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A COROA E O TRONCO:

A escravidão e a gênese do Estado nacional brasileiro


Mário Maestri
!
Sumário: O presente artigo discute o processo de independência unitária do qual surgiria o Império do
Brasil, como sobretudo produto de pacto entre as classes dominantes escravistas das principais
províncias, realizado em defesa da manutenção da ordem escravista. Aborda a relação umbilical entre a
escravidão e a monarquia e a crise dessa última como produto da superação da organização social
escravista em 1888. Apresenta a superação da escravidão como revolução social e produtiva realizada
sobretudo, em seus momentos finais, pela convergência da população escravizada com o movimento
abolicionista radicalizado.
!
!
Desde 1530, com o início da ocupação territorial e da plantagem açucareira nas
possessões luso-americanas, o escravismo articulou-se como forma hegemônica de produção.
No período colonial, a economia assentou-se na mão-de-obra feitorizada, primeiro nativa e, a
partir do Seiscentos, sobretudo africana. O modo de produção escravista colonial dominou as
outras formas de produção e a sociedade brasileira praticamente até 1888.1 Durante o longo  

período escravista, o mundo rural dominou o urbano. A unidade produtiva de base era o
latifúndio monocultor escravista. Ele articulava a vida econômico-social colonial. A economia
agroexportadora produzia regionalmente e dependia dos mercados internacionais para a
realização de sua produção. Não houve modificações essenciais dessa realidade no contexto da
mineração escravista. 2  

A esfera de produção natural das unidades escravistas produzia parte do que era
consumido por escravizados e escravizadores. O consumo dos livres pobres era diminuto e
tendencialmente satisfeito pela produção agrária e artesanal local. A administração
metropolitana reprimia a produção regional que substituísse as importações. Pouco sentido
tinham os `mercados internos`. O Brasil colonial constituiu mosaico de regiões produtivas semi-
autônomas. Os limitados meios de transporte e a vontade metropolitana de dificultar eventual
unitarismo americano contribuíam à atomização colonial. Até 1808, o Brasil não possuiu
imprensa. A comunicação manuscrita era precária, devido ao elevado analfabetismo e à falta de
correios nas próprias capitanias. A comunicação colonial das idéias dava-se por via oral e
interpessoal, “limitada no tempo e no espaço, e, em círculos muito restritos”. No Rio Grande do

1! . Sobre o modo de produção escravista colonial, ver: GORENDER, J. O escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Ática,
1988 e CARDOSO, Ciro Flamarión. “El modo de producción esclavista colonial em América”. ASSADORIAN,
Carlos Sempat. Modos de producción en América Latina. Córdoba: Pasado y Presente, 1973; sobre o momento da
transição indígenas/africanos, ver: SCHWARTZ, S.B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial.
São Paulo: Cia. das Letras, 1988. pp. 5773; sobre a escravidão indígena, ver: MONTEIRO, John Manuel. Negro da
Terra : índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; MAESTRI, Mário. Os
senhores do litoral: conquista portuguesa e genocídio tupinambá no litoral brasileiro. séc. XVI.. 2. ed. Porto Alegre:
EdiUFRGS, 1994. 113 pp .

2! COSTA, Iraci del Nero da. Populações mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos mineiros no
alvorecer do século XIX. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1981.
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Sul, apenas em 1837, o governo republicano organizou serviço regular de correio, “com postos
de trocas de cavalos” para a correspondência oficial.3  

A principal razão da autonomia regional era sócio-econômica. Capistrano de Abreu


afirmou que, inicialmente, as capitanias luso-brasileiras viviam em verdadeira "condição de
Estados estrangeiros".4 Apenas a ligação a uma mesma metrópole e a uma administração
 

colonial centralizada dava certa impressão de unidade às possessões coloniais. E mesmo isto
deve ser matizado. Durante a Colônia, o senado da câmara — sob o controle das classes
dominantes locais — exerceu ampla autoridade, legal ou abusiva, sobre os assuntos municipais,
mesmo que as funções legislativas conhecidas pelas municipalidades em Portugal fossem
negadas às câmaras brasileiras. Para manter-se nas Américas, a Metrópole transigia com as
elites coloniais. Por outro lado, por longos anos — 1573-8; 1608-12; 1621-1772 — as
capitanias do Norte e as do Sul foram administradas autonomamente.
Múltiplas colônias
Açúcar, algodão, arroz, cacau, couros, fumo, minérios, etc., produzidos nas unidades
escravistas das capitanias, eram exportados para a Europa — via Portugal — pelos portos de
Recife, Rio de Janeiro, Rio Grande, Salvador, São Luís, etc. De Portugal chegavam a esses
portos os manufaturados europeus. O tráfico negreiro garantia a reprodução da população
trabalhadora e articulava outras ligações sócio-econômicas entre as colônias e o exterior.5 Esse  

padrão agroexportador determinava fraca comunidade de interesse entre as colônias luso-


americanas. O historiador britânico C.R. Boxer escreveu sobre o início do século 18: "A
colonização ficava, em sua maior parte, limitada a um certo número de colônias vagamente
relacionadas umas às outras num cinturão costeiro que se estendia do delta do Amazonas até
São Vicente [...]." Devido ao sistema de ventos e de correntes atlânticas, os contatos marítimos
entre o Pará e o Maranhão e Lisboa eram mais fáceis e usuais do que entre o Norte e o Rio de
Janeiro. O Rio de Janeiro mantinha ligações mais estreitas com Luanda do que com o Pará. Era
grande a comunhão entre a província de São Pedro e a Banda Oriental (Uruguai). Pouco unia o
Extremo Sul à Amazônia luso-brasileira. 6  

O historiador Nélson Werneck Sodré ressalta o caráter regional dos primeiros esforços
culturais sistemáticos das classes dominantes coloniais em inícios do século 18: "Os grupos
estavam dispersos pelos poucos centros urbanos coloniais. Não se comunicavam sequer entre
si." A falta de comunicação devia-se à debilidade dos laços econômicos. Emília Viotti da Costa
lembra que, ainda "às vésperas da Independência, eram mais fortes os laços das várias

3! Cf. MATTOS, Florisvaldo. A comunicação social na Revolução dos Alfaiates. 2 ed. Salvador: Assembléia Legislativa
do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 1998. p. 24; FLORES, Moacyr. A revolução farroupilha. Porto
Alegre: EdiUFRGS, 1990. p. 62.

4! . ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial. 15001800. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
Brasília, MEC, 1976. p. 45.

5! . Cf. CONRAD, Robert E. Tumbeiros : o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985; SALVADOR,
José Gonçalves. Os magnatas do tráfico negreiro: séculos XVI e XVII.. São Paulo: Pioneira, 1981; CORREIA DE
ANDRADE, Manuel. As raízes do separatismo no Brasil. São Paulo: EdiUNESP; Bauru: EDUSC, 1999. p. 54.

6! . Cf. BOXER, C.R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: CEN, 1963. p.36; BOXER, C.R. Salvador de Sá : e a luta
pelo Brasil e Angola. 16021686. São Paulo: CEN /EdiUSP,1973. p.33.
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províncias com a Europa do que entre si". 7 Nos limites das diversas regiões produtivas, as
 

classes dominantes coloniais controlavam o essencial do poder econômico-social e viviam em


situação de relativa sujeição e subordinação à administração e às elites metropolitanas. Os
grandes proprietários luso-brasileiros tinham a consciência de pertencerem às classes
dominantes e ao império lusitano e não de participarem de comunidade ‘colonial brasileira’, que
não existia, objetivamente. A consciência de nacionalidade, como a compreendemos hoje, é
fenômeno nascido e desenvolvido a partir do século 18, na Europa. O geógrafo e historiador
pernambucano Manuel Correia de Andrade é claro nesse sentido: "Não se pode falar em
sentimento nacional durante o longo período colonial [...]." 8  

Crise colonial
No Oitocentos, a crise do mercantilismo expressou o novo reordenamento europeu de
forças. Com o avanço da produção capitalista, as nações ibéricas, incapazes de realizarem suas
revoluções burguesas, estavam fadadas a perderem as possessões americanas. No passado, o
`pacto colonial` garantira o desenvolvimento das colônias, das metrópoles e das classes
dominantes coloniais e metropolitanas. Em fins do século 18, ele constituía entrave ao
desenvolvimento sócio-econômico do Novo e do Velho Mundo. Nas Américas, as elites
coloniais, exasperadas pelo caráter crescentemente parasitário do exclusivismo político-
comercial metropolitano e conscientes do importante domínio sócio-econômico que exerciam
nas suas respectivas áreas de influência, lançaramse à conquista do controle total do poder
político. Os diversos projetos emancipacionistas articulavamse e ganhavam força no contexto
dos espaços geoeconômicos reais preexistentes.
Em 1776-83, as treze colônias angloamericanas tornaram-se independentes por primeiro.
A existência de certo grau de interdependência; a necessidade das classes proprietárias das
pequenas ex-colônias de defenderem-se da Inglaterra, a necessidade de manter na submissão a
população livre-pobre e escravizada ensejaram a formação de república federativa onde os
Estados membros gozavam de ampla autonomia quanto às questões internas. A América
espanhola pertencera a uma mesma metrópole. Suas classes regionalmente hegemônicas
possuíam uma mesma religião, uma mesma língua e uma mesma cultura. Era também
significativo o ideário americanista entre importantes parcelas das elites criollas hispano-
americanas. Nada disso sobrepôs-se à força das tendências centrífugas dos diversos blocos
geoeconômicos. A América espanhola explodiu em uma constelação de dezesseis Estados
republicanos independentes. Sobre esse fenômeno, Torres Rivas assinala: “A conquista e
posterior colonização forjaram de cima, a partir do poder colonial, por mais de duzentos anos,
uma extensa comunidade de idioma, religião e raça; apesar disso, o Império espanhol na
América foi, principalmente, uma ordem política construída sobre profundas descontinuidades
econômicas, geográficas, culturais e sociais: uma nação atada por cima e solta por baixo.” 9  

7! . COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à Republica: momentos decisivos. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.
29; SODRÉ, Nélson Werneck. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. 5 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1969. p.107. [1 ed. 1938].

8! . Cf. HOBSBAWM, Eric. Nazioni e nazionalsimi dal 1780. Torino: Einaudi, 1996. [PBE, 564]; CORREIA DE
ANDRADE, Manuel. As raízes do separatismo no Brasil. São Paulo: EdiUNESP; Bauru: EdiUSC, 1999. P. 54.

9! RIVAS, E. Torres. Sobre a formação do Estado da América Central. PINHEIROS, OS. (org.) O Estado da América
Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 65.
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No Brasil, atuavam os fenômenos que resultaram na partição hispano-americana. Em
Pernambuco, em 1654, durante a guerra anti-holandesa; em São Paulo, em 1640; as classes
dominantes locais discutiram a independência das respectivas capitanias.10 Em 1710, quando da
 

Guerra dos Emboabas, os senhores das Gerais praticamente auto-governaram-se. Em 1817, a


Revolução Pernambucana foi republicana e separatista. A Inconfidência Mineira também
almejava a independência da capitania. Em 1798, a conspirações dos Jacobinos Negros
almejava apenas a autonomia republicana baiana. Em As raízes do separatismo no Brasil, o já
citado Manuel Correia de Andrade assinala sobre esses movimentos nativistas regionais: "Essas
rebeliões não tinham um caráter nacional, não eram de brasileiros, como brasileiros, mas de
colonos do Maranhão, de Pernambuco, de Bahia, de Minas Gerais e de São Paulo contra o
domínio luso."11  

Mistério historiográfico
O unitarismo brasileiro resultante da crise colonial constituiu um dos grandes ‘mistérios’
da história brasileira. Em Populações meridionais do Brasil, o sociólogo fluminense Oliveira
Viana registra a perplexidade dos analistas mais perspicazes sobre as razões da unidade
nacional brasileira: "[...] nada, nenhuma necessidade poderosa nos levava [...] à integração do
país dentro de uma possante armadura de poderes ‘nacionais’." 12 Durante a construção de
 

interpretações apologéticas do passado da nação em formação, a historiografia tradicional


apresentou o unitarismo como produto da intervenção providencial de Pedro I e de José
Bonifácio, sobretudo. Escreveu o historiador baiano Pedro Calmon: “À sua presença [de dom
Pedro] no Brasil devemos a unidade das províncias, quando as Cortes portuguesas quiseram
desagregá-las e, conseqüentemente, o próprio Brasil [...]." 13 Tal análise peca já por
 

anacronismo. Dom Pedro encontrava-se na província do Rio de Janeiro, e não no Brasil. Na


época, mais do que nunca, o Brasil não existia como unidade política e econômica unitária e
autônoma. Até a crise da Independência, dom Pedro jamais saíra da província do Rio de Janeiro.
Muitos analistas explicaram o unitarismo nacional como devido à instalação da sede da
coroa lusitana na América. Também nesse caso confunde-se a Corte, espaço geopolítico
objetivo, com realidade jurídico-política inexistente na época ⎯ o Brasil-nação. A revolta
pernambucana de 1817, primeiro movimento republicano-separatista de parcela dos atuais
territórios brasileiros, propunha a autonomia em relação ao Rio de Janeiro, do mesmo modo
que proporia separar-se de Lisboa, se lá estivesse a administração real lusitana.14 As ex-colônias
 

luso-brasileiras emergiram da independência como nação unitária, organizada em torno de


Estado centralizado e autoritário. Não conheceram nem mesmo o federalismo que organizou,
por longos anos, as ex-colônias britânicas. O Estado-nação brasileiro — monárquico,
autocrático e centralizado — resultou da necessidade das classes proprietárias das diversas

! . CORREIA DE ANDRADE, Manuel. As raízes do separatismo no Brasil. São Paulo: EdiUNESP; Bauru: EDUSC,
10
1999. P. 52.

! . CORREIA DE ANDRADE, M. As raízes do separatismo no Brasil. Ob.cit. p. 55.


11

12
! . VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973. p.259. V.1.

! . CALMON, Pedro. História da civilização brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, sd. p. 207.
13

! . Cf. MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: EdiUSP, 1972.
14

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províncias de enfrentarem o problema da independência e da gestão constitucional de seus
interesses maiores, sem colocarem em perigo a espinha dorsal da economia colonial: a produção
escravista.
Filho da Escravidão
Coevo aos acontecimentos da Independência, o monsenhor Muniz Tavares assinalou que a
transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro — 15 mil pessoas — decretara um fim
indolor ao regime colonial. 15 Salvo engano, tratou-se de único caso, nos Tempos Modernos, de
 

transmigração dos segmentos superiores de classe dominante para uma colônia. Fato que se
deveu também ao medo das classes dominantes lusitanas da revolução liberal e, portanto, de
perderem as rendas das americanas, e não apenas ao que temor à invasão francesa de Portugal.
Antes localizado na metrópole, o centro das decisões passou a sediar-se no Rio de Janeiro. A
abertura dos portos [1808] pôs fim ao exclusivismo comercial. Aparentemente, permaneceria
apenas para ser resolvida a questão da gestão absolutista do Estado. Problema agravado pelo
favorecimento dos portugueses natos praticado quando do preenchimento dos postos e cargos
administrativos e honoríficos.
Porém, mesmo com a instalação da administração lusitana no Novo Mundo português,
latejavam as tendências autonomistas entre as elites de importantes regiões, sobretudo do
Nordeste e do Sul, que viam as rendas regionais tributadas e monopolizadas pela Corte
instalada no Rio de Janeiro, como o eram, no passado, pelas elites portuguesas, instaladas em
Lisboa. Para o norte do Brasil, aumentava — e não diminuía — a distância com o centro das
decisões. Em 1820, devido ao projeto recolonizador da revolução liberal e constitucionalista do
Porto, as facções dominantes coloniais americanas, como um todo, viram recolocados, com
maior intensidade, os problemas enfrentados pelas classes proprietárias nordestinas, em 1817,
quando da Revolução Pernambucana. Na época, importantes facções das classes hegemônicas
regionais almejavam independência estranha a qualquer partição ou subordinação do poder.
Agravava a situação o fato de que o poder central – sediado no Sudeste desde o ciclo da
mineração (1763) – via-se diante de um Nordeste, mais populoso e em relativo econômico
conjuntural, que abominava a gestão semi-estrangeira do Rio de Janeiro, que vivia, então, grave
crise econômica.
O inimigo interno
Eram também fortes as tendências autonomistas e separatistas no norte, no centro e no sul
do país. Tudo apontava para a explosão do Brasil em repúblicas organizadas a partir das antigas
sub-regiões coloniais e, talvez, da manutenção do domínio de Portugal, ao menos por algum
tempo, sobre alguns províncias do norte. A crise final da ordem mercantilista colocava graves
questões às elites luso-brasileiras: pressão do governo inglês pela abolição do tráfico
transatlântico; reivindicações federalistas radicais e separatistas; semi-monopólio lusitano das
atividades comerciais e mercantis. A principal questão era social. Os grandes escravizadores
queriam autonomizaremse de Portugal e `nacionalizar` as atividades comerciais sem
comprometer a organização social negreira. A revolução servil de Saint-Domingues-Haiti
(1804) e os sucessos hispano-americanos eram avisos premonitórios. Fortes choques militares

15
! . TAVARES, Francisco Munis. História da Revolução de Pernambuco em 1817. 3 ed. Recife: Instituto Arqueológico e
Geográfico Pernambucano, 1917; MOURÃO, Gonçalo de B. C. Mello. A revolução de 1817 e a história do Brasil:
um estudo de história diplomática. Belo Horizonte: Itatiaia, 1996.
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entre tropas metropolitanas e americanas, ou entre facções crioulas luso-brasileiras, por
questões de limites territoriais, ameaçariam a necessária submissão dos trabalhadores
escravizados — o “inimigo interno” — e a defesa da continuidade da escravidão.
Se as províncias brasileiras explodissem em repúblicas, cresceriam as dificuldades para
manter a organização escravista nas regiões onde se mostrasse produtiva. Os Estados
abolicionistas acoutariam os cativos fujões, como o haviam feito as Guianas e as possessões
hispano-americanas, no passado. Nos USA, a crescente divisão do país em Estados escravistas e
Estados abolicionistas permitiu que dezenas de milhares de cativos fugissem, no Sul, para o
Norte, ou para a fronteira com o Canadá. Os pequenos Estados escravistas resultantes da divisão
territorial dificilmente sobreporiam-se às crescentes pressões do governo britânico pelo fim do
comércio tumbeiro.16 Sem escravos novos recém-chegados da África, encareceriam-se
 

insuportavelmente o preço dos trabalhadores feitorizados.


As elites escravizadoras preocupavam-se sobretudo com a ordem social. Um estado de
guerra generalizada facilitaria fugas e aquilombamentos maciços de trabalhadores escravizados
e suas cooptações pelas facções em luta. Durante a ocupação holandesa do Nordeste (1630) e a
Insurreição Pernambucana (1645-54), os cativos aproveitaram a pugna entre os Estados
coloniais e refugiarem-se no sul da Capitania. Fora necessário longa e custosa guerra para pôr
fim à confederação dos quilombos de Palmares. 17 Na primeira metade do século 19, os
 

escravos das ex-colônias hispano-americanas foram amiúde recrutados para os exércitos em


luta. Em 1842, no Uruguai, a escravidão foi quase extinta com a incorporação dos cativos ao
exército nacional. 18 

Américas em chamas
Na América luso-brasileira, quando da Independência, importantes fenômenos
internacionais agitavam a população escravizada e as classes subalternas, sobretudo mestiças.
Na Europa, a Revolução Francesa difundira propostas de reforma política e social. No Haiti,
ocorrera a única revolução servil que pôs fim a um Estado escravista.19 Durante esses últimos
 

acontecimentos, cabeças senhoriais rolavam numerosas. Na África, o movimento islâmico


reformador de Osmã dan Fodio difundia-se entre comunidades negro-africanas envolvidas pelo
tráfico dirigido ao Brasil. As conseqüências dessa conjuntura fizeram-se logo sentir. Em 1923,
a Guiana Inglesa foi “cenário de uma das maiores revoltas de escravos da história do Novo

16
! BETHEL, Leslie. A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura. São Paulo,
EDUSP, 1976.

17
! . FREITAS, Décio. 2 ed. Palmares: a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Graal, 1978; FREITAS, M.M. O reino
negro de Palmares. Rio de Janeiro: Americana, 1954; CARNEIRO, Édison. O Quilombo dos Palmares. 3 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

18
! . Cf. ISOLA, Ema. La esclavitud en el Uruguay: desde sus comienzos hasta su extinción. (1743-1852). Montevideo:
CNHSHH de 1825, 1975. p. 320.

19
! . Cf. JAMES, C.L. Os jacobinos negros: Toussaint L´Ouverture e a revolução de São Domingos. [The Black Jaconins,
1938] São Paulo: Boitempo, 2000; SCHOELCHER, Victor. Vie de Toussainte Louverture. Paris: Karthala, 1982;
WIMPFFEN, Alexandre-Stanislas. Haïti au XVIIIe. Siècle : richesse et esclavage dans une colonie française. France:
Karthala, 1993; LOUVERTURE, F. D. Toussaint. La libertà del popolo nero. Torino: La Rosa Editrice, 1997.
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Mundo”, quando de “10 a 12 mil escravos se sublevaram em nome de seus ‘direitos’”. 20 Apesar  

de, salvo engano, não termos estudos gerais sobre a agitação da população escravizada no Brasil
nas três primeiras décadas do século 19, há indícios do crescimento da tensão social nesse
período.
Desde 1807, a Bahia foi convulsionada por importantes revoltas servis que desembocaram
na grande insurreição malê de 1835, uma conspiração de massas de cunho quase moderno
contra o Estado escravista. Nesse ano, atemorizada com a agitação entre os trabalhadores
escravizados, votou-se a famigerada lei que ordenava a morte, sem direito de apelação, de todo
cativo que levantasse a mão armada contra seu senhor, sua família ou seus capatazes. John
Armitage, comerciante inglês que chegou ao Brasil, com 21 anos, em 1828, e escreveu uma
perspicaz História do Brasil, ao referir-se à Independência, registrou os temores dos escravistas:
"Quaisquer tentativas prematuras para o estabelecimento da república teriam sido seguidas de
uma guerra sanguinolenta e duradoura, na qual a parte escrava da população teria pegado em
armas, e a desordem e a destruição teriam assolado a mais bela porção da América Meridional."
21 Velada ou abertamente, a questão servil traspassou as discussões senhoriais sobre como
 

enfrentar a independência. O Estado-nação monárquico, autoritário e centralizado brasileiro foi


criatura da escravidão. Nos momentos da definitiva ruptura das províncias luso-brasileiros com
a monarquia lusitana, o Brasil independente e unitário surgiu sobretudo como resultado dos
interesses negreiros e escravistas.
Independência escravista
A Independência e o unitarismo nacional deramse sob a batuta cautelosa e conservantista
dos grandes plantadores e comerciantes de trabalhadores escravizados. Em 1822, os
comerciantes de cativos da Corte desempenharam importante papel na vitória da solução
unitarista e centralista organizada em torno de Pedro I. Em, 1823, eles teriam apoiado
igualmente o golpe anti-liberal e anti-constitucional do Imperador. As veleidades republicanas,
liberais, separatistas e federalistas de importantes segmentos livres regionais foram recalcadas
em prol da segurança escravista. A solução encontrada foi deveras conservadora: "Na sua quase
unanimidade — lembra Tarquíneo de Sousa —, os brasileiros de então não tiveram escrúpulo
em eleger chefe da sua revolução libertadora o regente do Brasil, o príncipe português e
herdeiro do trono luso."22  

A entronização do regente assegurava os interesses do comércio lusitano no Brasil e da


dinastia dos Braganças. Ela era também garantia aos senhores ainda adictos do absolutismo. Em
um sentido simbólico, a figura do imperador expressava e representava, nos seus direitos de
sangue e nascimento sobre os cativos, os direitos dos escravizadores sobre os seus negros,
africanos de sangue e escravos de nascimento. É também ilustrativo o fato de que os

20
! . COSTA, Emília Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.

21
! . JOHN, Armitage. (18071856). História do Brasil: desde a chegada da real família de Bragança, em 1808, até a
abdicação do Imperador dom Pedro I, em 1831. 6 ed. São Paulo: Melhoramentos; Brasília, INL; 1977. p. 226;
CONRAD, Robert. Tumbeiros. Ob.cit. p.230; FREITAS, Décio. FREITAS, Décio. Escravos e senhores-de-escravos.
Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul,
1977. pp. 37-40.

! 22 SOUSA, Octávio Tarquíneo de. A vida de D. Pedro I. Rio de Janeiro: José Alípio, 1972. p.129. Vol. II.
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escravizadores brasileiros tenham se inspirado — em parte — no mundo romano e não na
tradição lusitana e européia, ao fundarem um 'império', e não um 'reinado', que desconheceu,
sempre, a nobreza hereditária. Nesse sentido, A utopia do poderoso império, a historiadora
pernambucana Maria de Lourdes Viana Lyra exige uma melhor interpretação do nascimento do
novo Estado brasileiro como um "império". 23  

As rudes classes escravizadoras brasileiras compreendiam-se como sui generis casta


hermafrodita de nobres e de cidadãos. Eles viam-se como aristocratas com direitos de sangue e,
portanto, racialmente superiores, quanto aos seus cativos, e democratas e republicanos, e
portanto, cidadãos iguais, em relação aos seus pares. Alguns autores apresentaram o império
brasileiro como espécie de república coroada. Mais certo seria apresentá-la como a coroação da
ordem negreira. Outras razões contribuíram para o unitarismo nacional, entre elas, o interesse das
classes dominantes da Inglaterra nessa solução, já que o surgimento de nações independentes
dificultaria o recebimento da dívida luso-brasileira e a consecução dos interesses ingleses nesse
canto do mundo. Porém, não podemos explicar a unidade brasileira como produto dessa
interferência. Na época, o governo da Inglaterra não possuía condições para impor medidas que
colidissem com os grandes interesses das elites brasileiras, como comprova a longa resistência dos
escravistas em defesa do tráfico, de inícios do século 19 até 1850. 24  

Tempos Conturbados
A submissão das classes livres e proprietárias `periféricas` ao centralismo imperial e aos
interesses da nova Corte foi temporária. Em 1824, a Confederação do Equador retomou os
grandes objetivos da Revolução Pernambucana, mostrando que, para grande parte das classes
dominantes nordestinas, pouca diferença fazia se as rendas regionais financiavam a iluminação
de Lisboa ou do Rio de Janeiro. No interior das fronteiras ‘nacionais’, a centralização do poder
e dos recursos do novo Estado pela Corte sediada no Rio de Janeiro reproduzia a antiga ordem
colonial.
Os movimentos de 1817 e de 1824 não contaram com o apoio dos proprietários de terra e
de homens nordestinos. Eles temiam a agitação social e um não revelado ideário abolicionista
por parte dos revolucionários. De nada serviram as garantias de respeito à escravidão dadas
pelos insurretos. Um manifesto revolucionário lembrava: "Patriotas pernambucanos A suspeita
tem-se insinuado nos proprietários rurais: eles crêem que a benéfica tendência da presente
liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor e escravos." Isso era
mentira, segundo o panfleto revolucionários. Os liberais pernambucanos acreditavam que a
"base de toda sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade."
Portanto, a república e a liberdade não eram coisas pra negros.25  

Foram conturbadas as primeiras décadas após 1822. A entronização de Pedro I permitira


independência de transação e, portanto, relativamente pacífica. Mas legara graves problemas ao

23
! . Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império : Portugal e o Brasil : bastidores da política :
1798 – 1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. PP. 116-9; MAESTRI, Mário . O Sobrado e o cativo: a arquitetura
urbana erudita no Brasil escravista. Passo Fundo: EdiUPF, 2001. 247 pp .

24
! . Cf. BETHEL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo,
EDUSP, 1976.

! 25 Apud. TAVARES, F.M. Op.cit. p. ccv.


Página !8
novo Estado. O grande e o pequeno comércio continuavam em parte em mãos lusitanas. Os
senhores de cativos e de terra permaneciam endividados junto aos interesses mercantis
lusitanos. Nas negociações com o governo inglês pelo reconhecimento do novo Estado, Pedro I
comprometeu-se com a abolição do tráfico transatlântico e pactuou acordos anti-nacionais. O
grande problema ‘nacional’ tinha origem econômica. Havia muito que a economia mineradora
esgotara-se e não se encontrava novo produto em que empregar as multidões de trabalhadores
escravizados semi-ociosos. Nesse então, a economia européia vivia a depressão que se seguiu
os fim das guerras napoleônicas. No contexto dessa difícil situação, a Coroa, o aparato
administrativo e as elites hegemônicas do Rio de Janeiro utilizavam o centralismo estatal para
abiscoitarem as parcas rendas provinciais.
Violência fiscal
O governo central e as classes dominantes da Corte apoderavam-se sem pejo das rendas
das províncias para financiar a administração imperial, pagar os empréstimos contratados com
o governo inglês, defender seus interesses setoriais, etc. Tão longe ia a despreocupação com as
os interesses das classes proprietárias provinciais que apenas em 1832 a administração central
separou os impostos imperiais dos provinciais. 26 Nesse contexto de crise econômica e
 

exploração fiscal das províncias, acirravam-se as exigências autonomistas, federalistas e liberais


de importantes facções senhoriais, crescentemente empobrecidas. Mesmo quando não
sonhavam com a independência total, elas exigiam a eleição dos presidentes provinciais e a
autonomia fiscal.
As infelizes negociações concluídas por dom Pedro com o governo da Inglaterra e de
Portugal para o reconhecimento do novo Estado, empobreceram fortemente o erário público. O
imperador comprometera-se com uma indenização milionária para seu pai e assumira a dívida
lusitana feita na Inglaterra para combater a independência brasileira! A liberdade de comércio
golpeara a frágil produção artesanal brasileira. O país inundara-se de mercadorias inglesas,
degradando-se o balanço comercial. Os desmandos econômicos, a dívida internacional, os
reflexos da queda dos preços das exportações eram lançados nas costas das classes
subalternizadas. A moeda ‘inflacionada’ aumentava a miséria dos livres pobres.
A questão da gestão direta do Estado brasileiro pelas classes dominantes do Brasil foi
resolvido com o movimento de 7 de abril de 1831, que depôs Pedro I, imperador autocrático,
protetor dos interesses lusitanos e comprometido com o fim do tráfico. Com o defenestramento
imperial, davam-se as condições para a gestação do Ato Adicional de agosto de 1834, que criou
sistema de assembléias provinciais fortalecidas, diminuindo em algo o poder discricionário do
governo central. As concessões regenciais aproximaram do poder central as forças provinciais
conservadoras.
Pequenas concessões
As tímidas reformas regenciais não tocavam os problemas de fundo de um Estado-nação
em formação, constituído pela centralização política e autoritária de territórios gozando de uma
autonomia social e econômica objetiva. Sobretudo, as reformas regenciais não interromperam,
minimamente, a espoliação tributária das províncias. Como decorrência dessa situação,
explodiu uma série de movimentos liberais, federalistas, separatistas que ameaçou o frágil pacto

26
! Cf. LEITMAN, Spencer. Raízes sócio-econômicas da guerra dos Farrapos : um capítulo da história do Brasil no
século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1979. P. 125.
Página !9
unitarista de 1822. A força das partes sobrepunha-se ao débil todo. Porém, movimentos como a
Cabanagem, Balaiada, Revolução Farroupilha, etc. frustraram-se, em maior ou menor grau,
devido à mesma razão que levou à derrota os movimentos pernambucanos de 1817 e 1824. 27  

As classes liberais iniciavam os movimentos regionais e os desertavam, invariavelmente,


quando setores livres pobres e trabalhadores escravizados incorporavam-se a eles. Elas
aceitavam subservientes o tacão do centralismo imperial para não porem em perigo a ordem
escravista. Para não arriscarem a perder seus negros, prosseguiam como feitores dos próprios
cativos, em grande parte em prol da Corte. Os problemas postos pelos numerosos cativos
arrolados nas filas farroupilhas para o fim dos combates comprova não serem infundadas as
restrições dos escravizadores a movimentos regionais armados, mesmo quando eles fossem os
grandes privilegiados das rebeliões. A questão dos cativos libertados para lutar nas tropas
farroupilhas foi resolvida por acordo entre o barão de Caxias, chefe das tropas imperialista, e o
general farroupilha David Canabarro.
Em carta a um seu oficial, Caxias ordenou que atacasse os farrapos, no serro de Porongos,
e que massacrasse sobretudo os combatentes negros: "No conflito, poupe o sangue brasileiro
quando puder, particularmente de gente branca da província ou índios, pois bem sabe que esta
pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro." O chefe máximo imperialista alertava seu oficial
que os soldados negros farroupilhas seriam desarmados previamente, por alto oficial
farroupilha, o que permitiria o pronto fim da revolta. Na madrugada de 14 de novembro de
1844, as tropas imperialistas caíram sobre os 1.200 soldados rebeldes, capturando-lhes a
bagagem, abarracamento, armas, arquivos, estandartes, munições, a última peça de artilharia
farrapa e 280 infantes negros. No ataque morreram cem lanceiros negros. Em Porongos
desarticulou-se a infantaria negra farroupilha.28 Na Balaiada, o rigor com que o futuro barão e
 

duque de Caxias tratava os cativos revoltados, enquanto concedia quartel aos liberais e aos
balaios, esclarece quem eram os verdadeiros inimigos das classes dominantes escravistas. 29  

Em novembro de 1837, a Regência Una de Pedro de Araújo Lima iniciou a reação


antiliberal, antifederalista e centralizadora que abriu caminho ao Segundo Reinado. O novo
governo constituiu-se a partir da aliança dos representantes dos ricos senhores de terras e de
trabalhadores escravizados das principais zonas cafeicultoras e açucareiras — Rio de Janeiro,
São Paulo, Bahia e Minas Gerais. Os comerciantes de trabalhadores da Bahia e sobretudo da
Corte participavam no novo bloco social dominante.
Novo Bloco Hegemônico
O principal eixo do novo bloco social era a classe dos cafeicultores. Foi o
desenvolvimento da cafeicultura escravista fluminense, a partir dos anos 1830, que cimentou o
matrimônio entre monarquia e escravismo. Em poucas décadas, os barões do café, principal

27
! DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaios e bem-te-vis : a guerrilha sertaneja. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor
Chaves, 1996; FLORES, Moacyr. Modelo político dos farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1978; LEITMAN,
Spencer L. Raízes sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da História do Brasil no século XIX. Rio
de Janeiro: GRAAL, 1979; PAOLO, Pasquale Di. Cabanagem: a revolução popular da Amazônia. 3ª ed. Belém:
CEJUP, 1990; SERRA, Astolfo. A Balaiada. Rio de Janeiro: Badeschi, 1946.

28
! . MAESTRI, Mário. Uma história do Rio Grande do Sul: o Império. Passo Fundo: EdiUPF, 2000. p. 32.

29
! . Cf. SERRA, Astolfo. A Balaiada. Rio: Bedeschi,1946; MAGALHÃES, D.J.G. de. "Memória histórica da revolução
da província do Maranhão". in: Opúsculos históricos e literários. 2 ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1865; SANTOS,
Maria Januária Vilela. A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão. São Paulo: Ática, 1983.
Página !10
pilar da Segundo Reinado, transformaramse na classe nacionalmente hegemônica. Um terço dos
títulos nobiliários, distribuídos nos 66 anos de monarquia, foi concedido a cafeicultores,
comissários e banqueiros envolvidos com a produção cafeicultora escravista. 30 A estabilidade  

do Segundo Reinado foi comumente apresentada como produto da pretensa clarividência


política de Pedro II ou do inexistente liberalismo das instituições imperiais. Ela deveu-se à
pujança da expansão da cafeicultura e à perfeita interpretação pela Monarquia das necessidades
do escravismo no Brasil. O crescimento das rendas auferidas com a exportação do café e com a
importação de trabalhadores escravizados permitiu que fosse aliviada a pressão fiscal sobre as
províncias periféricas.
Propõe-se que o Estado imperial fosse liberal, mas não democrático, visto não haver
correspondência necessária entre os dois princípios. Ensejado pela gênese do capitalismo e pela
destruição da ordem estamental feudal, o liberalismo propõe a organização da sociedade a partir
de normas que organizem a liberdade individual de iniciativa – política, econômica, etc. –,
regulada apenas pelas leis e determinações da produção e do mercado capitalista. O Império
assentava-se, não sobre a produção capitalista, mas sobre a ordem escravista, trespassada por
uma grande dualidade estamental – a existência de homens livres e escravizados. Uma imensa
parte dos habitantes do Império não estava apenas despida de direitos democráticos, sendo
considerada absolutamente não-cidadã, em antítese essencial da ordem liberal-burguesa.
Editor do Correio Brasiliense e defensor acerbo do liberalismo, Hipólito José da Costa
[1774-1823] deixava claro a incongruência da independência com escravidão, expressando a
oposição desta última à ordem burguesa: "Os brasileiro [...] devem escolher entre estas duas
alternativas: ou eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a
escravidão." 31 O falso liberalismo imperial encobria o autoritarismo e o governo despótico de
 

uma classe semicolonial de escravistas. Como vimos, o princípio da superioridade/autoridade,


gerada pelo nascimento, de um homem – o imperador – sobre os seus súditos, refletia e
fortalecia, no mundo das representações ideológicas e das instituições políticas, a autoridade
social despótica e anti-liberal do senhor sobre o cativo. A família real, de origem portuguesa,
expressava ideológica e simbolicamente a proposta de um Estado-nação onde as classes
trabalhadoras escravizadas eram, constitucionalmente, alijadas da nacionalidade.
Apesar do novo revisionismo historiográfico apologético sobre a família dos trabalhadores
escravizados, devido às condições de existência, fora casos singulares, a população escravizada
não alcançava a reproduzirse naturalmente. A África e o tráfico transatlântico forneciam os
braços necessários à produção servil. Em 1850, a abolição do tráfico transatlântico teve
conseqüências econômico-sociais determinantes. Antes expatriados através do tráfico, os
capitais gastos na compra de cativos passaram a ser investidos sobretudo no Rio de Janeiro e
São Paulo. Com o fim do tráfico transatlântico, a cafeicultura ressentiu a falta de trabalhadores.
Por alguns anos, a alta crescente do preço do trabalhador escravizado e a gênese de população
livre pobre garantiram a transferência da população servil do Norte, Nordeste e Sudeste para o
Centro-Sul, das cidades para as fazendas escravistas. A concentração da população servil nas

30
! . Cf. SILVA, Eduardo. Barões e escravidão: três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira; Brasília, INL, 1984. p.35.

31
! Apud MONTI, Verônica Aparecida Martini. O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul: 1884. Porto
Alegre: Martins Livreiro, 1985. pp. 51.
Página 1! 1
zonas cafeicultoras gerou fenômenos sociais revolucionários. Em inúmeras regiões e províncias,
o escravismo passou de forma dominante a forma subordinada de produção e fortaleceram-se
formas de trabalho livre. 32  

Fim do consenso
No Brasil, por primeira vez, importantes facções sociais viviam à margem ou em
contradição com o escravismo. A vitória do Norte na Guerra da Secessão, em 1865, e o
desenvolvimento da opinião antiescravista européia explicam também o surgimento, nos anos
1860, de um importante movimento, inicialmente emancipacionista e, vinte anos mais tarde,
abolicionista, que teve na poesia de Castro Alves sua mais límpida expressão ideológico-
cultural. 33 Os cafeicultores fluminenses e paulistas constituíam a facção social hegemônica no
 

país. Isto permitiu que o escravismo permanecesse nacionalmente vigente mesmo quando
processo objetivo de desescravização já ocorrera em diversas regiões, como no Pará e no Ceará,
em 1883, e no Rio Grande do Sul, em 1984. O Estado monárquico escravista reservou-se a
questão servil e impediu que a instituição fosse juridicamente abolida regionalmente ali onde
deixara praticamente de existir, econômica e socialmente.
A ação centralizadora do Estado monárquico escravista, expressada através da gestão
governamental do Imperador e da Regente, retardou a divisão do Brasil em territórios
escravistas e não-escravistas antagônicos, como nos USA, e atrasou a superação do escravismo
e o desenvolvimento da produção livre no Brasil. Nesse sentido, contribuiu para que, por longos
anos, não se dissolvesse o nó que bloqueava o desenvolvimento da sociedade brasileira. Não é
aqui o momento de analisar as manobras com que as instituições monárquicas mantiveram em
pé, até os fins dos anos 1880, a ordem escravista. Basta lembrar que a Guerra do Paraguai
(1864-70), a Lei do Ventre Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885), e o exercício do mal-
chamado “poder moderador” foram justificativas e recursos com os quais se postergou o fim da
ordem negreira.
O processo de desescravização determinado pela mortalidade e envelhecimento da
população escravizada diminuía a sua importância e aumentava a do trabalho livre. O trabalho
cativo decaía, absoluta e relativamente, como forma hegemônica de trabalho, apesar de dominar
a produção cafeicultora, coração da atividade produtiva. Fortaleciam-se o movimento
abolicionista, em geral, e seus setores radicalizados, em especial. A luta centenária dos cativos
passou a encontrar apoio em facções sociais livres. Os trabalhadores escravizados não lutavam
mais pateticamente sós.
Insurreição Escrava
Em inícios do primeiro semestre de 1887, sentindo o fortalecimento do abolicionismo, a
massa escravizada iniciou o abandono maciço e pacífico das fazendas paulistas, sobretudo, e
passou a reivindicar relações contratuais de trabalho. Sentindo a nova situação, os cafeicultores
paulistas converteram-se ao emigrantismo. Quando a manutenção da ordem escravista mostrou-
se inviável, o Partido Republicano Paulista aderiu ao abolicionismo. A Igreja permaneceu
negreira até o dia seguinte, apoiando o abolicionismo apenas após a Abolição. Em setembro de

32
! . Cf. COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. 2 ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

33
! . Cf. A segunda morte de Castro Alves: genealogia crítica de um revisionismo. Passo Fundo: EdiUPF, 2000; COSTA,
Emília Viotti da. A abolição. São Paulo: Global, 1982.
Página !12
1887, os fazendeiros de Campinas começam a alforriar seus cativos desde que trabalhassem
gratuitamente até 1890. Desde 1884, os fazendeiros sul-rio-grandenses haviam manumitido seus
negros, em geral sob a condição da prestação de trabalho, sem pagamento, por sete anos.34  

Neste ínterim, as fugas multiplicavam-se e assumiam um novo caráter.


"Em meados de outubro — escreve o historiador estadunidense Robert Conrad — cerca
de 150 homens, mulheres e crianças, armados com pistolas, facas e machados, fugiram de uma
fazenda do município de Capivara, perto da cidade de Itu [...]. A batalha que se seguiu contra a
polícia, que causou a morte de um dos perseguidores e muitos feridos de ambos os lados,
terminou com uma vitória para os escravos, que dominaram seus oponentes, os despiram e
espancaram." 35 O incidente teve grande repercussão e a radicalização dos trabalhadores
 

escravizados rendeu frutos. Dias após, em 26 de outubro, o Clube Militar pedia respeitosamente
à Regente que o Exército não interviesse mais na captura de fujões, restringindo a utilização das
forças armadas a situações em que a ‘ordem’ se encontrasse ameaçada. Ou seja, para casos de
sublevação e questionamento maciços da ordem.
Em poucos meses, a produção escravista cafeicultora encontrava-se destruída, já que as
fazendas paulistas, semi-desertas de cativos, reconvertiam-se ao trabalho livre. Com menos
força, esse processo sentiu-se em outras regiões do Brasil, ali onde a escravidão subsistia. No
Rio de Janeiro, a fuga de escravos aumentou durante esses meses, no contexto de violento
confronto entre abolicionistas, trabalhadores escravizados, escravizadores e ‘forças da ordem’.
O caráter multitudinário do movimento servil e o apoio com que ele contava entre setores
da população livre, sobretudo urbana, levaram os cafeicultores a abandonarem veleidades
restauradora e a abraçarem a proposta de importação de trabalhadores estrangeiros. Nos últimos
meses, mesmo os renitentes escravistas do Rio de Janeiro, senhores de terras exauridas e de
grandes plantéis de negros, pleiteavam apenas a abolição da instituição com indenização.36  

Mais tarde, ao mandar que se queimassem os registros dos cativos do ministério das finanças,
Rui Barbosa quis apenas pôr fim às reivindicações de indenização, com a destruição das provas
legais de propriedade.
Tempos de crise
Nos últimos anos da escravidão, o próprio desenvolvimento da produção cafeicultora e
da economia nacional entrara em contradição com as relações sociais escravistas que, de
sustentáculo da produção do Brasil, tornavam-se um sério entrave a sua expansão. A população
escravizada não sustentava mais a expansão das necessidades da cafeicultura e dificultava um
ingresso maciço de imigrantes europeus capaz de formar o exército de reserva necessário ao
estabelecimento de um regime de produção apoiado em relações livres e contratuais. A
aceleração das transformações sócio-econômicas em curso desde a abolição do tráfico internacional,

34
! Cf. MONTI, Verônica. O abolicionismo: 1884. Ob.cit.; BAKOS, Margaret. RS: Escravismo e Abolição. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1982;

35
! . CONRAD, R. Os últimos anos da escravidão no Brasil. 18501888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília,
INL, 1975; COSTA, E.V. Da senzala à colônia. Op.cit.; SANTOS, Ronaldo Marcos dos. Resistência e superação do
escravismo na província de São Paulo. 18851888. São Paulo: IPE-USP, 1980.

36
! . Cf., entre outros, CONRAD, R. Os últimos anos da escravidão no Brasil. 18501888. Op.cit..; SANTOS, Ronaldo
Marcos dos. Resistência e superação do escravismo na província de São Paulo. 18851888. São Paulo: IPE-USP,
1980.
Página !13
em 1850, ensejara que, em 1887-8, as contradições entre as relações sociais de produção escravistas
e o próprio desenvolvimento da economia, agudizadas devido ao agir social, abrissem período
revolucionário que se concluiu com a destruição da produção escravista – ainda que tardia – devido
à ação direta da massa servil, sobretudo paulista, apoiada pelos abolicionistas.
Com a Abolição, ruía, para sempre, a instituição que governara, por mais de três séculos, a
sociedade no Brasil e dominara as formas de produção subordinadas. A revolução abolicionista
– que teve como principal agente os trabalhadores escravizados e os abolicionistas radicalizados
– deu o golpe de misericórdia na instituição, abrindo caminho para novas relações de produção
baseadas no trabalho livre. Tardiamente, desbloqueava-se o impasse em que vivia a cafeicultura
e a sociedade brasileira.37 Como vimos, para que a transição se completasse, era necessário
 

construir exército de trabalhadores que excedesse às necessidades da produção. Anteriormente,


o escravismo exigia idealmente que se apresentassem no mercado cativos apenas suficientes
para suprirem as necessidades da produção, já que os produtores inativos seriam sustentados
pelos negociantes ou pelos escravistas e não podiam ser deixados a sua sorte, como os
trabalhadores livres. A Europa – sobretudo a Itália recém-unificada – contava com importante
população rural excedente. Nos dez anos imediatamente posteriores à Abolição, mais de um
milhão de trabalhadores estrangeiros ingressaram no Brasil. Muito logo, trabalhadores livres
reproduziam-se naturalmente e vendiam sua força de trabalho a preços vis, como nas regiões
mais avançadas do mundo.
A revolução abolicionista
Aceita-se o caráter essencial da Abolição mas questiona-se sua interpretação como
revolução social a partir da idéia de que a revolução deve, sempre, emancipar totalmente as
classes subalternas. O movimento negro organizado tem rejeitado a Abolição como momento
histórico essencial por não ter resgatado, política, econômica e socialmente os ex-cativos e seus
descendentes. Tal concepção peca por anacronismo, ao interpretar o passado a partir de uma
ótica capitalista de análise. 38 A contradição entre o caráter altamente socializado do trabalho na
 

indústria moderna e a apropriação privada dos frutos desse trabalho produz as condições
necessárias, mas não suficientes, para que as classes oprimidas transitem de situação de classe
em si para uma de classe para si, compreendendo a necessidade da destruição do poder
burguês. Nem que seja em forma embrionária, o desenvolvimento objetivo da produção e da
sociedade capitalista é condição necessária à construção da nova ordem.39  

A possibilidade da classe dominada ter clara consciência de suas necessidades históricas e


metamorfosear-se em classe dominante, a fim de iniciar a extinção das próprias classes, é
especificidade da transição do modo de produção capitalista, permitida pelo alto nível do
desenvolvimento tecnológico e científico alcançado pela sociedade. “Mas, se disto se desprende
que a divisão de classe tem certa justificativa histórica, esta vale apenas para um determinado

37
! . Cf. sobre a necessidade da superação escravista: MOURA, Clóvis. Rebeliões na senzala: quilombos, insurreições,
guerrilhas. São Paulo: Zumbi, 1959; PÉRET, Benjamin. O quilombo de Palmares. [1956] Introduções e notas de
MAESTRI, M. & PONGE, R. Porto Alegre: EdUFRGS, 2002. pp. 47-74.

38
! . Cf. MAESTRI, Mário. “Escravidão, luta de classes, transição”. In: O escravo gaúcho: resistência e trabalho. 2 ed.
Porto Alegre: EdiUFRGS, 1993. pp. 49-54; MAESTRI, Mário. Servidão negra : Porto Alegre: Mercado Aberto,
1988. Pp.85-93.

! 39 KARL MARX , Miséria da filosofia. São Paulo: Grijalbo, 1976. 164.


Página !14
tempo, para determinadas condições históricas. A divisão em classes se apoiou na insuficiência
da produção, e será varrida pelo pleno desenvolvimento das forças produtivas modernas.”40  

Violentamos os limites históricos dos fenômenos sociais ao exigirmos as mesmas


determinações – consciência e emancipação social – para transições inter-modais pré-
capitalistas.
Da falta de consciência e da não emancipação social das classes revolucionárias pré-
capitalistas não se deduz que apenas o proletariado tenha desempenhado papel revolucionário
nas transições inter-modais. Se assim tivesse sido, a história das sociedades classistas não seria,
em sua essência, a história da luta de classe, no contexto de relações sociais de produção dadas,
já que a transição entre os modos de produção, fenômeno essencial na interpretação marxiana
da história, independeria da ação objetiva dos trabalhadores. Em O manifesto comunista,
Engels e Marx propunham: "A história de toda a sociedade até hoje é a história de lutas de
classes. Homens livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa
palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição, uns aos outros,
envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que determinou sempre ou com
uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio comum das classes
em luta.”
Fazer e saber
Quanto menos desenvolvido é o nível das forças produtivas materiais de uma sociedade,
menos desenvolvida é a consciência possível dos agentes sociais sobre o processo que
protagonizam. Isto não determina, minimamente, que as ações dos agentes históricos deixem de
ter efetividade social simplesmente porque não têm consciência das origens e sentidos últimos
de seus atos.
Ao propor a transição do escravismo ao feudalismo como resultado da luta de classes, E.
M. Staerman assinalou: "Os movimentos revolucionários de escravos e de colonos, misturados
às invasões de tribos e de povos exteriores ao Império, não culminaram em uma revolução
única e vitoriosas, semelhante às primeiras revoluções burguesas." Segundo a célebre
historiadora soviética da escravidão clássica, ainda que essa transição se tenha dado
essencialmente devido às múltiplas e inexoráveis formas de oposição do trabalhador
escravizado ao escravismo, o "frágil nível de desenvolvimento das forças produtivas
determinou a extrema lentidão desses processos." 41  

A transição de um regime social pré-capitalista a um outro pode maturar ou efetuar-se com


tamanha lentidão que os próprios coevos tenham, ao máximo, consciência muito superficial
dessa transição. Foi precisamente a impossibilidade de demarcar um momento preciso para a
superação do escravismo romano que levou historiadores a apontarem as invasões bárbaras
como causa de sua crise.
!

40
! ENGELS, F. El anti-During. Apud. GODELIER, Maurice. “Hipóteses sobre a natureza e as leis de evolução do
modo de produção asiático”; FIORAVANTE, E. et al. Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro; Paz e Terra,
1978. pp. 73-88. [Traduzimos]

41
! STAERMAN, E.M. "La caída del regimen esclavista". BLOCH, Marc et.al. La transición del esclavismo al
feudalismo. Madrid: Akal, 1981. p. 59. [traduzimos]
Página !15
Servus que não é servus
Tal foi lentidão da crise e superação do escravismo romano que o produtor direto no modo
de produção feudal, o trabalhador ligado à gleba, continuou sendo denominado da mesma forma
que havia sido quando da produção escravista clássica – servus. O que não quer dizer que o
trabalhador escravizado não estive diretamente envolvido e interessado nessa transição. "Na
época da instalação feudal, as classes mais interessadas na vitória dos métodos de exploração
mais avançados eram as classes em formação, tanto a dos grandes proprietários de terra, como a
dos cultivadores dependentes, uma grande parte da qual estava constituída por escravos
adscritos a terra." 42  

O trabalhador escravizado não necessitava ter consciência, plena ou parcial, da sua


oposição ao trabalho feitorizado e à ordem que o organizava, para que sua ação contra o
escravismo tivesse efeito social. Também por essas razões, as formas e os caminhos da luta de
classes nas sociedades pré-capitalistas são complexos e singulares. A guerra civil inglesa de
1640 desenvolveu-se sob clima de dissidência religiosa. A falsa consciência dos agentes desses
sucessos não anula seu caráter revolucionário. O historiador marxista Christopher Hil lembra: "Mas
o fato de os homens falarem e escreverem utilizando uma linguagem religiosa não devia impedir-
nos de compreender que existe um conteúdo social por detrás do que, aparentemente, são idéias
puramente teológicas." 43  

O Velho e o Novo
Também é uma especificidade da transição capitalismo/socialismo que os principais
agentes do processo revolucionário tornem-se classes hegemônicas para iniciarem o processo de
dissolução classista. Nos modos de produção pré-capitalistas, as classes revolucionárias, como
um todo, criaram as condições para a superação da velha organização e obtiveram parcos
ganhos na nova ordem. Os produtores diretos do escravismo clássico tornaram-se servos,
penando sob a exploração do senhor feudal. Os bras-nus franceses metamorfosearam-se no
proletariado francês, que se rebelou em 1830, 1848 e 1871, contra a ordem que ajudara a
construir, e que o explorava sem piedade. Porém, nada disso significa que aquelas lutas e
revoluções, que determinaram transição inter-modal, não tenha significado importante avanço
histórico. 44  

Com a destruição da escravidão, os trabalhadores escravizados brasileiros dissolveram a


principal contradição que emperrava o desenvolvimento da formação social brasileira e
obtiveram a liberdade jurídica e o direito à cidadania, na sua forma mais deprimida. Eles
permitiram a gênese de um Estado liberal antidemocrático – a República Velha. O aparente
limite desses ganhos, sobretudo visto de uma ótica contemporânea, não dilui o caráter
revolucionário que a transição e essas conquistas constituíram, na época. Da ótica dos cativos e
da própria história, um abismo separa relações contratuais e relações escravistas de trabalho. 


42
! STAERMAN. Ob.cit. p. 59. [traduzimos]

43
! HILL, Christopher. A revolução inglesa de 1640. Portugal: Presença; Martins Fontes: Brasil, 1977. 22]

! 44 GUÉRIN, Daniel. Bourgeois et bras nus. 1793-1795. France: Gallimard, 1973.


Página !16
!
Novas formas de dominação
No ano seguinte à Abolição, como edifício sem fundamentos, caía por terra a monarquia
dos Braganças, por sessenta e seis anos sustentáculo político-institucional da organização social
escravista do Brasil independente. O fim do escravismo dissolvera as condições que haviam
gerado e sustentado o centralismo monárquico. A defesa do tráfico negreiro, a submissão da
população escravizada, a manutenção da ordem escravista eram problemas que passavam da
preocupação das elites para as páginas da História. A decadência da cafeicultura fluminense
inviabilizava aquela província como centro de poder: as elites paulistas começavam a pedir,
sem muita cerimônia, licença para passar. As antigas tendências separatistas haviam-se
arrefecido no contexto do desenvolvimento de incipientes mas reais laços nacionais, apesar de
ainda serem muito fortes as reivindicações federalistas.
Novas formas de produção e novas classes sociais exigiam novas e mais complexas
formas de dominação. Com a Abolição, extinguiase e metamorfoseavase a classe que
sustentara, por mais de sessenta anos a Monarquia dos Braganças – os grandes proprietários de
trabalhadores escravizados. Extinguia-se igualmente a classe dos trabalhadores escravizados. A
assinalada impossibilidade histórica da emancipação social dos ex-escravos, em 1888, não
significa que a Abolição não pudesse ter-se dado em condição mais favoráveis aos ex-cativos.
Não deixa de ser uma ironia histórica que o Primeiro [1822-1831] e Segundo Reinados
[1840-1889] tenham arrancado suas forças da defesa intransigente do escravismo e que o
Terceiro tenha tentado, com a Guarda Negra, defender-se do movimento republicano
arregimentando as massas negras e miseráveis urbanas paridas, em boa parte, pelo fim da
escravidão. 45 

A Abolição – movimento revolucionário pré-capitalista – foi produto sobretudo do agir


escravo em aliança com as facções abolicionistas radicalizadas. É uma outra ironia histórica –
que encontra parte de sua explicação na indigência sóciocultural dos extrabalhadores
escravizados – que a vitória abolicionista tenha sido registrada pela memória dos cativos e de
seus descendentes como outorga e não como conquista. Uma interpretação que a historiografia
tradicional fortaleceu e normalizou. Já em 1888, morria a consciência da “insurreição contra o
cativeiro” e nascia o mito da “abolição da escravatura”.
Um primeiro passo
Em Os últimos anos da escravatura no Brasil, Robert Conrad recorda que os abolicionistas
radicais viam o fim do escravismo como um passo em direção de uma real democratização
social. Para ele, o fracasso deste projeto foi o resultado "de uma poderosa reação dos antigos
proprietários de escravos nos meses que se seguiram à Abolição, da dispersão do movimento de
reforma radical depois da queda do Império em 1889 e da consolidação, nos anos seguintes, de
disposições tradicionais e da conservação de grande parte do espírito e da organização do antigo
regime".
Quando do manifesto republicano de 1870, o Partido Republicano pronunciara-se em
favor do federalismo e mantivera-se silencioso sobre a questão servil. Após a aprovação da Lei
do Ventre Livre, cafeicultores escravistas do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito

45
! . Cf. RICCI, Maria Lúcia S.R. "A Guarda Negra e a Republica". D.O. Leitura. Publicação Cultural da Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, 8(86), julho de 1988. pp. 67.
Página !17
Santo aderiram ao partido. Em abril de 1872, em Itu, um dos maiores centros escravistas do
país, uma convenção republicana, com 33 delegados, em geral donos de cativos, reafirmou que
a questão servil não era responsabilidade dos republicanos mas que, se eles chegassem ao
governo, cada província deveria realizar a reforma “mais ou menos lentamente”, respeitando o
direito de “indenização”.
O ingresso crescente de fazendeiros no Partido Republicano reforçou seu caráter
escravista e socialmente conservador e diluiu o peso e a importância no movimento de
republicanos democratas e anti-escravistas, geralmente provenientes das frágeis classes
intermediárias – Luís Gama, Antônio Bento, Cristiano Ortoni, José do Patrocínio, etc. Nos anos
seguintes, líderes republicanos paulistas como Prudente e Morais e Campos Sales intervieram,
nos debates parlamentares, ativamente, em defesa da escravidão.46 Com a Abolição, a adesão
 

maciça de fazendeiros cafeicultores conservadores ao movimento republicano serviu como


ferramenta de pressão em favor do pagamento de uma indenização pelos cativos perdidos.
Nesse momento, o Partido Republicano assumia plenamente o caráter conservador e oligárquico
que o caracterizaria na República Velha.
Contra-revolução republicana
Em junho de 1889, formava-se o gabinete liberal-reformista do visconde de Ouro Preto.
Entre as reformas que propunha – voto secreto e ampliação do colégio eleitoral; liberdade de
culto e de ensino; casamento civil; maior autonomia provincial; etc. – destacava-se a aprovação
de uma “lei de terras” que facilitasse o acesso da terra “respeitando o direito de propriedade”. A
pouca atenção dada às reivindicações federalistas e a simples referência à reforma da estrutura
dominante da propriedade fundiária selaram a sorte do Terceiro Reinado, jamais materializado.
Anteriormente, na “Fala do Trono”, o Imperador reivindicara a aprovação de lei que
regularizasse “a propriedade territorial” e facilitasse a “aquisição e cultura das terras devolutas”.
Na ocasião, reivindicava lei que concedesse ao governo o “direito de expropriar, no interesse
público, as terras que confinam com as ferrovias, desde que não sejam cultivadas pelos donos”.
A vitória esmagadora dos liberais, em 3 de agosto, criando as condições para implementar as
reformas propostas, teria apressado a conspiração republicana, caracterizada pelo historiador
Robert Conrad como uma verdadeira “contra-revolução”. 47  

A adesão de fazendeiros empobrecidos expropriados de seus cativos ao republicanismo


não determinou que suas reivindicações fossem atendidas pelo governo republicano. O gabinete
de Ouro Preto havia reservado 86 mil contos de réis para empréstimos à lavoura – um quarto do
orçamento. Foram as classes cafeicultoras em expansão que dominaram o novo Estado. Na
chefia da pasta da Fazenda, Rui Barbosa suspendeu o apoio à por ele denominada “lavoura
andrajosa”. 48 Os recursos públicos disponíveis foram investidos no financiamento do ingresso
 

no país de trabalhadores livres europeus, e não na indenização de plantadores decaídos,


garantindo uma forte expansão da produção.

46
! Sobre a adesão dos escravistas ao republicanismo, ver, sobretudo: CONRAD, Robert E. “A pós-abolição: a reação
dos fazendeiros e a queda do Império”. [ex.datilografado]

47
! Cf. VILLA, Marco Antônio. Canudos : o povo da terra. São Paulo: Ática, 1995. pp. 97-99; CONRAD, Robert E. “A
pós-abolição: a reação dos fazendeiros e a queda do Império”. [ex.datilografado]; . GORENDER, Jacob. A escravidão
reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. P. 186.

! 48 Cf. GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. Ob.cit. P. 183.


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A República surgia de determinações sociais e políticas mais profundas. A gênese de
novas classes e de novas formas de produção, determinada pelo fim da produção escravista,
exigia novas formas de dominação política e ideológica. O golpe Militar de 15 de Novembro de
1889 lançou por terra o edifício monárquico já sem fundamentos. O centralismo imperial
nascera devido à escravidão e perdera sentido quando ela terminara. A Primeira Constituição
Republicana sancionaria o novo re-ordenamento nacional de forças e novas formas de
dominação.
O caráter agro-exportador-latifundiário da produção; a dependência aos mercados
externos para a venda das mercadorias e compra dos manufaturados, associados ao trabalho
livre, permitiam uma ampla autonomia dos estados da federação. Ainda mais que a autonomia
econômica regional interessava agora aos grandes estados hegemônicos. O federalismo era
também forma de deixar que os estados empobrecidos soçobrassem em sua miséria.
No contexto da república liberal e elitista brasileira, a subalternização das classes
populares, categoria inexistente na organização social escravista, no sentido atual do termo,
exigiu formas ideológicas mais refinadas. Em importantes regiões do Brasil, sobretudo no
Norte, no Nordeste e no Centro Sul, o “racismo científico”, que teve entre seus principais
defensores intelectuais como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto
Freyre, propunha que apenas as elites etnicamente brancas tinham condições de ascenderem ao
poder. No sul do Brasil, o positivismo comtiano, com sua proposta de ditadura científica das
elites, em favor de toda a sociedade, justificou o monopólio do poder das classes dominantes.
No contexto de uma transição efetuada desde as alturas sob a batuta das elites nacionais,
a nova ordem institucional assumiu o caráter que manteve praticamente imutável até o fim da
República Velha. O novo Estado brasileiro assumia essência profundamente conservadora,
federalista e elitista e nulamente republicana, democrática e popular. Desbloqueando o grande
entrave ao desenvolvimento da sociedade brasileira de então, unificando juridicamente as
classes subalternas, concluindo a “revolução burguesa no Brasil”, a revolução abolicionista49  

criava as condições para que, no futuro, a eventual repetição dessas jornadas, num patamar
histórico e social mais elevado, emancipasse as classes subalternas nacionais.
!
MAESTRI, Mário. A Escravidão e a gênese do Estado Nacional Brasileiro. In: ANDRADE, Manuel Correia
de (Org). Além do apenas moderno: Brasil séculos XIX e XX. Seminário Internacional, 2001. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco; Brasília, CNPq, 2001. pp. 49-77. [Uma versão inicial desse texto foi
publicada em: MAESTRI, Mário. A coroa e o tronco: escravidão e o Estado nacional brasileiro. Ágora
(UNISC), Santa Cruz do Sul, RS, v. 3, n.2, p. 7-33, 1999.

49
! . Cf. GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981; GORENDER, Jacob. A escravidão
reabilidada. São Paulo: Ática, 1990. Capítulo 9. A Revolução Abolicisonista. P. 188.
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