Uma das mais marcantes ocorrências desta década, espe-
cialmente na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, é o renascimento do humanismo. A relação entre "humanismo" e "renascimento" geralmente se estabelece no sentido inverso: fala-se no humanismo do Renascimen- to. E, de fato, há uma definição do humanismo — a meu ver, uma definição estreita — que se refere a ele preci- samente como o movimento dos séculos XV e X V I em prol de um retorno aos ensinamentos e às línguas dos clássicos, como o grego, o hebraico e o latim. Bem dife- rente é a definição do humanismo como filosofia global do homem — uma filosofia global do homem que teve um de seus pontos altos no Renascimento, mas que tem uma tradição de 2.500 anos, que começou com os profetas, no mundo ocidental, e com os ensinamentos budistas no Oriente. Quais são os princípios fundamentais desse humanis- mo? A filosofia humanista pode ser caracterizada do
* "Humanism as a Global Philosophy of M a n " foi originalmente
seguinte modo: primeiro, pela crença na unidade da raça
humana — nada existe de humano que não seja encon- trado em cada um de nós; segundo, pela ênfase na dignidade do homem; terceiro, pela ênfase na capacidade do homem de desenvolver-se e aperfeiçoar-se; e quarto, pela ênfase na razão, na objetividade e na paz. Adam Schaff, filósofo polonês contemporâneo, forneceu outra definição em seu livro Marxism and The Human Indivi- dual1 (O marxismo e o indivíduo humano). Ele chama o humanismo de "um sistema de reflexões sobre o homem que o reconhece como o bem supremo e que está voltado para criar, na prática, as melhores condições para sua felicidade". Tentarei dar uma idéia de como essa filosofia huma- nista tem-se expressado nos vários períodos da cultura. Primeiramente, o humanismo budista. O budismo clássico é o que hoje se chamaria de uma filosofia exis- tencialista, que começa pela análise da verdadeira con- dição da existência humana, chegando à idéia de que a existência humana implica necessariamente o sofrimento e que só há um modo de eliminar esse sofrimento, que é fazer cessar a ambição. Nessa perspectiva, há um conceito do homem em geral, um modelo da natureza humana e, ao mesmo tempo, uma resposta ao que o budismo encara como o problema do homem, a saber, o sofrimento humano. Outra vertente da filosofia humanista é encontrada no Velho Testamento. Isaías (19:23-25) diz: "Nesse dia haverá uma estrada do Egito até a Assíria. ( . . . ) Nesse dia, Israel será o terceiro com o Egito e com a Assíria, uma bênção no meio da terra. E o Senhor dos Exércitos os abençoará, dizendo: Bendito seja o Egito, meu povo, e a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha herança". Esse é um exemplo do espírito do universalismo e do conceito de homem como centro do pensamento. Há no Velho Testamento um pensamento especificamente huma- O humanismo como Jilosofia do homem 61
nista, que é o conceito do "ama teu vizinho" (o que é
bem difícil, como sabemos), e há um conceito que ultra- passa consideravelmente a esse: ama o estranho, a pessoa que não está ligada a ti por laços de sangue nem por qualquer espécie de familiaridade. Diz o Velho Testamen- to: "Amai o estrangeiro, pois estrangeiros fostes no Egito, e portanto conheceis a alma do estrangeiro" (Êxodo, 23, 9). O que está implícito aqui é que só se compreende outra pessoa até o ponto em que se tenha experimentado o que ela experimentou. E o que está ainda implícito é que todos compartilhamos a mesma experiência humana: é por isso que podemos compreender uns aos outros. A mesma idéia persistiu no pensamento cristão, através do mandamento: "ama teu inimigo" (Mateus, 5, 44). Um comentário peculiar sobre uma sociedade em que 95% das pessoas afirmam acreditar em Deus é obser- var que nossos relatórios sobre a guerra do Vietnã tra- tam, predominantemente, de quantos vietcongues matamos todos os dias. Esse é o paradoxo de uma cultura cristã em que a religião se transformou quase completamente numa ideologia. Naturalmente, a própria idéia do Cristo na religião cristã foi uma expressão do espírito huma- nista. Nicolau de Cusa, um dos grandes teólogos do Re- nascimento, afirmou: "A humanidade de Cristo une os homens e é a prova mais elevada da unidade intrínseca da humanidade". Também aí a ênfase está em todo o pensamento humanista, "a unidade intrínseca da huma- nidade". Existe um humanismo grego, no qual encontramos obras como a Antígona, de Sófocles, uma das maiores peças humanistas de todos os tempos, onde Antígona representa o humanismo e Creonte representa as leis da desumanidade feitas pelo homem. Um grande humanista latino — Cícero — escreveu: "Deveis conceber todo este universo como uma comuni- dade de que deuses e homens são membros". A idéia de 62 Da desobediência e outros ensaios
uma comunidade de homens em Cícero é bastante dife-
rente das Nações Unidas. Trata-se de um conceito muito mais radical e de alcance muito maior, que aqui se expressa lindamente. Os grandes nomes do humanismo renascentista — Erasmo, Picco delia Mirandola, Postei e muitos outros — levaram o humanismo a um conceito em que a ênfase recai sobre a "qualidade essencial do homem", do homem inteiro, do homem completo, cuja tarefa é desenvolver-se integralmente, transformar-se naquilo que é potencialmente. E, com esse impulso do pensamento renascentista sobre as potencialidades do homem que devem ser realizadas, inicia-se um novo tipo de pensa- mento humanista. Ele não é estranho ao humanismo anterior mas, apesar disso, enfatiza esse aspecto de maneira mais imperativa. Ainda importante para os pen- sadores humanistas do Renascimento era a ênfase na razão e, antes de mais nada, na paz. Eles reconheceram o clima de fanatismo existente entre as duas facções da época — os protestantes e os católicos; perceberam a irracionalidade das emoções em jogo nas disputas entre tais facções; tentaram impedir uma guerra; e fracassa- ram. A Guerra dos Trinta Anos, tão catastrófica para a Europa, tanto material quanto espiritualmente, eclodiu a despeito dos esforços frenéticos dos filósofos humanistas no sentido de impedi-la, através da criação de uma atmosfera de objetividade. No que concerne à filosofia do Iluminismo, do século XVII ao século XIX, basta mencionar uns poucos nomes: Spinoza, Locke, Lessing, Freud e Marx. Mas um dos maiores humanistas europeus foi Goethe. Em 1814, ele escreveu: "A nação alemã não é nada, mas o indivíduo alemão é alguma coisa. Não obstante, os alemães imagi- nam que o oposto seja verdadeiro. Os alemães deveriam dispersar-se por todo o mundo, como os judeus, para de- senvolver tudo o que neles há de bom, em benefício da O humanismo como Jilosofia do homem 63
humanidade". Essa é uma afirmação que, creio, seria
considerada criminosa e praticamente como traição caso fosse formulada na Alemanha de hoje, e seria também extremamente chocante para a maioria das outras nações. Permitam-me citar Goethe novamente, a partir de algo escrito em 1814, na época das chamadas "guerras de libertação" de Napoleão: "Nossos jovens consideram extremamente conveniente ingressar nas forças armadas. É uma ocupação muito atraente, sobretudo porque per- mite que se ganhe a reputação de ser um patriota completo". A própria essência do humanismo — a idéia de que tudo o que há de humano está em cada um de nós — é encontrada no Renascimento e antes dele, mas Goethe a formulou de maneira particularmente clara: "Os ho- mens carregam em si mesmos não apenas sua própria individualidade, mas toda a humanidade com todas as suas potencialidades". Freud, de certo modo, transpôs essa idéia humanista de Goethe para a prática: toda a psicanálise (ou seja, a tentativa de compreender o que está inconsciente em outra pessoa) pressupõe que o que detectamos no inconsciente de outrem está vivo em nós mesmos. A menos que todos sejamos um pouco loucos, um pouco maus e um pouco bons, a menos que todos portemos em nós todas as possibilidades, boas e más, que existem no homem, como poderá alguém compreender o inconsciente, o conteúdo não-convencional e não-oficial da mente de outra pessoa? (Claro está que falo em compre- endê-lo, e não em interpretá-lo de acordo com os livros). Um dos últimos grandes humanistas do século passado foi Marx. Em seus Manuscritos filosóficos,* ele escreveu: "Um ser não se considera independente a menos que seja seu próprio senhor, e só é seu senhor quando
* Publicado no Brasil por Zahar Editores in Erich Fromm, Con-
ceito marxista do homem, Rio, Zahar, 1962; 8.a ed., 1983. 64 Da desobediência e outros ensaios
deve sua existência a si mesmo. O homem que vive pelo
favor de outro se considera um ser dependente". O homem só é independente quando se apropria de seu ser multi- facetado de maneira abrangente e, desse modo,, é um homem inteiro. Nesse ponto, Marx está em relação direta com Goethe e com os filósofos do Renascimento. Mas o que Marx talvez enfatize mais do que qualquer outro é a independência, o não dever a própria existência a nin- guém, ou, para usar outra expressão freqüentemente empregada por ele, a "auto-atividade". Nesse caso, "ati- vidade" não significa fazer algo, estar ocupado, mas sim o processo da produtividade interna, conceito este que é muito semelhante aos de Aristóteles e Spinoza. Marx o expressou de outra maneira: "Se você ama sem despertar amor em troca, se não é capaz, pela manifestação de si mesmo como pessoa que ama, de transformar-se em pessoa amada, seu amor é impotente, é uma infelicidade". O leitor que não soubesse que isso foi escrito por Marx poderia ir buscar fontes budistas ou renascentistas. In- felizmente, Marx é quase tão deturpado na União Sovié- tica quanto nos Estados Unidos, de modo que esse seu lado humanista não é particularmente conhecido. Em geral, o humanismo surgiu como reação a uma ameaça ao homem. Hoje em dia, vivemos num período em que a ameaça à existência do homem é muito grave. Antes de mais nada e como é óbvio, há uma ameaça à própria existência física do homem pela preparação crescente para a guerra nuclear. Mas há ainda outra ameaça, que é uma ameaça à existência espiritual do homem. Na sociedade industrial — capitalista ou supostamente comunista, não faz diferença — o homem cada vez mais se transforma numa coisa, no Homo consumens, num eterno freguês. Tudo se converte em artigo de consumo. O homem se aliena, sendo cada vez mais "um" e menos "eu", para usar uma expressão de Heidegger. Torna-se cada vez mais o homem da organização, uma coisa, e corre o risco de O humanismo como Jilosofia do homem 65
perder a própria essência de sua humanidade: o estar
vivo. É precisamente em reação a tais perigos que o novo movimento humanista, ou o renascimento do humanismo, surgiu nos últimos dez anos e vem crescendo, curiosamen- te, em todos os campos ideológicos. Vemos urn novo humanismo dentro da Igreja Católica, imensamente auxi- liado e estimulado por João XXIII. Basta mencionar nomes como os de Chardin ou de teólogos católicos como Karl Rahner para assinalar quão vivo é esse movimento humanista. Na Igreja Protestante há um movimento semelhante. Albert Schweitzer é um dos maiores repre- sentantes do humanismo protestante. E, embora isso seja menos conhecido, vê-se o mesmo renascimento dentro do marxismo. Certamente esse renascimento não será en- contrado na União Soviética, ou melhor, é difícil dizer onde ele existe ali, pois não seria publicado nem conhe- cido. É muito evidente, contudo, nos países socialistas menores, como a Iugoslávia, a Polônia, a Tchecoslováquia e a Hungria. Adam Schaff e Georg Lukács são apenas dois dos muitos homens que dão expressão ao renasci- mento do humanismo no marxismo da Europa Oriental.2 É perfeitamente verdadeiro que os conceitos dos humanistas católicos, dos humanistas protestantes e dos humanistas marxistas (mesmo entre os próprios mar- xistas) são bastante diferentes. Não obstante, têm muito em comum. Em primeiro lugar, há uma ênfase comum no fato de que o que importa não é apenas o conceito — também é importante a experiência humana por trás do conceito, pois os mesmos conceitos podem expressar ou ocultar as mais divergentes realidades humanas, ao passo que conceitos opostos podem ser expressões de realidades humanas idênticas. Em outras palavras, em- bora a expressão de uma atitude num conceito, seja ela filosófica, política ou teológica, seja importante, ela só tem sentido quando o conceito está referido à realidade 66 Da desobediência e outros ensaios
da experiência do homem que fala sobre ele. Os conceitos
são banais em si mesmos; qualquer um pode aprendê-los, tal como se pode aprender uma língua estrangeira — alguns as aprendem melhor, outros menos bem. Mas não são nada além de palavras, a menos que as ações do in- divíduo na vida cotidiana — com respeito à guerra e à paz, em sua atitude para com seu vizinho, nos muitos atos que revelam um homem de maneira muito mais fiel do que suas palavras — estejam enraizadas nessa substân- cia humana. Os humanistas dos mais divergentes campos doutrinários e conceituais, portanto, descobrem ter mais em comum do que diferenças entre si; compreendem uns aos outros notavelmente bem, mesmo que cada um pre- serve seu próprio quadro de referência. O segundo fator comum ao novo humanismo de hoje é a preocupação com o homem, com seu desenvolvimento integral, e o interesse por salvá-lo não apenas da extinção física, mas também da morte espiritual com que a sociedade industrial o ameaça. Não surpreende que o humanismo de hoje, em todos os campos, tenha na paz sua preocupação principal e, com ela, a preocupação de evitar o fanatismo e os resul- tados do fanatismo: a preparação louca para a destruição universal. Precisamente por terem os humanistas tanto em comum é que há entre eles um diálogo crescente. E de modo algum se trata de uma polêmica no sentido me- dieval, mas de um verdadeiro diálogo. Por exemplo, uma conferência na Notre Dame University reuniu marxistas da Europa e teólogos protestantes e católicos. No ano passado [1965], em Salzburgo, na Áustria, duas dessas conferências tiveram lugar. Elas ocorrerão com freqüên- cia cada vez maior, estimuladas pelo espírito do Concilio Ecumênico e pela tendência crescente dos marxistas dos pequenos países socialistas a se preocuparem com os problemas do humanismo, com os problemas do homem. O humanismo como Jilosofia do homem 67
Há diferenças entre os vários tipos de humanismo
contemporâneo, sem dúvida. Os humanismos católico e protestante contemporâneos dão ênfase semelhante ao amor, à tolerância e à paz, só que dentro de um quadro de referência teísta que declara que essas metas e valores são garantidos pela própria existência de Deus. O huma- nismo existencialista, representado de maneira mais elo- qüente por Sartre, dá prioridade à completa liberdade do homem, mas implica uma grande parcela de desespero e, a meu ver, de egoísmo burguês. (Esta, evidentemente, é uma crítica de que muitos discordarão). Não há dúvida, contudo, de que o existencialismo de Sartre faz parte da filosofia humanista de hoje. O humanismo socialista apresenta dois aspectos que eu gostaria de focalizar. O primeiro está expresso de maneira muito clara no livro do professor Schaff, que enfatiza os seguintes elementos no humanismo socialista: sua visão do homem é de autonomia, sem um quadro de referência teísta; trata-se de um humanismo de luta, isto é, um humanismo político; é otimista, não por fé, mas por convicção. (Pode-se entender que, num país como a Polônia, onde a luta principal é entre os marxistas e a Igreja Católica, um autor polonês enfatize sua alienação da Igreja). Outra faceta, segundo Schaff, é o amor pelo próprio vizinho, a negação do egoísmo, a descoberta da felicidade no esforço em favor da felicidade dos outros. Há aí um ligeiro toque do pensamento burguês do século XIX, que faz lembrar "o bem maior para o maior nú- mero". Mas, na negação do egoísmo, Schaff é muito mais profundo e está, na verdade, em intenso contraste com o pensamento burguês dos últimos séculos. (Evidente- mente, abolir as condições sociais de infelicidade geral é o aspecto prático e político do humanismo marxista). Mas a questão crucial é: o que quer ele dizer com "lutar pela felicidade dos outros"? Eis aí o segundo aspecto que desejo discutir. O que é a felicidade? Deve 68 Da desobediência e outros ensaios
ela ser subjetivamente definida? Será felicidade o fato de
uma pessoa fazer o que deseja? Nesse caso, o masoquista fica feliz ao ser espancado, o sádico fica feliz quando consegue espancar e o viciado em drogas é feliz quando dispõe da droga. Se definirmos felicidade no sentido subjetivo de permitir que cada pessoa consiga o que quer, teremos uma teoria literal do laissez-faire no âmbito da moralidade, e a felicidade se tornará inteiramente sem sentido, pois, sem nada a defini-la em termos objetivos, essa espécie de felicidade tanto poderia ser a pior quanto a melhor. Poderá, contudo, o objetivo da vida ser definido em termos objetivamente válidos? Quando o fazemos, não estaremos voltando à religião tradicional ou ao sistema de Stalin, com a Igreja ou o Estado determinando o que é belo, o que é bom e aquilo por que o homem deve lutar? Coloca-se então o grave problema: haverá algum meio de conciliar uma contradição aparentemente tão impressio- nante, de chegar a valores objetivamente válidos sem voltar a um sistema de valores controlado pelo Estado ou pela Igreja e imposto ao homem? Essas perguntas são comuns à maioria dos humanistas, independentemente de concordarem ou não com Schaff. Temos que aceitar o princípio de que não deve haver nenhum dogma, nenhuma força e, na medida em que esse é um conceito não-teísta do humanismo, aceitar que as idéias e valores não se baseiam na crença em Deus. Não deve haver nenhuma força que impeça as pessoas de satisfazerem seus desejos, inclusive os viciados em drogas ou qualquer tipo de atividade sexual, desde que isso não cause danos a outras pessoas. (Não me refiro particular- mente ao sexo — que não faz tanto mal). Ao que me parece, o problema não é criar tabus e proibir a satisfa- ção dos desejos, mas estimular o homem ao cultivo de desejos que sejam verdadeiramente humanos, desejos que sejam os de um ser humano ativo, vivo e em desenvolvi- O humanismo como Jilosofia do homem 69
mento. Somente através do cultivo dos desejos humanos
podem-se alcançar progressos, mas isso não pode surgir através da regulamentação da satisfação de desejos que já existem — o que simplesmente não funciona. De que modo podem os desejos ser estimulados? Essencialmente, de duas maneiras, penso. Primeiro, le- vando a sério nossa tradição humanista, que de modo algum é levada a sério. A maior parte do que dizemos sobre nossa tradição é pregação, é ideologia e não reflete as verdades da vida. O problema é se nossa tradição humanista — a tradição dos melhores anos que a raça humana conheceu: os últimos 2.500 anos — pode ser um desafio ao estilo de vida que praticamos. E segundo, como socialista, creio que os desejos humanos só podem ser estimulados por uma prática e uma organização sociais diferentes, por uma atmosfera diferente da sociedade.3 A pergunta seguinte é como estabeleceremos a vali- dade de certos objetivos humanos, de certos valores humanos, se sua validade não se basear em Deus, na revelação ou na simples tradição. Creio que isso pode ser feito através de uma análise das condições de existência do homem, pela análise das contradições intrínsecas da existência humana e por uma análise de como estas podem ser solucionadas em nível ótimo. Essa tarefa foi realizada de maneira bastante eficaz pelo budismo, há 2.500 anos. Pode-se concordar ou não com as conclusões budistas e, de qualquer modo, a maior parte do budismo é hoje erroneamente compreendida, mas ele constituiu, certamente, uma tentativa racional e completamente não- mitológica de compreender a existência humana, ver seus problemas e encontrar uma resposta. Talvez haja respos- tas melhores, porém, do ponto de vista metodológico, essa foi a primeira vez em que se fez uma análise objetiva e racional. Falando mais especificamente, penso que as idéias e valores desse tipo de humanismo se encontrariam na 70 Da desobediência e outros ensaios
seguinte direção: há um valor supremo na personalidade
produtiva e auto-ativada, no sentido de Spinoza, Goethe ou Marx. Isso é contrário ao Homo consumens, o eterno lactente que é hoje a estrutura média do caráter na sociedade industrial. Além disso, a pessoa desenvolveria seu amor e seu raciocínio. Outro valor supremo seria a capacidade de transcendência do homem, palavra que é habitualmente usada nas discussões teológicas. Diz-se que o homem tem que ir além de si mesmo para ser inteira- mente humano, e esse "além de si mesmo" é geralmente definido como Deus. Mas quando se fala em termos de experiência humana, o conceito de Deus é bastante desnecessário, e a pergunta passa a ser: pode o homem deixar seu ego de lado? Pode abandonar a prisão de sua própria existência separada? Pode tornar-se vazio? Pode abrir-se para o mundo? Como expressaram os místicos, pode ele esvaziar-se para ser pleno? Pode ser pobre para ser rico? Ou, para usar uma expressão que Marx empre- gava com freqüência, "O importante é que o homem seja muito, e não que tenha muito ou use muito". Em sua forma mais radical, chegaríamos ao que pode ser cha- mado de um misticismo ateísta, tal como é atualmente encontrado no Zen Budismo, bem como entre muitos filósofos ocidentais sem qualquer ligação com o Zen Budismo. Poder-se-ia descrevê-lo como um sentido de unicidade com o mundo, que não se baseia na crença em Deus no sentido conceituai, mas que, apesar disso, não difere muito do que propuseram certos místicos cristãos, judeus ou muçulmanos que expressaram a mesma expe- riência através de outros conceitos e outras palavras. Há apenas uma coisa a mais a ser dita, ou seja, que qualquer humanismo desse tipo deve ter uma hierarquia estrita de valores; sem ela, nenhuma das outras coisas faz qualquer sentido. Não é uma hierarquia ideológica, mas real. Quando alguém quer tornar-se pianista e tenta fazê-lo praticando meia hora por semana, é simplesmente O humanismo como Jilosofia do homem 71
um tolo. E quando alguém quer atingir os valores do
humanismo sem lhes dar, em termos comparativos, uma completa superioridade em relação a quaisquer outros valores, está-se fazendo de tolo. Talvez não seja tolo num sentido mundano. A menos que o homem se decida entre Deus e César (falando em linguagem teológica), é muito provável que se venda a César; certamente não escolherá Deus, nem tampouco os valores que lhe são equivalentes num sistema humanista desenvolvido. No século XIX, Nietzsche proclamou que Deus estava morto. Hoje em dia, alguns teólogos protestantes dizem o mesmo. Para a maioria das pessoas, isso é provavelmente verdadeiro. Mas o problema hoje não é tanto se Deus está morto: o problema é se o homem está morto. Não fisica- mente, neste momento — embora também isso esteja ameaçado — mas espiritualmente. É saber se o homem não se transformou e está-se transformando ainda mais num autômato, o que acabará por deixá-lo completa- mente vazio e sem vitalidade. O novo humanismo, em suas diversas formas, está unido na determinação de que o homem não deve morrer. Católicos e protestantes preo- cupam-se com o fato de que Deus não deve morrer, mas unem-se a todos os outros humanistas em seus esforços primordiais para impedir a morte do homem. É importante não apenas protestar contra os males; há tantos males atualmente que, a rigor, todos têm opor- tunidade de protestar. Mas imagine por um momento que não há nenhuma questão racial e que não há guerra no Vietnã. O que você está fazendo com sua vida? Creio que é preciso estar consciente de que, embora seja necessário, protestar não é a única forma de atividade humana, e penso ser crucial que as gerações mais novas se coloquem a questão de onde poderão encontrar um quadro de refe- rência, uma orientação e uma devoção que não sejam nem a do mundo burguês, inteiramente subjetiva, nem a da religião, prescrita pelo dogma e pela organização que 72 Da desobediência e outros ensaios
apóia o dogma —• mas antes a escolha de valores que
levem à maior vitalidade no sentido humanista. Não devemos ter medo de enfrentar os problemas espirituais de nossa existência humana.
NOTAS
1. Adam Schaff, Marxism and, the Human Individual, publicado na
Europa em edições em alemão e em polonês. Uma edição em lín- gua inglesa f o i publicada nos Estados Unidos no final de 1966 (McGraw-Hill Paperback Series). 1. Erich Fromm ( o r g . ) , An International Symposium, on Socialist Humanism (Doubleday, 1965). Artigos escritos por pensadores marxistas dos Estados Undios e da Europa, muitos dos quais provenientes dos pequenos países socialistas. 3. Erich Fromm, The Sane Society, Nova York, Holt, Rinehart & Winston. (Ed. bras.: Psicanálise da sociedade contemporânea, Rio, Zahar, 1959; 10.a ed., 1983). V. Que Prevaleça o Homem*
Quando o mundo medieval se esfacelou completamente,
o homem ocidental parecia encaminhar-se para a realiza- ção final de seus mais vividos sonhos e visões. Ele se libertou da autoridade de uma Igreja totalitária, do peso do pensamento tradicional e das limitações geográficas de um globo conhecido apenas pela metade. Descobriu a natureza e o indivíduo. Tornou-se cônscio de sua própria força e de sua capacidade de transformar-se no regente da natureza e das circunstâncias tradicionalmente pre- sentes. Acreditou que seria capaz de chegar a uma síntese entre seu sentimento recém-surgido de força e racionali- dade e os valores espirituais de sua tradição humanista- espiritualista, entre a idéia profética do tempo messiânico de paz e justiça a ser alcançado pela humanidade no processo histórico e a tradição grega do pensamento teórico. Nos séculos que se seguiram ao Renascimento e à Reforma, o homem construiu uma nova ciência, que terminou por levar à liberação de forças produtivas de que até então não se tivera notícia e à completa trans-
" " L e i Man Prevail" f o i originalmente publicado in Let Man Pre-