Alimentar a necessidade de estudos dostoievskianos em Pernambuco, a
partir de uma vertente fantástica pouco explorada do escritor russo um tanto quanto realista; entender como se desenrola o modo fantástico apresentado de forma tão peculiar por Dostoiévski a partir da análise de O sonho de um homem ridículo.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para introduzir o conceito de fantástico no século XIX, Todorov (1939)
inicia sua análise com um trecho do livro Le Diable amoureux, de Jacques Cazotte, em que a personagem principal, Alvare, questiona a si mesmo se tudo que tem vivenciado é verossímil ou se tudo não passa de ilusão pura, personificada em forma de sonho. De acordo com Todorov, a partir do momento em que há hesitação o leitor é transportado ao ambiente do fantástico: “num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar” (2010, p.30). Diante da percepção de tal hesitação há uma necessidade de escolha entre dois caminhos possíveis: trata-se apenas de uma ilusão, e o mundo continua da forma como é conhecido ou o fato realmente aconteceu, faz parte da realidade (esta, regida por leis desconhecidas). Com o intuito de corroborar sua tese, Todorov aponta o trabalho de outros teóricos, a exemplo de Vladimir Soloviov, ao atestar que “no verdadeiro fantástico, fica sempre preservada a possibilidade exterior e formal de uma explicação simples dos fenômenos, mas ao mesmo tempo esta explicação é completamente privada de probabilidade interna” (2010, p.31), ou seja, existe um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas formas distintas (natural ou sobrenatural) e da possibilidade de oscilar entre um e outro se criou o fantástico. Por acreditar que a análise de Le Diable amoureux seja pouco satisfatória, Todorov apresenta outro livro, escrito duas décadas depois, que “inaugura magistralmente a época da narrativa fantástica: ‘Le manuscrit trouvé à Saragosse’, de Jan Potocki” (2010, p.33), narrativa esta que permite o levantamento de mais hipóteses, em contrapartida ao texto de Cazotte, onde apenas por alguns instantes a dúvida permanece. Alguns acontecimentos são descritos inicialmente e, ao analisá-los isoladamente, não contradizem as leis da natureza. Todorov afirma que o acúmulo destes é que causarão problemas: o sumiço de duas personagens próximas à personagem principal, Alphonse van Worden (que é também o narrador da história), a afirmação, por parte dos moradores do lugar, de que a região é assombrada, o encontro com as duas irmãs e a hesitação perante as mesmas. Tais fenômenos não têm sua natureza conhecida, então é possível afirmar que são acontecimentos estranhos, “coincidências insólitas” (2010, p.33). Em seguida, Todorov aponta algo que será primordial e decisivo, a primeira ocorrência do sobrenatural: Alphonse dorme junto às irmãs e, ao acordar, vê-se ao ar livre e ao seu lado dois cadáveres em avançado estado de decomposição. Outras situações juntam-se a esta de modo que o próprio Alphonse seja direcionado para uma solução sobrenatural. Todorov resume o fantástico a uma simples frase de Alphonse (“cheguei quase a acreditar”), e reitera a importância da hesitação para a sobrevivência do fantástico: “é a hesitação que lhe dá vida” (2010, p.36). Todavia, ressalta que se o leitor tivesse conhecimento prévio da “verdade”, a situação tomaria outro norte. É necessária uma integração leitor/personagens para que se faça o fantástico e, para tanto, o leitor precisa identificar-se com um personagem em particular da narrativa ou que a hesitação seja representada dentro da própria obra. O crítico búlgaro aponta Le manuscrit trouvé à Saragosse como exemplo de hesitação entre o real e a ilusão: o ocorrido poderia ser fraude ou erro de percepção. Mais uma importante questão discutida é a forma de interpretação do texto. O fantástico exige não somente a existência de um fato aparentemente sobrenatural que desperte hesitação tanto no herói quanto no leitor, mas também uma maneira de ler que não seja alegórica nem poética, haja vista algumas narrativas apresentarem elementos sobrenaturais sem que o leitor questione-se acerca de sua natureza (estes últimos exemplos, segundo o crítico, não constituiriam o fantástico). De acordo com H. P. Lovecraft, “o critério do fantástico não se situa na obra, mas na experiência particular do leitor; e esta experiência deve ser o medo” (IN TODOROV, 2010, p. 40). A diferença entre Lovecraft e Todorov fica a cargo da posição de leitor: um é o leitor real enquanto o outro fala do leitor implícito no texto, respectivamente. Reiterando, Lovecraft afirma que “um conto é fantástico muito simplesmente se o leitor experimenta profundamente um sentimento de temor e de terror, a presença de mundos e poderes insólitos” (LOVECRAFT IN TODOROV, 2010, p.40). Durante o chamado romance negro, um dos grandes períodos da literatura fantástica, é possível identificar duas tendências: a do sobrenatural explicado, ou estranho, e o sobrenatural aceito, ou maravilhoso:
O fantástico, como vimos, dura apenas o tempo de
uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da ‘realidade’, tal qual existe na opinião comum. No fim da história, o leitor, quando não a personagem toma, contudo, uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso (TODOROV, 2010, p.47-48).
Para uma melhor avaliação das duas idéias apresentadas, Todorov
divide-as em quatro subgêneros: estranho puro, fantástico-estranho, fantástico- maravilhoso, maravilhoso puro (o fantástico puro estaria entre o fantástico- estranho e o fantástico-maravilhoso). Acontecimentos a priori sobrenaturais durante toda a história mas que, ao final, recebem uma explicação racional, são caracterizados como fantástico-estranho: “Se esses acontecimentos por muito tempo levaram a personagem e o leitor a acreditar na intervenção do sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito” (2010, p.51). O próprio Le manuscrit trouvé à Saragosse é um exemplo desta modalidade, em que todos os acontecimentos são explicados racionalmente ao final da narrativa. Nas obras que pertencem ao gênero do estranho puro são narrados fatos que podem ser explicados através das leis da razão, apesar de não deixarem de se mostrar extraordinários, singulares, insólitos e por isso provocam na personagem e no leitor reações semelhantes àquelas vistas diante de textos fantásticos. Todorov explica que “o estranho não é um gênero bem delimitado, ao contrário do fantástico” (2010, p.53), exatamente pelo fato de o estranho apresentar apenas uma das condições do fantástico. Dessa forma, está concatenado de modo singular aos sentimentos das personagens e não a um “acontecimento material que desafie a razão”. O autor utiliza o conto “A queda da casa de Usher” de Edgar Allan Poe para explicar duas origens do estranho: a primeira são as coincidências apontadas no texto e a segunda, elementos cadenciados que provocam a impressão de que a estranheza não está ligada ao fantástico, mas ao que poderia ser denominado por “experiência de limites” (2010, p.54), que Todorov afirma caracterizar a obra de Poe. Todorov define o fantástico-maravilhoso como uma “classe de narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural” (2010, p.58). São as narrativas que mais se aproximam do fantástico puro exatamente por este permanecer num estado não- racionalizado, e o limite entre ambos é incerto, sendo a presença ou ausência de certos detalhes que permitirá decidir entre os dois. Como exemplo, La Morte amoureuse de Teóphile Gautier: a princípio, todos os acontecimentos podem ter uma explicação racional, principalmente em forma de sonho (aproximando- se de Alvare no “Le Diable Amoureux”), sendo explicados como estranhos, obra do acaso; mas a personagem principal, Romuald, crê numa intervenção do Diabo. Até este ponto, a narrativa permanece no fantástico puro. Em seguida é narrada uma cena em que o abade joga água benta sobre o cadáver de Clarimonde, transformando-o em uma “horrível mistura informe de cinzas e ossos meio calcinados” (IN TODOROV, 2010, p.59). Como a cena não pode ser explicada pelas leis da natureza, Todorov conclui estar diante de um exemplo de fantástico-maravilhoso. Da mesma forma do estranho, o maravilhoso puro não possui limites claros mas, neste caso, não há reação particular nem do leitor nem das personagens para com os elementos sobrenaturais. Não será uma atitude e sim a própria natureza desses fatos. É comum relacionar os contos de fadas ao maravilhoso, sendo que eles são uma das variações do gênero, e seus fatos sobrenaturais não provocam nenhuma surpresa. Os contos de fadas são identificados pela forma como são escritos, e não pelo sobrenatural. Com o intuito de delimitar o maravilhoso puro, Todorov enumera alguns tipos de narrativas onde há possibilidade de o sobrenatural receber ainda certa explicação: a) o maravilhoso hiperbólico, pois os fenômenos não são sobrenaturais a não ser por suas dimensões, que são superiores às familiares; b) o maravilhoso exótico, onde são narrados acontecimentos sobrenaturais sem apresentá-los como tal; c) o maravilhoso instrumental, introduzindo engenhosidades que parecem irrealizáveis na época descrita, mas ao final mostram-se perfeitamente possíveis; d) o maravilhoso científico, chamado atualmente de ficção científica, em que o sobrenatural é explicado de forma racional, partindo de leis que a ciência contemporânea não reconhece. Em oposição a todas as modalidades apresentadas está o maravilhoso puro, que não se explica de nenhuma maneira “porque a aspiração ao maravilhoso enquanto fenômeno antropológico supera os limites de um estudo que se pretende literário” (2010, p.63).