto no art. 4.° do Estatuto que nenhum idoso poderá ser objeto de negligência, discriminação, violência, crueldade ou
opressão. Quem abandonar idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, sem dar
respaldo para suas necessidades básicas, pode incorrer no tipo penal descrito no art. 98 do Estatuto e, se condenado, está sujeito
à pena de seis a três anos de detenção e multa.
Os maus tratos aos idosos podem ocorrer em diversas categorias: (a) abuso físico: consistente na força física que pode causar
ferimento no corpo, dor ou deficiência; (b) abuso sexual: contato sexual não consensual com uma pessoa idosa; (c) abuso
emocional ou psicológico: imputação de angústia, dor ou aflição (como a ameaça de abandono); (d) exploração financeira: uso
ilegal das reservas ou bens da pessoa idosa; e (e) negligência: recusa ou falha no cumprimento de qualquer parte das obrigações
básicas relacionadas ao idoso, como alimentar beber adequadamente ou fornecer medicamentos prescritos.2
Infelizmente, na maioria dos casos, os agressores são conhecidos, são membros da família, dos quais podem ser o cônjuge ou os
filhos adultos.
O tratamento dispensado ao idoso no lar foi degenerado ao longo dos anos juntamente com a desestruturação da família.3 Os
princípios de respeito aos familiares e antecedentes foram mitigados. Os idosos não poucas vezes são submetidos à segregação
por desprezo, ficando abandonados em instituições de longa permanência ou congêneres. Sua cultura e seus conhecimentos são
considerados anacrônicos. Sua sabedoria descartada e a compreensão da vida banalizada. Esses fatos decorrem da desagregação
familiar e do desprezo aos princípios e valores éticos.
Com efeito, é necessário que o Estatuto do Idoso deixe de ser apenas letra de lei e passe efetivamente a ser um novo paradigma
de respeito ao idoso, mobilizando o Estado e a sociedade.
Desse modo, o combate ao abandono afetivo dos idosos ganha relevo, para a efetiva concretização dos direitos fundamentais
dessa parcela da população. Em consequência, também ganha projeção a questão a cerca dos meios processuais adequados à
promoção da defesa dos direitos do idoso capazes de tutelar adequadamente a situação de abandono afetivo.
3. A tutela jurisdicional dos direitos do idoso em face do abandono afetivo
O Estado Democrático de Direito tem, dentre seus objetivos, o de promover a dignidade da pessoa humana (art. 1.°, III, da CF
(LGL\1988\3)), desde o início de sua existência até a sua morte.
Direitos humanos é uma forma de proteção dos direitos essenciais da pessoa humana. Correspondem a necessidades essenciais da
pessoa humana, para possa viver com dignidade,4 já que a vida é um direito humano fundamental.
Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 determina que é dever da família, sociedade e Estado, em conjunto, ampararem
as pessoas idosas, velando para que tenham uma velhice digna e integrada à comunidade (art. 230).
Cabe à sociedade e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo
sua dignidade e bemestar e lhes garantindo o direito à vida, inclusive, por meio de programas de amparo que, preferencialmente,
deverão ser executados em seus lares.5
Assim, o dever da família e da sociedade para com o idoso extrapola o aspecto meramente material, inferindose que a
Constituição Federal (LGL\1988\3) implicitamente também pretende proteger o idoso na sua esfera moral e, consequentemente,
do abandono afetivo.
O art. 5.°, V e X, da CF (LGL\1988\3) estabelecem regras de indenização por dano moral ou material. Por sua vez, os arts. 186 e
187 do CC/2002 (LGL\2002\400) versam sobre a violação do direito e o dano causado por ato ilícito, asseverando que o causador
do dano fica obrigado a reparálo (art. 927/CC/2002 (LGL\2002\400)).
O dano relacionado ao abandono afetivo do idoso tem natureza moral (extrapatrimonial) e recai sobre a pessoa, atingindo o que
ela é em sua profundidade.6 É um dano pessoal, insuscetível de reposição por ser financeiramente imensurável, pois a pecúnia não
retira a dor, podendo apenas amenizála. Possui legitimidade ad causam, para propor ação de reparação de danos morais por
abandono afetivo, como regra, o titular do direito material pleiteado, isto é, o caso o próprio idoso. Afinal, a idade avançada, a
maturidade ou a “terceira idade” não afeta o exercício pessoal dos direitos pela própria pessoa, a menos que venha acompanhada
de limitações que possam caracterizar alguma ou várias incapacidades (arts. 3.° e 4° do CC/2002 (LGL\2002\400)).7 Por vezes, a
velhice aparece marcada pela senilidade, fraqueza mental que impede o discernimento, a autonomia da vontade, causando ao
idoso, confusão mental, comprometendo o seu poder decisório. Nestes casos, caberá ao representante legal, curador ou ao
Ministério Público (nos limites dos arts. 81 do CPC (LGL\1973\5), 32, I, da Lei 8.625/1993, 74 da Lei 10.741/2003 e 1.769 do CC/
2002 (LGL\2002\400)),8 agir em seu nome, defendendo seus interesses judicial e extrajudicialmente. Ademais, cabe a Defensoria
Pública a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos que comprovarem insuficiência de recursos (arts. 134 e 5.°,
LXXIV, da CF (LGL\1988\3)), o que a legitima para a propositura de ação de reparação de danos, por abandono afetivo, de idosos.
Além disso, a tutela jurisdicional adequada para os idosos em abandono afetivo passa pela necessidade de aprofundamento do
aspecto probatório da ação, pois, a prova do dano moral se refere a algo imaterial e, portanto, não pode se valer dos mesmos
moldes empregados pelo Código de Processo Civil (LGL\1973\5), no art. 333, para a comprovação do dano material.9
A situação do idoso abandonado é peculiar e dada a sua vulnerabilidade10 pode gerar reflexos processuais diferenciados na tutela
jurisdicional de seus interesses.
Portanto, a noção de vulnerabilidade se expandiu para abranger todo aquele indivíduo, grupo, etnia e instituição que, por suas
diferenças, especificidades ou peculiaridades, encontrarse, momentaneamente ou não, em situação de sofrer violência à sua
dignidade, sem que possa se defender substancialmente, livrandose por meios próprios de danos.11
Há de se considerar, ainda, que o abandono afetivo de idosos pode ser objeto, além da ressarcitória contra o dano, de todas as
espécies de tutelas (preventivas/repressivas, individuais/coletivas,12 dirigidas contra danos ou ilícitos) e técnicas processuais
adequadas a efetiva proteção dos direitos fundamentais dos idosos. Tal conclusão é corolário da leitura do direito à tutela
jurisdicional adequada, célere e efetiva, decorrente da exegese do art. 5.°, XXXV, da CF (LGL\1988\3),13 bem como da exegese do
art. 82 da Lei 10.741/2003.
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Assim sendo, deve ser extraído do ordenamento jurídico processual, como regra de hermenêutica, a interpretação que melhor
possa concretizar os direitos fundamentais das pessoas vulneráveis.14 Nesse sentido, também, a interpretação jurídica deve levar
em conta parâmetros diferenciados, que atendam as reais exigências da pessoa ou do grupo vulnerável, não impondo, para a
adequada proteção dos bens jurídicos tutelados, levar em consideração o critério do homo medius.15
4. Necessidade de extensão jurisprudencial da indenização do abandono afetivo na relação parental para a devida
proteção dos idosos
Não há jurisprudência específica sobre indenização por danos morais resultantes de abandono afetivo de idosos.
Por outro lado, há divergência jurisprudencial sobre a indenização do dano moral decorrente do abandono afetivo na relação
parental.
O reconhecimento da indenização do dano afetivo iniciouse entre os juízes de 1.° grau e nos Tribunais de Justiça, ainda que com
grande vacilação.
Nos Tribunais de Justiça, há lembranças jurisprudenciais, exemplificados nos acórdãos a seguir citados, com a conclusão de
procedência da ação, por abandono afetivo: (a) “Indenização. Danos morais. Relação paternofilial. Princípio da dignidade da
pessoa humana. Princípio da afetividade. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à
convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana”;16
(b) “Responsabilidade civil. Dano moral. Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho
somente após propositura de ação judicial. Discriminação em face dos irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo
psíquico. Indenização devida. Sentença reformada. Recurso provido para este fim”.17
Em outro julgado, decidiuse pela a admissão da indenização do dano moral, mas improcedência da ação por falta de provas:
Indenização. “Danos morais. Relação paternofilial. Ausência de prova de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e
ao princípio da afetividade. Improcedência dos pedidos. Não se nega que a dor sofrida por um filho, em virtude do abandono
paterno, quando este o priva do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro nos
princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade. Não restando demonstrado nos autos que a autora tenha sido
abandonada por seu pai, sem ao menos este tentar uma aproximação ou um contato familiar, é de se julgar improcedentes os
pedidos de danos morais”.18
No âmbito do STJ, a tese adotada até recentemente era no sentido da impossibilidade de reparação de danos morais por
abandono afetivo: (a) “Responsabilidade civil. Abandono Moral. Reparação. Danos morais. Impossibilidade. 1. A indenização por
dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916
(LGL\1916\1) o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido”;19 (b) “Civil e
processual. Ação de investigação de paternidade. Reconhecimento. Danos morais rejeitados. Ato ilícito não configurado. I. Firmou
o Superior Tribunal de Justiça que: ‘A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à
aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 (LGL\1916\1) o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária’
(REsp 757.411/MG, 4.ª T., rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU 29.11.2005). II. Recurso especial não conhecido”.20
Nesses precedentes, o STJ entendeu que o abandono afetivo não poderia ser considerado ato ilícito e, assim, não seria cabível
reparação pecuniária. Essa era a posição sedimentada na Corte.
Inovando a jurisprudência do STJ, o julgamento do REsp 1.159.242/SP marcou a inversão no entendimento até então vigente,
passando a aceitar a indenização do dano moral por abandono afetivo na relação entre pai e filho: “Civil e processual civil. Família.
Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes
à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no direito de família. 2. O cuidado como valor jurídico
objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam
suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/1988 (LGL\1988\3). 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar
da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non
facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leiase, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado –
importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por
abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em
relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos
filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização
do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática
– não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação
por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revelase
irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido”.21
A posição tomada no REsp 1.159.242 passou a servir de paradigma para diversas outras decisões das instâncias inferiores,
passando a prevalecer a caracterização do dano moral em caso de abandono afetivo.
Com efeito, tal precedente reconheceu a possibilidade de indenização do dano moral decorrente do abando afetivo na relação
parental. Concluise que não há restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de
indenizar/compensar no direito de família. Isto porque o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente, não
se discutindo a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial
cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. Não se discutiu o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever
jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. Logo, amar é uma faculdade, cuidar é dever. Por isso,
a negligência em relação ao objetivo dever de cuidado é ilícito civil, importando, para a caracterização do dever de indenizar,
estabelecer a existência de dano e do necessário nexo causal.
Ao julgar o REsp 1.159.242/SP, o STJ, por maioria, deu parcial provimento ao recurso, asseverando que a existência da
caracterização do dano moral em face do abandono afetivo na relação parental, mas reduziu o valor da indenização para R$
200.000,00.
A indenização por danos morais em face do abandono afetivo não tem o escopo de aproximação familiar. A indenização não tem
por finalidade obrigar os pais a amarem seus filhos, ou vice e versa, tendo caráter de punição, compensação e pedagógico.
Tal interpretação do STJ, por estar voltada a atribuir sentido e unidade ao ordenamento jurídico, deve orientar a vida social e
pautar decisões judiciais; em outras palavras, a exegese do STJ, mediante valoração, define o sentido do direito com eficácia geral
diante da sociedade e obrigatória perante os juízes e tribunais inferiores, devendo guiar a solução dos casos iguais ou similares.22
Assim, os mesmos parâmetros objetivos, usados pelo STJ em relação ao abandono afetivo na relação parental, podem ser
transpostos ao abandono familiar de idosos, devendo dar ensejo à reparação dos danos morais quando restar evidenciado a
negligência do dever de cuidado.
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5. O exemplo chinês e a perspectiva legislativa no Brasil
Na China, recente Lei, em vigor desde julho de 2013, impõe a visita obrigatória parental, institucionalizando uma antiga tradição
chinesa, a de prestação de cuidados filiais aos pais idosos, que necessitam da presença afetiva dos filhos.
A chamada Lei de Proteção dos Direitos e Interesses do Idoso revigora, no plano jurídicolegal, valores morais que devem ser
preservados na sociedade chinesa, despertando a consciência crítica dos mais jovens, no objetivo de os filhos não abandonarem os
pais.
A nova Lei alcança, como destinatários, cerca de 194 milhões de chineses, que compreende 14,3% da atual população, situada na
faixa etária superior a 60 anos. E, nos próximos 40 anos (2053), o percentual etário de idosos será elevado para 35% da
população, representando, então, cerca de 487 milhões de pessoas.
A Lei torna a visitação dos idosos obrigatória para inibir a prática de abandono afetivo pela ausência reiterada dos filhos.
Tal ausência tem ensejado, na China, inúmeras demandas judiciais de pais abandonados, que reclamam o devido suporte
emocional que lhes faltam, diante da omissão dos filhos que os abandonam.23
No Brasil, já há projeto de lei semelhante, apresentado na Câmara dos Deputados, para estabelecer sanções civis e punitivas aos
filhos que abandonem os pais idosos.
O PL 4.294/2008, do Deputado Carlos Bezerra, acrescenta parágrafo ao art. 3.° do Estatuto do Idoso para incluir previsão de
indenização por dano moral decorrente do abandono de idosos por sua família. A redação dada ao parágrafo estabelece: “O
abandono afetivo sujeita os filhos ao pagamento de indenização por dano moral”.
Nesse sentido, o mesmo Projeto introduz o parágrafo único ao art. 1.632 do CC/2002 (LGL\2002\400), com a seguinte redação: “o
abandono afetivo sujeita os pais ao pagamento de indenização por dano moral”.
A tramitação do Projeto está estacionada desde 13.04.2011, quando a Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) aprovou o
parecer do relator, Deputado Antonio Bulhões, dando nova redação ao parágrafo único ao art. 5.° do Estatuto do Idoso, nestes
termos: “Comprovado o abandono afetivo por parte da família, caberá indenização por dano moral ao idoso (NR)”.
A inovação legislativa, inobstante a possibilidade de a matéria ser objeto de interpretação judicial pelas Cortes Supremas (vide
item anterior), ganha enorme relevância jurídica, quando se verifica que a população idosa, no Brasil, chegará a 32 milhões em
2025, tornando nosso país o 6.° com maior população idosa de idosas no mundo.
Com efeito, a aprovação do PL 4.294/2008, em sentido similar ao exemplo chinês, representará importante avanço na proteção do
idoso contra o abandono afetivo, em que pese já existir o dever legal implícito, bem como o dever moral de assistência dos filhos
em relação aos pais.24
6. Conclusão
Os direitos dos idosos estão expressos na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), entre outros
dispositivos legais. O Estado, a sociedade e a família devem zelar para que não ocorra violação desses direitos.
Os direitos elencados no art. 3.° do Estatuto do Idoso garantem às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos proteção
integral, favorecendolhes oportunidades e facilidades.
O Estatuto abriu amplos horizontes à construção de nova mentalidade sobre o processo de envelhecimento humano.
As medidas de proteção ao idoso são aplicáveis para assegurar os direitos reconhecidos no Estatuto do Idoso quando forem
ameaçados ou violados.
Abandono, desinteresse, solidão, manifestações do desprezo da sociedade para com a pessoa idosa, tiveram, durante séculos da
história da humanidade, efeitos devastadores para com o idoso.
A tutela jurisdicional dos direitos do idoso, relacionada ao abandono afetivo, consiste em uma importante emanação da dignidade
da pessoa humana (art. 1.°, III, da CF (LGL\1988\3)), além de fator de respeito necessário à construção de uma sociedade justa e
solidária (art. 3.°, I, da CF (LGL\1988\3)).
Dessa forma, a efetiva proteção jurídica de idosos abandonados afetivamente, também, contribui para uma visão constitucional do
processo como uma ferramenta para a efetivação dos direitos fundamentais. Assim, a tutela ressarcitória do dano moral, sem
prejuízo de outras formas de assegurar o direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva (art. 5.°, XXXV, da CF
(LGL\1988\3)), é um importante meio processual aplicável à tutela do abandono afetivo dos idosos.
A orientação do STJ, no REsp 1.159.242/SP, firmado para a situação de abandono afetivo nas relações familiares, deve ser
estendido à hipótese de abandono afetivo de idosos.
Além disso, é oportuna a aprovação do PL 4.294/2008 pelo Congresso Nacional, a fim de melhor concretizar os valores
constitucionais da dignidade humana e da solidariedade, bem como dar mais efetividade aos direitos fundamentais dos idosos.
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1 Taquary, Eneida Orbage de Britto. O direito fundamental ao envelhecimento. Revista Jurídica Consulex 17/5456.
2 Papalia, Diane E. Desenvolvimento humano. 10. ed. São Paulo: McGrawHill, 2009. p. 693.
3 Taquary, Eneida Orbage de Britto. Op. cit., p. 5456.
4 “(…) concibo derechos humanos desde una doble referencia: como articulación de tramas y procesos sociales, políticos,
económicos, culturales y jurídicos, de apertura y consolidación de espacios de lucha por concepciones particulares de dignidad
humana, por medio de las cuales cada ser humano con nombre y apellidos, sea reconocido como sujeto, con capacidad de
significar su realidad desde cada contexto particular. Es decir, en tanto sistemas de objetos (normas, instituciones, valores) y
acciones (prácticas) que posibilítenla lucha por las distintas concepciones de dignidad humana que defiende cada colectivo,
cultura, movimiento grupo social” (Rubio, David Sanches; Frutos, Juan AntonioSenent de. Teoría crítica del derecho. Nuevos
horizontes. San Luis Potosí: Centro de Estudios Jurídicos y SocialesMispat, 2013. p. 202).
5 Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 856.
6 Toaldo, Adriane Medianeira; Machado, Hilza Reis. Abandono afetivo do idoso pelos familiares: indenização por danos morais.
Disponível em: [www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11310]. Acesso em: 16.01.2013.
7 Colucci, Maria da Glória. Vulnerabilidade na velhice e o Estatuto do Idoso. Disponível em: [http://
rubicandarascolucci.blogspot.com/2011/04/vulnerabilidadenavelhiceeoestatuto.html]. Acesso em: 09.11.2011.
8 “No tocante à proteção individual do idoso, o Ministério Público a fará sempre que haja indisponibilidade de interesse (como no
caso de incapacidade), ou quando o objeto da ação esteja relacionado com a idade avançada e a atuação protetiva ministerial seja
socialmente proveitosa” (Mazzilli, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 606).
9 A título de exemplo, vale mencionar o seguinte precedente: “12. A indenização por dano moral não é um preço pelo
padecimento da vítima ou de seu familiar, mas sim uma compensação parcial pela dor injusta, que lhe foi provocada, mecanismo
que visa a minorar seu sofrimento, diante do drama psicológico de perda a qual foi submetida. 13. No dano moral por morte, a dor
dos pais e filhos é presumida, sendo desnecessária fundamentação extensiva a respeito, cabendo ao réu fazer prova em sentido
contrário, como na hipótese de distanciamento afetivo ou inimizade entre o falecido e aquele que postula indenização” (REsp
866.450/RS, 2.ª T., j. 24.04.2007, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 07.03.2008).
10 Na Espanha, Maria Casado relata que hoje é evidente a necessidade existente de velar pelas pessoas de idade avançada, pois
se trata de uma parte da população que, frequentemente, se encontra em situações de vulnerabilidade. Cfr. Cuestiones bioéticas
en torno al envejecimiento. Revista Bioética 19/697712.
11 Colucci, Maria da Glória. Op. cit.
12 Para a definição dos interesses individuais sujeitos à tutela coletiva, conferir: Arenhart, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de
interesses individuais. Para além dos interesses individuais homogêneos. São Paulo: Ed. RT, 2013. p. 142202.
13 Cambi, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo
judiciário. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 218225.
14 “A legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes
seja mais favorável e melhor possa viabilizar, no plano da eficácia, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da norma” (REsp
1198727/MG, 2.ª T., j. 14.08.2012, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 09.05.2013).
15 Em situação concreta, que versava sobre o dever de informação das indústrias alimentícias, quanto a advertência nos rótulos
dos produtos sobre os riscos que o glúten, presente na composição de certos alimentos industrializados, apresenta à saúde e à
segurança de uma categoria de consumidores (os portadores de doença celíaca), bem decidiu o STJ: “17. No campo da saúde e da
segurança do consumidor (e com maior razão quanto a alimentos e medicamentos), em que as normas de proteção devem ser
interpretadas com maior rigor, por conta dos bens jurídicos em questão, seria um despropósito falar em dever de informar
baseado no homo medius ou na generalidade dos consumidores, o que levaria a informação a não atingir quem mais dela precisa,
pois os que padecem de enfermidades ou de necessidades especiais são frequentemente a minoria no amplo universo dos
consumidores. 18. Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que,
exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a
‘pasteurização’ das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna. 19. Ser diferente ou minoria, por doença ou
qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de segunda classe ou
proteção apenas retórica do legislador. 20. O fornecedor tem o dever de informar que o produto ou serviço pode causar malefícios
a um grupo de pessoas, embora não seja prejudicial à generalidade da população, pois o que o ordenamento pretende resguardar
não é somente a vida de muitos, mas também a vida de poucos” (REsp 586.316/MG, 2.ª T., j. 17.04.2007, rel. Min. Herman
Benjamin, DJe 19.03.2009).
16 TJMG, Processo 2.0000.00.4085505/00, j. 01.04.2004, rel. Des. Unias Silva.
17 TJSP, Ap c/ Rev 5119034700, j. 12.08.2008, rel. Des. Caetano Lagrasta.
18 TJMG, Ap 10479.06.1123200/001, j. 18.03.2008, rel. Des. Unias Silva.
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24/08/2018 Envio | Revista dos Tribunais
19 REsp 757.411/MG, 4.ª T., j. 29.11.2005, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 27.03.2006, p. 299.
20 REsp 514.350/SP, 4.ª T., j. 28.04.2009, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe 25.05.2009.
21 REsp 1159242/SP, 3.ª T., j. 24.04.2012, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 10.05.2012.
22 Marinoni, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes. Recompreensão do sistema processual da Corte Suprema. São
Paulo: Ed. RT, 2013. p. 158159.
23 Alves, Jones Figueirêdo. Filhas que abandonam. Disponível em: [www.ibdfam.org.br/artigos/901/
Filhos+que+abandonam%22]. Acesso em: 11.09.2013.
24 “A obrigação dos filhos diante os pais idosos tem sede constitucional, e vai além do direito de família, conforme princípio de
solidariedade familiar, não seja preciso escrever na lei, obrigações morais, de proteção afetiva, quando bastaria o compromisso de
dignidade nas relações familiares, o exemplo chinês é oportuno, quando se edita a lei, é um aviso legal de uma obrigação afetiva
de cuidado” (Alves, Jones Figueirêdo. Op. cit.).
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