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ISSN 2526-7949

ANAIS 2016
Vida/Artista:
Diálogos entre
Arte/Educação
e Filosofia

Organização

Antonio Edson Cadengue


Rudimar Constâncio

ANAIS
2016
AUTORES

PALESTRAS • Elias de Lima Lopes • Lenôra Maria Albuquerque Farias


• Elinildo Marinho de Lima • Lívia Castro de Lacerda
• Ana Mae Barbosa
• Elis Regina dos Santos Costa • Lorena de Oliveira Chagas
• António Ângelo Vasconcelos
• Elthon Gomes Fernandes da Silva • Luana da Silva Rito
• Célio Rodrigues de Lima Pontes
• Emanuely Arco Iris da Silva • Lucas Leal
• Everson Melquiades Araújo Silva
• Emelly Linhares • Lúcia de Fátima Padilha Cardoso
• Fernando Antônio Gonçalves
• Érica Renata Alves de Oliveira • Luciana dos Santos Tavares
de Azevedo
• Erika Fernanda Pereira da Silva • Luís Ricardo Pereira de Azevedo
• Guilherme Castelo Branco
• Fátima Bulcão • Marcelo Caires Luz
• Ingrid Dormien Koudela
• Felipe Peres Calheiros • Márcia Gomes da Silva
• Isabel Marques
• Francilon Carvalho Barros • Maria Betânia e Silva
• José Carlos de Paiva
• Francisco Luiz Fernando Silva • Maria Carolina Leite de Lima
• Maria Christina de Souza Lima Rizzi
• Frutuoso da Silva Lorega Filho • Maria Clara de Lima Santos
• Ramón O. Cabrera Salort
• Gabriela Borba de Lima • Maria Emilia Sardelich
• Geisiane Nogueira Rocha/ • Maria Helena Ferreira da Costa
• Gilvânia Maurício Dias de Pontes • Maria Helena Ferreira da Costa
COMUNICAÇÕES • Giselle Tur Porres • Maria Natália Matias Rodrigues/
• Adélia Oliveira • Gracineia Maria Rodrigues Cruz • Marianna Melo
• Adriele Cristine Silva da Silva • Gracineia Maria Rodrigues Cruz • Mercia Paulino Nicolau da Silva
• Adriele Silva da Silva • Guilherme Kokeny • Miguel de Albuquerque Araujo
• Alan César A. Vasconcelos • Guilherme Rodrigues • Milena Guedes A. Rocha
• Aldeline Maria da Silva Silveira Kokeny • Mirna Eugenia Sánchez Gómez
• Alejandra Manena Vilanova Buendía • Guilhermina Pereira da Silva • Moisés Monteiro de Melo Neto
• Alexandre Nepomuceno Targino • Gustavo Henrique da Silva Pereira • Natalyne Pereira dos Santos
• Aline Catiane Paz Almeida • Hassan Fellipe dos Santos • Niedja Ferreira dos Santos Torres
• Almir Tavares da Silva • Ilana de Oliveira Aguiar • Nildo Alfredo Barbosa
• Amanda Caline da Silva Omar • Ildisnei Medeiros da Silva • Odailton Aragão Aguiar
• Amanda de Sampaio Alves Duarte • Inácio Alves Dantas Neto • Patricia Pérez Morales
• Amanda de Souza • Inácio Alves Dantas Neto • Paulo Sérgio das Neves Souza
• Amanda Fernandes dos Santos • Iris Victoria Montalvan Shica • Pedro Rodrigues Pereira da Silva
• Ana Cláudia O. Freitas • Isaac Assunção • Poliana Bicalho
• Ana Paula Lourenço de Sá • Isabel de Fátima Rodrigues Silva • Rafaela Cristina Mendes
• Anamaria Sobral Costa • Jaildon Jorge Amorim Góes Gomes da Silva
• Andréia Maria Ferreira Reis • Jaileila de Araújo Menezes • Reginaldo dos Santos Oliveira
• Andrêza de Lima Alves • Jamile Cruz • Renata Wilner
• Anna Carolina Coelho Cosentino • Janilson Lopes de Lima • Rita Maria Ricardi Noguera
• Avaci Duda Xavier • Jerônimo Vieira de Lima Silva • Roberta Bernardo da Silva
• Bárbara Collier • Jéssica Cristina Souza do Nascimento • Robson Xavier da Costa
• Benedito José Pereira • João Feliciano de Souza Neto • Rodrigo Carvalho Marques Dourado
• Camylla Ranylly Marques Paiva • João Pedro Tavares da Silva • Rodrigo Gomes da Silva
• Carlos Alberto Ferreira da Silva • Juciene dos Santos Pimentel • Rosali Natalie da Silva Gouveia
• Carlos Cleiton Evangelista Gonçalves • Judivan José Lopes • Rosileide Guedes Sant’Ana de Farias
• Clarissa Machado Belarmino • Juliana Soares dos Santos • Sandra Maria Nogueira Cruz
• Cláudia Leão • Juscélio de Holanda Cavalcanti • Sara Vasconcelos Cruz
• Cristiane Aparecida Romão da Silva • Karla Gonçalves • Sergio dos Santos Reis
• Cristiane Maria Galdino de Almeida • Kizz de Brito Barretto • Sheila Bezerra
• Dandara Maria Oniilari • Krysia Howard • Sidcléa Marques Cavalcanti de Moraes
Ferreira da Silva • Kyrti de Aguiar Silveira Ford • Simone Oliveira de Castro
• Daniella Zanellato • Laura Caldas Miguel/ Marcus Flávio • Sislândia Maria Ferreira Brito
• Debora Frota Chagas da Silva • Socorro Maria Costa da Silva
• Denise Maria Moura e Silva • Laura Renata Dourado Pereira • Telma César Cavalcanti
• Diogo José de Moraes Lopes Barbosa • Leandro Henrique Regueira • Thiago Luiz de Souza e Silva
• Dione Souza Lins de Mendonça • Valdirene Ferreira
• Edilania Vívian Silva dos Santos • Leandro Machnicki Altaniel • Vanessa Soares Lorega
• Edilva Barbosa da Silva Lima • Leandro Pereira da Costa • Verônica Teodora Pimenta
• Edite Colares • Leidson Malan Monteiro • Viga Gordilho
• Elaine Bela Vista de Castro Ferraz • Zozilena de Fatima Fróz Costa
© 2016 by dos autores

VIDA/ARTISTA:
DIÁLOGOS ENTRE ARTE/EDUCAÇÃO E FILOSOFIA
ANAIS 2016

SESC PERNAMBUCO [www.sescpe.com.br]:

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO - SESC Professor Titular da Disciplina Fundamentos da Arte/


Educação e Teatro - CE | Everson Melquíades Araújo Silva
DEPARTAMENTO NACIONAL
Presidente do Conselho | Antonio Oliveira Santos COMISSÃO ORGANIZADORA
Diretor Geral |Carlos Artexes Simões Gestor do V Congresso Internacional Sesc de Arte/Edu-
Diretor de Educação e Cultura | Paulo Camargo cação | Rudimar Constâncio.
Gerente de Cultura | Márcia Costa Rodrigues
Gerente de Educação | Jorge Luiz Teles da Silva Curadoria | Ana Júlia da Silva, Cristiane Maria Galdino de
Técnica de Literatura | Flávia Tebaldi Henriques Almeida, Everson Melquíades Araújo Silva, Fernando An-
Técnica de Educação | Lúcia Regina Silva de Oliveira tonio Gonçalves de Azevedo, Ivana Delfino Motta, Rita Ma-
rize Farias de Melo, Rudimar Constâncio, Sônia Bernadeth
SESC PERNAMBUCO Guimarães de Santana e Valkiria Dias Porto.
Presidente| Josias Silva de Albuquerque Coordenação Geral | Ana Júlia da Silva, Cristiane Maria
Diretor Regional em Exercício |Chefe de Gabinete | Antô- Galdino de Almeida, Everson Melquíades Araújo Silva, Fer-
nio Inocêncio Lima nando Antonio Gonçalves de Azevedo, Ivana Delfino Motta
Ouvidor | Fernando Soares e Rudimar Constâncio.
Controlador |Alessandro Rodrigues Coordenação Pedagógica | Almir Martins, Ana Júlia da Sil-
Diretor de Administração e Finanças | Nivaldo Carvalho va e Rudimar Constâncio.
de Sousa Produção Executiva | Almir Martins, Ariele Mendes, Hei-
Diretora de Educação e Cultura | Teresa Cristina da Rosa tor Soares, Ivana Motta e Rakelly Nogueira e Valéria Barros.
Ferraz Assistente de Produção | Danielle Karla Martins da Silva,
Diretora de Atividades Sociais | Ana Paula Cavalcanti Edes Oliveira, Ivis Bezerra, Lucrécia Forcioni e Saulo Félix.
Gerente do Sesc Piedade | Rudimar Constâncio Estagiários de Cultura | Caio Andrade e Guilherme Kokeny.
Gerente de Cultura | José Manoel da Silva Sobrinho
Assessora de Comunicação | Maíra Rosas COMISSÃO CIENTÍFICA
Professora II Teatro | Rita Marize Farias Cristiane Maria Galdino de Almeida | Doutora em Música
Professora II Dança | Ivana Motta pela UFRGS
Instrutora de Atividades Artísticas |Ana Júlia da Silva Everson Melquíades Araújo Silva | Doutor em Educação
pela UFPE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO Fernando Antonio G. de Azevedo | Doutor em Educação
Reitor| Anísio Brasileiro de Freitas Dourado pela UFPE
Vice-Reitora | Florisbela de Arruda Câmara e Siqueira Ivana Delfino Motta | Especialista em Dança pela Unicamp
Campos José Rudimar Constâncio da Silva | Mestre em Ciência da
Pró-Reitora de Extensão e Cultura | Maria Christina de Educação pela UMa/PT
Medeiros Nunes
Diretor do Centro de Ciências Socias Aplicadas | Jerony- COMISSÃO DE AVALIADORES AD HOC
mo José Libonati Adriana Carla de Aquino | Mestre em Artes Visuais pela
Vice-Diretor do Centro de Ciências Socias Aplicadas | UFPB/UFPE
Denílson Bezerra Marques Almir Manoel Martins da Silva | Graduado em Educação
Diretor do Centro de Artes e Comunicação | Walter Artística pela UFPE
Franklin Marques Correia Ana Carolina Nunes do Couto | Mestre em Música pela
Vice-Diretora do Centro de Artes e Comunicação | Cris- UFMG
tiane Maria Galdino de Almeida Ana Paula Abrahamian de Souza | Doutora em Educação
Diretor do Centro de Educação | Alfredo Macedo Gomes pela UFPE
Vice-Diretora do Centro de Educação | Ana Lúcia Félix Bruno Fernandes Alves | Mestre em Comunicação pela
dos Santos UFPE
Chefe do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Clarissa Martins de Araujo | Doutora em Educação pela
Artística - CAC | Maria Claudia Alves Guimarães Université de Toulouse Le Mirail/França
Chefe do Departamento de Música - CAC | Mauro de Al- Clécio Ernande da Silva | Mestre em Educação pela UFPE
meida Maibrada Dayse Cabral de Moura | Doutora em Educação pela UFPE
Chefe do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Emília Patrícia de Freitas | Mestre em Educação pela UFPE
– CE | Ana Claudia Gonçalves Pessoa Ermiro José de Carvalho | Especialista em Artes pela UFPE
Everson Melquíades Araújo Silva | Doutor em Educação Maria Aida Barroso | Mestre em Música pela Escola de Mú-
pela UFPE sica da UFRJ
Fabiana Souto Lima Vidal | Mestre em Educação pela UFPE Maria Alves da Silva | Mestre em Educação Contemporâ-
Fernando Antonio G. de Azevedo | Doutor em Educação nea pela UFPE
pela UFPE Maria Betânia e Silva | Doutora em Educação pela UFMG
Francini Barros Pontes | Doutora  em Artes Cênicas  pela Maria Claudia A. Guimarães | Doutora  em Artes Cêni-
Unirio cas pela USP
Graça Elenice dos Santos Braga | Mestre em Educação, Maria da Conceição dos Reis | Doutora em Educação pela
Cultura e Identidade pela FUNDAJ/UFRPE UFPE
Heloisa Flora Brasil Nóbrega Bastos | PhD em Educação Maria de Betânia Correa de Araujo | Especialista em Eco-
pela University of Surrey/Inglaterra nomia da Cultura pela UFRGS
Ibrantina Guedes de Carvalho Lopes | Mestre em Comu- Maria de Fátima Pontes | Mestre em Educação pela UFPE
nicação Social pela UFPE Maria José dos Santos | Mestre em Educação pela PUC/SP
Igor de Almeida Silva | Doutor em Artes pela USP Maria Thereza Didier de Moraes | Doutora em Letras pela
Ivana Delfino Motta | Especialista em Dança pela Unicamp USP
José Clementino de Oliveira | Mestre em Educação pela Paula Farias Bujes | Doutora em violino pela Universidade
Unirio Estadual da Louisiana/EUA
José Manoel da Silva Sobrinho | Especialista em Literatura Paulo Henrique Ferreira | Especialista em História das Ar-
pela Fafire tes e Religiões pela UFRPE e Sistema Laban/Bartenieff pela
José Rudimar Constâncio da Silva | Mestre em Ciência da FAV/RJ
Educação pela UMa/PT Rakelly Nogueira do Nascimento | Graduação em Música
Karina Mirian da Cruz Valença Alves | Doutora em Edu- pela UFPE
cação pela UFPE Renata Wilner | Doutora em Artes Visuais pela UFRJ
Klesia Garcia Andrade | Mestre em Música pela UFPB Rita Marize Farias de Melo | Mestre em Criação Artística
Luciana Ferreira dos Santos | Mestre em Educação Mate- Contemporânea pela Universidade de Aveiro/PT
mática e Tecnológica pela UFPE Rodrigo Cunha dos Santos | Especialista em Cultura Per-
Maisa Cristina da Silva | Especialista em Arte/Educação nambucana pela Fafire
pela Unicap/PE Rodrigo Carvalho Marques Dourado | Doutor em Artes
Márcia Carolina da Mota Viana | Graduada em Pedagogia Cênicas pela UFBA
pela UFPE Sérgio Breno Fittipaldi Fagundes | Graduado em Artes Cê-
Márcia Virginia Bezerra de Araújo | Doutora em Artes Cê- nicas pela UFPE
nicas pela UFBA Valdiene Carneiro Pereira | Mestre em educação pela UFPE
Marcus Flávio da Silva | Especialista em Ensino da Arte Valkiria Dias Porto | Graduada em Educação Artística/Ar-
pela UFPE tes Plásticas pela UFPE

EQUIPE DE EDITORAÇÃO
Preparação de Originais / Antonio Edson Cadengue
Organização / Antonio Edson Cadengue e Rudimar Constâncio
Revisor de Texto / Acrimôri Júnior
Capa e Projeto Gráfico / Claudio Lira

Serviço Social do Comércio – SESC Piedade


Rua Goiana, n. 40 – Piedade – Jaboatão dos Guararapes - PE
CEP: 54.420-000/ Fones: (81) 3361.6909/ 3361.0097
E-mail: sescpiedade@sescpe.com.br

Impresso no Brasil

A168 Vida/artista: diálogos entre arte/educação e filosofia – Recife: SESC


Pernambuco, 2017.
994 p.: il.
Inclui referências.
ISSN 2526-7949

1. Arte na educação. 2. Educação. 3. Estética. 4. Teatro. 5. Dança. 6. Arte. 7.


Filosofia. 8. Professores - Formação. 9. Política cultural. I. Cadengue, Antonio
Edson, 1954 - (Org.). II. Constâncio, Rudimar, 1965 - (Org.). III.Titulo.

700.7 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2014-84)


Não concebo uma obra isolada da vida.
Não amo a criação isolada.
Também não concebo o espírito isolado de si mesmo.
Cada uma de minhas obras, cada um dos planos de mim próprio,
cada uma das florações glaciares da minha alma interior
goteja sobre mim.

Antonin Artaud
O Umbigo dos Limbos in O Pesa-Nervos1

1. In: ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. Org. J. Guinsburg, Sílvia Fernandes Telesi, Antonio Mercado Neto. São Paulo: Perspectiva.
2004, p.13.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO | 13 ABORDAJE TRIANGULAR PARA EL OJO QUE SALTA


Antonio Edson Cadengue e Rudimar Constâncio EL MURO: APUNTE DE REFLEXIÓN | 94
Ramón O. Cabrera Salort
1ª PARTE – PALESTRAS
2ª PARTE – COMUNICAÇÕES
ABORDAGEM TRIANGULAR COMO TEORIA
HIANTE: O AGORA-JÁ É HISTÓRIA | 19 CRIATIVIDADE: O INCONSCIENTE COMO
Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo PROTAGONISTA DA GÊNESE DA OBRA DE ARTE
SOBRE ANA MAE BARBOSA | 29 E DA PERSONALIDADE | 108
Everson Melquiades Araújo Silva Karla Gonçalves

DUZENTOS ANOS DE ENSINO DA ARTE A ARTE DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIA


NO BRASIL | 32 COMO DISPOSITIVO DE INTERAÇÃO
Ana Mae Barbosa DE UMA CRIANÇA COM TEA | 115
Gracineia Maria Rodrigues Cruz/ Odailton Aragão Aguiar
VIDA ARTISTA, VIDA PLENA DE SENTIDO | 49
Guilherme Castelo Branco OS DOIS TURRÕES: UMA EXPERIÊNCIA TEATRAL
COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL | 121
AS PRÁTICAS ARTÍSTICAS NA EDUCAÇÃO E A Jamile Cruz/ Carlos Alberto Ferreira da Silva
CONVIVIALIDADE ENTRE DIFERENTES: DESAFIOS
PARA UMA ECOLOGIA APRENDENTE | 55 TRAMAS INDÍGENAS: UMA REFLEXÃO SOBRE
António Ângelo Vasconcelos ARTE E ARTESANATO | 130
Clarissa Machado Belarmino
ESTILHAÇOS PÓS-COLONIAIS:
A INSTITUCIONALIDADE DA CULTURA TEATRO E PEDAGOGIA:
COMO VETOR DE DESENVOLVIMENTO | 57 RELATO DE EXPERIÊNCIA DE PROJETO
Célio Rodrigues de Lima Pontes INTERDISCIPLINAR EM ESCOLA
QUILOMBOLA | 138
COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO: Amanda Caline da Silva Omar
O PRESENTE COMO UM ENIGMA | 62
José Carlos de Paiva TEATRO DO OPRIMIDO COMO RECURSO
PARA COMPREENDER CONFIGURAÇÃO ATUAL
RETROSPECTIVA DE ALGUNS PROCESSOS DA IDENTIDADE EM ESCOLA QUILOMBOLA | 146
INICIAIS DA CHEGADA DA ABORDAGEM Amanda Caline da Silva Omar
TRIANGULAR À ARTE/EDUCAÇÃO | 72
Maria Christina de Souza Lima Rizzi TEORIA X PRÁXIS: ASPECTOS EDUCACIONAIS
DA ESCOLA DE BELAS ARTES DE PERNAMBUCO
ABORDAGEM TRIANGULAR, OU: O QUE A ARTE (1932-1946) | 153
PODE APRENDER COM A EDUCAÇÃO (4) | 84 Niedja Ferreira dos Santos Torres
Isabel Marques
HÁ CRIANÇAS NA SALA DE ESPETÁCULOS! –
O JOGO COM A PEÇA DIDÁTICA DE VESTÍGIOS DA PRESENÇA DE PEQUENINOS
BERTOLT BRECHT | 90 ESPECTADORES NOS TEATROS DO RECIFE | 161
Ingrid Dormien Koudela Leidson Malan Monteiro de Castro Ferraz
DIÁLOGO COM NOEMIA VARELA E SUAS A EXPERIÊNCIA COMO PRÁTICA DE CRIAÇÃO E
CONCEPÇÕES SOBRE O ENSINO DE ARTE REFLEXÃO EM DANÇA – UMA PASSAGEM PELA
NA PÓS-MODERNIDADE | 169 POÉTICA DO ESPETÁCULO “DANÇA BAIXA” DA
Sandra Maria Nogueira Cruz/ Edilva Barbosa da COMPANHIA DOS PÉS | 255
Silva Lima/ Zozilena de Fátima Fróz Costa Reginaldo dos Santos Oliveira

CORPOS EM CONSTRUÇÃO: JUDITH BUTLER O QUE É UMA PEÇA-GAME? - REFLEXÕES PARA


E A CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS DELINEAR UM NOVO GÊNERO | 263
E CONFECÇÃO DE BONECOS | 176 Lorena de Oliveira Chagas
Miguel de Albuquerque Araujo
O MÉTODO NASCIMENTO DO PASSO:
O CORPO PRESENTE E A TEORIA QUEER | 183 ENSINO-APRENDIZAGEM DA DANÇA
Guilhermina Pereira da Silva DO FREVO | 270
Rafaela Cristina Mendes Gomes da Silva
VISUALIDADES X IDENTIDADES:
APRENDER A VER PARA SER, ESTAR PERNAS QUE ANDAM CORPOS QUE DANÇAM:
E CONVIVER NO MUNDO COM ALTERIDADE | 191 UM DIÁLOGO COM A TEORIA DAS INTELIGÊNCIAS
Jaildon Jorge Amorim Góes MÚLTIPLAS | 278
Avaci Duda Xavier
CANTANDO E ENCANTANDO: UM PROJETO
DE MÚSICA APLICADO NA ESCOLA WALNEY ENTRELACES DO YOGA E O ENSINO DA DANÇA:
DO CARMO LOPES EM PACATUBA-CE | 200 PERCEPÇÕES A PARTIR DA OBSERVAÇÃO DE
Socorro Maria Costa da Silva/ Gustavo Henrique da AULAS DE DANÇA NO ENSINO NÃO FORMAL | 287
Silva Pereira Leandro Henrique Regueira de Mendonça/
Guilherme Rodrigues Silveira Kokeny
A IMPORTÂNCIA DO USO DA FLAUTA DOCE
COMO FERRAMENTA DE APRENDIZAGEM DA CAMPO DA EDUCAÇÃO SOMÁTICA E HATHA YOGA
MÚSICA NO ENSINO BÁSICO | 208 – DIÁLOGOS EXPERIMENTADOS | 296
Sidcléa Marques Cavalcanti de Moraes Sheila Bezerra/ Emelly Linhares

O ENSINO DE MÚSICA NOS ANOS INICIAIS DO A INVESTIGAÇÃO DAS POÉTICAS NA CURADORIA:


ENSINO FUNDAMENTAL: O QUE TEMOS COM UM PERCURSO PELAS TRAJETÓRIAS DE MOACIR
RELAÇÃO À PRÁTICA DOCENTE SETE ANOS DOS ANJOS E ADRIANO PEDROSA | 303
APÓS A APROVAÇÃO DA LEI 11.769/2008? | 216 Alexandre Nepomuceno Targino
Juliana Soares dos Santos/
Érica Renata Alves de Oliveira RELAÇÃO ESCOLA E MUSEU: APRESENTAÇÃO
DE PESQUISA | 310
ENSINO DIALÓGICO DE TEATRO: APONTAMENTOS Vanessa Soares Lorega
PARA/SOBRE UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA | 225
Ildisnei Medeiros da Silva O PODCAST COMO MEDIAÇÃO CULTURAL:
IRADEX PODCAST E AS CONEXÕES COM IDEIAS
UMA PEDAGOGIA DO TEATRO POPULAR: E PESSOAS | 317
UMA EXPERIÊNCIA NO COLÉGIO ESTADUAL Gustavo Henrique da Silva Pereira
PADRE PALMEIRA | 234
Sergio dos Santos Reis ARTE, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO:
EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS EM ESCOLAS
PEDAGOGIA DO TEATRO E ALTERIDADE: DESAFIOS PÚBLICAS DE BELÉM | 324
E REFLEXÕES NA REALIDADE ESCOLAR | 240 Paulo Sérgio das Neves Souza
Aline Catiane Paz Almeida/ Amanda Caline
da Silva Omar REPERTÓRIOS VISUAIS ENTRE ESTUDANTES
INTIMUS: UM CAMINHO PARA OS ELEMENTOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DA CIDADE DE
VISUAIS DO ESPETÁCULO NAS ARTES CÊNICAS | 247 JOÃO PESSOA | 335
Guilherme Kokeny Maria Emilia Sardelich/
Camylla Ranylly Marques Paiva
FANTASMAS IMAGINÁRIOS DO CORPO CASA: CONSIDERAÇÕES INVESTIGATIVAS SOBRE
MEDIAÇÃO ENTRE ANTIGOS E NOVOS O FAZER ARTÍSTICO COMO UMA PLATAFORMA
SIGNIFICADOS AFETIVOS ATRAVÉS DA DE AUTOCONHECIMENTO | 422
VÍDEOPERFORMANCE | 343 João Pedro Tavares da Silva
Anna Carolina Coelho Cosentino
A MONTAGEM DO FILME NA CONSTRUÇÃO DA
A RECEPÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE UM VÍDEO CULTURA VISUAL | 430
DE ARTE-EDUCAÇÃO SOB O PARADIGMA Leandro Machnicki Altaniel
DA TEORIA DA ATIVIDADE | 349
MILLER E OS 300 – GRAPHIC NOVEL & CINEMA | 437
Rosileide Guedes Sant’Ana de Farias
Kyrti de Aguiar Silveira Ford
O CINEMA NO ENSINO FORMAL:
UMA EXPERIÊNCIA POSSÍVEL | 356 UMA RANÇOSA TEATRALIDADE: EISENSTEIN E O
Diogo José de Moraes Lopes Barbosa TEATRO NO CINEMA | 446
Anamaria Sobral Costa
VOZES NO PALCO: DRAMATURGIA COM
HISTÓRIAS DA COMUNIDADE DE SÃO BENTO | 364 VER * SENTIR * FAZER: AÇÕES EDUCATIVAS
Natalyne Pereira dos Santos E PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM
EM ARTE | 455
O PROCESSO COLABORATIVO EM Paulo Sérgio das Neves Souza/ Adriele Cristine
INVENCIONICES – DE MANOEL E AS NOSSAS | 371 Silva da Silva
Jéssica Cristina Souza do Nascimento/ Laura Caldas
Miguel/ Marcus Flávio da Silva ARTE, PROCESSO DE CRIAÇÃO E AVALIAÇÃO:
UMA EXPERIÊNCIA TRIANGULAR NO COLÉGIO
COMO CONHECER O MAR? – DA POLÍCIA MILITAR DO CEARÁ | 468
UMA EXPERIÊNCIA EM DRAMA | 380 Debora Frota Chagas/ Roberta Bernardo da Silva
Amanda de Sampaio Alves Duarte
LUGARES-ILHA: SOBRE APRENDIZAGEM COMO
LITERATURA, HISTÓRIA E ARTE: PROCESSO ARTÍSTICO | 477
OS MISERÁVEIS, DE VICTOR HUGO, Cláudia Leão/ Adriele Silva da Silva
EM UM PROJETO DIDÁTICO-PEDAGÓGICO
O RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA:
NO ENSINO MÉDIO | 388
A AÇÃO MEDIAÇÃO CULTURAL – FORMAÇÃO
Carlos Cleiton Evangelista Gonçalves
DO ESPECTADOR NO TEATRO SESC-SENAC
MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE O PASSADO: PELOURINHO, EM SALVADOR (BA) | 485
UMA EXPERIÊNCIA DE LEITURAS DE Poliana Bicalho
A MAMELUCA, DE ALBERT ECKHOUT, EM TERESINA,
A EXPERIÊNCIA DO TEATRO EM CASA
PIAUÍ, BRASIL | 397
E A PEDAGOGIA DO ESPECTADOR | 493
Zozilena de Fatima Fróz Costa/ Iris Victoria
Rodrigo Carvalho Marques Dourado
Montalvan Shica/ Erika Fernanda Pereira da Silva
O ARTISTA EDUCADOR E A MEDIAÇÃO
NA INTIMIDADE DO NINHO: SALA DE ARTES
PROPOSITORA DE EXPERIÊNCIAS | 502
COMO LUGAR DE LIBERDADE | 405
Sara Vasconcelos Cruz/ Robson Xavier da Costa
Rodrigo Gomes da Silva/ Renata Wilner
SABERES E FAZERES: TRAJETÓRIA ARTÍSTICA NA
RETRATOS E AUTORRETRATOS, NA ESCOLA
VIDA DE UMA PROFESSORA | 511
CONTEMPORÂNEA. DIÁLOGOS INTERCULTURAIS
Maria Betânia e Silva
COM NOVAS TECNOLOGIAS | 412
Dione Souza Lins/ Luís Ricardo Pereira de Azevedo A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DOS
EDUCADORES DA GALERIA JANETE COSTA
ARTE, VIDA E NATUREZA:
PARA A EXPOSIÇÃO “ARCAICO
EXPERIÊNCIAS SOBRE ENSINO DA
CONTEMPORÂNEO - 50 ANOS DE PINTURA
ARTE CONTEMPORÂNEA | 416 ” E SEUS DESDOBRAMENTOS | 520
Maria Clara de Lima Santos/ Marianna Melo Luana da Silva Rito
FERTILIZAÇÃO E FORTALECIMENTO COR LINHAÇÃO: O ESTUDO DA COR
DA ÁRVORE DA ARTE: REFLEXÕES SOBRE COMO EXPERIÊNCIA EDUCATIVA NO
O CONVÍVIO DO PROFESSOR DE ARTE CONTEXTO ESCOLAR | 612
COM ELEMENTOS ARTÍSTICOS | 529 Edilania Vívian Silva dos Santos/ Cristiane Aparecida
Geisiane Nogueira Rocha/ Juciene dos Santos Romão da Silva/ Francisco Luiz Fernando Silva
Pimentel/ Milena Guedes A. Rocha/
Ana Cláudia O. Freitas O POEMA ÉPICO E AS DIFERENÇAS DE GÊNERO
DA POESIA | 620
(RAP)ENSANDO A DISCUSSÃO SOBRE Moisés Monteiro de Melo Neto
DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS
NO MOVIMENTO HIP HOP | 537 OS ENCONTROS, A POESIA E
Jaileila de Araújo Menezes/ Dandara Maria Oniilari O PERCURSO OU, A DESCOBERTA
Ferreira da Silva “DA INUTILIDADE COMO CONCEITO ÚTIL
A UMA SOBREVIVÊNCIA CRIATIVA” | 627
NUANCE DO NORDESTE NO RITMO DO HIP-HOP: Ana Paula Lourenço de Sá/ Andrêza de Lima Alves
UMA NARRATIVA DA PRÁTICA COLETIVA QUE
BUSCOU A VALORIZAÇÃO CULTURAL ATRAVÉS UM DESCORTINAMENTO DA SINGULARIDADE
DA DANÇA | 546 HUMANA SOB A PERSPECTIVA DA VALORIZAÇÃO
Amanda Fernandes dos Santos DO SER | 635
JUVENTUDE, GÊNERO E HIP HOP: Mercia Paulino Nicolau da Silva
REFLEXÕES SOBRE ARTE E IDENTIDADE
A PARTIR DE JOVENS MULHERES RAPPERS | 552 INCLINAÇÕES ARTÍSTICAS INFLUENCIANDO
Maria Natália Matias Rodrigues/ EM PRÁTICAS PEDAGÓGICAS: ANÁLISE DE
Jaileila de Araújo Menezes INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA COM IDOSOS | 642
João Feliciano de Souza Neto/ Pedro Rodrigues
O ENSINO DE ARTE E A FESTA POPULAR | 560 Pereira da Silva
Edite Colares
EDUCAÇÃO MUSICAL NA 3ª IDADE -
COMES E CONTOS: UM RESGATE DA SINESTESIA MÚSICA E DEMAIS PROCESSOS ARTÍSTICOS
CULINÁRIA | 569 PARA AS SAÚDES SOCIAL, MOTORA,
Gabriela Borba de Lima/ Thiago Luiz de Souza e Silva EMOCIONAL E COGNITIVA | 648
Marcelo Caires Luz
DE PONTO EM PONTO AUMENTO UM CONTO:
O ENSINO DE ARTES EM PONTOS DE CULTURA DA NECESSIDADE DE ARTE/EDUCAÇÃO
DO TERRITÓRIO DE IDENTIDADE PORTAL PARA A TERCEIRA IDADE: UMA EXPERIÊNCIA
DO SERTÃO NA BAHIA | 576 NA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA | 656
Lívia Castro de Lacerda Rosali Natalie da Silva Gouveia

O MUNDO PERFEITO: TEATRO EDUCATIVO APROXIMACIONES A LA INFANCIA:


CONTRA A ISLAMOFOBIA | 584 UNA MIRADA DESDE EL JUEGO | 667
Valdirene Ferreira Patricia Pérez Morales/ Giselle Tur Porres/ Alejandra
Manena Vilanova Buendía
ARTE-EDUCAÇÃO COMO FONTE
DE DIGNIDADE HUMANA NA VELHICE: BICHOS DO PARQUE: RETOMANDO EXPERIÊNCIAS
UM ESTUDO DE CASO | 593 PARA PRODUZIR UM NOVO CAMINHO | 674
Kizz de Brito Barretto Gilvânia Maurício Dias de Pontes

A XILOGRAVURA INSERIDA NOS PROGRAMA CURUMIM SESC SÃO PAULO:


PROCESSOS DE ENSINO DE ARTE: UMA EXPERIÊNCIA DA METODOLOGIA
ENSINO FUNDAMENTAL II | 602 DA ESCOLA DA PONTE NA EDUCAÇÃO
Juscélio de Holanda Cavalcanti/ Gustavo Henrique NÃO FORMAL | 682
da Silva Pereira Andréia Maria Ferreira Reis
NO CORPO, UM CORPO: REFLEXÕES SOBRE O CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DO CORPO FEMININO:
“HÍBRIDO” NA CENA CONTEMPORÂNEA | 688 PERCEPÇÕES DO CORPO COM DOCENTES
Jerônimo Vieira de Lima Silva/ Elias de Lima Lopes E ESTUDANTES DO SESC PIEDADE | 787
Emanuely Arco Iris da Silva/ Maria Carolina
PROCESSOS INTERDISCIPLINARES NO ENSINO/ Leite de Lima
APRENDIZAGEM DO TEATRO NA ESCOLA | 698
Benedito José Pereira FANTASMAS IMAGINÁRIOS DO CORPO CASA:
MEDIAÇÃO ENTRE ANTIGOS E NOVOS
O PENSAMENTO COMPLEXO E A INTERDISCIPLI- SIGNIFICADOS AFETIVOS ATRAVÉS DA
NARIDADE NO ENSINO DE ARTES VISUAIS EM VÍDEOPERFORMANCE | 798
ESCOLAS DE REFERÊNCIA NO RECIFE | 708 Anna Carolina Coelho Cosentino
Janilson Lopes de Lima
O INTER-HUMANO NA OBRA “THE ARTIST IS
ENSINO DAS DANÇAS TRADICIONAIS PRESENT”: A ARTE AO ENCONTRO DOS DIREITOS
E POPULARES DO BRASIL: NOTAS DE HUMANOS | 804
UMA EXPERIÊNCIA | 716 Elis Regina dos Santos Costa/
Telma César Cavalcanti Denise Maria Moura e Silva
A ABORDAGEM TRIANGULAR PARA O ENSINO AS EXPRESSÕES VOCAIS EM “O CANTO
DA ARTE NO PROCESSO DE ESTUDO DA DA SEREIA” E NO RAP: EXPERIÊNCIAS SONORAS
DRAMATURGIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX | 722 CRIATIVAS NA SALA DE AULA | 814
Almir Tavares da Silva Elthon Gomes Fernandes da Silva
PROPOSTA TRIANGULAR NA FORMAÇÃO DE ARTE DA PALAVRA: A CANTORIA DE VIOLA
ESPECTADORES | 729 E SEU REPERTÓRIO POÉTICO | 822
Elaine Bela Vista Simone Oliveira de Castro
A ABORDAGEM TRIANGULAR NO A INTERVENÇÃO URBANA DO GRAFFITI
ENSINO-APRENDIZAGEM DE DANÇA: EM TERESINA; ESTUDO DA PRODUÇÃO PLÁSTICA
CAMINHOS POSSÍVEIS | 737 DO ARTISTA DE RUA “MANIN” | 831
Verônica Teodora Pimenta Maria Helena Ferreira da Costa
COLETIVO EU PASSARINHO: A ESSÊNCIA ALGUNS GRÃOS POÉTICOS
DO SENSÍVEL COMO PRÁTICA E PESQUISA EM OUTROS RETALHOS | 843
ALÉM DA ACADEMIA | 746 Viga Gordilho
Adélia Oliveira/ Amanda de Souza
COLETIVO ARTÍSTICO:
O PENSAMENTO/CRIAÇÃO DA FOTOGRAFIA ARTIVISMO E ARTE-INTERVENÇÃO URBANA
ARTÍSTICA CONTEMPORÂNEA: UM OLHAR POR MEIO DE PROJETO DE EXTENSÃO | 852
TRANSDISCIPLINAR | 753 Judivan José Lopes
Leandro Pereira da Costa
DOCÊNCIA EM ARTE NO ENSINO
GRAVAR SEM POLUIR | 762 BÁSICO TÉCNICO E TECNOLÓGICO:
Frutuoso da Silva Lorega Filho PERSPECTIVAS, DESAFIOS E EXPERIÊNCIAS | 860
ARTE/EDUCAÇÃO E MEDIAÇÃO CULTURAL NA Isabel de Fátima Rodrigues Silva
ESPANHA: PERSPECTIVAS FEMININAS NA ARTE O ENSINO DE ARTES NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA:
CONTEMPORÂNEA ÁRABE | 770 UMA ABORDAGEM REFLEXIVA | 867
Daniella Zanellato/ Rita Maria Ricardi Noguera Sislândia Maria Ferreira Brito
AS MULHERES EM FOCO: DA INVISIBILIDADE À O PIBID EM ARTES VISUAIS –
VISIBILIDADE, A PARTIR DE UMA PRÁTICA DE UFPE E IFPE JUNTOS EM UM PROCESSO
ENSINO EM ARTES | 779 DE FORMAÇÃO | 876
Isaac Assunção Luciana dos Santos Tavares
MISTERIOSO ENCANTADO COMO PROPOSTA O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE REPERTÓRIO
DIALÓGICA DE ARTE EDUCAÇÃO | 884 PARA O ARTISTA DE TEATRO MUSICAL | 947
Nildo Alfredo Barbosa/ Elinildo Marinho de Lima Inácio Alves Dantas Neto

DESCONSTRUINDO O CENÁRIO E TECENDO A MINHA VIDA COMO OBRA DE ARTE. MINHA CASA
LIBERDADE: A EXPERIÊNCIA DO SOCIODRAMA COMO ESPAÇO CÊNICO E MEU CINETEATRO
NA PREVENÇÃO DO USO DO ÁLCOOL, FUMO E COMO EXPERIMENTAÇÃO ESTÉTICA | 951
OUTRAS DROGAS NO PROJOVEM URBANO | 894 Lucas Leal
Ilana de Oliveira Aguiar
ARTE-EDUCAÇÃO REVISITANDO O ESCRITOR
A ARTE COMO ABORDAGEM PARA DESPERTAR ÉRICO VERÍSSIMO: INCIDENTE EM ANTARES -
O SENSO ESTÉTICO, A SENSIBILIDADE E O ONTEM QUE ALCANÇA O HOJE | 956
O POTENCIAL CRIATIVO | 902 Lenôra Maria Albuquerque Farias
Laura Renata Dourado Pereira
URBANICÍDIO EM AUTORETRATO | 961
RECIFE ARTE PÚBLICA: A CIDADE COMO CAMPO Gracineia Maria Rodrigues Cruz/ Francilon
PARA AÇÕES EDUCATIVAS | 911 Carvalho Barros/ Alan César A. Vasconcelos/
Lúcia de Fátima Padilha Cardoso/ Hassan Fellipe dos Maria Helena Ferreira da Costa
Santos/ Niedja Ferreira dos Santos Torres
ARTE E SINCRONICIDADE:
CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE ENSINO DOS ARTE/ O FEMININOCOMO ELEMENTO SIMBÓLICO
EDUCADORES QUE ATUAM COM A DANÇA EM NA OBRA MATRÍSTICA | 963
ESPAÇOS NÃO FORMAIS | 918 Daniella Zanellato/ Krysia Howard/ Mirna Eugenia
Márcia Gomes da Silva Sánchez Gómez

O ENSINO DE ARTE FORA DA ESCOLA: QUANDO UM MURO SEPARA


OS ESPAÇOS CULTURAIS DO BAIRRO DO RECIFE UMA PONTE UNE | 967
COMO CAMPO DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL | 926 Fátima Bulcão
Inácio Alves Dantas Neto/ Cristiane Maria Galdino TANKALÉ: FORMAÇÃO PARA O AUTO-REGISTRO
de Almeida AUDIOVISUAL QUILOMBOLA | 972
PARECIA TÃO DISTANTE... Felipe Peres Calheiros
MAS ERA TÃO NOSSO! | 933 VESTIDO VERMELHO, ARMADURA,
Aldeline Maria da Silva GOSTOSA – PERFORMANCES | 976
Bárbara Collier
DANÇA BAIXA | 937
Reginaldo dos Santos Oliveira PROGRAMAÇÃO DO V CONGRESSO
INTERNACIONAL SESC DE ARTE/EDUCAÇÃO | 981
POÉTICA DA CIDADE | 943
Telma César Cavalcanti
APRESENTAÇÃO

Vida Artista:
Diálogos entre Arte/Educação e Filosofia
Antonio Edson Cadengue
Rudimar Constâncio

O Serviço Social do Comércio - Sesc/PE, por meio da Unidade Executiva em Piedade, realizou, em
2008, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, no Teatro Ariano Suassuna, a primeira edição do Semi-
nário Nordeste de Arte-Educação, onde prestou homenagem a Noemia de Araújo Varela2. Nos anos
de 2010 e 2012, contando com o importante apoio da Universidade Federal de Pernambuco, realizou-
-se, no Centro de Ciências Sociais Aplicadas, a 2ª e 3ª edições do Seminário Nacional Sesc de Arte/
Educação, homenageando, respectivamente, Marco Camarotti e Jomard Muniz de Britto. Os temas
dessas duas edições, “Arte-Educação: História e Práxis Pedagógica” e “Ação Cultural: Arte, Educação
e Política” deram prosseguimento às discussões que perpassam o pensamento e a prática educacional
de arte/educadores e artistas que anseiam por uma pedagogia da arte mais crítica e criativa. Em 2014,
durante o IV Congresso Internacional Sesc PE e UFPE de Arte/Educação, as discussões giraram em
torno do tema “Ecos de Resistências na América Latina” e foram eleitos dois homenageados, o pro-
fessor, ator e diretor de teatro Carlos Varella, in memoriam, e o professor, escultor, pintor, desenhista,
gravurista e ceramista Abelardo da Hora, personalidades marcantes da Arte/Educação local, brasilei-
ra e mundial.

A 5ª edição do Seminário Nacional Sesc de Arte/Educação, realizada de 25 a 29 de julho de 2016,


juntamente com a Universidade Federal de Pernambuco e apoio da Universidade Federal Rural de
Pernambuco, teve como tema, “Vida Artista: Diálogos entre Arte/Educação e Filosofia”, prestando

2. Noêmia de Araújo Varella (1917-2016) nasceu no Rio Grande do Norte e se estabeleceu em Pernambuco. Como professora e diretora da
Escola Especial Ulisses Pernambucano, durante as décadas de 1940 e 1950, fundou a Escolinha de Arte do Recife (1953) junto com o artista
e poeta também pernambucano, Augusto Rodrigues (1913-1993). Sua história cruza-se com a criação da primeira escola do movimento es-
colanovista, a Escolinha de Arte do Brasil (EAB), fundada em 1948, no Rio de Janeiro, e com outras experiências educacionais que afloram
em Pernambuco. Atribui grande importância aos mestres com quem conviveu: Sylvio Rabelo, Anísio Teixeira, Augusto Rodrigues, Helena
Antipoff, Herbert Read e, sobretudo, a Nise da Silveira, a qual a levou “a perceber, intuir, sentir, e pensar a função da arte na tomada de
consciência sociocultural, numa dimensão ecológica e antropológica, uma visão profunda da natureza ética, estética e artístico-educativa, a
partir da psicologia analítica”. CAMAROTTI, Marco. Diário de um corpo a corpo pedagógico e outros elementos de arte-educação. Apre-
sentação Marilene Almeida e Rosa Vasconcellos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999. Cf. AZEVEDO, Fernando Antonio G. Movimen-
to Escolinhas de Arte: em cena D. Noemia Varela e Ana Mae Barbosa. 2001. 166 f. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. Cf. também o verbete da Enciclopédia Itaú Cultural, Escolinha de
Arte do Recife: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/en/instituicao343537/escolinha-de-arte-do-recife-ear.

13
uma justa homenagem aos 80 anos de vida de Ana Mae Barbosa3 e seus 60 anos de magistério. Reali-
zou-se, também, a apresentação de comunicações orais e artísticas, mesas temáticas com palestrantes
e conferencistas, além de 21 cursos voltados para a formação e a atualização de professores e arte/
educadores.

A realização bienal do Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação reafirma e ressalta a presença


marcante do Sesc, entre as Instituições que mais contribuem para promoção e disseminação da edu-
cação artística e cultural deste país. Notadamente, no momento atual, em que nos deparamos com a
necessidade urgente de reflexões sobre educação, ética, identidade cultural e liberdade de expressão
política e artística, a arte/educação apresenta-se como ferramenta indispensável para trabalhar os
questionamentos e respostas que permeiam tantas vertentes intelectuais e práticas pedagógicas que
proliferam, em busca de uma educação mais lúcida, lúdica e de maior alcance.

II

O nosso pensamento de aprendizagem da arte está fundamentado na ideia da Abordagem Trian-


gular, conceito-chave na obra de Ana Mae Barbosa4, que compreende a articulação de três campos
conceituais: o apreciar crítico, mobilizando a percepção e a análise formal e simbólica no ato de ler;
o conhecer e refletir, por meio da contextualização conceitual, histórica, cultural e estética da pro-
dução em arte, e o fazer artístico, oportunizando crianças, jovens e adultos na experimentação dos
processos de criação e procedimentos técnicos ao produzir arte e ao sistematizar os resultados das
aprendizagens, como também orientá-los nas suas intervenções artísticas.

Esta ideia de “Abordagem Triangular” articula-se e se desdobra desde os primórdios do Congresso,


podendo ser identificada nos vários eixos de discussões que se tornaram assíduas na área de Arte/
Educação. Na apresentação do Léxico de pedagogia do teatro, Ingrid Dormien Koudela e José Simões
de Almeida Júnior assinalam a interrelação entre a filosofia e a arte/educação, espelhando os procedi-
mentos da Abordagem Triangular, mesmo que sem nomeá-la:

É possível identificar no pensamento pedagógico contemporâneo alguns eixos de discussão recor-


rentes na área da Arte. Do ponto de vista epistemológico, o conhecimento artístico deve articular o
método entre o fazer artístico, a apreciação da obra de arte e o processo de contextualização histórica
e social. Através do ensino da história, da estética e do exercício crítico da leitura da obra de arte, o
processo expressivo é ampliado e inserido na história da cultura.”5

3. Ana Mae Barbosa (1936-) nasceu no Rio de Janeiro, foi criada em Pernambuco, onde se graduou em Direito, carreira que abandonou
logo após a formatura. É a principal referência no Brasil para o ensino da Arte nas escolas, tendo sido a primeira brasileira com doutorado
em Arte-educação, defendido em 1977, na Universidade de Boston. Para maiores esclarecimentos sobre sua biografia e suas contribuições
à Arte/Educação no Brasil, veja-se a segunda palestra deste livro, Sobre Ana Mae Barbosa, de Everson Melquiades Araújo Silva. Sobre sua
grande contribuição aos estudos da Arte/Educação, veja-se a palestra de Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo, Abordagem Triangu-
lar como teoria hiante: o agora-já é história. Também se podem consultar os inúmeros livros e artigos de Ana Mae Barbosa, bem como a
esclarecedor trabalho acadêmico: AZEVEDO, Fernando Antônio Gonçalves de: A Abordagem Triangular no ensino das artes como teoria
e a pesquisa como experiência criadora. 2014. 209 f. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação, Universidade Federal de Per-
nambuco, 2014.
4. BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira. Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.
5. KOUDELA, Ingrid Dormien; ALMEIDA JÚNIOR, José Simões. Pedagogia do teatro. In: ______ (Orgs.) Léxico de pedagogia do teatro.
São Paulo: Perspectiva: SP Escola de Teatro, 2015, p. 12.

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Desta forma, pode-se constatar que os congressos de Arte/Educação promovidos pelo SESC amplia-
ram, e muito, o conceito paulofreiriano de pedagogia dialética, que sistematizou o ensino da Arte,
dando-lhe uma amplitude maior que as de seus primórdios no Brasil. Avançou-se muito os estudos,
a teoria e a prática de todos os que fazem ou ensinam a Arte. Saiu-se do território do espontaneísmo
em direção ao da articulação sistemática, direcionando-se para além das salas de aula, avultando a
visibilidade e a potência das mais diversas questões cujo foco maior de interesse é a Arte/Educação.

III

Na epígrafe que abre este livro, Antonin Artaud (1896-1948), visionário homem de teatro, nos alerta
que não é possível conceber “uma obra isolada da vida”. Ele mesmo não acredita em criações isoladas
e chama atenção para a ligação intíma entre criador e criatura: “Cada uma de minhas obras, cada um
dos planos de mim próprio, cada uma das florações glaciares da minha alma interior goteja sobre
mim”. Este gotejar a alma interior sobre si foi o leitmotiv do V Congresso Internaciconal SESC de Arte/
Educação. Como diz Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo na palestra que abre o livro, Ana Mae
Barbosa é um “exemplo de Vida Artista”, porque, através do procedimento da Abordagem Triangular,
podem ser abarcados os universos das Artes e Culturas Visuais, convidando então o leitor, “ao gesto
de reiventar, especialmentne porque é uma teoria aberta, aponta para uma possibilidade do porvir”,
oportunizando ao arte/educador, sua própria Re-criação.

Se o tema que norteou o V Congresso foi o de “Vida Artista: Diálogos entre Arte/Educação e Filo-
sofia”, as palestras e as comunicaçõs ativeram-se a ele, criando pontes, links, abrindo janelas e portas;
possibilitando novos horizontes, plenos de significação, isso sem deixar de despertar o interesse de
todos os que fazem arte/educação para o conhecimento, sua apreensão, sua construção e compreen-
são. Daí a necessidade de trabalhar uma nova maneira de ensinar e de aprender, pois “a inovação pe-
dagógica implica mudanças qualitativas nas práticas pedagógicas e essas mudanças envolvem sempre
um posicionamento crítico, explícito ou implícito, face às práticas pedagógicas tradicionais6”.

A mudança é algo que acontece naturalmente, porém é preciso dar suporte ao indivíduo por meio
da liberdade, para que a aquisição da aprendizagem possa ser enfocada como um processo verda-
deiramente cultural. O ser humano passa a ser visto na sua totalidade, aprende a atuar dentro da sua
realidade, usa e constrói o conhecimento pelo seu potencial criativo, como enfatiza Alvin Toffler7:

A maior parte do que atualmente nos aflige como incompreensível afligiria menos se encarássemos
com novos olhos o ritmo crescente de mudanças que faz a realidade às vezes parecer um caleidos-
cópio enlouquecido. Pois a aceleração das mudanças não atinge apenas indústrias ou nações. É uma
força concreta que penetra fundo em nossas vidas pessoais, nos leva a desempenhar novos papéis e
nos confronta com o perigo de um mal psicológico inédito e tremendamente perturbador. Essa nova
doença pode ser chamada de “choque do futuro”, e um conhecimento de suas fontes e sintomas ajuda
a explicar muitas coisas que, de outra forma, desafiam uma análise racional.

6. FINO, Carlos Nogueira. Inovação pedagógica: significado e campo (de investigação). Funchal: Uma, 2007, p.1. Disponível em: http://
www3.uma.pt/carlosfino/publicacoes/Inovacao_Pedadogica_ Significado_%20e_Campo.pdf. Acesso em: 20 jun. 2016.
7. TOFFLER, Alvin. O choque do futuro. Trad. Eduardo Francisco Alves. 2 ed. São Paulo: Record, 1970, p.22, grifo do autor.

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A inovação pedagógica é oportuna no momento educacional que vivemos na atualidade. Entretanto,
para que ela possa acontecer nas escolas, nos projetos sociais, faz-se necessário que ocorra uma série
de investimentos, quebras de paradigmas e um novo olhar, no que diz respeito à aprendizagem. É
preciso que haja um olhar e um choque no presente, para que possamos realizar uma educação pro-
cessual e dialógica.

Aqui, é preciso chamar a atenção para a palestra de Guilherme Castelo Branco, Vida artista, vida
plena de sentido, que se torna neste livro uma espécie de libelo, por fazer a conexão entre Arte/Edu-
cação e Filosofia, a partir de um aguçado olhar via Michel Foucault, para quem a sociedade e a arte
não podem estar relacionadas apenas aos objetos, mas especialmente aos indivíduos e à vida. Como
resume bem Castelo Branco: “Não se trata da arte como posse de objetos considerados belos, mas da
arte como vida, enquanto estética da existência”.

Como estética da existência, termo que vai se tornar uma palavra-chave em seu texto, ele alerta para
que esta estética, “comporta arestas, é produto de conflitos, faz-se contrapontos e pequenos combates
e superação de desfios e, restrições, constrangimentos”. Vemos, por meio deste pensamento, que a
vida artista visa à defesa da liberdade e que toda luta pela autonomia se inicia pela subjetividade, mas
não termina nela mesma. É preciso que saibamos educar nossa sensibilidade para a ampliarmos para
aqueles a quem educamos, “num proceso que não tem fim”. E nesta dimensão de seu pensar, afirma:

A arte-educação, neste particular, é um importante instrumento de iniciação e aprofundamento na


árdua tarefa de sensibilização para a arte e para o sentido das coisas. Seu trabalho é crucial, pois se
dedica a muitas pessoas, de todas as faixas etárias, e podemos aprender seu significado pelo pensa-
mento e pelo exemplo de luta, como a de Ana Mae Barbosa, que ocupa lugar de Mestria no ensino
no trato com as coisas belas, sabendo que se trata de um processo cheio de barreiras a serem ultra-
passados.

Esta sua referência a Ana Mae Barbosa não apenas amplia o raio de homenagens que o V Congresso
lhe presta (também o fizeram Fernando Antônio Gonçalves e Everson Melquíades), como a torna
também um emblema para todos/as que buscam, neste terreno movediço da arte/educação, uma
âncora contra a antítese do individualismo burguês que tanto combate. Combate que igualmente
aumenta sua expressão política, sem reduzir-se, todavia, à oposição arte versus polítca. Para Castelo
Branco,

As formas instituídas e oficiais de ação política, em especial aquelas decorrentes da política parti-
dária, ensinaram que a arte não pode depender da política. A vida política do século XX, com suas
repercussões no campo da arte, revelou-se verdadeiramente estéril no processo de transformação
do enorme campo de tensão em jogo no mundo contemporâneo: fazer depender a arte de posicio-
namentos políticos consiste numa abdicação da liberdade e da autonomia da arte e do pensamento.
Toda manifestação estética vinda de alguma corrente política, pouco importa sua vertente, sempre
resultou em expressões artísticas muito medíocres. Que a atividade artística resulte na renovação
tanto do campo perceptivo quanto do mundo vital, eis um fato inegável.

Acreditamos que o homem necessita de uma educação plena, que se ancore na fugaz experiência
humana, mudando a si e ao mundo, pela reivenção de si mesmo e das novas formas de vida, dando

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conta das suas várias dimensões (e de seus conflitos), pois só assim conhecerá a si próprio e reco-
nhecerá suas próprias qualidades, suas limitações e suas potencialidades: todas colocadas a serviço da
transformação da sua realidade.

Reunir os profissionais de educação e cultura do Sesc, das Universidades, escolas públicas e entidades
educacionais é, sem dúvida, abrir as portas para a oxigenação da educação, consolidando espaços
significativos para explanação, lançamentos de livros e disseminação de trabalhos científicos e ideias
sobre o tema; compartilhando e promovendo o intercâmbio entre a comunidade científica, estudan-
tes, estagiários, educadores e agentes culturais; tornando permanente o diálogo, a informação, a atua-
lização e a crítica em torno das metodologias e práticas do ensino/aprendizagem entre aqueles que se
preocupam e se ocupam em pensar uma educação de qualidade para todos.

Este livro contempla uma vasta gama do que se cunhou como VIDA ARTISTA, EM DIÁLOGOS
ENTRE ARTE/EDUCAÇÃO E FILOSOFIA. Seus vários temas incluem: arte/educação inclusiva, as
relações étnico-raciais, história da arte/educação no Brasil, arte/educação pós-colonialista, o ensino
de arte nas escolas de música, teatro, dança, artes visuais, processos de criação em artes cênicas, artes
visuais e dança, arte/educação e mediação sociocultural, arte/educação intercultural e relações de gê-
nero, formação do arte/educador, arte/educação e cultura popular, arte/educação e direitos humanos,
arte/educação em espaços de educação não formal e arte/educação contemporânea, dentre outras
ramificações, especialmente as ligadas às performances, tão imbricadas de vida e arte. Não são poucos
os temas das comunicações, nem os das palestras. Tudo aqui tem um caminho enorme a percorrer e
outras sendas vão se abrindo. Tudo é desafio à estética da existência, mas é ela que nos devolve a nós
mesmos, íntegros, numa realização estilística da liberdade, diria Guilherme Castelo Branco.

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1ª PARTE
PALESTRAS

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Abordagem Triangular como
teoria hiante: o agora-já é história
Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo

Não posso me impedir de pensar em uma crítica que não procuraria julgar, mas procuraria fazer
existir uma obra, um livro, uma frase, uma ideia: ela acenderia os fogos, olharia a grama crescer,
escutaria o vento e tentaria apreender o vôo da espuma para semeá-la. Ela muitiplicaria não os julga-
mentos, mas os sinais de existência: ela os provocaria, os tiraria de seu sono. Às vezes, ela os inven-
taria? Tanto melhor, tanto melhor. A crítica por sentença me faz dormir. Eu adoraria uma crítica por
lampejos imaginativos. Ela não seria soberana, nem vestida de vermelho. Ela traria a fulguração das
tempestades possíveis (MICHEL FOUCAULT, 2008, p. 302).

A na Mae Barbosa: expressão de Vida Artista. Busco neste texto um tom autorreflexivo, com
ancoragem filosófica, sobre o contexto da pós-modernidade, para localizar na História da Arte/Edu-
cação brasileira a Abordagem Triangular, pois considero que essa é a melhor maneira de homenagear
Ana Mae Tavares Bastos Barbosa. Exemplo de Vida Artista, no sentido proposto por Michel Foucault,
aqui interpretado por meio de um de seus grandes estudiosos brasileiros: o filólofo Guilherme Castelo
Branco, precisamente quando ele afirma (2010, p. 330):

A vida, no seu sentido mais encarnado e próprio, é o lugar da fragil, e fugaz experiência humana.
Mudar a si e ao mundo é uma decisão distante de todos os que não conhecem a possibilidade do
porvir e da invenção de novas formas de vida. Quem se inventa, claro, desenha o momento futuro
e vai ao seu próprio espaço de humanidade. [...]. Situar a própria vida como objeto da invenção de
uma arte de viver, eis uma proposição absolutamente original de Foucault, que enxerga na estética da
existência um dos modos de afirmação da liberdade e da criação.

A AT é uma teoria de interpretação do universo das Artes e Cultura Visuais, que convida o arte/edu-
cador ao gesto de reinventar, especialmente porque é uma teoria aberta, aponta para a possibilidade
do porvir, de certo modo, identifica-se com a estética da existência, ao lidar com a liberdade de RE-
-criação do arte/educador – diria, mesmo, que não é exagero dizer: a AT impõe o gesto de recriar.

Neste texto, tomei como ancoragem filosófica a obra O Filósofo Mascarado, de autoria de Michel
Foucault (2008), do qual roubei a epígrafe. Os subitens correspondem, de certo modo à elaboração
titubeante do texto, pois esse não se pretende como palavra final, mas ao contrário: busca possibilitar
o debate/reflexão.

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Arrisco-me a dizer ainda. Este texto, assim, não possui a epígrafe roubada de Michel Foucault (1926-
1984), por acaso. Muito pelo contrário, ele reflete o esforço de buscar interpretar historicamente uma
teoria brasileira, que em sua pouca idade, já provocou uma verdadeira virada – a virada arteducativa
– no campo da Arte/Educação nacional, pois, embora tenha sido criada na perspectiva dos proces-
sos de ensino e dos processos de aprendizagem e pesquisa das Artes e Culturas Visuais, essa teoria
vem afetando positivamente as outras linguagens da Arte: dança, música e teatro. Mesmo sendo uma
jovem teoria, a Abordagem Triangular, por seu caráter hiante – possui uma enorme abertura, favore-
cendo a recriação e não a reprodução – já foi reelaborada algumas vezes e, por isso, também renome-
ada. Aqui, a nomearei simplesmente de Abordagem Triangular (AT, doravante).

Como o próprio título do texto adjetiva, a AT é uma teoria hiante, porque não totalizante, por isso
sempre aberta, sempre se refazendo, sendo também, por essas razões, a relação com o que diz Foucault,
pois sua “inventora” (para usar a palavra de Foucault) – Ana Mae Tavares Bastos Barbosa – ao estudar
os trânsitos entre o pensamento Modernista e o pensamento Pós-Modernista, e seus rebatimentos no
ensino das Artes e Culturas Visuais, de um ponto de vista aberto, não hesitou em inventar e reinventar a
AT; reinvenção sempre em diálogo com os arte/educadores, sejam eles simpatizantes ou não da referida
teoria, pois a autora não despreza as críticas, sejam elas positivas, sejam negativas.

Por isso, não é dificil dizer, evocando o tom crítico poético de Foucault, que essa teoria possui o fulgor
das tempestades possíveis, isto é, busca sempre o pensamento divergente, nunca o pensamento úni-
co e totalizante, tornando o campo da Arte/Educação mais fértil. É, pois, uma teoria que multiplica
os sinais de existência da própria Arte/Educação, convidando o arte/educador ao gesto de recriar.
Fato que nos levou à compreensão da AT como uma teoria de interpretação do universo das Artes e
Culturas Visuais e não apenas como uma metodologia8. Aqui é necessário dizer: quando me refiro à
compreensão da AT como metodologia, faço-o de um ponto de vista crítico, ou seja, penso em uma
caricatura que reduz a metodologia a um método, uma espécie de submissão a uma cartilha que “en-
sina o faça fácil”, o fazer pela via do caminho mais curto, indicando, assim, o atalho e nunca a aventura
da (re)construção.

Ditas essas palavras, destaco dos lembretes, ambos interpretados do pensamento de Ana Mae Barbosa
( 2009): não afirmo que a AT tenha sido criada por mim, pois o termo sistematizada está implícito
na condição pós-moderna. O outro se refere à ideia de que a teoria informa a metodologia, há entre
ambas uma relação de reciprocidade. Assim, tentar interpretar o Agora-já é história da AT nos enca-
minha para a pós-modernidade.

A Pós-Modernidade. É um tempo e um lugar em que tudo que é mais ou menos sólido desmancha-se
no ar, pois as coisas, e nós, seres humanos, estamos sujeitados ao precário, ao fragmentado, à incerte-
za e à dispersão. Inevitavelmente, vivemos e convivemos com um mundo fraturado. No cenário mun-
dial (ou global), lutas pelo poder entre nações geram violência. Pelo ângulo do gesto questionador,
vemos que o ser humano está sujeito aos poderes controladores da vida, que impõem tanto a violência

8. Tal interpretação foi elaborada a partir do processo de pesquisa desenvolvido no Curso de Doutorado em Educação da Universidade Fe-
deral de Pernambuco, intitulado A ABORDAGEM TRIANGULAR NO ENSINO DAS ARTES COMO TEORIA E A PESQUISA COMO
EXPERIÊNCIA CRIADORA, sob a orientação da Dr.ª Clarissa Martins de Araújo (UFPE), com a co-orientação da Dr.ª Analice Dutra
Pillar (UFRGS). Hoje tais ideias compõem o livro com o mesmo título da tese, publicado pelo Sesc.

20
física como a violência simbólica, e muitos acontecimentos deixaram (e deixam) marcas assustadoras
em nossas memórias.

Entre esses acontecimentos, ressalto: ainda escutamos os ecos dos que sofreram (diretamente) o hor-
ror do bombardeio em Hiroshima e Nagasaki. Era o final da Segunda Guerra Mundial (agosto de
1945), os Estados Unidos bombardearam, em dias diferentes, as duas cidades.

Alguns anos depois, por meio da Arte, pude assistir estarrecido ao documentário “Corações e Men-
tes”, com direção de Peter Davis, lançado em 1974. Obra que registrou o terror da Guerra do Vietnã,
e que, estranhamente,em 1975 recebeu o Oscar de melhor documentário.

Para mim, o questionamente foi provocado pela Arte, pois, ao assistir ao filme, muitas perguntas sur-
giram. Não posso negar que “Corações e Mentes” marcou profundamente o meu olhar para o mundo.
Deixou em mim e em muitas pessoas de minha geração tatuada (para sempre), em nossos corações e
em nossas mentes, a imagem da menina vietnamita Kim Phue: despida, correndo desesperada, junto
com outras crianças, para o vazio, para o nada, para o que literalmente desfazia-se no ar. O cineasta
registrou, em imagem, o que a violência dos poderes controladores da vida é capaz de fazer, alertan-
do-nos, sobretudo, por meio do discurso imagético, que os mais pobres, os diferentes, os deserdados
sofrem tal sujeição, pois estão em situação mais vulnerável.

Como guardo essa cena marcante do filme em minha memória, mais recentemente, estudando as teo-
rias pós-críticas, fiz uma relação desse documentário com as características que os filósofos atribuem
à pós-modernidade, isto é, um tempo e um lugar em que tudo está sujeito à fratura.

A metáfora para contextualizar a pós-modernidade são as bombas lançadas em Hiroshima e Na-


gasaki, pois atingiram diretamente inocentes e civis japoneses e indiretamente a muitas pessoas em
variadas partes do mundo, frontalmente, em seus modos de agir e pensar. Especialmente, para mim,
as cenas do filme são muito difíceis de cair no esquecimento. Talvez ali tenha começado a nascer o
questionamento: que atitude tomar frente à experiência de sermos e estarmos no mundo a partir
de então? Caímos em um niilismo, valorizando a descrença e a negação de tudo, desde a convulsão
social até a perda total do próprio sentido de futuro para humanidade? Ou preferimos assumir uma
atitude cínica e descompromissada conosco mesmos, com o Outro e com o mundo?

De uma maneira mais elaborada, Tomaz Tadeu da Silva, pelo ângulo do pensamento foucaultia-
no, questiona: “Num campo atravessado por preocupações práticas e políticas não há como evitar
a pergunta: dados esses questionamentos, que dizer daqui prafrente?” (SILVA, 2011, p. 259). E na
sequência,ele responde à questão, argumentando:

Uma possível resposta é que esses questionamentos apenas estendem e ampliam o projeto educacio-
nal crítico de desestabilização dos poderes, certezas e dogmas estabelecidos. Que isso constitui em si
uma prática, uma prática de crítica que têm objetivos e resultados políticos. É verdade que desta vez
o próprio projeto crítico torna-se objeto da operação de crítica e questionamento e nisso está precisa-
mente uma de suas novidades. Mas a autorreflexividade não significa niilismo ou cinismo, nem falta
de compromisso e responsabilidade. Há talvez um aumento de responsabilidade, na medida em que

21
nossas posições deixam de ter um ponto fixo e estável e ficam constantemente submetidas à crítica
e à dúvida. Isso tampouco implica um abandono da política. Se existe abandono é apenas de uma
política baseada em certezas, dogmas e narrativas mestras (SILVA, 2011, p. 259).

A autorreflexividade como gesto de resistência. O documentário, em questão, “Corações e Mentes”


(DAVIS, 1974), pode ser considerado um símbolo do mundo que se desfez e desfaz no ar. É, pois, a
Arte narrando em imagem, de outro ponto de vista (contrário ao norte-americano), uma história que
era apresentada ao mundo ocidental de maneira xenofóbica: os “bons” (bons?) tendo que lutar na
terra do Outro (os ignorantes), na cultura do Outro, com o objetivo de aniquilar esse Outro, fazendo-
-os crer que eles não tinham direito a ter direitos. Essa era a lição que o “resto” do mundo deveria
aprender?

O cinema, pois, naquele momento, ao contrário das lições de submissão aos poderes, apontou-nos
a direção do questionamento, da indignação, da resistência. Hoje, a fotografia de Sebastião Salgado
vem-nos fazer pensar sobre os Refugiados: pessoas que – segundo a Agência da ONU para Refugia-
dos – em várias partes do mundo, são obrigadas, pelas mãos de ferro dos poderes europeu e norte-
-americano, a deixarem para trás seus lugares, suas histórias, suas vidas – pessoas que são empurradas
para o “abismo” em pleno alto mar, e isso não é ficção, é vida real, é a vida como ela é, parafraseando
Nelson Rodrigues.

Sebastião Salgado também registrou a dor dos camponeses sem-terra em Eldorado dos Carajás (17
de abril de 1996). Assim como as imagens de Retratos de Crianças do Êxodo (SALGADO, 2000) e seus
olhares perturbadores, inocentes, diante do vazio de um futuro incerto, mas sem perder a esperança
de uma vida melhor. Todos esses registros, por meio da imagem, enfatizam o extremo egoísmo decor-
rente das relações sociais e culturais assimétricas; metaforicamente são, para quem tem olhos para ver
a Arte, chagas pulsantes da matriz colonial que divide o mundo em quem tem direitos e quem sequer
pode sonhar em ter. É a Arte, mais uma vez, registrando, nesse caso, pelas lentes de Sebastião Salgado,
a corrida para o vazio, para o nada, para o que se desmancha no ar, para um mundo fraturado...

Surge a questão. Frente aos poderes econômicos e militares que controlam a vida, estabelecendo
quem são os detentores do poder de mando e quem são os subalternos, questionamos: O que pensa a
ciência frente aos poderes que divide o mundo em sujeitos de mando e assujeitados? O cientista social
português, Boaventura de Sousa Santos, posicionando-se sobre a questão acima, diz que uma con-
cepção de ciência e de tecnologia, “[...] têm vindo a revelar-se as duas faces de um processo histórico
em que os interesses militares e os interesses econômicos vão convergindo até quase à indistinção”
(2010, p. 35).

Sendo assim, os discursos “científicos”, por serem atravessados pelos interesses militares e econômi-
cos, traduzem o que determinam os poderes que controlam a vida, isto é, eles próprios são expressões
guardiãs de tais poderes.

Partindo desse olhar autorreflexivo, podemos dizer, historicamente, que a ciência não é mais a grande
verdade que tudo explica. Seu status começou a desmoronar, entre outros terríveis acontecimentos,
com as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, pois as razões que as justificam foram apresen-

22
tadas ao mundo pelo ângulo norte-americano branco, como já dissemos, de uma maneira xenofóbica,
dando ao ataque uma aparência de ato justificável.

Hoje, também podemos dizer que a fotografia de Sebastião Salgado, que tem como narrativa visual os
refugiados, os integrantes do MST e as crianças do êxodo, por exemplo, representam uma maneira de
provocar a indignação, que gera a autorreflexividade, tanto quanto o filme de Peter Davis. É, pois, a
imagem do cinema e a imagem da fotografia possibilitando o gesto autorreflexivo. Daí a relação com a
AT, pois reafirmo que ela é uma teoria de interpretação da imagem, seja essa Arte, seja Cultura Visual.

Possivelmente, por essas razões, neste tempo e neste lugar de incertezas, a construção do discurso
cientifico, artístico e filosófico passam a ter um alcance mais limitado, mais contextual, mais modesto
até! Fomos obrigados, pelo gesto de questionar, a nos distanciarmos das receitas prescritivas e das
grandes metanarrativas, pois a precariedade, a fragmentação, a incerteza e a dispersão vêm nos im-
pondo o questionar tudo que é dito e escrito como verdade absoluta ou universal. A Arte e a Filosofia,
de modo mais enfático, têm-nos exigido a autorreflexividade como gesto de resistência.

O Agora-Já é História. É hiante, por ser sempre aberto, sempre se refazendo, e é caótico9 pelo
mesmo motivo – cabe aqui uma ressalva: caótico não no sentido pobre de desorganização, como
a palavra é amplamente difundida pela mídia hegemônica brasileira, identificada a uma vertente
cínica do pós-modernismo, mas em seu sentido filosófico, porque é algo sempre em aberto, sempre
se reconstituindo, sem ponto final. Uma espécie de advento, pois é “promessa de acontecimentos”,
em um sentido aproximado ao das palavras de Marilena Chauí interpretando a filosofia fenomeno-
lógica de Maurice Merleau-Ponty: “Quando foi feito o primeiro desenho na parede da caverna, foi
prometido um mundo a pintar, o qual os pintores não fizeram senão retomar e reabrir” (CHAUI,
2010, p. 286).

O Agora-já é história, assim, além de ser grávido de acontecimentos, pensa em verdades contextuais,
absolutamente contextuais, pois toma o caminho inverso do pensamento hegemônico e se constitui
no gesto de retomar e reabrir constantemente a história e seus variados pontos de vista, gesto em que
a imaginação é constantemente exercida.

Um dos filósofos, cuja contundente reflexão pôs em questão a solidez da modernidade, é Foucault.
Como um de seus estudiosos, Cesar Candiotto, nesse sentido, diz:

Para Foucault, a verdade é indissociável da singularidade do acontecimento. Aquilo qualificado de


verdadeiro não habita num já-aí; antes, é produzido como acontecimento num espaço e num tempo
específico. No espaço, na medida em que não pode ser válido em qualquer lugar; no tempo, porque
algo é verdadeiro num tempo propício, [...] (CANDIOTTO, 2007, n.p.).

9  O filósofo brasileiro Emmanuel Carneiro Leão (grande estudioso do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein) na apresentação da edição
brasileira da obra Investigações Filosóficas, 2008) de Wittgenstein, enfatiza: “A palavra ‘caos’ tem o mesmo radical do verbo chasko, que nos
remete para a experiência de manter-se continuamente abrindo-se, de estar, portanto, sempre em aberto. Diz o hiato do ser, o abismo hiante
da realidade que é, no sentido transitivo de fazer ser e realizar. Todo real se instala e se sustém num advento desta realidade que se abisma
no hiato sem limites nem discriminações, sem ordens nem desordens de todas as possibilidades e impossibilidades. A linguagem real da
vida quotidiana é este poder inaugural do caos, o poder em si indeterminado e indeterminável de toda determinação e indeterminação”.

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Assim, a ideia de que o Agora-já é história nos leva a questionar os pretensiosos discursos grandilo-
quentes da modernidade e a sua tendência às grandes sistematizações, ou seja, a enaltecer na história
o ponto de vista dos códigos do poder: masculino, branco, burguês, setecentista. Filósofos como
Michel Foucault e Gilles Deleuze (1925-1995), especialmente, voltam-se para Friedrich Nietzsche
(1844-1900), e esse movimento de retorno ao autor da inquietante obra Assim Falou Zaratustra: um
livro para todos e para ninguém, na visão de Rafael Haddock-Lobo,

[...] marca justamente o tempo em que as grandes narrativas perdem seu sentido e que, talvez, o que
se deva aprender com a arte é não mais sistematizá-la ou classificá-la, mas justamente o contrário: a
possibilidade de conviver com o precário e o fragmentado, o que estaria muito mais próximo do que
se poderia chamar de ‘real’ do que qualquer especulação filosófica que pretenda conceitualizar ou
organizar a realidade em compartimentos bem definidos (2010, p.10, grifo do autor).

Penso, nesse sentido, que a ideia de que o Agora-já é história, criação/sistematização da arte/educa-
dora Ana Mae Barbosa, alimenta-se do entendimento de que fala o filósofo, em destaque na citação
acima, isto é, para ela a arte contemporânea (ou pós-moderna) não se apresenta como produção
acabada, ao contrário, tende a expandir-se por causa de seu caráter polissêmico, interdisciplinar e in-
tercultural. É uma “obra” aberta a variadas interpretações, pois considera os tempos e lugares de seus
produtores/propositores, assim como de seus leitores/produtores. Dois bons exemplos: “Corações e
Mentes”, o documentário analisado anteriormente, em “A autorreflexividade como gesto de resistên-
cia”, e a fotografia de Sebastião Salgado, em que os retratados são os “condenados da terra” – expressão
que é título de um livro de Franz Fanon (1925-1961) e que aqui tomo de empréstimo, para nomear
todas aquelas pessoas sem direito a ter direitos –, pois essas obras podem ser pensadas como um por-
tal, que abre muitas possibilidades, avizinhando-se do que afirma Nicolas Bourriaud: “a obra de arte
contemporânea não se coloca como término do ‘processo criativo’ (‘um produto acabado’, pronto para
ser contemplado), mas como um local de manobras, um portal, um gerador de atividades” (2009, p.
16, grifos do autor). O que compreendo como promessa de acontecimentos, a partir de Chauí inter-
pretando Merleau-Ponty (2010), é, por sua vez, vizinho íntimo das palavras de Bourriaud: a arte con-
temporânea é um portal, isso ocorre por que a arte contemporânea possui a marca do inacabamento
e assim é possibilidade de acontecimentos – apropriação reinventiva.

O Efeito-Foucault e o Agora-Já é História. A ideia de que o Agora-já é história, portanto, articula-se


com a de promessa de acontecimentos, pois esses, produzidos em um tempo e em um lugar próprios,
remetem-nos ao pensar da estudiosa e pesquisadora em história, Luzia Margareth Rago, que, precisa-
mente no meio dos anos de 1990, diz em seu artigo, sugestivamente intitulado O efeito-Foucault na histo-
riografia brasileira: “O desconcerto provocado por Foucault veio por vários lados” (RAGO, 1995, p. 68).

Desconcerto acompanhado de descontinuidade, pois a modernidade, que de certo modo tinha olhos
voltados apenas para o futuro, recusando-se a olhar o passado, ignorava a história. Ao contrário, a
concepção do pensamento pós-modernista, ao que nos filiamos, olha para trás, a seu modo considera
a história. Além disso, a pós-modernidade, ao admitir a descontinuidade das narrativas históricas,
provoca um estado de desassossego, pois estudar o passado necessariamente não nos leva a compre-
ender o presente. Aqui entra em crise a noção de progresso, marca do pensamento moderno, que por
meio das grandes metanarrativas tinham a pretensão de explicar a realidade como algo que rumava

24
(sempre) para um ponto mais elaborado. Enquanto os pós-modernistas questionam o próprio futuro
da humanidade.

O texto O efeito-Foucault na historiografia brasileira, de Rago, contextualiza que Foucault coloca em


questão “a história dos historiadores” que se ocupavam de compreender o passado, quando, segun-
do o filósofo francês, o gesto seria o de “cortar” e não o de compreender. A historiadora brasileira,
valendo-se de uma argumentação filosófica, ressalta em seu texto que Foucault, emblematicamente,
em A História da Loucura (1978), traz para a cena do debate não o pensamento psiquiátrico: nesse
caso, o pensamento do poder, mas sim a própria loucura e sua história: nesse caso, o pensamento da-
queles sujeitados ao pensamento do poder psiquiátrico: os “loucos”. Assim, Foucault, desloca o eixo
do olhar do direito: pensamento do poder; para o avesso: pensamento dos sujeitados; dá visibilidade,
de alguma maneira, àqueles que estavam na opacidade da cena histórica. Indicando outro modo de
pensar a história, que inquieta até os próprios historiadores. A partir do pensamento foucaultiano,
Rago (1995, p. 69) questiona: “Que possibilidades restavam para os historiadores quando o passado
passava a se reduzir a discursos, os documentos a monumentos, a temporalidade se dissolvia e os
objetos históricos tradicionais já não se sustentavam com tanta obviedade quanto antes?”.

A voz de Foucault traz não apenas a história da loucura para a cena do debate, mas também a histó-
ria de outras lutas; tais como a de pessoas presas e de homossexuais, gesto político-intelectual, que
coloca sob suspeita o discurso histórico identificado ao poder hegemônico, poder que anteriormente
neste texto chamei de: poderes controladores da vida, relacionados à articulação entre o econômico
e militar.

(Re)Criando um acontecimento. O acontecimento significativo, aqui em estudo, não pode ser pen-
sado como uma volta a um ponto de origem, uma espécie de retorno a um marco inicial, pois penso
que o Agora-já é história, é marcado pelas lutas que travamos em busca do que pensamos ser, neste
caso, a história da AT, enquanto teoria de interpretação do universo das Artes e Culturas Visuais.
Teoria que vem ao longo de sua história desafiando arte/educadores em suas práxis.

O acontecimento em análise requer uma volta ao ano de 1977, refiro-me ao I Encontro Latino-Ame-
ricano de Educação Através da Arte, ocorrido no Rio de Janeiro, em plena ditadura militar. Aqui
estudado por meio de seus anais, e cuja protagonista principal é a senhora Zoé Noronha Chagas
Freitas, quando no exercício da presidência da Sociedade Brasileira de Educação Através da Arte (SO-
BREART) e a presidência do I Encontro Latino-Americano de Educação Através da Arte. O duplo
cargo de presidenta, especialmente, naquele momento histórico, pode ser interpretado como a voz e
o pensamento de uma elite, ou seja, a classe social, que tendo como prerrogativa o direito (inato?) à
palavra; fala pelos demais, apagando os discursos divergentes em nome da história dos que dirigem a
sociedade, mesmo sem legitimidade.

No contexto brasileiro, atitude própria de quem não apenas identifica-se com o discurso colonialista,
demarcando a posição dos que mandam, mas também se autoproclamando como abnegada salvada
dos ignorantes, que desconhecem os valores “verdadeiros”, que levam para o caminho do bem. No
entanto, quem se recorda de como eram as escolas públicas daquela época e como eram tratados os
estudantes das camadas populares tem outra visão desse passado histórico.

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Em seu texto “Uma perspectiva do encontro”, tendo como subtítulo “Notícia Histórica”, Dona Zoé,
a protagonista oficial do encontro, enaltece a filosofia libertária do Movimento Escolinhas de Arte
(MEA, doravante), herdada, sobretudo, do pensamento de Herbert Read, poeta e crítico de arte in-
glês, identificado com o pensamento anarquista. Antes de tentar elaborar uma análise de um frag-
mento/síntese do texto de Dona Zoé, penso que devo contextualizar o pensamento de Read no MEA.
Read ficou conhecido no Brasil, especialmente, pelos que se juntaram ao MEA, por causa de uma
exposição de desenhos de crianças inglesas, patrocinada pelo Conselho Britânico, em 1941, pois a
história do MEA enfatiza que essa exposição provocou Augusto Rodrigues a criar, juntamente com
Lúcia Valentin e Margareth Spencer, mais tarde, em 1948, a Escolinha de Arte do Brasil (doravante,
EAB), fato que deu origem ao MEA.

Nesse contexto surge uma questão muito importante: enquanto o pensamento de Read foi gestado em
oposição aos horrores da Segunda Guerra Mundial, isto é, propondo a educação através da arte, como
uma educação que almejava a paz, o Brasil dos anos de 1977 era um país que vivia sob o sistema da
ditadura militar (1964-1985). Perseguidora dos educadores, artistas e intelectuais que a esse regime
se opusessem criticamente. Fato que nos leva a ressaltar as palavras de Dona Zoé, na qualidade de
presidente do evento:

[...] com base nos postulados da Filosofia de Educação Através da Arte, que enfatizam o reconhe-
cimento de uma dimensão criadora em todo ser humano, o respeito a sua liberdade de expressão, a
valorização da experiência cultural do povo, a necessidade de cultivar uma visão solidária de aproxi-
mação entre as nações para a comunhão de experiências de vida, foram tomadas as primeiras inicia-
tivas, como a criação de escolinhas de arte em vários países do Continente... (1977, p. 11).

Como é possível, no contexto da ditadura-64, falar de dimensão criadora de todo ser humano? Em
um país profundamente marcado pela estrutura hierárquica, que demarcava o território da escola pri-
vada, como aquele em que se ensinavam os ritos do poder; e o da escola pública, onde se ensinavam
os ritos da subserviência. Como é possível falar de liberdade de expressão quando educadores, como
Paulo Freire, encontravam-se exilados? E onde estava Anísio Teixeira? Ele afirmava, em tom poético
e político, que as escolinhas de arte, nascidas da matriz EAB, eram como oásis de sombra e luz, contra
o deserto, que eram as escolas públicas brasileiras. E, onde foram parar as grandes contribuições de
Nise da Silveira para o MEA? Outra que também havia sido presa na ditadura do Estado Novo.

Hoje, a Comissão da Verdade investiga, com farto material, a hipótese (quase provável) de que o edu-
cador Anísio Teixeira – o criador da escola pública no Brasil – foi assassinado pelo poder ditatorial de
64. Será que a perseguição aos educadores e artistas não eram incompatíveis com o discurso de Dona
Zoé? Penso que a estratégia era esta: dizer o discurso que torna opacas as ênfases.

O tom do discurso dominante, naquele encontro, enaltecia a proposta de educação artística da dita-
dura. Tanto Dona Zoé quanto Lucia Valentim, em seus discursos, defendem a importância liberta-
dora da arte, apagando o contexto histórico repressivo em que ocorreu o fato. Vejamos a seguir o que
diz Lucia Valentim:

Estou aqui na qualidade de assessora especial do Departamento de Ensino Fundamental do Minis-


tério da Educação e Cultura para a Educação Artística [...] e venho dizer-lhes que é preocupação

26
deste Departamento [...], a implantação da Educação Artística na escola de 1º grau. [...]. Se preocupa
este Departamento é porque sabe, como todos nós, que a arte pode ser uma força de todo progresso
educativo, porque sabe que cabe à escola de 1º grau o ensino de alguns conteúdos essenciais, mas, so-
bretudo, cabe à primeira escola dotar a criança daquela maravilhosa certeza de que pode descobrir-se
e descobrir o outro, construir a si própria e participar da construção do seu grupo (1977, p. 57-58).

O tom predominante dos discursos, no I Encontro Latino-Americano de Educação Através da Arte,


é de aceitação da proposta de educação artística. Nada de crítica. E quanto às questões dos processos
de ensino e dos processos de aprendizagem o tom era melosamente romântico: a arte como cosmético
que maquia a realidade.

Nesse contexto destaca-se o texto, Arte/Educação: revisão comparativa, de autoria de Ana Mae Barbo-
sa. É um texto, como o próprio título propõe, que elabora uma revisão crítica do que ocorria no Brasil
dos anos de 1970, do ponto de vista da Arte/Educação. Destaco a seguir um dos trechos que refletem
tal postura. No primeiro, diz Barbosa:

Recentemente um editor a quem sugeri traduzir e publicar Elliot Eisner disse-me que eles não se
arriscam a publicar títulos de Arte/Educação porque os arte/educadores não lêem. [...] no Brasil de
hoje esse preconceito é reforçado pela epidêmica exploração mídia peculiar nas salas de aula de Arte,
uma espécie de arte cosmética, à qual falta reflexão (1977, p.118).

Como se observa, Ana Mae Barbosa estava voltada para a articulação entre a teoria e a prática, postu-
ra que traduz uma crítica ao fazer arte desvinculado do universo da arte, ou seja, trabalhava-se com
a emoção e não com a produção do conhecimento artístico. Não é por acaso que em outro trecho ela
afirme: “Por isso, aquela idéia defendida por Lowenfeld (1947) de que os professores não devem per-
guntar às crianças acerca de seus desenhos, está sendo contestada hoje em dia” (1977, p. 120).

As palavras de Ana Mae Barbosa apontam para, no mínimo, duas grandes questões. A primeira re-
fere-se ao fato de o arte/educador não se voltar para sua formação teórica, ficar no plano da prática,
e ainda por cima de uma prática descontextualizada, isto é, sem vínculo com a história da arte, nem
com as teorias da área da educação, por exemplo. Já a segunda, complementa a primeira, e diz respei-
to à postura crítica da arte/educadora, quanto à teoria elaborada por Viktor Lowenfeld (1903-1960).
Cabe um parênteses para lembrar: Lowenfeld defendia a livre expressão da criança, parecendo ad-
mitir que havia em cada uma delas um manancial artístico, que precisava apenas ser despertado. Por
isso o gesto de possibilitar o contato da criança com o universo da Arte, disponível na vida social e
histórica, não era sequer admitido. Em um momento da Arte/Educação nacional, no qual a ênfase no
fazer e na ideia de livre expressão eram tidas como base.

Para concluir... Ouso afirmar que: se hoje podemos pensar a imagem como discurso, possível de ser
interpretado por meio de variados pontos de vista, no Brasil, é porque temos a AT, enquanto teoria
de interpretação do universo das Artes e Culturas Visuais, cuja história-já se identifica com um portal
gerador de possibilidades – materializando a Virada Arteducativa – pois indica que a Arte não é um
acontecimento banal, mas um modo muito especial de pensar e repensar o mundo, multiplicando os
sinais da existência da vida, que é (SEMPRE) hiante e caótica, porque nelas, na Arte e na Vida, não é
possível o ponto final...

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REFERÊNCIAS

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BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos de 1980 e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Apresentação. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tad.
Marcos G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 2006.
CASTELO BRANCO, Guilherme. Michel Foucault: A literatura, a arte de viver. In: HADDOCK-LOBO, Rafael.
Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
CANDIOTTO, César. Verdade e diferença no pensamento de Michel Foucault. Kriterion: Revista de Filosofia,
Belo Horizonte, v. 48, n. 115, 2007. Disponível em: <http://dx.doi.org/ 10.1590/S0100-512X2007000100012>.
Acesso em: 01 maio 2016.
CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty: o que as artes ensinam à filosofia. In: HADDOCK-LOBO, Rafael. Os filóso-
fos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. MOTTA,
Manoel Barros da (Org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, v. 2.
HADDOCK-LOBO, Rafael (Org.). Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
RAGO, Margareth. Foucault um Pensamento Desconcertante. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.
Tempo Social. Rev. Sociol. USP, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 67-82, out. 1995.
SANTOS, Boaventura Souza. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento, 2010.
SILVA, Tomaz Tadeu. O adeus às metanarrativas educacionais. In: SILVA, T. T. (Org.). O sujeito da educação:
estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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Sobre Ana Mae Barbosa
Everson Melquiades Araújo Silva

A na Mae Barbosa nasceu em 17 de julho de 1936, na cidade do Rio de Janeiro. No entanto, a morte
prematura dos seus pais a levaram a morar com seus avós, na cidade de Maceió/AL, onde realizou os
seus estudos primários e parte do curso ginasial. Muda-se para a cidade de Recife e finaliza o curso
ginasial no Instituto de Educação de Pernambuco e o Curso Normal na Escola Normal de Pernambu-
co. Realizou o curso de graduação em Direito na UFPE, concluindo-o no ano de 1960.

Aprovada em 2ª colocação no concurso para professores, inicia o magistério na Rede Estadual de


Ensino de Pernambuco, no Grupo Escolar Manoel Borba, alfabetizando crianças dos alagados do
Recife, no bairro dos Coelhos. Dois anos depois, foi colocada à disposição da Escolinha de Arte do
Recife, onde começou a trabalhar como estagiária, depois como professora, coordenadora e diretora.

Neste mesmo período, foi professora de Prática de Ensino do Curso de Licenciatura em Desenho, da
Escola de Belas Artes do Recife, substituindo a professora Noemia Varela.

Em reconhecimento ao trabalho desenvolvido na Escolinha de Arte do Recife, no ano 1964, foi in-
dicada pelo Artista/Educador Augusto Rodrigues para ser professora da Universidade de Brasília
(UnB). Depois do pedido de demissão coletivo dos professores da UnB, motivada pelas intervenções
da Ditadura Militar, volta para Recife. No entanto, com a perseguição da Ditadura Militar aos inte-
lectuais pernambucanos, aos 30 anos de idade, decide se mudar para a cidade de São Paulo. Nessa
cidade, desenvolveu suas atividades docentes na educação não formal, na Educação Básica e no En-
sino Superior de diferentes instituições de ensino particular e pública, até se tornar professora de
Fundamentos da Arte/Educação, da Escola de Arte e Comunicação (ECA), da Universidade de São
Paulo (USP). 

A Professora Ana Mae Barbosa foi a primeira arte/educadora a realizar o curso de doutorado no
Brasil.

Do ano de 1988 a 2015, orientou 26 teses de doutorado, 25 dissertações de mestrado e 15 trabalhos


de conclusão de curso de graduação, além de 03 supervisões de pós-doutorado. Destes, orientou e
co-orientou vários pernambucanos, egressos da UFPE e de outras instituições de ensino superior do

29
estado de Pernambuco, nos cursos de mestrado e doutorado, no Programa de Pós-Graduação em
Artes da USP e no Programa de Pós-graduação em Design, da Universidade Anhembi Morumbi, a
exemplo do Professor Sebastião Gomes Pedrosa (1993), Rejane Coutinho (1998), Maria das Vitórias
Negreiro do Amaral (2005), Márcio Soares Beltrão de Lima (2014), Márcia Maria da Cunha (2014),
entre outros. Inclusive, co-orientou a primeira tese de doutorado de Arte/Educação defendida no
estado de Pernambuco, no Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Educação, da
Universidade Federal de Pernambuco, no dia 25 de agosto de 2010, de Everson Melquiades Araújo
Silva, sob o título “A Formação do Arte/Educador: Um Estudo sobre Historia de Vida, Experiência e
Identidade”.

É importante registrarmos que os doutores e mestres formados pela Professora Ana Mae Barbosa
passaram a atuar nas universidades brasileiras, formando novos mestres e doutores, nas diferentes
regiões e estados brasileiros, a exemplo da Analice Dutra Pillar (UFRGS), Lúcia Gouveia Pimentel
(UFMG), Rejane Galvão Coutinho (UNESP), Maria das Vitorias Negreiro do Amaral (UFPE), Ever-
son Melquiades Araújo Silva (UFPE), Sebastião Gomes Pedrosa (UFPE), Fernanda Pereira da Silva
(UFG), Lucimar Bello Pereira Frange (UFU), Maria Christina de Souza Lima Rizzi (USP), Regina Stela
Barcelos Machado (USP), Rita Luciana Berti Bredariolli (UNESP), Lívia Marques Carvalho (UFPB),
Erinaldo Alves do Nascimento (UFPB), Leda Maria de Barros Guimarães (UFG), entre outros. Atual-
mente, está orientando 05 teses e 02 dissertações, além de uma supervisão de pós-doutorado.

Neste mesmo período, participou de mais 120 bancas de defesa, no âmbito da pós-graduação (Mes-
trado e Doutorado) e graduação. Inclusive, vem participando de banca de qualificação e defesa de
mestrado e doutorado na UFPE, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro
de Educação, e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, do Centro de Artes e Comunicação,
a exemplo dos trabalhos de Everson Melquiades Araújo Silva (2005), Fernando Antônio Gonçalves
de Azevedo (2014), Fabiana Souto Lima Vidal (2014), Roberta de Paula Santos (2014), entre outros.

Publicou mais de 33 livros e 117 capítulos de livros, entre os anos de 1979 e 2015, de importantes
editoras de âmbito nacional e internacional, tais como Cortez, Perspectiva, EDUSP e de diferentes
universidades. Ao longo de quase 40 anos, as publicações da Professora Ana Mae Barbosa têm guiado
a prática e a pesquisa do campo da Arte/Educação, antecipando, inclusive, dilemas da área, tais como
Interdisciplinaridade, Interculturalidade, Pós-Colonialismo, Pós-Modernidade, entre outros. É im-
portante destacar ainda que nos diferentes livros organizados por Ana Mae Barbosa, estão presentes
textos de arte/educadores pernambucanos, professores e egressos dos Programas de Pós-Graduação
da UFPE, a exemplo de Everson Melquiades Araújo Silva, Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo,
Maria das Vitórias Negreiro do Amaral e Rejane Coutinho. Esses artigos podem ser encontrados nos
livros Abordagem Triangular no ensino das Artes e Culturas Visuais (2012), Inquietações e mudanças
no Ensino da Arte (2002), Arte/Educação como mediação cultural e social (2009), Ensino da Arte:
Memória e História (2008), Artes Visuais: da Exposição à Sala de Aula (2005).

Do ano de 1984 a 2015, publicou mais de 100 artigos em periódicos nacionais e internacionais, nas
áreas de Educação, Arte, Arte/Educação, Design, de importantes universidade e instituições, além de
ser membro do corpo editorial de diferentes revistas, de âmbito nacional e internacional, das áreas de
Educação, Artes, Arte/Educação, Design, de universidades e importantes instituições, tais como a Re-

30
vista do Museu de Arqueologia e Etnologia, International Journal of Art & Design Education (Print),
International Journal of Education Through Art, La Fissure, Revista Invisibilidades, Revista Arte
Educação online, Educação e Realidade, Revista de Estudos Universitários, Revista Arte&Educação,
Revista GEARTE, Revista Artecomunicação, bem como da revista Estudos Universitários, da Univer-
sidade Federal de Pernambuco, desde 2010.

A Professora Ana Mae Barbosa, ao longo de sua trajetória profissional, participou de mais 400 eventos
de âmbito nacional e internacional de diferentes universidades e importantes instituições, proferin-
do conferências, palestras, além de organizar mais de 40 eventos, tais como congressos, encontros,
cursos, exposições. É importante salientar que Ana Mae Barbosa sempre se destacou na concepção
e organização de importantes eventos nacionais e internacionais que reuniram, sob o signo da arte e
de seu ensino, diversas personalidades brasileiras e estrangeiras, especialistas e artistas. Nesta direção,
esses eventos organizados por Ana Mae vêm exercendo, ao longo da história da educação brasileira,
um importante papel na formação política e conceitual dos arte/educadores. Foi através desses even-
tos que as teorias mais contemporâneas do campo da arte/educação chegaram aos arte/educadores
brasileiros. Neste sentido, esses eventos assumiram um papel central na atualização dos arte/educa-
dores. É importante destacarmos que vários eventos realizados pela UFPE e na UFPE contaram com
a presença e participação da Professora Ana Mae Barbosa.

Existem diferentes estudos de pós-graduação, no âmbito do mestrado e doutorado, sobre a contribui-


ção do pensamento da Professora Ana Mae Barbosa para a educação brasileira, a exemplo da Tese de
Doutorado, do Professor Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo, defendido no Programa de Pós-
-Graduação em Educação, do Centro de Educação, da UFPE, no ano de 2014, intitulada “A Aborda-
gem Triangular no ensino das Artes como teoria e a pesquisa como experiência criadora”, orientado
pela Professora Clarissa Martins de Araújo e Co-Orientado pela Professora Analice Dutra Pillar, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Foi presidente da International Society for Education through Art (InSEA/UNESCO), do Conselho
Latino Americano de Arte/Educação (CLEA), da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes
Plásticas (ANPAP) e da Associação de Arte-educadores do Estado de São Paulo (AAESP). Atualmen-
te é membro da ANPAP, InSEA, CLEA e Federação de Arte/Educadores do Brasil (FAEB).

Em reconhecimento a seu trabalho, recebeu inúmeros prêmios de honra ao mérito de importantes


instituições de âmbito nacional e internacional, de diferentes áreas, tais como: Boca do Céu, do En-
contro Internacional de Contadores de História (2014); Membro honorário, da Associação de Profes-
sores de Expressão e Comunicação Visual (2013); Comenda da Ordem do Mérito Científico, do Mi-
nistério de Ciências e Tecnologia (2003); Achievement Award, da Miami University (2002); Studies in
Art Education Award Lecture, da National Art Education Association/USA (2001); Medalha Augusto
Rodrigues, do Movimento Escolinhas de Arte do Brasil (1999); Prêmio Internacional Sir Herbert
Read, da International Society for Education through Art (InSEA)/UNESCO (1997); Título de Dis-
tinguished Fellow, da National Art Education Association/USA (1997); Edwin Ziegfeld International
Award, da United States Society of Education Through Art (1992); e o Grande Prêmio de Crítica, da
Associação Paulista de Críticos de Arte (1990).

31
Duzentos anos de ensino
da arte no Brasil
Ana Mae Barbosa

E stou profundamente agradecida ao SESC Piedade, à Universidade de Pernambuco e à Univer-


sidade Rural de Pernambuco por terem escolhido me homenagear neste V Congresso Internacio-
nal de Arte/ Educação de 2016, quanto faço 80 anos de idade, 60 anos de dedicação apaixonada à
Arte/Educação e 50 anos que, carregando cuidadosamente as raízes do Recife, fui obrigada a partir e
transplantá-las para São Paulo, que nos acolheu a mim, meu marido, João Alexandre, e meus filhos,
Frederico e Ana Amália.

Foi o interculturalismo que aprendi com Abelardo Rodrigues, Paulo Freire, Aloisio Magalhães, Gas-
tão de Holanda, Orlando da Costa Ferreira e Noêmia Varela que me alimentou todos estes anos de
atividade. O Gráfico Amador e a Escolinha de Arte do Recife funcionaram para mim como Univer-
sidades do primeiro mundo. Lá aprendi a ser flexível e radical, o que parece incoerente. Ser radical é
ir ao fundo da questão; ser flexível é interagir, se inter-relacionar, dialogar com quem quer que seja,
mantendo a radicalidade.

Modernista de formação, Pós-modernista por escolha, por respeito à História, desejo incluir nesta
comemoração dos meus 80 anos a comemoração pelos 200 anos da criação oficial do ensino da Arte
no Brasil.

Criada por D. João VI, em 1816, a Academia Imperial de Belas Artes, embora só tenha começado a
funcionar em 1826, viu seus professores/artistas franceses mudarem o mapa do gosto e da emoção
estética dos brasileiros nos dez anos que, sem obrigações didáticas, produziram transformações na
Arquitetura, nas Artes Plásticas e no conceito de Arte.

1. A ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES - 1826

O ensino da Arte no Brasil, desde seu início oficial, é vermelho, azul e branco. O sistema brasileiro
de Ensino da Arte tem seguido sucessivamente o modelo francês, inglês e norte americano, quase
sempre, por imposição do próprio governo. O ensino superior de Arte foi sistematizado antes do
seu ensino primário e secundário sob a influência da França, apesar de o país ter sido colonizado
por Portugal, que cerceou o desenvolvimento cultural e até proibiu o Brasil de ter imprensa por 300

32
anos. Só depois de 1808, quando D. João VI, rei de Portugal fugindo de Napoleão Bonaparte, mudou
temporariamente a sede do reinado de Lisboa para o Brasil, trazendo grande parte da corte, é que
permitiram que nos desenvolvêssemos culturalmente.

Foram criadas escolas de nível universitário de medicina, para formar pessoal para cuidar da saúde
dos recém-chegados; faculdade de direito, para formar uma elite nacional para ajudar a dirigir o país;
escola militar, para formar grupos de defesa do território nacional; e uma Academia Imperial de Belas
Artes, para movimentar intelectualmente a corte. Para criar esta escola, parece uma contradição, mas
foram contratados, da França, artistas e arquitetos bonapartistas do Instituto de França. Chegaram
em 1816, e mesmo antes de criar a Academia, passaram 10 anos disseminando o estilo em moda na
época, o Neoclássico, e, como consequência, combatendo o Barroco, que crescera aleatoriamente,
apoiado pelas missões religiosas e que tinha identidade própria diferente do Barroco português e
italiano, transformado em produto nacional pela força criadora de mulatos e escravos.

A Academia Imperial de Belas Artes foi, portanto, uma das primeiras invasões culturais que o pro-
cesso cultural no Brasil sofreu por ação governamental e transformou o gosto local, condenando o
barroco brasileiro a ser o desprezado kitsch da época. Os artistas que trouxeram e implantaram o
neoclássico eram a vanguarda internacional no seu tempo, despertando o ciúme dos portugueses
que reclamavam não haver, em Portugal, uma escola tão boa quanto a do Rio de Janeiro. O ensino
da Academia influenciou as escolas de meninos ricos, mantidas por religiosos da Igreja Católica, que
introduziram desenho no currículo, copiando estampas e fazendo retratos. As poucas escolas de me-
ninas ricas, além do desenho, ensinavam piano e bordado.

2. A PRIMEIRA REPÚBLICA: POSITIVISMO, LIBERALISMO E NACIONALISMO – 1889

O desenho só foi obrigatoriamente introduzido nas escolas primárias e secundárias públicas depois
de decretada a República, e mudou a bandeira dominante para o azul, vermelho e branco inglês e
norte americano, desvinculando-se completamente dos métodos usados na Academia. O sucesso de
Walter Smith, na Escola Normal de Massachussets, já havia encantado o Imperador Pedro II e sua
equipe que compareceu à Philadelphia Centennial Exposition dos Estados Unidos, em 1876.

Rui Barbosa10, um dos mais influentes políticos brasileiros da época, elaborou, em 1882/ 1883, um
dos mais bem explicitados e longos projetos de educação, no qual torna o ensino do Desenho eixo
importante na escola primária e secundaria.

Desenho era concebido como preparação para o trabalho. Propunha-se a dar um conhecimento téc-
nico de desenho a todos os indivíduos, de maneira que, libertados da ignorância, fossem capazes de
produzir suas invenções.

O programa seguia a metodologia de Walter Smith, de quem Barbosa cita e traduz mais de dez páginas
de seu livro. O projeto de Rui Barbosa não chegou a ser implementado no Império, mas norteou embora
de forma fragmentada as mudanças educacionais da Republica (1889). Barbosa era muito influente e

10. O autora deste texto não é parente de Rui Barbosa.

33
concorreu a várias eleições como candidato à Presidência do país e foi Senador da República. Estuda-
vam-se gregas, faixas decorativas, vitrais, rosáceas, ampliação de figuras. Era uma espécie de iniciação
ao design decorativo em voga na época, pois estávamos em pleno surto industrial da construção civil,
no entanto estes conteúdos perduraram até os anos 80 na cultura escolar brasileira e nos livros didáticos.

As ideias liberais conviveram com a influência de ideias Positivistas, o que resultou, em grande im-
portância, ao desenho ligado à Geometria, ciência mais alta da pirâmide do conhecimento concebida
por Augusto Comte. O Positivismo foi muito influente na formação dos republicanos brasileiros, de
forma que e a bandeira do país é de inspiração positivista, tendo a frase “Ordem e Progresso” no meio
de círculo, losango e retângulo.

O Nacionalismo e o Indianismo, no fim do século XIX, influenciaram a Arte e o Ensino da Arte na


América Latina, especialmente na Argentina, no Peru, no México e no Brasil. No Brasil, Theodoro
Braga, escritor, artista, e professor de Arte no Pará, Rio de Janeiro e São Paulo, difundiu o estilo Art
Nouveau, porém com estilização da flora e fauna brasileiras e os motivos da cerâmica indígena de
Marajó.

3. MODERNISMO: NOVA ESCOLA E EXPRESSIONISMO

A Semana de Arte Moderna de 1922, que introduziu o Brasil estrondosamente no Modernismo (como
o Armory Show, nos Estados Unidos), não repercutiu de imediato no Ensino da Arte.

Quando, a partir de 1927, o ensino da arte volta a ser objeto de discussões, isto se deveu principal-
mente à modernização educacional.

Com a crise político-social contestatória da oligarquia e a tentativa de instauração de um regime mais


democrático, uma reflexão sobre o papel social da educação aflora novamente.

Desta vez é a educação primária e a escola que se tornam o centro das atenções reformistas, através
do movimento que ficou conhecido pelo nome de ‘escola nova’.

Defendeu-se, então, o mesmo princípio liberal de arte integrada no currículo, ou melhor, de arte na
escola para todos. Entretanto, enquanto os liberais continuavam a defender como objetivo do ensino
os aspectos técnicos do desenho para preparar para o trabalho, a ‘escola nova’ defendia a ideia da arte
como instrumento mobilizador da capacidade de criar, ligando imaginação e inteligência.

Os pressupostos teóricos para a valorização da arte na ‘escola nova’ foram principalmente inspirados
em John Dewey e defendidos por seu ex-aluno, Anísio Teixeira, e incorporados às Reformas Educa-
cionais do Distrito Federal, de Fernando Azevedo; de Carneiro Leão, em Pernambuco; e de Francisco
Campos, em Minas Gerais.

As interpretações diversificadas de suas ideias conduziram a caminhos distintos no ensino da arte no


Brasil: a observação naturalista, a arte como expressão de aula e como introjeção da apreciação dos
elementos do desenho (deturpada na prática do desenho pedagógico).

34
4. INFLUÊNCIA DE JOHN DEWEY

Os primeiros escritos de Dewey sobre arte e ensino da arte podem ser classificados como naturalistas,
e foram exatamente estes escritos que maior influência exerceram sobre a arte/educação no Brasil. O
divulgador desta fase do pensamento estético de Dewey foi Nerêo Sampaio, um professor de desenho
da Escola Normal do Rio de Janeiro. Em 1929, Nerêo Sampaio defendeu sua tese de cátedra, intitulada
“Desenho espontâneo das crianças: considerações sobre sua metodologia”, onde enunciava o chama-
do método espontâneo-reflexivo para o ensino da arte, apontando como pressuposto teórico as ideias
de Dewey expressas em The school and society11 (1900). Neste livro, Dewey recomenda a estimulação
dos impulsos naturais da criança para o desenho através dos processos mentais de reconhecimento
e reflexão. Nerêo Sampaio declarava que seu método consistia em deixar a criança se expressar livre-
mente, desenhando de memória e depois fazê-la analisar visualmente o objeto desenhado, para, em
seguida, executar um segundo desenho, integrando, neste último, elementos observados do objeto
real. O autor tenta resumir em sua tese as ideias de Dewey que embasavam seu método.

[...] é comum vermos nas crianças o desejo de se expressarem pelo desenho e pela cor. Se nos limi-
tarmos a condescender com esse instinto, deixando que atue indefinidamente, não há procedimento
mais acidental. É necessário, mediante a crítica, as sugestões e as perguntas, excitar a consciência do
que fez e do que deve fazer, porque o resultado será satisfatório.12

Figura 1. - Visita de
autoridades à Escola
Visconde de Ouro Pre-
to. Diretor de Instru-
ção Pública Fernando
de Azevedo, com o
Presidente Washington
Luís e o Prefeito Anto-
nio Prado Jr. Fotógrafo
Augusto Malta, 24 set.
1927 (IEB/USP).

A Reforma Educacional de Fernando de Azevedo, no Distrito Federal (1929), recebeu direta influên-
cia do trabalho e ideias de Nerêo Sampaio e cristalizou, através da recomendação metodológica ex-
plícita, o desenho espontâneo, seguido de apreciação naturalista, que vem sendo praticado em nossas
escolas até hoje. Como sabemos, a Reforma Fernando de Azevedo teve larga influência em todo o

11. DEWEY, John. The school and society. In: ARCHAMBAULT, Reginald D. John Dewey on education. Chicago: The University of Chica-
go Press, 1974, p. 259-310. (Primeira edição: 1900).
12. SAMPAIO, Nerêo. Desenho espontâneo das crianças; considerações sobre sua metodologia. Rio de Janeiro, S. C. P., 1929, p. 16-17.

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Brasil, através do trabalho divulgador da ABE (Associação Brasileira de Educação) e do livro escrito
pelo próprio Fernando de Azevedo: A cultura no Brasil.

Outra iniciativa que muito influenciou a arte-educação brasileira foi a Reforma Francisco Campos
(1927-1929), em Minas Gerais. Esta reforma se baseou em outra linha de interpretação sobre ensino
da arte, marcadamente à ideia de apreciação como processo de integração de experiência. Artus Per-
relet, do Instituto Jean Jacques Rousseau, foi a autora desta proposta. Ela veio para Minas Gerais com
grupo de sete professores especialmente contratados da Bélgica e de Genebra. Dentre eles, duas eram
professoras de Arte, Jeanne Milde e Artus Perrelet, o que demonstrava a importância dada à arte na
escola pela reforma mineira.

Artus Perrelet tinha uma orientação metodológica para o ensino da arte basicamente influenciada pelas
ideias de John Dewey, expressas em Democracia e educação e Affective thought. Sua concepção de dese-
nho como integração de corpo e mente, experiência e raciocínio, gesto e visão, vida e símbolo, indivíduo
e meio ambiente, sujeito e objeto, era centrada na ideia de integração orgânica da experiência. Esta in-
tegração era proposta por Perrelet, em seu livro, O desenho a serviço da educação (traduzido no Brasil,
em 1930), e, segundo seu método, a integração dar-se-á através da apreciação dos elementos do desenho
em movimento. Ela combatia o realismo. Sua influência no Brasil se deu a partir dos resultados dos tra-
balhos esquemáticos das crianças a quem ela ensinava, e não de suas ideias. Erroneamente, começou-se
a ensinar às crianças a desenhar esquematicamente, e surgiu, nas escolas, o desenho pedagógico que
consistia em levar os alunos a copiarem da lousa esquemas de figuras feitos pelo professor.

No seu livro, há o exemplo de um trabalho com ritmo que demonstra seu processo de ensino.

Trata-se, pois, de conseguir a atenção das crianças para os ritmos que as rodeiam; ritmos infinita-
mente variados, para cuja pesquisa, em si só, altamente as diverte. O primeiro estudo consistirá numa
explicação do professor que deverá expor aos alunos o objeto que se lhes propõe a perspicácia. Há
em torno deles, no decurso do dia, um número considerável de coisas, de movimentos, de sons, que
se repetem de maneira regular. Registremos metodicamente esses fatos e veremos se não é possível
exprimi-los pelo desenho13.

Figura 2. Resultados Gráficos do Estudo do


Ritmo Feito pelas Crianças.

13. PERRELET, Artus. O desenho a serviço da educação. Trad. Genésio Murta. Rio de Janeiro: Ed. Villas-Boas e Cia, 1930, p. 146-50.

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Através de uma deturpação do trabalho desenvolvido por Perrelet, o desenho pedagógico tiranizou a
capacidade de criação de nossas crianças durante, pelo menos, duas décadas.

Outra vertente da influência de Dewey na arte-educação veio de sua ideia de arte como experiência
consumatória. Identificou-se este conceito com a ideia de experiência final, conclusiva, não só no
Brasil, mas também nos Estados Unidos, nas Progressive Schools, supostamente inspiradas em Dewey.
A consolidação destas ideias veio da Reforma Carneiro Leão, em Pernambuco, mas foi largamente
difundida no Brasil. No livro de José Scaramelli, Escola nova brasileira: esboço de um sistema, onde ele
dá os pressupostos teóricos da Reforma Carneiro Leão e muitos exemplos práticos de aulas, a função
da arte está precisamente delineada, invocando a arte como “experiência consumatória” de Dewey.

De acordo com as descrições de Scaramelli, a arte era usada para ajudar a criança a organizar e fixar
noções apreendidas em outras áreas de estudo.

A ideia fundamental era dar, por exemplo, uma aula sobre peixes, explorando o assunto em vários
aspectos e terminando pelo convite aos alunos para desenharem peixes e fazerem trabalhos manuais
com escamas, ou ainda dar uma aula sobre horticultura e jardinagem e levar as crianças a desenharem
um jardim ou uma horta.

5. O MOVIMENTO DE ESCOLINHAS DE ARTE PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES,


DESDE 1948 ATÉ O TRABALHO SOCIAL DAS ONGS

É no início da década de 1930 que temos as primeiras tentativas de escolas especializadas em arte
para crianças e adolescentes, inaugurando o fenômeno da arte como atividade extracurricular. Em
São Paulo, foi criada a Escola Brasileira de Arte, dirigida por Theodoro Braga, onde crianças de 8 a
14 anos podiam gratuitamente estudar desenho e pintura. A orientação era vinculada à estilização da
flora e fauna brasileiras.

Uma orientação baseada na livre expressão e no espontaneísmo só se iniciaria nas aulas para crianças
que Anita Malfatti (1860-1964), em 1930, mantinha em seu atelier e com o trabalho de desenho livre
de crianças, na Biblioteca Infantil Municipal do Departamento de Cultura de São Paulo, quando Má-
rio de Andrade era seu diretor (1936-38).

A contribuição de Mário de Andrade foi muito importante para que se começasse a encarar a pro-
dução pictórica da criança com critérios mais científicos e à luz da filosofia da arte. As atividades das
escolas ao ar livre do México parecem ter influenciado grandemente sua interpretação do desenho
infantil.

O estudo comparado do espontaneísmo e da normatividade do desenho infantil e da arte primitiva era


o ponto de partida de seu curso de filosofia e de história da arte na Universidade do Distrito Federal.

Por outro lado, dirigiu uma pesquisa preliminar sobre a influência dos livros e do cinema na expres-
são gráfica livre de crianças de 4 a 16 anos de classe operária e de classe média, alunos dos parques
infantis e da Biblioteca Infantil de São Paulo.

37
Com a Ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), muitos educadores foram persegui-
dos. O estado político ditatorial implantado no Brasil, afastando das cúpulas diretivas educadores de
ação renovadora, entravou o desenvolvimento da arte/educação e solidificou alguns procedimentos,
como o desenho geométrico na escola secundária e na escola primária, o desenho pedagógico e a
cópia de estampas usadas para as aulas de composição em língua portuguesa.

É o início da pedagogização da arte na escola. Não veremos, a partir daí, uma reflexão acerca da
arte-educação vinculada à especificidade da arte como fizera Mário de Andrade, mas uma utilização
instrumental da arte na escola para treinar o olho e a visão.

6. ARTE PARA LIBERTAÇÃO EMOCIONAL - 1948

É precisamente o argumento de que a arte é uma forma de liberação emocional que permeou o mo-
vimento de valorização da arte da criança no período de redemocratização que se seguiu ao Estado
Novo, que, não por coincidência, terminou junto com a Segunda Guerra Mundial, em 1945. A partir
de 1947, começaram a aparecer ateliers para crianças em várias cidades do Brasil, em geral orientados
por artistas que tinham como objetivo liberar a expressão da criança, fazendo com que ela se mani-
festasse livremente sem interferência do adulto.

Trata-se de uma espécie de neo-expressionismo, que dominou a Europa e os Estados Unidos do pós-
-guerra e se revelou com muita pujança no Brasil, que acabava de sair do sufoco ditatorial.

Destes ateliers, os dirigidos por Guido Viaro (Curitiba) e por Lula Cardoso Aires (Recife) são exem-
plos significativos. O primeiro existe até hoje, mantido pela Prefeitura, e, até os inícios de 90, última
vez que o visitei, fazia um ótimo trabalho. A escola de Lula Cardoso Ayres, criada em 1947, teve curta
existência e sua proposta básica era dar lápis, papel e tinta à criança e deixar que ela se expressasse li-
vremente. Seguindo o mesmo princípio, outro pernambucano, Augusto Rodrigues, criou, em 1948, a
Escolinha de Arte do Brasil, que começou a funcionar nas dependências de uma biblioteca infantil no
Rio de Janeiro. A iniciativa de Augusto Rodrigues, a qual estiveram ligados Alcides da Rocha Miranda
e Clóvis Graciano, logo recebeu a aprovação e o incentivo de educadores envolvidos no movimento
de redemocratização da educação.

Professores, ex-alunos da Escolinha, criaram Escolinhas de Arte por todo o Brasil, chegando a haver
134 Escolinhas no país e uma no Paraguai. Usando principalmente argumentos psicológicos, as Esco-
linhas começaram a tentar convencer a escola comum da necessidade de deixar a criança se expressar
e criar livremente usando lápis, pincel, tinta, argila etc.

Naquele momento, parecia um discurso de convencimento no vazio, uma vez que os programas edi-
tados pelas secretarias de educação e Ministério de Educação deveriam ser seguidos pelas escolas e
tolhiam a autonomia do professor.

Houve, na época, uma grande preocupação com a renovação destes programas. Lúcio Costa (autor
do plano urbanístico de Brasília) foi chamado para elaborar o programa de desenho da escola secun-
dária (1948). Seu programa nunca foi oficializado pelo Ministério de Educação. Revela uma certa

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influência da Bauhaus, principalmente na preocupação de articular o desenvolvimento da criação e
da técnica e desarticular a identificação de arte e natureza, direcionando a experiência para o artefato.

Este programa só começou a influenciar o ensino da arte na escola pública a partir de 1958.

Neste ano, uma lei federal permitiu e regulamentou a criação de classes experimentais.

As experiências escolares surgidas nesta época visavam, sobretudo, investigar alternativas, experi-
mentando variáveis para os currículos e programas determinados como norma geral pelo Ministério
de Educação.

A presença da arte nos currículos experimentais foi a tônica geral.

A prática que dominou o ensino da arte nas classes experimentais foi a exploração de uma variedade
de técnicas, de pintura, desenho, impressão etc. O importante era que no fim do ano o aluno tivesse
tido contato com uma larga série de materiais e empregado uma sequência de técnicas estabelecidas
pelo professor.

Para determinar esta sequência, os professores se referiam à necessidade de se respeitar as etapas


de evolução gráfica das crianças. O livro de Victor Lowenfeld, traduzido em espanhol, Desarollo de
la capacidad creadora, que estabelece estas etapas, tornou-se então uma espécie de bíblia dos arte-
-educadores de vanguarda. Herbert Read era também frequentemente citado, mas, pela análise dos
programas, vemos que foi raramente utilizado como embasamento teórico.

Noêmia Varela, criadora da Escolinha de Arte do Recife, foi a grande influenciadora do Ensino da
Arte em direção ao desenvolvimento da Criatividade, que caracterizou o Modernismo em Arte Edu-
cação. Ela e mais duas mulheres fizeram das Escolinhas a grande escola modernista do ensino da Arte
no Brasil: Margaret Spencer, que criou a primeira Escolinha com o artista plástico Augusto Rodrigues
– era uma americana que conhecia as Progressive Schools e o movimento de Arte Educação já bem
desenvolvido nos Estados Unidos, segundo o depoimento de Lúcia Valentim. A segunda destas mu-
lheres que fizeram a Escolinha foi a própria Lucia Valentim, que assumiu a direção da Escolinha de
Arte do Brasil durante uma prolongada viagem de Augusto Rodrigues ao exterior. Influenciada pelo
artista Guignard, de quem foi aluna, imprimiu uma orientação mais sistematizada à Escolinha e se de-
sentendeu com Augusto, quando este retornou ao comando. Entrou em cena, então, Noêmia Varela.
Augusto Rodrigues conseguiu convencê-la a deixar a Escolinha de Arte do Recife e rumar para o Rio
de Janeiro, onde passou a ser a orientadora teórica e prática da Escolinha, com total responsabilidade
pela programação, na qual se incluía o Curso Intensivo em Arte Educação, que formou toda uma
geração de Arte Educadores no Brasil e muitos na América Latina Espanhola.

Uma leitura frequente nos cursos intensivos da Escolinha era um texto escrito sobre a inglesa Marion
Richardson, cujo ideário influenciou nosso modernismo no ensino da Arte.

Augusto Rodrigues era uma personalidade carismática, seduzindo pela eloquência e pela iconoclas-
tia, fazendo as jovens professoras desiludidas do sistema delirarem. Por outro lado, suas boas relações

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com a burguesia ou classe alta protegeu a Escolinha de suspeitas durante a Ditadura Militar no Brasil
(1964-1983).

A Lei de Diretrizes e Bases (1961), eliminando a uniformização dos programas escolares, permitiu a
continuidade de muitas experiências iniciadas em 1958, mas, em 1964, uma ditadura militar inter-
rompeu o desenvolvimento do ensino da Arte.

7. A DITADURA MILITAR DE 1964 A 1984

A Ditadura de 64 perseguiu professores e Escolas Experimentais foram aos poucos desmontadas sem
muito esforço. Era só normatizar seus currículos. Até escolas de Educação Infantil foram fechadas.
A partir daí, a prática de arte nas escolas públicas primárias foi dominada, em geral, pela sugestão de
tema e por desenhos alusivos a comemorações cívicas, religiosas e outras festas.

Na escola secundária pública comum, continuou imbatível o desenho geométrico, com conteúdo
semelhante ao do Código Epitácio Pessoa, em 1901.

Nos fins da década de1960 e início de 1970 (1968 a 1972), na Escolinha de Arte de São Paulo, co-
meçaram a ter lugar algumas experiências no sentido de relacionar os projetos de arte de classes de
crianças e adolescentes com o desenvolvimento dos processos mentais envolvidos na criatividade, ou
com a teoria fenomenológica da percepção ou ainda com o desenvolvimento da capacidade crítica ou
da abstração e também com a análise dos elementos do design.

O contextualismo social começou a orientar o ensino da arte especializada, podendo-se detectar in-
fluências de Paulo Freire.

A Escola de Arte Brasil (São Paulo), a Escolinha de Arte do Brasil (Rio de Janeiro), a Escolinha de
Arte de São Paulo, o Centro Educação e Arte (São Paulo) e o NAC – Núcleo de Arte e Cultura (Rio de
Janeiro) foram algumas escolas especializadas que tiveram ação multiplicadora nos fins da década de
1960, influenciando professores que iriam atuar ativamente nas escolas a partir de 1971.

A Reforma Educacional de 1971 tornou a educação artística disciplina obrigatória nos currículos de
1º e 2º graus, estabelecendo um novo conceito de ensino de arte: a prática da polivalência.

Segundo esta reforma, as artes plásticas, a música e as artes cênicas (teatro e dança) devem ser ensi-
nadas conjuntamente por um mesmo professor da 1ª à 8ª séries do 1ª grau.

Em 1973, foram criados os cursos de licenciatura em educação artística, com duração de dois anos
(licenciatura curta), para preparar estes professores polivalentes. Após este curso, o professor poderia
continuar seus estudos em direção à licenciatura plena, com habilitação específica em artes plásticas,
desenho, artes cênicas ou música. Educação Artística foi a nomenclatura que passou a designar o
ensino polivalente de artes plásticas, música e teatro.

Em 1977, o MEC, diante do estado de indigência do ensino da arte, criada pelo próprio MEC com
a adoção da Polivalência, criou o PRODIARTE – Programa de Desenvolvimento Integrado de Arte

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Educação – dirigido por Lúcia Valentim, cujo objetivo era integrar a cultura da comunidade com a
escola, estabelecendo convênios com órgãos estaduais e universidades. Nos inícios de 1979, 17 uni-
dades da Federação tinham iniciado a execução de projetos ligados ao PRODIARTE. Os programas
eram populistas e de pouca consistência, pretendiam promover o encontro entre o artesão e o aluno
e valorizar o artesão e a produção artística na escola, mas a comunidade não era envolvida. No fim, o
que o sistema queria era ter um professor por um custo menor.

Só em 1980 um encontro enfrentaria as questões políticas da Arte/Educação. Trata-se da Semana de


Arte e Ensino, que reuniu, no campus da Universidade de São Paulo, mais de 3.000 professores e re-
sultou na organização do Núcleo Pró Associação de Arte Educadores de São Paulo.

Estava São Paulo sob o domínio de um político de direita, Paulo Maluf, que, por tocar piano, mani-
pulava os Arte/Educadores, sugerindo que passassem o ano treinando seus alunos a cantar algumas
músicas para serem apresentadas em um coral de 10.000 crianças, por ele acompanhadas ao piano, no
Natal, num estádio de Futebol. Como prêmio, os professores que preparassem suas crianças teriam 5
pontos de acesso à carreira docente, quando um mestrado valia 10 pontos.

Os arte/educadores se revoltaram, mas a única associação de classe existente na época era a Sobrearte
(1970), considerada filial da International Society of Education through Art (1951), que não ajudou
os professores paulistas, pois, além de circunscrever sua ação, principalmente ao Rio de Janeiro, era
manipulada pela mulher de um político da ditadura. A única solução foi criar a Associação de Arte
Educadores de São Paulo, que, aliada à Associação de Corais, foi vitoriosa na sua primeira luta, conse-
guindo anular a promessa de maior salário para os professores que participassem do Coral do Maluf
no Estádio do Pacaembu. A festa aconteceu, mas ninguém saiu ganhando, dada a campanha crítica.
Desde então, grupos progressistas substituíram o termo Educação Artística por Arte Educação, usado
antes da ditadura pelos pioneiros das escolinhas de Arte.

8. PÓS-MODERNISMO: ABORDAGEM TRIANGULAR; ITERCULTURALISMO – 1980

A Semana de Arte e Ensino fortificou politicamente os Arte/Educadores, e, já em 81, foi criada, na


Pós-Graduação em Artes, a linha de pesquisa em Arte Educação na Universidade de São Paulo (USP),
constando de Doutorado, Mestrado e Especialização, com a orientação de Ana Mae Barbosa. Por 15
anos, a Pós-Graduação da USP foi a única do Brasil a formar Mestres e Doutores em Arte Educação.
Hoje há mais de 14 linhas de Pesquisa em Mestrados e Doutorados; a maioria criada por egressos da
USP. Para atender licenciaturas em Artes Visuais (quase 150), o número de vagas nas Pós-Graduações
ainda é insuficiente, criando-se um funil na formação dos arte/educadores.

É importante notar que não há nenhum Mestrado ou Doutorado autônomo em Arte Educação. Todos
os Mestrados e Doutorados são linhas de Pesquisa em Programas mais gerais em Artes Visuais e um
deles em Educação. Isto não parece um empecilho à consolidação teórica da área.

O desenvolvimento do Ensino da Arte no Brasil muito deve à pesquisa gerada nas pós-graduações. Para
dar um exemplo, direi que 80 pesquisas foram produzidas para mestrados e doutorados no Brasil, entre
1981 e 1993.14 Atualmente, são mais de quinhentas, produzidas em vários programas de outras áreas

14. Ver o livro Arte-Educação: leitura no subsolo. São Paulo: Editora Cortez, 2004.

41
Muitas destas pesquisas analisam problemas inter-relacionados com a Abordagem Triangular. No
Brasil, a ideia de antropofagia cultural nos fez analisar vários sistemas e ressistematizar o nosso, atra-
vés da Abordagem Triangular, a partir das condições estéticas e culturais da pós-modernidade e das
necessidades do país. A Pós-modernidade em Arte/Educação caracterizou-se pela entrada da ima-
gem, sua decodificação e interpretações na sala de aula, junto com a já conquistada expressividade;
também pela relação estabelecida entre o erudito e o popular, a arte local e a arte internacional e pela
atenção ao contexto por mais marginal que ele fosse.

A AT não é baseada em disciplinas, mas em ações; fazer-ler-contextualizar.

A Abordagem Triangular, também chamada de Proposta Triangular, começou a ser sistematizada em


1983, no Festival de Inverno de Campos de Jordão, São Paulo, e foi intensamente pesquisada entre
1987 e 1993, no Museu de Arte Contemporânea da USP e na Secretaria de Educação da Cidade de São
Paulo, quando Paulo Freire foi secretário de Educação.

A Abordagem Triangular é uma abordagem em processo, portanto, em contínua mudança, por ser uma
perspectiva cuja gênese epistemológica se alicerça em seu caráter essencialmente contextual, para o de-
senvolvimento da identidade cultural e da cognição/percepção. Depois de ser adotada por 20 anos por
muitos professores, por decisão própria, e não por imposição governamental, foi publicada uma pesqui-
sa intitulada Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais (Barbosa, Cunha, 2010), que
investigou seu uso da Educação Infantil à Universidade, incluindo várias dissertações a respeito.

Figura 3. A Negra. Discutida por alunos de


5° ano. Dois alunos (15 e 13 anos de idade)
acusaram a imagem de “preconceito expli-
cito” e deram diferentes respostas à pintura.
Tarsila do Amaral, 1923 MAC/USP.

42
Figura 4. Um aluno colocou a questão: Se você considerar esta
imagem de negritude preconceituosa, e realmente é, por que não
considera a imagem produzida por Tarsila também preconceitu-
osa? É porque ela é uma artista famosa?

Figura 5. Outro aluno de 15 anos, negro, respon-


deu graficamente a Tarsila, redimindo a negritu-
de da acusação, segundo ele, de pouca inteligên-
cia expressa por Tarsila.

Quando, em 1997, o Governo Federal, por pressões externas, estabeleceu os Parâmetros Curriculares
Nacionais, a Proposta Triangular foi a agenda escondida da área de Arte. Nesses Parâmetros foi des-
considerado todo o trabalho de revolução curricular em Artes que Paulo Freire desenvolveu quando
Secretário Municipal de Educação (89/90), com vasta equipe de consultores e avaliação permanente.
Os PCNs brasileiros, estabelecidos por um educador espanhol, deshistoricizam nossa experiência
educacional para se apresentarem como novidade e receita para a salvação da Educação Nacional. A
nomenclatura dos componentes da Abordagem Triangular, designados como Fazer Arte (ou Produ-
ção); Leitura da Obra ou do Campo de Sentido da Arte e Contextualização foi trocada para Produção,
Apreciação e Reflexão (da 1a a 4a séries) ou Produção, Apreciação e Contextualização (5a a 8a séries).
Infelizmente, os PCNs não surtiram efeito. Em 2015, os PCNs foram retirados do site do Ministério
da Educação. Não houve pesquisas que comprovassem sua eficácia. A disciplina de Arte continua
a ser obrigatória, mas vem sendo tratada como uma abstração e sua obrigatoriedade burlada pelas
escolas. Em 7 de abril de 2016, uma redefinição da Arte na Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
ressaltando sua materialidade, foi aprovada no Senado, tendo como relator e defensor o senador Cris-
tovam Buarque. Agora, são exigidas nominalmente e espero que materialmente: Artes Visuais, Dan-
ça, Música e Teatro na Escola Fundamental e Média. Mas uma nova base curricular que está sendo
estudada pela Fundação Lemann e MEC (provavelmente sob a influência da Stanford University)
ameaça retirar o status de disciplina das Artes e considerar Artes Visuais, Teatro, Dança e Música
como subcomponentes curriculares.

43
Os governos federais do Brasil, isto é, o Ministério da Educação, quer sejam de direita ou de esquer-
da, não importa de qual partido político, tratam as Artes sempre como uma excrescência que se tem
de eliminar (1986 a 1996), subjugada às outras disciplinas (2016), enfim, minimizar no currículo. O
MINC é que tem feito algo pelo ensino das Artes e quero aqui ressaltar o magnífico projeto dos Pon-
tos de Cultura, que ressignificaram a Arte/Educação. Os governos estaduais raras vezes tratam com
dignidade as Artes no currículo. Precisamos de defensores políticos, precisamos eleger deputados e
senadores que defendam o direito à arte na educação.

Apesar da equivocada política educacional dos governos que opta sempre em mimetizar os sistemas
educacionais que não dão certo na Europa e Estados Unidos, temos experiências de alta qualidade,
tanto na Escola Pública como na Escola Privada e, principalmente, nas ONGs que se ocupam dos
excluídos, graças a iniciativas pessoais de diretores, de professores e mesmo de artistas.

9. CULTURA VISUAL, ARTE E ECOLOGIA, EDUCAÇÃO EM MUSEUS

No Brasil, a Cultura Visual veio depois do Multiculturalismo e Interculturalismo, e foi sedimentada


por estes movimentos. Desde os anos 80 que a preocupação com a imagem produzida pelas dife-
rentes mídias começou a penetrar na Educação. As escolas de Comunicação criadas neste período
faziam a apologia da TV, do Rádio, do computador e da linguagem digital e influenciaram muito
o Ensino da Arte, especialmente na Escola de Comunicações e Artes da USP, que naquele tempo
era a única a ter um Mestrado e um Doutorado em Arte/Educação. Na ECA/USP, a crítica social e
política eram fortes componentes, especialmente no período de redemocratização após a Ditadura
Militar (anos 80), durante a luta contra o poder ilegalmente constituído. Já era uma prática usada
nas aulas de Arte analisar, criticamente, Revistas, jornais, programas de TV, além de produzir víde-
os e histórias em quadrinhos nas aulas de arte. A Cultura Visual já estava integrada na prática em
torno de 2005, quando um grupo começa a estudar em Barcelona e volta com a missão de implantar
a Cultura Visual nas Universidades e escolas Fundamentais, colocando-se contra a Arte/Educação.
O discurso de convencimento era baseado na destruição do passado. Aqueles que já praticavam a
Cultura Visual foram alijados por este grupo, mas continuaram adeptos e praticantes sem alarde
da Cultura Visual.

Figura 6. Colagem de
uma aluna de 14 anos
da Escolinha de Arte
de São Paulo. Depois
de examinar notícias
da semana em jornais e
revistas fez uma crítica
da situação destacando
prisões militarismo e
agressão, 1970.

44
Figura 7. A mesma
aluna criticando a
publicidade, 1970.

O Brasil é um país Pop. O carnaval é um documento de nossa identidade Pop. Jamais poderíamos
desprezar a Cultura Visual, mas continua a haver duas tendências: os que falam em Educação para
a Cultura Visual e os que falam de Educação para as Artes e Culturas Visuais. A diferença principal
é que os primeiros valorizam mais a imagem das mídias, desprezam o fazer artístico e, quando tra-
balham com Arte, só consideram a Arte Contemporânea. Os outros valorizam as Artes como a mais
importante produção humana, discutem a Arte de todos os tempos e de diferentes códigos culturais;
a escolha depende do contexto; usam diferentes métodos críticos e interpretativos e investem pensa-
mento crítico nas imagens de todos os meios de comunicação e expressão.

No século XXI, as tendências de Arte/Educação e Ecologia, Arte/Educação e Tecnologias Contem-


porâneas são muito bem inter-relacionadas no Brasil. O interesse pela arte educação em Museus
também é muito difundida entre os jovens.

Figura 8. Artista Otavio


Roth, em num projeto
sobre Arte e Ecologia,
com alunos de 5º ano
de escolas públicas, no
Museu de Arte Contem-
porânea da USP, 1991.

45
Figura 9. Arte/Educação
e Tecnologias Contem-
porâneas são muito
bem inter-relacionadas
no Brasil. O interesse
pela arte educação
em Museus também é
muito difundida entre os
jovens.

Pesquisas baseadas em Artes têm lugar, desde 1981, nos Mestrados e Doutorados em Artes Visuais,
inicialmente na Universidade de São Paulo, mas hoje em todas as Universidades brasileiras que têm
pós-graduação em Artes. Desde os anos 90 temos pesquisas baseadas em Arte na Educação (Art
Based Research in Art Education) na USP, através das teses e dissertações orientadas por Dulcília
Buitoni (aluna Letícia Viana) e Regina Machado (Dissertações de Ana Amália Barbosa, Maria Cris-
tina Pesci, etc). Eu diria que, do ponto de vista universitário, ousamos e avançamos, mas as pesquisas
acadêmicas dificilmente chegam à escola comum de crianças e adolescentes. Recentemente, foram
criados mestrados profissionalizantes para aqueles que já ensinam Artes e, talvez, através destes mes-
trados, as pesquisas se aproximem mais das salas de aula.

A Federação de Arte Educadores do Brasil, que reúne todas as Artes e profissionais de todos os níveis
de ensino, é muito ativa: faz Congressos todos os anos e vem trabalhando em colaboração com o
Comitê Latino Americano de Educação pela Arte da INSEA. Há outra Associação, a ANPAP (Asso-
ciação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas), criada em 1981, que tem um setor de Arte
Educação.

Há o projeto de criarmos os Arquivos Históricos de Arte Educação no Instituto de Estudos Brasileiros


na USP.

Contudo somente em três momentos da História do Ensino da Arte no Brasil, Desenho ou Artes
foram tão importantes quanto as outras disciplinas:
1. Reforma Rui Barbosa, que deu especial atenção e maior número de páginas ao ensino do
Desenho (1882-1883) do que às outras disciplinas;
2. Escola Nova, especialmente a Reforma Fernando de Azevedo, no Distrito Federal (Rio de
Janeiro), e Reforma de Minas Gerais (1927 -1930);
3. Reforma Curricular de Paulo Freire/ Mário Sérgio Cortella nas Escolas da Prefeitura de São
Paulo (1989 a 1993).

46
REFERÊNCIAS

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48
Vida artista, vida plena de sentido
Guilherme Castelo Branco

U m dos temas mais importantes dos últimos tempos, na filosofia francesa, gira em torno das
tecnologias ou artes da existência. O problema da beleza que pode ser criada pelos sujeitos, em suas
vidas, é tema recorrente. Os artistas, como sempre, foram os que levantaram a problematização sobre
como se construir uma vida bela, com grande antecipação, no século XIX. Oscar Wilde, Arthur Rim-
baud, Charles Baudelaire, são alguns artistas que trouxeram o tema para a Modernidade. Somente
muito depois é que o assunto entrou na pauta dos intelectuais e pensadores. Leitores sensíveis ao
mundo da arte, assim como teóricos em estética, e, acima de tudo, todos aqueles tocados pela arte
de viver, compreendem a importância do vínculo entre beleza e vida. Trata-se de uma questão que
inquieta a muitos, pois é um tema possível para toda pessoa, mulher ou homem, capaz de exercício
ético e de uma verdadeira construção subjetiva.

Vejamos uma das passagens onde tal inquietação está claramente indicada, num texto de Michel
Foucault:

[...] o que me surpreende é que em nossa sociedade a arte esteja relacionada apenas aos objetos e
nunca aos indivíduos e à vida; e, também, que a arte esteja num domínio especializado, o dos experts
que são artistas. Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma
casa são objetos de arte, mas não as nossas vidas? (FOUCAULT, 1994, p. 617).

Não se trata da arte como posse de objetos considerados belos, mas da arte como vida, enquanto uma
estética da existência.

A estética da existência, deste modo, pode ser definida como a resposta teórico-prática à pergunta
sobre a beleza a se dar à vida, à própria existência, em especial se levamos em consideração que ela
tem como cenário a atualidade e formas de vida recentes15. O mundo que nos cerca não é, exatamente,

15. No A Hermenêutica do sujeito, Foucault lembra que a filosofia, a partir do século XIX, retorna à questão do cuidado de si como modo
de praticar a filosofia na qual o sujeito é parte inerente ao próprio processo de constituição da ética. Entre o Renascimento, período no qual
a estética da existência foi objeto de preocupação efetiva de certos grupos, e o século XVI (ou a Idade Clássica), houve uma ruptura de tal
ordem que a subjetividade deixa de ser questão, pois na Idade Clássica existe apenas o sujeito do conhecimento , que tem por finalidade
a verdade e a ciência. O sujeito, como pessoa a se perguntar sobre si mesma, passa séculos sem ser objeto de inquietação e interrogação,
deixando de ser elidido como o foi no cartesianismo apenas há dois séculos. Mas agora somos mais produtores e consumidores do que
sujeitos. Ver a aula de 6 de janeiro de 1982 deste livro.

49
um tempo que incentiva de formas de vida rebeldes e indóceis; pelo contrário, incentiva formas de
vida conformadas e acomodadas.

O ponto de partida da problematização moral dos gregos a respeito da estética tem origem na anti-
guidade, mas não pode ser utilizada tal qual no mundo contemporâneo:

[...] dentre as invenções culturais da humanidade, há todo um tesouro de procedimentos, técni-


cas, idéias, mecanismos, que não podem ser, verdadeiramente, reativadas, mas que podem ajudar a
constituir uma espécie de ponto de vista que pode ser útil para analisar e transformar o que se passa
conosco na atualidade. [...] Nós não temos que escolher entre nosso mundo e o mundo grego. Mas,
uma vez que podemos observar que alguns dos grandes princípios morais de nossa moral foram
vinculados, num determinado momento, a uma estética da existência, creio que este tipo de análise
pode ser útil. (FOUCAULT, 1994, p. 616-617).

O passado nada mais pode ser que um incentivo, à distância, do que é possível no presente.

Por outro lado, temos que deixar de pensar que a estética da existência se limita a ser um aspecto do
cuidado de si, que propõe a cada um de nós cuidar de seu mundo particular e de sua vida pessoal
de forma moralista e encerrada em si mesma. A estética da existência comporta arestas, é produto
de conflitos, faz-se por contrapontos e pequenos combates e superação de desafios e, restrições,
constrangimentos. A tal ponto que o filósofo francês afirma, não sem certo tom de provocação, no
que se refere à sexualidade, por exemplo, que “de certo modo, viu-se a mesma coisa no século XX,
quando as pessoas, para terem uma vida mais bela e exuberante, procuraram se desembaraçar dos
constrangimentos sexuais que lhes eram impostos pela sociedade. Na Grécia, Gide seria tido como
um filósofo austero” (FOUCAULT, 1994, p. 616). Foucault, decididamente, toma partido pela ver-
são mais corrosiva e libertária do “cuidado de si”, pela qual um indivíduo (como Gide) se fabrica
e resiste às práticas hegemônicas de poder, a partir de uma criteriosa intuição ou reflexão sobre os
desafios abertos pelo tempo presente, entrando sempre em luta com os poderes hegemônicos, que
sempre nos fornece formas de vida, modos de pensar e benefícios pela obediência e bom compor-
tamento.

Praticar a vida artista é participar das lutas que visam à defesa da liberdade. O campo desses afronta-
mentos e resistências ao poder são as lutas contra a dominação (étnicas, sociais, religiosas), as lutas
contra as formas de exploração (que separam o indivíduo do que ele produz), e, finalmente, as lutas
que levantam a questão do estatuto do indivíduo. No rol das lutas em torno do estatuto do indivíduo
estão as lutas contra o assujeitamento16, assim como as diversas lutas contra as diversas formas de
submissão da subjetividade. Este último campo de resistência tem relevância, devido às muitas possi-
bilidades de êxito, em função da multiplicidade de formas possíveis e de estratégias de ação que pode
assumir. As lutas que discutem a questão do estatuto do indivíduo são bem mais radicais e criativas,
do ponto de vista estratégico, que as outras formas de luta.

16. Prefiro a tradução ‘assujeitamento’, ao invés de ‘sujeitamento’, por estar mais de acordo com o pensamento agonístico de Foucault. A as-
sujeitamento consiste num exercício de controle da subjetividade que constitui a própria individualidade, como uma subjetividade voltada
para ela mesma e isolada dos outros (como se isto fosse possível).

50
As lutas em torno do estatuto do indivíduo têm dois objetivos interdependentes: primeiro ponto,
“afirmam o direito à diferença e apóiam tudo o que pode tornar os indivíduos verdadeiramente indi-
viduais”. Segundo ponto, são “contrárias a tudo o que pode isolar o indivíduo, separá-lo dos outros,
cindir a vida comunitária, constranger o indivíduo a dobrar-se sobre si e amarrá-lo à sua própria
identidade” (FOUCAULT, 1994, p. 226-227). Toda luta pela autonomia consiste num processo inicia-
do na subjetividade, mas que não termina na esfera subjetiva. A luta pela autonomia do indivíduo não
o conduz, em nenhuma hipótese, ao individualismo, ou seja, não o leva a uma forma de vida voltada
para si e para seu mundo próximo, íntimo e familiar (no sentido da moralidade burguesa). O pro-
cesso de singularização somente tem sentido quando culmina na superação do individualismo, me-
diante uma nova aliança do indivíduo com novas formas de vida e com novos vínculos comunitários.
Não devemos considerar que o indivíduo, com seu mundo ‘familiar’ e meu ‘meio vital’, seja o vetor
principal das resistências ao poder. Pois a resistência iniciada na subjetividade se prolonga no mundo
social, e é tarefa constante criar e recriar novas experiências, tanto pessoais quanto comunitárias.

A recusa das formas de subjetividade que nos foram impostas se converte, assim, numa questão po-
lítica de real densidade: temos que procurar elaborar formas de vida livres e autônomas dentro de
sistemas sócio-políticos que trabalham incessantemente para submeter às pessoas a práticas divisó-
rias, disciplinares, individualizantes, normalizadoras, com o auxílio de técnicas e de conhecimentos
científicos, e com o apoio de um conjunto de técnicas de controle

A estética da existência não poderia ser um modo de vida marcado pela arte e numa vocação sub-
jetiva e individual, como se fosse resultado de um talento e genialidade do qual o artista é portador
iluminado, como se a arte fosse vocação pessoal de certos indivíduos raros e especiais.

Ora, educamos a sensibilidade, podemos cuidar de nós mesmos e dos demais quando recebemos
uma educação que ensina e sensibilidade e a construção subjetiva, num processo que nunca tem fim.
Quem se aventura nesta senda, realiza uma vida plena de sentido. A caminhada ao longo da existência
é que dá o valor do trabalho de produção da estética da existência e da vida plena. A vida plena não
está na juventude, na maturidade nem na velhice, mas na totalidade de uma vida inquieta pela sua
beleza e pela plenitude. É ao longo do processo de vida que se revela o cuidado com a educação, de si
próprio e dos outros, que nunca cessa nem deve cessar.

A arte-educação, neste particular, é um importante instrumento de iniciação e aprofundamento na


árdua tarefa de sensibilização para a arte e para o sentido das coisas. Seu trabalho é crucial, pois se de-
dica a muitas pessoas, de todas as faixas etárias, e podemos aprender seu significado pelo pensamento
e pelo exemplo de luta, como a de Ana Mae Barbosa, que ocupa lugar de Mestria no ensino no trato
com as coisas belas, sabendo que se trata de um processo cheio de barreiras a serem ultrapassados.

A atitude pela qual nos tornamos artífices da beleza de nossa própria vida, leva a um estilo de vida de
alcance comunitário, e consiste num modo de vida “artista”, realizável por todo aquele que seja capaz
de questionamento ético e que seja realizador de uma atitude de modernidade. Segundo Foucault,

[...] o prazer por si pode perfeitamente assumir uma forma cultural, como o prazer pela música. E
deve-se compreender que trata-se, nesse caso, de alguma coisa muito diferente do que considera-se

51
interesse ou egoísmo. Seria interessante verificar como, no século XVIII e XIX, toda uma moral do
“interesse” foi proposta e inculcada na classe burguesa – por oposição, sem dúvida a todas as artes
de si mesmo que poder-se-iam encontrar nos meios artístico-críticos; a vida “artista”, “o dandismo”,
constituíam outras estéticas da existência opostas às técnicas de si que eram características da cultura
burguesa. (FOUCAULT, 1994, p. 629).

A estética de si representa a antítese do individualismo burguês obcecado pela segurança, defesa da


propriedade, previdência social, vida confortável dos membros da família; na verdade, a estética da
existência é uma moral compartilhada por toda uma comunidade desvinculada da moral do “inte-
resse” existente na sociedade burguesa. A estética da existência, considerada deste ponto de vista,
implica em valores e formas de vida criativos, solidários, generosos e ousados, nos limites possíveis
da experimentação histórica.

Foucault acrescenta:

[...] eu evoquei, há pouco, a vida “artista”, que teve uma importância tão grande no século XIX.
Poder-se-ia também considerar a Revolução, não apenas como um projeto político, mas como um
estilo, um modo de existência com sua estética própria, seu ascetismo, formas particulares de relação
consigo mesmo e com os outros. (FOUCAULT, 1994, p. 629).

A estética da existência pode e deve ser compreendida como um dos modos possíveis de realização
estilística da liberdade, podendo ter até mesmo caráter revolucionário, no melhor sentido kantiano. É
a noção de política e de universo político que se transforma, e cabe aos indivíduos e aos grupos sociais
a invenção de novas formas de atuação política. As experiências política dos anos sessenta e setenta,
quando proliferaram movimentos políticos não programáticos, como os das prisões, ecológicos, em
defesa da liberdade sexual, etc, são marcantes pelo seu enorme poder de contaminação, pelo poder de
modificação do comportamento e do pensamento das pessoas.

Os novos movimentos libertários, na medida em que estão voltados para a vida cotidiana, para a ex-
perimentação e criação, realizam a atitude de modernidade, que poderia ser resumida assim:

[...] um modo de relação com a atualidade; uma escolha voluntária feita por alguns; enfim, uma
maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo,
caracteriza um pertencimento e se apresenta como uma tarefa. (FOUCAULT, 1994, p. 568).

A atitude de modernidade se mostra particularmente importante num mundo no qual controle e


liberdade estão numa tensão agonística incessante, exigindo, portanto, respostas-limite ou atitudes-
-limite, incompletas e abertas ao porvir. O caráter fugaz da atitude de modernidade tem como exem-
plo Charles Baudelaire, que em razão de sua vida, por sua obra, e também devido a seu modo de
enxergar as coisas. Baudelaire é percebido como um sujeito ético que pôde dar um estilo ou forma à
sua vida, como alertou Nietzsche, “ao preço de uma lenta preparação e de um trabalho cotidiano” 17,
em conformidade com os desafios de seu tempo.

17. Vide Gaia Ciência, aforismo 290.

52
Os motivos para esta homenagem a Baudelaire são os seguintes, em poucas palavras: a) existe em
Baudelaire uma postura que supera a aceitação da modernidade como se ela fosse tão somente uma
ruptura com a tradição, e, consequentemente, consistisse no acatamento das tendências e gostos de
um certo tempo; na verdade, há uma distância real entre uma e outra: a atitude de modernidade
busca apreender algo de durável no tempo, enquanto que a moda é tão somente uma forma de seguir
tendências momentâneas; b) a atitude de modernidade, por outro lado, não visa a uma sacralização e
perpetuação do presente. A atenção com o presente não se resume ao ato de colecionar fatos pitores-
cos e interessantes apreendidos por uma curiosidade sem critério. O homem da modernidade difere
do homem mundano e curioso, porque sua atenção pelo presente está a serviço de uma imaginação
ativa que não visa a aniquilar a realidade, mas a captá-la no que ela é, sob uma forma irônica e não-
-conformada. O que entra em cena, neste particular, é o trabalho de transfiguração do real através da
articulação da verdade do real com o exercício da liberdade. Assim, “a modernidade baudelairiana
é um exercício no qual a extrema atenção com o real é confrontada com a prática de uma liberda-
de que, ao mesmo tempo, respeita o real e o viola” (FOUCAULT, 1994, p. 570); c) segundo o poeta
francês, a modernidade não acontece tão somente como uma forma de se relacionar com as coisas e
com o mundo; ela é, sobretudo, um modo especial de relacionamento do indivíduo consigo mesmo,
o que exige que se faça um ascetismo e um complexo modo de elaboração de si, sob a modalidade
da doutrina da elegância de Baudelaire, que culmina no dandismo, com suas severas regras estéticas.
Segundo Baudelaire, o homem moderno não é aquele em sai em busca de suas verdades intrínsecas
e de seu ser próprio, mas é aquele que se constitui e se inventa jogando com o seu tempo e com sua
subjetividade; e d) o lugar de realização da modernidade não se dá na conformidade com as regras
morais e com os códigos políticos; seu locus é a invenção, a elaboração de outro(s) modo(s) de vida,
dentre os quais os que ligam a arte com a existência.

Aprendemos, com o exemplo de Baudelaire ou Rimbaud, que a redução do problema da arte à política
é um dos temas mais empobrecedores da discussão e do fazer estéticos. As formas instituídas e oficiais
de ação política, em especial aquelas decorrentes da política partidária, ensinaram que a arte não
pode depender da política. A vida política do século XX, com suas repercussões no campo da arte,
revelou-se verdadeiramente estéril no processo de transformação do enorme campo de tensão em
jogo no mundo contemporâneo: fazer depender a arte de posicionamentos políticos consiste numa
abdicação da liberdade e da autonomia da arte e do pensamento. Toda manifestação estética vinda
de alguma corrente política, pouco importa sua vertente, sempre resultou em expressões artísticas
muito medíocres. Que a atividade artística resulte na renovação tanto do campo perceptivo quanto
do mundo vital, eis um fato inegável.

A vida é o lugar da frágil e fugaz experiência humana. Mudar a si e ao mundo, na experiência da arte,
resulta da crença de que é possível o porvir e a invenção de novas formas de vida. Quem se inventa
desenha o momento futuro e vai construindo seu próprio espaço de humanidade. A vida é o ponto
de partida e o objetivo da arte humana. Como diz a poeta Liane dos Santos, falando do percurso da
vida, ‘O ouro está na travessia’.

Situar a própria vida como foco de resistência à sociedade de controle, recusar-se a ter uma vida inex-
pressiva e sem sentido, é criar uma vida outra, inventar novas sensibilidades, tornar-se sempre um
artífice de experimentações que resultam numa vida plena de sentido.

53
REFERÊNCIAS

CASTELO BRANCO, Guilherme. Estética da existência, resistência ao poder. In: Exagium, Ouro Preto: UFOP,
v. 8, 2008.
______. A prisão interior. In: Kafka, Foucault: sem medos. (Org.) PASSETTI, Edson. São Paulo: Ateliê Editorial,
2004.
______. O intolerável. In: A tolerância e o intempestivo. (Org.) PASSETTI, Edson; OLIVEIRA, Salete. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2005.
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, 4 vols.
NIETZSCHE, Friedrich. Le gai savoir. Paris: Gallimard, 1989

54
As práticas artísticas na educação
e a convivialidade entre diferentes:
desafios para uma ecologia aprendente
António Ângelo Vasconcelos

Todas as culturas se cruzam uma com outra;


nenhuma é individual e pura, todas são híbridas.
Edward Said

Sem um tu não pode haver um eu.


Paulo Ribeiro

As artes alargam a possibilidade de interculturalidade, ou seja,


de trabalhar diferentes códigos culturais.
Ana Mae Barbosa

A s práticas artísticas na educação se caracterizam por serem campos compósitos, complexos e re-
ticulares situados no cruzamento entre os mundos da educação e da formação e os mundos das artes
e da cultura. Esta dupla referencialidade abrange modalidades, territórios e finalidades diferenciadas
e fragmentadas, qualquer que seja o plano em que se exerça bem, como os tipos de saberes que mobi-
liza. Por outro lado, a aprendizagem não se joga apenas nos espaços e nos tempos da escola, mas em
territórios multipolares em que interagem uma diversidade de atores públicos, privados e do terceiro
sector (locais, nacionais e internacionais), em redes diferenciadas de sentidos e onde se confrontam e
complementam olhares, saberes e experiências.

Por outro lado, as artes são objecto de grande fascínio em diferentes tipos de culturas e comunidades.
Para além do fascínio, as artes em geral e as artes performativas em particular, apelam, por um lado,
a diferentes tipos de mundos, criatividades, artisticidades, técnicas e emocionalidades e, por outro,
trabalham com dimensões aparentemente paradoxais, como por exemplo, ordem e desordem, cogni-
tivo e emocional, conhecido e desconhecido. Estas características se afiguram como elementos estra-
tégicos, possibilitadores de reconfigurações identitárias, individuais e colectivas, que incrementam as
relações com diferentes tipos de saberes e conhecimentos, com diferentes tipos de comunidades de
sentidos, com diferentes modos de ver e de fazer. Como salienta Ana Mae Barbosa (2016),

[...] as artes alargam a possibilidade de interculturalidade, ou seja, de trabalhar diferentes códigos


culturais. A escola deve trabalhar com diversos códigos, não só com o europeu e o norte-americano
branco, mas com o indígena, o africano e o asiático. Ao tomar contato com essas diferenças, o aluno

55
flexibiliza suas percepções visuais e quebra preconceitos. [...] Na arte, [as crianças, os jovens, os adul-
tos] podem ousar sem medo, explorar, experimentar e revelar novas capacidades.

Ora, num tempo em que existem múltiplas formas de colonialismo, em que a economia, a tecnocracia
e a competitividade predominam sobre todas as outras formas de saber, de ver e de organizar o mun-
do, em que se procura pensar a educação com uma mera função de instrução e pensar escola como
modelagem para o viver na designada sociedade competitiva, importa reolhar para as práticas artísti-
cas na educação, reolhar para a escola, reolhar para os saberes experienciais e para os conhecimentos
não hegemónicos, numa certa atitude de resistência às lógicas dominantes.

Inserida numa perspectiva de uma “razão cosmopolita” (SANTOS, 2002), esta reflexão parte dos
mundos da música e não pretende identificar novas totalidades ou grandes narrativas. Pelo contrário:
a proliferação de mundos artísticos, culturais e sociais requer uma intensificação da reflexão crítica
e da consciência histórica, cultural e social dos fenómenos artísticos e educativos que interpelem as
práticas artísticas na educação e que contribuam para a construção de um senso comum pós-colonial,
contrapondo às ideias dominantes de deslocalização, hierarquização, hegemonia e fragmentação uma
outra narrativa assente na territorialização, nos “localismos cosmopolitas” e na importância das in-
terdependências colaborativas entre os mundos da educação, das artes e da cultura, entre diferentes
mundos sociais, de modo a corporizar uma formação baseada na convivialidade entre diferentes, na
assunção de “lógicas diferenciadoras como formas de construção de igualdades”, de “singularidades
diferentemente articuladas” que potenciem o desenvolvimento de uma sociedade mais culta e plural.
Sociedade mais culta e plural em que, como refere Boaventura Sousa Santos “temos o direito de ser
iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa
igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de
uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”18.

18. SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o
cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 56

56
Estilhaços pós-coloniais:
a institucionalidade da cultura
como vetor de desenvolvimento
Célio Rodrigues de Lima Pontes

O vínculo entre cultura e desenvolvimento


é válido por seu modo de construir cidadania.
Juntamente com os direitos econômicos das empresas
é preciso considerar os direitos culturais dos cidadãos.
Néstor García Canclini

A CULTURA EM MOVIMENTO CONTRA-HEGEMÔNICO

As intensas transformações definidoras de saltos históricos na lógica do pensamento ocidental no


século 19, ainda que propulsoras de amplo sistema de conhecimento acumulado, projetam para a
atualidade contornos variados, ao tempo que expõem as contradições contemporâneas, parecem esti-
lhaçar alicerces intensamente construídos no século 20. Segundo afirma Michel Maffesoli, sociólogo
pesquisador do cotidiano, a sociedade atual está saturada, especialmente todo o pensamento sobre o
social e o cultural: “Quer-se evitar reconhecer que as pedras fundamentais da arquitetônica ocidental
ou Moderna - Indivíduo, Razão, Economia, Progressos - estão saturados” (MAFFESOLI, 2010).

Dentre tantos estilhaços pós-modernos, expressivos reflexos são atributos cambiáveis, que se tradu-
zem em intensas mudanças na socialização dos indivíduos e suas relações com tradicionais lócus de
fruição, pertencimento e formação estética. São tempos nos quais profundas mudanças e acesso ex-
ponencial à informação ressignificam identidades, fortemente impactadas por ambientes virtualiza-
dos e com expressivo apelo visual. Paradoxalmente, a sociedade contemporânea busca nesse contexto
de excesso de informações o conhecimento através de experiências imersivas, especialmente as que
dialogam com dispositivos hipertextuais, sensoriais e intuitivos.

Diante da profusão de papéis intersubjetivos que a cultura parece alcançar, há que se voltar especial
atenção para as novas demandas por conhecimento, atualmente tão fragmentado, mas ao mesmo
tempo propulsor de possíveis encantamentos cognitivos formais, como bem lembra Pierre Bourdieu:

Contra ideologia carismática segundo a qual os gostos, em matéria de cultura legítima, são consi-
derados um dom da natureza, a observação científica mostra que as práticas culturais (frequência
dos museus, concertos, exposições, leituras, etc.) e as preferências em matéria de literatura, pintura

57
ou música, estão estreitamente associadas ao nível de instrução e, secundariamente, à origem social.
(BOURDIEU, 1979).

É, portanto, na deferência à memória coletiva historicamente constituída, que se lançam as sementes


para os lastros constituintes de novas abordagens e experiências exitosas no campo cultural, cada vez
mais reflexo do complexo tecido social e sua demanda por capital cultural.

POLÍTICAS CULTURAIS EM PROSPECÇÃO

Refletindo sobre cenários de desenvolvimento econômico projetado para as próximas décadas no


Brasil e sobre o papel das políticas culturais no recente contexto histórico, é possível vislumbrar obs-
táculos que pautam avanços estruturadores para o setor, bem como desafios para a delimitação do
campo de trabalho em Gestão Cultural.

Com a redemocratização, os reflexos que reorganizaram as expressões culturais projetam, a partir da


década de 80, o conceito de políticas públicas para a cultura com ênfase nos modelos de mecenato via
renúncia fiscal. Apesar de aparentes efeitos perversos da subvenção, seu foco principal foi definido a
partir do estímulo à produção de bens culturais.

Já no âmbito da difusão e distribuição, também é possível identificar investimentos em novos equipa-


mentos culturais, com aportes públicos e privados para recuperação e abertura de novos espaços de
convívio cultural.

Atualmente, emergem outras demandas igualmente relevantes para o desenvolvimento da atividade


cultural e sua perenidade. Inicialmente, o desafio de garantir a manutenção continuada dos ativos
culturais, com a infraestrutura que garanta a qualidade da difusão e da prestação de serviços mais
complexos. Noutra frente, a necessidade de formação e profissionalização se impõem, especialmente,
por sua transversalidade ao universo cultural, pois são demandas fundamentais, presentes desde os
arranjos produtivos espontâneos, passando pelos mecanismos de distribuição até uma fruição mais
qualificada, exigente e diversificada.

Nenhum setor produtivo, desenvolve-se, plenamente, sem investimentos, na formação profissional, so-
bretudo o campo cultural, cujo elevado capital humano transversalisado contribui para que as ativida-
des se firmem com significativa participação nos processos que engendram o desenvolvimento social.

O campo de trabalho dos setores culturais no Brasil demonstra expressiva capacidade de crescimento,
conforme base de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS/IPEA), mostrando que “o
setor cultural é importante, dinâmico e que tem potencial ainda não sistematicamente explorado para
a geração de empregos, renda e bens simbólicos importantes”. De outro modo, segundo análise da
pesquisadora Ana Carla Fonseca Reis, diante de aparente potência, há que se superarem as desigual-
dades regionais, caracterizada, ainda, por elevada concentração (Reis, 2007, p. 89):

As regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo respondiam por 39% dos postos de
trabalho formais (frente a 25,5% da economia). Esse dado não chega a surpreender, posto que 98%

58
dos empregos formais analisados compõem a indústria cultural, fortemente concentrada nas duas
metrópoles.

Por sua abrangência, e considerando a urgência de investimentos estruturadores no país, é premente,


também, ampliar e distribuir a capacidade instalada da produção cultural. Há que se pesquisar, sis-
tematicamente, planejar e definir indicadores, além de democratizar ainda mais o acesso e incluir o
cidadão comum em construções coletivas, conforme afirma Martinell (2014, p. 3):

Os processos de democratização, a descentralização do Estado e o desenvolvimento de um mercado


cultural, produziu um crescimento significativo de profissionais tanto no setor público, o mais im-
portante, como em outros âmbitos dos agentes culturais que interferem no campo cultural.

As necessárias utopias, traduzidas em avanços do setor cultural, permitem definir lastros mais qua-
litativos para a sociedade: como perseguir uma educação holística; que contribua com a elevação
do bem-estar e melhoria da saúde coletiva; na segurança pública, e em outras tantas externalidades
positivas. Quanto mais clara for a percepção do papel estratégico da Cultura no desenvolvimento do
país, mais obstáculos estruturais devem ser superados. E um dos principais estrangulamentos intra-
setoriais passa por uma formação cultural abrangente, e em sintonia com os atributos que tentam
definir a contemporaneidade.

Os valores transitórios, fugidios e efêmeros que caracterizam a sociedade pós-colonial definem


um complexo universo de ressignificações culturais. Os pressupostos defendidos pelo antropólogo
David Harvey na publicação “Condição Pós-moderna”, revelam a mudança de comportamento do
público, especialmente, nos últimos trinta anos, mostrando que a dinâmica cultural deve dialo-
gar, não somente com a universalidade acumulada das linguagens artísticas, mas também, buscar
aproximá-las e compreendê-las diante dos novos paradigmas, especialmente no que diz respeito ao
enclausuramento das relações virtuais e ao advento das novas tecnologias de fruição, como constata
o sociólogo João Teixeira Lopes:

A nossa matriz civilizacional encaminha-se cada vez mais para espaços fantasmagóricos, desligados
da relação de co-presença e fortemente orientados para uma comunicação a distância ou para a re-
cepção mais ou menos passiva face a um longínquo emissor.

Dessa forma, as relações sociais com base na apreciação artística foram paulatinamente enquadradas
segundo o movimento de ascensão das indústrias culturais, como a distribuição cinematográfica,
televisiva, fonográfica. Expressões artísticas performáticas, especialmente no campo das Artes Cêni-
cas, que prescindem de contato simultâneo entre o artista e o apreciador, perseguem, no contexto da
Economia da Cultura, as condições vitais à sua sustentabilidade. Tal fragilidade aponta para contor-
nos variados na formação da demanda por Cultura, pois espaços tradicionais de fruição estão sendo
estilhaçados e ressignificados a partir das contradições contemporâneas.

Um meio ambiente cultural virtuoso, que inicia com a formação especializada de gestores, pesquisa-
dores, produtores, artistas e técnicos das cadeias criativas, deve contribuir para um ciclo de desejável
sustentabilidade nas próximas décadas, pois são os desafios do presente traduzidos na construção de
uma sociedade que se reconhece por complexos e dinâmicos elos culturais.

59
Partindo do pressuposto de que o desejado desenvolvimento sustentável é, paulatinamente, incorpo-
rado nas mais variadas retóricas que pautam as plataformas governamentais Brasil afora, fica evidente
o descompasso entre o discurso e a práxis. Sofismas à parte, enquanto o poluído mundo desenvolvido
ainda lidera tal fórum dito verde, cujo empenho se traduz num crescente movimento de desindus-
trialização e com investimentos crescentes em commodities com elevado valor agregado, paradoxal-
mente, os países ditos em desenvolvimento, perseguem, num contexto pós-industrial, o crescimento
econômico ortodoxo. Nesse contexto, o investimento público prioriza um modelo econômico que
torna a vida nas cidades cada vez mais imprópria à qualidade de vida.

O cenário de subdesenvolvimento dá o tom de programas e plataformas políticas, que ainda carecem


de estratégias que avancem para além das metas de um crescimento econômico tardio. É premente in-
tegrar ações das diferentes políticas setoriais, cada vez mais refém de aparelhamentos ideológicos que
impedem ações sistêmicas de diferentes programas setoriais para a formação de um quadro mais amplo
de política de desenvolvimento, conforme analisa a economista Ana Carla Fonseca Reis (2007, p.227):

Nossos poderes públicos têm dado ênfase, mais ou menos retórica, ao combate às causas do subde-
senvolvimento, voltado à erradicação da miséria e da pobreza. Entendido como tal, o subdesenvol-
vimento discutido nada mais é do que a ponta do iceberg. Não se resolve a questão da pobreza sem
erradicar os problemas que a sustentam.

Subdesenvolvimento é também o cerceamento das liberdades de escolha, da concentração de in-


formações, como também da incapacidade de participação social, que entorpece o direito a exigir e
agrava o fosso da exclusão e da capacidade de refletir identitariamente.

De uma maneira geral, as plataformas de governo ainda carecem de processo de planejamento que
integrem os diversos vetores que garantam as “boas intenções” expressas nas políticas públicas, espe-
cialmente, incluir de forma estratégica a Cultura como amálgama relevante nas conquistas e desejada
sustentabilidade econômica, que se converta em elevação do capital cultural e promova o bem-estar
das pessoas.

A tradição brasileira de um Estado interventor na economia da cultura vai cedendo espaço para um
Estado regulador e controlador, que monitora e define os mecanismos que devem seguir a iniciativa
privada, que respondem às influências de ações globais. Tal miopia impossibilita a percepção de cus-
tos de oportunidades inerentes à economia da cultura, segundo Ana Carla Fonseca Reis (2007, 173),
que evidencia, por exemplo, a elevação das taxas de emprego:

O investimento no setor cultural pode apresentar um custo de oportunidade mais interessante do


que o do resto da economia para elevar índices importantes, como o da taxa de ocupação. Na Espa-
nha, os empregos culturais cresceram 24% entre 1987 e 1994; na França 37% entre 1982 e 1990 ou dez
vezes mais do que o aumento da população trabalhadora no mesmo período.

Como se vê, além dos argumentos que justificam a integração econômica entre ativos culturais, so-
ciais, políticos e ambientais, há uma expressiva potencialidade que pauta a interferência pré-ativa do
Estado no mercado de produtos e serviços culturais: quais sejam a correção de falhas de mercado ou
na desigualdade de distribuição por exemplo.

60
Os governos precisam formular políticas culturais que se coloquem à serviço da cidade, como afirma
o pesquisador Xavier Greffe (2013, p. 312): “É lugar comum afirmar que as políticas culturais melho-
ram a imagem das cidades; reforçam a coesão social; provocam uma maior atenção, por parte dos
habitantes [...]”.

O potencial latente da Cultura como vetor transversal de desenvolvimento de políticas públicas ainda
não encontra eco nas esferas governamentais, pois persiste a ideia de Cultura como alegoria social,
ligada a um exotismo sem função prática. São concepções que partem do que há de mais superficial
em relação aos resultados invisíveis da Cultura como vetor de desenvolvimento econômico.

REFERÊNCIAS

GREFFE, Xavier. Arte e mercado. Trad. Ana Goldberger. São Paulo, Iluminuras: Itaú Cultural, 2013.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São
Paulo: Edições Loyola, 1993.
LOPES, João Teixeira. Os públicos do teatro e a inocência dos criadores. Observatório das Actividades Culturais,
Portugal, OBS nº 2, 1997.
MAFFESOLI, Michel. Saturação. Trad. Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010.
MARTINELL, Alfons. La gestión cultural: singularidad profesional y perspectivas de futuro. Girona/ES: Cátedra
Unesco de Políticas Culturales y Cooperación, 2014.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires, Argentina: CLAC-
SO, 2005. (Colección Sur Sur).
REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: O caleidoscópio da cultura. Ba-
rueri: Manole, 2007.

61
Colonialismo e pós-colonialismo:
o presente como um enigma
José Carlos de Paiva

[…] Os que permanecem e acenam, não sabem.


Paul Celan, Em viagem [1952] 19*

AGRADECIMENTO PÚBLICO

Este texto é escrito no reconhecimento do quanto Ana Mae Barbosa acrescentou ao esclarecimento da
veemente força da educação artística na difusão da irreverência da arte, na escola, na aprendizagem e
na construção do singular e do comum.

Considere-se, assim, como um singelo texto de pessoal agradecimento público, de aprendiz, pelo que
sua ação, sua determinação na luta face ao mundo fracassado em que vivemos, sua simpatia e dádiva
ao social, me proporcionaram.

Os tempos em que vivemos exigem investimentos e diversificações, coerências e competências so-


ciais e epistemológicas para que cada um seja construcional de sua ‘personalidade’ colectivizada e
que se conheça para que possa, nos Outros e nas Coisas, se reconhecer, quer nas similitudes, quer nas
diferenças e/ou nas divergências. (BARBOSA, 2008:36)

1. Viajar é Preciso…

Desloco-me frequentemente para os outros lados do mar, num percurso que transporta, inevitavel-
mente, o peso secular deste movimento repetidamente realizado ao longo dos séculos por fins diver-
sos e em conflito, por comerciantes e trafulhas, navegadores e aventureiros, missionários e senhores,
escravos e emigrantes, ilustres conhecidos e os sem-nome, gentes de bem e de mal.

Não me cansa esta demanda incessante de procura de modos diferenciados de me entender mais ple-
no, por deslocado de mim, retirado do conforto simulado que habito nesta desgastada Europa, para

19. * CELAN, Paul. Cristal. Trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 35.

62
o confronto do que se me é possibilitado, para o modo como me completo nestas deslocações, no
enriquecimento que a diferença e um outro/mesmo me apresentam e me possibilitam. Não se procura
um lugar do esquecimento, mas de evidência do fracasso e do otimismo sempre possível.

Toda a nossa história pensou e se pensou ‘após a tragédia’, seja para despedir a dita “tragédia”, seja
ao contrário para lamentá-la e para tentar reencontrar-lhe a verdade. Seguramente, devemos dizer
igualmente que assim como a tragédia a cidade pertence à mesma lógica e à mesma cronologia do
‘após’. Contudo, a chamada democracia nos parece ainda, para o bem ou para o mal, representar
um passo ganho sobre um passado sombrio e uma promessa de futuro, por mais que seja ainda
necessário um esforço para tornar a dita democracia digna de futuro. (NANCY,. 2013)

O mundo ocidental, no século XXI, desapareceu como promotor do desenvolvimento, e enquanto


referência de um sistema político democrático, esperança de um mundo progressivamente mais equi-
librado e ‘melhor’. Esta mudança dá-se em resultado do seu próprio fracasso, ainda que dissimulado,
gerado na ganância que produziu um sistema global onde o ‘mundo financeiro’, escondido e incóg-
nito, comanda, move governos e dita políticas, e desloca para fora de si as medidas-necessárias para
superar os cataclismos financeiros por eles próprios criados.

Na era da designada globalização, numa era em que é do interesse de algumas pessoas falar sobre a
globalização e celebrar os seus benefícios, provavelmente nunca na história da humanidade foram
tão grandes e tão espectaculares (porque o espectáculo é de facto mais facilmente ‘globalizável’) as
disparidades entre as sociedades humanas, as desigualdades sociais e económicas. BORRADORI
(2003, p. 196)

Os resultados são medidos na dimensão desmesurada dos excluídos, dos sem-emprego-e-sem-es-


perança, dos refugiados sem-espaço-e-sem-água, dos resíduos-sem-nome-e-sem-terra, dos novos-
-remediados sem esperança. São indicadores desesperantes para quem desacredita na inevitabilidade
do que é mostrado e constrói a sua percepção crítica perante as representações dominantes que mis-
tificam a realidade e lhes contrapõe a argúcia do pensamento livre e a prática agonística, e para quem
não se cansa de lutar por uma possibilidade de haver um aberto regenerador, instituínte de diferença
partilhada no comum, no tempo que há-de vir.

Era nem mais nem menos esta esperança de uma transformação do estado, de uma nova forma
de governo que viesse a permitir a cada membro da moderna sociedade igualitária tornar-se um
‘participante’ nos assuntos públicos, que foi enterrada nos fracassos das revoluções do século XX.
(ARENDT, 1965, p. 257)

Reconhecida hoje com facilidade a fragilidade da democracia e da liberdade, em particular por sec-
tores que assumem um pensamento crítico face à atualidade paradoxal onde mergulhamos, não se
desenharam ainda movimentos congregadores que contraponham ao exercício da crítica a acção
oposicionista que determinem um ‘comum’ onde se inscrevam os pobres e os ‘precários’, os excluídos
e os ‘indignados’, os saberes fundados na filosofia europeia e a cultura anticolonial, as epistemologias
do Sul e o ‘occupy’, as Primaveras acontecidas e por vir. Nenhuma procura de solução de simplicidade
se espera, mas o enfrentamento otimista do caso e do caos, como se de um enigma se tratasse. Um
enigma que procure entender a natureza do fracasso que a história do presente encerra, avivando na

63
memória o que terá de nos apoquentar em contínuo: as guerras mundiais e o Holocausto, Hiroshima,
a destruição do equilíbrio ecológico, a devastação da individualização, o logro da guerra do Iraque e
o embuste da Síria, as interferências constantes dos poderosos na vida de demasiados povos, o enco-
lhimento da terra da Palestina, os golpes de Estado, e por aí fora.

[…] o enigma é coincidência de contrários, concatenação de opostos, contato de divergentes e tam-


bém contrariedade de coincidentes, oposição de concatenados, divergência de coisas que estão em
contato entre si. (PERNIOLA, 1990, .p. 40)

Reconhece-se, no sublinhar do conceito de enigma, o uso do segredo como arma de chantagem,


tornando obscuro, escondido e secreto o que é mostrado e difundido, num esforço de tornar o sen-
tido impenetrável. Entende-se que a produção de pensamento, a procura de discernimento sobre a
encruzilhada dos tempos e a complexidade do atual, não está na revelação de um segredo, mesmo se
desdobrando a sua clarificação, mas a busca de explicação. “…o conhecimento não é simplesmente a
revelação de um segredo, nem a iluminação de algo obscuro, nem, enfim, a exposição de um conceito
dado a priori, mas o estender, o deslindar, o exprimir algo que está embrulhado, envolto, recolhido.”
(PERNIOLA, 1990, p. 24)

Um enigma provocando um movimento de pensamento sobre o que nos escapa e de acção radical
que reinvente a nossa grandeza e a nossa dignidade, que reanime e renove as lutas de sempre pelo
comum. Entender o presente como um enigma é reconhecer a urgência na sua interpretação, é buscar
o sentido que o passado lhe configura, é procurar o esclarecimento e a acção que o alimente, que o
redimensione num movimento persistente, continuado, sabendo-o sem fim.

2. O Fracasso como Conceito

O meu impulso para a viagem nada prolonga ou se alimenta de uma atitude flanner modernista, ou
corresponde ao desejo turístico de procurar a diferença e o exótico, nem sequer a um movimento de
avidez por uma qualquer globalidade ou desterritorialização, mas singularmente a uma atitude de busca
de entendimento do sentimento de fracasso que o mundo ocidental origina e incrustou em mim.

O fracasso que integra a atualidade, dissimulado mas visível e obsceno, decorre de modo diferenciado
em geografias onde o percurso histórico foi diferente, quer onde da independência e a auto-determi-
nação dos povos conseguida no decurso do século XX resultaram em cópias-apressadas das formas
de governo do mundo ocidental, desajustadas à sua própria complexidade e história, quer, noutro
sentido, onde se procuraram, e ainda se procuram, vias próprias, num caminho que se entreluza com
posturas agonísticas face aos valores hegemónicos do velho-mundo-ocidental.

A diversidade experienciada, certamente insuficiente, complexa e contraditória mas vivenciada e


Real, em particular em alguns países da América Latina, de África e do Oriente, emana a potência
da radicalidade que contrapõe ao poder hegemónico do capitalismo globalizado, colonizador por
ideologia, possibilidades de um outro pulsar democrático e do exercício conquistador de liberdade.

[…] Falhei em tudo. / Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. Álvaro de Campos
(Tabacaria, 1928)

64
A utilização neste texto do termo fracasso, que agora se sublinha, deve ser lido como um conceito
que verifica o descarrilamento dos sucessos societais desejados desde a fundação da polis na Época
Clássica da história ocidental e anunciados como previsíveis desde o Iluminismo, integrantes das
revoluções, das vitórias Constitucionais, e dos processos de independência dos Países em territórios
anteriormente colonizados. Os anseios positivos criados e alimentados, redundaram num estrondo-
so malogro perante o poder hegemónico da ganância dos que determinam o mundo financeiro e a
economia globalizada, desmembrando--se, produzindo ruínas e gerando um vazio silencioso. Ruínas
que nos cercam e sufocam o ar que se respira no presente.

A guerra matou 470 mil pessoas neste país nos últimos cinco anos. Repetimos: 470 mil pessoas.
Insistimos: 470 mil pessoas. Persistimos: 470 mil pessoas. Há países com menos população que 470
mil. (BENTO, 2016)

A evocação do fracasso como conceito, afasta as referências ao desenvolvimento do fracasso no cam-


po das procuras de eficácia do mundo empresarial, bem como as ligadas ao insucesso escolar e à
exclusão social, mas mobiliza num sentido mais filosófico o regresso da ideologia, onde se pretende
entendê-lo no terreno do político, onde se funde o pensamento com a acção, e assim, enquanto uma
falha ruinosa que torna evidente a percepção do vazio provocado pelo capitalismo e pelos dispositi-
vos de regulação que lhe são próprios e convoca um movimento de superação, um desejo de o enten-
der e evidenciar como propulsor de modos renovados de superação.

A ilusão prolongada, em demasiadas situações, da tentativa de atenuação dos exageros que se cometem
sem nenhum pudor pelo poder hegemónico, desgastam demasiado e provocam o amolecimento crítico.
Mesmo a simulação de interferência que o próprio sistema consente no seio dos dispositivos de po-
der formados para a reprodução e revitalização do sistema político estabelecido, embora desenvolvam
posturas críticas vigorosas e uma militância arguta, apenas as esgota, dificultando a compreensão da
necessidade de determinar uma atitude de inscrição agonística ao discurso crítico e uma acção de opo-
sição radical que reconhecendo o esgotamento da política e da ideologia com que o capitalismo sufoca o
otimismo, persistem na criação de perspectivas populares de possibilitar um outro exercício do comum.

Capitalismo e colonialismo, são sinónimos de sistemas de legitimação do poder de minorias e impe-


dimento de se desenhar uma desconhecida democracia radical, que possibilite um comum onde o ser
se exercita como ser-comum.

3. O Mundo como Fracasso

São tempos complexos e difíceis os deste início do século XXI, tempos múltiplos e encruzilhados que
obrigam a uma especial atenção, escuta e paragem perante o enigma que se coloca a quem reconhece
o fracasso do existente e tenta ver o escondido. Momentos de necessidade de agir ao encontro de uma
acção esclarecedora, à mobilização de uma disponibilidade plena do corpo e do juízo, perante o que
parece distante, o que se apresenta como distinto e que se sabe desconhecido.

Onde quer que se esteja, estaremos residentes neste mesmo tempo de encruzilhada, perante o des-
pudor e os horrores das desgraças longínquas, dos êxitos das estrelas e das façanhas impressionantes

65
dos nossos artistas, dos sorrisos-falsos-da-tv, dos Golpes e das golpadas corruptas, das falsidades e
dos populismos dos políticos-profissionais marionetes de interesses e zeladores dos seus interesses,
das procuras em Marte, do deslumbre da tecnologia, estaremos todos remetidos a um espaço, que se
expande desfronteirizando, mas igualmente simultâneo.

Poderemos, no entanto, estar empenhados em discernir o que nos é escondido, o outro lado do que
nos dizem os ‘especialistas’, a recusa da inevitabilidade anunciada deste sistema globalizado, a mentira
da apresentada capacidade de auto-ajustamento da maldade e dos exageros. Poderemos querer enten-
der uma língua que desconhecemos, colocar os saberes adquiridos em suspensão, revelar a infância
que tudo sabe ter de aprender, e sabe ter de ousar inventar.

Repetir, repetir — até ficar diferente. / Repetir é um dom do estilo.


Manoel de Barros, Uma didática da invenção (1994)20

Busca-se a possibilidade de ter desejos genuinamente pessoais e interesses próprios, isolados dos
discursos do ‘mercantilismo do consumo globalizado’ e resistentes aos ‘dispositivos de regulação’,
reclama-se o direito à improvisação, à plenitude da partilha, a fuga à repetição do mesmo, forja-se
uma capacidade de resposta e de convite à resignação.

4. Movimento Intercultural

As viagens são movimento, enfrentamento do enigma, consciência de uma ignorância que, só ela,
pode permitir a invenção, o desenho improvisado de possibilidades de um outro comum, não exclu-
dente mas popular, aberto e agonístico. Segue-se aqui o caminho dos que conferem ao conhecimento
a dimensão da consciência do seu limite face à sedução pelo poder assumir o saber como um poder
que prende a descoberta, tolhe o imprevisto, limita o enfrentamento do enigma, como se de um desa-
fio se tratasse, como uma infância. E provavelmente, assim, rota do encontro, da dádiva e da partilha.

[...] errante é o que não se conforma com um estado de coisas ou alguém para quem as coisas não
têm estado fixo, mas que busca interromper e tornar impossível a continuidade do que está sendo
[...] (KOHAN, 2013, p. 60)

Entenda-se a viagem aqui evocada enquanto a que exige a dúvida do adquirido, a suspensão do poder
que o conhecimento pode conferir e que gera o medo estéril do errar, retirando à viagem a errância
e a autenticidade do ‘não se saber onde chegar’. A viagem oposicionista ao móbil colonizador, como
um enigma propiciador de aprendizagens partilhadas, de procura de cumplicidade entre iguais de
subjetividades múltiplas.

Nas viagens que faço para fora de mim me entendo melhor e adquiro otimismo, perante os desafios
que são oferecidos. Perdi-me no olhar sem fim que as montanhas do Planalto Norte oferecem, na ilha
de Santo Antão, em Cabo Verde, compreendendo no seu silêncio o sentido da teimosia dos pastores
que habitam aquela terra árida e sem água, a perseverança com que lidam com o infortúnio das suas

20. In. Livro das Ignorãças. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p.11-12.

66
vidas e a abnegação que alimenta sua entrega colectiva e lenta a possibilidades desconhecidas, mas
tentadas insistentemente, dia a dia, na partilha do comum.

Tudo o que eu pudesse acrescentar seria apenas um prolongamento do meu próprio processo de
(re)aprendizagem da viagem como poesia. E resume-se numa frase: estou a reaprender a lentidão.
(BARRENTO, 2001, p. 77)

Vivi com a intimidade de militante anti-colonial a luta de libertação da Guiné Bissau durante o perío-
do da ditadura portuguesa, integrando o exército colonial, numa situação complexa de ambivalência
que me permitiu uma aproximação privilegiada com as fragilidades políticas de ocupação militar a
sua arrogância racista e depradadora e a crescente e consequente luta pela independência, a sabedoria
política de valorização da cultura e da educação dos militantes do PAIGC.

[...] Um desses muitos quartéis que os colonialistas portugueses foram pródigos em espalhar pelo
país, geralmente cercados de arame farpado, com minas em torno, e dentro dos quais se foram tor-
nando, cada vez mais, prisioneiros de si mesmos. (FREIRE, 1977, p. 60)

Tornei-me cúmplice das lutas pela dignidade da identidade negra e quilombola, pela posse colec-
tiva da terra da comunidade de Conceição das Crioulas, no sertão pernambucano e só aí aprendi
o sentido profundo e a dimensão de grandeza que o político confere a um ‘projecto político pe-
dagógico’, ao ‘ensino diferenciado’, nessa aridez da terra seca e nos abraços quentes de sua gente
reconheci a riqueza dos paladares do mundo, os sabores do Munguzá e os temperos da escrita de
João Guimarães Rosa, “As coisas mudam no devagar depressa dos tempos.”21

Entranhei-me na dificuldade em dimensionar a educação artística em Moçambique, partilhando


atos e conversas entre os estudantes, professores, artistas e ministérios, sabendo do erro que a ten-
tativa de deslocar soluções usadas no Ocidente de nada serviriam e que a cultura rica e latente se
esvai nessa caminhada. “A cultura africana não é única mas uma rede multicultural em contínua
construção. Os teóricos e analistas afligem-se com esta indefinição.” 22

Para o movimento é preciso aprender a reinventar as relações de comunicação inter-humanas e ele


busca uma forma de arte baseada num compromisso político, de caráter supranacional e que pro-
ponha uma visão alternativa de mundo, uma concepção de arte liberta da circulação mercantil e
do consumo dos museus e instituições oficiais e que tenha seu objetivo próximo fundamentado no
debate em torno dos problemas de uma comunidade. (ZACCARA, 2016, p. 60)

5. Identidades, Movimento Intercultural

Anos e anos de viagem, sem fadiga, na companhia de ‘meus’ estudantes, de professores e artistas,
por geografias variadas em busca de um mais amplo conhecimento de nós próprios, do modo
como nos relacionamos com o que nos cerca, de procura de questionamento e de extensão do que
sabemos. Reconhecimento do próprio corpo expandido para os seus limites pelo confronto com
a diferença e com o próprio desempenho.

21. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 20ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1986, p. 294.
22. COUTO, Mia. Pensatempos. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 78.

67
O Movimento Intercultural (IDENTIDADES) reconhece a tentação das práticas coloniais, por
isso se afunda num esforço de reflexão, permanente e simultânea com o seu decurso, medindo
a intensidade da capacidade de partilhar o conhecer do outro, enquanto um outro e um mesmo.
Saber olhar os olhos que nos fitam e procurar entender o que vai neles, diluindo para um comum
a circunstância vivida.

Saber a necessidade de se aguardar o estabelecimento da confiança entre os pares, condição que


só a partilha forja e testemunha, para a partir daí se estabelecer a cumplicidade, plano que exer-
cita a democracia e permite a invenção conjunta.

Somos ou nos tornamos educáveis porque, ao lado da constatação de experiências negadoras da


liberdade, verificamos também ser possível a luta pela liberdade e pela autonomia contra a opressão
e o arbítrio. (FREIRE, 2000, p. 121)

A liberdade, ensina-nos Freire, tem de ser entendida face ás ofensivas opressoras que a negam,
como um movimento resiliente de enfrentamento oposicionista dos mecanismos que os dispo-
sitivos de poder edificam e que hoje, como sabemos, adquirem uma megapotência onde a mani-
pulação da informação, o exercício dos ‘designers de opinião’, a demagogia populista, a sedução
burguesa, o conforto propagandeado, o mito da insegurança, a mentira descarada e repetida
incessantemente, nos manipulam e nos movem para papéis que, a maioria das vezes, nem sequer
imaginamos estar a desempenhar.

As práticas interculturais, anticolonialistas e anticapitalistas, que se defendem aqui como efecti-


vidade das viagens em procura de outras possibilidades de se encontrar um modo esclarecido de
interferência neste mundo fracassado, só adquirem o sentido agonístico e oposicionista contra o
regime hegemónico (que independentemente da designação que o classifique mantém sempre
sua vinculação ao capitalismo, e ao colonialismo), se estabelecidas num plano de cumplicidade
entre iguais, escavadores incansáveis em busca de um comum, depositários de uma confiança
partilhada, permitida pelo conhecimento do que cada um é e do seu comum, que apenas a escuta
do outro, como um mesmo, a autoriza.

Ao desaparecer a descontração, perde-se o ‘dom da escuta’ e desaparece a ‘comunidade capaz de


escutar’. Essa comunidade está nos antípodas da nossa sociedade ativa. O ‘dom da escuta’ assenta
precisamente na capacidade de prestar atenção profunda e contemplativa, capacidade vedada ao ego
hiperativo dos nossos dias. (HAN, 2010, p. 27)

6. A Universidade como Fracasso

A universidade, também ela fundada como um lugar do conhecimento restrito, embora se tenha
democratizado, laicizado e tornada de serviço público, se transformou num dispositivo orde-
nador, empenhada em ensinar e investigar a partir dos valores hegemónicos, alimentando os
saberes adquiridos e educando trabalhadores especializados às necessidades do sistema, sem lhe
vincular o devir de cidadania crítico que poderia fomentar a divergência e o devaneio criativo
sobre um mundo onde o fracasso, se torna a cada dia mais exposto. Neste mundo em fracasso
também a universidade fracassa.

68
Afinal de contas, a especificidade da universidade moderna que os idealistas alemães fundaram con-
sistia no seu estatuto de lugar de crítica. Como disse Fichte, a universidade existe não para ensinar
(transmitir informação), mas para inculcar o exercício do juízo crítico. (READINGS, 1996, p. 16)

A formação do Movimento Intercultural IDENTIDADES no seio da Universidade do Porto,


cedo se viu levado para um espaço de acção autónoma, onde os propósitos se expandissem a
partir das dinâmicas por ele próprio criadas. Construiu-se assim um colectivo de estudantes,
professores e artistas que transportaram para um espaço auto-gerido os questionamentos que
no interior da universidade não adquiriam a dimensão que lhes era reconhecida pela ação de-
sencadeada, pelas controvérsias enfrentadas, entre a interioridade impregnada de uma cultura
eurocêntrica e uma demanda aberta e interrogativa do sentido das próprias vidas dos interve-
nientes.

La universidad no es un dato subyacente sino un poder que, como todo poder, se ejerce sobre algo
diferente de sí mismo. (LACLAU, 2008, p. 38)

Entendendo o campo da arte como um abrigo para o exercício de ações de cumplicidade com
as comunidades em volta de suas próprias demandas, suspendendo o exercício do artístico que
transportamos da cultura ocidental que nos constitui, para uma entrega neutra de descoberta e
de invenção, na construção participada de representações do comum, na revelação dos saberes
que o pensar, o fazer, o saber/pensar artístico propiciam, constituem um programa que propor-
ciona a cada um as aprendizagens que cada um é capaz de edificar e ao movimento um perma-
nente retorno à sua infância, de busca pelo imprevisto, pela invenção.

7. Viajar, Sempre

A visibilidade do panorama que o mundo do fracasso não consegue iludir, alarga-se para a maior
parte da humanidade, atormentada ainda que, por vezes, numa revolta imobilizada. No entanto,
muito se deixa ainda adormecer no charme que a sociedade de consumo exibe, e nas opiniões que
a ‘economia do saber’ espalha, na procura da manutenção das regalias que sobram da ganância
dos centros financeiros, das simbologias de poder e dos interesses que os cargos públicos ofere-
cem. As ações de revolta, isolam-se e não adquirem espaços de representação que tornem visíveis
e reforçadas as ideias que as alimentam. Esta insuficiência de presença agonística significativa em
prol de uma democracia radical, resultante da história recente, e dos fracassos das revoluções, dos
contratempos e do esgotamento das representações políticas geradas, apenas mostra a urgência
de se contrariarem os caminhos de reprodução das relações de poder estabelecidas pelo atual
modelo político, na procura de um outro, aberto, em aberto.

[...] emancipação é um termo herdado do direito da escravidão e, em seguida, do direito da autorida-


de paternal. Talvez ele não nos seja mais conveniente. Estamos sem mestres e sem pais. Talvez, seja
mais uma questão de inventar, de criar [...] (NANCY, 2012, p.532-3)

O mapa da viagem não está traçado e apresenta os engulhos e tempestades inesperadas, mas a
proximidade não é a do fim.

69
A curto prazo, como já podemos ver, é provável que seja um mundo de incivilidade e violência cada
vez maiores. A longo prazo, livres de constrangimentos da forma nação, podemos vir a descobrir que
a liberdade cultural e a justiça fundamentada no mundo não pressupõe a existência uniforme e ge-
neralizada do estado-nação. Esta possibilidade inquietante poderá ser o mais estimulante dividendo
de viver a modernidade sem peias. (APPADURAI, 1966, p. 39-40)

A realidade que a história consagra não regista a complexidade que a institui, por subjugar cada sujei-
to, no que cada um detém de si, a uma apreensão globalizante. Lembremos os opositores abnegados às
ditaduras, os que resistiram sempre, os que ‘desertaram’ dos exércitos e das incorporações, os muitos
que recusaram a escravidão, os que procuram no desconhecido, os que não desistem. Meu apelo é de
inscrição neste otimismo, num olhar que não fraqueje face ao fracasso do mundo em que vivemos.

É preciso muita coragem para / assumir o medo. / Não é para gabar-me mas tenho medo à farta. /
Tenho até uma grande geleira repleta / daquele medo definitivo em / cubos límpidos / que é o medo
de perder o / medo algum dia. 21/1/77. João Pedro Grabato Dias (1976/79).

O apelo a uma estado permanente de viagem, devaneio para o desconhecido e para fora do limite de
cada um, corresponde a um optimismo consciente do fracasso incorporado em cada um de nós, e no
comum. É a presença da dimensão do fracasso do mundo, das instituições promotoras de democracia
e de conhecimento, que configura a extensão plena do enigma que temos de enfrentar, nos opondo
ao que nos impede e barra as possibilidades de se criarem outras possibilidades, de se desenharem
novas paisagens, de fazer emergir o pensamento e a acção agonística, assumindo o regresso do polí-
tico como devir.

Porto, Portugal, junho de 2016

REFERÊNCIAS

APPADURAI, Arjum. (1966) Dimensões culturais da globalização [Modernity at large - culture dimensions of
globalization]. Trad. Telma Telma Costa. Lisboa: Editorial Teorema 2004.
ARENDT, Hannah. (1963) Sobre a revolução [On revolucion]. Trad. I. Morais. Lisboa: Relógio D’Água, 2006.
BARBOSA, Ana Mae (org) (2008). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo, Cortez Editora.
BARRENTO, João (2001). A espiral vertiginosa. Lisboa: Livros Cotovia.
BENTO, Helena (2016), Internacional: Leia este texto, por favor. In: Expresso, 22 maio 2016, http://expresso.
sapo.pt/internacional/2016-05-22-Leia-este-texto-por-favor.
BORRADORI, Giovanna (2003). Philosophy in a Time of Terror, Filosofia em tempo de terror - Diálogos com
Jurgen Habermas e Jacques Derrida, Porto, Campo das letras, 2004, tradução de Jorge Pinho.
FREIRE, Paulo (1977). Cartas à Guiné-Bissau. Lisboa: Moraes Editores, 1978.
FREIRE, Paulo (2000). Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP.
HAN, Byung-Chul (2010). A sociedade do cansaço [Müdigkeitsgesellschaft]. Trad. Gilda Lopes Encarnação.
Lisboa: Relógio D’Água, Lisboa, 2014.

70
KOHAN, Walter Omar (2013). O mestre inventor. Relatos de um viajante educador [El maestro inventor. Simón
Rodríguez].Trad.Hélia Freitas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
LACLAU, Ernesto (2008), Debates y combates: por un nuevo horizonte de la política. Buenos Aires: Fundo de
Cultura Económica.
NANCY, Jean-Luc (2013). Após a Tragédia. In: Terceira Margem, ano XVII, nº 27, jan. http://www.revistatercei-
ramargem.com.br/index.php/revistaterceiramargem/article/view/42.
NANCY, Jean-Luc (2012). In: INSISTÊNCIAS DEMOCRÁTICA: Entrevista com Miguel Abensour, Jean-Luc
Nancy & Jacques Rancière. Realizada por Stany Grelet, Jérôme Lèbre & Sophie Wahnich. Trad. Vinícius Nicas-
tro Honesko. In: Princípios, Revista Filosófica, jul./dez. 2012. Natal/RN, v. 19, n. 32, p. 517-538.
PERNIOLA, Mário (1990). Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. [Enigmi: il momen-
to egizio nella società e nell’arte]. Trad. Carolina Pizzolo Torquato. Chapecó/SC: Unocapecó/ Editora Argos/
Editora da Unochapecó, 2009.
READINGS, Bill (1996). A universidade em ruínas [The university in ruins]. Tyrad. Joana Frazão. Coimbra:
Editora Angelus Novus, 2003.
ZACCARA, Madalena (2016). A viagem de volta: ações do movimento intercultural. identidades em comuni-
dades de colonização lusa. Porto: Editora Gesto, i2ADS/FBAUP, Faculdade de Belas Artes da Universidade do
Porto/PT: Recife: Editora Universitária UFPE.

71
Retrospectiva de alguns
processos iniciais da chegada da
Abordagem triangular à Arte/Educação
Maria Christina de Souza Lima Rizzi

Participar do V Congresso Internacional de Arte/Educação, momento em que comemoramos os


sessenta anos de magistério da Profa. Ana Mae Barbosa é uma honra, uma emoção, e um desafio.
Honra porque a reconheço como minha mestra profissional e acadêmica. Emoção porque reme-
morar sua trajetória é entrar em contato com opções que foram (e são) minhas também; com o
melhor da arte/educação; com obstáculos que pareciam intransponíveis e que algumas vezes foram
mesmo. Desafio, pois tenho que fazer escolhas: editar um processo de vida; construção e difusão de
conhecimentos; aprendizagens diversas com as mais variadas pessoas e instituições; e sonhos não
realizados e sonhos realizados com muitos frutos reverberando no presente. Farei escolhas, segui-
rei um dos caminhos possíveis para esta narrativa desejando fazer jus a esta tarefa.

COMO ENTREI EM CONTATO COM A ABORDAGEM TRIANGULAR?

Tive a oportunidade de ser aluna de Ana Mae de 1977 até 2000 incluindo a graduação, a especializa-
ção, o mestrado e o doutorado. Em todas as situações fui discente da Escola de Comunicações e Artes
da USP, instituição em que ela atuou na licenciatura e fundou, na década de 80, o primeiro programa
de pós-graduação em Arte/Educação do Brasil.

Como aluna de graduação apresentei em aula um seminário sobre o trabalho de arte/educação


em artes cênicas, área em que fiz minha formação inicial, desenvolvido durante o I Festival de
Música de Prados promovido em 1977, pelo Departamento de Música da Escola de Comunica-
ções e Artes da USP e, pela Lira Ceciliana, sociedade dos músicos de Prados/MG, fundada em
1858.

72
Figura 1. Vista da cidade de Prados em Minas Gerais.
Disponível em: <http://prados.mg.gov.br/ >

A Lira Ceciliana é herdeira do movimento musical que aconteceu em Minas Gerais a


partir do século XVIII atuando, na sobrevivência da música sacra mineira e da tradi-
ção das bandas, de forma ininterrupta. Coordenou o projeto de extensão, pela USP, o
maestro George Olivier Toni e, pela Lira Ceciliana, o maestro Adhemar Campos Filho.
De acordo com o site da Lira Ceciliana,

[...] nos Festivais são oferecidos cursos/oficinas gratuitos de canto, instrumentos de


cordas e de sopros, iniciação musical para crianças, prática de conjuntos (coro, or-
questra e banda de música), realizando-se concertos abertos ao público nas cidades
de Prados, Resende Costa e Coronel Xavier Chaves (região dos Campos das Verten-
tes, Minas Gerais).

Figura 2. Maestro Olivier Toni com


alunos do I Festival de Música de
Prados em 1977
Disponível em: <http://www.lirace-
ciliana.com.br/fotos.html>

O Festival, que teve sua 1a. edição em 1977, teve em 2015 sua 38a. edição, demonstrando sua per-
tinência e significado tanto para a população de Prados e região, quanto para o Departamento de
Música da USP.

73
Figura 3. Maestro Adhemar Campos
Filho no concerto regido por Celso
Tenório Delneri da ECA/USP, no I
Festival de Música de Prados em 1977.
Disponível em : <http://www.liraceci-
liana.com.br/fotos.html>

Menciono a experiência em Prados, pois além de ter sido um trabalho de arte/educação, foi freiriano.
Estudamos Paulo Freire na disciplina de Teatro Educação, com a Profa. Ingrid Koudela durante a
graduação. Acredito que este tenha sido o ponto de contato, o que “deu a liga” com a Profa. Ana Mae,
quando por exigências da implantação da Lei 5692/71 nas licenciaturas precisei, como complementa-
ção curricular, cursar disciplinas nas Artes Plásticas. Estava dado o primeiro passo de uma trajetória
parceira que não imaginávamos que seria tão profícua e longa.

O Festival de Prados foi inspirador e alimentador do XIV Festival de Inverno de Campos do Jordão
em 1983 conforme encontramos à página 59 da tese de doutoramento “XIV Festival de Inverno de
Campos do Jordão: variações de temas de ensino de arte” de Rita Bredariolli:

A experiência de Prados converteu-se em referência para a elaboração do novo Festival de Campos


do Jordão, idealizada pela Comissão de Música. Referência reiterada na organização das atividades
pedagógicas, pois seu formato coincidia com seus objetivos. Aqueles que se empenharam em realizar
esse projeto tinham em comum o “respeito ao local, ao contexto”, por isso a cidade e sua população
foram considerados ponto de partida para a organização e realização da programação cultural-pe-
dagógica deste XIV Festival. Ideia que “já estava lá”, em Prados, no trabalho de Christina Rizzi, por
exemplo. (BREDARIOLLI, 2009, p. 59.)

Segundo Ana Mae Barbosa (2008), foi a partir da XIV edição do Festival de Campos do Jordão que a
área de Arte-Educação apresentou uma nova concepção de ensino da arte, a concepção pós-moderna,
caracterizada por uma articulação entre a educação artística (criação) e a educação estética (aprecia-
ção), que diferia da expressão pessoal da tradição modernista e assumia um compromisso maior com
a cultura e com a história.

Neste sentido, posso dizer que o trabalho realizado em Prados, no final dos anos 70 e início dos 80,
fez parte e conectou-se com a concepção e o desenvolvimento do trabalho realizado em Campos do
Jordão em 1983. Este, por sua vez, inaugura um novo paradigma para a Arte/Educação.

74
Nos últimos anos da década de 80 alguns acontecimentos confluíram na minha trajetória em re-
lação à Abordagem Triangular do Ensino da Arte. Fiz em 1988 o curso ministrado pelo Prof. Ro-
bert Wiliam Ott, da Penn State University, no Museu de Arte Contemporânea da USP. O curso
constou da prática de um processo específico de leituras de imagens por ele denominado de Image
Watching. Naquele ano eu trabalhava no Educativo do Museu da Casa Brasileira da Secretaria de
Cultura do Estado de São Paulo. A exposição aberta ao público no momento intitulava-se “Leitura
de Fragmentos” e, a partir da minha experiência no Museu com esta exposição, e do curso com o
Prof. Ott, fiz a minha dissertação de mestrado, orientada pela Profa. Ana Mae Barbosa e defendida
em 1990.

Sobre a Dissertação:

Este estudo é na verdade um exercício de crítica sobre a exposição LEITURA DE FRAGMENTOS


realizada pela equipe técnica do Museu da Casa Brasileira da Secretaria de Estado de São Paulo, no
ano de 1988. O nosso objetivo ao elaborar esse trabalho foi o de colaborar com os profissionais da
área de educação em museus, partilhando a experiência do Museu da Casa Brasileira, registrando e
refletindo passo a passo o processo da construção de conhecimento, sobre o museu e sua especifi-
cidade, efetivada pela equipe técnica do Museu, quando da necessidade de montar uma exposição
utilizando objetos da própria coleção.

O instrumento de crítica escolhido foi o “Image Watching” proposto pelo Prof. Dr. Robert William
Ott da Penn State University, Estados Unidos. Esse sistema de crítica é composto por uma atividade
de aquecimento ao ver e perceber chamado “Thought Watching”, seguido de cinco categorias que
devem ser cumpridas em sequência e respondidas em sua especificidade.

A primeira categoria é a DESCREVENDO, que propõe que se observe o objeto que está sendo critica-
do. Ela pede uma relação, um inventário do fato analisado ou objeto que esta sendo apreciado.

A segunda categoria é ANALISANDO, que ainda com objetividade pede que o apreciador perceba e
expresse como foi construído, composto, realizado o objeto de sua análise.

INTERPRETANDO é a terceira categoria do sistema de crítica “Image Watching”. É o momento


das colocações pessoais; o que nos sugere o objeto de nossa crítica, a que nos remete, como o re-
cebemos, lemos, entendemos, sempre a partir dos dados objetivos percebidos nas duas categorias
anteriores.

A quarta categoria é FUNDAMENTANDO momento de ampliação dos conhecimentos adquiridos


nas três categorias anteriores. Para esse embasamento podem ser usadas várias fontes que possibili-
tem a pesquisa ou mesmo a participação em outras atividades pertinentes que ampliem o universo
de referências do objeto criticado.

A quinta e última categoria é a REVELANDO. Etapa da criação e resposta a todo esse processo. Em
uma atividade de crítica artística, a resposta será outra criação artística, usando qualquer uma das
linguagens ou suportes existentes no universo da arte contemporânea. Em uma atividade de crítica
acadêmica a resposta será uma reflexão ou julgamento. (RIZZI, 1990, n.p.)

75
Ao propor este sistema de leitura crítica acredito que o Prof. Ott tenha feito a intersecção entre o ensino
de arte modernista e o ensino pós-modernista, pois ao introduzir as categorias Fundamentando e Re-
velando, ele abre a Descrição e a Análise (etapas da leitura) para a contextualização e o fazer artístico.

Entre 1988 e 1990, se não me engano, houve por parte de Ana Mae a sistematização da Abordagem
Triangular do Ensino da Arte; a defesa desta proposta em um concurso de livre-docência junto ao
Departamento de Artes Plásticas da ECA/USP e a publicação do livro “ A Imagem no Ensino da Arte:
Anos Oitenta e Novos Tempos” pela Editora Perspectiva. Esta obra traria para a Arte/Educação uma
revolução epistemológica ao conceber o ensino e aprendizagem da arte como expressão, cognição e
cultura em uma perspectiva social, inter e transdisciplinar.

Nesta época eu já concursada trabalhava na equipe de arte/educadores do Museu de Arte Contempo-


rânea da USP dirigido, de maneira fantasticamente competente no âmbito da pós-modernidade, por
Ana Mae Barbosa. Nesta oportunidade, soma-se à nossa experiência de professora, aluna, orientado-
ra, orientanda e parceiras em projetos, também a relação entre diretora e funcionária.

Em 1991, comecei a dar aulas no Curso de Especialização em Arte-Educação da ECA, tendo a opor-
tunidade de trabalhar com Educação em Museus e Exposições e pesquisar com meus alunos a respei-
to da leitura de imagens e da Abordagem Triangular. O Curso de Especialização fez parte do Núcleo
de Promoção da Arte na Educação. Esse Núcleo foi estruturado por Ana Mae com a minha colabo-
ração no período em que trabalhávamos no MAC. Posteriormente, ele foi acolhido na ECA e nele
atuei como professora, vice-coordenadora e coordenadora em diferentes ocasiões. Ao terminar o
mestrado, aguardei a reabertura da pós-graduação na ECA e iniciei o doutorado em 1995. A tese foi
defendida no início do ano 2000 também sob a orientação da Profa. Ana Mae.

Figura 4. Capa do catálogo da Ex-


posição Labirinto da Moda: Uma
Aventura Infantil. Curadoria:
Glaucia Amaral, Projeto gráfico:
Miran, 1995
Disponível m:<http://mirandesign.
blogspot.com.br/2007_08_26_ar-
chive.html>

76
Na tese23 “Olho Vivo: Arte/Educação na Exposição Labirinto da Moda uma Aventura Infantil “24 25 faço as
seguintes considerações a respeito da Abordagem Triangular analisando-a bidimensionalmente com vistas
a uma tridimensionalidade que na verdade anuncia uma quadridimensionalidade (aqui já só intuição...):

A Abordagem Triangular do Ensino da Arte pode ser operacionalizada a partir da articulação perti-
nente, orgânica e significativa dos domínios das suas três ações básicas. Na tese de doutorado recorri
ao termo apreciar substituindo o termo ler, mas ultimamente tenho pensado muito a esse respeito e
resolvi adotar a nomenclatura original da proposta de Ana Mae, ou seja: ler, fazer e contextualizar.
Tenho percebido que ainda há entre os arte/educadores uma imprecisão terminológica que no meu
entender tem atuado como ruído no processo de compreensão e operacionalização da Abordagem.

Alguns exemplos do que encontrei em pesquisa livre na web, como denominação dos três componen-
tes necessários para a construção de conhecimento em Artes:

Figura 5. Diversos termos en-


contrados na web para desig-
nar as três ações constituintes
da Abordagem Triangular do
Ensino da Arte
Fonte: acervo particular da
autora

23. A exposição” Labirinto da Moda: Uma Aventura Infantil” com curadoria de Glaucia Amaral ficou aberta no SESC Pompéia no início de
1995 e intinerou pelo SESC Santos; o Museu de Arte da Bahia; o SESC São Carlos e o SESC Bauru. Coordenaram o Educativo : Christina
Rizzi (coordenadora), Ana Amália Barbosa (assistente) e Cildo Oliveira (assistente).Thais Helena Bastos Fusco Magalhães , aluna do Curso
de Especialização em Estudos de Museu de Arte, foi nossa auxiliar no SESC Pompéia . A equipe formada por Christina, Ana Amália e Cildo
permaneceu atuando em educativos de exposições de 1994 à 2000, inclusive. Ana Amália Barbosa fundou o AEP - Arte Educação Produ-
ções e Cildo Oliveira e Christina Rizzi atuaram com a Manufatura de Arte, juntamente com Sandra Ramos no SESC, no CCBB SP e por
dez anos no Prêmio Porto Seguro de Fotografia do qual Cildo Oliveira é curador ( sendo a designação atual Prêmio Brasil de Fotografia).
24. RIZZI, Maria Christina de Souza Lima. Olho Vivo - Arte-Educação na Exposição Labirinto da Moda: Uma Aventura Infantil. 2000. Tese
(Doutorado em Artes Plásticas) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. Disponível em: <http://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-17022016-112519/>. Acesso em: 2016-07-14.
25. “Ainda na década de 90, o MAC/USP e o SESC se distinguiram em produção de exposições para crianças. Dentre elas, a melhor, do pon-
to-de-vista de uma visão multicultural e do embasamento teórico, foi ‘O Labirinto da Moda’ (1996), com a Curadoria de Gláucia Amaral.
Aliás, no que concerne à preparação de monitores, o “Labirinto da Moda” foi um divisor de águas. Antes, a ideia era preparar os monitores
para explicarem a exposição que estava sendo apresentada. No ‘Labirinto da Moda’, a ideia era preparar os monitores para a compreensão
da Arte e funcionava como um curso muito bem planejado com reuniões de discussão de textos e aulas por profissionais da Arte, ao longo
do tempo em que a exposição estava em cartaz e não apenas reuniões de discussão dos problemas pontuais da exposição” BARBOSA, Ana
Mae Museus como Laboratórios, 2004. Disponível em: <http://revistamuseu.com/artigos/art_.asp?id=3733>. Acesso em: 714 jul 2016.

77
Podemos considerar, em um dos âmbitos da abordagem, seis possibilidades articulatórias iniciais:

Quadro 1 – Possibilidades articulatórias da Abordagem Triangular

Possibilidade 1 Ler Fazer Contextualizar

Possibilidade 2 Fazer Ler Contextualizar

Possibilidade 3 Contextualizar Fazer Ler

Possibilidade 4 Ler Contextualizar Fazer

Possibilidade 5 Contextualizar Ler Fazer

Possibilidade 6 Fazer Contextualizar Ler

Fonte: acervo pessoal da autora.

Mostrando as mesmas possibilidades em forma gráfica :

Figura 6. Representando as ações da Abordagem


Triangular por meio de formas arbitrárias.
Fonte: acervo pessoal da autora.

Figura 8. Exercício de representação quadridimensional das re-


lações possíveis entre as ações e as áreas de conhecimento nas
configurações da Abordagem Triangular do ensino da Arte.
Fonte: Ana Helena Rizzi Cintra.

Figura 7. Exemplos de possibilidades articulatórias re-


presentadas por meio das formas escolhidas.
Fonte: acervo pessoal da autora.

78
A Abordagem Triangular não indica um procedimento dominante ou hierárquico na combinação das
várias ações e seus conteúdos. Ao contrário, aponta para o conceito de pertinência na escolha da ação
e conteúdos enfocando, sempre, a coerência entre os objetivos e os métodos. Conceitos como organici-
dade e flexibilidade no arranjo da proposta pedagógica também são muito importantes nesta visão de
área. Podemos explicitar, as ações e conteúdos do universo de articulação da Abordagem Triangular
(ações passíveis de revisão e ampliação considerando-se a realidade artística e estética atual):

Quadro 2

Disciplinas afins
Teatro Dança Música Artes Visuais
(exemplos)
Assistir Assistir Audiovisual
Ler Ouvir criticamente Ler criticamente
criticamente criticamente Acústica
Artes Visuais
Produzir Antropologia
Dramaturgia Fazer Arte Arquitetura
Coreografar
Compor Fazer Curadoria Arqueologia
Dançar
Atuar Reger Astronomia
Dirigir
Fazer Dirigir Executar Produzir Biologia
Produzir
Produzir Cinesiologia
Teorizar e criticar Teorizar e Comunicação
Teorizar e Criticar
Teorizar e Criticar Crítica
Criticar Dança
Design
Ecologia
Educação
Eletrônica
Engenharia
Etnologia
Estética
Filosofia
Física
Fisiologia
Games
Geografia
Geologia
Geometria
Hermenêutica
História e Teoria História Teoria e História
História Teoria e História Teoria e Informática
e Crítica do Critica das Artes
Contextualizar Crítica da Dança e Crítica da Música e Linguagem
Teatro e Áreas Visuais e Áreas
Áreas afins Áreas afins Literatura
afins afins
Matemática
Mitologia
Museologia
Música
Neurociências
Política
Psicologia
Química
Semiótica
Sociologia
Sustentabilidade
Teatro
Técnicas artísticas
TICs
Zoologia...
Fonte: acervo pessoal da autora.

79
Reafirmo que embora os esquemas tenham sido representados bidimensionalmente, a compreensão
que tenho do modelo triangular é de um modelo de caráter multidimensional com claras corre-
spondências com o Paradigma da Complexidade teorizado por Edgard Morin na sua obra “O mé-
todo”, constituída por 6 volumes: Método I - A Natureza da Natureza, 1977; O Método 2 - A Vida da
Vida, 1980; O Método 3 - O Conhecimento do Conhecimento, 1986; O Método 4 - As idéias: habitat,
vida, costumes, organização, 1991; O Método 5 - a humanidade da humanidade: a identidade humana,
2001 e O Método 6 - A Ética, 2004.26

Em 1983, em Lisboa, houve um debate com a participação de Edgard Morin, tendo como referência
a construção de conhecimento no Paradigma da Complexidade. Naquela oportunidade, um dos tó-
picos discutidos foi o fato do conceito de complexidade não se reduzir ao conceito de complicação.
Segundo o autor, trata-se de algo mais profundo que vem emergindo na Filosofia desde a Antiguidade
e, está relacionado ao problema de lidar com e contra a lógica, com e contra o conceito. Morin afirma
que pensaram em termos da complexidade aqueles que no passado viram que na relação entre a parte
e o todo, não é apenas a parte que está no todo, mas o todo que está igualmente na parte. Ele faz uma
analogia com a figura de caráter hologramático que em cada ponto contém a totalidade.

Figura 9. Fractal Figura 10. Galáxia


Fonte: <http://zygzwurx.deviantart.com/gallery/ Fonte: http://www.caliandradocerrado.com.br/2014/10/
33661260/ FRACTAL-gif-animation-A> fractais-na-natureza-tudo-e-matematica.htm

Ao analisar a história do conhecimento humano a partir de várias áreas do conhecimento filosófi-


co, social, biológico e informacional Morin nos aponta a grande perda em termos do conhecimento
advinda do fato das sociedades ainda priorizarem o paradigma científico da fragmentação, da dis-
ciplinarização, da extrema especialização e da disjunção, advindo da formação das áreas científicas
do Renascimento até o presente. Sua proposta é que caminhemos de uma concepção disciplinar de
construção de conhecimento para uma consciência e ação transdisciplinar. Podemos observar um
quadro sobre esta questão no esquema elaborado por Iarozinski e colaboradores em publicação de
2010:

26. Edições brasileiras: MORIN, E. O método I - a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2002.; ___ O método 2 - a vida da vida, Porto
Alegre, Sulina, 2001.; ___ O método 3 - o conhecimento do conhecimento, Porto Alegre: Editora Sulina, 1999; ___ O método 4 - as ideias:
habitat, vida, costumes, organização: Porto Alegre: Editora Sulina, 1998;___ O método 5 - a humanidade da humanidade: a identidade
humana. Porto Alegre: Editora Sulina, 2002; ___ O método 6 - a ética. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005.

80
Figura 11. Esquema das várias abordagens disciplinares de observação da realidade
Fonte: Iarozinski Neto, A. et al, 2010, pág.427

Considerando o quadro acima podemos relacionar a construção de conhecimento proposta pela


Abordagem Triangular como transdisciplinar, pois acontece na intersecção das ações, das distintas
áreas de conhecimento e das várias disciplinas por meio das escolhas cognitivas, expressivas e estéti-
cas dos sujeitos envolvidos neste movimento.

Figura 12. Imagem síntese da Abordagem Triangular do Ensino da Arte trazendo as formas representando as três ações
fazer, ler e contextualizar; as cores representando as áreas do conhecimento e suas disciplinas e o movimento em espiral
demonstrando a dinâmica orgânica das escolhas e ações dos sujeitos híbridos resultantes do encontro entre a dimensão
biológica e espiritual em realidades socioculturais.
Fonte: acervo pessoal - still de uma animação elaborada em 2007 conceitualmente pela autora com design gráfico de Janaina
Cesar de Oliveira.

27. IAROZINSKI NETO, Alfredo; LEITE, Maria Silene. A abordagem sistêmica na pesquisa em Engenharia de Produção. Prod., São Paulo,
v. 20, n. 1, p. 1-14, Mar. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0103-65132010000100002&lng=e
n&nrm=iso>. access on 14 July 2016. Epub Mar 26, 2010. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65132010005000011.

81
Este texto apresentou uma breve narrativa referente aos primórdios da Arte/Educação pós-moderna,
trazendo um pouco do que vivenciei e aprendi nos últimos 40 anos de trabalho e pesquisa na área,
muitos deles em relação de intensa troca com Ana Mae Barbosa.

Há muito ainda a ser narrado e muito a ser refletido. Não devendo me alongar por questões de espaço
na publicação, e de tempo nesta mesa “Diálogo Interdisciplinar IV”, do “V Congresso Internacional
de Arte/Educação: Vida Artista: Diálogos entre Arte/Educação e Filosofia”, escolhi terminar a minha
fala fazendo uma afirmação reflexiva que muito tem me inquietado e instigado como pessoa sensível,
pensante e educadora em 2016.

No final de 1980, a Abordagem Triangular convidava ao não conhecido e talvez ainda não vivido, ao
Paradigma da Complexidade. Hoje o Paradigma já é conhecido e discutido por inúmeras pessoas que
por ele se sentem atraídas e mesmo por aquelas que com ele não se identificam. Há, no entanto, uma
diferença fundamental: o não vivido de anos atrás é agora muito vivido em diversas situações sociais
e culturais.

Os enredos de parte dos desenhos animados para crianças, por exemplo, operam numa relação de
configuração e reconfiguração de tramas, atributos, territorialidades e poder que não mais respon-
dem a forma de conhecer, atuar e saber de décadas atrás.

Os adolescentes e jovens têm se dedicado a jogar games e criar jogos em plataforma digital, tecendo
inúmeras maneiras de dar forma, mobilidades, vida, biografia, contexto territorial, histórico, ideoló-
gico e mitológico no universo lúdico e suas intra-relações.

A Abordagem Triangular nunca foi tão contemporânea e necessária. De bem a ser conquistada, ela
passou a ser capital necessário à sobrevivência. Um desafio e tanto neste convulso tempo presente.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Ana Cristina Chagas dos. Arte-Educação e Educação Ambiental. Uma reflexão sobre a colaboração
teórica e metodológica da Arte-Educação para a Educação Ambiental. 2010. 226 f. Dissertação (Mestrado em
Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2008.
BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estud. av., São Paulo, v.
3, n. 7, p. 170-182, dez. 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0103-
-40141989000300010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 14 jul. 2016.
BARLACH, B. Arte/Educação no Projeto Interdisciplinar de Reorientação Curricular proposto por Paulo Freire
para a secretaria Municipal de Educação de São Paulo. 2013. 14 f. Relatório Inicialização Científica (Finaliza-
ção do PIBIC) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em:
<http://www3.eca.usp.br/sites/ default/files/webform/projetos/bolsistas/BB.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2016.
BREDARIOLLI, Rita Luciana Berti. XIV Festival de Inverno de Campos do Jordão: variações sobre temas de
ensino da arte. 2009. 282 f. Tese (Doutorado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) – Escola de Comunicações
e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponi-
veis/27/27160/tde-19112010-091513/>. Acesso em: 14 jul. 2016.

82
IAROZINSKI NETO, Alfredo; LEITE, Maria Silene. A abordagem sistêmica na pesquisa em Engenharia de Pro-
dução. Prod., São Paulo, v. 20, n. 1, p. 1-14, mar. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/prod/v20n1/
aop_200804040.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2016.
MORIN, Edgard. O problema epistemológico da complexidade. Sintra/PT: Editora Europa América, 1983.
RIZZI, Maria Christina de Souza Lima. Leituras de fragmentos. 1990. 198 f. Dissertação (Mestrado em Teatro)
– Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990. Disponível em: <http://www.
teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27132/tde-12032013-161928/>. Acesso em: Acesso em: 14 jul. 2016.
RIZZI, Maria Christina de Souza Lima. Olho Vivo - Arte-Educação na Exposição Labirinto da Moda: uma aven-
tura infantil. 2000. 223 f. Tese (Doutorado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicações e Artes, Universi-
dade de São Paulo, São Paulo, 2000. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-
17022016-112519/>. Acesso em: 14 jul. 2016.
SAUL, Ana Maria; SILVA; Antonio Fernando Gouvêa. O legado de Paulo Freire para as políticas de currículo
e para a formação de educadores no Brasil. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 90, n. 224, p. 223-244, jan./abr. 2009.
Disponível em: <https://www.google.com. br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-8#>
Acesso em: 14 jul. 2016.

SITES:
http://prados.mg.gov.br/
http://www.liraceciliana.com.br/fotos.html
http://www.conexaovibracional.com/2015_10_01_archive.html
http://indigenasbrasileiros.blogspot.com.br/2016/02/arte-plumaria-indigena-no-brasil.html
http://revistamuseu.com/artigos/art_.asp?id=3733

83
Abordagem Triangular, ou:
o que a arte pode aprender
com a educação (4)
Isabel Marques

E ste é o quarto artigo da série: o que a arte pode aprender com a educação?28 Trata-se, mais uma
vez, de discutir e refletir sobre as influências e as contribuições do campo da Educação para a área de
criação e pesquisa em Arte. Ao mesmo tempo, esse artigo é uma homenagem aos 60 anos de carreira
de Ana Mae Barbosa, o que me instiga a escrever em primeira pessoa e ter como ponto de análise meu
próprio trabalho, tão influenciado por suas propostas.

Parto neste artigo de minha carreira artística profissional, que é uma carreira às avessas. Em geral, são
os artistas que influenciam propostas de âmbito pedagógico; artistas é que costumam inspirar pro-
fessores; artistas é que movem pesquisas educacionais na área de ensino de Arte: ou seja, é bastante
frequente que a Arte sirva como baliza e parâmetro para propostas de Educação.

Olhando em perspectiva meus 20 anos de carreira artística, dou-me conta de que, ao contrário disso,
os trabalhos do Caleidos Cia. de Dança, que dirijo com Fábio Brazil desde 1996, em São Paulo, estão
impregnados de princípios e propostas que têm muitas de suas raízes no campo da Educação. Em
nosso trabalho, conceitos e propostas educacionais atravessam, dialogam, influenciam e movem as
propostas artísticas.

RAÍZES

Em 1989 voltava de Londres tendo concluído pesquisa de Mestrado que discutia o ensino de Dança
nas escolas brasileiras. Uma de minhas fontes de pesquisa foram os primeiros escritos de Ana Mae
Barbosa que, juntamente com Paulo Freire, me auxiliaram a não perder as raízes da discussão quando
no exterior: com eles, o Brasil esteve sempre presente e foi o centro de minha pesquisa de Mestrado.
Neste mesmo ano, fui a um encontro da AESP (Associação de Arte Educadores de São Paulo) para fi-
nalmente conhecer Ana Mae, que conversava com o público sobre a então “Metodologia” Triangular.

28. Os outros três artigos são: Artista às avessas, ou: o que a arte pode aprender com a educação?; Interatividade, ou: o que a arte pode
aprender com a educação? e Artista/docente, ou: o que a arte pode aprender com a educação? Vide em MARQUES, Isabel (2014ab, 2015).

84
Encantada por finalmente presenciar uma palestra de Ana Mae, entusiasmada com o que propunha
e absolutamente tomada pelo tema do Mestrado – que era a Dança na Educação – ousei perguntar a
ela: “Ana Mae, e como fazemos tudo isso (a Abordagem Triangular) na área de Dança?”. Sua resposta
foi muito direta como costuma ser e, ao mesmo tempo, desafiadora: “Não tenho a mínima ideia, isso
é com você que é da Dança!”. Naquele momento, compreendi que os desdobramentos de sua propos-
ta, assim como muitos dos rumos para o ensino de Dança em São Paulo, estavam por ser traçados e
tomei como desafio pessoal percorrer esse caminho.

No mesmo ano tive o privilégio de ser convidada a participar do “Movimento de Reorientação Curri-
cular” da gestão Paulo Freire na SME/SP, no qual Ana Mae também participava, para assessorar pro-
jetos na área de Dança. A então “Metodologia” Triangular foi base de nossas propostas: a Dança sendo
pensada dentro dessa perspectiva era minha responsabilidade no diálogo com gestores e professores
da rede municipal de ensino.

Anos mais tarde, tendo assumido também a carreira de artista, propus-me um novo desafio, o de de-
senvolver projetos artísticos em escolas. Naquele momento, tinha clareza, mesmo que intuitivamente,
de que não bastava “levar” um espetáculo para a escola e contabilizar corpos no intuito de justificar a
“formação de plateia”. Minha bagagem viva e vivida para a empreitada de dançar nas escolas era a da
Educação: Paulo Freire me ensinou que não se faz nada para a escola/estudantes, mas, sobretudo, com
eles. Esta pesquisa tornou-se um projeto de doutorado, defendido em 1996, na FE-USP, e também
linha de trabalho e investigação que desenvolvo até hoje como diretora do Caleidos Cia. de Dança.

Hoje sei que minha experiência e pesquisa no campo da Educação formaram uma rede princípios e
ações absolutamente relevantes para criar e compartilhar dança/arte com diferentes públicos, entre
eles o escolar. Primeiramente, da Educação trago o compromisso do encontro, do “encontro para
pronúncia do mundo”, como diz Paulo Freire29. Da Educação que conversa com Paulo Freire, trago
hoje para cena de dança os princípios da dialogicidade e da problematização que geram nos corpos
dançantes a possibilidade de formar redes de relações múltiplas e multifacetadas30.

Outras raízes que também contribuíram para o desenvolvimento do trabalho artístico do Caleidos
Cia. de Dança que têm origem na Educação encontram-se na Abordagem Triangular proposta por
Ana Mae Barbosa, vivida por mim como Educação, e compreendida como Arte.

TRIANGULANDO A CENA DA DANÇA

O trabalho de Ana Mae Barbosa foi uma das fontes de pesquisa e criação desde o primeiro trabalho
artístico que realizei junto a estudantes de Ensino Médio da Rede Estadual de Ensino de São Paulo.
Contemplada pela Bolsa Vitae de Artes 1993, o espetáculo Corpo Dócil teve como urdidura as relações
entre o fazer, a leitura e a contextualização, eixos da Abordagem Triangular. Parecia-me óbvio que um
trabalho de arte voltado para Educação só poderia ter como princípios propostas educacionais que
tivessem em seu bojo a própria arte.

29. FREIRE, Paulo (1983).


30. Estes temas já foram discutidos em artigos anteriores. Vide MARQUES, Isabel (2010b, 2015).

85
De meu ponto de vista, a Abordagem Triangular traz a arte nela imbricada, aposta nas relações indis-
sociáveis entre a produção artística socialmente construída e a arte produzida em processos educa-
tivos. Dessa forma, esta proposta afasta-se dos caminhos de ensino e aprendizagem da Arte que têm
como centro a emoção e os sentimentos dos estudantes, ou o que chamam genericamente de “autoex-
pressão”. Na Abordagem Triangular, aprendizes são convidados a compreender/viver suas subjetivi-
dades nas em processos artísticos que dialogam com a arte em sociedade. A Abordagem Triangular,
assim, não nega a herança cultural dos estudantes em seu direito de experienciar arte, aproximando
a Arte da Educação.

A Abordagem Triangular engendra múltiplas possibilidades de relações entre o fazer, o ler e o con-
textualizar. Compreendo estas relações de forma dinâmica, em movimento, e, como tal, capazes de
gerar dança, de gerar arte. Como em um caleidoscópio, os elementos que compõem a Abordagem
Triangular, quando articulados e em movimento, potencialmente formam infinitas redes de relações
capazes de afetar as redes de relações sociopolítico-culturais e de dialogar com o mundo31.

Por essa razão, propus-me, como artista, a inverter a Abordagem Triangular: não mais pensar a Edu-
cação pautada pela Arte, mas sim a Arte indo em direção à Educação. Minha intenção, já em 1993,
era a de investigar processos que não mais partissem da aula convencional para o aprendizado da
Arte, mas sim compreender as possibilidades da cena artística engendrar processos de educação mais
amplos.

Desse processo de pesquisa foram concebidas as proposições cênicas32 que até hoje o Caleidos Cia.
de Dança desenvolve em seus trabalhos cênicos e de pesquisa33. Simplificadamente, as proposições
cênicas são micro coreografias dançadas pelo elenco que se constituem em propostas/convites para a
entrada do público na cena de dança, constituindo-se em possibilidades de diálogos corporais entre
o artista/docente e o público.

A Abordagem Triangular, tal como a entendo, acolhe a ideia de que é na leitura que se dá o encontro
entre público e obra, entre o leitor e o contexto em que vive, pois o ato de ler compreende muito mais
do que um processo de decodificação. No caminho de Paulo Freire, Ana Mae Barbosa compreende
que a leitura da obra é também um processo de interpretação cultural e de leitura de mundo34. Ensi-
nar e aprender a ler é um ato eminentemente comprometido com as relações sociais, com a vida em
sociedade, com estar no mundo e vivê-lo conscientemente.

“Ler não é passar por cima das palavras”, dizia Paulo Freire. Ao contrário disso, ler é entender, pensar,
sentir, criticar e relacionar o que é lido a um contexto sociopolítico-cultural mais amplo. Conforme
Ana Mae Barbosa, “... a leitura da obra de arte é questionamento, é busca, é descoberta, é o despertar

31. MARQUES, Isabel (2010c).


32. Vide MARQUES, Isabel (2011).
33. Posteriormente, as proposições cênicas foram trabalhadas pelo Caleidos Cia. de Dança na série Coreológicas (1996-2016), nos espe-
táculos Ares Familiares (2009), Mapas Urbanos (2012), Para o seu Governo (2013), e Tria (2014). Vídeos https://www.youtube.
com/user/institutocaleidos e www.caleidos.com.br
34. Veja BARBOSA, Ana Mae e CUNHA, Fernanda (2010), BARBOSA, Ana Mae (1998) e FREIRE, Paulo (2009).

86
da capacidade crítica, nunca a redução dos alunos a receptáculos das informações do professor...”
(1998, p. 40). As proposições cênicas abarcam essa ideia instigando o público a ler/fazer em uma
mesma proposta: a cena da dança.

A partir do princípio de leituras múltiplas dos trabalhos artísticos, cheguei à conclusão de que artis-
tas, em cena, também poderiam propor – dançando – relações entre o fazer e o ler arte. A proposição
cênica (fazer dos artistas/docentes), tal qual concebida, é um convite à entrada do público (fazer do
público) com base naquilo que cada um leu da cena (ler do público). O artista da dança, ao convidar
o público à interação, lê sua movimentação (ler dos artistas/docentes), para com ele (re)fazer a pro-
posição cênica (fazer do público juntamente com os artistas).

Temos como pressuposto nos trabalhos do Caleidos Cia. de Dança que a cena artística, nela mesma,
pode também educar leitores: leitores da dança e leitores de mundo. As proposições cênicas são cui-
dadosamente coreografadas de modo a convidar leitores a observar, a pensar, a sentir e a relacionar
situações cênicas. A proposta de estabelecer relações intencionais entre o fazer artístico dos artistas e
a leitura do público é, reconheço hoje com clareza, um princípio da Educação imbricado às proposi-
ções cênicas.

Conectados aos princípios artísticos da ludicidade, da imaginação, da criação e da experiência es-


téticas, nos trabalhos artísticos do Caleidos Cia. de Dança o público é convidado a dançar com os
artistas/docentes e entre si a partir daquilo que leu nas proposições dos artistas. O convite à interação
– entrada do público na cena – tem como proposta a complementação da cena-convite e a recriação
de uma nova cena, um novo fazer. A entrada do público na cena configura-se como outro momento
do fazer dança, implicando que ler é fazer, fazer é ler, que fazer e ler são indissociáveis.

Propomos que a participação do público não seja aleatória, ou uma abertura ao laissez faire (deixar
fazer o que quiser). A interação com os artistas/docentes é, ao contrário disso, uma resposta propo-
sitiva corporal/dançada daquilo que experienciaram enquanto público leitor é uma possibilidade de
releitura crítico-criativa do trabalho proposto. Entendo que a releitura, tal qual proposta pela Abor-
dagem Triangular, é um caminho para dissociar o ensino de Arte tanto do espontaneísmo quanto do
reprodutivismo técnico, do fazer artístico levado pelo “grito d’alma” (emoções descontroladas) ou
pelo silenciamento da cópia fiel, respectivamente.

Longe de ser uma cópia ou reprodução grotesca da obra estudada, a releitura é uma possibilidade de
compreender e perceber, de propor e de recriar de modo singular, novas configurações daquilo que
foi lido e contextualizado, não alijando estudantes do legado cultural da humanidade35. Processos
de releitura são também processos de recriação, de expansão, de inter-relação entre a apropriação
pessoal do trabalho artístico e suas possibilidades de diálogo com o mundo. É nesse viés que compre-
endemos o (re)fazer do público em nossos trabalhos de dança.

Compreendi ao longo de 20 anos pesquisando, dirigindo e criando dança que as proposições cênicas,
para que fossem fontes híbridas de arte e de educação já deveriam conter, em suas estruturas coreo-

35. BARBOSA, Ana Mae (2014).

87
lógicas e coreográficas, aquilo que Ana Mae Barbosa chamou de contextualização. Contextualizar é
estabelecer relações, coloca a autora. Em sua proposta, a contextualização implica processos interdis-
ciplinares, pois pode ter um viés cultural, histórico, social, biológico etc.36 A contextualização, no meu
entender, compreende as relações entre contextos vividos, percebidos e imaginados de quem dança/
lê dança em uma rede múltipla que permite e incentiva leituras e fazeres críticos e transformadores37.

As proposições cênicas do Caleidos Cia. de Dança compreendem amplos processos de pesquisa e


investigação dos contextos sociopolítico-culturais que as envolvem. Estão atravessadas pela pesquisa
histórica, social, iconográficas, intertextual e de campo que se presentificam nas cenas de dança; é no
dançar que contextos são discutidos e problematizados corporalmente, pois a contextualização está
imbricada aos corpos que dançam e não apartada deles. A contextualização não vem antes ou depois
do espetáculo, mas está nele.

Dessa maneira, a contextualização presente nas proposições cênicas está intimamente ligada ao fazer
(encenar) e ao ler, assim como aos processos de recriação da própria proposição cênica.

ARTE E EDUCAÇÃO

É claro que princípios e propostas ligadas ao campo da Educação não dão conta da complexidade do
fazer/produzir/criar arte, pois a arte envolve muito mais do que conceitos e procedimentos relacio-
nados entre si e bem estruturados em composições reconhecíveis e legíveis ao público. Não se deseja,
absolutamente, que a Educação escolarize a Arte.

No entanto, pressupostos de Educação que se alinham a concepções de mundo relacionais, polifônicas


e multiculturais, se consideradas nos processos de produção artística, certamente podem contribuir
para uma maior aproximação entre artistas e público, entre arte e sociedade. Um olhar da Educação
para a Arte pode fazer com que artistas e público encontrem-se juntos nos processos de compreensão,
crítica e participação social.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.


______. A imagem no ensino da arte. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
______. (Org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.
BARBOSA, Ana Mae e CUNHA, Fernanda (Orgs.). Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais.
São Paulo: Cortez Editora, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
______. A importância do ato de ler. 50. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2009.
MARQUES, Isabel. Linguagem da dança: arte e ensino. São Paulo: Digitexto, 2010.

36. BARBOSA, Ana Mae (1998).


37. MARQUES, Isabel (2010, 2011).

88
______. Dança-educação ou dança e educação? In: MARINHO, Nirvana; TOMAZZONI, Airton; WOSNIAK,
Cristiane (Orgs.). Algumas perguntas sobre dança e educação. Seminários de Dança 3. Blumenau: Nova Letra
Gráfica e Editora, 2010b, p. 23-37.
______. De tripé em tripé: o caleidoscópio do ensino de dança. In: BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda
(Orgs.). Abordagem Triangular no ensino das artes e das culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010c, p. 55-65.
______. Ensino de dança hoje: textos e contextos. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
______. Interações: criança, dança e escola. São Paulo: Blucher, 2012.
______. Artista às avessas: ou o que a arte pode aprender com a educação (1). In PRIMO, Rosa e PARRA, De-
nise (Orgs.). Invenções do ensino em arte. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2014a, p. 1-18.
______. O artista/docente: ou o que a arte pode aprender com a educação (3). Ouvirouver, Uberlândia, v. 10, n.
2, p. 230-239, jul.\dez. 2014b.

______. Interatividade: ou o que a arte pode aprender com a educação (2). Manuscrito não publicado, 2015.

89
O jogo com a peça didática
de Bertolt Brecht
Ingrid Dormien Koudela

N a conferência pronunciada por Brecht, na década de vinte, na Suécia, com o titulo Vale a pena fa-
lar de teatro amador?, fica clara a consciência que tinha o escrevinhador de peças (como Brecht gostava
de se autodenominar) não apenas relativa a origem do gesto teatral na psicogênese como também de
seu significado social como linguagem simbólica do homem comum em seu cotidiano.

Tudo aquilo que contribui para a formação do caráter se realiza, de acordo com Brecht, na primeira
fase da infância, sendo que a imitação aí exerce um papel fundamental. O jogo teatral38 na visão bre-
chtiana é um comportamento próprio do ser humano, sendo que o desenvolvimento artístico do tea-
tro como espetáculo é uma marca dentro de um continuum que segue da criança até o artista adulto.

O jogo teatral se encontra presente também no teatro amador, tão apreciado por Brecht. E o que é
ainda mais importante, no cotidiano, quando homens imitam outros homens ou representam um
evento com caráter de demonstração na vida corrente. A partir dessa premissa, a arte do teatro é a
mais humana e a mais singela de todas as artes sendo realizada não apenas no palco, mas também
no dia a dia. De acordo com Brecht, a arte do teatro de um povo ou de uma época deve ser julgada
como um todo, como um organismo vivo, que não é saudável se não for saudável em todos os seus
membros. O alerta chama atenção para o teatro realizado com crianças ou jovens e esta também é a
razão pela qual vale a pena falar de teatro amador.

Um texto modelar que aproxima o teatro do cotidiano é Cena de rua, Modelo de uma cena de teatro
épico (BRECHT, 1967), o qual permite partir de experiências pessoais ainda abertas e não estrutu-
radas. O exemplo principal dado por Brecht é um acidente de transito, que deve ser reconstruído e
imitado. O principio pode ser generalizado. Desse modo, torna-se possível estabelecer a relação com
outros acontecimentos que fazem parte do cotidiano. A cena de rua enseja assim, através de trans-
posições e novas contextualizações, um procedimento de reconstrução que torna visível e articulada
a realidade de um determinado lugar, de um determinado grupo. O princípio é traduzido de forma
magistral no poema Teatro do cotidiano (BRECHT, 1986).

38. O termo utilizado por Brecht em língua alemã é Theaterspiel, que traduzimos por jogo teatral.

90
Em um texto denominado Observação da arte e arte da observação, Brecht reflete sobre o processo de
fruição estético afirmando que assim como é verdade que em todo homem existe um artista, que o ho-
mem é o mais artista dentre todos os animais, também é certo que essa inclinação pode ser desenvolvida
ou perecer. Subjaz à arte um saber conquistado através do trabalho. (KOUDELA, 2011).

O modus faciendi da utopia brechtiana é explicitado no fragmento A grande e a pequena pedagogia


(KOUDELA, 2011), em que é traçado um plano operativo para o teatro do futuro. Este texto que
constitui um escrito-chave para compreender o projeto pedagógico de Brecht considera que a Peque-
na pedagogia, a ser desenvolvida com amadores, representa apenas uma democratização do teatro,
isto é, o teatro mantém a sua velha função. Subsiste a divisão entre atores (ativos) e espectadores (pas-
sivos) entre os que ensinam e os que aprendem. Ela se distingue do teatro burguês pelo fato de já pos-
suir uma intenção pedagógica e de trabalhar com leigos cujos papéis devem ser construídos de forma
que amadores permaneçam como amadores. Já a Grande pedagogia pressupõe a transmutação radical
da sociedade. Somente então o princípio [...] o interesse de cada um equivale ao interesse do Estado [...]
teria validade. A referência às Teses de Feuerbach se evidencia [...] em uma sociedade comunista não
haverá pintores, mas homens que, entre outras coisas, também se dedicam a pintar.

Dentre os escritos de Brecht, a teoria da peça didática não é um conjunto claramente definido. Ela se
constitui de vários pequenos textos, anotações e referências. Muitas vezes são observações que o dra-
maturgo faz em contextos diversos, mas que explicitam a gênese e o desenvolvimento de sua proposta
pedagógica e didática. Nos últimos enunciados que formulou sobre a questão, em 1956, Brecht afirma
que esta designação (peça didática) vale apenas para as peças que ensinam aqueles que representam.
Elas não necessitam de público, embora ele possa ser utilizado (grifos meus)39.

Ao buscar uma tradução para o inglês do termo alemão Lehrstück, Brecht estabelece uma diferença
entre a peça épica de espetáculo (Episches Schaustück) e a peça didática, apontando para uma nova
concepção de pedagogia e de teatro:

[...] the nearest english equivalente I can find is learning play [...] that often did not need the stage
in the old sense. (... o equivalente inglês mais próximo que encontro é jogo de aprendizagem... que
muitas vezes não necessitava do palco no sentido tradicional). Em outro momento pontua: se não
quiserem chamar de teatro, chamem de taetro! (KOUDELA, 2011).

Brecht sublinha que a principal função da peça didática é a educação dos participantes do Kollektiver
Kunstakt (ato artístico coletivo). A peça didática ensina quando nela se atua e não através da recep-
ção estética passiva, sendo endereçada diretamente ao leitor, que passa a ser o ator/autor do texto. A
revisão do texto é parte integrante das peças didáticas, sendo prevista pelo autor a alteração do texto
dramático pelos jogadores.

39. Através da Peça Didática, Brecht rompe com a organização teatral estabelecida. Existem outros meios de produção e difusão do trabalho
teatral, além do público habitual dos teatros. Por exemplo, as crianças nas escolas, as associações de jovens, os coros operários, muito nume-
rosos na Alemanha na época. Brecht esperava libertar estas manifestações importantes de todas as dependências [...] e confiar a execução de
suas peças aqueles [...] que não são nem compradores nem negociantes de arte mas que simplesmente a querem praticar (GW 17, 1032). A
arte já não se destinava ao consumo: precisava ser praticada. Tratava-se de fazer e refazer coletivamente o teatro. Para uma análise detalhada
da dramaturgia da peça didática, vide KOUDELA, Ingrid D. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.

91
O modelo de ação proposto através da peça didática se diferencia de textos teatrais tradicionais por
seu valor de aprendizagem. Enquanto o teatro amador tradicional é orientado para apresentações
diante de um público, Brecht enfatiza que a aprendizagem na peça didática consiste no exame expe-
rimental das experiências sociais dos atuantes/jogadores. Com este objetivo, as peças didáticas são
propositalmente abstratas e encerram significações que provocam a contradição.

O conceito de Handlungsmuster (modelo de ação) é relacionado a processos de aprendizagem:

• modelo como um exercício artístico coletivo que tem por foco a investigação das relações
dos homens entre os homens.

• modelo como um texto que é objeto de imitação crítica.

Como ponto de partida para os exercícios, seriam inconvenientes textos estabelecidos à base de pro-
blemas ou situações históricas ou atuais. A partir de seu objetivo, que é favorecer um processo de
conhecimento, as peças didáticas não podem examinar uma realidade especifica na sua totalidade ou
representá-la. Se as entendermos como modelo de ação, como introdução a um processo de aprendi-
zagem dialético, elas necessitam ter certo grau de abstração.

Embora o modelo de ação repouse sobre a forma poética da dramaturgia da peça didática, essa forma
é atualizada através da relação dialógica entre jogo teatral e texto.

Essa dialogicidade (sem dúvida acentuada no confronto com o modelo de ação) poderá ser esta-
belecida em um momento anterior à introdução do texto, através do processo de jogos teatrais. A
combinação entre a parte fixa – texto – e a parte móvel – jogo teatral – propõe que o controle sobre
a aprendizagem não ocorre de forma fechada ou previsível. Embora as questões suscitadas pelo texto
constituam a moldura, o modelo de ação é tematizado pela parte móvel.

Outro momento da relação dialógica entre jogo teatral e texto pode ser exemplificado através dos
jogos de apropriação do texto. Ao “brincar” com o texto, hábitos de leitura escolar arraigados são
superados, em função da integração dos planos de percepção físicos e intelectuais. A percepção sen-
sório-corporal causa um novo olhar frente ao discurso e à ação de falar. Nos jogos de apropriação do
texto, seu significado permanece em aberto. Não procedemos a uma análise do texto, buscando uma
interpretação. A interação no jogo leva a uma multiplicidade de imagens e associações, que são expe-
rimentadas corporalmente, através da linguagem gestual.

Por meio do jogo teatral, o material gestual torna visíveis as contradições sociais no cotidiano. Sem
prescrever um comportamento político correto, o objetivo é o desenvolvimento de uma atitude polí-
tica. Apesar de não lidar com problemas políticos imediatos, as peças didáticas são empreendimentos
políticos.

A peça didática soluciona o problema da ligação entre a prática do teatro e a prática de seu público,
ao incorporar o espectador no processo teatral, permitindo-lhe penetrar nas ações que se desenrolam
sobre o palco, até o ponto em que ele por fim quase se desvanece como espectador. Ao mesmo tem-

92
po, desaparece também desse contexto de produção e aprendizado o ator profissional. A encenação
transforma-se em um processo entre autor e público – ela se liberta do quadro institucional do teatro.
A peça didática é – quando vista a partir da perspectiva teatral – uma solução extrema.

REFERÊNCIAS

BRECHT, Bertolt. Aus den Notizbüchern 1920-26. BBGW: Zur Literatur und Kunst, 1964.
______. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Brasiliense, 1986.
______. Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
______. Vale a Pena Falar de Teatro Amador? In: Revista aParte XX, Revista de Teatro da USP, Trad. Ingrid
Dormien Koudela.
KOUDELA, Ingrid Dormien. (Org.). Heiner Müller. O espanto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.
______. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.
______. Texto e jogo. São Paulo: Perspectiva, 2010.

93
Abordaje Triangular para el ojo
que salta el muro: apunte de reflexión
Ramón O. Cabrera Salort

Desde una epistemología del arte


Soy, donde pienso
Walter Mignolo40*

T odas las artes pueden darse cita desde el episteme que devela el abordaje triangular, fruto de un
sostenido bregar de Ana Mae Barbosa por el arte y el arte educación, encarnado en las más actuales
corrientes de la Fenomenología Hermeneútica, de la Teoría de la Recepción, de la Semiótica, del
Deconstruccionismo, del Feminismo y, añadiríamos nosotros, de los Estudios Decoloniales, en parti-
cular Freire desde la Pedagogía, sobre cuyos fundamentos se asienta.

La enumeración con la que inicia su La imagen en la enseñanza del arte es una evidente declaración de
principios, no solo de aquellas peculiaridades que advierte dominan nuestra contemporaneidad, sino
más allá de ello el convencimiento de que nuevos paradigmas y un episteme de cambio debe ser reco-
nocido para practicar un arte/educación a la altura de nuestros tiempos. Esto es resultado indudable
también de nuevos epistemes tanto para la ciencia como para las artes que desembocan en nuevas
maneras de leer el mundo. Y donde el concepto freiriano de leer la palabra mundo alcanza inusitadas
resonancias, que se fundamenta en los asuntos del texto en el vasto universo de las imágenes visuales.
Así si en los avances en los dominios de la microfísica, de la química y de la biología hay una crisis
del paradigma newtoniano como pauta del discurso acerca del método científico. Si un Ilya Prigogine
(1917-2003) con su teoría de las estructuras disipativas y el principio del “orden a través de las fluctua-
ciones” recurre a sistemas abiertos; sistemas en los márgenes de estabilidad, donde éstos evolucionan
por fluctuaciones de energía, no enteramente previsibles, por mecanismos no lineales. Ello también
va a tener su correlato en el ámbito de la producción simbólica de hoy con un acrecentamiento de
las conceptualizaciones; un énfasis en las operaciones ideáticas; donde surge un universo imaginal
asentado, como tendencia, en teorizaciones personales; caracterizado por construcción de “tesauros”
como herramientas productivas; con una participación abierta de los saberes en lo: inter – multi –

40. * In: Desobediencia epistémica. Retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires:
Ediciones del Signo, 2010.

94
trans – disciplinario y donde para Latinoamérica esto llega a tener un ascendiente en lo político-social
de resonancias propias inconfundibles. Esto último reconocerá Ana Mae cuando enfatiza: “Por isso
temos, no Terceiro Mundo, que produzir nossas própias pesquisas, nossas próprias análises e nossas
próprias, ações para superar os preconceitos de classe existentes em nossos países, a respeito dos có-
digos culturais configuráveis” (1998, p. 88).

Cuando la autora en este y otros textos suyos analiza obras cimeras de la modernidad europea, no
deja de considerar a la par obras de nuestra América, en especial del Brasil. De igual modo hace eso
con obras notables europeas pero que se hallan en museos brasileños, pues no solo cuentan los mu-
seos europeos o norteamericanos. Esto apunta, en cierto modo, a la necesidad de replantearse la his-
toria, a reconocer la naturaleza incompleta o silenciada del modo de practicar y construir un sentido
dominante de hacer historia del arte. Desde esa dimensión Ana Mae se nos perfila desde su ámbito de
arte/educadora cercana a la corriente ya apuntada de pensadores decoloniales como Enrique Dussel,
Walter Mignolo o Arturo Escobar. Recordemos que el epígrafe de análisis que escribió sobre lo que
denominó como “aprendizaje triangular”, en su libro Tópicos utópicos, lo tituló Arte/educación pos-
colonialista en Brasil.

Así un episteme latinoamericano para las Ciencias Sociales señalado por Maritza Montero y citado
por Edgardo Lander destaca en su Abordaje, entre otras, por las siguientes ideas articuladoras de tal
paradigma: la idea de liberación a través de la praxis, que supone la movilización de la conciencia, y un
sentido crítico que lleva a la desnaturalización de las formas canónicas de aprehender construir-ser en
el mundo; la redefinición del rol de investigador social, el reconocimiento del Otro como Sí Mismo y
por lo tanto la del sujeto-objeto de la investigación como actor social y constructor de conocimiento; el
carácter histórico, indeterminado, indefinido, no acabado y relativo del conocimiento; la multiplicidad
de voces, de mundos de vida, la pluralidad epistémica; la perspectiva de la dependencia y luego, la de la
resistencia; la tensión ente minorías y mayorías y los modos alternativos de hacer-conocer (LANDER,
2000).

Toda la extensa data de aplicación de lo que luego se constituyera en el abordaje o la propuesta trian-
gular tuvo sus inicios no en peroraciones o elucubraciones teóricas, sino en la práctica cultural y
educativa con las artes visuales y en las inmediatas repercusiones benéficas de tal praxis, claro que
cimentadas teóricamente, pero revivificadas en su concreción social. Como buena discípula de Freire
ella siempre ha reconocido que la cultura se asimila raigalmente en su práctica. Por eso reconoce su
propuesta como la derivación de una doble triangulación, la primera de ellas de carácter epistemoló-
gico al reconocer al proceso de enseñanza-aprendizaje constituido por tres acciones fundamentales
en lo mental y en lo sensorial: creación (hacer artístico), lectura de la obra de arte y contextualiza-
ción; la segunda triangulación en la triple influencia de deglutir singularmente otros tres abordajes
epistemológicos: su interpretación reflexivo-crítica de las Escuelas al Aire Libre mexicanas, el Critical
Studies inglés y el Movimiento de Apreciación Estética ligado a la DBAE y todos ellos encarnados en
un sostenido obrar con las imágenes artísticas (BARBOSA, 1998, 33 - 34).

Ese sentido en que refiere en más de una ocasión la deglución, es consecuencia en Ana Mae de su
adopción del lenguaje antropofágico que proviene originariamente de Oswald de Andrade y que re-
conoce en la década de los 70 en el intelectual cubano Roberto Fernández Retamar con varios de sus

95
ensayos, que hoy adscribiríamos como decoloniales. Esa acción de deglución se hace a la vez más
presente en las artes visuales contemporáneas del continente que experimentan un rebasamiento de
sus límites tradicionales, un perfundirse con otras artes, un planear sobre siglos y obras con afán de
apropiación y un extenderse hacia las prácticas cotidianas más comunes y triviales o más abiertamen-
te políticas y subversivas y menos implicadas o correlacionadas con el discurso de las artes. En un
continente plagado de injusticias e inequidades no es difícil ser subversivo y lo subversivo, si el arte
ofrece razones críticas y reflexivas de ser en el mundo, lo constituye.

A su vez la propia Ana Mae ha destacado cómo el abordaje no lo circunscribe al discurso del arte y
cómo integra también a los variados componentes de la cultura visual contemporánea, en tanto el
propio arte desde el pop los venía integrando, y también por el reconocimiento de los significados que
cobran los medios masivos en los procesos de mediación de la cultura popular en nuestro continente.
Ana Mae Barbosa precisará lo que argüimos para el proceso educativo de modo decolonial:

Arte e Cultura Visual devem conviver nos currículos e salas de aulas, suas imagens devam ser anali-
sadas com o mesmo rigor crìtico para combatermos formas colonizadoras da mente e dos compor-
tamentos (2010, p. 22).

El hacer, dentro de las tres acciones constitutivas del abordaje, característicamente dominante en la
enseñanza de las artes y, en particular, de las artes visuales, se encuentra en la concepción de Ana Mae,
alejado de la asunción romántica de la creatividad incontaminada de lo espontáneo y de la búsque-
da de originalidad a ultranza, donde el que aprende manifiesta en primer lugar su expresividad, sin
ayuda de ningún otro recurso cultural. En contrapunto con esto para Ana Mae ese hacer requiere de
un aprestamiento, del dominio de instrumentos culturales, proceso de “alfabetización” que supone
siempre un hacer entrelazado con un leer y con un contextualizar. Por ello ese hacer con las imágenes
en tanto hacer cultural, es intelectual también, tanto teórico como práctico. Muchos siglos atrás Mi-
guel Angel había advertido que se pinta con el cerebro, no con la mano. Esta es otra manera en que el
propio episteme que sustenta al abordaje triangular vuelve a la enseñanza de las imágenes artísticas en
la escuela, no un asunto menor relegado a las manualidades, sino un complejo y activo movilizador
de capacidades y competencias cognitivo/afectivas.

La lectura en su abordaje triangular, ligado a las teorías de la recepción y a los enfoques hermenéuti-
cos y fenomenológicos, se reconoce como interpretación cultural y en esto advierte Ana Mae también
la influencia de Paulo Freire. Quizá fuera preciso añadir que ese sentido de lectura tiene que ver con
el concepto freiriano de leer la palabra mundo de su La importancia de leer, con lo cual se alude a la
metáfora de que lo primero que leemos es nuestro contexto. De aquí, entonces, la raigal relación entre
lectura y contexto, pues como se reconoce desde su propuesta, situar la obra en contexto es propiciar
el producir sentido en aquellos que la observan y ello se logra desde un campo de sentido decodifica-
ble y una poética personal del decodificador. Esto hace que tal lectura contextualizada opere para Ana
Mae Barbosa como cuestionamiento, como búsqueda, como descubrimiento, como acrecentamiento
de la capacidad crítica y no únicamente como un aumento de la información acerca del arte, y donde
las decodificaciones que opera el sujeto sobre una obra, comienzan por reconocer la necesidad de
contar con un marco referencial de este sujeto para hacer posible el acto lector. La lectura se convierte
en un acto de significación como comprometimiento, como apropiación cognitiva/afectiva, donde el
yo lector dialoga con el tú de la obra visual.

96
Contextualizar será para ella sinónimo de tender puentes, establecer relaciones, reconocer nexos
de carácter tanto históricos, como sociológicos, antropológicos, educativos, multiculturales, eco-
lógicos. De ahí que la contextualización en el proceso de enseñanza-aprendizaje se constituya en
fundamento de la interdisciplinariedad y resulte de tal modo una cognición situada, construida
socialmente por sujetos y, por lo mismo, significativa para ellos. A lo largo de todo el libro estará
aplicando la contextualización en tal sentido, ya sea cuando argumente su abordaje triangular,
como cuando analice las diferentes metodologías a la luz de la DBAE en Norteamérica o ilustre
el rol de los museos y los educadores dentro de él en la misión de educar a través del arte. De
tal aplicación es que sabrá destacar lo notable o lo errado, pues realiza análisis de situaciones
concretas desde sus especificidades, nunca haciendo traslados mecánicos, ni tomando como
paradigma un modo único de concebir el complejo y personalizado proceso de la enseñanza-
-aprendizaje de las artes visuales.

Por esa razón, la triangulación de su abordaje no significa reconocer una jerarquía en las ac-
ciones, sino por el contrario la naturaleza aleatoria de la secuencia de tales acciones, lo que
supone que en un caso el proceso puede iniciar con la lectura y luego proseguirse con el hacer,
concibiendo ambas acciones en el escenario de su contextualización, o en otro momento va-
riar por completo tal secuencia. Por otra parte, no advertir jerarquías entre ellas viene dado,
además, por la naturaleza epistémica del urdimbre que las constituye, ya que una acción im-
plica a las otras, no son acciones susceptibles de separación formal sin que con ello no quede
afectada o desnaturalizada la complejidad constitutiva que la asiste. Precisamente Ana Mae al
analizar diferentes metodologías del proceso de enseñanza-aprendizaje con obras de artes vi-
suales confirma cómo esa resulta ser una de las fallas más comunes: el convertir lo que debiera
ser un diálogo vivo e irrepetible, en un conjunto preestablecido de pasos que ordena y acata
un algoritmo de procedimientos. También al analizar esas metodologías destaca, en el caso
del Método Multipropósito de Robert Saunders desde la DBAE, a la par que las bondades que
puedan desgajarse de los argumentos de este autor para propiciar las lecturas de las obras de
arte, la limitación de ofrecer soluciones sobre cómo leer, pero sin advertir que junto a ello de-
ben suscitarse problematizaciones, situaciones problematizadoras que se convirtieran en retos
interpretativos para los escolares. En mi experiencia de arte/educador he podido comprobar
lo usual que resulta caer en esa trampa de acatar, por costumbre o rutina, un modelo secuen-
ciado de acciones en el proceso de enseñanza-aprendizaje del arte u ofrecer ejemplos de cómo
efectuar una buena lectura, pero sin considerar debidamente el alto contenido movilizador
cognitivo y afectivo de problematizaciones que no pueden surgir en un escenario de acciones
artificialmente escindidas. Leer es un modo de hacer, al igual que al momento de hacer leemos
y en ambas se manifiesta la razón de su existir en contexto.

Es precisamente la contextualización la acción generadora que Ana Mae Barbosa señala como la di-
namizadora por excelencia del abordaje, que llega a reconocer trascendiendo la figura del triángulo.
De ahí que ella misma confesara:

Parece-nos mais adequado representá-la pela figura do ziguezague, pois os professores nos têm ensi-
nado o valor da contextualização tanto para fazer como para o ver. (2012, p. XXXIII)

97
PARA QUE EL OJO SALTE EL MURO

Ana Mae lo decía “Não é falar sobre uma pintura mas falar a pintura” (2012, 20). Y ese hacer hablar
a las imágenes visuales pasa por todo el cuerpo y por todos nuestros analizadores y por la acción
combinada de construir41 imágenes que implica a la vez su lectura y su cristalización en contexto.

Desde 1995 cuando elaboré una Maestría en Educación por el Arte, primero para el Instituto Supe-
rior de Arte, en La Habana, y luego como Maestría en Arte para la Universidad Autónoma de Nuevo
León, en Monterrey, en 1997, en las disciplinas de posgrados de ambas, relativas a Teorías y teóricos
de Educación por el Arte y a Didáctica de la Imagen, los textos de la educadora Ana Mae Barbosa,
eran bibliografía obligada junto al de otros teóricos como Elliot Eisner, Rudolf Arnheim o Howard
Gardner, por citar algunos, y en especial, su concepción del Abordaje Triangular. Las concepciones
de Ana Mae, su preocupación por la historia y su manera acuciosa de practicarla para el arte/educa-
ción, amén del mencionado abordaje que se nutre de esa historia, siempre han aportado junto a las
luminarias experiencias del cono sur de las hermanas Cossettini, Jesualdo y Luis F. Iglesias, o las del
mexicano Víctor M. Reyes o las del español Gabriel García Maroto, tanto en México, como en Cuba,
el sesgo de lo propio. Amén de ello, tanto en investigaciones de tesis de maestría en Educación por el
Arte asesoradas por mí en el último lustro, como en experiencias artístico/pedagógicas de más larga
data en la formación profesional de artistas visuales, en el Instituto Superior de Arte, es posible adver-
tir el abordaje triangular. En la tesis de maestría de Maikel Rodríguez de la Cruz aplicada a su materia
de Escritura escénica, donde en el entrecruzamiento de las artes plásticas, la literatura, la música y la
historia, encarnado en su Sistema de Acción Texto Abierto, el abordaje cobra sentido, o en la tesis en
proceso de David Ramírez Larsen, donde el abordaje se hace manifiesto en el modo en que se labora
con las imágenes tanto para un curso de Expresión digital como de Creatividad en Diseño Digital,
en preparatorias regiomontanas. El propio David Ramírez Larsen suscribe su bregar indagatorio del
siguiente modo:

Durante todo el primer semestre del año, y las vacaciones de verano, trabajé, quizás con más pro-
fundidad de la necesaria, en el marco teórico de la tesis. Pronto me di cuenta que los conceptos que
había contemplado para mi tema anterior, no eran los únicos presentes en ambos cursos. A la visión
multidisciplinar, la relación entre el hacer y el ver arte, y el fomento de la continuidad, se le habían
sumado, por lo menos, el contexto, el incremento del protagonismo del alumno, y la inclusión de la
obra de arte o diseño profesional en el aula. (2016, 3-4)42

En razón de ilustrar con ejemplos de excelente desempeño curricular en la formación univer-


sitaria de profesionales de la visualidad, donde el abordaje se hace manifiesto desde una doble
articulación tanto de naturaleza pedagógica como creativa y, por lo mismo, como demostrativo
de su razón de ser como episteme del arte y de su enseñanza, en el sentido que argumenta Ana
Mae Barbosa:

41. Construir en el sentido en que la artista y educadora brasileña Lucimar Bello emplea un neologismo para calificar los fundamentos sobre
los que se asentaba su proyecto educativo en arte: “constructivación” (construcción en la acción), “intentando romper con lo convencional,
quiero decir, intentando crear rupturas con las reglas ya establecidas” (PEREIRA FRANGE, Lucimar Bello. Por que se esconde a violeta.
São Paulo: Annablume Editora, 2010, p. 117).
42. El subrayado es mío. La tesis en proceso se titula La creación y el análisis desde la integración, la continuidad y el contexto. Experiencias
tempranas en la educación artística a nivel medio superior. Facultad de Artes Visuales, UANL, Monterrey/MX, 2016.

98
Quando falo de conhecer arte, falo de um conhecimento que nas artes visuais se organiza inter-rela-
cionando o fazer artístico, a apreciação da arte e a história da arte. Nenhuma das tres áreas sozinha
corresponde à epistemología da arte.

O conhecimento em artes se dá na interseção da experimentação, da decodificação e da informação.


(2012, 33)

Mostraré el conocimiento del arte y el entrecruzamiento de estas acciones seminales de experimen-


tación, de información y de decodificación, en los proyectos grupales que a modo de ejemplo abor-
daré y desde las cuales fundamento cómo el hacer arte y el enseñarle se muestra como dos caras
de la misma moneda. Estos proyectos se sucedieron en la Facultad de Artes Plásticas del ISA (La
Habana), de 1997 al 2004, con una breve incursión en otros ejemplos puntuales más cercanos en el
tiempo, efectuados dentro la fructífera experiencia de Medios Múltiples en la UNAM, en Ciudad
México. En todos ellos se pusieron de manifiesto complejas y sistemáticas interrelaciones de armo-
nización entre los sujetos participantes, interacciones presididas por el debate franco y abierto re-
sueltas en decisiones creativas grupales, pobladas de acciones simbólicas de plural naturaleza y de
singular arraigo en el campo cultural y educativo de mi país. En todos ellos es altamente revelador
el modo en que se hallan entrelazados el hacer, el leer y el contextualizar, aunque en su momento
no hayan sido identificados de tal manera o no se hayan advertido con el grado de conciencia que
hoy pongo de manifiesto.

Tales logros son en buena medida el resultado de una estrecha integración de los talleres con las
teorizaciones o, para decirlo con mayor exactitud, una exigencia de la práctica artística para alcan-
zar un sólido basamento; una comprensión cabal de los complejos procesos de mediación en los
cuales una práctica cultural cualquiera se halla contenida y, por tanto, el convencimiento de que
la formación profesional no es solo la de un `hacedor` de imágenes, sino la de un intelectual que
problematiza y reflexiona críticamente sus medios, sus modos y sus fines de socialización de obra,
donde no es posible, a la par, concebir un proceso público con tales imágenes sino despierta parejos
cuestionamientos y aprestamientos en el espectador, de donde vuelve a manifestarse la pertinencia
del abordaje triangular, que concita un esfuerzo cognitivo/afectivo de desentrañamiento y fruición
situado.

Cada una de estas experiencias grupales seguía la pauta que como ámbito propiciaba el artista/
profesor, que pudiera identificarse como mediador/provocador, y a partir de él y de las tareas
que configuraban el esquema conceptual referencial operativo que grupalmente fuese adoptado,
se desenvolvía el proceso de la práctica artística (Cabrera, 2010). La práctica artística del artista/
profesor y su poética se constituían en el dispositivo mediador de base que desataba los proyectos
y esta práctica la analizamos sustentada en el abordaje triangular. En el caso de Galería DUPP
(Desde Una Pragmática Pedagógica), desde 1997, tal dispositivo mediador se hallaba en la po-
ética del profesor René Francisco centrada en la idea del artista como un reparador, como un
constructor de máquinas sensoriales y de sentido. De ahí su propuesta del taller del artista como
el taller de un mecánico y del principio de construcción discursiva desde los supuestos de una
Carta tecnológica. Pensemos cuánto posee esa Carta de entrelazamiento entre un hacer, un leer
y un contextualizar.

99
Figura1. René Francisco.
Taller de reparaciones.
Materiales diversos. 14 x 8
x 5 mts.

Figura2. René Francisco.


Carta tecnológica. Materia-
les diversos. Dimensiones
variables.

En sus clases el profesor trabajaba con la idea de que el artista construye sus propuestas haciendo uso
de herramientas y que cada artista debe tener su “caja de herramientas”. Estas mismas herramientas
se constituían en importantes elementos de mediación para el discurso que articulaban, tanto per-
sonalmente como en grupo, y para la relativización de un componente esencial de los procesos de
mediación de los productos simbólicos: los espacios de exhibición, ya que Galería DUPP trabajaba
con la idea de galería ubicua: ella se localizaba en el espacio previamente elegido para mostrar obras,
fuesen estas objetos o performances, en una tienda por departamentos o en una céntrica calle. Así

100
quedaba emplazado el concepto de galería y, a la par, se le trascendía al extenderlo hacia cualquier
espacio de la ciudad fuese abierto o cerrado. El hecho de que el hacer fuese gestado en un proceso de
intervención en sí mismo efímero y de que en él quedase implícito un leer en contexto, nos permite
evidenciar la pertinencia de aplicar el abordaje, tanto como argumento de análisis de una poética
como revelador de un modo de aprender. Aprender que revela un doble cauce formativo, en un sen-
tido para los estudiantes artistas implicados en el proyecto y, en otro, para el público que participase
de tales experiencias.

Figura 3. Interven-
ción en la calle 23,
La Habana, de la
exposición “Con
un mirar abstraído”

“Con un mirar abstraído” fue la exposición/performance de Galería DUPP desarrollada durante


una tarde en la céntrica calle 23, en el Vedado, La Habana, los miembros del grupo eligieron inter-
venir cada uno de los mosaicos con obras de artistas de la vanguardia, siguiendo algunos de ellos
procedimientos conceptuales característicos de sus propuestas personales. El conjunto de media-
ciones manifiestas en la realización de esta muestra, desde la presencia de público no avezado junto
a espectadores preparados y la libre interacción con todo lo concurrente, resultó un buen detonante
para los debates sostenidos en el grupo y abrió aún más las posibilidades de obligada interrelación
de teoría y práctica y, muy en especial, la urdimbre manifiesta en el hacer, el leer y el contextualizar.
El punto de culminación de esta experiencia llegó con la participación en la VII Bienal de La Ha-
bana con la obra “1,2, 3 probando”, de la cual cada miembro realizó sus apuntes personales, y que
quedó resuelta en micrófonos de hierro fundido dispuestos en los muros del Morro hacia el interior
del castillo o hacia el mar y en salas donde quedaban dibujadas los apuntes de lo que originalmente
se había concebido para el muro del Malecón habanero, espacio citadino ideal para la instalación
de la obra. Una vez más la dimensión de las mediaciones se constituían en asunto sustantivo de
la propuesta, tanto desde su concepción, como de su realización y emplazamiento, que abogaba
abiertamente por la urgencia del diálogo entre los cubanos de la Isla y los que vivían fuera de ella
diseminados por el mundo.

101
Figura 4. 1, 2, 3 probando
Galería DUPP. Hierro fun-
dido y hormigón. Dimen-
siones variables. Noviem-
bre, 2000.

Sucedieron a DUPP en el tiempo, encabalgándose una experiencia con la otra, Enema (2000) y el
Departamento de Intervenciones Públicas (2001). Enema, liderada por Lázaro Saavedra, otro artista/
profesor de notable trayectoria en la década de los 80 en la Isla, al igual que René Francisco, inaugu-
raba un proyecto colectivo de una textualización ilimitada, incluido su particular sentido de reapro-
piación de artistas y obras de culto del arte contemporáneo del performance y lo corporal (Marina
Abramovic, Tehching Hsieh, Vito Acconci y otros). El proceso de aprendizaje era desenvuelto como
proceso de producción/reapropiación, donde desde el cuerpo colectivo de los jóvenes estudiantes se
vivía una reedición tropical de Blografía de la Abramovic de 1992, bajo el título de “Rompiendo el
hielo” o se ataban todos por la cintura con una soga y vivían de ese modo una semana como propuesta
de obra en las Romerías de Mayo de la ciudad de Holguín, en el oriente del país, y reeditaban así el
performance de Hsieh y la Montano de un año atados por la cintura.

Figura 5. Amarre. Colectivo


Enema. Mayo, 2001

102
Esas reapropiaciones no eran, empero, mera citación, sino un rehacer desde el cuerpo gregario del
colectivo lo que conllevaba a una nueva lectura de la obra de referencia y a una realización performa-
tiva en un locus radicalmente distinto al de las obras de partida. Vuelve a mostrarse oportuno señalar
cómo traer a colación el abordaje triangular para estas acciones aporta sesgos analíticos de utilidad
en la formación de los artistas, pero de indudable eficacia si deseáramos acercar a todo público a un
obrar de esta naturaleza.

Un punto culminante del desenvolvimiento del proyecto fue la exposición del colectivo “Recursos
humanos” que durante dos semanas se mantuvo bajo el principio de que diariamente cada miembro
del colectivo se daba a la tarea de re-apropiarse de la acción que había realizado el día anterior su
compañero, lo que resultó que al término de la exposición el colectivo había desenvuelto más de un
centenar de performance. Y en cada reapropiación los propios estudiantes artistas revivían la presen-
cia de un abordaje triangular. Para la ocasión el colectivo se hizo de un uniforme y de una tarjeta de
asistencia personal que cada uno marcaba a la entrada y salida de su jornada laboral en la galería, en
directa alusión al performance de Tehching Hsieh de un año marcando una tarjeta. El propio accionar
de la apropiación como principio propiciaba la presencia de las acciones coordinadas de hacer/leer/
contextualizar en personal urdimbre.

Figura 6. Performance a la entrada de la galería


Exposición Recurso Humanos del Colectivo en Galería Habana (2003).

Figura 7. Fraternidad / Idea de Humberto Díaz, DIP, Parque de la Fraternidad,


La Habana, febrero 2002.

El Departamento de Intervenciones Públicas por su parte tuvo como artista/profesor a Julio Ruslán
Torres Leyva, uno de los miembros de DUPP que, una vez graduado, fue seleccionado como docente
de la facultad. En el caso de DIP, la teoría de la deriva de Guy Debord, leída desde el contexto cubano

103
de fin de siglo y la poética del joven profesor articulada con lo que denominaba como laboratorio de
la conducta y que identificaba bajo la sigla L-CONDUC-A-RT, donde se reunían en orgánica articu-
lación, entre otros, autores como Michel Foucault, John Dewey, Paulo Freire, Enrique Pichon-Rivière,
fue pábulo inicial desde el que se nucleó la aportación que cada estudiante hizo al programa que se
desenvolvería como un conjunto de ejercicios/obra alrededor del concepto de lo público y lo per-
formativo. Cada uno de esos ejercicios ofrecía en su hacer un modo de leer la ciudad y de aparecer
sorpresivo en el contexto urbano, que concitaba a la par en los transeúntes una participación de múl-
tiples niveles de implicación, donde es posible advertir, una vez más, cómo hacer, leer y contextualizar
se constituyen en acciones fundacionales de las imágenes artísticas; mas a la vez asunto diario que la
mirada artística rescata en su singularidad como maneras metafóricas de accionar en la ciudad y de
contribuir a hacer pensar y sentir los modos de vivirla. DIP coronaría de modo magistral su propues-
ta con la organización y realización de “Experiencia de acción 30 días”, un evento que dentro de la
VIII Bienal de La Habana reunió a más de 50 artistas de América y de Europa, en noviembre del 2003
y que resultó ser de lo más notables que se presentase en esa edición y donde el abordaje triangular
está presente en cada acción hecha y en el proceso mismo de participación que implicaba para los es-
pectadores advertidos o no de su realización un sentido de implicación de gradientes insospechados.

Figura 8. Acción RECORRIDO. Viajes El


Aleph. Conferencia del Departamento en
ómnibus por la ciudad. Durante Experien-
cia de acción 30 días.

Cada uno de los proyectos referidos ofreció valiosas indicios sobre los procesos de hacer / leer /
contextualizar que concitaban, donde las particularidades que lo constituían hacían de cada uno un
ejemplo singular de cómo articular los aprendizajes de la práctica artística desde los procesos mismos
de construcción simbólica y donde el docente, situado en relación de horizontalidad respecto a sus
estudiantes, hacía de ello un trayecto de relieves irrepetibles. En todos los casos los “objetos” cultura-
les construidos, fuesen efímeros o no, resultaban mediados no solo por el conjunto de conocimientos,
creencias, representaciones o pericias de los jóvenes artistas/estudiantes como mediadores regulados
de su propio aprendizaje, sino también conscientemente dispuestos en postura de apertura respecto
a las representaciones y creencias de los potenciales destinatarios de su discurso, fuesen espectadores
del mundo del arte o casuales espectadores no advertidos. El mundo cultural de referencia con el cual
se articulaban los discursos de estos proyectos transitaba rizomáticamente por una práctica artística

104
nutrida tanto por un sesgo interdisciplinario como intertextual, donde poética y prosaica, teoría y
práctica tejían simultáneamente el contexto de una vivencia simbólica que crecía al compartir y que
en todo momento suscitó atención y reconocimiento del campo cultural.

Por último, de años atrás pero para traer a colación ejemplos un tanto más cercanos en el tiempo, ha-
remos breve referencia al Taller de Arte y Experiencia que desenvolvió Julio Ruslán Torres Leyva, den-
tro del proyecto Medios Múltiples de la UNAM, en Ciudad de México, liderado por el artista maestro
José Miguel Casanovas, la pieza colectiva concebida giraba alrededor del problema de la inseguridad
citadina. Tras largas jornadas de debate de cómo alcanzar cristalizar la pieza, surgió la propuesta de
“Seguridad afectiva” (2010), alejada de cualquier referente artístico al uso propio de la identificación
de la inseguridad o la violencia. Fueron elegidas y realizadas varias propuestas performáticas y en
todas la interacción y el vínculo con el público transeúnte era central: el hacer se concretaba en ac-
ciones que revisitaban lo cotidiano desde el sesgo de lo inesperado y sorpresivo, en donde participar
se convertía también en un leer en contexto desde una dimensión reflexivo vivencial. Así un saludo
que podía terminar en abrazo dibujaba el inicio de un vínculo fortuito que se reconocía/leía pleno de
cordialidad en un ambiente citadino ganado por la prisa, la incomunicación y la violencia.

Figura 9. Cartel Espacio para la seguridad Figura 10. Saludo cubano


afectiva Performance en una plaza de Ciudad de México
Ciudad de México

Las artes visuales en nuestro continente realizada por grupos de creación o por creadores que apues-
tan con más insistencia a socializar sus operaciones no en los sitios, ni desde los reclamos consa-
grados por el mainstream, sino en ámbitos comunitarios del más democrático acceso, como hace el
grupo Bijari, en Brasil, por ejemplo, o Jimena Hernández con proyectos comunitarios en la región de
Medellín, en Colombia, exhiben un discurso donde lo popular y lo culto, ejercicios reflexivos críticos
sobre condiciones de vida en planos de socialización compartida, se confunden y constituyen un
modo singular de ver mezcladas imágenes de los más encontrados orígenes. El abordaje triangular se

105
muestra, entonces, tanto en manos de artistas, de educadores, de educandos y de todo público, como
una excelente herramienta para hacer que el ojo salte el muro de la mansedumbre, de las miradas
complacientes, del pensamiento domesticado, de los sentidos adormecidos y compartimentados y
devele un nuevo modo de estar y fruir en el mundo.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae (2012). A imagen no ensino da arte. Sâo Paulo: Editora Perspectiva.
______ (1998). Tópicos Utópicos. Belo Horizonte/MG: C/Arte.
BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira da (Orgs.) (2010). Abordagem triangular no ensino das artes
e culturas visuais. São Paulo: Cortez Editora.
CABRERA SALORT, Ramón (2010). Paulo Freire y Pichon Rivière en los cauces del ISA. In: Indagaciones sobre
arte y educación. La Habana/Cuba: Editorial Adagio, pp. 267 – 281.
LANDER, Edgardo (Comp.) (2000). La colonialidad del saber, eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
latinoamericanas. Caracas/Venezuela: CLACSO.
PEREIRA FRANGE, Lucimar Bello (2010). Por que se esconde a violeta. São Paulo: Annablume Editora.

106
2ª PARTE
COMUNICAÇÕES

107
Criatividade: o inconsciente
como protagonista da gênese
da obra de arte e da personalidade
Karla Gonçalves

1. PRIMEIROS ESTALOS

Fui apresentada à obra de Jung nas minhas pesquisas ainda no trabalho de conclusão de curso na
graduação em Fotografia. Encantada, refiz os olhares que estava elaborando nos meus trabalhos aca-
dêmicos, aprofundando-me com intensidade na busca dos significados provenientes dos sonhos. Re-
lacionando arte e inconsciente em vivências, experiências, análises e ampliações simbólicas, percebi a
força existente nos caminhos inesperados e impensados do processo criativo. Passei a observar a obra
de arte de forma alargada: os caminhos construídos na gênese criativa traziam informações valiosas
que corroboravam com um entendimento maior sobre as subjetividades do artista.

Na elaboração do projeto, contendo ensaio e vídeo-arte que serviram de base para minhas primei-
ras percepções, intitulado Untitled Tantibus (2013), reconstruí, imageticamente, um pesadelo de
infância que se repetia ciclicamente. Necessitei ir ao cenário por onde se passava a primeira cena
do sonho. Voltei à casa da minha avó, onde vivi grande parte da minha infância, relacionando-me
com um espaço diferente, cheio de sensações únicas. Meu objetivo era contar o pesadelo através
dessas sensações, que depois descobri serem símbolos, indo, portanto, além da narrativa, que não
se fazia mais necessária, pois eu tinha em mãos uma força maior, que falava mais do que a própria
memória do pesadelo.

Fotografei os elementos mais fortes que apareciam para mim (lodo, água, folhas, escada, tanque).
Sobrepus cada um nas imagens do ensaio e me coloquei, igualmente, como objeto de pesquisa:
eram autorretratos nostálgicos, transpostos com dor, medo, visão e ansiedade.

Nesse processo, percebi que o que estava construindo passeava por questões intrínsecas a meu ser,
dialogando com minha história, fazendo emergir assuntos dos quais não imaginava ter que lidar. O
momento criador me dava chaves por onde acessava portais de compreensão, permeados por assun-
tos latentes, que descansavam no íntimo das minhas memórias e eram, naquele momento, o assunto
principal que reconfiguraria e desafiaria o meu presente.

108
Figura 1. Ensaio Untitled Tantibus, 2013.
Fonte: a Autora.

A partir desse trabalho, compreendi a força da arte. Na verdade, passei a compreender a criatividade
como uma energia que motiva, ressignifica instâncias, abre espaços para a subjetividade e o contato
com o intangível. Dessas observações, criei uma vivência chamada Cura pela arte – O despertar cria-
tivo (2015), propondo um passeio pelos aspectos da personalidade abordados com/por influenciados
símbolos, através do contato com a arte.

As primeiras vivências foram aplicadas em grupos, em 2015, no Recanto do Ser – um espaço que
reúne, em Recife, atividades terapêuticas, educacionais e espirituais. Nos encontros, os participan-
tes eram guiados, por mim, em técnicas de imersão, onde visualizavam-se em cenários imaginários,
encontrando-se consigo mesmos, enquanto crianças.

Nesse passeio mental, os participantes deveriam fazer perguntas, mentalmente, a si mesmos, obser-
vando os elementos que mais chamavam a atenção durante a visualização. Ao final, desenhavam, com
uso de diferentes materiais, as sensações, sentimentos, respostas, objetos, cenários que apareceram
durante a dinâmica.

Figura 2. Vivência -
Cura pela Arte - O
despertar criativo, 2015.
Fonte: a autora.

Com ajuda da intuição, da entrega ao momento, da presença, cada um pôde expor tais sentimentos
através da arte, elaborando o que cada elemento traçado poderia corresponder, enquanto sentimento

109
e sensação. Os encontros tinham como objetivo dar espaço para que cada pessoa pudesse ter um mo-
mento livre para conversar com o inconsciente, deixando-o ditar o que deveria emergir.

Fayga Ostrower (2014, p. 37) acredita numa potência criadora que o homem usufrui para captar e
configurar as realidades da vida, que se refaz sempre e que a produtividade do homem não se esgota,
mas, ao ser posta em execução, apenas se amplia. Logo, é nesse sentido que proponho o conceito de
arte e criatividade: como uma capacidade, potência que faz parte das habilidades e virtudes humanas,
com o pé nos caminhos ditados pelas forças consciente e inconsciente.

2. SUBLINHANDO SIMBOLOGIAS, ELABORANDO O PROTAGONISTA

A obra de Jung traz-nos uma visão diferenciada da criada por Freud acerca do conceito de inconscien-
te, símbolos e, pode-se dizer, subjetividades. Acreditando num conjunto de conhecimentos, práticas e
sensibilidades que abarcam toda uma época, Jung indica que o material encontrado nos significados
que os símbolos trazem tem caráter transcendente, afirmando que eles vão de encontro com aquilo
que está, em primeira instância, perto de uma compreensão mais óbvia que o pensamento pode ter.
Transbordam de impressões associativas e efêmeras, mas alongam-se no tempo e no espaço.

No inconsciente, encontramos rastros do cotidiano: memórias, desejos, necessidades, sentimentos.


Tudo o que vivemos no dia e não damos conta de processar cai nas mãos do inconsciente, que, por
sua vez, faz uso de tais vivências para despertar o sujeito para as urgências do seu self, que é o aspecto
da psique responsável por moldar a personalidade. Nos sonhos, segundo Jung (2012), o inconsciente
se revela usufruindo dos símbolos, que podem ser os rostos que vimos no dia, os sentimentos que
reprimimos, as sensações que tivemos, para criar histórias que nos informam preciosidades acerca da
nossa personalidade.

Os símbolos estão permeados por significados que vão além da obviedade, vão além do senso comum,
dos conceitos concedidos pela semiótica. Para a psicanálise, os símbolos oriundos do inconsciente fa-
lam sobre questões maiores, têm árvore genealógica e bebem de entendimentos que preexistem a nós,
ou seja, estão ligados a nossos antepassados, a outras crenças, a acepções visionárias, com significados
múltiplos, que não se restringem à cultura de quem os concebe.

Logo, pode-se dizer que, no mundo mágico dos sonhos, lidamos com questões da nossa intimidade,
mas também dialogamos com todos os nossos antepassados, com a humanidade. É a partir dessa vi-
são que elaboro conexões com o fazer criativo, que também bebe da riqueza do inconsciente. Venho
entendendo a obra de arte como uma causalidade supra pessoal. O devir da obra parte de uma inquie-
tação individual, mas corrobora com o entendimento e acesso ou reconhecimento dos espectadores
com as questões que emergem dela. Para (JUNG, 2012, p. 83):

Quem fala através de imagens primordiais43, fala como se tivesse mil vozes; comove e subjuga, ele-
vando simultaneamente aquilo que qualifica de único e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva
o destino pessoal ao destino da humanidade e com isto também solta em nós todas aquelas forças

43. Neste caso, quando fala sobre imagens primordiais, Jung se refere aos símbolos arquetípicos.

110
benéficas que desde sempre possibilitaram a humanidade salvar-se de todos os perigos e também
sobreviver à mais longa noite.

O artista, nos caminhos que percorre, está numa busca incessante, sem mapas, bases ou artifícios ge-
néricos que o auxiliariam a chegar na resolução de suas angústias, mas tem, a seu favor, a intuição, que
o guia no fluxo criativo, alimentando-o com esperanças, dissipando, aos poucos, a confusão primeira,
que causou a ação e a busca em trazer para a matéria aquilo que, até então, não conseguia exprimir
apenas com palavras.

No sentir do meu próprio processo criativo, na análise do mesmo, tive que ser coerente e gentil co-
migo. Este artigo não se reduz em descrever os procedimentos que tomei, mas pretende abordar o
momento criador como um canal florido, onde o íntimo vem à tona com capacidades de reconfigurar
visões, princípios e aspirações, não só do autor, mas de todo um momento. Foi nesse estado de estalos
internos que vivenciei a crítica de processos, passando a perceber que, nos rastros deixados no pro-
cesso criativo, tais símbolos dormiam e, ao serem acordados, poderiam falar o que seria, até então,
inimaginável.

3. CONECTANDO SENSAÇÕES

Até que momento do processo criativo a intencionalidade dá espaço para as tramas do inconsciente?
A execução de ensaios, de simples desenhos, arrumações, edições de trabalhos sempre me foram in-
trigantes. Ao nos colocarmos no lugar de criadores, buscamos pelo domínio daquilo que estudamos,
analisamos e vibramos. No entanto, há um momento em que as rédeas do controle vão se tornando
insustentáveis. E é onde entram o insight, a intuição e sentimentos afins, que impulsionam a própria
gênese da criação e revigoram o processo, instigando o ser artista a responder suas perguntas e a le-
vantar outras.

O momento do descontrole pode ser observado no próprio ato criador ou nos rastros deixados em
forma de símbolos nos esboços, anotações e acervos do artista. Conecto, nesse momento, a visão
da Crítica de Processos como sendo importante para o desenrolar da percepção das ações do in-
consciente no fazer artístico. Como Jung diz, não podemos delimitar a análise de uma obra de arte
entendendo-a como uma simples extensão do autor. Não podemos diminuí-la à própria análise. Mas
podemos percorrer os caminhos que o artista trilhou, passando pelo filtro da sensibilidade, onde a
obra deixa de ser íntima e passa a representar muitos outros.

Uma vez que me aprofundei nos estudos da Psicanálise Junguiana, tive a oportunidade de tecer re-
lações que me aproximavam de uma afetuosidade para com os traçados do processo de criação ar-
tística. Para Jung (2012, p. 83), “O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa
ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada”. Há, portanto,
a construção de significados através de uma conjuntura sensível ofertada por tais símbolos.

Ao tratarmos do momento criador, adentramos num espaço mágico de pura inspiração, no qual o
artista está aberto e presente: concentra-se nesse presente, ainda que galgue seus passos pela resolução
do seu passado, ou na aspiração do seu futuro. Ele está entregue ao fluxo do agora, onde amplia suas

111
percepções e se relaciona com sua intimidade. É o momento onde está consciente de si mesmo e, atra-
vés da percepção sobre o lugar que habita, desbrava caminhos que o levam a flutuar no inesperado.

A Crítica de Processos nos apresenta uma nova forma de analisar o momento criador. Os rastros são
a fonte das elucubrações pessoais e externas ao artista. Para Cecília Almeida Salles (2014, p. 59), “A
criação parte e caminha para sensações e nesse trajeto alimenta-se delas”. Não podemos dizer exata-
mente o que o artista sentiu ao optar por determinado suporte, material, ferramenta, técnica, mas, nos
seus esboços, cada escolha traz histórias que não foram primariamente contadas e que podem trazer
um entendimento maior à obra.

O processo criativo, nesse caso, tem tanto valor como a obra “acabada”, pois nele há indícios sobre os
estalos que o artista teve nas entrelinhas da sua criação. Tendo em vista que a evolução de um projeto
artístico bebe do inconsciente, poderíamos dizer que os rastros encontrados são como símbolos ar-
quetípicos e que esses irão dar cabo de explicitar outras particularidades do artista, assim como, em
muitos momentos, tomar a direção dos caminhos trilhados, desenvolvendo os sentidos antes inalcan-
çados pelo consciente.

4. TÔ DESTRUTURANDO PRA PODER ESTRUTURAR

Sempre acreditei na força da criatividade como sendo inerente ao ser humano. Ela, diferentemente do
que imaginamos, está presente nos afazeres mais simples do dia-a-dia. Sempre que repensamos algo,
que reformulamos a fala de alguém, que usamos uma peça do guarda-roupa de uma forma diferente,
que criamos um caminho novo para o trabalho, estamos fazendo uso da criatividade.

Hoje, como professora de aquarela e pesquisadora, aplico a vivência do despertar criativo nos cursos
que ministro mensalmente. As experiências desencadeadas através da técnica de visualização imer-
siva são das mais variadas. Em níveis diferenciados, cada participante traz elementos que estão em
camadas distintas do inconsciente. E, por vezes, não entendem o porquê de aparecerem ou o signifi-
cado de cada um.

Para ampliar um símbolo, é necessário observá-lo com a subjetividade que o confere. Ele tanto pode
abordar questões oriundas de histórias sagradas, universais, transcendentes, como pode ter um signi-
ficado que só é explicado a partir da visão e da bagagem da pessoa que o contemplou.

Vivemos sob as pregas de uma cultura que distancia os estados do sentir do racional. Na maioria das
vezes, nos afastamos do fluxo do sentimento, atendo-nos ao exercício de técnicas que estão longe do
diálogo com o íntimo. As pessoas estão cada vez mais voltadas à prática de atividades que isolam e
extinguem a criatividade, como se ela não coubesse em certos espaços, quando, por outro lado, tem
papel importante, senão em todas, mas na maioria das práxis humanas.

Se a criatividade é parte importante da construção da personalidade, por ser esse um canal de expres-
são de latências, subjetividades e sentimentos em forma de símbolos, assim como o sonho é o berço
de tais elementos, então, todo homem é capaz de criar, ainda que não saiba decifrar ou ampliar os
significados provenientes deles.

112
Para que isso seja possível, o contato com o silêncio, a observação e a entrega ao sentimento fazem-se
importantes para que haja um contato maduro com as imagens primordiais que habitam a psique. O
processo criativo é esse momento de pausa da realidade em que vivemos, onde há um passeio que
parte do consciente e que se renova quando aquele que cria se entrega às manobras inesperadas do
inconsciente. Fayga Ostrower (2014, p. 53) fala sobre as relações que se dão no processo criativo:

Compreendemos que todos os processos de criação representam, na origem, tentativas de estru-


turação, de experimentação e controle, processos produtivos onde o homem se descobre, onde ele
próprio se articula à medida que passa a identificar-se com a matéria. São transferências simbólicas
do homem à materialidade das coisas e que novamente são transferidas para si.

Dessa forma, pude observar, primeiramente, através do contato com a análise de processos que fiz
do meu próprio trabalho, e, posteriormente, com o desabrochar infindo de símbolos derivados das
vivências que ministrei, que, no fazer artístico, além dos estalos de consciência, estruturação de pen-
samentos e expressão de subjetividades, a conversa com o símbolo oferece a todos que se propõem ao
momento criador, à experiência da arte, ter em mãos terra fértil para o cultivo de seus sentimentos e
a cura de todo o material que foi detido pelo inconsciente, não processado anteriormente.

O arquétipo, como visto ainda na primeira parte deste artigo, é construído por conhecimentos coletivos,
que, quando acessados ou decifrados através da obra de arte, trazem entendimento, clareza e compreen-
são para todo um momento histórico. A partir disso, senti a necessidade de ampliar a vivência, dando a
ela um momento de criação coletiva, onde cada participante viria a intervir no desenho do outro.

Figura 3��������������
���������������
. Desenhos co-
letivos da vivência “Cura
pela Arte – O despertar
Criativo”, 2016.
Fonte: a autora.

Como produto desses encontros, tínhamos desenhos com potência de expressão ainda maior, nos
quais cada componente apresentado tecia relações com aquele que preexistia. No final, todos os de-

113
senhos passavam mensagens que vibravam com a mesma intensidade, trazendo união para o grupo.
No exercício da fala, os participantes, em sua maioria, atestavam a força que seus desenhos ganharam
após passar pelas mãos de outra pessoa. O desfecho de cada desenho era inesperado e, nesse caso, as
mensagens se tornavam mais vivas.

O sentir integrado e compartilhado aproxima as pessoas à própria experiência. As demandas que


surgem do inconsciente são maiores, porque a estrutura do grupo também o é. Reitero aqui a visão de
Jung acerca da sensibilidade do artista que o leva a trazer para a sua realidade questões que até então
não tinham solução. O artista se molda em seu próprio fazer e auxilia outras pessoas a partir da sua
percepção aflorada.

Ainda há muitos caminhos a serem vividos e explorados. Há muitos símbolos a serem acolhidos pela
consciência. A experiência do processo de criação é como um mar repleto de cardumes de peixes
excêntricos, criaturas coloridas, escondidas nos arrecifes mais profundos. Nós, criaturas da terra, ao
adentrarmos um espaço como esse, sentimos inimagináveis exclamações, sensações, presságios, re-
ceios, vontades, pulsações.

Desbravar o processo criativo, através de seus indícios é viver essa aventura. Virgínia Burden, (1993,
p.47) fala sobre a cura advinda de momentos de intuição, que chegam quando estamos vivendo a fase
inicial do processo, regada pela indagação, que nada mais é do que o próprio impulso criador:

Uma entidade totalmente nova e mal percebida entra em cena – é a figura central de uma nova ordem
das coisas. E, à medida que nos damos conta da inteireza e da infinita segurança dessa “voz” nova, so-
mos levados a confiar cada vez mais nela, relaxando sempre o tirânico poder do intelecto para dar-lhe
espaço (grifo do autor).

Concluo que inclusive a conclusão desse artigo advém do próprio fluir, que se reconfigura e me mos-
tra que cada vivência do despertar criativo é única, com elementos novos a serem trabalhados. Sem-
pre que olho para um trabalho, enxergo algo novo, com novo significado, nova leitura e sentimento. A
própria intuição se faz presente na criação da mediação dela, onde eu mesma tenho que estar atenta,
presente e entregue à dinâmica.

REFERÊNCIAS

BURDEN, V. O processo da intuição: uma psicologia da criatividade. 9. ed. São Paulo: Pensamento, 1993.
GONÇALVES, K. E. S. Untitled Tantibus. Recife: [s. n.], 2013.
JUNG. C. G.O espírito na arte e na ciência. 7. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2012.
OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. 30. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014.
SALLES, C. A. Gesto inacabado. 6. ed. São Paulo: Entremeios, 2014.

114
A arte da contação de história
como dispositivo de interação
de uma criança com TEA
Gracineia Maria Rodrigues Cruz/ Odailton Aragão Aguiar

A escola regular, que hoje abraça a ideia de um espaço inclusivo, constitui-se em um universo onde
realidades distintas se encontram, transformando a sala de aula em um espaço de troca de experiên-
cias múltiplas. Professor, alunos típicos e com algum tipo de necessidades diferenciadas são agentes
dentro do diálogo que o ambiente escolar proporciona. No entanto, cabe lembrar que, na prática, o
aluno que possui a necessidade de um atendimento diferenciado é, na maior parte do tempo, deixado
por conta própria ou minimamente assistenciado. O professor lida com diversidades, na sala de aula,
o tempo inteiro e ainda não está devidamente qualificado quanto ao atendimento da criança que não
se enquadra dentro dos padrões da “normalidade”.

Considerando os aspectos acima citados, percebemos o quanto é importante no contra turno do ensi-
no regular o acompanhamento a esse grupo de crianças que merecem um cuidado especial, de forma
que uma equipe de profissionais multidisciplinar colabore para a construção de resultados positivos,
no que diz respeito à superação das limitações impostas, proporcionando a reabilitação da pessoa
com Transtorno do Espectro Autismo.

A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (NY, 2007), promulgada pelo Estado
Brasileiro pelo decreto 6.949 em 25/08/09, resultou numa mudança paradigmática das condutas
oferecidas às Pessoas com Deficiência, elegendo a “acessibilidade” como ponto central para a ga-
rantia dos direitos individuais. A Convenção, em seu artigo 1º, afirma que a pessoa com deficiência
é aquela que “têm impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou senso-
rial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. (MINISTÉRIO DA SAUDE,
2013, p.6, grifos do autor)

Longe do contexto de uma escola típica com ideias inclusivas, mas perto de uma realidade que se pro-
põe a trabalhar, no contraturno, exclusivamente com alunos cuja necessidade de atenção e cuidado
se estabelece em uma ordem diferente, colocamo-nos diante de vários desafios que nos conduz a um
caminho de perguntas que nos torna desejosos de respostas. Que resultados podem ser colhidos den-

115
tro da experiência que soma o trabalho de arte como meio de inclusão da criança com Transtorno do
Espectro Autismo (TEA)44 dentro do contexto pibidiano de Artes Visuais/Educação Especial? E qual
a importância desse momento de encontro entre a criança e a arte através da oralidade e do processo
de construção plástica que envolve um laboratório entre as mãos e o olhar?

Diante de tais perguntas, demos início a um conjunto de práticas, com o objetivo de obter algumas
das possíveis respostas aos questionamentos previamente elaborados por nós, diante das adversidades
que a criança com deficiência intelectual apresenta, assumindo, também, o desafio de elaborar um
método de ensino individual, assim como o material específico para a ação da contação de história e
que atenda à necessidade da criança de maneira a alinhar as nossas expectativas com as possibilidades
de envolvimento da criança e o seu aprendizado.

1. A CONTAÇÃO DE HISTÓRIA COMO DISPOSITIVO “MÁGICO”

A força das histórias, assim contadas, pode ser vista nos inúmeros “recomeços” dos contadores de his-
tórias, nas roupagens novas com as quais adornam seus contos, dando aparência de “novidade” às his-
tórias que vêm sendo contadas há centenas de anos e, principalmente, no aceite da memória coletiva,
em que o indivíduo se reconhece como participante do grupo. (GOMES, 2012, p.30, grifos do autor).

A contação de história é uma arte desafiadora e de ordem milenar. Sentar, ouvir e contar histórias
tem sido parte da longa jornada humana, realizada a partir dos primeiros agrupamentos humanos
até os dias atuais, passando por todas as civilizações, sendo utilizada como recurso de transmissão de
conhecimento e parte do exercício civilizatório e imaginativo do sujeito. A narrativa é um fio invisível
que conecta uma geração a outra e diluí o tempo, colocando o passado dentro do presente através
da oralidade, proporcionando assim um encontro de almas. “A voz é o instrumento da profecia, no
sentido mesmo de que ela a faz. A voz soa ou se cala ao coração – ao coro – do drama” (ZUMTHOR,
1997, p.294).

Ser contador de história, muitas vezes, é resultado da prática de ouvinte assíduo das narrativas ora
feitas por uma avó querida e ora por uma mãe afetuosa, incluindo também nessas categorias de nar-
radores pessoas simples que, de ouvir, aprenderam a ser gente.

Por que o gosto de ler não passa apenas pela obrigação, mas pelo contato amoroso e prazeroso de ler
com, do ouvir, dos olhos nos olhos, hálito como alento, algo que as mães e os avós souberam usar à
noite, ao pé da cama, ou os peregrinos, ao pé do fogo, para criar laços e simpatias, entre eles mesmos
e com os outros, a distância e a rememoração. Assim as narrativas sobrevivem para serem escritas. E
recontadas. (GOMES, 2012, p.65).

O contador de histórias nem sempre ingressa no mundo das artes cênicas ou toma esta como profis-
são, descobrir-se contador ou contadora de histórias é simplesmente experimentar, por incontáveis
vezes, estar em rodas de contação como ouvintes ou narradores. As rodas de contação são experiên-

44. Caracteriza-se por alterações significativas de comunicação, de integração social e no comportamento. (...) nem sempre está associado
à deficiência mental. Às vezes ocorre em crianças com inteligências classificadas como normal. É comum as crianças autistas apresentarem
desenvolvimento além do normal em tarefas que exigem apenas atividades mecânicas ou de memorização, ao contrário das tarefas nas quais
são exigidas algum tipo de abstração, conceituação ou sentido. (FREIRE, 2015. p.13).

116
cias coletivas e lúdicas com agrupamentos de crianças (não excluindo outras etapas da vida huma-
na) de olhares atento e visivelmente fascinadas em ouvir cada palavra dita. Podemos afirmar que,
cada experiência, seja como ouvinte ou narrador, pode ser considerada única e cada momento vivido
apresenta respostas que medem a conectividade entre o sujeito que fala e os sujeitos que ouvem, no
entanto, ao adentrarmos o universo da criança com TEA, encontramos um mundo novo, diferente.

As respostas à história dita acontecem no ritmo do inesperado e estas não são inauguradas dentro de
um tempo previsto. O olhar neutro e distante da criança quase nunca expressa o quanto da história
foi apreendida por ela. Seguindo o mesmo ritmo do ouvinte com TEA, nos deixamos a cargo do tem-
po, repetindo e insistindo no contato auditivo, na expectativa de que alguma reação fosse despertada
ao longo do nosso estudo, já que acreditamos que cada história contada favoreça algum aspecto da
formação cognitiva da criança, mesmo que estes aspectos variem de uma criança para outra, mas é
inquestionável que o ato de narrar histórias propicia, segundo Vânia Dohme (2003, p.19), o desen-
volvimento da atenção, do caráter, do raciocínio, da imaginação, do senso crítico, da criatividade, a
disciplina, da afetividade e da transmissão de valores.

2. O PRIMEIRO ENCONTRO: ERA UMA VEZ... UMA CRIANÇA COM TEA,


QUE COMEÇOU A OUVIR HISTÓRIAS.

Todo começo de história se inicia com um grupo de palavras que servem de chave para abrir as portas da
imaginação. E para não ser diferente disto, o nosso “era uma vez” inicia-se em novembro de 2014, onde
fomos apresentados na AMA-PI (Associação de Amigos dos Autistas do Piauí), uma instituição reco-
nhecida por seu trabalho realizado com crianças com TEA, a uma linda menina de cinco anos de idade
e de olhar distante, de baixa concentração e coordenação motora reduzida das mãos, de poucas falas e
muito agitada, e que aqui chamaremos de Dorothy, com o intuito de manter preservada a sua identidade.

Nossa primeira atividade realizada, por sugestão da professora supervisora, que nos recebeu e mediou
esse primeiro contato, foi a realização de um trabalho manual, no caso específico, a produção de um
mosaico, cuja temática era natalina, por estarmos próximo das festividades de fim de ano, conforme o
calendário da Associação. Como imaginado, o trabalho foi realizado de maneira penosa para todos. A
criança, a professora responsável e nós, pibidianos de Artes Visuais, estávamos em um espaço aberto,
no pátio da escola e sob o olhar de todos ali presentes. Todo o contexto criado para a realização da
atividade manual atrapalhava a concentração da menina e tornava a experiência difícil. A cada cinco
minutos, ou menos, a criança se levantava e, desorientada, saía correndo pelo pátio da escola, onde
era interceptada e reconduzida à mesa onde estávamos trabalhando sem falas, sem contato visual; era
como se nada existisse ao seu redor, incluindo nós.

De maneira quase invisível, a mão da criança, auxiliada por mãos alheias, era conduzida a compor
o mosaico de um sino em recortes coloridos pequenos de E.V.A e fixados com cola, num suporte
de papel previamente desenhado e cortado no formato desejado. O trabalho que fora interrompido
diversas vezes, e da mesma forma como fora citada anteriormente, acabou sendo posto definitiva-
mente de lado, ao ser introduzido, sem a permissão da nossa vontade, um dispositivo tecnológico de
comunicação, que permitia o acesso a aplicativos de jogos, eliminando por completo a nossa presença
diante da criança atendida no momento. Estávamos cansados. O silêncio tomou conta de todos, fichas

117
e diários de campo foram preenchidos e fomos embora, carregando no íntimo um sentimento inicial
de fracasso. Foram vários primeiros encontros.

Das inúmeras tentativas de estabelecer contato, fomos na maior parte delas claramente ignorados pelo
olhar da criança que permanecia distante em seu universo. Tornou-se então um desafio encontrar-
mos uma forma que nos permitisse chegar até a criança e por ela sermos percebidos. E, em conjunto,
começamos a repensar a metodologia. Durante algumas das conversas com a professora supervisora,
a respeito das dificuldades iniciais que enfrentamos, falamos da possibilidade de usarmos os contos
e os jogos lúdicos com essa criança, em especial, cuja produção artística manual não atingia o seu
objetivo. Passamos a investigar qual seria o objeto de desejo da criança assistida. E como toda menina
da idade dela, Dorothy gostava de contos de fadas, de príncipes, princesas e finais felizes. Tomamos
o caminho da narrativa e passamos a trabalhar essa ideia e a produzir material para a contação, a
escolher os textos a serem contados e a elaborar como se daria a conexão entre a oralidade e as artes
visuais dentro do universo do autismo. Passamos a investir nessa experiência e vimos então uma flor
desabrochar diante dos nossos olhos, lentamente, mas de forma progressiva.

Sob a supervisão da professora de artes da AMA-PI, que também acompanhava a menina Dorothy de
perto, recebemos as orientações pedagógicas que convenientemente nos conduziu à ação proposta.

Os atendimentos à criança passaram a ser em um outro espaço, no entanto fora da sala de artes visuais
e longe do pátio. Nesse nosso novo lugar, uma sala fechada e com pouca informação visual, com o
intuito de concentrar a atenção da criança na nossa fala, demos início ao nosso trabalho de formi-
guinha. E os atendimentos passaram a ter uma metodologia diferente, onde apresentávamos o livro à
menina Dorothy, para que visualizasse as imagens tranquilamente e a seu tempo.

Optamos por ler a história e não somente contá-la de memória, o que nos permitia a repetição exata
da palavra e a associação às ilustrações contidas no livro, o que não desmerece a tradição oral das
histórias contadas de memória.

Após a leitura e a devida apresentação da parte visual à Dorothy, esta era conduzida, a partir da pró-
pria vontade, a produzir o que de mais interessante havia encontrado durante a audição da leitura, fa-
zendo uso dos diversos materiais disponíveis, como tintas, suportes variados, lápis de cores e pinceis,
para dar materialidade aos seus sentimentos.

Os resultados, após cada sessão de contação de histórias, eram vistos em forma de personagens ela-
borados, espontaneamente, pela menina, e entendido, por nós, os propositores do exercício, como
resposta positiva ao processo de entendimento da narrativa lida. Com mais tempo, aplicando o mé-
todo e observando os resultados, por menores que fossem, estes se tornaram os direcionadores dos
próximos atendimentos.

Com o caminhar do trabalho realizado com a criança, a produção manual deixou de ser exatamente
uma luta e passou a ser um laboratório de convivência entre os olhos e as mãos. E mesmo que nem
todos os atendimentos tenham resultado em uma produção material que tivesse algo de esteticamente
bonito, temos a certeza de que resultaram do entendimento da criança, acerca da história ouvida.

118
Verbalizar através do recontar da narrativa ouvida pela própria criança, mesmo que não indicasse
comunicação direta, era expressão de que algo havia sido internalizado e agora manifestava-se através
da produção visual, da fala e do gesto. Tivemos momentos singulares em que a pequena Dorothy se
expressava com sorrisos pontuais e inaugurando simples diálogos. Sinalizando pequenas, mas signi-
ficativas conquistas.
Ouvir nem sempre é uma tarefa fácil, até mesmo para uma criança típica. E o mesmo prin-
cípio se aplica à criança com TEA. E, dentro dessa perspectiva de possíveis desencontros, é preciso
respeitar os limites que são percebidos através do aparelho gestual da criança e mudar de tática, se for
o caso. Essa prática exige do leitor/narrador atento a habilidade de se concentrar no outro (a criança
ouvinte), e não tão somente no texto em si. É preciso cuidar do tom da voz e da velocidade como é
conduzida a leitura, sem esquecer do visual como referência da narrativa, ou seja, para cada etapa
narrada, a apresentação das ilustrações produzidas pelo ilustrador ou do material lúdico construído
para dar apoio à contação.

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

Do período que iniciamos o nosso estudo de caso, em 2014, até os atendimentos mais recentes, em
2016, pudemos observar que houve uma melhora significativa no relacionamento que estabelecemos
durante as sessões de contação de história. A produção de arte, realizada pela menina Dorothy, passou
a ser de maneira autônoma, indo desde a elaboração do desenho, passando por sua construção no
papel, chegando até às escolhas e reconhecimento das cores. Assim, como houve uma melhora sig-
nificativa na coordenação motora da criança, sentida através do uso do lápis, no aplicar da cola e no
recorte das personagens desenhadas.

Todo o processo de agora se estabelece no nível da fala, ou seja, a menina Dorothy inaugura diálogos,
faz perguntas e toma pequenas decisões como fazer do seu desenho, pintado e recortado, um boneco
de manipulação ao instalar, por conta própria, um palito de churrasco para poder dar movimentação
e voz à personagem criada a partir da história ouvida.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todas as experiências vivenciadas na AMA-PI e das barreiras enfrentadas ao se trabalhar


a criança com TEA, conseguimos trilhar, com alguns tropeços, um caminho com significativas con-
quistas. Ao chegarmos ao fim da observação e aplicação do que estabelecemos como metodologia de
atendimento, através da arte e da contação de histórias e, mesmo chegando ao entendimento de que
ainda não estamos prontos para virarmos a página, no que se diz respeito à educação especial, por que
ainda há muito o que se fazer, compreendemos que a arte, aliada a todo um conjunto multidisciplinar
de ações, corrobora na construção de uma melhora efetiva no tratamento do Transtorno do Espectro
Autismo (TEA).

Os resultados alcançados através da sensibilização da criança atendida pelo profissional de artes e


os pibidianos de Artes Visuais são percebidos de diferentes maneiras e vistos como pequenas ações,
mas efetivas e tão firmes como o segurar de um lápis, à escolha de uma cor específica para pintar o
desenho elaborado pela própria criança, a partir do que se compreendeu da história ouvida. Do sor-

119
riso proposital e da troca de olhares, gestos tão simples, que toma uma nova ordem de significações,
quando o assunto é tratado pela ótica de quem acompanha de perto uma criança com TEA e conhece
suas limitações.

Tal experiência, adquirida pelo aluno do curso de licenciatura em Artes Visuais do programa PIBID,
oportuniza, de forma singular, o adentrar na educação especial e nela encontra ferramentas intelectu-
ais e materiais, para, num futuro próximo, poder trabalhar, de forma diferenciada e legítima, as suas
práticas educacionais de artes, tanto no contexto do espaço da educação especial como também da
escola inclusiva.

Não apresentamos uma solução definitiva ou que atenda à necessidade comum a todas as crianças
com TEA, mas iluminamos um dos possíveis caminhos a serem seguidos, já que obtivemos respostas
sensíveis da criança observada em nosso estudo de caso.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde e Secretaria de atenção à saúde. Departamento de Ações Pragmáticas Estratégicas.
Diretrizes de atenção à reabilitação da pessoa com Transtorno do Espectro Autismo. Brasília: Ministério da Saúde,
2013, 74 p.
CAVALCANTI, Ana Elizabeth; ROCHA, Paulina Schmidthbauer. Autismo: construções e desconstruções. 2. ed.
Coleção Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
CHALITA, Gabriel. Pedagogia do amor: a contribuição das histórias universais para a formação de valores das
novas gerações. São Paulo: Editora Gente, 2003, 207 p.
DOHME, Vania. Técnicas de contar histórias: um guia para os adultos usarem as histórias como um meio de
comunicação e transmissão de valores. São Paulo: Informal Editora, 2003. 204 p.
FREIRE, Silas. Cartilha dos direitos da pessoa com autismo. Brasília-DF: Câmara dos Deputados, 2015, 76 p.
MORAES, Fabiano & GOMES, Lenice. A arte de encantar: O contador de histórias contemporâneo e seus olha-
res. São Paulo: Cortez, 2012, 352 p.
SÁTIRO, Angélica. Brincar de pensar com histórias: livro de orientação para o professor. São Paulo: Callis, 2000,
160p.
WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007, (Coleção psicologia e
pedagogia) 208 p.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997, 321 p.

120
Os dois turrões:
uma experiência teatral com pessoas
com deficiência visual
Jamile Cruz/ Carlos Alberto Ferreira da Silva

O presente texto é um fragmento da pesquisa intitulada O Trabalho Teatral com Pessoas com De-
ficiência Visual a partir do uso da Materialidade no Processo Criativo, realizado durante o período de
graduação em licenciatura em Teatro, pela Universidade Federal da Bahia. Diante da necessidade de
discutir sobre os processos criativos com pessoas com deficiência, para esta reflexão, utilizamos de
práticas pedagógicas através de uma oficina teatral, cujo objetivo foi pesquisar maneiras de trabalhar
teatro com pessoas com deficiência visual a partir do uso da materialidade como princípio no pro-
cesso criativo.

O processo dessa experiência parte da relação de ser arte/educador, mas que desconhece práticas de
ensino para desenvolver com pessoas com deficiência; segundo, por identificar uma “deficiência” de
estudos e metodologias na área dos estudos teatrais que poderia, de certo modo, contribuir com a
prática. Em virtude dessas inquietações, uma coisa era certa: cada encontro deste processo seria uma
descoberta.

Dessa forma, de maneira incipiente, algumas referências foram utilizadas, como, 200 exercícios e jogos
para o ator e o não ator com vontade de dizer algo através do Teatro, de Augusto Boal, 1997; Jogos Tea-
trais: O fichário, de Viola Spolin, 2006; Improvisação para teatro, de Viola Spolin, 1987; Jogos Teatrais
na escola, de Olga Reverbel, 1996; Jogos Teatrais, Exercícios para Grupos e Sala de Aula, além dos meus
diários de bordo, que foram importantes referências para trazer as vozes dos artistas/participantes. A
realização da prática da oficina foi pensada por fases, sendo elas: integração, sensibilização e produ-
ção, abordagens estas sugeridas pelo livro Manual de Criatividades.

A abordagem sugerida por Eugenia Milet e Paulo Dourado visa o objetivo de alcançar uma fluência
expressiva e minimizar as barreiras individuais e grupais. Ou seja, pensa-se uma educação por meio
da sensibilização, mantendo a proposta de percepção sensorial e de estimular que o aluno vivencie
diferentes formas de sentir o corpo do outro, de si, do ambiente, do concreto, mas também, do abstra-
to. De forma que esse processo ocorra na fase de produção artística, no momento onde o “ato criador

121
toma o corpo... Onde o aluno vai se sentir capaz de expressar através de símbolos uma ideia e solucio-
nar problemas...” (DOURADO; MILET, 1985, p. 21). Visando por uma abordagem de encontro, essa
foi a esfera encontrada para iniciar um diálogo com esses diferentes corpos.

Na oficina, além do interesse por discutir sobre o pensamento do teatro com pessoas com deficiência
visual, refletia também sobre o trabalho corporal e vocal do público inscrito. Os jogos dramáticos e
jogos teatrais foram dois conteúdos que estiveram presentes durante todo o processo, considerando
que o jogo dramático não possui intencionalidade de exibição para observadores ou plateia, enquanto
o jogo teatral, é realizado intencionalmente para observadores. Ambos contribuíram com o objetivo
do projeto de desenvolver métodos educacionais para trabalhar teatro com pessoas cegas, tendo a ma-
terialidade como dispositivo para estimular a criação. Dessa forma, como organização, dividiremos
o texto em duas partes, a fim de apresentar as etapas de cada momento realizado juntos aos discentes
participantes.

1. PRIMEIRA PARTE - A EXPERIÊNCIA

O primeiro contato com os alunos da oficina foi na sala de aula da sede do ABC. Anteriormente hou-
ve um período de inscrição na Associação Baiana de Cegos, onde eu fiquei, no dia primeiro de outu-
bro de 2014, conversando com cada associado que aparecesse sobre o projeto, pois não havia recursos
para produzir panfletos em Braile e, assim, nem todos iriam ter acesso às informações. Dessa forma,
eu pude fazer a inscrição dos interessados.

No primeiro dia de aula, a maioria dos inscritos simplesmente não compareceram, estiveram presen-
tes apenas cinco dos quatorzes inscritos. Em função disso, a aula obteve uma duração menor do que
o planejado e, diante a isso, a impressão inicial foi a de que eu não teria alunos nesse processo que eu
havia organizado. Imaginei que a falta desses alunos estava atrelada a uma resistência em relação ao
tema ou por acharem que eu não teria condições de corresponder às suas expectativas. Todavia, na
aula seguinte todos os inscritos estiverem presentes e, ali, eu pude iniciar o processo45.

Na oficina, havia seis pessoas que participavam do grupo de teatro Noz Cego e outras quatro que, de
acordo com eles, nunca tiveram uma experiência com o teatro, todos com deficiência visual. Median-
te esta diferenciação, a primeira parte do contato se constituiu em buscar estratégias para viabilizar
uma relação tátil entre eles, pois aqueles que estavam a participar da oficina nem sempre estiveram
reunidos juntos com esta finalidade. Desta forma, alguns jogos foram introduzidos a fim de contri-
buir com este estado inicial.

Por conseguinte, os primeiros jogos desenvolvidos tinham como finalidade a integração do grupo.
Um dos jogos utilizados foi o pêndulo, o qual, de acordo com Milet e Dourado, é um jogo onde os
alunos ficam em círculo e uma pessoa no meio, de olhos fechados, com os pés juntos e sempre no

45. Os participantes inscritos desse processo artístico foram: Regivaldo Neris Santos, estudante, deficiente visual, vinte anos; Maria Ellen
Santos, aposentada, deficiente visual, cinquenta e nove anos; Marcos Felipe Santos, estudante, deficiente visual, dezesseis anos; Fernando
Abade, aposentado, deficiente visual, quarenta e três anos; Clarissa Cristina, atriz do grupo Noz Cego, cinquenta e três anos, deficiente
visual; Gilson Coelho, ator do grupo Noz Cego, cinquenta e três anos, deficiente visual; Valmira Salles, estudante,  trinta e quatro anos,
deficiente visual; Edson Claudio Marques, cinquenta e um anos, deficiente visual, ator do grupo Noz Cego; Hebert do Santos,  ator do
grupo Noz Cego, deficiente visual, trinta e três anos e Rutiara dos Santos, deficiente visual, atriz do grupo Noz Cego, trinta e quatro anos .

122
mesmo lugar, deixa que seu corpo oscile de um lado para o outro e os outros colegas terão o papel de
apará-lo. No tradicional jogo, os demais estão de olhos abertos, diferentemente desta proposta, onde
os outros são cegos. “A criança do centro não deve flexionar as pernas ou a coluna: deve deixar o cor-
po cair reto, como se fosse uma árvore tombando. O grupo deve permanecer em círculo até o fim; e
no caso de alguém não aguentar o peso do colega do centro, os outros devem ajudar” (DOURADO;
MILET, 1984, p. 118). O objetivo é fazer com que a pessoa que está no centro se sinta segura, bem
como, o que está no círculo não a deixe cair. A primeira vez que foi proposto, esse jogo não aconteceu,
pois os alunos ficaram muito tensos, com corpos travados e a maioria falava: “Pró, se eu relaxar eu
vou cair”. Mas, depois de outras tentativas, o grupo percebeu que um dependia do outro, e cada vez
que repetíamos, mais eles percebiam que o corpo se tornava apoio para o colega. Criava-se, assim, um
estado de confiança, de tal forma que o jogo se tornava mais que um pêndulo, mas uma dança, da qual
os corpos caiam e eram arremessados dentro do círculo de uma maneira sutil.

Através dessas investigações com os jogos, cada aula tornava-se uma descoberta. Primeiro, no que diz
respeito à metodologia da aula, pois a prática acontecia através das descrições de cada proposta/exer-
cício. Sem dúvida, estamos acostumados a trabalhar no campo visual, ou seja, podemos solucionar
copiando o outro. Entretanto, ao trabalhar com cegos, percebia-se a necessidade de descrever exata-
mente tudo o que eles precisam executar, traduzindo as situações, as imagens, e tais especificidades
exigiam um esforço mental e físico para o docente, a fim de que as pessoas pudessem compreender
o exercício em questão. Por exemplo, durante outro jogo de integração, solicitei a eles uma ação de
sentar um sobre a perna do outro, mantendo um círculo e o equilíbrio. Ou seja, as pessoas ficariam
suspensas, apoiando-se uma sobre a outra, sem nenhum tipo de estrutura física, apenas o apoio do
corpo da outra pessoa. Sem dúvida, com alunos videntes, a demonstração seria suficiente, com eles foi
necessário descrever e explicar o passo a passo do jogo. O meu objetivo era fazer com que eles enten-
dessem e realizassem as ações, sem que houvesse a necessidade do meu contato direto com o corpo
deles, mas, como eu não encontrei outros meios naquela aula para fazer com que eles fizessem o que
eu estava pedindo, foi necessário tocá-los.

A partir dessas dificuldades, comecei a buscar imagens e elementos do cotidiano, que eles poderiam
ter contato e pudessem contribuir para a compreensão do participante, mas, naquele momento, so-
mente a oralidade não seria suficiente. Dessa forma, de acordo com Roberto Sanches Rabello, “a
verbalização dos exercícios, por si só, por vezes se torna impraticável, exigindo o contato físico direto
entre o professor e o aluno” (RABELLO, 2011, p. 86). Para fazê-los compreender a prática os toquei, a
fim de demonstrar o que eu estava idealizando.

Vale ressaltar que a visualidade da cena é um dos primeiros aspectos que pensamos quando se trata
do fazer teatral, pois, espontaneamente, imaginamos a cena para ser montada e vista por um público.
Afinal, no teatro há o costume de se pensar dessa forma, as idealizações são baseadas no visual e, na
maioria das vezes, não se pensa em outras maneiras, buscando contemplar também esse público com
deficiência visual. Contudo, nesse tipo de processo, apliquei um formato que os integrasse à minha
proposta, fazendo-os desenvolver novas experiências a partir daquela construção. Spolin esclarece
que as formas simbólicas tornam concretas e manifestas as experiências, desenvolvendo novas per-
cepções a partir da construção das formas artísticas. “O aprendizado artístico é transformado em
processo de produção de conhecimento” (SPOLIN, 2010, p. 26).

123
Outra dificuldade no desenvolvimento dessa oficina, além da questão da visualidade de cena, foram
as constantes ausências de todos os participantes. Devido a elas, o processo foi prejudicado de forma
significativa. Havia muitas faltas e isso interrompia o processo. Apenas após um mês e meio de aula,
aproximadamente, eles começaram a entender o quanto era necessária a assiduidade nos encontros,
já que “a negligência e as faltas podem causar prejuízos ao trabalho em curso” (REVERBEL, 1994,
p. 22). Um ponto fundamental para a compreensão de um trabalho como este, está, também, na
maneira como eu crio e desenvolvo meus planos de aula. Para isso, há a necessidade de participação
e interesse do aluno em sala de aula, pois há uma troca, um compartilhamento mútuo, de ambas as
partes, pois é através das práticas que eu desenvolvo minhas ideias em relação ao trabalho teatral,
mas é também uma maneira de os alunos/participantes se colocarem, trazendo suas ideias, interesses
e vontades. Mas, para o estágio acontecer, era necessário interesse, compromisso, responsabilidade,
pois cada jogo vivenciado era um momento de experimentação fundamental para o desenvolvimento
do projeto.

É essencial salientar que sempre tive uma dúvida e resolvi fazer dela uma questão. Mesmo com algu-
mas modificações do projeto para a prática, a pergunta continuou latente: Como a pessoa com defi-
ciência visual estuda um texto teatral? Para responder a esta questão, optei por propor um processo
criativo a partir da peça de teatro Dois Turrões, de Tatiana Belinky. Esse texto serviu como pré-texto
para a criação da montagem final. De acordo com Beatriz Cabral,

O pré-texto é o roteiro, história ou texto que fornecerá o ponto de partida para iniciar o processo dra-
mático, e que irá funcionar como pano de fundo para orientar a seleção e identificação das atividades
e situações exploradas cenicamente. Cecily O’Neill introduziu esta expressão, na área do drama, para
diferenciar o estímulo capaz de promover um crescimento orgânico do processo, daquele mecânico,
onde o foco da ação nem sempre é coerente com a narrativa em curso. Para O’Neilll, “o pré-texto
opera em diferentes momentos como uma espécie de forma-suporte para os demais significados a
serem explorados” (1995, p. 22). Como tal, ele define a natureza e os limites do contexto dramático,
e sugere papéis aos participantes (CABRAL, 2012, p. 15).

Dessa forma, o texto Os Dois Turrões foi usado como pré-texto e reelaborado coletivamente com
novos diálogos, criados em sala de aula a partir da realidade de cada aluno, facilitando, assim, a apro-
priação do texto e o estudo dele. Antes de decidir por esse texto, os atores do grupo Noz Cego suge-
riram trabalhar por uma vertente pela qual já estavam acostumados, a comédia. No entanto, após al-
gumas conversas, entramos em um acordo, que optaríamos pelo Os Dois Turrões, mas deixaríamos o
texto com algumas cenas cômicas e dramáticas, de tal modo que contemplasse o desejo daqueles que
já faziam teatro, bem como, apresentar aos iniciantes diferentes gêneros dramáticos em uma mesma
encenação. Assim, para adentrar no universo do texto, necessitou-se de muito estudo e compreensão
textual. Dessa forma, foi necessário utilizar de recursos de acessibilidade comunicacional, a fim de
que os cegos pudessem ter acesso e compreensão do material a ser trabalhado, tanto na sala de aula,
como em casa, ou onde eles estivessem. Sendo assim, transformamos o texto em áudio e em Braille
(Sistema de escrita utilizado por cegos). Porém, muitos não sabiam ler em Braille e nem possuíam
meios para ouvir em casa o texto transformado em mp3. Assim, a melhor maneira de memorização
do texto foi através da organização coletiva, isto é, fazer uma recriação prática do texto por meio de
ações, fazendo com que os participantes memorizassem o texto e as marcações.

124
Sendo assim, esses primeiros momentos foram marcados pela interação do grupo, as adaptações das
aulas diante das ausências e intervenções. Foi marcada também pela empolgação dos alunos, da pro-
fessora e da euforia do fazer teatral. Sem dúvida, por uma satisfação própria de realizar um desejo,
uma vontade que me acompanha desde a infância.

2. SEGUNDA PARTE – A RELAÇÃO COM O TEXTO

Após apresentar a ideia de trabalhar a partir do texto Dois Turrões, foi chegada a hora de colocar alguns
objetivos em prática. Um deles foi oferecer meios para que os alunos pudessem criar e elaborar, ceni-
camente, experimentações artísticas, a partir dos estímulos levados por mim ou por eles. Para Eugenia
Milet e Paulo Dourado, “a professora deve tirar proveito de todas as situações para tentar estimular os
alunos a participarem, cada vez de forma mais intensa, das atividades” (1984, p. 23). Por conseguinte, é
nesse lugar que proponho me colocar enquanto educadora, levando estímulos criativos, mas também
trabalhar de uma forma mais sensorial, visando a intensificação dos outros sentidos na cena.

Durante o processo, foi fundamental dedicar-se ao trabalho de expressão corporal com essas pessoas
com deficiência visual. Essa observação decorre do desenvolvimento dos jogos, onde percebia que os
alunos estavam intimidados, retraídos e colocavam mais ênfase na voz enquanto o corpo se mantinha
quase sempre estático.

Como parte dos estímulos corporais, iniciei com um jogo “forças da natureza”, de Olga Reverbel. A
atividade teve como objetivo desenvolver a imaginação através da reprodução de postura adequada e
as sensações sugeridas. Os alunos são expostos, imaginariamente, às forças da natureza, para senti-las,
reagir a elas e, por fim, livrar-se das mesmas. Os participantes caminhavam como se fossem animais,
para isso solicitava a eles que imaginassem uma floresta e, neste lugar, aconteceriam as seguintes situ-
ações: terremotos, incêndios, tempestades, brigas entre os animais, dominância de território, dentre
outras ações. Era possível identificar cachorro, cobra, cavalo, leão. Esses animais serviram de estímulo
para a criação de personagens presentes no texto da mostra final. As características marcantes dos
animais foram inseridas na construção dos personagens, como por exemplo, a ferocidade do leão,
que foi utilizada para a criação da personalidade do personagem principal, em que ele era autoritário
como o animal. Essas experimentações contribuíram para a personificação dos personagens huma-
nos, repercutindo no andar, no falar, no gesticular e no comportamento. De acordo com o dicionário
de Patrice Pavis, “A personagem [...] é concebida como um elemento estrutural que organiza as etapas
da narrativa construindo a fábula. Guiando o material narrativo em torno de um esquema dinâmico
que concentra em si um feixe de signos em oposição a duas das outras personagens” (PAVIS, 1999, p.
287). Foi a partir dos signos identificados no leão que surgiu a criação de material para o desenvolvi-
mento do personagem feito por Gilson Coelho.

No dia desse jogo, a maioria dos alunos não compareceram e, como mencionado, a ausência deles no
trabalho foi um dos fatores mais desestimulante no processo. Nesse dia, Gilson Coelho, um dos parti-
cipantes da oficina e integrante do Grupo Teatral Noz Cego, ao final da aula, veio conversar comigo e
disse-me que aquela havia sido uma das melhores aulas, não sabia falar a razão, talvez porque houves-
se menos alunos. Mas o fato era que a experimentação dele com o animal, no caso o leão, contribuiu
para pensar na construção do peso no caminhar e da força nas atitudes de seu personagem Gil. Sem

125
dúvida, esse retorno vindo de Gilson me gerou mais desejo e vontade para o processo, mesmo perce-
bendo o quão difícil são, em alguns momentos, estar na sala de aula.

Para explanar um pouco sobre este percurso, descreverei um dos jogos que foram realizados no processo:

1° Jogo: Momento olfativo


Foco: Criação de cenas
Descrição: Os participantes ficam em círculo, preferencialmente de olhos vendados. Principalmente,
para aqueles que possuem algum resíduo visual. O objetivo é sentir os aromas que estavam espalha-
dos pela sala de aula/ensaio. Depois eles foram divididos em grupos de quatro para conversarem
sobre os cheiros que lhes foram apresentados, buscando ativar a memória e, a partir da experiência,
criar cenas que tenham as lembranças surgidas após sentirem os perfumes.
Avaliação: Nesse processo, busquei trabalhar com cheiros em que pudessem estimular o sentido ol-
fativo do deficiente visual. Para isso, apropriei-me do aroma do cravo, canela, erva doce e pó de café.
Essas materialidades não foram aleatórias, pensei nelas a partir da leitura do texto Os Dois Turrões,
de Tatiana Belink. Busquei, com esse material, estimular movimentos e memórias que contribuíssem
para o desenvolvimento.

Os jogos realizados, sendo muitos deles inventados, contribui muitíssimo com o trabalho dramatúr-
gico. Pois, o texto de Belinky inicia sua dramaturgia descrevendo o cenário como o interior de uma
casa aconchegante e com lareira. A partir disso e de outros momentos dele, comecei a pensar em
alguns aromas que me lembravam esse lugar. Como resposta, encontrei coisas que gostamos e nos
sentimos bem com o pó de café, a canela, o cravo e a erva doce. Esses elementos serviram como dis-
positivos para a criação. Partindo do pressuposto da definição que trago sobre materialidade, que se
tornou fio condutor nesse processo, onde “toda matéria tem potencialidade, tudo depende do uso que
será feito dela” (OSTROWER, 1987, p. 73). Esses elementos estiveram como essas matérias que têm
potencial para estimular a produção cênica.

Alguns alunos criaram a cena de uma mãe que preparava o café para seus filhos irem para escola,
outros encenaram uma vendedora de sabonetes erva doce e os últimos criaram uma cena onde uma
mulher estava na cozinha moendo os grãos de café para depois fazê-lo para seu marido e convidados,
que estavam na sala jogando dominó. Depois, anotamos essas cenas para não esquecer os detalhes, até
o momento em que montaríamos o roteiro. Como se pode observar, neste trecho do texto da mostra
(criação dos alunos):

Gil - Chega, vá terminar de fazer o café, vá! Vá logo que já demorou demais. (A porta bate enquanto
sua mulher caminha para terminar o café. Os dois olham para a porta).

Ao final dessa aula, eu tive clareza de quanto o trabalho com a materialidade funcionou no processo,
pois, diante dela, pode-se “abranger, de início, certas possibilidades de ação e outras tantas impossibili-
dades” (OSTROWER, 1987, p. 31- 32), que, de acordo com Celida Mendonça (2009), podem contribuir
para o grupo reagir, explorando suas possibilidades em conjunto com a presença ativa do participante.

No trabalho de Edielson de Deus, percebo algumas semelhanças com minha pesquisa. Ele traz um
exemplo de como o objeto entra em sua prática, porém, sem a intenção de usar o objeto como mate-
rialidade. Para melhor esclarecer o que estou discorrendo:

126
Um exemplo foi o exercício de criatividade: coloquei quatro objetos no centro do círculo e pedi para
que segurassem o objeto. No primeiro momento, deveriam apenas identificar o objeto, de fato como ele
era, através do tato. Daí, já era possível identificar uma ação corporal mais concreta, mais clara. Após o
reconhecimento, o objeto deveria tornar-se outro objeto que não fosse ele mesmo, tomava outra forma,
ou seja, uma caneta não seria mais uma caneta e deveria ser outro objeto, transgredindo a forma e o
significado convencionalmente atribuídos ao objeto. Essa ação de “transformar” um objeto em outro
deveria tornar claro a ação de apropriação do objeto pelo corpo para que fosse crível que aquilo ali não
era mais uma caneta e sim uma vassoura, por exemplo. (SANTANA, 2009, p. 43, grifo do autor).

Nessa citação, encontro o uso desse objeto com o corpo que gera a fricção entre eles e, nesse momen-
to, a provocação de uma ação. O objeto torna-se outro elemento assim que ele entra em contato com
o indivíduo e possibilita a criação de outro.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da prática mencionada, percebe-se o quão importante é a vivência e a prática como investi-
gação de um processo criativo com pessoas com deficiência visual, sobretudo no que diz respeito a
investigar e a reinventar metodologias.

Trazemos a palavra reinventar, pois inúmeras vezes esse foi o nosso papel: partir de jogos inventados
e reinventar metodologias. Portanto, o que podemos concluir é um início de uma pesquisa, onde sa-
bemos que há um grande caminho a percorrer.

Sabe-se que a pessoa com deficiência, ainda nos dias atuais, está estigmatizada pelo termo anormal,
o padrão estabelecido pela sociedade ainda invade essas pessoas e as exclui de maneira aterrorizante.
O diferente ainda é colocado dentro de um cenário cruel de exclusão e preconceito, que precisa ser
diluído, e é através de luta e reivindicação pelos seus direitos que esse quadro pode mudar. “Brigar”
para que as inúmeras leis saiam do papel e sejam aplicadas. Não podemos regressar para a antiguidade
ou idade média. Estamos aqui para seguir em frente, de maneira digna.

O que precisamos? Talvez essa pergunta seja a que muitas pessoas com deficiência fazem. A meu ver,
como estudante e irmã de uma pessoa com deficiência, responderia: respeito. Precisamos de aces-
sibilidade. Precisamos que os direitos sejam cumpridos. Precisamos de muitas mudanças e acesso.
Precisamos de igualdade.

Diante desta indagação, para nós, a arma da qual escolhemos para combater a essa luta é o teatro.
Nesse meio, entre percursos e vitórias, descobrimos novos horizontes, pesquisas e autores diante da
prática do fazer, pois essa é a referência diária do descobrir e reinventar.

Para Carlos Alberto Ferreira da Silva (2011), ao citar Rubens Alves, representa muito da minha atual
sensação, pois, enquanto professora, senti-me “contaminada” por esta experiência, como também
senti que os contaminei, ou seja, ambos os lados foram contaminados com ideias, desejos, sonhos
e propostas trazidas pelos alunos e por mim. Neste pensamento Rubem Alves46, em uma entrevista

46. ALVES, Rubem. Itajubá em Foco - Rubem Alves / parte 1. Apresentado por Octavio Scofano. Conexão Itajubá, 2007. Disponível em
< http://www.youtube.com/watch?v=A9Fm3EA4m9c >. Acesso em: 20/07/2015.

127
dada ao programa Itajubá em Foco, conceitua professor como um sedutor e ainda complementa, a
partir do pensamento de Adélia Prado, “Não quero faca nem queijo; quero é fome”, utilizando desta
metáfora que nos indica o ato de “comer”, que não começa com o queijo, o comer começa na fome de
comer o queijo. Se não tenho fome, é inútil ter queijo, mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo,
eu dou um jeito de arranjar um queijo – palavras de Rubem Alves.

Dessa forma, hoje me sinto com fome, e por isso continuo com algumas questões que não consegui
responder neste processo, mas que me deixou interessada em descobrir coisas sobre: a visualidade
da cena e o imaginário da pessoa com deficiência visual; como se dar a criação de imagens; quais as
diferenças que há entre o imaginário de uma pessoa que nunca enxergou e o de outra que teve um
registro visual; os espetáculos e sua visualidade. Enfim, questões que estarão latentes ao longo dos
próximos anos, em futuras pesquisas.

Finalmente, presumo que este texto contribuiu para que nós possamos nos descobrir enquanto pro-
fessores, a fim de encontrarmos novos meios de trabalhar com esse público tão diverso e plural, e
tendo a clareza do quanto a materialidade como princípio para criação cênica é eficaz.

REFERÊNCIAS

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ra na cidade de Recife (versão para quem enxerga). 2011. Tese (Doutorado em Antropologia) – Pro-
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teatro. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
CABRAL, Beatriz. Drama como método de ensino. São Paulo: Hucitec, 2012.
COURTINE, Jean-Jacques. Georges VIGARELLO (Orgs.). História do corpo. Petrópolis: Vozes, 2008,
3 volumes.
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portadores de deficiência visual. 2009. Trabalho de Conclusão de Curso (monografia) – Escola de
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DOURADO, Paulo; MILET, Maria Eugênia Viveiros. Manual de criatividades. 2. ed. Salvador (BA):
Departamento de Ensino de Primeiro e Segundo Graus, Gerência de Currículo e Instrução, 1984.
MENDONÇA, Celida Salume. Fome de quê? Processos de criação teatral na rede pública de ensino de
Salvador. 2009. 228 f. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Escola de Teatro, Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2009.
OLIVEIRA, Felipe Henrique Monteiro. Corpos diferenciados: a criação da performance “Kahlo em
mim eu e (m) Khalo”. Maceió: EDUFAL, 2013.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987.
REATTE, Ivan Luiz. Grupo teatral luzes: um estudo de desenvolvimento local na comunidade de defi-
cientes visuais no instituto sul-matogrossense para cegos “Florivaldo Vargas”, em campo Grande MS.

128
2006. 109 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Local) - Universidade Católica Dom Bosco
– UCDB, Campo Grande, Mato Grosso, 2006.
REVERBEL, Olga. Jogos teatrais na escola atividades globais de expressão. São Paulo: Ed. Scipione
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SEGA, Marcela Virginia Duarte. Educação inclusiva. Disponível em: <http://eventos.uenp.edu.br/sid/
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SILVA, Carlos Alberto Ferreira. Estágios, experimentos e funções: um trajeto especial pelo teatro e seu
ensino. 2011. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) – Departamento de Artes Cênicas, Uni-
versidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto.
SPOLIN, Viola. Jogos teatrais o fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva, 2012.
TEIXEIRA, Ana Carolina Bezerra. Deficiência em cena: desafios e resistência da experiência corporal
para além das eficiências dançantes. 2010. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

129
Tramas indígenas: uma reflexão
sobre arte e artesanato
Clarissa Machado Belarmino

1. TRÊS ETNIAS

Partindo da contextualização em relação à organização das etnias nordestinas, sob a perspectiva tra-
zida por João Pacheco de Oliveira, em seu trabalho intitulado Uma etnologia dos “índios misturados”?
Situação colonial, territorialização e fluxos culturais, a região Nordeste é caracterizada pelos efeitos
de aculturação, pois, segundo Eduardo Galvão, “a maior parte vive integrada no meio regional, re-
gistrando-se considerável mesclagem e perda dos elementos tradicionais, inclusive a língua” (p.48).

Porém, Pacheco de Oliveira (1998) propõe um estudo que parte não do viés do passado, com uma
visão estereotipada e romantizada dos índios, e sim uma busca para entender o que eles representam
atualmente, construindo, desta forma, o sentimento de pertencer a uma região, como o autor afirma:
“A unidade dos ‘índios do nordeste’ é dada não por suas instituições, nem por sua história, ou por sua
conexão com o meio ambiente, mas por pertencerem ao Nordeste, enquanto conglomerado histórico
e geográfico.”(p. 16-17).

Considerando esta unidade regional, pode-se então recorrer a um outro termo usado amplamente
nos escritos sobre os índios nordestinos, o qual seria o de “índios misturados”, para assim caracterizá-
-lo. Os estudos antropológicos que passaram a abordar este tema pretendiam “discutir a mistura como
uma fabricação ideológica e distorcida” (OLIVEIRA, 1988, p.17), para então reconstruir as novas
identidades, reinventando novas etnias (Ibid., p.18).

E é através da ação indigenista, configurando a noção de territorialidade e o reconhecimento do “ser


índio”, que se estabelece a unidade dos índios no Nordeste. É através de fatos de natureza política
(1998), reivindicação de direitos civis e territoriais que se configura o quadro de reafirmação dos
povos indígenas nordestinos, dando a potencialidade a está área a qual pertencem essas etnias, fun-
damentando conhecimentos sobre os povos e suas culturas.

A fim de contextualizar as etnias em suas particularidades e enquanto sua afirmação de indianidade,


exposta neste artigo pela arte e artesanato, foi consultado o site do Instituto Socioambiental, que tem
como objetivo integrar “as questões sociais e ambientais com foco central na defesa de bens e direitos

130
sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos
e dos povos” (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2016), afim de elucidar o contexto histórico e con-
temporâneo das três etnias.

A construção histórica dos povos indígenas no Nordeste tem sua base nas políticas públicas e na ação
missionária desde o início da colonização portuguesa. As políticas públicas está fortemente ligada à
ação indigenista, no que se refere à retomada de territórios e direitos civis. Enquanto que a ação mis-
sionária propôs os deslocamentos e aldeamentos forçados, impondo uma convivência entre etnias e
uma indiferença entre os grupos na região.

Em relação ao grupo Pankararu, os direitos fundiários só começaram a ser respeitados em 1999,


depois de algumas reivindicações para um processo de ampliação de suas terras. Tem no sistema do
ritual do Toré e ao culto dos encantados um emblema de sua cultura.

Em um relatório sobre cultura material indígena realizado por Rita de Cássia Santos e Flávia Costa
(20015), é exposto o processo de retomada da produção entre os Pankararu, no qual afirma:

Entre os Pankararus e Xucurus o processo de retomada da produção da cultura material vem sendo
realizado já faz alguns anos. Entre esses povos, os modos de fazer os objetos de sua cultura faz parte
do ensino escolar. Os artesãos tradicionais das comunidades são convidados a ministrarem aulas
para os alunos que desde muito jovens aprendem a manusear a matéria prima e a fabricar esteiras,
cachimbos, maracás, objetos de cerâmica e muitos outros no próprio ambiente escolar (SANTOS;
COSTA, 20015, P. 5).

A feitura de objetos entre a etnia Pankararu está fortemente ligada com a ação pedagógica, estabele-
cendo, assim, uma continuidade nos saberes próprios de seu povo. Entre o grupo Funi-ó, única etnia
da região que conseguiu manter viva e ativa a sua língua – o Iatê – tem, no ritual do Ouricuri, sua
maior afirmação de indianidade, permanecendo por três meses isolados em seu território, “realizan-
do seus rituais religiosos secretos e produzindo os objetos que depois são vendidos em várias cidades
do Brasil” (SANTOS; COSTA, 20015, p.5). Tendo uma forte circulação com seu trabalho artesanal,
participa de feiras em São Paulo, Rio de Janeiro, entre outros lugares.

A última etnia escolhida neste artigo não difere naquilo que se constituiu a etnogênese nordestina.
Para os mesmos Kambiwá significa “retorno à Serra Negra”, região que abarca seu povo, os quais
pretendem a incorporação dessa parte em seu território indígena. No que se refere à sua produção
material, Wallace Barbosa, em sua dissertação, Os índios Kambiwá de Pernambuco: Arte e identidade
étnica, nos diz que sua “produção artesanal está calcada, em sua maior parte, no consumo interno,
com esporádicas produções para venda” (1991, p. 53).

Percebe-se, então, que estas etnias, e como muitas outras na região Nordeste, encontram-se em
constantes afirmações e reafirmações de sua prática enquanto índios contemporâneos. E o papel da
feitura dos objetos tem uma grande participação nestas questões de ser índio, pois, ao manter uma
técnica entre os saberes tradicionais, passado por gerações, consolida-se uma unidade enquanto
índios.

131
2. TRANÇADO/TÉCNICA

Tendo a técnica do trançado como mote para esta discussão, pode-se estabelecer o conceito proposto
por Aloisio Magalhães no texto de Zoy Anastassakis (2012), no qual caracteriza o artesanato pela
forma de se construir sem quase nenhuma intermediação entre a mão e o objeto. É, portanto, a partir
de uma técnica que proponho este debate sobre artesanato e arte indígena.

Quanto ao emprego da forma, no livro Arte Primitiva, de Franz Boas, na apresentação à edição brasi-
leira, Gonçalves (2015) introduz o pensamento de Boas no qual, a respeito da “‘arte primitiva’ ou a ‘arte
dos primitivos’ partilha alguns princípios com as mais sofisticadas formas de arte ocidental” (p. 10).

Para Boas, o que se torna imprescindível é “descrever as formas pelas quais se realizam e como se
diferenciam no plano geográfico, histórico e individual” (p. 10). É encontrar as particularidades que
estabelecem as fronteiras entre as culturas, proporcionando uma reflexão acerca dos modos de vida
de cada etnia. Seguindo o raciocínio exposto por Boas, pode-se encontrar, mais adiante, a afirmação
que a “forma resulta de uma sofisticada habilidade técnica... equacionada a uma ‘técnica perfeita’ na
produção de objetos materiais” (p. 18). Agregando a esta “técnica perfeita” ele vai introduzir a ideia de
estilo, “na qual é essencial ter em mente as duas fontes de efeito artístico: uma baseada na pura forma,
outra em ideias associadas com a forma.” (Boas, 2015, p.18). É, portanto, uma maneira de configurar
a produção técnica e artística, que para Boas são partes de uma mesmo todo, seja para referenciar a
arte de povos “primitivos” ou “civilizados”.

No que diz respeito à matéria prima, no caso brasileiro, ela é essencialmente de origem vegetal. Des-
sa forma, torna-se de suma importância caracterizar a tecnologia empregada pelos índios. Segundo
Ribeiro (1989), “os instrumentos e utensílios do índio brasileiro, somados os mais importantes, não
ultrapassam duas dezenas” (p. 58).

Trata-se de manufatura propriamente dita em que os índios do Brasil alcançaram alto grau de domí-
nio, que tem a mais ampla distribuição geográfica e se apresenta segundo uma apreciável variedade
de formas, técnicas de confecção, usos e efeitos decorativos (Ibid., p. 38).

No caso particular pernambucano, os objetos trançados concentram-se na matéria-prima da palha


do Ouricuri e na fibra do caroá ou croá. Cada grupo estabelece uma relação com a matéria e na fabri-
cação de seus objetos.

Entre os Kambiwá, Wallace Barbosa (1991) nos descreve a relação da atividade artesanal de trançado
com uma artesã que confeccionava uma esteira. “ao perguntarmos se era sua intenção vender o arte-
fato, respondeu-nos que ‘não estava nesta vida’, pois o que fazia visava sempre atender as necessidades
de sua família” (p. 69). E, mais adiante, conclui que, entre os Kambiwá, os produtos confeccionados
com esta palha eram sempre de uso doméstico e que também eram similares aos dos vizinhos, Panka-
raru. Em sua dissertação, Barbosa (1991) afirma que “segundo Pinto (op. cit.: 69), a técnica mais usual
aplicada por eles é a chamada em espiral (Coiled ou Spiraltechnik)” (p. 70).

Os Fulni-ó, com uma ampla circulação e uma vasta quantidade de seus artefatos, introduzem a técni-
ca do trançado, tanto em utensílios domésticos (esteiras, bolsas, abanos), como em detalhes de arcos

132
e flechas, cocás e objetos decorativos. Tais artesanatos têm uma forte presença na renda familiar dos
artesãos e artesãs dessa comunidade, uma vez que concentram boa parte desta atividade como fonte
de renda.

Entre essas etnias, pode-se perceber que sua produção tanto caminha para uma demanda externa
como interna, atendendo, assim, ao mercado etnográfico, reinventando e reafirmando seus saberes
enquanto povos indígenas. Fazendo alusão ao pensamento proposto por Boas, a forma/estilo pode
se relacionar com o movimento externo/interno da confecção da cultura material destas etnias, por
existir um tráfego intenso entre produção de objetos, que seria a técnica empregada pelas etnias, e o
estilo/significados particular de cada povo colocado em seus artefatos.

3. ARTESANATO – ARTE

No texto Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação, Els Lagrou nos esclarece que

Na maior parte das sociedades indígenas brasileiras o papel de artesã/artista não constitui uma es-
pecialização. Se a técnica em questão compete às pessoas de seu gênero, cada membro da sociedade
pode se tornar um especialista na sua realização. Porém, sempre há os que se sobressaem, estes são
considerados “mestres”. (LAGROU, 2009, p.17, grifo do autor).

Dentro da perspectiva do produto artesanal indígena, torna-se imprescindível a sua relação com o
valor étnico e a cultura material, conceitos que norteiam a sua estrutura enquanto função mercado-
lógica e simbólica. No que se refere ao valor étnico, os produtos produzidos por indígenas “estabele-
ceria um diferencial, podendo ser-lhe atribuído um valor diferenciado no mercado, o que determina
o seu preço não é apenas a relação hora/trabalho, mas sim a carga simbólica que carrega.” (FIALHO,
2009). Atrelado a isso, o conceito de cultura material, exposto por Barbosa (1991) em sua dissertação
sobre a arte dos índios Kambiwá, que também a considera em suas relações abstratas e, portanto,
imateriais (p. 98), corrobora com o pensamento de Renato Athias (2010), em seu texto Os Objetos, as
Coleções Etnográficas e os Museus, ao afirmar a imaterialidade do objeto, destacando os aspectos da
simbologia, semiótica e da significação (p. 308). Pode-se, então, estabelecer a noção que tais objetos
“condensam ações, relações, emoções e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem,
se relacionam se produzem e existem no mundo” (LAGROU, 2009, p.13).

De fato, se pensarmos o objeto dentro de um conjunto não material e agregar a noção exposta por
Fialho (2009), Barbosa (1991), Athias (2010) e Lagrou (2009), encontraremos um campo vasto de
investigações acerca da arte e dos saberes de povos indígenas, tendo como base uma linguagem visual
carregada de significado.

Somado a este repertório, iremos encontrar o sentido intercultural que permeia as feiras artesanais,
nas quais circulam os artefatos, que, deslocados do seu significado habitual, representam uma ma-
neira de legitimar o “ser índio”, pois ao dominar uma “tradição indígena”, que aqui neste artigo se
firma enquanto a técnica do trançado, eles buscam reafirmar, segundo Barbosa, no texto intitulado O
artesanato e os “novos índios” do Nordeste, o “seu reconhecimento como grupo indígena com direitos
constitucionais estabelecidos.” (p. 199).

133
E, ao pensarmos, também, em sua estrutura, enquanto produto de mercado, pode-se entendê-la como
apresentado na tese de Vânia Fialho – Desenvolvimento e Associativismo indígena no Nordeste Bra-
sileiro: mobilizações e negociações na configuração de uma sociedade plural – na qual afirma que
“o artesanato sempre foi produzido individualmente, até porque se vincula à capacidade artística de
certas pessoas das comunidades e não havia nenhuma iniciativa coletiva para ordenar essa produção”
(p.229).

Entretanto, faz-se necessária a atuação de alguns órgãos, junto aos índios, a fim de desenvolver ações
que viabilizem a atuação desses artesãos em feiras, produzindo, assim, um “coletivo” que garantisse
uma quantidade de produtos para serem comercializados, inserindo-os em um sistema de mercado.
E, do ponto de vista dos artefatos como objeto de arte, o viés será dado pela ideia apresentada no texto
de Els Lagrou (2003) – Antropologia e Arte: uma relação de amor e ódio – no qual ela expõe a relação
ambígua da antropologia, da arte e da estética, segundo Alfred Gell.

Lagrou, em seu texto, traz a ideia que “Gell tenta olhar para o tema da arte sob uma ótica dessacrali-
sante, pondo sob suspeita a ‘veneração quase religiosa’ que a nossa sociedade tem pela estética e pelos
objetos de arte.” (p.96). E sobre os antagonismos entre antropologia e estética, comenta mais adiante:

[...] propõe uma aproximação entre magia e arte, vendo em ambos os fenômenos uma manifestação
do “encantamento da tecnologia”. Nós estaríamos inclinados a negar este aspecto de ofuscamento
tecnológico presente na eficácia de certos objetos decorados, como a proa da canoa usada em expe-
dições de kula pelos Trobriandeses, porque nós estaríamos inclinados a diminuir a importância da
tecnologia na nossa cultura, apesar da nossa grande dependência dela.(LAGROU, 2003, p. 96).

Propondo uma noção de arte que se afasta da contemplação e se aproxima da ideia de agência do
objeto, podemos verificar que “a arte possui uma função nas relações estabelecidas entre agentes
sociais.”(p.96), uma vez que o homem se realiza sendo um ser social, dialogando com o mundo por
objetos, imagens, palavras, etc. Desta forma, pode-se perceber que os povos indígenas não fazem uma
“distinção entre artefato e arte, ou seja, entre objetos produzidos para serem usados e outros para
serem somente contemplados”, como afirma Lagrou, em seu texto Arte Indígena no Brasil: agência,
alteridade e relação. Não existe, portanto, uma separação ou mesmo julgamento da arte e do objeto
nas relações tecidas entre os membros de suas etnias. A produção de arte/artesanato se configura
entre os saberes de cada povo.

Tais artefatos estão inseridos na produção artesanal desses povos, e é através desse artesanato que
podemos traçar um caminho para chegar ao universo artístico indígena pernambucano. Para tanto,
pode-se formular uma linha de pensamento a partir de como alguns autores definem tais conceitos.
Gombrich (2008), em seu livro A História da Arte, afirma que “não prejudica ninguém dar o nome de
arte a todas essas atividades, desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas
muito diversas, em tempo e lugares diferentes...” (p. 15). Mas adiante, Gombrich (2008) nos coloca
algumas questões em relação à arte primitiva, justificando o fazer artístico desses povos pelos rituais
que eles realizavam e dentro de uma perspectiva utilitária: “Se aceitarmos que arte significa o exercí-
cio de atividades tais como a edificação de templos e casas, a realização de pinturas e esculturas, ou a
tessitura de padrões, nenhum povo existe no mundo sem arte.” (GOMBRICH, 2008, p.39).

134
Em relação à produção da arte de povos primitivos, Berta Ribeiro (1989) nos traz o depoimento de
Lévi-Strauss, no qual ele não crê que “a arte ocorra como um fenômeno completamente separado
como ele costuma ser em nossa sociedade” (p, 15). A arte se configura dentro da organização social de
cada tribo, estando presente em todos os aspectos da sua vida. Lagrou (2009), também nos traz alguns
questionamentos sobre a arte primitiva. Como a autora afirma, inicialmente existe “um paradoxo:
trata-se de povos que não compartilham nossa noção de arte” (LAGROU, 2009, p. 9). Noção, esta,
alimentada por conceitos estéticos ocidentais, regido por códigos e símbolos, a fim de possibilitar
uma percepção sensorial.

Franz Boas (2015), em seu livro Arte Primitiva, ao tratar de valor estético, aponta para a excelência
técnica e formas fixas no processo de nomear a arte, em sua perfeição formal, afirmando que “o juízo
da perfeição da forma técnica é essencialmente um juízo estético” (p. 16). Sempre tecendo paralelos,
ele aponta que não existe prova de definição estilística sem que o artesão ou artista “seja guiado por
uma experiência técnica que o faça tomar consciência da forma” (p. 17). Ou seja, para caracterizar a
arte, ele cria uma via de mão dupla, na qual estilo e forma se alternam como em uma trama que tece
os fios a fim de se obter um núcleo comum, assim os objetos manufaturados estabilizam uma forma
e um estilo, caracterizando uma região em particular, tomando como um dos referenciais o consumo
constante de um mesmo tipo de matéria-prima.

Entretanto, Boas não descarta as emoções surgidas pelas ideias que os objetos suscitam: ele aponta
“quando as formas encerram um significado porque evocam experiências anteriores ou porque atuam
como símbolos, um novo elemento é adicionado ao gozo” (p. 17). Propõe uma visão de arte que não
seja unilateral, que não abarque apenas uma posição, mas que entreteça pensamentos em expansão,
pois o que se vê no senso comum, em relação a arte primitiva, é uma imposição de padrões estabele-
cidos por uma cultura diferente àquela observada. Ao atribuir significado às formas, diversos povos
criam um valor estético àquele objeto, seja ele abstrato ou realista, constroem seus artefatos baseados
naquilo que os cercam, não tão diferente dos grandes centros “civilizados”.

Corroborando com este pensamento, Lagrou (2009) vem afirmar que se é impossível “isolar a forma
do sentido e o sentido da capacidade agentiva; o sentido e efeito de imagens e artefatos mudam con-
forme o contexto em que estes se inserem” (p.31). Para a autora é:

[...] o deslocamento da atenção do significado para a eficácia do artefato tem um rendimento


particularmente interessante no contexto da análise de artefatos e imagens ameríndias porque
permite fugir do segundo dos pressupostos que definem a discussão no campo das artes no Oci-
dente (p. 32).

É, portanto, através do questionamento dos critérios de beleza que norteia a arte contemporânea e
o jogo do trocadilho e armadilhas conceituais que vão se desenrolar as ideias exposta por Lagrou,
fundamentada na concepção de arte como agência de Alfred Gell, no qual ele se questiona: “porque
continuar avaliando a arte de outros povos com critérios que não valem mais no nosso mundo ar-
tístico?” (LABROU, 2003, p. 34). O exemplo que é apresentado para ilustrar essa ideia de armadilha
vem da participação de Suzan Vogel, em uma exposição intitulada: “Art/Artifact no Center for African
Art em Nova Iorque, expõe uma rede de caça amarrada dos Zande como se fosse uma obra de arte

135
conceitual” (LAGROU, 2003, p.97). A antropóloga e curadora deixa o público atônito, sem saber se o
que estão vendo é um objeto etnográfico ou uma obra de arte.

A proposta de Gell está lançada: “a ideia de armadilha e as engenhosas formas que assume em diversas
sociedades se aproxima do conjunto de intencionalidades complexas postas em operação em torno de
uma obra de arte conceitual” (LAGROU, 2003, p. 97). É então, a partir da maneira que agem os ob-
jetos, criando, assim, uma rede de intencionalidades e um pensamento cosmológico, que os artefatos
tornam-se cópias de seus ancestrais, a fim de produzir efeitos no mundo. Superando a noção clássica
de mera contemplação dos objetos e colocando o objeto enquanto sua eficácia e agentividade.

A esta discussão de arte e artefato (artesanato), pode-se ter o contexto apresentado por Lagrou, no
qual ela expõe a noção transcultural do conceito de estética:

Gow invoca “A Distinção” de Bourdieu (1979), que localiza a origem da estética ocidental na Crítica
do Juízo de Kant, e que explica por que a aplicação do julgamento estético não pode senão representar
o ápice do exercício da distinção social através da demonstração de capacidades de discriminação,
que não seriam inatas e universais como queria Kant, mas aprendidas e incorporadas através de lon-
go processo de exposição e aquisição do habitus específico da sociedade em questão.(Lagrou, 2003,
p. 99, grifos do autor).

Para ilustrar esse contexto valorativo, a autora parte do pressuposto da não distinção entre arte e
artefato:

[...] não há distinção entre a beleza produtiva de uma panela para cozinhar alimentos, uma criança
bem cuidada e decorada e um banco esculpido com esmero. Como afirmam os Piaroa (Venezuela)
todos estes itens, desde pessoas a objetos, são frutos dos pensamentos (a’kwa) do seu produto, além
de terem capacidades agentivas próprias: são belas porque funcionam, não porque comunicam, mas
porque agem. (LAGROU, 2009, p. 35).

É partindo do viés da não distinção entre arte e artefato que, segundo a teoria de Gell, no texto de
Lagrou (2003), veremos a clara relação da arte com o social, ao afirmar sua matriz sócio-relacional,
tomando como base a ideia de que qualquer coisa poderia ser tida como um objeto de arte. Sendo
este um ponto de vista antropológico, tem-se uma proposta de fundir objetos e pessoas, que, para
entendermos os estudos de arte ameríndia, se justifica pela cosmologia que os artefatos representam
em suas sociedades. É, portanto, sob um olhar voltado para os usos desses objetos e “suas interações
humanas e a projeção da sua sociabilidade sobre o mundo envolvente; é na sua relação com seres e
corpos humanos que máscaras, ídolos, banquinhos, pinturas, adornos plumários e pulseiras têm de
ser compreendidas”(LAGROU, 2003, p. 101).

Depois de explorado o debate sobre arte e artesanato indígena, pode-se verificar que a discussão
aqui adotada, toma uma trajetória no sentido de olhar a produção dos artefatos autóctones en-
contrados em ferias de artesanato, de maneira a abrir horizontes em busca de conhecimentos que
articulem a técnica, e, porque não assim dizer, a poética que transita entre os mundos dos produtos
e das artes visuais. O discurso pretende estabelecer e firmar pontes entre a produção, técnica e po-
ética indígena.

136
REFERÊNCIAS

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lógica brasileira. 2. ed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1987, p. 283-313.
RIBEIRO, Berta G. Arte indígena, linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de
São Paulo, 1989.

137
Teatro e pedagogia:
relato de experiência de projeto
interdisciplinar em escola quilombola
Amanda Caline da Silva Omar

INTRODUÇÃO

A globalização tem mudado as formas de interação e convívio entre os indivíduos, refletindo de ma-
neira direta nas diversas culturas. Nesse contexto, a identidade cultural, que é formada nas relações
entre sujeitos que compartilham do mesmo patrimônio (costumes, valores, arte, religião, língua, entre
outros), também sofre mudanças.

Chegamos ao século XXI, há hoje diversos debates sobre a discriminação, atravessado pelo ideal da
democracia racial. Com todas as mudanças globais acerca das práticas educacionais atuais, a escola
vem se moldando e se modificando. Deixou de ser o lugar da aprendizagem formal e permitiu a entra-
da de conceitos e conteúdos que facilitaram a aquisição de conhecimentos, sobretudo com o espaço
aberto para tratar sobre questões sexuais e raciais, por exemplo. Com abertura para essas novas dis-
cussões na escola, cria-se margem não só para a informação, mas também para o debate de questões
sociais importantes.

A Escola Municipal Antônia do Socorro Silva Machado há muito tempo já aborda questões raciais
com seus alunos. Trata-se de uma instituição de ensino que está localizada no sítio Paratibe, região
de quilombo urbano, no município de João Pessoa, na Paraíba. Por estar em uma área carregada
de história e principalmente envolta em lutas e debates sobre direitos da comunidade quilombola,
a escola, todos os anos, desenvolve atividades com suas turmas sobre o assunto, gerando, no mês
de novembro, uma culminância que coincide com as comemorações da semana da Consciência
Negra.

Localizada ao sul do município de João Pessoa, a Escola foi construída em áreas pertencentes ao
Quilombo Paratibe. Por doação de sua líder comunitária, no ano de 1972, deu-se início à construção
da escola que tem o seu nome, em homenagem à mulher que tornou possível o sonho de uma escola
quilombola: Antônia do Socorro Silva Machado, mulher negra, que lutou para resgatar os valores
morais, humanos e educacionais da comunidade.

138
À primeira vista, a escola se apresenta como outras tantas do município, atende alunos entre 5 a 16
anos, com turmas de Pré II até o 9º ano, além da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A instituição
não recebe apenas moradores da comunidade de Paratibe, mas também alunos oriundos de bairros
vizinhos, e é neste contexto que existe uma mistura cultural, na qual é possível perceber vários perfis
de estudantes, entre eles destaca-se o de jovens moradores do quilombo, frequentadores da escola
pública, que não se identificam com a cultura de sua comunidade e não apresentam o sentimento de
pertencimento a ela.

Diante desse contexto, desenvolveu-se o projeto com a turma do primeiro ano do ensino funda-
mental, visando promover o sentimento de pertencimento desses alunos que estavam iniciando sua
trajetória escolar dentro da realidade de uma escola que busca firmar uma identidade de instituição
quilombola.

2. IDEIAS NORTEADORAS

Quando falamos de identidade negra, acionamos vários símbolos, identificações e preconceitos rela-
cionados à ideia de segregação racial baseada na ideologia de raça (TROTTA e DOS SANTOS, 2012).
Grande parte do simbólico da identidade se manifesta nas formas como os sujeitos são vistos, ou seja,
em suas aparências.

A construção da identidade negra está associada a usos específicos do corpo (negro), e isso a dis-
tingue da maioria das outras identidades étnicas. Por um lado, a aparência “negra” e a exibição de
gestualidade “negra” têm sido associadas a certos comportamentos, empregos e posições sociais.
Por outro lado, a aparência física, o porte e os gestos também têm sido o meio pelo qual os negros,
como população racializada, reconhecem a si mesmos e, na tentativa de reverter o estigma asso-
ciado à negritude, tentam adquirir status e recuperar dignidade. (SANSONE, 2007, p. 24, grifos
do autor).

Dentro desse contexto, o cabelo torna-se elemento de grande importância pelo fato de ser facil-
mente alterado: cor, tamanho, forma, textura. Em determinados momentos, essa manipulação
tem como objetivo camuflar a identificação negra; em outras, ela se torna afirmação. O cabelo
apresenta-se como vetor importante, limitado não apenas à identificação étnica, apesar de estar
indelevelmente atravessada por ela. Como afirma Kobena Mercer, “as formas através das quais nós
moldamos nosso cabelo podem ser vistas tanto como expressões individuais do self quanto como
corporificações das normas, das convenções e das expectativas da sociedade” (MERCER, 1987, p.
34). Para Fagundes (2011):

[...] o cabelo do afrodescendente certamente é parte intrincada do perfil estético que compreende a
identidade negra. A relação que cada um tem com seu cabelo é muito particular. O fato de saber ou
não lidar com ele determina a forma como é aceito. Além disso, as possibilidades de informação que
cada um tem e as experiências vividas desde a infância até a idade adulta fazem com que as pessoas
criem diferentes conceitos sobre a forma como encaram seu cabelo e traços, descendentes das popu-
lações que vieram do continente africano. “Há também que se considerarem as noções de alteridade
que cada um tem que, em geral, causam um ‘despertar’ para o reconhecimento de uma identidade
própria, frente ao espelho e à sociedade”.

139
O cabelo é símbolo na representação do negro, desde a escravidão. Nos círculos sociais, fora do am-
biente escolar, torna-se foco de tensão racial, fazendo com que os indivíduos se afastem cada vez
mais daquilo que é natural, indo ao encontro de processos químicos, para torná-los mais semelhantes
àqueles tidos como belos pela mídia.

A rejeição do cabelo pode levar a uma sensação de inferioridade e de baixa autoestima contra a qual
se faz necessária a construção de outras estratégias, diferentes daquelas usadas durante a infância e
aprendidas em família. Sendo assim, adverte Gomes (2007), a escola pode atuar tanto na reprodução
de estereótipos sobre o negro, o corpo e o cabelo, quanto na superação dos mesmos.

Discutir e reforçar a ideia de uma identidade passa por vários âmbitos, sobretudo quando se trata
do cabelo. Essa postura um tanto política presente na música de Respeitem meus cabelos, brancos!, de
Chico César, apresenta uma questão dualística de construção e uma certa negociação da identidade
negra, que se apresenta quando o autor desenvolve a ideia de que “chegou a hora de falar”.

Respeitem meus cabelos, brancos


Chegou a hora de falar, vamos ser francos
Pois quando um preto fala
O branco cala ou deixa a sala
Com veludos nos tamancos
Cabelo vem da África, junto com meus santos.

A liberdade e o desejo de que “deixem” os cabelos como quiserem que eles sejam, fica mais visível no
refrão, no qual o autor usa termos, talvez, considerados pejorativos em relação ao cabelo crespo, mas,
ao mesmo tempo, apresenta a democratização e liberdade para qualquer cabelo, diante da referência
de qualquer identidade:

Se eu quero pixaim, deixa


Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeixa balançar

3. A TRAJETÓRIA DE TRABALHO

Com base na necessidade de abordarmos, em sala de aula, a diversidade étnico-racial, tendo como
norteador a valorização da identidade, dando ênfase ao cabelo como elemento fundamental da per-
sonalidade humana, visto que cabe, também, à escola preservar e exaltar a herança cultural trazidas
pelos povos africanos, o que contribui para a formação de um cidadão crítico, e de uma sociedade que
busca a igualdade racial; sobre isso, os parâmetros curriculares nacionais revelam que:

Mudar mentalidades, superar o preconceito e combater atitudes discriminatórias são finalidades


que envolvem lidar com valores de reconhecimento e respeito mútuo, o que é tarefa para a so-
ciedade como um todo. A escola tem papel crucial a desempenhar nesse processo [...] porque a
escola apresenta à criança conhecimentos sistematizados sobre o País e o mundo, e aí a realidade

140
plural de um país como o Brasil fornece subsídios para debates e discussões em torno de questões
sociais. A criança na escola convive com a diversidade e poderá aprender com ela (BRASIL, 1997,
p. 21).

A vivência se deu no município de João Pessoa, no bairro Paratibe, recém-classificada como área ur-
bana, onde está localizado o quilombo de Paratibe, que foi palco de nossa experiência, sistematizada,
aqui, em forma de relato de experiência, na Escola Municipal de Ensino infantil e fundamental Pro-
fessora Antônia do Socorro Silva Machado.

A escola, fundada em 1972, possui 14 salas de aula, laboratório de informática, biblioteca, quadra
esportiva. A unidade de ensino, atualmente, atende a demanda de 970 alunos, entre remanescentes
do quilombo e outras crianças, adolescentes e adultos das comunidades dos arredores, funcionan-
do nos turnos da manhã, com as modalidades de ensino educação infantil e ensino fundamental I
(Pré II ao 5º ano); da tarde, contemplando os alunos do ensino fundamental II (6º ano ao 9º ano); e
da noite, com dedicação exclusiva a modalidade de jovens e adultos do ensino fundamental I E II.

Elencamos, para ser objeto do nosso relato, a turma 1º ano A, composta por 29 alunos, com faixa
entre 6 e 7 anos, sendo 20 do sexo biológico masculino, 9 do sexo feminino. As vivências ocorre-
ram sob a responsabilidade das professoras Amanda Caline da Silva Omar e Virna Vasconcelos
Lopes, e ocorreram de forma interdisciplinar, entre as disciplinas de artes e as demais trabalhadas
em aula.

Contextualizamos o relato de experiência em 6 etapas, objetivando trazer à luz, de forma clara, o


desenvolvimento do processo de ensino aprendizagem, tendo em vista que a experiência de uma de-
terminada pessoa pode atuar como elemento significativo na formação de outras.

3.1. Momento 1- Prática docente

Inicialmente, escrevemos no quadro as palavras África, Quilombo e Paratibe. Lemos as palavras e


pedimos para que os alunos falassem livremente acerca daquilo que lhes fazia lembrar ao ouvir essas
palavras. Os discentes se colocaram, e, neste momento, pareceram conhecer apenas a palavra Parati-
be, identificando-a como o nome do bairro em que residem; acharam a palavra quilombo engraçada,
e não fizeram menção à palavra África.

Partindo dos conhecimentos prévios trazidos pelos discentes, pedimos que sentassem em círculo
para apresentá-los o continente africano, suas características e sua localização, com o auxílio do globo
terrestre. Neste momento, abordamos a chegada dos portugueses ao Brasil e a forma como trouxe-
ram negros para servirem de mão de obra escrava. Foi contextualizada a história do bairro Paratibe
e do quilombo, ressaltando-o como símbolo da resistência de diversos povos, sobretudo, os negros
africanos.

Apesar de grande parte deste conteúdo ser abordado como componente curricular do 4º ano do ensi-
no fundamental, acreditamos ser válida a abordagem para dar aos alunos a oportunidade de construir
um elo entre sua história e identidade.

141
3.2. Momento 2- Prática docente

A aula expositiva teve início com a utilização de uma caixa surpresa, enfeitada com imagens de figuras
geométricas e mandalas africanas, recurso devidamente apresentado aos discentes, e intitulada por
eles de “Caixa do quilombo”. Pedimos que um aluno contasse o que lembrava sobre a aula anterior,
e formos surpreendidas ao percebermos que os alunos lembravam o conteúdo abordado de forma
muito satisfatória. Em seguida, abrimos a caixa e tiramos de dentro algumas fotos de quilombos de
todo Brasil; fotos de jovens negros jogando capoeira; de negras cultuando deuses africanos e baianas
cozinhando.

Perguntamos aos alunos o que lhes chamava atenção nas imagens. De imediato, mencionaram o jogo
de capoeira. Em seguida, foi explicado aos alunos o significado trazido em cada imagem. Pedimos
que descrevessem o que encontravam de semelhança entre eles e as pessoas retratadas ali. Os alunos
responderam, individualmente, que não havia semelhança. Pedimos que olhassem mais atentamente
as pessoas nas imagens, os olhos, os cabelos, os traços do rosto e a cor da pele, então voltamos a per-
guntar o que percebiam de semelhança entre as pessoas retratadas e eles.

Os alunos continuaram a afirmar não ter nenhuma semelhança. Neste momento, percebemos a im-
portância de intensificar as abordagens sobre o autorreconhecimento e a valorização da identidade.

3.3. Momento 3 - Aula de campo no quilombo

Foi o ponto inicial para uma abordagem mais direta. Os alunos ficaram entusiasmados com a visi-
ta, na qual puderam conhecer uma capelinha de palhas de coco, construída pelos quilombolas para
servir de cenário para danças e apresentações da comunidade. Fomos à associação de moradores do
quilombo, onde os alunos conheceram o local usado para aulas de capoeira. Ao final, foi improvisada
uma roda de capoeira, na qual os alunos mostraram o que conheciam do jogo, cantaram trechos das
músicas características e encerramos com um piquenique.

3.4. Momento 4 – Práticas artístico pedagógicas

Foram desenvolvidas atividades práticas de desenho e pinturas de autorretratos, com o objetivo de


despertar nos alunos a percepção de si mesmos, trabalhando temas que pudessem fazer florescer al-
guma identificação com a cultura negra.

Em seguida, foi apresentada a música escolhida para a apresentação dos alunos na culminância do
projeto. A canção escrita por Chico César, Respeitem meus cabelos, brancos47. Limos e contextualiza-
mos a música para os alunos e, na oportunidade, foi dado enfoque às singularidades da cultura afro
em relação aos cabelos, como seus tipos específicos e acessórios, como turbantes e tranças, com o au-
xílio de perucas e adereços que saíram da “Caixa quilombola” e tornaram as informações ministradas
mais palpáveis.

47. A música pode ser ouvida no link: <www.4shared.com/audio/RhgGEuXe/Respeitem_Meus_Cabelos_>. A letra pode ser vista no link:
<http://www.vagalume.com.br/chico-cesar/respeitem-meus-cabelos- brancos.html>.

142
Problematizamos com os alunos algumas práticas sociais disciplinadoras dos cabelos, sobretudo uso
destas na escola, que, por vezes, se apresenta de forma mascarada através da desculpa do cuidado com
a higiene, o que faz com que as famílias das crianças negras predam cuidadosamente os cabelos das
meninas e raspem rente ao couro cabeludo os cabelos dos meninos, a fim de evitar que seus filhos
sejam vítimas de ofensas dentro do ambiente escolar.

3.5. MOMENTO 5 – CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E PRODUÇÃO ARTÍSTICA

Tendo em vista o foco na desmistificação da ideia de “cabelo ruim”, muito presente na realidade es-
colar dessa faixa etária, que faz com que o cabelo se torne alvo de chacotas e gerem apelidos pejorati-
vos, buscamos incentivar a imaginação das crianças em torno das possibilidades de embelezamento
trazidas pelos cabelos crespos. Neste intuito, promovemos a contação de história do livro O cabelo de
Lelê48, narrativa que traz grade contribuição neste sentido. Em seguida, os alunos realizaram ativida-
des artísticas de criação do personagem, com auxílio de tintas e pincéis.

3.6. MOMENTO 6 – DANÇA

Depois de apresentados a música de Chico César, os alunos a cantavam constantemente. A partir


deste interesse, foi pensado em criar uma coreografia para a música, com o objetivo de envolver os
alunos na criação dos movimentos.

O processo ocorreu a partir de rodas de improviso. Os alunos, já conhecedores da música, se movi-


mentavam livremente ao ouvi-la. Em círculo e observando uns aos outros, cada um foi inventando
gestos durante algumas partes da música.

Com partes previamente organizadas pelas professoras, a dança recebeu também movimentos dos
alunos, que ajudaram a terminar de compor a coreografia.

4. RESULTADOS

Ao final deste processo, podemos perceber que ocorreram mudanças nos discentes. A visão dos alu-
nos quilombolas e não quilombolas, em relação à comunidade quilombola de Paratibe, adquiriu um
novo formato. E o comportamento dos alunos e de seus cuidados em torno da forma como manipu-
lavam seus cabelos foram nítidas.

Ao conhecerem a história de seus antepassados, e perceberem que o contexto negativo que lhes foi
transmitido anteriormente sobre o ser negro não é condizente com a força e a persistência deste povo,
as crianças quilombolas passaram a afirmar-se como remanescentes do quilombo, orgulhosas disto,
empoderadas com o sentimento de pertencimento, outrora distante.

Foi perceptível que os alunos, sobretudo as meninas, expressaram o desejo de passar a vir a escola com
os cabelos soltos, o que por vezes provocou a reflexão de suas famílias habituadas a reproduzir o que

48. BELÉM, Valéria. O cabelo de Lelê. 2 ed. São Paulo: IBEP, 2012.

143
lhes foi ensinado através dos traços preconceituosos da sociedade, que, ainda hoje, insiste na tentativa
de emoldurar pessoas. Estes comportamentos das crianças foram, inclusive, disseminados no ambiente
escolar, sendo, a partir de então, comum observarmos as madeixas soltas nos pátios da escola.

É importante destacar o caráter lúdico de todo o desenvolvimento do projeto, e a busca das docentes
em torno de desmistificar os estereótipos culturais de exaltação da cultura branca, ao mesmo tempo
em que foram apresentados os muitos padrões estéticos e suas belezas, o que fez com que os alunos se
aproximassem, intimamente, das diversas atividades interdisciplinares propostas.

Os termos pejorativos proferidos pelas crianças, nos momentos de brincadeiras, em relação aos ca-
belos, tornaram-se escassos. Não que isto tivesse sido imposto pelas professoras como algo proibido,
mas os alunos compreenderam, ao longo dos trabalhos, o respeito às diferenças, seja de cor, cabelos,
entre outros.

Sendo assim, um dos principais desafios da contemporaneidade no ambiente escolar, a aproximação


entre os conteúdos ministrados em sala de aula e a vivência em sociedade, foi sendo incluído.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em meio a todas as mudanças atuais, falar de identidade ainda é algo sem pontos finais, principal-
mente dentro da escola, também. Na sociedade atual, com a velocidade de acesso à informação e a
rapidez das mudanças sociais, essa identidade pode ser também transformada, e, a cada mudança,
surgem novas formas de pensar o ser humano.

As ações e atividades desenvolvidas na Escola Antônia do Socorro Silva Machado colaboraram para
que a ideia de uma identidade quilombola se configurasse na atualidade. Este relato contribuiu para que
professores e alunos pudessem ter um novo ponto de vista acerca de vários aspectos da cultura negra,
possibilitando o debate de questões sobre a identidade, que vão além das relações de raça e cabelo.

Toda a experiência vivida e relatada neste trabalho abre margem para novas discussões e possibilida-
des de compreensão da identidade negra no século XXI, assim como permite enxergar novas formas
de se trabalhar a cultura africana em sala de aula, de forma contextualizada, permitindo que o aluno
seja, também, um agente ativo neste processo.

O reconhecimento da complexidade que envolve a problemática social, cultural e étnica é o primeiro


passo para o reconhecimento, pois aponta a necessidade de a escola instrumentalizar-se para forne-
cer informações mais precisas para questões que vêm sendo indevidamente respondidas pelo senso
comum, quando não ignoradas por um silencioso constrangimento.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


pluralidade cultural e orientação sexual. Brasília: MEC, 1997.

144
DOS SANTOS, Marlene Pereira. Eu amo meus cabelos crespos. In: CUNHA JUNIOR, Henrique et al (Orgs.).
Artefatos da cultura negra no Ceará: formação de professores: 10 anos da lei nº 10.639/2003. Cadernos de textos.
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SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade. Salvador: EDUFBA, 2007
TROTTA, Felipe da Costa; DOS SANTOS, Kywza J. F. P. Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 19, n. 1, p. 225-
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cle/view/11350/7740. Acesso em: 01 jun. 2016.

145
Teatro do oprimido como recurso
para compreender configuração
atual da identidade em escola quilombola
Amanda Caline da Silva Omar

A globalização tem mudado as formas atuais de os indivíduos interagirem e conviverem entre si


e também reflete aspectos da cultura de cada um, valorizando as particularidades locais. O contexto
geográfico, religioso, de valores, costumes, entre outros, contribuem para entender as transformações
da identidade dos indivíduos.

Sabendo disso, refletimos sobre as relações de identidade na escola, pensando os caminhos para com-
preender sua configuração e seus processos de construção, dando origem a questões que guiam o iní-
cio dessa trajetória de pesquisa, apresentando alguns questionamentos e possibilidades de caminhos
para compreender a atual configuração da identidade dos estudantes da Escola Municipal Antônia do
Socorro Silva Machado, no Quilombo de Paratibe, João Pessoa-PB.

Compreender a identidade é algo bastante complexo, pois sua ideia está atrelada a inúmeros fatores
sociais e culturais, por exemplo. Sua construção estaria ligada a um processo múltiplo, que recebe
colaboração da família e da escola, pois esses ambientes se apresentam com socializadores em seus
vários níveis, principalmente nos graus iniciais.

Partindo da ideia de socialização para formação identitária dos sujeitos, o teatro na escola permitiria
que ocorressem trocas sociais de modo fluido e espontâneo. Nesse contexto, o teatro surge como cres-
cente, dentre as demais linguagens artísticas, não apenas pela obrigatoriedade do ensino de artes, mas
pelo reconhecimento da sua real importância no desenvolvimento social dos alunos.

As atividades lúdicas, como os jogos teatrais ou dramáticos, permitiriam os momentos de esponta-


neidade e trocas entre os sujeitos envolvidos. Porém, para entender as relações entre a socialização
através do jogo no teatro e as questões de identidade, é preciso conhecer o contexto no qual ocorrem
os questionamentos desta pesquisa, pois tudo que se configura ao redor de um objeto torna-se im-
prescindível para compreender a identidade daquilo que está sendo estudado, pois o contexto o afeta
diretamente. Para esclarecer a realidade, é importante que sejam apresentadas as circunstâncias atuais
que envolvem esta pesquisa, ainda em andamento.

146
A escola Antônia do Socorro Silva Machado foi construída em área de Quilombo urbano, no municí-
pio de João Pessoa, Paraíba. À primeira vista, a escola se apresenta como outras tantas do município,
atendendo alunos entre 5 e 16 anos, com turmas de Pré II até o 9º ano, além da Educação de Jovens
e Adultos (EJA).

A comunidade, localizada no Quilombo de Paratibe, é composta por cerca de 114 famílias, que vivem
em na região já identificada e delimitada pelo INCRA, possuindo área total de 267, 4308 ha. Uma
pequena parte dessa área, no ano de 1972, foi doada pela educadora Antônia do Socorro à Prefeitura
de João Pessoa, para que fosse construída uma escola que atendesse à comunidade e colaborasse para
o fortalecimento de suas raízes culturais. A escola recebeu o nome de sua doadora, homenageando
a mulher negra, que lutou para resgatar os valores morais, humanos e educacionais da comunidade.

A instituição não atende apenas moradores de Paratibe. Recebe alunos oriundos de bairros vizinhos e,
neste contexto, existe uma mistura cultural, no qual é possível perceber vários perfis de estudantes, jo-
vens moradores do Quilombo, frequentadores da escola pública, que não se relacionam de forma ativa
com a cultura de sua comunidade ou não apresentam o sentimento de pertencimento àquela cultura.

Na escola, a identidade se apresenta como uma grande interrogação. E questiona-se como estaria
configurada a identidade quilombola no contexto atual dos estudantes da escola Antônia do Socorro
Silva Machado. Para compreender melhor a situação escolar e colocar em prática os debates relacio-
nado a afirmação de uma identidade, o teatro apresenta-se como base para o trabalho prático com
os alunos, buscando, através de metodologias do ensino, encontrar um caminho para responder aos
questionamentos desta pesquisa.

O termo Quilombo, tem atualmente novas compreensões, ainda que haja um conteúdo histórico or-
ganizado sobre esse tema, há, ainda, muitos debates em torno dele. A ideia de Quilombo não está re-
lacionada apenas ao resíduo histórico, nem de ocupação temporal, não se trata de grupos isolados ou
de população homogênea. Não seriam necessariamente constituídos por grupos rebeldes ou oriundos
de movimentos de insurreição. Consiste em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resis-
tência na manutenção e reprodução de modos de vida característicos e na consolidação de territórios
próprios (O’DWYER, 2002).

Pensar a identidade quilombola nos leva a questionar sua formação na atualidade, e essa questão tem
sido discutida na teoria social, a partir de conceitos, como os apontados por Hall (2011), ao afirmar
que as velhas identidades estabilizaram o mundo social por bastante tempo, porém estão em declí-
nio, favorecendo o “surgimento de novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno” (HALL,
2011, p. 7).

A construção cultural dos sujeitos vai depender de vários fatores, visto que a identificação com certa
cultura ou valores é algo muito individual e varia de acordo com a história pessoal de cada um. Em
uma concepção sociológica, a identidade seria formada a partir da integração entre os sujeitos e a
sociedade (HALL, 2011). O indivíduo é formado e modificado constantemente em um diálogo entre
o mundo ao seu redor e as identidades que esse mundo oferece. Cada sujeito pode passar por esse
processo de formas diferentes e é passível de modificação com o passar do tempo.

147
Na sociedade moderna, a cultura na qual nascemos se constitui como uma das principais fontes de
identidade cultural. Conforme Hall (2003, p. 28), “essencialmente, presume-se que a identidade cul-
tural seja fixada no nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da linhagem
dos genes, seja constitutiva de nosso eu interior”. Ao afirmar ser recifense ou pessoense, por exemplo,
estamos falando metaforicamente, afinal, essa identidade não é biológica.

A configuração e construção de identidade é atravessada por relações diversas, como entre o psicoló-
gico e o social, entre o desenvolvimento pessoal dos sujeitos e a história da comunidade na qual estão
inseridos (AGUIAR, 2004). Os acontecimentos da vida de cada indivíduo geram neles a criação de
uma imagem de si mesmos, uma imagem que vai se construindo ao longo das experiências da vida,
formando-se a partir das trocas com outros, no meio social: pai, mãe, irmãos, amigos, vizinhos e
pessoas de outros círculos. Para Borbalan (1998), a identidade seria construída a partir de situações
singulares, com a família, a religião, a comunidade, mantendo-o num lugar central nas disposições
de identificações sociais, sociabilizando-se e construindo sua identidade através de etapas, ao longo
de sua trajetória de vida.

A identidade teria um caráter dinâmico, mas não diz respeito apenas à construção histórico-social
do indivíduo: expressa-se quando vão se agregando novas partes à rede de relações sociais, que estão
relacionadas com os sujeitos, o contexto ou situações em que se encontram ou com as quais interagem
(PEREIRA, 1997).

Para Gordon (1968), a identidade é um processo caracterizado por sua complexidade. O indivíduo se
situa sempre em relação ao outro por um sistema de representações e percepções. Estas relações se as-
sociam aos papéis sociais, e, em função do sentido de pertencimento ou exclusão relativo ao outro, o in-
divíduo se define e se situa. Nessas relações com o outro, Erickson afirma que a formação da identidade

[...] emprega um processo de reflexão e observação simultâneas, um processo que ocorre em todos
os níveis do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz daquilo que per-
cebe ser a maneira como outros o julgam, em comparação com eles próprios e com a tipologia que é
significativa para eles; enquanto que ele julga a maneira pela qual eles o julgam, à luz do modo como
se percebe a si próprio em comparação com os demais e com os tipos que se tornaram importantes
para ele (ERIKSON, 1976, p. 21).

Concordando com esta ideia, D’Adesky (2005) afirma que a identidade implica em constante processo
de identificação com o outro. Dessa maneira, o olhar que se estabelece na relação do indivíduo com
seus pares aponta as diferenças existentes entre eles, e, como consequência, levam a uma consciência
de si, de uma identidade.

As mudanças da sociedade nos fazem pensar: que identidade é essa, da qual tratamos e buscamos
entender em uma escola quilombola, visto que a imagem construída no imaginário quando se trata
de Quilombos remete a uma identidade relacionada à cultura negra, dos antigos escravos? Mas seria
apenas isso? Em pleno século XXI, ainda estamos falando da mesma identidade de grupos rebelados
durante o período de escravidão? De que identidade tratamos diante de um contexto social rodeado
de tecnologias e aparatos que permitem o constante contato com diversas culturas e valores?

148
Vivemos um momento de intensas relações, no qual social e culturalmente, observamos uma disse-
minação de imagens e de informações que são potencializadas pelo uso das tecnologias e comuni-
cação. Sob outro ponto de vista, esse intenso fluxo de pessoas, ideias e informações promove hibri-
dismos culturais que impedem a caracterização de uma cultura global, sendo a cultura o campo das
diferenças, em uma luta contra a uniformidade (SANTOS, 2001), lutando contra a globalização que
“quer impor uma só maneira de ver, ouvir, sentir, gostar, pensar, fazer e ser. Mas as raízes voltam a
crescer” (BOAL, 2009, p. 39).

A ideia de que “toda sociedade é plural e, daí, estar, constantemente, em vias de se fazer e de se defi-
nir” (BALANDIER, 1976, p.302) é algo inteiramente presente, principalmente na escola, espaço no
qual a ideia de identidade plural seria forte, na medida em que os indivíduos estão sujeitos a uma
variedade de situações e no convívio com pessoas com diferentes culturas.

E com todas as revoluções tecnológicas que surgiram no último século, emergiram também fortes
manifestações de identidades coletivas que vêm desafiando a mundialização da cultura, em nome de
uma singularidade cultural. Múltiplas, extremamente diversificadas, elas tomam as formas de cada
cultura e se abastecem nas fontes históricas constitutivas de cada identidade (MUNANGA, 2012).

Na vida real se vive, mas no teatro se vivencia, abre-se espaço para reflexão, ou seja, ao passo que
as situações são revividas no palco, as cenas da vida real podem ser melhor compreendidas, e suas
soluções, buscadas por meio da improvisação. Através do teatro, o indivíduo descobre que pode
observar a si mesmo e, ao ver-se, percebe quem realmente é, descobre o que não é, imagina o que
pode ser, e, a partir daí, é que surgem as mudanças e transformações individuais e coletivas de uma
sociedade.

Não é imprescindível que o teatro traga em si um conteúdo específico, nem é indispensável que o
texto teatral, em si, seja panfletário, para que estimule o ator ou o espectador a buscar a informação
dos seus direitos básicos. O fazer teatral, a prática em si, mais do que o observar, dá ao indivíduo essa
possibilidade de reconhecer sua necessidade e buscar a realização desses direitos, pois, como afirma
Freire, em seu livro Pedagogia do Oprimido, “somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente,
o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, supe-
rando, assim, sua ‘convivência’ com o regime opressor” (FREIRE, 1993, p. 29, grifo do autor).

O ambiente escolar permite o acesso às diversas formas de conhecimento, principalmente ao conhe-


cimento intercultural, apresentado como um processo específico das artes que se propõe a estabe-
lecer inter-relação entre códigos culturais de diferentes povos (RICHTER apud BARBOSA, 2008).
Essa interculturalidade está fortemente ligada à educação, pois é nas instituições educacionais que
os indivíduos serão expostos a um ambiente de multiculturalidade, propício ao desenvolvimento das
identidades e da convivência entre diferenças.

Trabalhar os jogos em sala de aula seria muito enriquecedor, pois permitiria as interações coletivas,
o respeito às regras, colaboração. Utilizados como ferramenta para ensino, podem incentivar a trans-
formação individual, tornando os jogadores capazes de construir situações imaginárias, objetos e
conceitos abstratos. Permitem também que se coloquem uns no lugar dos outros, ampliando o olhar

149
sob outros aspectos da vida. Seguindo a ideia de se colocar no lugar do outro, surge o interesse por
trabalhar jogos e técnicas criados por Augusto Boal, em sua proposta do Teatro do Oprimido.

O Teatro do Oprimido surge como metodologia de ensino de teatro que mais se adequaria à reali-
dade encontrada na escola, que permitira o fortalecimento das ideias para o debate sobre identidade
cultural e consequentemente sobre as relações opressoras que permeiam esse tema relacionado a uma
cultura de ancestralidade negra no ambiente escolar.

A escolha desse método se justifica por permitir a participação ativa de todos os envolvidos no pro-
cesso de criação teatral, possibilitando a formação dos laços entre os indivíduos, de modo a gerar a
reflexão sobre questões da identidade de forma específica, voltada para o grupo. Teatro do Oprimido
apresenta uma abordagem pedagógica que une a proposta reflexiva aos jogos, permitindo que todos
joguem, sendo atores ou não atores (BOAL, 2015), pois o potencial pedagógico do teatro é ainda
maior quando ele se torna intencionalmente educador, como é o caso do Teatro do Oprimido (GA-
DOTTI, 2007).

Para entender melhor as relações de identidade no ambiente escolar, sobretudo a identidade qui-
lombola na Escola Antônia do Socorro Silva Machado, faz-se necessário analisar como a proposta
do Teatro do Oprimido se aplicaria a esta realidade, tomando como ponto de partida pesquisas que
foram desenvolvidas sobre esta temática; as reflexões acerca das metodologias de ensino do teatro que
permitam a fundamentação do pensamento relativo à área de pesquisa, destacando a busca por pu-
blicações que compartilhem experiências relativas às propostas artístico-pedagógicas utilizadas para
o ensino de teatro em comunidades quilombolas, e pensar os benefícios do uso de técnicas do Teatro
do Oprimido em sala de aula para o trabalho de construção de identidade no contexto trabalhado.

Lopes (2001) se refere à experiência de aprendizagem em aulas de teatro, afirmando que estas pro-
porcionam desenvolvimento de elementos importantes, como autonomia, linguagem, autoconfiança,
leitura, escrita e a relação com seus pares. Defende o uso do Teatro do Oprimido em relação às outras
abordagens para ensino de teatro, pois acredita que, ao permitir que os alunos se coloquem no papel
de outro indivíduo, eles podem atravessar suas realidades, uma vez que essa metodologia possibilita,
em suas técnicas, que o sujeito reviva as suas experiências e participe da realidade do outro, colabo-
rando para o processo de autotransformação.

O Teatro do Oprimido, criado por Augusto Boal (1931-2009), durante os anos em que viveu como
exilado político pela América Latina, apresenta aspectos pedagógicos, sociais, culturais, políticos e
terapêuticos. Escolhê-lo como recurso para essa pesquisa se deu pelo fato de ser uma categoria do
mundo teatral que trabalha a linguagem humana por excelência, que existe dentro de cada um de nós,
onde somos atores e, ao mesmo tempo, espectadores dos nossos atos.

O Teatro do Oprimido assume o compromisso político, que colabora para refinar e expressar seu
potencial, aprender a lidar com as dificuldades e limitações e com os sentimentos ligados ao outro
e ao ambiente. Nas atividades do Teatro do Oprimido, os sujeitos podem se inserir, ter voz ativa, e
não serem inseridos na sociedade, expressando-se como ser pensante e se manifestando como um
agente de transformações. O espectador não atua ou representa um papel predefinido, pois ele é parte

150
da realidade apresentada, e, diante do tema, o espectador “transforma a ação dramática inicialmente
proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia,
preparando-se para a ação real” (BOAL, 1991, p. 138).

Ser um agente de transformação, mas por ela também passar, é uma das singularidades do Teatro do
Oprimido, aponta Flávio Desgranges (2010), ao afirmar que isso se deve ao fato de existirem inúme-
ras possibilidades de recriação de uma mesma realidade, fazendo com que as práticas da metodologia
proposta por Boal continuem despertando interesse e se mantenham sempre atuais.

O método teatral criado por Augusto Boal se desenvolve em três vertentes principais: a educativa, a
social e a terapêutica; com um conjunto de técnicas que pretende ajudar o espectador a transformar-
-se a partir das ações que foram aprendidas em cena e levar esse aprendizado e essas transformações
para sua vida cotidiana.

Os temas trazidos para as atividades do Teatro do Oprimido estão relacionados à realidade do gru-
po ou comunidade, fazendo com que questões da realidade social daqueles indivíduos venham à
tona nas cenas apresentadas. O espectador não atua ou representa um papel predefinido, pois ele é
parte da realidade apresentada, e, diante do tema, ele ensaia soluções possíveis para a problemática
inicialmente proposta, para que ele possa tornar suas ações reais (BOAL, 2013). O Teatro do Oprimi-
do tem sua dimensão educacional exacerbada ao permitir a troca de conhecimentos e experiências,
constituindo-se como facilitador nas discussões de problemas sociais e de intervenção socioeducativa
(DESGRANGES, 2010).

Compreender identidade é algo que não é simples, sobretudo no que diz respeito a uma comunidade
como a pesquisada, que passa por processos de afirmação na sociedade e também de uma identidade
em meio a tantas novas outras identidades que surgem no contexto do século XXI.

A metodologia de Boal ofereceria a oportunidade de aprofundar, na prática, em sala de aula, esta pes-
quisa, pois oportuniza o indivíduo e o valoriza, de forma a permitir o entendimento da identidade no
contexto escolar analisado e entender, também, a existência do sentimento de cidadania e de pertença
à comunidade.

Tendo em vista as questões de identidade apresentadas no início dessa pesquisa, percebemos que
ainda há muito para se compreender nas relações de construção da identidade no ambiente escolar.
E, levando em consideração a amplitude das práticas do Teatro do Oprimido e os jogos propostos por
Augusto Boal, entendemos que há uma possibilidade de conhecer a identidade atualmente configura-
da na escola, a partir dos debates que podem ser propostos a partir das aulas de teatro.

Trazer as ideias pedagógicas de Boal para a sala de aula possibilitaria pensar essa, como sua proposta
metodológica de ensino de teatro que permitiria uma comunicação entre professor e aluno em uma
só linguagem. Utilizar o Teatro do Oprimido permitiria enxergar situações nas quais há constante
debate sobre questões identitárias, ao passo em que há uma busca incessante por alimentar a fome de
conhecimento, comunicando com o teatro e edificando os alicerces para a construção da identidade
dos estudantes através do ensino de teatro por vias do Teatro do Oprimido.

151
Na busca por entendimento da identidade, muitos caminhos são possíveis de serem traçados e várias
questões podem, ou não, ser respondidas ao longo da pesquisa. Nessa busca por novos problemas e
possíveis soluções, não há ponto final: há tentativas, erros, explorações e uma infinidade de possibili-
dades a serem experimentadas.

REFERÊNCIAS

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GORDON, C. The self in social interection. New York, Wiley: Classic and contemporary perspectives, s.d.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. (Org.) SOVIK, Liv. Belo Horizonte: Editora
UFMG; Brasília: Representações da UNESCO no Brasil, 2003.
______. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
LOPES, João. Problemas de comportamento, problemas de aprendizagem. Problemas de “Ensinagem”. Coimbra:
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MUNANGA, Kabengele. A Construção da identidade negra no contexto da globalização. In: Cadernos PENESB
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O’DWYER, Eliane Cantarino. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
PEREIRA, João Baptista Borges. A criança negra: identidade étnica e socialização. Caderno de pesquisa, nº. 63,
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SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos da globalização. In: ______. (Org.). Globalização: fatalidade ou
utopia? [s.l.: s.n.], 2001.

152
Teoria x práxis: aspectos
educacionais da Escola de
Belas Artes de Pernambuco (1932-1946)
Niedja Ferreira dos Santos Torres

INTRODUÇÃO

A Escola de Belas Artes de Pernambuco (EBAP) foi inaugurada extraoficialmente em 29 de março de


1932, funcionando apenas internamente. Entretanto, a solenidade oficial de abertura da instituição à
sociedade ocorreu em 20 de agosto de 1932. Mas, apenas em 16 de dezembro de 1932 obteve inscrição
jurídica, sob o nº 33076, de seu regulamento, publicado no Diário do Estado, de 14 de dezembro de
1932, no livro A, nº 2, de registro de pessoas jurídicas, no 1º Cartório de Registro de Títulos e Docu-
mentos Particulares da Capital do Estado de Pernambuco. A finalidade da EBAP, segundo o Relatório
de Inspeção Federal do ano de 193849, era desenvolver o ensino das belas artes e suas aplicações,
mantendo um curso de Arquitetura e um curso de Pintura, Escultura e Gravura, de acordo com o
regimento da escola.

A EBAP foi concebida nos moldes da ENBA (RJ), que vêm de uma tradição artística e histórica que
remonta a vinda da corte portuguesa ao Brasil. Apesar da distância de quase um século entre as duas
instituições, esta escola, de moldes europeus, determinou a estrutura curricular e administrativa da
escola pernambucana.

Após quatro anos de sua fundação, recebendo incentivos municipais e estaduais, a Escola de Belas Artes
de Pernambuco ainda buscava o reconhecimento federal para poder ser provida com recursos necessá-
rios para o seu pleno funcionamento. No ano de 1936, diversos alunos já tinham ingressado na escola,
alguns gratuitamente, de acordo com a parceria firmada com os governos estadual e municipal, que
contribuíam com recursos para a escola. Em contrapartida, podiam solicitar a matrícula de estudantes,
por indicação, nos cursos de Arquitetura e Pintura, Escultura e Gravura ou nos Cursos Livres. A manu-
tenção da escola era precária e, apesar das boas instalações, faltavam materiais didáticos para os estudos.
Contava-se com a colaboração dos professores que, mesmo sem receber proventos, ministravam nos
cursos e doavam, além de si próprios, os artefatos necessários para a realização das aulas.

49. Elaborado pelo inspetor José Campelo, designado para a avaliação da escola pelo Ministério da Educação.

153
1. ENSINO DA ARTE, INDUSTRIALIZAÇÃO E MODERNIDADE

O cenário é o final do século XIX, período após a inauguração do regime republicano. Viu-se a indus-
trialização crescente, frente ao modelo econômico agrário, dar alicerce para várias mudanças nas bases
educacionais e culturais do Brasil. Da mesma forma, o crescimento populacional e a precariedade da
mão de obra existente, não dariam conta do modelo industrial. Estes foram os principais fatores que
permitiram ampliar a educação para as camadas economicamente menos privilegiadas da população.

Para contextualizarmos o período de fundação da EBAP, trazemos aqui, ainda, a Constituição Fede-
ral50 de 1934, que propôs traçar as diretrizes da educação nacional, determinando as condições de
reconhecimento oficial dos estabelecimentos e dos institutos de ensino superior, bem como as con-
dições à fiscalização. A Constituição de 1937 dava continuidade às mudanças da anterior, e previa,
no Art. 132, dar auxílio e proteção às instituições fundadas por associações civis. O Art. 134 alegava
proteger os monumentos históricos, artísticos e naturais. Além de que, em 1937, um golpe militar
instaura o Estado Novo, que vigorou até 1945. Desta nova política, surgiram mudanças na legislação
educacional brasileira que afetou as instituições escolares do país. Dentre estas, a EBAP. A implan-
tação da CLT de 1943, que implica na valorização profissional, ordena que a EBAP cumpra o papel
de remunerar os professores para atender as fiscalizações necessárias e poder se equiparar às outras
instituições de ensino.

Neste sentido, a propósito dos anos de 1930, Albuquerque Jr. (2001) corrobora que:

A década de trinta é um momento de intensa disputa entre os diferentes projetos ideológicos e inte-
lectuais para o país, momento em que as organizações e instituições como a Ação Integralista Bra-
sileira, o Partido Comunista, a Aliança Nacional Libertadora, a Igreja, o Estado e seus ideólogos
travam uma intensa batalha em torno da atribuição de um novo sentido à história do país, à nação e
ao seu povo. (ALBUQUERQUE JR., 2001, p. 208).

É neste panorama, do Brasil no início do século XX, que vimos surgir alterações na educação que
buscavam atender às necessidades, também impostas pela modernidade, que se instauravam e faziam
emergir uma classe trabalhadora e profissionalizada. É neste cenário político e social que a EBAP vai
atuar, tendo como base as mudanças na legislação da educação, pleiteando a equiparação federal da
escola. Por conseguinte, alterações na seriação do currículo dos cursos, nos programas das discipli-
nas, no ingresso dos alunos e, principalmente, na atuação dos professores, foram exigências a serem
atendidas, para a escola alcançar o almejado reconhecimento dos seus cursos. É possível inferir que
as mudanças exigidas pelo Ministério da Educação apontaram para uma adequação da EBAP a tais
determinações. Tratava-se de uma tentativa de gerar um melhor desempenho e uma busca para a exe-
cução de um ensino, atento às necessidades da época, com ganhos para a formação artística e técnica
dos estudantes que cursavam a EBAP.

Qual a compreensão educacional da EBAP em consonância às diversas mudanças nas conjunturas so-
ciais, na legislação educacional, nas alterações estruturais que a Educação brasileira passou? Como as

50. Legislação Histórica. Constituições anteriores. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/ legislacao-historica/constitui-


coes-anteriores-1>.

154
concepções educacionais seguidas pela escola se comportaram às portas do movimento modernista e
como este foi apropriado no ensino artístico da EBAP?

2. PERCEPÇÕES DE ENSINO DA ARTE NA EBAP (1932-1946)

Na tentativa de alcançar a formação artística ansiada, a EBAP estruturou, a partir da ENBA, adotan-
do suas concepções e metodologias de ensino. Adiante, foi estruturada pelo Decreto de nº 19.852 de
1931, que organizava o ensino artístico, técnico e profissional. Uma modificação ocorreu em 6 de
julho de 1933, pelo Decreto nº 22.897, que também alterou o ensino artístico ministrado pela ENBA.
Este decreto pretendia ter uma “intervenção mais direta na conservação do patrimônio artístico do
país, nos meios de difusão do seu conhecimento e incentivo ao progresso das artes plásticas”. Foi a
partir deste modelo que a escola passou a organizar o seu ensino, regulamentada nos moldes da es-
cola carioca. Algumas modificações foram determinantes, abrangendo a ampliação de tempo para
conclusão dos cursos e uma nova distribuição para as disciplinas (MELO E SILVA, 1995, p. 135). Em
razão disso, “a organização didática foi planejada pelos fundadores segundo seus conhecimentos na
prática do magistério e durante sua vida discente na Europa, pois, uma parte dos fundadores frequen-
tou cursos na Europa” (MARQUES, 1988, p. 34).

Inicialmente, as referências filosóficas da EBAP, e apesar do regulamento da escola ser elaborado com
referências na estruturação curricular da ENBA, tinham “características da filosofia germânica, com
influências de Heinrich Moser e Frei Matias Teves” (MARQUES, 1988, p. 31). Moser vinha da escola
alemã e o Frei Matias Teves, de formação religiosa, e podem ser considerados importantes referências
norteadoras das ações do corpo docente e da estrutura educacional da instituição em sua fundação.

Sobre a metodologia escolar, destacam-se a observação e a prática de exercícios, pautada nos funda-
mentos do ensino academicista, onde...

É dada a ênfase à observação que o aluno deveria desenvolver na prática, a qual só se conseguiria
com o treino regular e a critica que através do conhecimento teórico e pratico viria possibilitar-lhe
o domínio da criatividade artística. [...] As estratégias de ensino são as de debate, discurso didático,
conferência, esclarecimento de dúvidas, argumentação, visitas ao campo e visitas aos locais que ve-
nham a complementar a teoria (MARQUES, 1988, p. 33).

Por intermédio das atividades, amplamente desenvolvidos em sala de aula, “[...] o professor deveria
ensinar o aluno a utilizar seus conhecimentos nos exercícios das disciplinas práticas, no campo, em
excursões e em visitas a (sic) obras em construção” (MARQUES, 1988, p. 33-34). As visitas progra-
madas pelos professores tinham esta finalidade.

Desta forma, podemos inferir que o aluno era motivado pelo professor a realizar “perguntas; os temas
para os exercícios escolares são escolhidos dentro de uma possível aplicação que conduza a um resul-
tado aceitável na prática” (MARQUES, 1988, p. 34).

A participação dos alunos era efetiva, esta prática pode ser verificada a partir dos registros realizados
pela imprensa. Adiante, temos uma nota, divulgada pela Folha da Manhã, que aponta o envolvimento

155
dos alunos nestas atividades, como exemplo, a excursão dos alunos à praia de Gaibú, no Cabo de
Santo Agostinho, hoje região metropolitana do Recife.

Por iniciativa do Diretório Acadêmico da Escola de Belas Artes, os alunos daquele estabelecimento
excursionarão, hoje, à praia de Gaibú. Os estudantes viajarão em ônibus cedido pelo secretario do
Interior, fazendo-se acompanhar de professores. Trinta pessoas compõem a caravana, que partirá
pela manhã do edifício da escola (Folha da Manhã, Recife, 26 set. 1943).

A EBAP promoveu inúmeros eventos acadêmicos nas suas dependências, como conferência e pales-
tras proferidas por intelectuais de área de artes, vindos de outras regiões do país e do exterior. Em
meados de 1945, estes eventos ocorreram com mais frequência, promovidos pelo aumento dos sub-
sídios vindos do Estado.

Outro exemplo da participação dos alunos nas atividades escolares fora da escola, registrada no Jornal
do Commercio51, foi a visita organizada pelo professor de História da Arte (Imagem 1) a uma exposição
de Arte Sacra, no município de Goiana, em Pernambuco. Neste evento, os alunos conheceram as igrejas,
o Convento de Nossa Senhora do Carmo e, na volta, foram conhecer as igrejas da cidade de Igarassu.

Imagem 1 - O professor Matias Teves


acompanha os seus alunos em aula
de campo de História da Arte. Autor
desconhecido.
Fonte: Acervo do MDB-BC/UFPE.

Dentre as iniciativas citadas, temos, ainda, a palestra realizada pelo escritor Mário Sete, “O Recife de
outrora através de velhas estampas”, que ocorreu no aniversário da escola, como divulga os jornais52
Folha da Manhã e o Jornal do Commercio. A palestra do professor Pelópidas Silveira, sobre “Anato-
mia e Artes Plásticas”, divulgada pela Folha da Manhã, em 15/11/1945. A conferência do professor
Lucien Poussel, “adido cultural da França no Recife, pronunciará, focalizando a pintura francesa na
época medieval. Ilustrando a conferencia, serão projetados vários filmes sobre as obras mais caracte-
rísticas da pintura religiosa na França 6/04/1946”. E as três conferências do professor Antoine Bon53,

51. Jornal do Commercio. Alunos da Escola de Belas Artes em Visita a Goiana. Recife, 10 out. 1944.
52. Jornal do Commercio. Recife 15 de agosto de 1945; Folha da Manhã. Recife, 19 ago. 1945.
53. Arte Barroca. A conferência, ontem, do professor Antoine Bon. Folha da Manhã, 09/11/1944. Arte barroca. A segunda conferencia, hoje,
do professor Antoine Bon. Jornal do Comercio. Recife, 09 nov. 1944.

156
da Faculdade de Filosofia do RJ, convidado pelo Governo do Estado, sobre a história da arte; a arte
barroca e a pintura francesa do século XX (Folha da Manhã, 09/11/1944; Jornal do Commercio,
8/11/1944).

Podemos verificar as ações dos professores da EBAP, no sentido de aliar a prática à teoria, proporcio-
nando aos alunos apreender os conhecimentos específicos das disciplinas in loco, a exemplo da aula
da disciplina de Arquitetura Analítica na Basílica da Penha, Olinda (Imagem 2).

Imagem 2 - Aula da disciplina de Arquitetura Analítica


acompanhados pelo professor da disciplina, na Basílica da
Penha, Olinda. Autor desconhecido.
Fonte: Acervo do MDB-BC/UFPE.

A EBAP realizava mostras públicas dos trabalhos dos alunos, do ano letivo, das disciplinas dos cursos
de Arquitetura, Pintura e Escultura. Uma destas exposições, em 1941, permaneceu aberta ao público
durante vinte dias e teve o número de 1.203 visitantes. Sobre estes eventos, Galvão (1941) corrobora,
“os jornais deram amplas noticias louvando a iniciativa desta instituição, que apresentava para co-
nhecimento do público os seus valores até então ocultos, dando-lhe ao mesmo tempo o necessário
estimulo” (Relatório da Ebaur dos Anos de 1941 a 1942). Os alunos também participavam de apresen-
tações de trabalhos dentro e fora da instituição. Em comemoração aos nove anos da EBAP, os alunos
do curso de Arquitetura e Pintura pronunciaram palestras na Rádio Clube de Pernambuco (Jornal do
Commercio. Recife, 19 de agosto de 1941).

Para gerar movimentação nas suas dependências, a escola promoveu um prêmio em dinheiro, no
valor de cem mil réis - 100$000 para estimular os alunos a frequentarem a biblioteca da EBAP. Como
podemos conferir no Relatório da EBAUR dos anos de 1941 a 1942, os alunos deveriam frequentar a
biblioteca, realizar pesquisas individuais ou em dupla, sendo o trabalho em formato de texto e apre-
sentado a uma banca examinadora, que selecionaria os ganhadores.

157
3. A AVALIAÇÃO NA EBAP

No que diz respeito à aprovação dos alunos, o ano letivo era dividido em dois períodos: período de exa-
mes e de férias. De acordo com as disposições vigentes na Escola Nacional de Belas Artes, os períodos
didáticos tinham uma duração de total de 230 dias (7 meses e 20 dias). Cada disciplina tinha duração de
45 minutos, sendo ministradas três vezes por semana. A frequência era obrigatória. Os alunos que não
comparecessem a dois terços das aulas de preleção, não podiam realizar as provas finais. Os alunos que
não compareciam e/ou não tinham executado pelo menos três quartos dos trabalhos escolares propos-
tos e aceitos pelos professores. A frequência era registrada pelo professor em cadernetas, unicamente
para este fim, e apuradas anualmente, para fins de aprovação para o período posterior.

A aprovação em uma cadeira dependia de três elementos: a média de trabalhos escolares, a média de
provas parciais e da nota do exame final. O modelo e número de trabalhos escolares dependiam da
natureza da disciplina. As provas parciais eram duas, que aconteciam no fim de cada período letivo.
Consistiam na solução de questões propostas, mediante sorteio entre a matéria dada ou, para as ca-
deiras práticas ou especiais, na execução de trabalho cujo tema era escolhido mediante sorteio. Os
exames finais consistiam de prova oral, compreendendo parte vaga e ponto sorteado, para as cadeiras
teóricas e teórico-práticas; da execução, em número determinado de sessões, de tema escolhido pela
banca examinadora, para as cadeiras práticas; e do desenvolvimento, em número determinado de
sessões, de tema também escolhido pela banca examinadora, para as cadeiras especiais.

Para a inscrição em exame final, era necessário que o aluno obtivesse média igual ou superior a cinco,
quer nas provas parciais, quer nos trabalhos escolares da respectiva disciplina. Caso não satisfizesse
estas condições, o aluno repetiria a cadeira. O aluno que obtinha a média igual ou superior a seis
nas provas parciais e nos trabalhos escolares e preenchesse as condições de frequência era aprova-
do, independentemente de prestar exame final. No caso de prestação de exames finais, a aprovação
dependeria de ter sido obtida a média igual ou superior a cinco, entre a média das provas parciais, a
média dos trabalhos escolares e a nota de exame final. Esta média geral era ponderada (com pesos 1, 2
e 3) nas cadeiras que exigiam a prova prática final, sendo adotada média geral aritmética nas demais.

Eram consideradas ‘teórico-práticas’ as seguintes cadeiras: História da arte e Anatomia. Eram con-
sideradas cadeiras práticas: Geometria Descritiva, Desenho, Modelagem, Perspectiva, Arquitetura
analítica, Arte Decorativa, Desenho de Modelo Vivo (1º, 2º e 3º ano), Pintura (2º ano), Escultura (2º
e 3º anos). São consideradas cadeiras especiais: Grandes Composições de Arquitetura, Modelo Vivo
(4º ano), Pintura (3º e 4º anos) e Escultura (4º ano).

O rigor com que eram realizados os exames pode ser avaliado pelo seguinte resultado do ano de 1937:
em 67 exames de promoção realizados, houve 40 aprovações contra 27 reprovações, ou seja, 59,7%
aprovados e 40,3% reprovados.

Em 1944, o Jornal do Commercio54 divulgava o edital do Diário Oficial que trazia o programa do con-
curso para o exame vestibular para os cursos de Pintura, Escultura e Gravura. Para os exames, eram

54. Escola de Belas Artes de Pernambuco. Jornal do Commercio. Recife, 30 dez. 1944.

158
exigidas as seguintes matérias: Desenho Figurado, Modelagem e Desenho Geométrico. Os documen-
tos exigidos eram o certificado de conclusão do curso secundário fundamental e para o ingresso do
Curso Livre pedia-se o certificado da 3ª série do curso secundário.

O Diario de Pernambuco55 divulgava que as disciplinas para o exame para o curso de Arquitetura eram:
Matemática, Física, Desenho Projetivo e Desenho Figurado. Divulgava, ainda, os Cursos Livres de Dese-
nho Figurado, Natureza Morta, Paisagem, Desenho de Modelo Vivo, Modelagem, Escultura, Geometria
Descritiva, Arquitetura Analítica, Anatomia, História da Arte, Perspectiva e Arte Decorativa.

Após o reconhecimento dos cursos, o ingresso na escola sofreu algumas alterações, como demonstra
a reportagem do Jornal do Commercio de 1946, que trazia informações sobre o vestibular para os cur-
sos de Arquitetura, Pintura e Escultura:

[...] o edital para o concurso de habilitação desses cursos, encerrando-se as inscrições no dia 10 de
fevereiro próximo. Os candidatos deverão juntar ao requerimento de inscrição os seguintes docu-
mentos: certidão de nascimento (idade mínima de 17 anos para Arquitetura e 15 para Pintura ou
Escultura); prova de identidade; atestado de sanidade, de vacina e de idoneidade moral; prova de que
está em dia com as obrigações relativas ao serviço militar; e, para o curso de Arquitetura certificado
do curso complementar, clássico ou cientifico ou de curso secundário quando for o caso e para os
cursos de Pintura e Escultura, certificado de conclusão do curso secundário fundamental (ou da 3ª
serie para o curso livre). A taxa de inscrição é de Cr$ 50,00. O concurso para Arquitetura versará so-
bre Matemática, Física e Desenho. O concurso para Pintura e Escultura versará sobre Desenho Geo-
métrico, Desenho Figurado e Modelagem56. (JORNAL DO COMMMERCIO, 1944, grifos do autor).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas questões nos levaram a pesquisar a visão de ensino da arte na EBAP. Dentre as várias indaga-
ções que nortearam esta pesquisa, há uma que gira em torno da percepção de ensino e das posturas
dos professores e professoras que persistem diante do ensino da arte ainda hoje, apesar das diversas
abordagens que temos atualmente.

A visão modernista do ensino da arte predomina por longo período, apesar de que novas e distintas
práticas arte/educativas estivessem em ascensão no Brasil. Percebe-se que concepções com base na
auto-expressão, na espontaneidade, na originalidade e na liberdade de criação do desenho convivem,
ainda hoje, na prática dos educadores diante das tendências contemporâneas de ensino da arte (BAR-
BOSA, 2008, p.14-15).

A visão espontaneísta e de originalidade está impregnada nas práticas educativas das escolas formais
e em instituições culturais que tratam do ensino da arte. Nem mesmo no ambiente familiar, os pais
compreendem a produção do grafismo infantil. O gosto de desenhar das crianças não se alterou, “[...]
apesar do computador e de outras mídias, os adultos, pais e professores continuam tendo dificuldade

55. Diario de Pernambuco, Recife, 01 fev. 1946.


56. Escola de Belas Artes de Pernambuco. Jornal do Commercio. Recife, 27 jan. 1946.

159
de entender e situar esta produção, principalmente porque eles não sabem lidar com seus próprios
desenhos” (COUTINHO, 2008, p. 193). São questões a serem avaliadas.

A metodologia aplicada na EBAP seguiu os propósitos de formação artística, com base na ENBA, do Rio
de Janeiro, que já tinha um século de existência no Brasil. Esta, por sua vez, enfatizava a doutrina acadê-
mica, ressaltando a importância do desenho na construção da obra de arte, considerado como prioridade
na formação do artista. O desenho era visto, principalmente, como concepção da obra de arte, seu ponto
inicial. O ensino do desenho está intimamente relacionado ao domínio da técnica como base para todas
e quaisquer modalidades das artes visuais, sejam elas na pintura, na escultura, na gravura, no vitral ou
na arquitetura. A técnica, sendo base fundamental, esteve presente em todos os cursos da EBAP, como
alicerce do caminhar dos alunos durante o curso e como percurso evolutivo, portanto, como a compre-
ensão de ensino artístico vigente na Escola de Belas Artes de Pernambuco entre os anos de 1932 a 1946.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2001.
ALUNOS da Escola de Belas Artes em Visita a Goiana. Jornal do Commercio, Recife, 10 out.1944.
BARBOSA, Ana Mae. Ensino de Arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008.
COUTINHO, Rejane. Sylvio Rabello: o Educador e Suas Pesquisas sobre o Desenho Infantil. In: BARBOSA,
Ana Mae (Org.). Ensino da arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008.
EBAP. Livro nº 110. Relatório para Inspeção Federal dos Anos de 1938.
EBAP. Relatório da EBAUR dos Anos de 1941 a 1942.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Diario de Pernambuco, Recife, 01 fev. 1946.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Folha da Manhã, Recife, 09 nov. 1944.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Folha da Manhã, Recife, 15 nov.1945.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Folha da Manhã, Recife, 26 set. 1943.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Jornal do Commercio, Recife, 27 jan. 1946.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Jornal do Commercio, Recife, 08 nov. 1944.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Jornal do Commercio. Recife, 19 ago. 1941.
ESCOLA de Belas Artes de Pernambuco. Jornal do Commercio. Recife, 30 dez. 1944.
GALVÃO, Joel F. Jayme. Memórias de uma cruzada: Escola de Belas Artes de Pernambuco, sua criação e sua
vida. Recife: Arquivo Público Estadual, 1956.
MARQUES, Norma de Oliveira. Escola de Bellas Artes de Pernambuco: aspectos de estudo histórico. 1998. Mo-
nografia (Especialização em Artes Plásticas) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1988.
MELO E SILVA, Beatriz de Barros. A pedagogia da Escola de Belas Artes do Recife: um olhar a mais. 1995. Dis-
sertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernam-
buco, Recife, 1995.
TORRES, N. F. dos Santos. O Ensino do Desenho na Escola de Belas Artes de Pernambuco (1932 A 1946). 2015.
Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Programa associado de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universi-
dade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

160
Há crianças na sala de espetáculos! –
vestígios da presença de pequeninos
espectadores nos teatros do Recife
Leidson Malan Monteiro de Castro Ferraz

N a etimologia da palavra infância, infante é aquele que não fala, não tem voz e vez: uma tradu-
ção, infelizmente, perfeita da história do teatro para a infância no Brasil e, consequentemente, em
Pernambuco, ambas com tão poucas publicações. Para sanar parte de tamanho vácuo, este artigo
vem lançar um olhar retrospectivo sobre o que existia antes da primeira encenação feita por e para
crianças a ocupar o Teatro de Santa Isabel, a peça Branca de Neve e os 7 Anões, pelo Grêmio Cênico
Espinheirense, em 1939, um marco para a produção cênica voltada às crianças em Pernambuco. Foi
assim que se deu início o projeto das matinais infantis dominicais naquele palco, ideia do administra-
dor da casa, o teatrólogo Valdemar de Oliveira, oportunizando àquele público teatro específico ao seu
mundo. Mas quais as opções de teatro para a infância antes?

Partindo dos pressupostos do historiador David Lowenthal (1998) ao afirmar que tocamos apenas de
forma tangencial o nosso conhecimento do passado, sendo ele fugidio, repleto de resíduos, pequenas
frações, fragmentos dos fragmentos, e que o que aconteceu jamais pode ser verdadeiramente conheci-
do, serão aqui pontuados momentos da relação da criança com a arte teatral na cidade do Recife, não
negando que este painel tem um caráter seletivo de lembranças ao escolher como principais fontes,
além de livros sobre a história do teatro no Brasil, periódicos da imprensa recifense ao longo dos tem-
pos. No entanto, este mapeamento que relembra o passado é crucial para nosso sentido de identidade.
Afinal, saber o que fomos confirma o que somos.

Compreende-se que, desde que chegou às terras brasileiras, trazido pelos portugueses, o teatro
nunca fez distinção entre as plateias adultas ou infantis, a começar das apresentações de caráter
missionário, realizadas pelo teatro jesuítico no Século XVI. No livro Pequena História do Teatro
no Brasil, o pesquisador Mario Cacciaglia (1986, p. 83) anota que uma das primeiras peças repre-
sentadas no país, Diálogo Sobre a Conversão do Gentio, do padre Manuel da Nóbrega, quando de
sua exibição no Espírito Santo em 1583, contou com os próprios índios como atores “e um coro de
crianças nuas e sarapintadas [que] alegraram o espetáculo com gritos de guerra e danças desenfrea-
das. Outros meninos indígenas dançaram e cantaram quadras pastoris ao ritmo de violas, tamboris
e flautas”.

161
Ou seja, o nosso teatro já nasceu voltado a todas as idades, com garotos na plateia ou mesmo repre-
sentando. Com o passar dos anos, em meio a religiosos, indígenas e, mais à frente, estudantes – as
poucas personagens femininas eram jovens travestidos –, as crianças formavam o público perfeito
para apreender lições de conversão e educação nas exibições por pátios de colégios, procissões, no
adro das igrejas ou ao ar livre. E se nos séculos XVII e XVIII vemos o teatro confundido com as festi-
vidades públicas e sofrendo até mesmo a proibição de acontecer em qualquer parte da nossa jurisdi-
ção por meio de uma pastoral religiosa, somente com o alvará de 17 de julho de 1761, assinado pelo
Marquês de Pombal, foi instituída a necessidade de casas de espetáculos em todo o território nacional.
No Recife, em 1772, surgiu, então, a Casa da Ópera, o primeiro teatro em terras pernambucanas,
um edifício térreo localizado no bairro de Santo Antônio, onde hoje é a rua do Imperador. Nos 78
anos em que esta casa de espetáculos sobreviveu, ainda que tenha tido de grandiosas a medíocres
produções em sua programação esporádica, vindas principalmente do estrangeiro, não encontramos
registros de peças voltadas à meninada, mas é quase certo que os filhos da melhor sociedade deviam
acompanhar seus pais àquela diversão adulta que, se na cultuada França era sinônimo de elegância,
no Recife ocupava uma casa de fama bastante duvidosa. A promiscuidade praticada ali por homens e
mulheres costumava fechar o teatro constantemente por decisão policial.

No entanto, dá para imaginar que garotos de todas as classes sociais, seja nos camarotes ou na plateia
composta por caixeiros e comerciantes, deleitavam-se com as comédias ali representadas ou ainda os
dramalhões, as peças de quaresma, os números de danças e cantos ou durante as temporadas líricas,
bem mais constantes. No mais, presume-se que a sensação para o público mirim devia ser as noitadas
de prestidigitação e fantasmagoria, a exemplo das récitas do Mr. Siasset, em outubro de 1829, que,
segundo Valdemar de Oliveira (s. d., p. 30), na pesquisa intitulada Origem do Teatro, no Brasil, ainda
inédita, prometia “estudos athe sobrenaturaes”, trazendo a cada noite uma “nova invenção de Optica
e Chimica”. Aos poucos, os pernambucanos foram aventurando-se a ocupar a cena nas primeiras so-
ciedades dramáticas do Recife, ainda no século XIX.

Estas, em número bem reduzido, costumavam apresentar espetáculos sociais com pretensão de agra-
dar a toda a família, mesmo que a maioria fosse exibida no horário noturno das 20h30 e com temáti-
cas nem sempre atraentes à meninada. O Congresso Dramático Beneficente, fundado em 12 de junho
de 1884, e a Distração Dramática Familiar da Torre, atuante a partir de 1896, esta última com “teatri-
nho” próprio e elegante, segundo o Diario de Pernambuco (26 out. 1902, p. 2), são exemplos daquele
momento, quando ainda não havia espetáculos direcionados à criança, mas as comédias de costume
serviam para entretê-las. Não era raro surgir na imprensa alguns chamarizes, como a oportunidade
de ver um espetáculo de variedades ou a distribuição de bombons aos pequeninos espectadores, mes-
mo nas sessões noturnas.

Foi então que o Brasil viu a “febre” de meninos e meninas prodígios, transformados em estrelas de es-
petáculos, para agradar as famílias no tradicional horário noturno das 20h30. Talvez, a primeira des-
tas equipes a chegar no Recife tenha sido a Companhia Infantil de Zarzuelas, que aportou no Teatro
de Santa Isabel em agosto de 1893, trazendo a família do ator e empresário Raphael Arcos, sua esposa
e também atriz Raphaela Fernandez, junto às crianças Raphael, Fernando e Maria. A temporada, que
deveria acontecer por trinta dias, foi encerrada antes do previsto, com a equipe partindo em viagem
de navio para o Maranhão. Logo na estreia, um cronista do Jornal do Recife (8 ago. 1893, p. 3) atestou:

162
“Não é o que se póde chamar uma bôa companhia que provoque enthusiamo á platéa, porém também
não quer dizer que não seja digna de applausos”. As crianças, claro, foram muito mais valorizadas
artisticamente do que os adultos em cena.

Bem melhor recebida foi a Grande Companhia Infantil do Rio de Janeiro, que causou verdadeiro fu-
ror na plateia masculina ao chegar à capital pernambucana em maio de 1899, isto porque as jovens do
elenco foram recebidas como verdadeiras divas e, mesmo implicitamente, esbanjavam certo apelo se-
xual. Tanto que suas fotografias eram expostas no teatro, em livrarias, e comercializadas até em cafés
da cidade. A temporada aconteceu no Teatro de Santa Isabel com um repertório eclético de revistas,
operetas, zarzuelas, vaudevilles, comédias e cançonetas, com destaque para a opereta Os Sinos de Cor-
neville, a revista madrilena A Gran-Via, a zarzuela espanhola em um ato O Dominó (La Mascarita), e
a peça sacra Milagres de S. Benedito, de Souza Pinto.

No elenco de moças e rapazes, Elvira Guedes, Consuelo Uhles, Deocleciano Costa e Franklin de
Almeida, entre outros, sob regência do maestro Sotter dos Santos e direção artística do ator Phebo.
Ali começou o partidarismo entre estudantes e comerciantes, divididos entre “elviristas” e “consue-
listas”, louvando cada qual sua artista mirim preferida. Chegaram mesmo a confrontos físicos na
época. As sessões aconteciam quase que diariamente, sempre às 20h30. Na despedida, a 1 de junho
de 1899, finalmente uma matinée foi programada, especialmente oferecida à infância pernambucana,
com apresentação do 2º ato do vaudeville Niniche, com música de M. Boullard, seguido da zarzuela
O Dominó. Os anúncios de jornal chamavam a atenção que o elenco seria constituído “por todos os
petizes da Companhia!”.

A vitoriosa equipe voltou ao Recife a 2 de junho de 1900, depois de sucesso pelo Espírito Santo,
Amazonas, Maranhão e Paraíba, ficando em cartaz até 31 de julho daquele ano, tendo como novo
destaque Luiz de França, um ator alagoano já radicado em Pernambuco. Duas obras musicadas em
repetição, Marcha de Cadiz e Tim-Tim Por Tim-Tim, foram os maiores sucessos desta vez. No meio
da temporada, Consuelo Uhles abandonou a equipe e realizou um espetáculo em benefício próprio a
29 de julho de 1900. Após tanto alvoroço dos espectadores, a Grande Companhia Infantil do Rio de
Janeiro acabou dissolvida no Recife, mesmo após duas brilhantes temporadas, ambas com disputas
entre duas alas masculinas no intuito de consagrar suas artistas prediletas.

Em paralelo às visitas das companhias estrangeiras ou que chegavam principalmente do Rio de Janei-
ro, todas com foco no público adulto, a produção local recifense foi crescendo nestes primeiros anos
do século XX, com novas sociedades dramáticas aparecendo, praticamente todas com “teatrinhos”
próprios. Entre estas, a Arcádia Dramática Beneficente Pinheiro Chagas, em atividade entre 1906 e
1908, no Pátio do Carmo; o Grêmio Dramático Espinheirense, atuante entre os anos de 1907 a 1915,
no bairro do Espinheiro; e a Diversão Dramática Familiar Júlio Dantas, fundada em 1908 e com re-
gistro de atividades até 1911. A programação, sempre que possível, mensal, apresentava um drama em
três atos, seguido de uma comédia em um ato.

A 25 de julho de 1909, por exemplo, a Polínia Dramática Areiense realizou mais um espetáculo social
para os seus associados no “teatrinho” que possuía no bairro de Areias, com o drama em dois atos
Como Deus Castiga. Num dos intervalos, houve sorteio de uma boneca entre as crianças presentes.

163
Em seguida, foi apresentada a comédia O Criado Distraído (raramente os autores eram divulgados).
Paralelo à programação local, as grandes companhias que chegavam de fora também passaram a
agendar sessões especiais aos pequeninos, ainda que o foco fosse nos familiares que pagavam ingres-
so. Em abril de 1910, em turnê com a Grande Companhia Dramática do Theatro da Exposição Nacio-
nal de 1908, a atriz Lucília Peres programou uma grandiosa matinée dominical no Teatro de Santa Isa-
bel com a peça Rei dos Ladrões, dando entrada grátis às crianças e ainda distribuindo-lhes bombons.

Com a aparição do cinema no Recife, no início do século XX, aos poucos foram sendo instituídas
as matinées infantis como opção de diversão. O teatro não escolheu esta segmentação, e meninas e
meninos continuavam frequentando os mesmos espetáculos vistos por adultos, mas quase sempre
pagando ingresso com preço menor ou tendo entrada franca, desde que acompanhados de alguém
da família (certamente para atrair aqueles familiares que não podiam estar no teatro à noite ou não
tinham com quem deixar suas crianças). Desde o Cinema-Pathé, o primeiro a funcionar na capital
pernambucana, inaugurado no dia 27 de julho de 1909, na antiga rua Barão da Victoria, hoje rua
Nova, as sessões começavam ao meio-dia e seguiam continuamente até as 22 horas. O mesmo acon-
teceu com o Cinema Royal, lançado em 6 de novembro de 1909, na mesma rua Barão da Victoria,
com matinée de meio-dia às 16 horas, já em seu segundo dia de funcionamento. Na mesma data, no
Teatro de Santa Isabel, a visitante Companhia Miranda oferecia uma matinée de A Viúva Alegre, ópera
cômica de Franz Lehár, às 14 horas, com distribuição de bombons às crianças.

Já no Cinema Popular, surgido em 4 de setembro de 1910, no bairro de São José, as sessões iniciavam-
-se mais cedo ainda, às 10 horas. Os filmes curtos programados misturavam dramas e comédias e
espécies de documentários do cotidiano mundial. Ainda no decênio 1910, surgiram novas casas de
diversões no Recife. O Teatro-Cinema Helvética foi inaugurado em 26 de março de 1910, na rua dr.
Rosa e Silva, hoje rua da Imperatriz, mas já nos anos 1920 só apresentava funções cinematográficas e
números de variedades (o Pequeno Edson, integrante da Companhia Infantil de Variedades, chegou
a ser aclamado “o ídolo da petizada” durante temporada em 1926). Ainda em 6 de outubro de 1911,
surgiu o Polytheama Pernambucano (mais à frente, Cine-Teatro Polytheama), funcionando na rua
Barão de São Borja, também no mesmo estilo.

No ano de 1915, o Recife viu ser erguido o Teatro do Parque, inaugurado na rua Visconde de Cama-
ragibe, hoje rua do Hospício, no dia 24 de agosto (em janeiro de 1920, o espaço recebeu temporada
vitoriosa da Companhia Lyrica Juvenil, com várias óperas); o Cine Ideal, funcionando na rua Vidal
de Negreiros, no Bairro de São José; e o Teatro Moderno, lançado em 15 de maio, em frente à Praça
Joaquim Nabuco, cineteatro que costumava marcar apresentações cênicas antes de cada exibição ci-
nematográfica. Lá, no início dos anos 1920, os humoristas João Bozan e Tampinha fizeram sucesso
nas matinées infantis programadas aos domingos pela manhã, com farta distribuição de bombons à
“petizada”, como se falava na época, em meio a concursos infantis.

Como o tímido segmento teatral no Recife continuava a ser dominado pela presença de companhias
nacionais ou internacionais em itinerância, frente às poucas iniciativas de artistas locais, algumas
daquelas continuaram a programar sessões especiais dedicadas à meninada, mas com os mesmos
espetáculos apresentados à plateia adulta, já que ainda não havia o conceito de censura e distinção de
faixa etária para público específico. No entanto, provavelmente, as partes de maior malícia eram ame-

164
nizadas. Este foi o caso, por exemplo, das companhias de revistas que chegaram ao Recife no ano de
1927 para o Teatro do Parque, oportunizando ao público mirim assistir o mesmo repertório oferecido
à noite aos adultos, com sessões agendadas nas “Matinées Infantis” dos domingos, às 14h30.

A Companhia Negra de Revistas, que tinha como um de seus astros aquele que futuramente seria co-
nhecido como o Grande Otelo, na época um menino com “aquela pôse toda de gente grande”, segun-
do o jornal A Provincia (13 abr. 1927, p. 3), ofereceu duas matinées ao mundo infantil pernambucano
durante sua temporada no Teatro do Parque, em abril de 1927, com a revista Café Torrado e cobrança
de ingressos. Já a Companhia Nacional de Revistas do Rio de Janeiro, no mesmo Teatro do Parque,
em junho de 1927, programou para a meninada as revistas À la Garçonne e Meu Bem, Não Chora...,
ambas com farta distribuição de bombons oferecidos pela fábrica Renda, Priori & Irmão. Vale lem-
brar que era mais comum às crianças ter como opção cultural a presença de ventríloquos, mágicos e
animais amestrados nos teatros.

Somente no ano de 1930 uma equipe local, o Grupo Cine-Teatro, lançada pelo Teatro Moderno,
passou a agendar uma matinée específica para a criançada, curiosamente com uma peça que prova-
velmente não tinha nenhum interesse aos pequeninos espectadores, O Amor Faz Coisas..., de Samuel
Campelo. Tanto que a iniciativa não teve reprise. No dia 17 de maio de 1931 aconteceu outra matinée
infantil com texto aparentemente mais atrativo, A Máscara Verde, de autor e diretor não revelado,
como lançamento do grupo Arts Nouveaux. O Diario de Pernambuco (5 maio 1931, p. 3) ressaltou
que a obra era um “magnifico vaudeville que por suas constantes situações ultra-comicas bem merece
a expressão de verdadeira fabrica de gargalhadas”. A programação foi encerrada com um ato variado
de canto. Num dos intervalos, foram sorteados brindes às crianças.

Ainda no mês de junho de 1931 surgiu a notícia, no Diario de Pernambuco (12 jun. 1931, p. 3), que o
carioca José Carlos Queirolo, popularmente conhecido por Chicharrão, iria exibir no Cine Teatro da
Paz, no bairro de Afogados, por três matinées, às 15 horas, a começar daquela data, o seu interessante
conjunto de animais: “[...] a cobra equilibrista, o macaco que dansa (sic) maxixe com sua companhei-
ra Dondoca, o burro diplomata, a macaca que trabalha na bola e se equilibra no arame e os cachorros
acrobatas”. Por sua vez, enquanto o Teatro Moderno recebia a instalação de aparelhos para renovação
do ar na sua sala de espetáculos, continuavam naquele centro de diversões, aos domingos, as “Ma-
tinées Infantis” com filme, seguido do ventríloquo Argo e sua trupe de bonecos, além do sorteio de
brindes.

Com o aparecimento do Grupo Gente Nossa, em agosto de 1931, liderado pelo diretor do Teatro
de Santa Isabel, o teatrólogo Samuel Campelo, no domingo 15 de novembro de 1931, às 14h30, foi
programada a primeira vesperal infantil da equipe, com o sainete Mamãe Quer Casar. Crianças
acompanhadas não pagavam ingresso. A peça conseguiu agradar a “petizada”, mas ainda não era
uma dramaturgia específica para meninos e meninas, e, sim, voltada para toda a família ou mesmo
só interessando aos adultos. Uma nova vesperal foi realizada no domingo 22, com distribuição de
bombons e apresentação das farsas Atrapalhações de Um Noivo e Engano da Peste, seguidas de ane-
dotas caipiras por Barreto Júnior e Renato Marques e números de canto com Lélia Verbena, Zuzu
Rocha e Armando Lívio. A iniciativa não deu certo e ganhou explicação no Diario de Pernambuco
(28 nov. 1931, p. 4):

165
Sendo dificil conseguir peças que intéressem á criançada e ao mesmo tempo, as pessôas adultas, o
Grupo Gente Nossa resolveu acabar com os vesperais infantis. Era desejo do Grupo realizar tambem
tardes femininas, o que, entretanto, agora não é possivel fazer. Assim, pois, resolveu dar apenas ves-
perais aos domingos, sem a denominação de infantis, mas não improprios para crianças em que estas
tenham entradas grátis bem como fazer abate nos preços de entradas para senhoras e senhorinhas.

Mesmo assim, não foram poucas as vezes que o Grupo Gente Nossa iria oferecer peças pretensamente
para todas as idades em horários específicos à meninada, exatamente a partir de 1932, ano em que,
além de obras declamadas, o coletivo passou a programar operetas e burletas. No mês de março, con-
tinuando sua intensa programação no Teatro de Santa Isabel, o Grupo Gente Nossa ofereceu a peça
A Cabocla Bonita, de Marques Porto e Ari Pavão, com música de Sá Pereira, evento que deu entrada
franca às crianças acompanhadas e que contou com um ato variado, em sequência, com a participação
do repentista Minona Carneiro e do tenor Vicente Cunha, entre outras atrações.

A partir daí, foram muitas as montagens que tentaram reunir público de todas as idades na plateia,
com destaque a textos como O Interventor, de Paulo Magalhães, e A Rosa Vermelha, opereta de Sa-
muel Campelo (libreto) e Valdemar de Oliveira (partitura musical), tendo a atriz/cantora Maria Amo-
rim como protagonista. Bem recebida por público e crítica nas sessões noturnas anteriores, esta peça
fez uma vesperal especial para crianças (com estas mais uma vez entrando grátis se acompanhadas
da família), terminando com um ato variado em que Minona Carneiro cantou emboladas. Em agosto
de 1932, nova tentativa com O Homem da América, comédia de Francisco Dornellas, desta vez com
abatimento no ingresso para estudantes e crianças.

Importante lembrar que, no início daquele ano, foi a pequena “black-girl” Little Esther, dançarina
negra com doze anos de idade e já afamada em todo o mundo, quem surgiu como a primeira “es-
trela” a aportar no Teatro de Santa Isabel, acompanhada de sua Breakaway Jazz e do artista cômico
brasileiro Valdomiro Lôbo, este em números de canto, declamação e contos humorísticos. A menina
norte-americana, uma “endiabrada negrinha”, “rival de Josephine Baker”, como a chamavam na im-
prensa, já era conhecida do público recifense por ter sido um dos destaques do filme Follies 1929, da
Fox-Film. Ela conseguiu fazer várias matinées e soirées (sessões à tarde e à noite) no Teatro de Santa
Isabel, sempre com casa cheia, atraindo espectadores de todas as idades.

O fato é que, até o lançamento das matinais dominicais com dramaturgia específica para as crianças e
elenco de meninos e meninas como intérpretes, e não mais atores adultos, algo que só aconteceria em
1939, o Grupo Gente Nossa tentou, por diversas vezes, chamar a atenção de garotos e garotas do Recife,
garantindo atrativos aos seus familiares na plateia. Chuva de Filhos (Meu Bebê), do francês Maurice
Hennequin, “peça para rir do principio ao fim”, segundo o Diario de Pernambuco (4 dez. 1932, p. 8), foi
outra obra naquele ano de 1932 que também ganhou sessão especial à petizada, em vesperal. Numa fase
vitoriosa, o Grupo Gente Nossa ainda fez o remonte de A Honra da Tia, comédia de Samuel Campelo
lançada em 1931, agora com crianças entrando gratuitamente na plateia, além da distribuição de brindes
e bombons. Números de variedades também foram vistos nos intervalos de cada ato.

A estreia do mês de dezembro de 1932 foi O Cazuza Não Tem Pai!, sainete cômico de Djalma Bitten-
court, voltado a todas as idades. Além de números de canto e declamação nos intervalos, mais brindes

166
foram distribuídos às crianças. O momento era tão promissor que O Cazuza Não Tem Pai! voltou à
cena em janeiro de 1933. A seguir, foi a vez da opereta O Gato Escondido, libreto de João Valença, com
música de Raul Valença, ganhar também sua vesperal, assim como aconteceu com a comédia O Ami-
go Tobias, original espanhol da dupla André del Prada e González del Toro, com tradução de Brandão
Sobrinho, aqui acompanhada de números de canto e a Jazz Gente Nossa, tocando nos intervalos.

O lançamento de Bombonzinho, de Viriato Correia, no Teatro de Santa Isabel, se deu a 10 de março de


1933, às 20h45, com vesperal em sequência, no dia 12, às 15 horas, em mais uma récita com entrada
franca às crianças acompanhadas. Encerrando a série de espetáculos daquele mês e com o objetivo
de estimular a produção dramatúrgica local, subiu à cena no dia 30 a opereta de costumes regionais
Coração de Violeiro, dos Irmãos Valença, “trabalho contendo uma partitura lindíssima e um libreto
capaz de fazer rir ao mais sisudo espectador”, assegurou o Diario de Pernambuco (29 mar. 1933, p.
5). Meninas e meninos pagavam ingresso (a sessão começou às 21 horas, numa quinta-feira). Devido
ao êxito da estreia, a peça retornou em vesperal de despedida no dia 1 de abril de 1933, um sábado à
tarde, agora com as crianças acompanhadas entrando gratuitamente.

Com a chegada do ano de 1934, foi a vez de aportar no Recife a Companhia de Grandes Atrações
Vilar-Azevedo, para temporada de seis dias, no Teatro Moderno, com apenas uma matinée infantil.
Procedente do Teatro Cassino de Buenos Aires, a equipe era liderada por Júlio Vilar, ilusionista já
conhecido do público recifense, acompanhado dos acrobatas e malabaristas Irmãos Azevedo, dos
gladiadores Os Almeidas, e dos cães amestrados Fly and Jambo, que faziam operações aritméticas.
Em dezembro de 1935, nova oportunidade aconteceu às crianças, com a inauguração da Festa da
Mocidade no Parque 13 de Maio, por estudantes de escolas superiores da cidade, em prol da Casa do
Estudante de Pernambuco. O evento atraía multidões a cada final e início de ano, oferecendo parque
de diversões, exibições de mamulengos, circenses e shows musicais ou cômicos para todas as idades,
além de concursos infantis.

Já em 1937 estreou, no Teatro de Santa Isabel, a revista cívico-escolar Coisas do Meu Brasil, da pro-
fessora Maria Elisa Viegas, com alunos do Grupo Escolar Maciel Pinheiro, grandiosa montagem que
contou com o maestro Nelson Ferreira regendo a Orquestra da Rádio Clube de Pernambuco. Foram
cinco sessões no total, mas tratava-se de uma obra com números variados, de caráter didático e cívico,
e não com dramaturgia pensada para o imaginário da infância. Foi somente com a estreia de Branca
de Neve e os 7 Anões, em 1939, adaptação do tradicional conto por Coelho de Almeida, sob direção
de Augusto Almeida, com elenco do Grêmio Cênico Espinheirense, que o Recife pôde começar a ver
uma sequência de peças feitas por e para crianças, em projeto que finalmente abriu espaço para a di-
versão teatral da criançada, agora não mais pegando carona em obras voltadas aos adultos.

E a partir desta 1ª Grande Matinal Infantil do Grupo Gente Nossa, com artistas mirins dos quatro aos
doze anos em cena, uma verdadeira reviravolta aconteceu no teatro recifense, finalmente com atenção
aos pequeninos intérpretes e espectadores, agora reconhecidos como público específico e com arte
própria para o seu mundo. Se tanta história aqui pontuada nos chega fragmentada, é porque nenhum
repertório de lembranças é contínuo. Algumas recordações submergem para sempre em nossa me-
mória; outras, emergem à superfície. Ainda que minimamente, este artigo tenta fazer isto: trazê-las à
tona de alguma forma.

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REFERÊNCIAS

A VESPERAL no “Santa Isabel” – O espetaculo na noite no São Miguel. Diario de Pernambuco, Vida Teatral/O
Grupo Gente Nossa e os seus espetaculos de hoje, Recife, p. 8, 4 dez. 1932.
AMANHÃ – Vesperal do “Grupo Gente Nossa”. Diario de Pernambuco, Cenas & Telas, Recife, p. 4, 28 nov. 1931.
CACCIAGLIA, Mario. Pequena história do teatro no Brasil (Quatro Séculos de Teatro no Brasil). São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1986.
CINE Theatro da Paz. Diario de Pernambuco, Scenas & Telas, Recife, p. 2, 12 jun. 1931.
COMPANHIA Infantil. Jornal do Recife, Theatros e Salões, Recife, p. 3, 8 ago. 1893.
COMPANHIA Negra de Revistas. A Provincia, Theatros e Cinemas/Parque, Recife, p. 3, 13 abr. 1927.
GRUPO Gente Nossa. Diario de Pernambuco, Cenas & Telas, Recife, p. 5, 29 mar. 1933.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Revista Projeto História. São Paulo: PUC/SP, 1998.
OLIVEIRA, Valdemar de. Origem do teatro, no Brasil. Recife: obra inédita, s. d.
THEATRO Santa Izabel. Diario de Pernambuco, Scenas & Telas, Recife, p. 3, 5 maio 1931.
THEATROS e Diversões. Diario de Pernambuco, Recife, p. 2, 26 out. 1902.

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Diálogo com Noemia Varela
e suas concepções sobre o ensino
de arte na pós-modernidade
Sandra Maria Nogueira Cruz/ Edilva Barbosa da Silva Lima/
Zozilena de Fátima Fróz Costa

INTRODUÇÃO

Nas páginas deste texto, insere-se as reflexões da arte educadora pernambucana Noemia Varela, que
se mostrou muito sensível e até emocionada ao desvelar os pensamentos sobre a sua atuação na arte/
educação do Brasil, apontando o seu nascedouro por meio da Escolinha de Arte do Brasil, criada em
1948. É inegável a contribuição do Movimento Escolinha de Arte na formação do arte/educador no
Brasil, quando não existiam instituições capazes de formar os profissionais nesta área. Nesse percur-
so, não só se mostra com profunda sinceridade, mas procura render homenagens à contribuição dos
profissionais Ana Mae Barbosa e Fernando Azevedo.

O diálogo com esta arte/educadora nos deixou claro de que seus pensamentos são tão plenos de ideias
inovadoras e significantes que não se pode deixar de identificar que a cada momento da história da
arte/educação no Brasil, até nossos dias, são utilizadas metodologias inovadoras capazes de identificar
a recorrência dos pensamentos de Noemia Varela. Diante de tais reflexões, articulamos a seguinte
problemática: Qual a relevância dos pensamentos da arte educadora Noemia Varela para o ensino de
arte na pós-modernidade?

1. AS TRILHAS PERCORRIDAS POR NOEMIA VARELA

Noemia de Araujo Varela encontrou terreno fértil no Movimento Escolinha de Arte (MEA), iniciado
em 1948, com a criação da primeira Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro. Esse momento é
significativo para historia do ensino de arte no Brasil, e, nele, tem-se a pretensão de analisar a criação
das escolinhas de arte, onde surge um dos mais respeitosos nomes da arte/educação brasileira, Noe-
mia de Araujo Varela, cuja história de vida confunde-se com a própria história da arte/educação no
Brasil, e, por esta razão, faz-se necessário conhecer um pouco da vida desta importante personagem.
Dona Noemia nasceu na cidade de Macau, no estado do Rio Grande do Norte, no dia 01 de janeiro

169
de 1917. Concluiu o curso de bacharel em Pedagogia em 1949. Contudo, desde 1939 trabalhava na
educação, dedicando-se à educação especial. Foi diretora, por alguns anos, da Escola de Educação Es-
pecial Ulisses Pernambucano; professora do Instituto Recife; professora de didática da Escola de Belas
Artes do Recife e professora da disciplina Fundamentos da Arte na Educação no Conservatório Bra-
sileiro de Música, no Rio de Janeiro, onde morou de 1959 a 1982. Nesse mesmo período, trabalhou na
Escolinha de Arte do Brasil como diretora técnica e depois como diretora geral. Dentre as suas maio-
res realizações está a criação da Escolinha de Arte do Recife, da qual será explicitada mais a frente.

Como não é possível dissociar Noemia Varela do Movimento Escolinha de Arte, abre-se aqui um
parêntese para falar sobre essa história da arte educação, tendo como ponto de partida a fundação
da primeira Escolinha de Arte do Brasil, criada pelo poeta e artista plástico pernambucano Augusto
Rodrigues, pela gaúcha Lúcia Alencastro Valentim, professora de arte, e pela artista plástica norte-
-americana Margareth Spence, em 08 de julho de 194857, no hall de entrada da Biblioteca Castro
Alves, na Rua Pedro Lessa, Rio de Janeiro.

Augusto Rodrigues, em depoimento para o livro Escolinha de Arte do Brasil, afirma “A Escolinha não
nasceu planejada no papel, não teve fundação festiva... Nasceu como uma pequena experiência viva,
fruto da inquietação de um grupo de artistas e educadores...” (1980, p. 33).

A Escolinha de Arte do Brasil sofreu grande influencia do Movimento Escola Nova58, que surgiu a
partir de 1930 e teve como principais teóricos John Dewey e Viktor Lowenfeld, dos Estados Unidos,
e o inglês Herbert Read; essa tendência é disseminado no Brasil nos anos 50 e 60 com as escolas experi-
mentais (FUSARI; FERRAZ, 1999, p. 31). O princípio da Escola Nova está baseado na livre expressão,
no respeito à liberdade de criação e no respeito à criança como ser capaz, espontâneo e dotado de
sentimentos, imaginação e criatividade. Foi com base nesses princípios e influenciado, em especial,
por Herbert Read, que surgiu um dos mais significativos movimentos de Educação através da Arte no
Brasil: o Movimento Escolinhas de Arte. Esse movimento estendeu-se por todo o território nacional,
sendo que a primeira Escolinha fundada fora do Rio de Janeiro foi a de Porto Alegre, em 1950. No to-
tal, foram 140 Escolinhas no Brasil, uma no Paraguai, duas na Argentina e uma em Lisboa, Portugal.
Destas escolas, algumas abriram e fecharam logo em seguida.

Voltando a Noemia Varela, foco desta pesquisa, em 1949, a mesma já desenvolvia um trabalho no-
tório na área de arte na educação com um ateliê de pintura na Escola de Educação Especial Ulisses
Pernambucano, da qual foi diretora. Nesse mesmo período, foi ao Rio de Janeiro participar de um
encontro sobre Educação Especial organizado pela Sociedade Pestalozzi, da qual foi membro. Nesse
momento, tem, também, seu primeiro contato com a Escolinha de Arte do Brasil e com Augusto
Rodrigues, seu principal articulador. O contato com a Escolinha de Arte do Brasil, que na época
completava um ano de criação, influenciou-a de tal maneira que nasce, em 1953, a Escolinha de Arte
do Recife. Como assim relata a própria Noemia Varela (1980, p.75)

57. A data
de fundação é apenas uma convenção, não se sabe ao certo, se o mês é maio ou junho, apenas o ano
de 1948 está correto.
58. Tem suas origens na Europa e Estados Unidos no século XIX.

170
[...] Em 1953, organizamos um curso para 43 professores do Estado, situando aspectos psicológicos,
pedagógicos, princípios de formação de um educador para a educação especial. Convidamos Augus-
to Rodrigues para dar a parte de arte neste curso. E também toda a equipe de médicos, psiquiatras,
antropólogos, psicólogos de Recife – que era um grupo muito amigo.... Levamos também para esse
curso de 53, Olívia Pereira, que hoje é assessora do CENESP, que trabalhava na Pestalozzi, e Leopol-
dina Neto, que trabalhava no Santa Lúcia. Foi muito importante o contato com esse grupo porque foi
nessa escola, a 6 de março de 1953, que se fundou a Escolinha de Arte do Recife, em sessão presidida
por Anita Paes Barreto, com apoio da Secretaria de Educação e Cultura, e de todo o grupo da esco-
la (no sentido universitário) de Ulisses Pernambucano, além de artistas como Aluízio Magalhães,
Francisco Brennand, Lula Cardoso Aires. Augusto se entusiasmou com aquela pequena e simples
experiência, com professores que estavam interessados no campo da educação especial e tinham a
compreensão da função da arte no processo educativo. E daí saiu a Escolinha de Arte. Ela foi para a
Rua do Cupim, 124 – onde está até hoje –, onde Hermilo Borba, teatrólogo, amigo do grupo e tam-
bém fundador, encontrou um chalezinho antigo. Por coincidência, nesse chalé Augusto Rodrigues
aprendera a ler... A Escolinha foi fundada assim.

Esta arte/ educadora influenciou a prática do ensino de arte no Brasil em quase meio século, final dos
anos 40 aos anos 80, defendendo uma prática modernista baseada na livre expressão, onde a idéia
era preservar a criança do contato com obras que pudessem influenciá-las. Noemia Varela mantém,
até hoje, com o apoio de um grupo de amigos, pessoas merecedoras de admiração, a Escolinha de
Arte do Recife, única sobrevivente do significante movimento da arte/educação brasileira. Os fazeres
e pensares (VARELA, 2009) de Noemia Varela acompanharam o desenvolvimento das tendências
educacionais, do modernismo para o pós-modernismo, mudanças observadas em seu trabalho junto
à Escolinha de Recife.

Trabalhou vinte anos como professora e coordenadora do Curso Intensivo de Arte na Educação, or-
ganizado pela Escolinha de Arte do Rio de Janeiro, e, apesar de ser estruturada fora do sistema oficial
de ensino, era a única instituição a oferecer formação ao profissional ligado à arte. Com a aprovação
da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 5692/71, que incluiu, no currículo escolar,
Educação Artística como atividade (não como disciplina) – surgiu, então, um grave problema: a for-
mação de professores para atuarem na área. Assim, é estruturado, nos moldes da Escola Nova, o curso
de formação para professores de arte, o único a existir até 1973, quando o governo federal criou, nas
Universidades, o curso de licenciatura curta e polivalente em arte.

O curso oferecido pela Escolinha foi muito importante para a formação de gerações de arte/educado-
res, pois tinha como proposta uma educação através da arte, cuja ênfase estava na livre expressão do
aluno, sendo tratado como “sujeito de seu próprio saber” (AZEVEDO, 2000, p. 36).

Na concepção de Noemia Varela (2001 apud FUSARI; FERRAZ, 1999, p.20), o propósito da arte/
educação reside nos seguintes termos:

O espaço da arte-educação é essencial à educação numa dimensão muito mais ampla, em todos os
seus níveis e formas de ensino. Não é um campo de atividade, conteúdos e pesquisas de pouco signi-
ficado. Muito menos está voltado apenas para as atividades artísticas. É território que pede presença
de muitos, tem sentido profundo, desempenha papel integrador plural e interdisciplinar no processo

171
formal e não formal da educação. Sob esse ponto de vista, o arte/educador poderia exercer um papel
de agente transformador na escola e na sociedade.

Com sua experiência, Noemia Varela influenciou tendências por dois séculos de história da arte/edu-
cação brasileira, e suas contribuições foram fundamentais para as novas gerações de arte/educadores.
Ela ainda tem muito a oferecer, pois seu interesse pela pesquisa manteve-a sempre ativa e é nesse
momento que se inclui o pensamento da mesma para arte/educação na pós-modernidade.

Em diálogo com esta arte/educadora, observou-se que seu pensamento a respeito do ensino de
arte acompanhou as reflexões defendidas pelas tendências da educação pós-moderna. Quando
fala em “renovar, em ampliar conhecimentos, em fazer nova leitura, nova interpretação, nova
colocação no campo de estudo da arte e da educação” (VARELA, 2009). Entre linhas, percebe-se
claramente que suas ideias, que originaram a Escolinha de Arte do Recife, sofreram mudanças
através dos tempos.

Ao ser questionada sobre os reflexos do Movimento Escolinhas de Arte para pós-modernidade, a


arte/educadora, com empolgação, responde “Sim, vejo sim, Ana Mae saiu da escolinha, ele (Fernando
Azevedo) saiu da escolinha, agora o que eu acho formidável é que, embora tendo saído da escolinha,
eles não imitam a escolinha, eles reinventam uma escolinha...” (VARELA, 2009). E como seria essa
Escolinha reinventada por Noemia Varela? Em que responde:

Eu procuraria sintonizar... Sintonizar as necessidades fundamentais daqueles que viveram perto des-
sa escolinha e além dela, transmitir, trocar experiências, renovar, não ficar na mesmice, por que o
mau está em se fazer sempre a mesma coisa copiando, não! Não deve haver cópias, deve haver...
Histórias novas, ideias novas, poesias novas, tudo que invente numa dimensão que demonstre que o
homem tem uma cabeça criadora e que essa capacidade criativa do ser humano deve ser cultivada.
Eu acho que disse tudinho? Deve ser cultivada, não é para imitar, não vai fazer o que Ana Mae fez
nem o que eu fiz nem o que ele (Fernando Azevedo) fez, vai fazer algo que seja essencial à vida onde
estiver esse novo grupo trabalhante, esse novo grupo trabalhador, não é para imitar não! É para ser
diferente mesmo (VARELA, 2009).

Agora, tomando como referência o que diz Ana Mae sobre o ensino de arte na contemporaneidade
em seu livro Arte/Educação Contemporânea: consonâncias internacionais

Desconstruir para reconstruir, selecionar, reelaborar, partir do conhecido e modificá-lo de acordo


com o contexto e a necessidade são processos criadores desenvolvidos pelo fazer e ver arte, decodifi-
cadores fundamentais para a sobrevivência no mundo cotidiano (BARBOSA, 2005, p. 100).

Nesse momento, observa-se a presença de opiniões similares, mestra e aluna, no discurso sobre arte/
educação pós-moderna.

Registra-se, então, a recorrência de “pensares” que serão guardados e eternizados nos baús de lem-
branças dos pesquisadores e professores de arte, que contribuirão de maneira necessária à práti-
ca atual dos arte/educadores. Noemia Varela prossegue na sua emocionante narrativa (VARELA,
2009):

172
– O que eu sonho para arte/educação é que se constituam formas, cresçam pessoas conscientes, que
a arte é fundamental à vida.... Sendo arte fundamental à vida ela não pode estar jamais afastada do
campo da educação, nesse sentido, a arte é colocada como uma iluminação, uma forma de expressar
a dimensão da capacidade criadora do homem...

– Trinta e um anos depois você ver que seu trabalho não foi.... Não foi como se diz.... Não teve asas,
ao contrário, fez um ninho no Piauí e lá deixou marcas indeléveis, bota esse nome.... Não é? Por que
não é para fazer igual. Quando se trabalha com arte no processo da educação, não é para fazer cópias
é justamente para ser mobilizada pela criatividade por tudo quanto caracteriza a experiência de in-
ventar até mentiras, não tem importância, de refazer, de recriar, de renovar o que se faz de positivo
para que a criança, o ser humano possa realmente se expressar através da arte.... Acho que disse tudo!
Vocês puxaram de mim muita coisa...

– Na arte/educação contemporânea, o meu trabalho foi eu ter uma firmeza, uma constância, uma
esperança, uma alegria, alegria em saber que realmente se busca conhecer o significado da arte
no processo da vida humana, por que não é Piauí só, nem Maranhão, nem Pernambuco, nem Rio
Grande do Sul, não é além do Brasil e nem fora do Brasil: é em qualquer momento, onde se cresça
e trabalhe criativamente e trabalhe com arte, ele descobre que arte é fundamental à vida. O que é
importante é isso!

Com essas palavras, Noemia Varela faz uma abordagem crítica sobre o ensino de arte, ao dizer que a
arte no processo de educação não aceita cópias, ela propõe uma construção criativa, reflexiva e signi-
ficativa, na qual a experiência de cada indivíduo seja valorizada.

Dentro de seu discurso pós-moderno, Noemia Varela elege Fernando Azevedo, seu companheiro de
peripécias no campo da arte/educação no Brasil (VARELA, 2009), como ela o chama, a representá-la,
autorizando-o a falar sobre os fazeres e pensares (VARELA, 2009) de Noemia Varela. Assim, nessas
cercaduras, tem-se um importante documento com palavras sinceras de Noemia Varela, ao designar
Fernando Azevedo seu porta voz. (VARELA, 2009).

– Projeta você! Ele é elemento de estudo e ao mesmo tempo diz uma verdade por que você (Fernan-
do) foi uma pessoa que teve um grande contato comigo e tem até hoje.

– Certo! É... Fernando é uma pessoa modestíssima, por que não quer ou apresentar-se ou dizer, mas
ele precisa agora dar uma contribuição diferente, ele precisa.... Você precisa se colocar naquele que
informa, que diz o que sabe e que diz o que pensa, precisa se colocar nisso.... Na medida que elas
investigam você, elas investigam a mim. Entenderam? Investigando ele, não digo o aluno, foi um
companheiro de peripécias no campo da arte/educação no Brasil, não é isso? Um companheiro. É...
Ele estava sempre pronto ele, Ana Mae.... Que eu gostaria de ter aqui, Ana Mae foi para onde?

– Gravem a voz dele, gravem o que ele diz, façam um... Como se diz.... Um conjunto de técnicas para
mostrar a importância que eu tive na formação do contato no desenvolvimento dele no campo da
arte/educação, ele fala do que pensa no campo da arte/educação, dizendo coisas ao meu respeito.

– Agora ele é uma pessoa que eu digo que faça isso, por que conheço outra pessoa qualquer, eu não
diria isso.... Entende? São pessoas que eu conheço como a palma de minha mão, então é... Fica como

173
se fosse um testemunho da verdade, de uma verdade que é contada.... Contada.... Uma verdade que é
pintada. Vocês podem levar painel, levar a parte gráfica.... Não é? É uma verdade que é difundida, não
se esqueça desse nome, por que ele nunca fechou a boca dizendo, isto é, meu sempre teve a coragem
de ser verdadeiro. Essa é uma qualidade magnífica de uma pessoa. E fazem um trabalho sui generis,
inédito, para dizer um nome brasileiro, não é, Fernando? Não fica bem assim?

– Agora, ponham ele como uma pessoa que é digna, digna na minha visão de falar a respeito de arte/
educação no Brasil. Por que não é todo mundo que sabe não, mas ele sabe.

– Isso ficou claro? Palavras de Noemia Varela.... Que o doutor Fernando, que é uma pessoa que tem
a graça e o saber dizer dados acontecimentos.... Significativos no campo da arte/educação brasileira.
Não é isso seu doutor?

Abre-se aqui um parêntese para falar sobre o reflexo que tem a arte/educadora Noemia Varela sob o
olhar de Fernando Azevedo. É pesquisador da historia da Arte/educação no Brasil, partindo do pen-
samento e da prática da mesma, os laços estabelecidos entre os dois, ele na condição de aprendiz e ela
na condição de mestra, oferece a nós arte/educadores à compreensão do trabalho desta importante
personagem da nossa história. Sobre esse laço arte/educativo, ressalta Fernando Azevedo:

[...] coloco-me como narrador, uma espécie de contador de histórias que não é mero expectador,
pois, de algum modo, estar envolvido na trama do que narra, inventa e reinventa, estabelecendo
interações com as circunstâncias e os contextos dos personagens das histórias, tentando trazer à
tona as “vozes” sociais e históricas, reescrevendo a trama, possibilitando construir sentidos históricos
(AZEVEDO, 2008, n.p.).

Da relação com Noemia Varela nasceu a postura crítica de Fernando Azevedo diante da atuação do
arte/educador pós-moderno. Nesse sentido, Fernando reflete:

O arte/educador constrói, assim, uma postura crítica que o prepara para lidar com o universo da
Arte, questionando, buscando, descobrindo e acima de tudo compreendendo-se como sujeito crítico,
ou seja, a postura de arte/educador crítico não acontece ao acaso, ela é (enfim) construída pelo estu-
do, esforço de articulação teórica e muita, muita pesquisa (AZEVEDO, 2000, n.p.)

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É visível que o ensino de arte está atravessando um período de significativas mudanças, acom-
panhando um interesse crescente por parte dos envolvidos no processo ensino/aprendizagem.
Nessa paisagem que se descortina na pós-modernidade, é perceptível que os agentes envolvidos
não só reconhecem, mas procuram entender as diferenças como algo inerente à cultura mestiça,
à brasileira e, por extensão, à latino-americana. Contudo, se esse panorama está assim compreen-
dido, deve-se à contribuição valorosa da arte educadora em questão. Seu legado se faz sentir na
recorrência dos pensamentos sensíveis acompanhados da experiência vivida por esta arte/edu-
cadora. Assim, a cada momento que os profissionais da área exercem a sua práxis educativa, são
permeadas dos pensamentos de Noemia Varela e de seus discípulos Ana Mae Barbosa, Fernando
Azevedo, dentre outros.

174
É verdade que a pós-modernidade lança desafios e a escola tem que estar preparada para enfrentá-los.
Para tal, são exigidos que os arte/educadores estejam em sintonia com esse tempo e procurem não só
aplicar novas metodologias do ensino da arte como também procurar novos caminhos com modelos
propositores e assim recriar, ou ressignificar, com novas experiências, resultando em novas possibili-
dades de educação estética, como recomenda a arte/educadora Noemia Varela.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Fernando A. Gonçalves. Histórias vivas de lutas: o encontro histórico entre Paulo Freire, Noe-
mia Varela, Ana Mae Barbosa e Francisco Brennand. In: CONGRESESO NACIONAL DA FEDERAÇÃO DOS
ARTE-EDUCADORES DO BRASIL, 18., 2008, Crato. Anais... Crato: URCA, 2008.
______. Movimento Escolinhas de Arte: Em cena memórias de Noemia Varela e Ana Mae Barbosa. 2000. Disser-
tação (Mestrado) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
BARBOSA, Ana Mae. Arte/educação contemporânea. São Paulo, Cortez, 2005.
BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: nº 9394’96. Brasília: 1996.
FERRAZ, Maria Heloisa; FUSARI, Maria F. de Rezende. Metodologia do Ensino de Arte. 2. ed. São Paulo, Cortez,
1999.
______. Arte na Educação Escolar. 2. ed. São Paulo, Cortez, 2001.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. Escolinha de Arte do Brasil. Bra-
sília: s.n., 1980.
VARELA, Noemia. Arte/educação pós-moderna. Diálogo (Sandra Nogueira, Edilva Barbosa, Zozilena Fróz),
Recife, 18 abr. 2009.

175
Corpos em construção:
Judith Butler e a construção
de personagens e confecção de bonecos
Miguel de Albuquerque Araujo

O que (ou quem) define a corporeidade de um personagem de teatro ou de cinema narrativos?


O dramaturgo ou o roteirista no texto, o diretor com sua concepção cênica ou o corpo do ator com o
seu physique du rôle?

A comédia romântica musical hollywoodiana “Hairspray – e éramos todos jovens”, de 1988, escrita
e dirigida por John Waters – coloca mais uma gota nesta vasta discussão. A trama, que se passa nos
anos 1960, tem como primeiro plano a história de Tracy Turnblad, uma menina adolescente branca,
de família de classe média baixa e acima do peso, tentando conquistar um lugar para dançar num
programa de TV, cujo público-alvo era adolescentes brancos, de classe média alta, magros. O pano de
fundo da trama envolvia as grandes mudanças sociais e políticas acontecidas nos anos 1960 nos EUA.
As discussões sobre questões sociais, étnicas e feministas eclodiam a todo o momento.

Mas as discussões políticas não ficavam restritas à trama. Para seu filme, no final dos anos 1980, John
Waters escalou, em seu elenco, Divine, uma atriz drag queen, ícone do cinema underground norte-
-americano, como Edna Turnblad, a mãe da personagem principal. Ele não escreveu um papel de
drag queen, era um papel feminino e essencialmente materno, mas pelas questões próprias da trama
e as discussões políticas em que ela (a trama) tocava, o diretor resolveu seguir por esse caminho (na
verdade, à época, ele nunca falou muito claramente sobre essa decisão). Apesar de tudo, não fez disso
um grande alarde ou propaganda para o filme. Nos anos 2000, “Hairspray” foi montado como um
musical da Broadway, obtendo muito sucesso, e em 2007, voltou aos cinemas numa refilmagem, com
John Travolta no papel de Edna Turnblad (“Hairspray – Em busca da fama”, na tradução brasileira
– dirigido por Adam Shankman). Desde o filme de 1988, o papel de Edna ficou marcado por um cho-
que imagético entre o masculino e o feminino, um papel essencialmente feminino interpretado por
um homem, sem cair em estereótipos homossexuais ou de drag queens.

“Em geral, você deve ‘se parecer fisicamente com o papel’ para interpretá-lo no teatro. Um ingrediente
essencial da história de Hairspray gira em torno de questões raciais nos anos 1960, e também sobre tipos
físicos e idades específicas.” (Lyric Theatre Company, s.n.t., tradução do autor)59. Essa citação provém

59. No idioma original: “In general, you have to physically ‘look the part’ to play a theatrical role.  A strong component of the Hairspray
story revolves around race in the 1960’s, as well as specific body types and ages.”

176
da indicação de testes para a montagem amadora do musical de “Hairspray” em 2011, da Lyric The-
atre Company, localizada em Berlington, Vermont, nos EUA. Pode-se ver reprodução de padrões
constitutivos da corporeidade cênica (o padrão conhecido como physique du rôle) e talvez uma leve
tentativa de responder à pergunta proposta anteriormente, mas sem atingir nenhum lugar de questio-
namento desse padrão. A partir daí, desde então, a “tradição” de escalar homens para o papel de Edna
se manteve. É certo dizer que a fábula se baliza no espaço-tempo de questionamentos da ordem social
e política dos anos 1960, nos EUA, mas nem os filmes de 1988 e 2007 e nem as montagens teatrais
subsequentes entraram nesse patamar não realista de construção de personagens.

Em outra parte da indicação, como de praxe em musicais, há, também, um pequeno parágrafo que
descreve os personagens. Curioso ler na descrição de Edna assim: “[...] esse papel de drag demanda
um performer masculino, forte e cômico que está pronto para pôr pra fora sua mulher interior. Edna
não é um homem fingindo ser uma mulher, ela é totalmente mulher!” (Lyric Theatre Company, s.n.t.,
tradução do autor)60.

Interessante pensar que o performer ideal de teatro ou de cinema narrativos da forma que está colocado
na indicação do papel teria dentro de si todo um potencial cênico para interpretar qualquer personagem
que lhe for oferecido, independente da sua orientação sexual, seu gênero, seu sexo, sua raça, sua classe
social na vida fora da cena. Praticamente como se ele (o performer) fosse uma página em branco, não
importando o seu potencial criador, apenas esperando que o personagem, descrito pelo dramaturgo/
roteirista ou pelo diretor, lhe seja carimbado integralmente. Um método na construção de personagens
limitador, passivo e supressor da liberdade criativa do performer, vastamente reproduzido pelas produ-
ções comerciais de sucesso e por isso mesmo transformado em fórmula de construção de personagem.

Pela descrição, já fica claro que o personagem de Edna Turnblad não é nenhuma drag queen ou homos-
sexual ou underground ou marginal, e sim uma mãe branca, heterossexual, numa família tradicional
de classe média baixa, nos anos 60, nos EUA. Todo esse contexto espaço-tempo socioeconômico deli-
mita a personagem e a atuação do performer. Numa construção de personagem cujo suporte é o pró-
prio corpo do performer, o corpo humano concreto é provocado a contrastar duas figuras construídas
como dicotômicas numa mesma imagem: um corpo-performer, masculino, num corpo-personagem,
feminino, ou vice-versa. Ou até colocar em cena figuras andróginas, como o diretor Mel Gibson fez,
em seu filme “A Paixão de Cristo”, de 2004, com a imagem do personagem Satanás, interpretado por
Rosalinda Celentano, uma atriz italiana. Podemos entender que nesse tipo de relação de construção
de personagem pressupõe-se a figura do performer “neutro” em relação com o personagem drama-
turgicamente definido, porém com uma distância imaginária separando os dois “corpos”. A questão
da interpretação do personagem se restringiria ao âmbito da ação efetiva do personagem em cena do
que numa perspectiva da construção do mesmo.

No sentido mais amplo do termo, interpretar significa dar vida. Eu definiria interpretação em arte
como dar vida com autoria. (...) O voo da criação artística deve assegurar-se de completa liberdade
e ousadia, mas necessita também das balizas da dramaturgia, do perfil do personagem da encenação

60. No idioma original: “(...) this drag role requires a strong comic male performer who is ready for his inner woman to take the spot-
light. Edna is not a man pretending to be a woman, she is all woman!”

177
e da especificidade da linguagem. O impulso da criação artística voa – e deve voar alto – mas, em
seguida deve planar e se ajustar no contexto da obra onde está inserida. (BRAGA, 2004, p. 8).

Profissional de Artes Cênicas, especialista em políticas públicas na área cultural e especialista em


Gestão Pública no Centro de Treinamento do Pessoal do MEC, ator e diretor teatral, Humberto Braga
expõe nesse depoimento, durante a edição de 2004 do Festival Nacional de Teatro Infantil de Blume-
nau, o sentido da interpretação do personagem como a união do poder artístico criativo do performer
com a base dramatúrgica em que o personagem está inserido. É interessante pensar que exista um
sujeito preexistente (o performer) em relação com o personagem, (pré) existente também, ainda não
corporificado, mas é no corpo concreto desse sujeito-performer onde os dois se encontram.

Outra questão também suscitada pela descrição de personagens de “Hairspray” refere-se ao que de-
veria ser totalmente mulher. Nem John Travolta nem Divine seriam totalmente mulheres em suas
construções e interpretações do papel de Edna? Judith Butler, filósofa norte-americana, em seu livro
“Problemas de gênero” (1990), cita Simone de Beauvoir para desenvolver a sua teoria de que “a mulher
em si é um termo em processo, um devir, um construir do qual não se pode dizer legitimamente que
tenha origem ou fim” (BUTLER apud SALIH, 2012, p. 66). Para a autora, não somente a mulher seria
um termo em processo, mas sim toda definição de identidade de gênero e seus binarismos; macho/
fêmea, homem/mulher, masculino/feminino, gay/hétero. Ela afirma que gênero é uma construção
constante que envolve uma repetição de atos e padrões culturais até que esses padrões se tornem na-
turais para o sujeito. “(...) o sujeito de Butler é um ator que simplesmente se põe de pé e ‘encena’ sua
identidade num palco metafórico de sua própria escolha.” (SALIH, 2012, p. 65).

Sara Salih utiliza a metáfora da relação ator-personagem apenas para elucidar a ideia, mas Butler não
concorda com a ideia de haver um sujeito preexistente, fora da linguagem e, assim sendo, ausente
da identidade de gênero. Para ela, o sujeito não é um performer atuando para se generificar, e sim
o sujeito já é generificado, seguindo as normas culturais existentes de gênero. “[...] o gênero não é
substantivo, mas demonstra ser performativo, quer dizer, constituinte da identidade que pretende ser.
Nesse sentido, o gênero é sempre um fazer, embora não um fazer por um sujeito que poderia dizer
que preexiste ao feito.” (BUTLER apud SALIH, 2012, p. 72).

Mas como isso se aplicaria no exemplo de “Hairspray”? Nesse caso, voltaríamos à ideia de que, sim, há
um sujeito-performer preexistente, generificado, ou seja, não neutro, e que este, através de repetições
de atos e padrões de gênero criados e descritos para o personagem, o próprio se “incorporaria” ao
sujeito-performer. Na prática, é como se os intérpretes de Edna, para “ser” esse personagem, tivessem
que repetir, exaustivamente, o que a descrição de personalidade e gênero escrita pelo dramaturgo in-
dica, até que, “naturalmente”, eles se tornariam ela. Uma constante construção de corpo e gênero para
interpretar e manter o personagem crível e vivo.

Essa relação viva entre performer e personagem pode ser encontrada, também, no teatro de bonecos,
na relação entre o ator-manipulador e o boneco. Este último como corpo inerte, preexistente como
corpo concreto também, fica esperando a ação do ator-manipulador para ganhar vida, ou, nas pala-
vras de Humberto Braga, interpretar (2004). Valmor Beltrame, professor doutor no Curso de Artes
Cênicas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, reflete sobre

178
a relação entre o corpo do boneco, que é inerte e separado do corpo do ator-manipulador, e o ator-
-manipulador. “Ator/animador sintetiza o trabalho do artista que projeta a realidade da personagem
sobre um corpo que não é o seu, tornando essa realidade crível e capaz de impacto emocional.” (BEL-
TRAME, 1998, n.p.). Muitas vezes a antropomorfização de objetos como modo de construção do
corpo do personagem se mostra como o caminho mais fácil e cômodo para quem pretende trabalhar
com o teatro de objetos e bonecos. Porém, somente a pesquisa, durante o processo de ensaios, é que
poderá dizer o caminho mais expressivo e potente para determinado espetáculo.

A partir da perspectiva de Beltrame, poderíamos considerar que todo e qualquer ator é um animador,
pois torna uma realidade dramatúrgica em crível capaz de impacto emocional também. Contudo, o au-
tor prefere a utilização da nomenclatura ator/animador, por considerar uma relação horizontal e de igual
força entre o ator e o boneco, e não uma relação vertical hierárquica que o nome manipulador evoca em
que o agente da cena seria sempre o ator-performer. O autor também crê que o poder expressivo e emo-
cional da cena é proveniente da soma horizontalizada da potência cênica do performer e do boneco. “O
amalgamento, se pode até dizer a incorporeidade que se estabelece entre o corpo e um objeto inerte, para
transformar estes dois elementos num terceiro, que é o veículo expressivo.” (BELTRAME, 2006, n.p.).

O material com o qual o boneco é construído também gera potências expressivas importantes para a
cena. Um boneco esculpido totalmente em espuma será, necessariamente, diferente e se movimentará
de forma diferente em comparação a um boneco que tem seus membros movidos por fios. Ou seja,
matérias-primas diferentes geram corpos diferentes, que por sua vez, terão possibilidades expressivas
diferentes, gerando personagens diferentes. Fazendo uma analogia superficial, quase como se dois
perfomers diferentes, com corpos diferentes, fossem interpretar um mesmo personagem dramatúrgi-
co, totalmente indo contra o padrão physique du rôle.

O material [de confecção] já é uma importante fonte de dramaturgia, capaz de sugerir e determinar
a dinâmica do movimento do boneco. Improvisar, ir lenta e gradativamente descobrindo os movi-
mentos e possibilidades expressivas do boneco, é fundamental. Antes mesmo de estar pronto, ainda
no seu esboço, o boneco pode apresentar sua autonomia. [...] Isso pode enriquecer o vocabulário
expressivo da personagem. (BELTRAME, 1998, n,p.).

Por vezes, esses materiais de confecção do corpo dos bonecos impõem certos limites e criam, assim,
personagens e figuras não realistas. Os corpos dessas figuras poderiam ser categorizados como corpos
insólitos, estranhos, grotescos, inabituais, etc. Esses corpos insólitos podem contar fábulas e histórias
que evocam lugares de mistério, magia, medo, dor e horror. Histórias essas que corpos humanos rea-
listas não teriam a mesma potência expressiva para contar.

Geralmente, esse choque dessas figuras postas em determinados contextos, sejam em filmes ou peças
teatrais realistas ou até em galerias de arte, cria uma atmosfera de estranheza ou um aspecto de fan-
tasia e imaginação que pode alcançar o lugar do grotesco. Um dos aspectos do grotesco é se utilizar
de contrastes para gerar imagens de estranheza. Em pinturas figurativas de rostos feitos de vegetais
de Giuseppe Arcimboldo (século XVI) até esculturas de seres mesclando elementos humanos e não
humanos de Paolo Pasetto (em sua série chamada “Figures de passage” de 1993), o grotesco questiona
o habitual e traz à tona os incômodos humanos.

179
Figura 1. Giuseppe Arcimboldo – Inverno (1573) Figura 2. Paolo Pasetto – Figures de passage (1993)

Duda Paiva é um bailarino, diretor de teatro, coreógrafo e manipulador de bonecos, brasileiro radicado
na Holanda. Seus bonecos, na maioria das vezes, feitos de espuma, possuem essa atmosfera do grotesco,
pois falam do/sobre o humano a partir de lugares de incômodos. Esse lugar também é reiterado pela
técnica de manipulação por ele utilizada: siameses. Essa técnica consiste em manipular o boneco a partir
da união de partes do corpo do boneco com partes do corpo do ator/animador, ambas visíveis, criando,
assim, um corpo uno. Geralmente, a escolha da técnica de manipulação é feita anteriormente à constru-
ção do corpo do boneco, logo, nessa técnica de siameses, os bonecos não possuem um corpo inteiriço e
sim até a metade, por exemplo, apenas a parte superior do corpo, ou apenas a cabeça.

Figura 3. Duda Paiva e a boneca Poshia


(2014)

180
Para que a animação aconteça, é preciso dizer que o boneco deva parecer dotado de uma vida inte-
rior e uma vontade própria a ele, para isso é necessário que a manipulação desapareça ou se disfarce,
o intérprete deve delegar ao objeto que ele manipula a capacidade de representar um personagem.
(PLASSARD, 2015, p. 15, tradução do autor).61

Voltamos agora à ideia de que o boneco existe como corpo potente de expressão anteriormente à sua
manipulação. Didier Plassard usa o verbo delegar para designar de quem é a responsabilidade de in-
terpretar o personagem. Não adianta o ator/animador mexer o corpo do boneco aleatoriamente, pois
não significará nada e nem terá poder expressivo. Segundo Plassard, o boneco “deve parecer dotado
de vida interior e uma vontade própria” (2015), ou seja, a própria corporeidade do boneco evoca
determinados movimentos, padrões de identidade de gênero, sexo e personalidade, informações às
quais o ator/animador deve estar atento a perceber para não minar a expressividade potente daquele
corpo.

Quando se une partes de corpos de naturezas distintas num corpo uno, cria-se uma estranheza po-
tente de expressão. Corpos da ordem do reconhecível, tenham eles partes antropomórficas ou não,
que povoam o imaginário universal. Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero escreveram, em 1974,
o “Livro dos Seres Imaginários”, onde fazem uma compilação quase enciclopédica de seres e entes
mitológicos e mágicos que a fantasia humana engendrou. A descrição detalhada desses seres e entes
e seus poderes e variações mediante o espaço-tempo universal cria estofo para que o leitor assuma
como verdadeiros os seres dos relatos. De forma alguma, esses seres possuem corpos realistas, por
mais fiéis e detalhadas que sejam as descrições. Sobre o dragão, por exemplo, os autores comentam:
“Em geral o imaginam com cabeça de cavalo, cauda de serpente, grandes asas laterais e quatro garras,
cada uma dotada de quatro unhas.” (BORGES, 1974, p.1). Fiéis na descrição, Borges e Guerrero criam
corpos potentes, unos ou não, porém em constante movimento e construção.

Quando voltamos a Butler, retomamos a ideia de que a identidade de gênero não seja algo estático e
previamente dado. O que nos faz dizer que um corpo é masculino ou feminino? Ou porque dizemos
que determinado personagem é masculino ou feminino? Qual seria o gênero do corpo de um bone-
co? Tudo isso são construções sociais e culturais pertencentes ao campo da linguagem. São padrões,
normas e regras que aceitamos, seguimos e reproduzimos tão “naturalmente” que nos esquecemos de
sua origem.

O ‘sexo’ é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que
alguém é: ele é uma das normas pelas quais o ‘alguém’ simplesmente se torna viável, é aquilo que qua-
lifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural. (BUTLER, 1993, n.p.).

REFERÊNCIAS

ALBANI, Paolo. La Réincarnation. In: PUCK. La marionnette et les autres arts nº 20. Charleville-Méziere: Éd.
L’Entretemps, 2014.

61. No idioma original: Pour que l’animation ait lieu, c’est-à-dire pour que la marionnette semble dotée d’une vie intérieure et d’une
volonté qui lui appartienne en prope, il faut en effet que le gest de manipulation s’efface ou se déguise, que l’interpréte délègue à l’objet
qu’il manipule sa capacité à représenter un personnage.

181
BELTRAME, Valmor. A heterogeneidade do teatro de animação. Revista FENATIB, Blumenau, n.10, 2006. Dis-
ponível em: <http://cbtij.org.br/categoria/artigos-e-reflexoes>. Acesso em: 02 dez. 2015.
_______. Teatro de Animação – do ilustrativo à forma animada. Revista FENATIB, Blumenau n. 02, 1998. Dis-
ponível em: http://cbtij.org.br/categoria/artigos-e-reflexoes Acesso em: 02 dez. 2015.
BORGES, Jorge L.; GUERRERO, Margarita L. C. O Livro dos Seres Imaginários. Trad. Carmen Vera Cirne Lima.
Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1974.
BRAGA, Humberto. A Interpretação no Teatro de Bonecos. Revista FENATIB, Blumenau n. 8 e 9, 2004. Dispo-
nível em: <http://cbtij.org.br/interpretacao-teatro-de-bonecos-2/>. Acesso em: 02 dez. 2015.
BUTLER, Judith P. Corpos que importam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes
(Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Ed. Autêntica,
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GIUSEPPE Arcimboldo. Site Metamorfose Digital. Disponível em: <http://www.mdig.com.br/? itemid=1683>.
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PARTNERING the object. Site Institut International de la Marionnette. Disponível em: <http://www.marionnet-
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PLASSARD, Didier. Les scènes del’intranquillité. In: PUCK. La marionnette et les autres arts nº 20. Charleville-
Méziere: Éd. L’Entretemps, 2014.

SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Trad. Guacira Lopes Louro. São Paulo: Ed. Autêntica, 2012.

182
O corpo presente e a teoria queer
Guilhermina Pereira da Silva

1. QUEER

Este universo começa a ser teorizado no final do século XX, tendo por epicentro o preceito de que a
orientação sexual ou a identidade de gênero dos indivíduos resultam de uma construção social. Se-
gundo Judith Butler (1990) sugere, o indivíduo não possui uma única forma social de desempenhar a
sua sexualidade e seu gênero, ela é devir. As pessoas que expressam sua identidade de modo diferente
da norma social vigente são imediatamente estigmatizadas. A teoria Queer vem romper com todas
as normatizações de gênero e sexualidades estabelecidas. No que concerne ao nosso atual contexto
social, a expressão artística é um dos caminhos que também podem, e precisam, entrar nesse intenso
debate acadêmico. Na medida em que esses estudos avançam, nossa sociedade passa a questionar os
próprios valores hegemônicos e de poder para abraçar as expressões de gênero e sexualidades diver-
sas. É, também, nesse contexto do presente, que meu processo artístico pode se inserir academica-
mente nesse processo: explorando, através de imagens, as múltiplas expressões da identidade.

O corpo Queer é o que não se encaixa, o corpo não desejado, o corpo estranho, o corpo que não per-
tence. Este é um corpo periférico e que provoca sentimentos diversos: Medo, ódio, admiração, nojo,
desejo, encanto. É esse corpo que eu pretendo expor nos meus trabalhos, um corpo novo, um corpo
que foge da normatividade: o corpo da travesti, o corpo da Bicha preta, o corpo dos não binários,
dos intersexuais, queer etc. A importância desse trabalho está no diálogo com o presente. Com esse
embate entre corpos periféricos; e essa pressão, cada vez mais aberta, de uma sociedade com valores
sexuais oriundos dos discursos de poder de papeis sexuais/de gênero perpetuados e multiplicados no
século XIX e constantemente e reafirmados por todo século XX.

Até que ponto nossa sociedade ainda falocêntrica e heteronormativa considera esses corpos abjetos?
Será que a arte pode auxiliar na mudança desse paradigma? Será que a imagem pode se inserir nesse
processo em curso?

Historicamente, comportamentos (sexuais ou não) que divergiam da norma daquele contexto social
eram comportamentos desviantes. No caso do corpo, nascer com alguma característica diferente das
categorias aceitas biologicamente poderiam ter interpretações distintas. Em sua organização de uma

183
História da Feiura, Umberto Eco (2014) nos mostrará como essas impressões sobre o biologicamente
diferente são cambiantes e como os discursos são construídos historicamente. No Renascimento, os
hermafroditas eram considerados monstros; na Idade Média, os viam como um desígnio arbitrário
de deus.

Na história da arte, as representações sobre o feio, dão-se, sobretudo, nos corpos, rejeitados pela
sociedade. Esse corpo pode ter sofrido alterações: pode ser velho, pode ser um corpo doente, gordo,
magro. As representações artísticas sobre o feio são cômicas, inquietantes e podem até despertar o
desejo, mas um desejo pelo exótico e pelo proibido. São esses os corpos que atravessam essas repre-
sentações na história da arte e que são corpos periféricos, que analisarei dentro do contexto histórico
do presente.

Sobre esses corpos e, agora, sobre esses comportamentos, considerados periféricos, que não se encai-
xam no padrão vigente de normalidade, foi criado um discurso. Um discurso de poder baseado no
saber e na linguagem e que determinará as multiplicações de comportamentos sexuais diversos.

No período entendido hoje como Idade Média, o discurso sobre o sexo era velado, não podia ser
falado, a não ser numa confissão. A confissão é entendida por Foucault (1999) como mecanismo de
poder para a produção de verdades; nesse caso, verdades sobre o sexo. Ele vai mostrar em sua História
da Sexualidade Vol. I: a vontade de Saber que esse mecanismo, ao longo do tempo, sofrerá profundas
alterações na sua função e efeito. O que vai constituir esses corpos e esses comportamentos sexuais no
nosso século, que ficaram tão enraizados na nossa cultura, vai se dar nos três últimos séculos, espe-
cialmente no século XIX, onde o discurso de poder sobre o sexo e sobre os corpos que abrigam essas
identidades não normativas tentarão controlá-los; mas acabaram por multiplicá-los.

O controle da sexualidade tem na arquitetura, nos espaços, um forte mecanismo de coerção: A escola
(a higiene, o não falar, o comportamento adequado na escola, controle da masturbação); a medicina
e seu discurso patológico dos corpos e identidades não normativas; a psiquiatria e a leitura da lou-
cura, juntamente com a psicanálise, que vai investigar a fundo a raiz de comportamentos sexuais; a
justiça vai categorizar crimes sexuais com seus relatórios e processos extensos e detalhados, a fim de
conhecer e punir práticas sexuais fora do padrão daquela sociedade; que utilizam da confissão como
produtora de verdade, e entende-se aqui “verdade” não como absoluta, mas produzida para ser útil
para aquele contexto social. A confissão permeava a justiça para produzir punições e a medicina para
produzir diagnósticos (verdades) e na psicanálise sob forma da hipnose.

A partir desses mecanismos/espaços/discursos dissimulados de controle, as sexualidades se multi-


plicam. Segundo Foucault (1999), os diversos discursos para patologizar, classificar, determinar e
organizar o sexo foram seus principais reprodutores. Agora a sociedade sabe sobre o sexo, e mesmo
vivendo numa paranoica obsessão para não se desviar (dadas as diversas categorias de sexualidade
não normativas), as práticas sexuais nas suas formas mais diversas se dispersam e multiplicam-se. Da
igreja antes do século XVI (que exercia total controle sobre esse discurso sexual e não o reproduzia),
o discurso sobre o sexo irradiou-se para vários núcleos de poder já mencionados aqui (medicina,
biologia, direito, pedagogia, economia, moral e psiquiatria), cada um desses núcleos tinha seu próprio
discurso sobre o sexo. Foi a primeira sociedade que, de fato, falava sobre o indizível.

184
Hoje, nossa sociedade volta a criar novos discursos e questionamentos a essa ScienciaSexuales. É nes-
se contexto que se insere a arte, podendo provocar novas reflexões sobre esses corpos e sexualidades
periféricas.

Nessas formulações de Foucault sobre a genealogia, abre-se uma porta para que a genealogia do gê-
nero possa ser investigada, o que resulta na gênese dos estudos queer. Poderemos sistematizar o que é
queer com o estudo de Sara Salih sobre a teoria Queer através da obra de Judith Butler. Considerando
as contribuições dessa autora à teoria Queer.

Diversas autoras feministas, depois de Foucault, vão partir do sexo, não como se pensava – uma
categoria biologicamente determinada, utilizando, em vez disso, formulações de Foucault sobre os
modos pelos quais o sexo e a sexualidade são discursivamente construídas ao longo da história e
das culturas (SALIH, 2002, p 19). Essas feministas veem a mulher como constructo social. O Queer
é caracterizado por essas novas autoras como algo indeterminado e instável, e não algo fixo. Este ato
expande o entendimento sobre o Queer na introdução dessa proposta: o Queer está em movimento,
ele vai procurar desestabilizar e desconstruir as bases das categorias sexuais, afirmando que todas são
transitórias.

Por conseguinte, um dos escritos mais famosos de Butler vai colocar o sujeito (Sexo, gênero, identida-
de) como constructo social que virá a ser. Ou seja, ela vai dizer que o sujeito é construído socialmente,
e que está num constante processo performático de devir.

Sobre performatividade, Butler (1990) entende que, quanto ao gênero, estamos automaticamente re-
petindo atos que reforçam as suas estruturas binárias. Quando, antes mesmo de nascermos, nossa
família escolhe um nome e traça todo um destino baseado no nosso genital, o corpo passa a fazer
parte do discurso binário homem-mulher heterossexuais. Os corpos que não se conformam com esse
sistema sofrem sanções sociais, violência, coerção dos dispositivos de controle.

Esses corpos periféricos são produto de uma sexualidade que atravessou a história, sendo produ-
zidos por um discurso de poder sobre estes. Esses corpos são, sobretudo, políticos, no contexto
atual:

A noção medicalizada da homossexualidade, que data do século XIX e define a identidade pelas prá-
ticas sexuais, foi abandonada em proveito de uma identificação política e estratégica das identidades
queer. A homossexualidade bem policiada e produzida pela ScienciaSexuales do século XIX explo-
diu; foi transbordada por uma multidão de “maus sujeitos” queer. (PRECIADO, 2011, n.p., grifo da
autora).

A autora supracitada fala de uma “desterritorialização” da heterossexualidade, o que constitui uma


resistência do corpo que passa a ser político. E, quanto mais esses corpos resistem, mais o biopoder
utiliza de suas formas subversivas para um encaixe de normatividade: Silicone, hormônios, cirurgia,
representações, discursos, psicanálise. É todo um discurso normalizador de poder, semelhante aos
encontrados no século XIX para categorizar esses corpos abjetos. Esses corpos continuam reexistin-
do e se ressignificando; continuando, por muito tempo, a serem corpos periféricos.

185
2. FRAGMENTOS DO CORPO PRESENTE

Fiz um recorte temporal nos meus trabalhos artísticos para essa pesquisa: de 2013 até o primeiro
semestre de 2016, venho produzindo trabalhos sobre o corpo abjeto e as práticas sexuais dissidentes,
que partiu de uma inquietação com a minha própria subjetividade como mulher transexual.

Figura 1. Corpo Partido 1. Figura 2. Corpo Partido 2. Figura 3. Corpo Partido 3. Figura 4. Corpo Partido 4.
Aquarela sobre papel. 2015 Aquarela sobre papel. 2015 Aquarela sobre papel. 2015. Aquarela sobre papel. 2015.
Fonte: o Autor, 2015. Fonte: o Autor, 2015. Fonte: o Autor, 2015. Fonte: o Autor, 2015

Podemos perceber o mesmo corpo de maneiras completamente diferentes, visto que o corpo é um
texto socialmente construído (PRECIADO, 2014; p. 26). Neste trabalho acima, repartido em 4, o
mesmo corpo é retratado de diversas maneiras, sendo que junto e/ou separado continuam sendo o
mesmo corpo.

Figura 5. Transexual ou Travesti?


Aquarela sobre papel. 2016.
Fonte: o Autor, 2016.

186
Neste trabalho, vemos o mesmo procedimento. O corpo aqui, é visto como um resultado do discurso
médico sobre o a transexual universal: A autora Berenice Bento (2006) afirma que o/a transexual foi
uma construção da medicina e da psiquiatria sobre pessoas que não estariam se sentindo bem com
seus corpos, que acreditavam serem do sexo oposto e, a partir de uma visão de mundo heterocentra-
da, desenvolveram “procedimentos” para diagnosticá-los e alterar seus corpos para que se adéquem
na sociedade normativa. Ao longo de sua pesquisa de doutorado, ela percebe, através de entrevistas,
que não é bem dessa maneira que a construção das subjetividades da população trans se constitui.
Para o discurso médico, a transexual feminina, por exemplo, precisa ser extremamente feminina,
odiar seu corpo/pênis, gostar de maquiagem, ser delicada etc. Muitas mulheres não são assim, e isso
serve também para mulheres transexuais. Num jogo de poder, muitas delas se adéquam a esse dis-
curso médico para obterem os procedimentos cirúrgicos que desejam fazer; outras, reivindicam a
identidade feminina perante a sociedade, sem desejar a cirurgia de redesignação sexual. A pesquisa
de Berenice Bento nos mostra a plasticidade do corpo, seja através de cirurgia ou da moda (uso das
roupas, maquiagem, acessórios etc.). É isso que me inquieta, sendo uma mulher transexual. Meus an-
seios e minha subjetividade não são necessariamente o que o mundo considera como completamente
normais para uma mulher; portanto, de acordo com BUTLER (1990), a mulher é um devir, e não um
corpo pronto, esperando que a cultura o signifique.

Tenho consciência de que ser transexual é ir de encontro ao peso do binarismo em que o mundo está
atolado. Através da significação do meu corpo com minha prática de pintura e desenho desejo romper
com esse binarismo e a naturalização da heterossexualidade.

Figura 6. Culpa. Figura 7. Charlote.


Aquarela sobre papel. 2014. Aquarela e nanquim sobre papel. 2013.
Fonte: o Autor, 2014. Fonte: o Autor, 2013.

187
3. SUBVERSÃO E PROFANAÇÃO

Butler (1990) reflete sobre atos corporais subversivos, que constituem um dos capítulos do seu tra-
balho Problemas de gênero. Nessas reflexões, a autora busca refletir sobre o corpo, a genealogia do
gênero e formas de subversão. E coloca a questão: que tipo de performance de gênero representará e
revelará o caráter performativo do próprio gênero, de modo a desestabilizar as categorias naturaliza-
das de identidade e desejo? (BUTLER, 1990, p. 240).

Ela argumenta que o gênero é uma performance, que estamos sempre em um palco, onde encena-
mos para a esfera do público uma performance de gênero que fortalece o sistema binário em que o
gênero se encontra. Em busca de respostas para o questionamento que ela mesmo faz, Butler (1990)
argumenta que a paródia, na forma mais específica do drage do [sic] travesti não são atos corporais
subversivos. Mesmo que os próprios corpos deles signifiquem um deslocamento do sensível, eles ain-
da partem dos sistemas binários de gênero para que atinjam esse efeito.

Em seu livro Profanações (2007), Giorgo Agamben nos traz o conceito de profanação, no capítulo Elo-
gio à profanação, definindo-a como a restituição do que foi tirado dos homens pelo sagrado. Usando
metáforas, o filósofo argumenta que os dispositivos do poder retiram as coisas do uso comum e os
suspendem. Dessa forma, aquilo passa a conter um significado de valor (sagrado), a função da pro-
fanação é restituir o uso comum através de rituais (atos subversivos); tudo o que é de fato direito de
todos os homens.

Vejo uma clara semelhança com os modos subversivos do gênero, só que com uma aproximação para
o campo da arte. Os artistas têm esse poder de deslocar sentidos para criar representações que causam
uma distorção nos dispositivos. Neste trecho, o autor nos traz um exemplo de profanação:

[...] a defecação, que, em nossa sociedade, é isolada e escondida através de uma série de dispositivos
e de proibições [...] O que poderia querer dizer: profanar a defecação? [...] Trata-se de aprender um
novo uso das fezes, assim como as crianças estavam tentando fazer ao seu modo antes que intervies-
sem a repressão e a separação. (AGAMBEN, 2007, p. 72).

Podemos, ao invés de pensar as fezes, pensarmos o corpo nessa mesma estrutura. Ou seja, a leitura
sobre o corpo é um dispositivo, é algo que através da sacralização (performatividade) foi tirado do uso
comum. O corpo pertence à esfera do divino, do sagrado; cabe à profanação, através de ritos, restituir
o corpo ao uso comum para dele fazermos o que quisermos.

Nesse ponto, a arte é de muita importância. Uma vez que pode, através da representação, restituir o
que é de uso comum, neste caso o corpo.

Será que a arte queer, como uma categoria fora do pensamento lógico, não é uma forma de subversão
original? Percebo que a arte dita queer ainda está inserida fortemente num contexto homoerótico.
Essa arte não contempla em sua totalidade as diversas formas de subversão, nem as outras categorias
de sexualidade e gênero. Onde está a mulher na arte queer? Onde estão as travestis, os não-binários
e os intersexuais?

188
Enquanto travesti e artista, é politicamente útil para a minha categoria se afirmar no campo da arte, e
não vejo forma melhor de fazer isso, a não ser unir prática e teoria. Uma vez que me proponho a refle-
tir sobre ser travesti e artista, procuro modos de representação que sejam subversivos em si mesmos,
que, através das imagens da série corpo presente, possa profanar os corpos inseridos nesse sistema
social binário e heterossexual.

Nesses conceitos resumidos dos autores estão formulações históricas e filosóficas que darão um em-
basamento para a análise deste trabalho. Uma arte com um enfoque nesses corpos políticos, periféri-
cos, que manifestam identidades e sexualidades divergentes, cambiantes, da norma vigente em nossa
sociedade. A arte como transgressão de valores enraizados na nossa cultura é um elemento muito
poderoso de subversão que questiona e produz novos entendimentos políticos sobre esses corpos.

Estando em conformidade com as discussões mais contemporâneas, inserindo-se num campo de


atuação atual, essa não é uma proposta de arte anacrônica, que, inserida academicamente e aliada à
reflexão escrita, pode ser de grande utilidade para projetos vindouros.

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta análise estará ancorada no método da a/r/tografia, uma vez que não hierarquiza a relação entre
texto e imagem. A/r/tografia é uma forma de representação que privilegia tanto o texto (escrito)
quanto a imagem (visual), quando eles se encontram em momentos de mestiçagem ou hibridização
(BELINDSON, 2010). Visto que o método a/r/tográfico compreende essa hibridização, este se encaixa
na análise dessa série, uma vez que, nele, as imagens têm intensidade textual. Essas imagens não po-
dem apenas ilustrar esse texto: elas devem se comunicar com o texto, sendo de igual importância para
a compreensão do mesmo. Dar importância à imagem num cenário acadêmico predominantemente
textual ajuda a horizontalizar as relações entre métodos distintos de pesquisa.

Uma descrição pormenorizada desse trabalho, como um todo, será realizada. Uma reflexão crítica
à luz dos paradigmas contextuais e bibliográficos será abordada na dissertação. Pretendo, também,
exercer a problematização epistemológica, a partir do resultado estético obtido numa exposição desse
trabalho.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aqui, apresento um trabalho de cada ano, no recorte, para essa pesquisa. Atualmente, estou preparan-
do uma exposição junto à uma disciplina de gênero e sexualidades (Tramações, da professora Luciana
Borre), na pós-graduação, que me possibilitará colher material da relação do meu trabalho com o
público, para a continuidade dessa pesquisa. A importância da exposição se dá num âmbito educa-
cional e tem como prioridade educar para gênero e sexualidades (BORRE, 2016, fala da professora em
sala de aula). Portanto, esse trabalho se insere num espaço educativo que tem como objetivo romper
com os conceitos sobre sexualidade e gênero em cada um dos visitantes. Encontrei no método A/r/
tográfico a chave para responder às minhas perguntas, e é na relação com o público que está a res-
posta ainda oculta sobre a contribuição do meu processo artístico para as mudanças de pensamento e
rompimento com naturalizações de conceitos sobre sexualidade e gênero que concerne à teoria queer.

189
Nessas páginas, apresentei minhas inquietações, teóricos que me ajudarão a pensar sobre meus traba-
lhos, fragmentos da minha produção e conceitos-chave que serão importantes para a condução dessa
pesquisa. Esse artigo contribuirá para sistematizar e organizar meu pensamento para a construção de
toda a minha pesquisa.

REFERÊNCIAS

BELIDSON, Dias. Preliminares: A/r/tografia como Metodologia e Pesquisa em Artes. In: CONGRESSO NA-
CIONAL DA FEDERAÇÃO DOS ARTE/EDUCADORES DO BRASIL. 20., 2010, Goiânia. Anais... Goiânia:
UFG, 2010. Disponível em: <http:// aaesc.udesc.br/ confaeb/Anais/belidson.pdf>.
BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: Sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro:
Garamond, 2006.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.
ECO, Umberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2015.
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade: A vontade de Saber. v. 1. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
GIORGIO, Agamben. Profanações. São Paulo: Bomtempo, 2007.
PRECIADO, Paul/Beatriz. Multidões Queer: Notas para uma política dos “anormais”. Revista Estudos Feminis-
tas, Florianópolis. v. 19, n. 1, jan./abr. 2011.
PRECIADO. Manifesto Contrassexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014.
SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

190
Visualidades x identidades:
aprender a ver para ser, estar
e conviver no mundo com alteridade
Jaildon Jorge Amorim Góes

INTRODUÇÃO

Ensinar e aprender arte na contemporaneidade tornou-se algo muito complexo, como toda tarefa
educativa, indicando a necessidade de uma convivência mais dialética e inclusiva, entre os diferentes
atores sociais, representados pela diversidade cultural que coexiste na escola.

Faz-se necessário compreender a complexidade que envolve a proposição de uma abordagem meto-
dológica arte-educativa em Artes Visuais pela apropriação dos conhecimentos concernentes a esta
área de estudo, para que se desenvolvam, de forma significativa, as potencialidades artísticas e a am-
pliação do repertório cultural dos educandos, relacionados aos vínculos identitários e a busca de uma
ética para o respeito às diferenças e o desenvolvimento da alteridade.

Somos bombardeados, o tempo todo, por estímulos imagéticos, e mesmo vivenciando em cons-
tante contato com as imagens e sendo sujeitos de uma sociedade contemporânea multimagéti-
ca, colaborativa, interativa multirreferenciada, inter e multiculturalista, acabamos recebendo a
maioria dessas imagens de forma inconsciente, alienante e acrítica, que, consequentemente, acaba
interferindo no processo de construção identitária dos estudantes e problemas nas relações hu-
manas.

Fundamentado em uma pesquisa de campo e no processo de mediação cultural, utilizei algumas


bases conceituais em arte/educação que discutem a Abordagem Triangular, o Território de Arte e Cul-
tura e a Cultura Visual, no campo dos Estudos Culturais, para ampliar os conceitos fundantes desta
proposta metodológica em Artes Visuais que abordam a Alfabetização Visual, como necessária para
que os sujeitos da pesquisa pudessem compreender o mundo das imagens em seu contexto cultural e
principalmente no processo de formação de suas identidades.

191
1. PROPOSTA PEDAGÓGICA: IDENTIDADES X VISUALIDADES
(Aprender a ver para ser, estar e conviver no mundo com alteridade)

Como me vejo? Como sou visto? Como vejo os outros? Como os outros me veem? Como vejo o mun-
do? Estas são questões que todos nós deveríamos nos fazer diariamente, já que todos somos imagens
sendo reveladas e, ao mesmo tempo, vistas por uma infinidade de pessoas, na realidade e nos meios
comunicacionais. Somos nós que criamos as nossas identidades e também as diferenças forjadas nos
meios socioculturais, quer percebamos ou não este processo em nosso cotidiano.

Neste contexto de ver, ser visto e de elaborar pontos de vistas sobre o mundo, esta proposta pedagó-
gica pode ser compreendida como um desdobramento do projeto de pesquisa-ação apresentado ao
PROFARTES (Mestrado Profissional em Artes) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que, atra-
vés da utilização de imagens da cultura visual e da arte contemporânea, teve como objetivo pensar em
uma abordagem metodológica para provocar a problematização, o questionamento e a reflexão das
representações visuais que influenciam a (des)construção das identidades dos educandos do 9ª ano
da Escola Estadual Tereza Helena Mata Pires.

A expectativa, a partir da problemática identificada foi oportunizar aos educandos desta unidade
escolar, localizada em um bairro popular e carente da cidade de Salvador-Brasil, o acesso aos conhe-
cimentos artísticos e estéticos da cultura visual e das formas de fazer arte na contemporaneidade,
para que vivenciassem experiências concernentes ao “aprender a ver” de forma perspectivada e assim
desenvolvessem um olhar pensante, sensível, reflexivo, criativo, crítico e político sobre a realidade.

Nas possibilidades de os educandos ampliarem a percepção e a criatividade, o caminho se delineou


com o foco na “experiência estética”, que pode ser compreendida, segundo Ferrari (2014), como a
vivência que só acontece quando estamos em estado de estesia, seja por intenção ou distração, que
envolve a interação entre a cognição, a emoção e a memória. Ela ainda completa a definição (apud
DUARTE JR., 2001), dizendo que a palavra “estesia” é a oposição da palavra “anestesia”, que é a im-
possibilidade ou a incapacidade de sentir, no entanto, a estesia, ao contrário, mostra a possibilidade
de sentir e de significar a existência nossa e a das coisas vistas.

Ainda reforçando as possibilidades de experiência estética, sintetizo as ideias de John Dewey (2010),
que penso ser relevante para este estudo, na qual ele pontua que estas vivências se tornam um proces-
so significativo e marcante para os estudantes, porque, ao observar as obras de arte, esta experiência
passa a acontecer por camadas, ou seja, aos poucos e em diferentes graus de profundidade. E, ao atin-
gir uma camada mais profunda deste processo, torna-se o exato momento em que podemos dizer que
os educandos passam a vivenciar o que se chama de uma experiência artística.

Neste contexto, os educandos vivenciaram a linguagem visual através da pesquisa e da construção de


percursos criativos, caminhos estes em que os educandos tiveram a chance de pensar, sentir e agir, si-
multaneamente, em diversos planos de experiências. Trilhando um caminho de significações e sentidos
que os levou a um estado mais profundo de compreensão de si, dos outros e da realidade local e global
e a ampliação da percepção de serem uma unidade em meio a uma diversidade cultural, em busca de
uma alteridade para aprender a ser, estar e conviver no mundo, com respeito às diferenças identitárias.

192
E neste processo de identificação cultural, Barbosa diz que: “O compromisso com a diversidade cul-
tural é enfatizado pela Arte-Educação pós-moderna” (2003, p. 19). E é neste contexto que a Cultura
Visual sinaliza um caminho metodológico a ser seguido, baseado no inter/multiculturalismo, para
que os educandos aprendam a lidar com a multiplicidade imagética relacionada às identidades e as
diferenças na contemporaneidade. Neste aspecto, Silva chama a nossa atenção, afirmando que na:

Teorização cultural contemporânea sobre identidade e diferença não poderemos abordar o multicul-
turalismo em educação simplesmente como uma questão de tolerância e respeito para com a diversi-
dade cultural. Por mais edificantes e desejáveis que possa parecer, esses nobres sentimentos impedem
que vejamos a identidade e a diferença como processo de produção social e como processos que
envolvem relação de poder. Ver a identidade e a diferença como uma questão de produção significa
tratar as relações entre as diferentes culturas não como uma questão de consenso, de diálogo e co-
municação, mas, como uma questão que envolve fundamentalmente relações de poder. [...] Elas não
são elementos passivos da cultura, mas têm que ser constantemente criadas e recriadas (2014, p. 96).

Com isso, foi preciso fazê-los compreender que toda imagem, seja ela física e ou virtual, não é neutra e
contém um discurso a ser decifrado e compreendido em seu contexto cultural. Justamente por ser con-
cebida como táticas de poder por determinados corpos sociais, com o intuito de legitimação de valores
e crenças culturais e comportamentais, que influenciam os modos de ser e estar no mundo e também
modificam a revelia da formação das nossas identidades.

Desta perspectiva da construção da visualidade dos educandos, pode-se inferir que a maneira como
eles aprendem a observar/visualizar/olhar/ver, a partir da apropriação de representações simbólicas
visíveis e invisíveis no cotidiano da escola, leva o arte/educador em Artes Visuais a propor vivências
desafiadoras que discutam a ideia das identidades e das diferenças, na forma como são produzidas em
seu contexto sociocultural.

Problematizar as representações imagéticas, em seu processo de formação identitária, quer dizer ques-
tionar os significados e os significantes que sustentam as formas dominantes da representação tanto da
identidade, quanto da diferença. Sendo assim, tive que orientá-los a questionar os padrões de normali-
dade e de estranhamento das imagens que formam as suas subjetividades e fazer com que eles se posi-
cionassem, criando pontos de vistas diferentes, frente ao entendimento desta questão, para desenvolver
uma visão perspectivada e crítica sobre as relações cotidianas pessoais e socioculturais.

Portanto, para que este avanço acontecesse, fez-se necessário investir no processo de alfabetização vi-
sual. Trilhar este caminho tornou-se imprescindível, porque é uma das poucas oportunidades de apro-
priação dos conhecimentos que educandos de comunidade popular têm para vivenciar e experimentar
a arte em uma perspectiva mais formal e sistematizada. Por Alfabetização Visual, Santaella diz que:

[...] significa adquirir os conhecimentos correspondentes à linguagem visual e desenvolver a sensi-


bilidade necessária para saber como as imagens se apresentam como indicam o que querem indicar,
qual é os eu contexto de referência, como as imagens significam, como elas pensam, quais são os seus
modos específicos de representar a realidade (2012, p. 13).

Aprender a ver, aliado ao desenvolvimento do processo de Alfabetização Visual, dá a estes jovens de


comunidades populares a oportunidade de usar o poder da imagem, não só como forma de expressão

193
e comunicação, mas como fonte de conhecimentos, para construírem novas visões de mundo, para
transformarem a realidade vivida. Com isso, “aprender a ver”, favorece a possibilidade de saírem de
uma situação de invisibilidade pessoal para a construção de uma visibilidade sociocultural. A partir
desta proposta, para desenvolver o olhar educado dos estudantes, busquei três importantes bases
conceituais das metodologias em Arte, para fundamentar e estruturar a minha prática arte/educativa
em Artes Visuais:

A Proposta ou Abordagem Triangular sistematizada pela pesquisadora e arte-educadora Ana Mae


Barbosa (2003) oferece, aos educandos, a possibilidade de desenvolverem uma cultura artística, a
partir do processo de Alfabetização Visual. Nesta proposta metodológica, o processo de ensino e
aprendizagem em Artes Visuais passa a ter a imagem como centro de estudo e a inter-relacionar as
ações no fazer artístico, na leitura da obra de arte e no contextualizar as obras de arte.

Os Territórios de Arte e Cultura, segundo Ferrari (2014) – proposta por Mirian Celeste Martins e
Gisa Picos, que apresenta a ideia de que professores e alunos, ao realizar percursos educativos no en-
sino e no estudo de arte – fazem conexões, relacionam e ampliam saberes, transitando por territórios,
campos e conceitos fundamentais em arte. Neste aspecto, a mediação cultural seria o campo de ação
em que os estudos e diálogos se dariam entre os universos da arte, do mediador e do fruidor.

A Cultura Visual, proposta por Hernández (2000), é interdisciplinar, justamente por agregar conhe-
cimentos das áreas de arte, arquitetura, design publicidade, história, cultura, psicologia, antropologia;
defendendo uma abordagem de arte que considere a cultura como mediadora de significados cultu-
rais, na qual o sentido pode ser interpretado e construído através da observação das imagens que os
educandos veem e constroem sobre eles mesmos e sobre os temas relevantes à realidade do mundo.

Neste processo de Alfabetização Visual, na perspectiva inter/multicultural da Cultura Visual, já que


muitos dos educandos tinham pouca afluência dos códigos artísticos visuais e desconheciam e/ou
menosprezavam o poder da imagem, foi preciso fazer com eles aprendessem a ver, mediados pelo
conhecimento dos fundamentos que sustentam esta linguagem artística, como: o alfabeto visual, as
técnicas artísticas, a materialidade, as técnicas de leitura de imagem, os contextos da história da arte,
o processo criativo, a criação de portfólio, etc.

Sendo assim, somente conhecendo e ampliando o repertório artístico e cultural sobre a linguagem
visual, é que os educandos têm a chance de avançar na construção das suas visualidades, ampliando o
potencial de leitura e interpretação, produção e contextualização das imagens vistas criadas por eles na
escola, e, assim, conscientizarem-se do seu real valor, enquanto fator de empoderamento identitário.

O arte-educador em Artes Visuais desta proposta pedagógica, neste contexto, tornou-se um media-
dor, um propositor de desafios, um agitador cultural e provocador de experiências artísticas e esté-
ticas, que pode influenciar na visão de mundo e nas escolhas dos educandos, fazendo com que eles
ficassem abertos à poesia do belo, do estranho e do sensível em sua cotidianidade. Os educandos, em
paralelo, tornaram-se investigadores, construtores do seu próprio processo criativo, na busca por um
sentido e um significado para as coisas que são vistas e consequentemente produzidas, lidas e contex-
tualizadas neste processo arte/educativo.

194
As aulas, durante todo o percurso, tiveram um cunho investigativo, dinâmico, sensível, criativo, críti-
co, reflexivo e transformativo. Com o planejamento e as aulas pautadas pela flexibilidade, com méto-
dos, técnicas e recursos diversificados; com atividades individuais e ou coletivas, criativas e contextu-
alizadas em projetos inter/transdisciplinares, numa perspectiva de atendimento às demandas de toda
a diversidade cultural, coexistentes no ambiente escolar.

A avaliação desenvolvida nesta proposta pedagógica foi processual, contínua e reflexiva, sempre ini-
ciada por uma avaliação diagnóstica e concluída com uma auto avaliação, visando à qualificação da
aprendizagem, e não à quantificação através de notas. E, para garantir este intento, elegi alguns crité-
rios artísticos e estéticos, como: interesse, participação, criatividade, interação, observação, coopera-
ção, comportamento relacional, criticidade, apreensão do conteúdo, senso estético, fluência com os
códigos visuais, que garantiu o monitoramento e possibilitou o julgamento dos resultados de forma
mais coerente e assertiva.

O foco de observação se deu no percurso de apropriação dos conhecimentos da linguagem visual, na


produção, na leitura e na contextualização das imagens; e também na possibilidade de investigar e
dimensionar a subjetividade dos educandos e as suas potencialidades artísticas e estéticas, além dos
comportamentos, na forma como eles vivenciam e experimentam a sua cultura no contexto da (des)
construção das identidades em relação às diferenças e o caminho de desenvolvimento da alteridade.

Para facilitar o desenvolvimento desta proposta pedagógica e alcançarmos o objetivo proposto, no


que tange à orientação da construção do universo visual, eu tive a necessidade de desenvolvê-la em
uma sequência didática, que foi dividida em quatro momentos temáticos inter-relacionados. Estes
momentos desafiadores foram nomeados e caracterizados, como:

1.1. 1º Momento - Consciência da Cultura Artística Visual (Imagética)

Este momento teve o intuito de desenvolver a consciência da identidade visual dos educandos (Figu-
ra 1), através da pesquisa, na Internet, das imagens da cultura visual e da arte contemporânea, para
o estudo dos códigos visuais, da construção da visualidade e para a compreensão da importância e
do poder de representação, criação, leitura, interpretação e de manipulação das imagens, enquanto
ferramenta de conhecimentos, expressão e comunicação artística, estética e poética. Um exemplo foi
o estudo da Obra de René Magritte, Falso Espelho, onde após a compreensão dos elementos visuais,
a ideia foi produzir uma imagem em que eles retratassem a visão real dos educandos sobre a vida
pessoal, social e global.

1.2. 2º Momento - Consciência da Identidade Imagética Pessoal

Este momento teve o intuito de desenvolver a consciência da identidade imagética pessoal dos educan-
dos (Figura 2), para aprenderem a reconhecer, a respeitar e a valorizar a própria autoimagem, ou seja, de
desenvolver a consciência da imagem de si mesmo, a partir do estudo da técnica de vídeoarte, retrato e
do autorretrato. Os educandos produziram através do aparelho celular fotos de si mesmos (selfies), onde
trabalharam com técnica mista e também com a manipulação das suas fotos nos aplicativos de edição de
imagens, discutindo o valor e o cuidado de si para si mesmo; além disso, produziram vídeos artísticos,
contando as suas histórias pessoais, em relação às pessoas que os influenciaram a ser o que são hoje.

195
1.3. 3º Momento - Consciência da Identidade Imagética Sociocultural Local

Este momento teve o intuito de desenvolver a consciência da identidade imagética sociocultural local
dos educandos (Figura 3), na maneira de perceber as referências que eles carregam das pessoas do seu
convívio sociocultural e da transformação crítica do espaço público, a partir do estudo do cartaz pu-
blicitário, como possibilidade de intervenção urbana, assim como a técnica de grafite. Os educandos
produziram um objeto artístico, a partir de uma caixa de papelão, discutindo valores socioculturais que
influenciam as suas vidas; fizeram cartazes publicitário-artísticos, para divulgar pessoas que são referên-
cias positivas na comunidade e, nas paredes externas da escola, criaram um painel de grafite, a partir da
identificação dos problemas socioculturais e suas possíveis soluções para a comunidade/escola.

1.4. 4º Momento - Consciência da Identidade Imagética Sociocultural Global

Este momento teve o intuito de desenvolver a consciência da identidade imagética sociocultural global
dos educandos (Figura 4), na forma como eles veem a realidade global, elaboram seus pontos de vistas e
constroem uma visão perspectivada, do mundo, a partir do estudo da perspectiva e das ações artísticas
híbridas, como a performance, da instalação, utilizando os meios tecnológicos. Os educandos produzi-
ram um estudo de uma performance para discutir as relações das coisas que acontecem no mundo que
interferem em suas vidas pessoais e vice-versa, também produziram uma instalação com sucatas que
eles encontraram em casa e na escola, para discutir e denunciar os problemas da humanidade.

Figura 1. Momentos de experiência artística e estética Figura. 2. Momentos de experiência artística e


dos educandos. estética dos educandos.
Fonte: o Autor. Fonte: o Autor.

Figura 3. Momentos de experiência artística e estética Figura 4. Momentos de experiência artística e


dos educandos. estética dos educandos.
Fonte: o Autor. Fonte: o Autor.

196
2. OBSERVAÇÕES FINAIS COMENTADAS

Fala-se muito que a eficiência do ensino de arte pode ser garantida por esta ou aquelas outras propos-
tas de ensino e aprendizagem que favoreçam a democratização artística e cultural. É preciso, portanto,
perceber que elas não podem deixar de ser desconsideradas da realidade vinculada à complexidade
das relações políticas e das problemáticas entre o sistema educacional, a dificuldade para a formação
continuada – nas questões profissional, cultural e artística dos arte/educadores – e as condições pre-
cárias para o desenvolvimento do trabalho no ambiente escolar.

De antemão, é possível constatar que a metodologia pensada se mostrou eficiente, justamente por
ter permitido uma prática educativa participativa, mediada, compartilhada e aberta aos interesses
da construção coletiva dos conhecimentos em Artes Visuais. A alfabetização visual se mostrou, de
fato, muito importante para o desenvolvimento das potencialidades criativas, (est)éticas e poéticas
dos educandos, ao possibilitar a educação do olhar, através da construção da visualidade e da visão
perspectivada, enquanto fator de empoderamento e conscientização das representações simbólicas
identitárias da realidade de si mesmo, dos outros e do mundo.

Apesar dos contratempos e das dificuldades com a ausência de um ambiente artístico adequado, da
falta de materiais para a produção artística e do apoio institucional, do desinteresse e da privação
cultural dos educandos e da resistência em relação ao projeto; os resultados apresentados na avalia-
ção processual, a partir da observação e da análise dos dados apresentados, mostram que a proposta
metodológica é realmente satisfatória para o desenvolvimento da inteligência visual e das potenciali-
dades artísticas, criativas, (es)téticas e (po)éticas dos estudantes, em relação à temática desenvolvida
nesta proposta.

Do ponto de vista dos educandos, segundo relatos registrados na avaliação e de acordo com a opor-
tunidade de Alfabetização Visual no contexto da inter/multiculturalidade, as experiências artísticas
e estéticas proporcionaram para eles, um momento único, para que eles despertassem as potências
artísticas, revelassem suas ideias imaginativas, expressassem suas vontades, opiniões e sentimentos
conscientes, em relação aos desafios propostos, a partir dos percursos criativos. Momentos em que
os educandos tiveram a oportunidade de sair de uma monovisão para uma cosmovisão, tornando-se
sujeitos mais sensíveis, reflexivos, críticos, conscientes e (re)criadores de suas identidades no contexto
das diferenças e com a possibilidade de desenvolvimento da alteridade..

Quanto à questão identitária, apesar das resistências de alguns em determinados momentos, justa-
mente por conta de a temática demandar um olhar mais amplo sobre si, os outros e a realidade local e
global, além da necessidade de desconstrução das fronteiras culturais, da modificação de determina-
dos comportamentos preconceituosos e exigir deles uma postura mais inclusiva e respeitosa frente às
diferenças; percebi que a oportunidade de problematização, questionamento e reflexão das identida-
des/diferenças favoreceu o despertamento destes estudantes para a busca de uma ética da alteridade.
Do ponto de vista do arte/educador em Artes Visuais, tive a oportunidade de rever a minha prática
arte/educativa, estruturando um processo metodológico que amplia a minha qualificação profissional
e me torna mais consciente da responsabilidade social e do compromisso político com uma educação
pública de qualidade, que seja acessível para todos, indistintamente das diferenças identitárias.

197
Neste processo metodológico arte/educativo em Artes Visuais, ao ampliar o olhar baseado no pro-
cesso de Alfabetização Visual mediado pelo contexto inter/multicultural, os educandos tiveram a
oportunidade de aprender a ver em perspectiva os acontecimentos da vida cotidiana, experimentan-
do (est)eticamente as diversas formas de pensar, sentir e agir imageticamente dentro e fora da escola.

Sendo que esta postura (est)ética favoreceu uma postura política e crítica das representações imagé-
ticas, para que estas fossem expressas de maneira (po)ética, ao entrelaçar e intercambiar os círculos
identitários, em meio às diferenças, para que, assim, pudesse se desenvolver as condições de alteridade.

A seguir, o processo metodológico arte/educativo em Artes Visuais, que venho pesquisando há anos,
sistematizado a partir da síntese das bases conceituais apresentadas nesta pesquisa, que busquei para
referendar este percurso, que tanto necessito para alfabetizar visualmente os meus educandos nas
escolas:

• Visualização Meditativa (Ação em que os educandos aquietam e silenciam para refleti-


rem sobre a temática, possibilidades imagéticas e os conteúdos sugeridos, ao som de uma
música relaxante, relacionando-os ao seu cotidiano).
• Mapeamento Cultural (Ação para avaliação diagnóstica em que o arte/educador verifi-
cará o processo de desenvolvimento da subjetividade e o nível do repertório cultural dos
educandos).
• Sensibilização (Ação em que o arte/educador sensibiliza os educandos através de uma
vivência da poética cotidiana, nas diversas linguagens artísticas).
• Apreciação (Ação em que os arte/educadores e educandos farão uma leitura/ /contextua-
lização/interpretação dos elementos estéticos e artísticos das imagens).
• Provocação (Ação em que o arte/educador fará uma provocação aos educandos em rela-
ção à temática, através de um desafio a ser proposto para a vivência artística).
• Investigação (Ação em que o arte/educador propõe aos educados uma pesquisa sobre o
tema escolhido, artistas correlacionados, situações propostas, materialidade, poética visual,
processo histórico, etc.).
• Mediação Cultural (Ação de diálogo reflexivo e crítico entre o arte/educador e os educan-
dos sobre o que foi estudado e pesquisado durante todo o processo de pesquisa).
• Processo Criativo (Ação em que os educandos fazem reflexão e conexão com a imagina-
ção, a partir de uma tempestade de ideias e depois da combinação e da organização destas,
em relação aos fundamentos artísticos e estéticos que sustentam a construção da imagem,
na linguagem visual).
• Experimentação Estética (Ação em que os educandos experimentam as possibilidades de
uso dos materiais, suportes artísticos, elementos visuais, processo compositivo... e produ-
zem a imagem de acordo às ideias iniciais.).
• Ócio Criativo (Ação em que os educandos devaneiam para que assim possam reconectar,
transcender e transformar as suas ideias iniciais).
• Avaliação (Ação em que arte/educadores e os educandos avaliam o antes, o durante e
o depois das experiências artísticas e estéticas. Avaliação é sempre processual e contínua,

198
observando determinados critérios, como: participação, senso estético, criatividade, critici-
dade, organização, etc.).
Movimentação Cultural (Ação em que arte/educadores e os educandos organizam uma
estrutura para exposição das produções artísticas).

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae (Org.). Arte/Educação Contemporânea: Consonâncias Internacionais. São Paulo: Cortez,
2005.
______. A Imagem no Ensino da Arte: Anos 80 e Novos Tempos. 7. ed. Rev. São Paulo: Perspectiva, 2009.
______; Fernanda Pereira da (Orgs.). A abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo:
Cortez, 2010.
DEWEY, John. Arte Como Experiência. In: BOYDSTON, John Ann (Org.). John Dewey. Trad. Vera Ribeiro. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.
FERRARI, Solange dos Santos Utuari. Porta Aberta: Arte: Ensino Fundamental: Anos Iniciais / Solange dos
Santos Utuari Ferrari, Simone Luiz, Pascoal Fernando Ferrari (Coleção Porta Aberta). São Paulo: FTD, 2014.
HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Trad. Jussara Haubert Ro-
drigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa; GUERRA, M. Terezinha Telles. Teoria e prática do ensino de arte:
A Língua do Mundo. São Paulo: FTD, 2010.
SANTAELLA, Lucia. Como eu ensino: leitura de imagens. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
SILVA, Tomaz Tadeu Da (Org.). Identidade e diferença - a perspectiva dos estudos culturais. 14. ed. Petrópolis/
RJ: Vozes, 2014.

199
Cantando e encantando:
um projeto de música aplicado
na Escola Walney do Carmo Lopes
em Pacatuba-CE
Socorro Maria Costa da Silva/ Gustavo Henrique da Silva Pereira

INTRODUÇÃO

Podemos observar que a música está presente em acontecimentos diversificados. Se compararmos


dois tipos de música distintos, iremos constatar que existe uma grande mudança no que diz respeito
à organização do material sonoro, na variação dos instrumentos musicais presentes, na forma e no
material como são construídos esses instrumentos.

A música é a linguagem que se traduz em formas sonoras capazes de expressar e comunicar sensa-
ções, sentimentos e pensamentos, por meio da organização e relacionamento expressivo entre o som
e o silêncio. A música está presente em todas as culturas, nas mais diversas situações: festas e come-
morações, rituais religiosos, manifestações cívicas, políticas etc. (BRASIL, 1998, p. 45).

Dessa maneira, verificamos essa diversidade cultural no fazer musical, identificando as mudanças que
ocorreram na organização do som e do material sonoro utilizados na confecção musical. Essas trans-
formações acompanham a evolução da humanidade e no que se refere às transformações e pluralida-
des verificadas em diferentes núcleos sociais. Independentemente do seu papel dentro da sociedade,
a música exerce forte atração sobre os seres humanos, fazendo, mesmo que de forma inconsciente,
que nos relacionemos com ela. Naturalmente, muitas vezes, quando a ouvimos, começamos a nos
familiarizar, movimentando o corpo ou cantarolando pequenas partes da melodia.

Trazendo para nossa realidade docente, como parte da rotina do ensino regular, diversos professo-
res utilizam a música como material pedagógico em suas aulas, mas nem todos verificam que esse
não pode e não deve ser apenas um simples momento de descontração, pois o seu valor como for-
madora de consciência rítmica, harmonia etc., influencia na motricidade da criança e é potenciali-
zado como recurso didático quando vai além de uma experiência auditiva e oral. Nesse trabalho, os
alunos experimentaram e vivenciaram atividades que os aproximaram de instrumentos da herança
cultural brasileira, ampliaram a sua sensibilidade e o imaginário infantil voltado para a Música.

200
Isso foi constatado através de aulas que causaram prazer e admiração nos alunos do Infantil IV
da Escola Municipal de Tempo Integral (EMTI) Walney do Carmo de Pacatuba-CE. O contexto
do trabalho se encontra em meio a um grande projeto de formação, envolvendo os professores de
Educação Infantil da rede municipal, com duração de metade do ano letivo de 2015, onde cada
professor desenvolveria, individualmente, seus projetos. Lembrando que conteúdos de Artes são
obrigatórios em todos os níveis de ensino, de acordo com a legislação educacional brasileira, como
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei n° 9394/96, na Lei Nº 11.769, de 18
de agosto de 2008, que trata da inclusão do ensino da música nas escolas, no Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) e nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e, com
o projeto, pudemos reafirmar, respeitar e propagar essa obrigatoriedade, que já permeia todo nosso
trabalho na Educação.

A pesquisa é caracterizada como uma pesquisa-ação e foi utilizada a observação e o diário de campo
para a coleta de dados. Pela Abordagem Triangular em Barbosa (2010) e pela Música na Educação
Infantil em Brito (2003), a pesquisa se norteia em conteúdo e métodos avaliativos.

Almejamos que a música fosse utilizada neste projeto através de seu caráter socializador, de forma
a ampliar a linguagem cultural, oral, visual e corporal das crianças. Normalmente, é diagnosticado
uma deficiência e, por consequência, a necessidade de um assunto ou de determinada vivência para
se iniciar um projeto. Com essa ideia, buscamos analisar as turmas que são foco da pesquisa, então,
partindo do envolvimento com o ânimo que as crianças têm e a alegria que demonstram ao ouvir ou
cantar uma música.

1. MUSICALIDADE E MUSICALIZAÇÃO

Para desenvolvermos esse projeto, primeiro precisamos compreender dois termos essenciais: mu-
sicalidade e musicalização62. Musicalidade é a tendência ou inclinação do indivíduo para a música.
Quanto maior a musicalidade, mais rápido será seu desenvolvimento. Costuma revelar-se na infância
e independe de formação acadêmica. Musicalização é um processo cognitivo e sensorial que envol-
ve o contato com o mundo sonoro e a percepção rítmica, melódica e harmônica. Ela pode ocorrer
intuitivamente ou por intermédio da orientação de um profissional. Entretanto, além da atividade
formalizada na escola, é preciso que a musicalização seja estimulada em casa, oferecendo ferramentas
à criança para que ela mesma possa descobrir os sons. Por exemplo: discos, objetos sonoros, instru-
mentos musicais, canções, e até mesmo gravuras que estejam relacionadas ao tema.

Já na escola, o que se propõe é o direcionamento para que se desenvolvam outros aspectos, como
senso estético, criatividade, coordenação motora e lógica, entre outros. É importante destacar que ex-
plorar som, ritmo, melodia, harmonia e movimento irá significar a descoberta e a vivência da riqueza
de sons e movimentos que são produzidos a partir do corpo de cada um.

A compreensão da música, ou mesmo a sensibilidade a ela, tem por base um padrão culturalmente
compartilhado para a organização dos sons numa linguagem artística, padrão este que, socialmente

62. http://www.cpt.com.br/cursos-educacao-infantil/artigos/musicalizacao-infantil-a-importancia-da-musica-na-primeira-infancia.

201
construído, é socialmente apreendido – pela vivência, pelo contato cotidiano, pela familiarização –
embora também possa ser aprendido na escola. (PENNA, 2010, p. 29).

Por meio do contato com a música, a criança aprende a conviver melhor com outras crianças, esta-
belecendo um diálogo mais harmonioso, o que contribui para a relação interpessoal e o convívio em
sociedade, promovendo, ainda, o desenvolvimento do senso de colaboração e respeito mútuo, já que
ela proporciona mais segurança emocional e confiança, porque, ao praticá-la, as crianças conseguem
liberar suas angústias.

2. A IMPORTÂNCIA DA PLURALIDADE CULTURAL

Conforme se observa no Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil, RCNEI (1998), a
música é entendida como linguagem musical com capacidade de comunicar sensações e sentimentos
por meio do som e do silêncio e está presente em todas as culturas, sendo que, na Grécia antiga, já era
considerada fundamental na formação dos futuros cidadãos, ao lado da Matemática e da Filosofia.

A “democratização cultural”63 defende a importância do acesso generalizado às artes e à cultura e que,


cada vez mais, encontra, nas práticas e consumos culturais, um elemento de reforço da coesão social
e da qualificação das competências individuais. Apesar do contexto mais recente de empenho do
Estado enquanto agente impulsionador da atividade artística e cultural, parece ser ainda no quadro
da concepção das políticas culturais sociais sem inserção em sala de aula, sem qualificação ou sensi-
bilização de professores.

Pode-se notar a importância da música no desenvolvimento humano, tanto que Os Parâmetros Cur-
riculares Nacionais (1997) citam que sua inclusão no ensino tem o objetivo de oportunizar ao aluno
o desenvolvimento de uma inteligência musical. Mas, para que ela tenha sucesso na formação do
cidadão, é necessário que todos tenham oportunidades de estarem na posição de ouvintes, intérpre-
tes, compositores e improvisadores, dentro e fora da sala de aula. O documento pontua, ainda, que
a escola deva promover o envolvimento de pessoas relacionadas à música, proporcionando, assim,
meios para que os alunos possam se tornar ouvintes sensíveis. Em um tempo em que a inclusão esco-
lar e social é palavra-chave, a escola tem papel fundamental na divulgação e valorização de práticas
culturais plurais.

Para grande parte da população brasileira, que não tem acesso aos bens culturais, a escola configura-
-se, muitas vezes, como única possibilidade de acesso ao patrimônio cultural. Mediador entre a cultu-
ra e o aluno, o professor precisa, também, por sua vez, ter amplo acesso às várias formas de expressão
da cultura, para poder trabalhar com elas em sala de aula. (PERFIL, 2004).

3. METODOLOGIA

Nessa pesquisa de caráter qualitativo, optamos pela pesquisa-ação, pois, segundo as autoras Matos
e Vieira (2002), há, por parte dos pesquisadores, o interesse de não apenas verificar algo, mas de

63. LAMIZET, Bernard. La médiation culturelle. Paris: L’Harmattan, 1999.

202
transformar. Nesse sentido, precisa haver uma interação entre pesquisadores e pessoas investigadas.
O processo de pesquisa é realizado com avaliações e discussões no grupo, tanto para redirecionar
os planos, quanto para partilhar o conhecimento entre os envolvidos. Quanto aos nossos objetivos,
a pesquisa de campo ocorreu de forma exploratória ao buscar as informações sobre o objeto dentro
do campo de trabalho. De antemão, mapeamos no campo as condições parciais de manifestação do
objeto de estudo que é a Música. (MATOS e VEIRA, 2002).

Por meio da percepção do professor-pesquisador, a observação em contato com o fenômeno estudado


serviu para apreender na interação o que os sujeitos pensam, sabem, representam, fazem e argumen-
tam, para reforçar essa percepção, de forma que tornaram mais úteis os dados verificados na obser-
vação. Enquanto nos diários de campo obtivemos dados subjetivos, nos diários de aula adquirimos
dados objetivos para a pesquisa, onde coletamos informações sobre assiduidade e frequência.
O projeto percorreu metade do ano letivo de 2015, no Infantil IV, iniciando semanalmente desde
janeiro e tendo sua culminância em junho. As fases exploração, movimento, convívio e percepção,
que serão apresentadas na seção seguinte, são baseadas na obra de Brito (2013) e Barbosa (2010), que
tomamos como base para criar e avaliar nossos planos de aula e plano de curso, bem como os resul-
tados obtidos.

A estrutura da proposta de Barbosa (2010) baseia-se em três pilares: Leitura de imagem, História da
Arte (contextualização) e Fazer Artístico. Esta abordagem trouxe inúmeros benefícios no ensino de
Arte, tais como: a dimensão histórica da Arte e a valorização dos conteúdos artísticos. Ligado a isso,
enxergamos em Brito (2003) as possibilidades de primeiro o Experimentar, depois o Improvisar e
enfim o Inventar como ferramenta pedagógica de fundamental importância no processo de cons-
trução do conhecimento musical (p. 52). Aqui, experimentar se une à leitura e temos a Exploração; a
contextualização, com o improviso, manifesta o Movimento; inventar liga-se ao fazer artístico e temos
o Convívio e Percepção.

4. O PROJETO CANTANDO E ENCANTANDO

Com imagens (os rostos dos alunos quando visíveis estarão embaçados para preservá-los) e comentá-
rios pontuais acerca do objeto de estudo e do projeto, esta seção se dedica a desvelar a prática docente
e o fluxo musical experimentado nas nossas aulas. Mesmo a Música sendo conteúdo presente em
nossas aulas, houve preocupações em cumprir o roteiro que nos propusemos a seguir. O primeiro
mês foi dedicado à formação junto à secretaria de Educação do município e o restante foi dedicado
aos projetos individuais nas escolas.

4. 1. 1º Momento: Exploração

Depois de delimitado os recursos, feito o plano de curso e formada a base teórica, começamos
a aplicar nossas propostas em sala de aula. As fases só foram denominadas depois de o projeto
estar concluído e feitas observações analíticas baseadas nas duas autoras norteadoras. A Explo-
ração foi assim chamada, porque propusemos leituras de diversas linguagens musicais junto à
experimentação de diferentes instrumentos de som, conseguidos através de material reciclável
(Vide fig. 1).

203
Figura 1. Aluno e professora auxiliando-o na
produção de um chocalho com materiais recicláveis.
Fonte: Arquivo Pessoal

Os estímulos aqui permitidos promoveram ainda mais a socialização na sala de aula, formaram base
para a criatividade, o desenvolvimento da coordenação motora, expressão corporal, a linguagem oral
e integração cultural. Do baião à música erudita64, com instrumentos de brinquedo de percussão a
instrumentos de corda (Vide fig. 2), exploramos diversos gêneros musicais. As aulas que haviam esse
foco, inicialmente, se caracterizavam pelo desequilíbrio na atenção dos alunos e a conclusão das pro-
postas, mas isso, gradualmente, foi se equilibrando.

Figura 2. Alunos com instrumentos


Fonte: Arquivo Pessoal

Nessa fase, além dos instrumentos, cantamos, murmuramos e assoviamos, procuramos fornecer ele-
mentos sonoros e também afetivos, através da intensidade do som, inflexão da voz e entonação, que
se mostraram importantes para o segundo momento.

4. 2. 2º Momento: Movimento

No momento que passamos a contextualizar a cultura pré-adquirida extraclasse e estimulamos a me-


mória corporal dos alunos por meio do arcabouço estruturado no momento anterior, os alunos evo-
luíam rapidamente no sentido auditivo, linguístico, emocional e cognitivo, pois verificamos avanços
na capacidade de reconhecer, reproduzir e imitar sons (Vide fig. 3).

64. Fantasia é um filme norte-americano, do gênero animação, produzido pela Walt Disney Pictures, em 1940. É o terceiro filme de ani-
mação dos estúdios Disney e consiste de oito segmentos animados, acompanhados, cada um, de músicas clássicas conduzidas por Leopold
Stokowski, de onde sete delas foram apresentadas pela Orquestra de Filadélfia. Após uma série de tentativas não finalizadas de realizar uma
continuação para obra, dentre as quais se destaca Musicana, o sobrinho de Disney, Roy E. Disney, coproduziu a única sequência lançada
oficialmente de Fantasia, Fantasia 2000. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fantasia_(Disney)>. Acesso em: 27 abr. 2015.

204
Figura 3. Alunos em atividade coletiva com foco em
reproduzir e imitar sons.
Fonte: Arquivo pessoal

Percebendo a progressão das crianças, adequamos o plano de curso para incluir canções curtas (Vide
fig. 4) e de fácil memorização, com temas sobre o corpo. Junto a isso, estimulamos a motricidade en-
quanto as músicas tratavam de incitá-los a bater palmas, bater os pés, gestos com os dedos dentre outros.

Figura 4. O estímulo à cantoria


Fonte: Arquivo pessoal

Através de ritmos variados e estrutura de texto diferenciada na música muitas vezes com utilização de
rimas, possibilitamos o desenvolvimento de aspectos de sua percepção auditiva.

4.3. 3º MOMENTO: CONVÍVIO E PERCEPÇÃO

O fazer artístico vai ao encontro da improvisação para promover o convívio, a socialização, e esti-
mular a percepção da criança ao apresentar e consolidar um meio de se expressar e manifestar, de se
alegrar e dar alegria (Vide fig. 5).

Figura 5. Dinâmica de socialização no pátio


da escola
Fonte: Arquivo pessoal

205
Integrar e motivar as crianças por meio da música, desenvolver a percepção auditiva, sensibilizar
para a diferenciação de som, ruído e silêncio e sensibilizar para diferenciar fontes sonoras diversas.
Nesse momento, os alunos foram expostos, principalmente, ao silêncio, e nele puderam reconhe-
cer uma maior diversidade de sons corriqueiros, incentivando a concentração, memória e atenção
(Vide fig. 6).

Figura 6. Alunos em exercício de silêncio


Fonte: Arquivo pessoal

Foi importante considerar legítimo o modo como as crianças se relacionaram com sons e silêncios,
para que a construção do conhecimento ocorresse em contextos significativos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante o desenvolvimento deste trabalho, percebeu-se que a utilização de projetos é indispensável


à nossa prática pedagógica, pois trazem inovações, proporcionando uma aprendizagem mais interes-
sante e prazerosa, tendo em vista o caráter dinâmico do mesmo, visto que nas escolas observou-se que
professores leigos, sem formação específica de música, propuseram e obtiveram ótimos resultados
com os alunos na exploração de sons através do ambiente em que estão inseridos ou sugeridos pelo
professor, pela música, pela utilização de instrumentos e pelo canto. Vale salientar que a música está
presente em todas as culturas, nas mais diversas situações: festas e comemorações, rituais religiosos,
manifestações cívicas e políticas, assim, toma indispensável sua presença no contexto educacional.
Contudo, o uso da música não deve ser limitada às apresentações de datas comemorativas, mas tam-
bém no uso diário do fazer pedagógico. Convém igualmente assinalar que a crescente importância
que as funções de intermediação cultural, aqui entendidas num sentido mais largo e universal, é
um aspeto cada vez mais decisivo no contexto atual de amplitude dos ganhos culturais. Referente às
diferenças entre as músicas que possuem ou não valores educativos, reconhecemos ser relevante à
formação das crianças dos anos iniciais, por desenvolver o gosto, a apreciação musical, autonomia e
estimular o senso crítico.

A culminância do projeto ocorreu em junho, numa festa junina, onde os alunos puderam cantar, ges-
ticular e se apresentar para toda a comunidade. Evidenciou-se, através desta culminância (Vide fig.
7), que as diversas áreas do conhecimento puderam ser estimuladas com a prática da musicalização.
De acordo com esta perspectiva, a música é concebida como um universo que conjuga expressão de
sentimentos, ideias, valores culturais e facilita a comunicação do indivíduo consigo mesmo e com o
meio em que vive.

206
Figura 7. Culminância
Fonte: Arquivo pessoal

A socialização proporcionada pela música fluiu naturalmente, a interação dos alunos mais tímidos, através
do envolvimento nas atividades, foi um dos pontos positivos, assim como o enriquecimento do vocabulá-
rio e a melhoria da coordenação motora global. Por fim, verificamos que, além de aumentar a autoestima
das crianças, foi favorecido, de maneira mais simples, o enlace com o conhecimento, no entanto, a música
apresenta um apelo maior que os textos, pois envolveu os alunos de maneira contundente emocionalmente.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Ed. Cortez, 2010.
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Nacional para Educação Infantil. v. 3. Brasília: MEC/SEF, 1998.
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SEF. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. n. 248, Seção 1, p. 207.
______. Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. MEC/
SEF. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 ago. 2008. n. 159, Seção 1, p. 1.
______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte. Secretaria de Educação
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GIRARDI, Giovana. Música para aprender e se divertir. Nova Escola, jun. 2004. Disponível em: <http://revistaescola.
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PENNA, Maura. Músicas e seu ensino. Porto Alegre: Sulinas, 2010.
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co. São Paulo: Moderna. 2004.
ZAGONEL, Bernardete. Brincando com música na sala de aula: jogos de criação musical usando a voz, o corpo
e o movimento. São Paulo: Saraiva, 2012.

207
A importância do uso da flauta doce
como ferramenta de aprendizagem
da música no ensino básico
Sidcléa Marques Cavalcanti de Moraes

INTRODUÇÃO

A escolha do tema deste artigo vem por uma necessidade pessoal em abranger as discussões sobre a
grande dificuldade de inserir a flauta doce como instrumento auxiliar na educação musical do ensi-
no básico. Autores como Carl Orff, Edgar Hunt e Ilma lira servirão como base para direcionar este
trabalho.

Em muitas situações, a flauta doce é vista não como instrumento musical, mas sim como um brinque-
do barulhento com sons desafinados. Quando o educador chega à sala de aula e fala para os alunos
que a flauta doce será utilizada, a reação da maioria deles é perguntar “por que não podem tocar outro
instrumento? O violão, por exemplo, seria legal.”

Na vivência do educador musical, é comum o convívio com esses questionamentos. Muitos deles, em
suas experiências na rede particular do ensino básico, a flauta doce é mantida como uma ferramenta
para o ensino da música, porque eles acreditam nos benefícios dessa prática. Para alguns alunos, o
ensino da música na escola se torna novidade. Isso não quer dizer que eles não tenham contato com
o aprendizado musical fora da escola; alguns aprendem a tocar outros instrumentos, porque os pais
os colocam em escolas específicas de música; já outros aprendem a tocar através da internet, com
tutoriais. A novidade é sobre a educação musical nas escolas do ensino básico, que tem o objetivo
de usar a música para a formação do indivíduo, e não para formar músicos. As observações deste
trabalho não partem somente dos alunos, mas também de alguns professores que se recusam a usar
a flauta doce em sala. Será que vale a pena enfrentar a opinião de alunos e profissionais da área em
prol da utilização desse instrumento? Quais as contribuições que a flauta doce tem trazido para o
aprendizado da música?

Na pedagogia Orff de ensinar música com flauta doce, são verificados alguns itens importantes rela-
cionados a essa prática. Em um de seus itens, é encontrada a pergunta: Por que flauta doce na sala de
aula?

208
Afirma Orff, em resposta à pergunta:

• Instrumento melódico- complementa os outros sons mais percussivos do instrumental.


• Usada para introduzir/reforçar prática de leitura musical. Integrada na experiência musi-
cal total. Ensinada através de participação ativa, partes independentes (cada um toca uma
voz), movimento corporal, etc.
• Técnica inicial relativamente fácil. Não possui embocadura específica. Pequenos movi-
mentos motores levarão ao sucesso.
• Treinamento do ouvido. Desenvolve a percepção melódica.
• Alternativa musical para não-cantores. Um desafio para alunos do nível elementar avan-
çado.
• Preço acessível. (Orff-Schulwer, versão 2001).

Em seu pensamento, Carl Orff se preocupava no “fazer música”, na criatividade como expressão do
indivíduo. Neste caso, seria preciso um recurso que facilitasse uma prática instrumental em curto
prazo, havendo, assim, a inclusão do indivíduo no processo.

Outro pensador de extrema importância é o inglês Edgar Hunt, responsável pela inserção da flauta
doce na escola de ensino regular.

Hunt tocava flauta transversal e ao entrar em contato com a flauta doce logo percebeu suas possibilida-
des no campo da educação. A flauta doce, devido à sua construção específica, possibilita emissão de som
imediata. Mesmo antes de se aprender a sua técnica, ao entender o uso do diagrama para a produção de
um sopro de qualidade, é possível fazer soar, de alguma forma a flauta doce. (PAOLIELLO, 2007, p. 28).

Hunt valorizava a facilidade na prática do instrumento, pois, em curto prazo, as crianças poderiam
aprender e iniciar seus estudos na Música com a flauta doce, já que não era preciso muita técnica no
início. É necessário, também, citar a educadora Ilma Lira, que, além de concordar com os elementos
citados anteriormente, chama atenção à prática em conjunto, utilizando a flauta doce. A autora fala
que, no momento da prática em conjunto, os alunos poderão corrigir diferença de altura ao ouvir
sons simultâneos, utilizando digitações alternativas. (LIRA, 1984 apud SILVA, 2009, p. 18).

1. A FLAUTA DOCE

Para melhor compreensão do uso da flauta doce e de como ela chegou ao ensino básico, será abordado
um breve histórico sobre a sua origem. É difícil estabelecer um marco em que a flauta doce foi criada.
Sabe-se que é um dos instrumentos mais antigos, por sua simplicidade de fabricação, inclusive com
registros de flautas doce encontradas na pré-história, claro que com diferentes formatos e quantidades
de orifícios, mas com a mesma característica: o bisel (sistema em que a flauta é constituída: um tubo
em que uma das extremidades é parcialmente fechada pelo bloco, peça de madeira, de encaixar, con-
fere à embocadura uma forma de bico e permite a existência do porta-vento).

Em sua monografia, Noara de Oliveira cita palavras de alguns pioneiros da musicalização com flauta
doce, Edgar Hunt e Ilma Lira, que explicam a evolução desse instrumento:

209
Hunt (1977) diferencia as flautas folclóricas da flauta doce, ressaltando que esses instrumentos ape-
nas oferecem informação aproximada de onde um especialista com ferramenta adequada fabrica a
flauta doce. Ilma Lira chama os instrumentos folclóricos de flautas de bloco de seis furos. “Todas as
espécies de flautas de bloco têm sido encontradas em toda parte; elas têm estado em evidência desde
os estágios mais primitivos da história humana e têm o mesmo processo de produção do som que
tem a flauta doce”. (LIRA, 1984, p 4 apud PAOLIELLO, 2007, p. 6).

A flauta doce teve seu apogeu, como instrumento artístico, inicialmente, na Itália, renascença e depois
no barroco. Na renascença, com a sua utilização em conjuntos; e, no barroco, tem seu apogeu como
instrumento solista. Ainda o professor e flautista Edgar Hunt afirma:

O instrumento brilhou muito popular até imediatamente antes de ser substituída pela flauta trans-
versa e chegou a conviver com ela por algum tempo até ser de fato substituída pela flauta transversa
por cerca de um século e meio. Muitos instrumentistas possuíam e tocavam as duas flautas, assim
como os compositores compunham para ambas. Com o nascimento da orquestra clássica, os com-
positores procuravam instrumentos com maiores recursos dinâmicos e assim começa o declínio da
flauta doce perante o transverso; por volta de 1750, a flauta doce praticamente desaparecia do reper-
tório de qualquer compositor (HUNT, 1977, p. 57 apud PAOLIELLO, 2007, p.17).

É necessário, também, falar sobre a história da flauta doce na educação musical, onde teve seu início
na década de 1930, através do pensamento do músico Edgar Hunt, valorizando, assim, mais uma vez,
o instrumento. De acordo com Paoliello (2007, p. 33):

A utilização da flauta doce nas escolas começou com o trabalho do inglês Edgar Hunt na década de
30, que percebeu suas possibilidades e vantagens para iniciação musical nas escolas. Veremos que
Edgar tinha uma preocupação com a qualidade do ensino, com o uso de flautas corretas e boas -
ainda que baratas, para atender à grande procura por parte das escolas. Posteriormente, como ele
próprio notou já na década de 60, a situação começou a fugir ao controle com o despreparo de pro-
fessores encorajados pela falsa facilidade inicial do instrumento.

Existe uma causa significativa para ajudar no aprendizado da flauta doce, tomando a consciência de
que é um instrumento como qualquer outro, que requer estudo na sua prática.

2. A EDUCAÇÃO MUSICAL NO ENSINO BÁSICO

A educação musical brasileira no ensino básico está passando por grande mudança por causa da Lei
nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, que determina que a música deva ser conteúdo obrigatório, mas
não exclusivo, do componente curricular de que trata. Muitas escolas estão providenciando se regu-
lamentar nessa questão, e a grande preocupação será como essa educação musical entrará nas salas
de aula e quem a introduzirá, já que a lei não determina qual o tipo de profissional deve lecionar a
matéria de Música.

É de conhecimento dos educadores musicais que o objetivo do ensino da música nas escolas regulares
é diferente do ensino da música nas escolas específicas, pois, enquanto uma deseja usar a educação
musical como ferramenta para o desenvolvimento social e cognitivo do indivíduo, outra visa ensinar

210
para a formação de músicos; isso pode conduzir a um determinado pensamento: se um instrumento
for adotado nas aulas de música de uma escola de ensino básico, o educador deve limitar sua aborda-
gem ao ensino prático, já que o indivíduo não vai ser músico? Então, para que aprender um instru-
mento? E no caso da flauta doce, como ela deve ser ensinada para os estudantes?

Existem várias formas, alguns métodos são bem resumidos, e não se preocupam com as técnicas,
expõem apenas as posições e logo após as músicas para tocar; já outros, se preocupam com postura,
articulação e digitação, antes de começar a tocar qualquer música. É claro que o professor não deve
se limitar ao ensino da flauta só porque não irá formar músicos, pois o importante não é aprender a
tocar de qualquer jeito, mas sim tocar com qualidade para obter melhor resultado.

A ideia de que a flauta é um instrumento fácil de aprender talvez cause um “conforto” na hora do
aprendizado. É comum vermos grupos de flautas doce nas escolas tocando sem postura, articulação e
digitação. Sem técnica, o instrumento não é valorizado e explorado.

Beineke (1997), ao falar sobre a educação musical e a aula de instrumento, faz uma análise sobre
alguns materiais que abordam a questão técnica no aprendizado. A autora classifica-os em duas ca-
tegorias:

[...] na primeira, o ensino é centrado na execução de uma coletânea de músicas organizadas sequen-
cialmente de acordo com as dificuldades técnicas propostas, e na segunda, são mais enfatizados os
exercícios técnicos isolados, sendo o domínio destes considerado um pré-requisito para a execução
do repertório instrumental proposto (BEINEKE, 1997, p. 26).

Nesta pesquisa, foi percebida a não utilização do ensino da flauta doce por parte de alguns educa-
dores, não somente como instrumento performático, mas sim como facilitador para a compreensão
da leitura musical. Em pesquisa realizada por Souza, Hentschke e Beineke (1996/97), foi constatado
que a flauta doce, no contexto em que foi realizada a pesquisa, pode ser utilizada “como um recurso
para a ampliação das possibilidades de execução e composição musical” (SOUZA; HENTSCHKE;
BEINEKE, 1996/97, p. 73), além de contribuir para “o enriquecimento dos grupos instrumentais for-
mados pelos alunos” (Ibid., p. 73) e ajudar na solidificação das noções de leitura e escrita musical
(Ibid., p.73).

3. INSTRUMENTO MUSICAL OU BRINQUEDO?

Devido à fabricação e venda de flautas doce de péssima qualidade, é comum se ouvir comentários
sobre o real objetivo desse instrumento. Ele teria uma função meramente lúdica ou sim, seu uso
enquanto instrumento musical pode ser tão completo como qualquer outro? É comum escutar pais
reclamando do som desagradável emitido pelo novo “brinquedo” das crianças. Além disso, muitas
dessas flautas não teriam a durabilidade necessária para um instrumento musical, principalmente
sendo utilizadas por crianças cujo cuidado é mínimo. De fato, quando se compra um instrumento
deste tipo, em qualquer loja, sem nenhum conhecimento prévio, muitas vezes é adquirido apenas um
mero brinquedo, incapaz de promover uma boa educação musical. Os pais, ao levarem suas crianças
para a aquisição da flauta, devem estar conscientes da qualidade de um bom instrumento, das mar-

211
cas já estabelecidas no mercado. Talvez, a busca de uma assessoria especializada, como um amigo
instrumentista ou o próprio professor de música de seu filho, ajude na aquisição de um instrumento
verdadeiro, e não um simples passa tempo descartável. Ao invés disso, estes pais tentam baratear a
todo custo o material escolar fundamental à educação da criança. E uma das primeiras disciplinas a
sofrer tal situação é, justamente, a educação musical e seus recursos (instrumentos) em sala de aula,
por não ter o reconhecimento igual ao das outras disciplinas.
Segundo Anete Susana Weichselbaum, em sua tese de doutorado:

[...] Flautas de brinquedo que são adquiridas no valor de R$ 1,99 não têm a qualidade sonora de um
bom instrumento confeccionado em resina, que conta com afinação adequada e com a característica
de poder produzir os devidos sons harmônicos resultantes. (WEICHSELBAUM, 2013, p. 176).

Se ao utilizar a flauta doce como ferramenta para o ensino da música, é necessário um som referencial
onde a nota “dó” tenha a devida afinação, seria um erro trabalhar com certos tipos de flautas, onde não
existe uma quantidade mínima de notas afinadas. Portanto, é fundamental tomar cuidado ao escolher
o instrumento que será utilizado nas aulas.

Ainda sobre certo preconceito com a flauta doce, deve-se levar em consideração que muitos músicos
afirmam que ela é extremamente desafinada e até alguns professores evitam utilizá-la em sala de aula
por ser um instrumento excessivamente barulhento. Paoliello (2007) afirma que muitos professores
de música não conhecem a técnica da flauta, ensinando os alunos a tocar sem postura e com respira-
ção incorreta, trazendo, assim, vários vícios difíceis de corrigir.

4. POR QUE A FLAUTA DOCE E NÃO OUTRO INSTRUMENTO?

Quando o educador chega à sala de aula e apresenta as propostas pedagógicas para os alunos, o ques-
tionamento mais recorrente trazido por eles é: “Por que temos que aprender a tocar flauta doce? Po-
deria ser outro instrumento, como violão, guitarra, teclado, bateria etc.?”

Mediante a essa situação, o professor procura trazer uma conscientização sobre a prática da flauta
doce no ambiente escolar. No início do processo de ensino/aprendizagem, muitos alunos não com-
preendem os reais motivos de escolha desta ferramenta; já outros, procuram aceitar sem muitas in-
dagações. Por sua vez, nos primeiros encontros, o professor pode tentar explicar aos estudantes todas
as razões existentes para a escolha da flauta doce. Estas explanações podem estar embasadas em co-
nhecimentos teóricos, em várias leituras agregadas à formação do educador ou, mesmo, na vivência
prática no decorrer dos anos de magistério do profissional. Respondendo estas primeiras dúvidas aos
educandos, sem a intenção de impor uma resposta pré-formulada, pode-se, por exemplo, afirmar que:

A flauta doce é um dos instrumentos mais acessíveis de ser trabalhado e é capaz de estimular os alu-
nos a desenvolverem o gosto musical de forma mais rápida, uma vez que os alunos podem aprender
a executar melodias em um prazo mais relativamente curto (Machado, 2005).

Se o instrumento escolhido fosse um violão ou um teclado, possivelmente o aluno iria se desinteressar


mais rapidamente por não atingir determinados resultados desejados em tão curto prazo.

212
É necessário deixar claro, também, que a proposta não é uma aula de instrumento, e sim de educação
musical. O instrumento, neste caso, a flauta doce, será utilizado como ferramenta para esta investida.
Obviamente que esta conscientização, por parte do aluno, acontecerá de forma gradual e espontânea,
no decorrer dos encontros e, consequentemente, da prática do educando com a flauta. Apesar deste
primeiro embate, é saudável que o aluno questione em sala de aula. Estas mesmas perguntas, com o
passar do tempo, se tornarão respostas encontradas, muitas vezes, por eles próprios. O educador não
necessariamente dará a resposta pronta, mas, sim, assumirá a função de mediador entre o aluno e o
conhecimento.

Para que se possa melhor fundamentar sobre a eficácia da flauta doce no ensino da música, o pen-
samento de Ilma Lira se faz necessário. A professora aponta alguns motivos que justificam a ampla
utilização desta ferramenta na educação musical. O primeiro ponto é dirigido às crianças de 6 a 7
anos. Ela diz que uma “flauta soprano pode ser facilmente manipulada por todo mundo”, incluindo
crianças muito novas, cujas mãos são pequenas.

O segundo ponto diz respeito à embocadura e a forma de soprar. Ela chama atenção à facilidade que a
flauta doce traz ao emitir um sopro. O estudo da embocadura é bastante importante e tem sido tema
de estudos de grandes mestres. Em outros instrumentos de sopro, o aluno encontraria mais dificul-
dades na forma de emissão do sopro, como, por exemplo, um trompete ou um saxofone ou, mesmo,
uma flauta transversal, onde se precisaria de mais tempo para aprender a técnica de soprar. Aqui, não
está sendo afirmado que não sejam necessários certos estudos técnicos sobre como soprar uma flauta
doce, contudo, o tempo utilizado para alcançar determinados resultados é bem menor, comparado
aos instrumentos citados anteriormente.

O terceiro ponto diz respeito às características físicas do instrumento em si. As flautas de madeira
seriam bem mais interessantes pela qualidade sonora, por outro lado, elas são bem mais caras e exi-
gem um cuidado bem mais rigoroso no seu manuseio. Já as de plástico não são tão caras “e são per-
feitamente adequados para crianças ou iniciantes”, como diz a estudiosa. Além disso, ela afirma que o
plástico é mais resistente aos impactos e acidentes causados pelos alunos no instrumento, fato muito
comum no dia a dia na sala de aula.

O próximo ponto abordado pela autora trata da acessibilidade ao equipamento. Hoje, podem ser
encontradas, facilmente, nas lojas musicais, diversas marcas de flautas de plástico, por um preço bas-
tante acessível a todos. Enquanto o valor de um violão pode chegar a dez vezes mais que o de uma
flauta de resina. Em muitas instituições de ensino formal e não formal, os administradores, muitas
vezes, conseguem fechar pacotes de compra, barateando ainda mais os preços. É claro que, como já
foi comentado antes neste artigo, o educador e o educando devem estar sempre atentos às marcas e à
qualidade delas. Existem marcas bastante tradicionais, como é o caso das Yamaha, Michael ou Suzuki,
onde a sonoridade e a resistência física já possuem confiabilidade entre músicos e estudantes. Outras
marcas menos confiáveis e, consequentemente, mais baratas, podem comprometer o processo de en-
sino/aprendizagem em sala de aula.

Outro fator fundamental pela escolha da flauta enquanto ferramenta é a capacidade agregadora que
o instrumento possui:

213
(...) É possível fazer música em grupo desde estágios iniciais. Os professores têm apenas que ter em
mente que estes grupos devem ser pequenos (5 – 6 crianças em cada um), para que possa observá-las
e dar a ajuda individual necessária (corrigindo problemas de dedilhado, emissão do som, articulação,
etc.) e para controlar problemas de afinação, especialmente quando as flautas são de diferentes fabri-
cantes e precisam ser afinadas entre si (LIRA, 1984, p. 54).

5. A PRÁTICA NA SALA DE AULA

Nesse capítulo, será apresentada uma experiência pessoal, onde serão descritas algumas abordagens
sobre o ensino da música, utilizando flauta doce como ferramenta, em uma escola da rede particular
de ensino básico. São turmas de 6º ao 9º ano e esta metodologia foi aplicada durante cinco anos. Cada
aluno possui sua flauta, o instrumento faz parte do material escolar e a flauta doce usada pela profes-
sora é a soprano-barroca da Yamaha.

Nas primeiras aulas, os estudantes conhecem o instrumento, sua história, tipos e primeiras posições.
Começando com a nota Sol, vão experimentando as possibilidades de sopro e articulação, nesse caso,
o “Tú” :

DIGITAÇÃO:
0
1
2
3

É importante frisar que, neste momento, os alunos não têm ainda a compreensão da leitura musical.
Nas primeiras aulas, trabalhamos com pulso e batidas no pulso, que são representadas com um traço
ou dois traços.

Outras notas são apresentadas para os estudantes:

Quando aprendem a tocar as notas básicas, colocamos um trecho da música Asa Branca de Luiz
Gonzaga, desta forma:

214
Sempre é pedido para os estudantes que prestem atenção para a postura, articulação e digitação, a
fim de que, logo no início da prática, haja uma conscientização de um bom som na flauta doce. Com
o passar do tempo, conceitos básicos da notação musical são inseridos para que o estudante não se
prenda a essa forma de leitura alternativa de batida no pulso.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise bibliográfica de alguns importantes estudiosos, no que se refere à prática da flauta
doce, foi visto que esse instrumento é de alta importância para o aprendizado em Música, que contri-
bui bastante, deixando para trás o grande tabu que diz: “Aprender Música é muito difícil”.

Foi possível observar, também, que existem poucas referências bibliográficas falando sobre prática do
instrumento diretamente nas escolas de Ensino Básico. Nas leituras, muito se fala sobre tipos e como
tocar, mas a maioria se tratava de aulas em escolas específicas.

Consequentemente, pouco material para leitura acarreta alguns erros nas escolas, como a contratação
de profissionais sem ter a formação apropriada para ministrar aulas de Música e muito menos de flau-
ta doce. Toca-se de qualquer jeito, sem dar a devida importância para o instrumento, desestimulando,
ainda mais, o estudante em sua prática.

Apesar disto, este estudo nutre a expectativa de que, futuramente, haja uma ampla abordagem sobre
esta prática e que as escolas busquem sempre o melhor para seus estudantes quando forem implantar
a disciplina de Música como matéria obrigatória.

REFERÊNCIAS

BEINEKE, Viviane. A produção de material didático para o ensino de flauta doce na escola fundamental. In:
ENCONTRO ANUAL DA ABEM. 12., 2003. Florianópolis. Anais... Florianópolis: ABEM, 2003a. CD ROM.
HENTSCHKE, L. A teoria espiral de Swanwick como fundamentação de uma proposta curricular. In: ENCON-
TRO ANUAL DA ABEM. 5., 1996. Londrina. Anais... Londrina: ABEM, 1996, p. 171-185.
LIRA, Ilma. Rumo a um novo papel da flauta doce em educação musical brasileira. 1984. Dissertação (Mestrado
em Educação Musical) – York University, York (Inglaterra), 1984.
MACHADO, Daniela Dotto et al. O ensino de flauta doce numa turma de 5ª série do Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Santa Catarina: um relato de experiência. In: ENCONTRO DA ABEM. 14, 2005. Belo
Horizonte. Anais... Belo Horizonte: ABEM, 2005. CD ROM.
PAOLIELLO, Noara de Oliveira. A Flauta Doce e sua Dupla Função como Instrumento Artístico e de Iniciação
Musical. 2007. Monografia (Licenciatura Plena em Educação Artística – Habilitação em Música) – Instituto
Villa-Lobos, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
WEICHSELBAUM, Anete Susana. Flauta doce em um curso de licenciatura em música: entre demandas da prá-
tica musical e das propostas pedagógicas do instrumento voltadas ao Ensino Básico. 2013. Tese (Doutorado)
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

215
O ensino de música nos anos iniciais
do ensino fundamental: o que temos
com relação à prática docente sete anos
após a aprovação da lei 11.769/2008?
Juliana Soares dos Santos/ Érica Renata Alves de Oliveira

INTRODUÇÃO

A Música está presente em praticamente todos os espaços e momentos de nossas vidas, desde a hora
que acordamos, com o som do despertador, até a hora em que a usamos para ninar nossas crianças.
No contexto sociocultural, a Música se faz presente, com suas diversas manifestações e especificida-
des, mesmo quando não estamos atentos a ela, trazendo-nos, constantemente, emoções e nos fazendo
sentir o mundo através dos sons e canções que cercam e completam nossa vivência cotidiana. Desta
forma, já que a Música está tão presente em nossas vidas, a escola também não poderia ficar de fora;
nesta direção, surge, como problema de pesquisa, o interesse em saber, especialmente após sete anos
de aprovação da Lei 11.769/2008, o que temos hoje como prática docente para com o ensino de Mú-
sica nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

A justificativa deste trabalho se dá por querer saber o que se tem feito na prática docente com rela-
ção ao ensino de Música nos anos iniciais do Ensino Fundamental nas escolas públicas regulares,
buscando perceber quais as contribuições deste ensino para as crianças, especificamente em relação
à aprendizagem da Música e suas especificidades enquanto linguagem musical. Justifica-se, também,
pela existência da Lei 11.769/2008, que tornou o ensino de Música componente curricular obrigatório
na Educação Básica e pelo interesse em saber o que a aprovação da referida lei trouxe para o ensino da
Música e para a prática docente nos anos inicias do Ensino Fundamental das escolas públicas.

Assim, apontamos como objetivo geral, compreender o que temos hoje como prática docente para
com o ensino de Música em atendimento às suas especificidades enquanto linguagem musical nos
anos iniciais do Ensino Fundamental. E, de forma específica: identificar o lugar do ensino de Música
no currículo e no planejamento da prática docente dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Deste modo, esperamos que as contribuições deixadas por este trabalho possam ajudar a percebermos
como está ocorrendo o trabalho da prática docente com relação ao ensino de Música e suas especifi-
cidades enquanto linguagem musical e que possa suscitar mais reflexões importantes sobre este tema.

216
1. PRÁTICA DOCENTE

Prática docente é um tema que precisa ser sempre discutido e aprofundado, pois é uma atividade que
está nas bases da formação de uma sociedade. Assim, concordamos com Franco (2009), para quem

[...] a atividade docente é uma prática social, historicamente construída, que transforma os sujeitos
pelos saberes que vão se constituindo, ao mesmo tempo em que os saberes são transformados pelos
sujeitos dessa prática. (FRANCO, 2009, p. 14).

Assim, também entendemos a importância desta prática e dos saberes por ela produzidos para a so-
ciedade, porém precisamos, também, considerar que, para dar conta desta prática, inclusive para o
ensino de Música, é necessário que haja formação por parte dos professores, pois, como trazem Lima
e Stencel (2010, p. 03), “[...] ainda há uma lacuna no tocante à criação de uma metodologia própria
para o iniciante da docência musical, [...], bem como à valorização dessa prática”.

Quando se fala no ensino de Arte, incluindo a Música, uma questão que precisa ser destacada é a da
polivalência, que, nas palavras de Alvarenga e Mazzotti (2011)

[...] foi uma prática adotada na década de 1960, e institucionalizada na década seguinte, por se ade-
quar às ações educativas daquele momento social, histórico e político. Está extinta por Lei. No entan-
to, permanece e permeia o ensino das linguagens artísticas nas escolas regulares. Pelo menos, mesmo
com as licenciaturas específicas instituídas para cada linguagem artística, ainda é uma demanda dos
concursos públicos que insistem na contratação de professor de Arte, muitas vezes sem especificar
a linguagem artística requerida. [...] Os professores de música dizem que a polivalência no ensino
de Arte, de alguma maneira, prejudica ou opõe-se à presença da música na escola. (ALVARENGA;
MAZZOTTI, 2011, p. 09)

Por esta vertente, vemos que a prática docente, especialmente quando envolve a polivalência, ainda
presente, especificamente, na área do ensino de Arte, incluindo a Música, é um desafio para os profes-
sores, licenciados na área ou não. Além disso, a própria indefinição causada pelo veto presidencial à
Lei 11.769/2008, dificulta um pouco mais este processo, como nos traz Figueiredo (2010)

Apesar do avanço que a legislação pode trazer, ainda restam diversas questões sobre a educação mu-
sical na escola a partir da nova lei. A questão do professor adequado para ensinar música na escola
ainda não está definida com toda a clareza necessária, pois a lei 11.769/2008 é genérica; cabe aos
estados e municípios, estabelecerem os detalhes desta questão. A prática polivalente para o ensino
das artes ainda está muito presente nos sistemas educacionais brasileiros e, para vários deles, a nova
lei não acrescenta modificações. (FIGUEIREDO, 2010, p. 04).

Deste modo, vemos que, por vezes, um avanço pode também trazer retrocessos e dificultar o desen-
rolar mais adequado da educação.

Outro fator que tem relação com o ensino de Música nas escolas é que por vezes o trabalho que de-
veria acontecer em sala de aula com o professor qualificado, ocorre no ambiente escolar por meio de
projetos, de corais ou de bandas marciais. Não estamos aqui desconsiderando estes trabalhos que são

217
de grande importância para a vida de muitas pessoas, porém ressaltamos, de acordo com Figueiredo
(2010) que

A quantidade de atividades extracurriculares que envolvem música nas escolas através de projetos
diversos estabelece um impasse importante para a implementação da lei 11.769/08. Tais atividades
e projetos podem ser relevantes, mas o que a nova lei estabelece é que o acesso à educação musical
deverá ser democrático, ou seja, para todos. (FIGUEIREDO, 2010, p. 05).

E, a realidade é que estes projetos, infelizmente, não conseguem atingir a todos os que precisam deste
acesso, acesso este que deve ser dado pela escola e para todos.

Ainda sobre a questão da prática docente, Figueiredo (2010, p. 05) nos alerta que “a nova lei deve ser
entendida à luz da LDB de 1996, que indica claramente a obrigatoriedade de curso de licenciatura
para aqueles que desejam ser professores da educação básica”. E ainda ressalta que:

É importante deixar claro que estas considerações são feitas para os profissionais que atuam nos anos
finais do ensino fundamental e no ensino médio, sendo que os anos iniciais são, na maioria dos casos,
responsabilidade dos professores pedagogos. FIGUEIREDO (2010, p. 05)

Nesta perspectiva, percebemos que há, de certo modo, uma definição do trabalho do pedagogo em
sala com traços da polivalência, o que traz mais responsabilidade para este profissional, inclusive para
dar conta do ensino de Música, como também das outras áreas do conhecimento.

Não podemos falar em prática docente sem falarmos também de currículo e planejamento, que
constituem as bases do trabalho do professor. Quanto ao currículo, Vasconcellos (2009, p. 205)
aponta que a realização deste currículo no desenvolvimento do seu processo de construção “depen-
de da atividade humana [...] marcada por sensibilidades, afetos, razões, projetos. Nesse processo
todo, o professor, com certeza tem um papel fundamental”, e ressalta ainda que “A produção da
Proposta Curricular é uma das primeiras tarefas da atividade docente” (Idem, p. 202). Assim, per-
cebemos de forma clara a importância da participação do professor como elemento fundamental
da construção do currículo.

Assim como o currículo envolve a pratica docente, o planejamento também está estritamente ligado à
realização da atividade do professor em sala de aula, pois, como nos traz Vasconcellos (1995, p. 50), “A
competência do educador vai crescendo na mesma proporção em que vai aprendendo a transformar
sua prática pedagógica. [...] Neste sentido, o planejamento pode ser instrumento de ajuda para o seu
crescimento”.

E ainda acreditamos que o fato mais importante, com relação ao planejamento, de acordo com Vas-
concellos (1995, p. 48), é que “O autêntico processo de planejamento, além da elaboração, traz im-
plícita uma exigência de realização” (grifo do autor). Assim, vê-se claramente a necessidade de que
o planejamento exista para além da mente e do caderno do docente, mas que seja praticado e con-
cretizado na realidade, considerando que, para com o ensino de Música, este planejamento não seja
tratado diferente.

218
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: O ANDAMENTO DA PESQUISA

Nas palavras de Minayo (2007, p. 14), “Entendemos por metodologia o caminho do pensamento e a
prática exercida na abordagem da realidade”; deste modo, o caminho deste trabalho será tratado a se-
guir. Para esta pesquisa, foi feita a escolha pelo tipo de pesquisa qualitativa, por querermos buscar um
encontro e maior envolvimento com a realidade, que foi fonte de nosso estudo, pois, para Minayo (2007,
p. 21), a abordagem qualitativa “responde a questões muito particulares. [...] com um nível de realidade
que não pode ou não deveria ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados,
dos motivos, das aspirações, dos valores e das atitudes”. Assim, com este tipo de pesquisa, a qualitativa,
tivemos um maior nível de aproximação com a realidade presente em nosso campo de estudo.

Para alcançar o objetivo geral de compreender o que se tem feito de prática docente para com o en-
sino de Música, fizemos uso da observação participante, que nas palavras de Minayo (2007, p. 70)
é “considerada parte essencial do trabalho de pesquisa qualitativa. [...] um processo pelo qual um
pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar uma
investigação científica”.

Assim, através da observação da prática docente na sala de aula, percebemos como esta contempla e
contribui para o ensino e a aprendizagem das especificidades da Música.

Buscando a maior aproximação da metodologia com o alcance dos objetivos desejados, e para atender
ao objetivo específico de identificar o lugar do ensino de Música no currículo, no planejamento e na prá-
tica docente dos anos iniciais do Ensino Fundamental, fizemos uso da pesquisa documental para anali-
sar o currículo da escola e o planejamento docente, pesquisa esta que, nas palavras de Severino (2007)

[...] tem-se como fonte documentos no sentido amplo, ou seja, não só de documentos impressos, mas
sobretudo de outros tipos de documentos, [...] documentos legais. Nesses casos, os conteúdos dos
textos ainda não tiveram nenhum tratamento analítico, são ainda matéria-prima, a partir da qual o
pesquisador vai desenvolver sua investigação e análise. (SEVERINO, 2007, p. 122-123).

E assim, usamos esta pesquisa para perceber, através dos dados presentes nestes documentos, qual
lugar o ensino da Música ocupa dentro da dinâmica educativa da escola.

Para registro dos dados observados e para auxiliar o processo de análise, tivemos como nosso maior
aliado e principal instrumento de registro o diário de campo, que segundo Tezani (2004):

Consiste em um caderno onde são registradas todas as informações depois, são registradas as ob-
servações, as conversas, os comportamentos, os gestos, ou seja, tudo que esteja relacionado com
a proposta da pesquisa como um rascunho, uma matéria bruta que depois necessita de lapidação.
(TEZANI, 2004, p.13).

Desta maneira, com as anotações realizadas no diário, tivemos fonte importante de dados para auxi-
liar na análise e numa observação mais concreta e segura dos fatos ocorridos durante o tempo passa-
do no campo empírico.

219
Por fim, para análise e sistematização dos dados obtidos através da observação das anotações no diá-
rio de campo fizemos uso da Análise de Conteúdo, que, para Franco (2008):

É um procedimento de pesquisa que se situa em um delineamento mais amplo da teoria da comu-


nicação e tem como ponto de partida a mensagem. [...] A análise de conteúdo observa o sentido
por trás da mensagem, requer que as descobertas tenham relevância teórica, e implica comparações
contextuais. (FRANCO, 2008, p. 23-20).

Com essa perspectiva de análise, buscamos conseguir atender às respostas das inquietações aqui sus-
citadas durante este trabalho, buscando compreender as contribuições e implicações do tema do en-
sino de Música.

3. DELIMITAÇÃO DO CAMPO EMPÍRICO

Esta pesquisa foi delimitada ao campo de estudo da cidade de Altinho-PE, escolhida por ser uma
cidade que já traz um histórico de trabalho com o ensino de Música no âmbito extra sala de aula; es-
tando também delimitada especificamente ao campo de estudo da Escola Municipal Professora Maria
do Socorro Rodrigues da Silva, localizada no bairro da Cohab, na referida cidade, sendo os principais
critérios de escolha desta unidade escolar o fato de a mesma ser a maior escola de Ensino Fundamen-
tal do município, possibilitando, assim, maiores possibilidades de espaços para observações, e por ser
uma escola pública, considerando que a escola pública seja o principal meio de o aluno de baixa renda
ter o acesso ao ensino de Música, nesse contexto social.

Serviram como nossos principais colaboradores de pesquisa, a docente e a turma do 5º Ano, como
campo para as observações necessárias em sala de aula. A colaboradora será nomeada como colabo-
radora 1, a fim de não a comprometer em nenhum momento do trabalho.

4. ANÁLISE DOS DADOS

Através dos dados coletados por meio da observação, buscamos perceber como ocorre o trabalho
com Música em sala de aula e constatamos que a Música não é vista como uma área de conhe-
cimento que se enquadre dentro do ensino regular, pois o que ouvimos nas conversas informais
durante a observação foi que a Música é mais voltada para ser trabalhada em projetos extraclasse,
como nos traz a fala da docente de uma das turmas de 5º ano da escola: “Não trabalho com Mú-
sica, por que a Música é mais no projeto Mais Educação” (Docente do 5º Ano, Diário de Campo,
28/07/2015).

Também encontramos a mesma fala em uma das funcionárias da coordenação, que, ao ser questiona-
da sobre o programa adotado pela escola e por todo o município, o Programa Alfabetizar com Suces-
so, nos diz que no referido programa “Tem dizendo como trabalhar com Arte, mas que isso é mais para
ser feito no Mais Educação e que não é muito trabalhado na sala” (Funcionária Coordenação, Diário
de Campo, 15/09/2015).

Diante deste contexto, concordamos com Figueiredo (2010), quando nos aponta que

220
A quantidade de atividades extracurriculares que envolvem música nas escolas através de projetos
diversos estabelece um impasse importante para a implementação da lei 11.769/08. Tais atividades
e projetos podem ser relevantes, mas o que a nova lei estabelece é que o acesso à educação musical
deverá ser democrático, ou seja, para todos. (FIGUEIREDO, 2010, p. 05).

Assim, percebemos que os projetos têm, sim, grande importância para a formação das crianças,
mas também entendemos a importância de considerar a Música como área de conhecimento den-
tro do currículo escolar na rede regular, de forma que todos possam ter acesso ao seu ensino no
currículo e na sala de aula, não apenas por meio de projetos e de momentos no contra turno das
aulas regulares.

Outro dado que se apresentou com relevância durante a observação foi quanto ao fato da Música
ser usada apenas como suporte nas apresentações da escola; fato que foi citado em diversas falas das
docentes: “O que se trabalha da Música é muito pouco, só para apresentações da escola” (Docente 4º
Ano, Diário de Campo, 28/07/2015). “Não trabalho com Música, que a Música é mais no projeto Mais
Educação, ou quando tem apresentação na escola. Eu já fiz só um trabalho com pesquisa sobre os tipos
de Música” (Docente 5º Ano, Diário de Campo, 28/07/2015).

Desse modo, vemos que a Música contribui para a aprendizagem e para a interação, porém, não se
atende, não se apreende, não se trabalham as especificidades desta área enquanto linguagem específi-
ca, colocando-a como suporte, embora muito importante, mas que fica em segundo plano dentro do
contexto e do momento em que é trabalhada.

Outro fato que se destaca quanto à observação é com relação à existência da Banda Marcial da
escola, que é composta por estudantes da unidade escolar e por pessoas de fora da escola, ensaia-
da por um instrutor que não faz parte do corpo docente da escola. Pelo que percebemos, a banda
não tem um espaço de aprendizagem regular, de acordo com o currículo e o tempo curricular da
escola. Os ensaios ocorrem no fim da tarde, de forma alternada, durante a semana, e se inten-
sificam próximo ao período de 07 de setembro. Porém, percebemos que não há um trabalho de
ensino de Música concreto, apenas ensinamentos e explicações sobre ritmos e toques, por meio
do “boca a boca” e do exemplo, repetição e memorização, o que não podemos apenas descon-
siderar, porém, não se caracteriza como ensino de Música propriamente dito, e vai de encontro
ao que está disposto na Lei 11.769/2008. Assim, concordamos com que nos aponta Figueiredo
(2010), quando nos aponta que

Muitas escolas possuem corais, bandas e outros grupos que envolvem música, tendo como minis-
trantes, músicos que não possuem, necessariamente, formação pedagógica. Assim, diversos contex-
tos educacionais optam por estas atividades através de projetos. (FIGUEIREDO, 2010, p. 05).

Diante desta perspectiva, percebemos que o acesso ao ensino, ou ao contato com a Música de forma
mais concreta fica comprometido tanto com relação à aprendizagem de sua linguagem específica
quanto ao próprio acesso a ela, pois estes projetos e bandas não conseguem atender a todos os es-
tudantes, da forma que o ensino regular conseguiria atender se fosse trabalhada a Música enquanto
disciplina obrigatória do currículo escolar, como está descrito na Lei 11.769/2008.

221
Com relação à prática docente, o que os dados da observação nos apontam é que esta não trabalha
nem envolve elementos da Música nem de seu ensino em sala de aula. As aulas mantêm certa exclusi-
vidade com relação às disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.

Durante a semana de observação, foi realizada apenas uma aula de Ciências e o restante foram aulas
de Português e Matemática alternadas. Perspectiva esta que também está presente na própria or-
ganização da escola e na fala da docente, quando a mesma nos diz que “o planejamento é de acordo
com o que vem determinado no programa Alfabetizar com Sucesso, mas a secretaria sempre diz para ir
priorizando Matemática e principalmente Português” (Colaboradora 1, Diário de Campo, 30/07/2015).

Diante de todos os dados colhidos e analisados, percebemos que o ensino de Música não está pre-
sente na prática docente nem na escola, da forma que se espera, especialmente de acordo com a Lei
11.769/2008, e que parece ainda nos faltar muito para termos em nossas escolas o espaço, a organi-
zação e a estrutura para termos um ensino de Música que considere sua linguagem de forma mais
significativa para a aprendizagem.

Tivemos, como objetivo específico, analisar o currículo da escola e também o planejamento da docente da
sala em que fizemos a observação, porém, apenas tivemos, como documento concreto para esta análise, o
currículo, pois a docente nos relatou que não segue um planejamento específico, que segue basicamente
o que está no Programa Alfabetizar com Sucesso, que é adotado por toda a rede pública municipal da
cidade de Altinho-PE, e que, embora não goste muito do referido programa, o adota, sempre buscando
atender às ordens da gestão, que diz para priorizar as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.

Com base na análise do principal documento que nos serviu de fonte, o currículo de Arte da turma do
5º Ano, do Programa Alfabetizar com Sucesso, constatamos que este é organizado de forma bimestral
e traz as seguintes categorias: Campos ou Eixos, onde estão elencadas as quatro linguagens artísticas,
Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, respectivamente; Conteúdos, em que encontra-se presente o
que deve ser trabalhado; Expectativas de Aprendizagem na qual estão descritas as aprendizagens a
serem alcançadas e; a categoria de Orientações de Ensino, onde se encontram descritas orientações
de como os docentes devem trabalhar as referidas temáticas do currículo. O primeiro aspecto que se
destaca é quanto ao fato de haver as quatro linguagens agrupadas dentro de uma mesma disciplina,
fazendo referência, inclusive, à polivalência no ensino de Arte.

O currículo de Arte do 5º Ano do Programa Alfabetizar com Sucesso traz como conteúdos para o
trabalho com a Música, durante os bimestres, os seguintes temas, respectivamente: 1) Apreciação
Musical, que tem como expectativas de aprendizagem Vivenciar como fruidor, experiências mu-
sicais; 2) Características da Produção Musical, que tem como expectativas de aprendizagem (Re)
conhecer características da produção musical de Pernambuco; 3) Contextualização e Produção
Musical junto com as expectativas de aprendizagem baseadas em Conhecer e contextualizar produ-
ções musicais; e por fim, traz o conteúdo 4) A Vivência na Música e como expectativas Correlacio-
nar significativamente vivências em música e experiências de vida.

Embora tenhamos analisado o currículo apenas de uma turma, e diante do que os dados nos apon-
tam, percebemos que os conteúdos e expectativas são coerentes e abordam questões realmente im-

222
portantes para o ensino de Música, como as questões de apreciação e produção musical, além de
trazer, também, a relação da Música com as experiências de vida. Porém, percebemos que estes temas
não aprofundam concretamente questões ligadas ao conteúdo específico da Música, e, especialmente
quando analisamos a categoria de Orientações de Ensino, percebemos que estas orientações tratam
de forma muito breve o que e como os professores devem trabalhar com o ensino de Música, trazen-
do dicas de atividade que pouco aprofundam ou contribuem para que o ensino da Música, enquanto
linguagem musical – enquanto a musicalização – ocorra de fato no espaço escolar regular.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a realização desta pesquisa, podemos perceber que a Música e seu ensino não estão presentes na
prática nem no planejamento docente e que a Música, não como ensino propriamente dito, de acordo
com suas especificidades e enquanto linguagem musical, mas como passatempo, por meio de apresen-
tações nas festividades da escola, como projetos, bandas marciais para o desfile cívico de 07 de setembro
e momentos que envolvem Música fora do currículo ou do turno regular, é o que mais prevalece como
visão de trabalho com a Música dentro do contexto escolar.

Assim, respondendo à nossa principal questão neste trabalho, constatamos que o que tem sido feito
como trabalho de prática docente neste contexto pesquisado não contribui para a aprendizagem das
especificidades da Música enquanto linguagem musical, e não trabalha o ensino da Música propria-
mente dito, não abordando seus pressupostos e especificidades, ficando resumido, ainda, a apresenta-
ções em festividades e mero apoio em outras atividades.

Entretanto, também percebemos um ponto bastante positivo diante deste contexto, que é justamente a
presença da Música dentro do currículo de Arte do programa Alfabetizar com Sucesso, adotado pela
rede pública municipal da cidade, não de forma aprofundada, tratando de suas especificidades enquanto
linguagem musical, que ensine notas, tons, ritmos, melodias, técnicas, e muitos outros elementos pre-
sentes na Música, e nem como garantia real e fiel de que o que está no papel será realmente trabalhado,
mas, já podemos considerar como um avanço importante, no qual temos que nos agarrar e fazer o má-
ximo para colocar em prática, aprimorar e aprofundar ao máximo, para que possa trazer os benefícios
para a educação como um todo e que possa ser percebida a importância que a Arte, de forma geral, e
também a Música, de forma específica, tem na vida das pessoas, especialmente de nossas crianças, que
estão em processo de desenvolvimento e formação, para um mundo cheio de vida, sons e possibilidades.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Claudia Helena; MAZZOTTI, Tarso Bonilha. Educação musical e legislação: reflexões acerca do
veto à formação específica na Lei 11.769/2008. Opus, Porto Alegre, v. 17, n. 1, jun. 2011, p. 51-72.
FIGUEIREDO, Sérgio Luiz Ferreira de. O processo de aprovação da Lei 11.769/2008 e a obrigatoriedade da
música na Educação Básica. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO. 15., 2010.
Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: ENDIPE, 2010.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. Prática docente universitária e a construção coletiva de conhecimentos: pos-
sibilidades de transformações no processo ensino-aprendizagem. Cadernos Pedagogia Universitária, Universi-
dade Católica de São Paulo, São Paulo, set. 2009.

223
FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de conteúdo. 3. ed. Brasília: Liber Livro Editora, 2008.
LIMA, Ailen Rose B. de; STENCEL, Ellen de Albuquerque B. Vivência musical no contexto escolar. Música na
educação básica, Porto Alegre, v. 2, n. 2, set. 2010.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio da pesquisa social. In. DESLANDES, Suely Ferreira. Pesquisa so-
cial: teoria, método e criatividade. 26. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007.
SEVERINO, Antônio Joaquim. 1941 – Metodologia do trabalho científico. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
TEZANI, Thaís Cristina Rodrigues. As interfaces da pesquisa etnográfica na educação. 2004.
VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Planejamento: Plano de ensino-aprendizagem e projeto educativo - ele-
mentos metodológicos para elaboração e realização. São Paulo: Libertad. 1995. (Cadernos Pedagógicos do Li-
bertad, v.1)
______ Currículo: a atividade humana como princípio educativo. São Paulo: Libertad, 2009. (Coleção Cadernos
Pedagógicos do Libertad, v.7).

224
Ensino dialógico de teatro:
apontamentos para/sobre uma
proposta pedagógica
Ildisnei Medeiros da Silva

INTRODUÇÃO

A ideia da problematização desta temática surge das inquietações percebidas ao longo do Curso de
Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e também como
parte integrante do desenvolvimento da minha pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da UFRN. As inquietações versam sobre o Ensino de Teatro e a educação de maneira mais
ampla, como o ensino é pensando e articulado às realidades dos alunos, de fato, e não apenas enquan-
to discurso proferido em reuniões pedagógicas.

Diante do quadro visto durante as observações e práticas realizadas dentro das escolas durante os
estágios e como bolsista do Pibid-Teatro/UFRN, corroboro do pensamento de Libâneo (1994), acre-
ditando que o ensino deve versar por uma educação democrática e que caminhe rumo à emancipação
dos sujeitos em relação à sociedade em que vivem, sendo capazes de pensar sobre ela e intervir na
mesma na luta por transformações, e que tal ideal deve nortear e influenciar a concepção de currículo,
as práticas pedagógicas e todas as atividades desenvolvidas no âmbito escolar.

Percebendo que os objetivos, os conteúdos e as práticas de ensino são determinados por fins e exigên-
cias sociais, políticas e ideológicas, pelos valores e peculiaridades da sociedade a que está subordinada,
acredito ser preciso investigar a fundo o que está sendo proposto em nossos referenciais curriculares,
nos documentos oficiais, e pensar um ensino que não verse pelos objetivos da classe dominante, mas que
prepare os sujeitos menos favorecidos para este mundo, versar por uma educação democrática, tanto no
atendimento de qualidade às classes menos favorecidas, quanto na democracia em sala de aula e na es-
cola, na relação entre alunos, professores, coordenação e demais agentes que compõem essa instituição.

Em relação ao Ensino de Teatro, mais especificamente, tenho considerado, a partir das vivências,
falho, na medida em que perde, muitas vezes, um elemento que, para mim, é intrínseco ao Teatro:
sua essência pedagógica. Acredito que o Teatro tem o poder de gerar reflexão, de fazer os sujeitos se
colocarem numa postura crítica e enfática perante a sociedade que os cerca, mas não percebo que

225
isso esteja sendo considerado, pelo contrário, a maioria dos alunos é levada simplesmente a repetir e
reproduzir conteúdos e técnicas sem problematizá-las.

Através das experiências anteriormente citadas, consegui perceber isso claramente, seja na forma de
planejamento dos professores – quando existe planejamento –, seja na forma que as gestões escola-
res percebem essa disciplina enquanto componente curricular obrigatório. Valendo salientar que, na
Cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte, desde 2009, através da Resolução nº 06/2009 do
Conselho Municipal de Educação, que estabelece a matriz curricular para o Ensino Fundamental, o
Ensino de Artes encontra-se dividido, obrigatoriamente, em quatro linguagens artísticas: Artes Visu-
ais, Dança, Música e Teatro.

Além disso, também encontra outras barreiras em sua realização. Aliado às falhas de alguns profis-
sionais ao exercerem a docência, tem-se o senso comum de que estudar Teatro é estar em cima de
um palco atuando, pura e simplesmente, de que a figura de um diretor teatral é aquela do sujeito
que manda e desmanda a prática dos atores, e que as outras esferas do fazer teatral, como figurino,
maquiagem, iluminação, cenografia, dramaturgia, são apenas complementares, e a visão limitada do
que são e quais são as formas espetaculares. E isso é facilmente percebido quando em algumas escolas
encontramos aulas de Teatro que objetivam apenas a construção de uma encenação pelos alunos, a
ser apresentada nas festividades da escola, por exemplo, sem considerar estas demandas.

Em sua tese de doutoramento, Araújo (2005) apresenta alguns aspectos a serem superados pelo que
chama de “senso comum pedagógico”, objetivando:

Operar mudanças de atitudes em relação a aspectos tais como: abordagens etnocêntricas do fenô-
meno teatral que empobrecem suas múltiplas dimensões históricas e culturais; a idéia de encenação
como resultado de um processo centrado na figura do diretor; visão fragmentada dos diferentes
elementos que compõem o fenômeno teatral; visão monocêntrica do processo de criação teatral, pri-
vilegiando um elemento em relação aos demais; reprodução acrítica de experiências sistematizadas
por investigadores e artistas teatrais; atitudes reducionistas que atribuem à falta de talento as dificul-
dades encontradas por uma pessoa no exercício da atividade teatral; abordagens descontextualizadas
de peças teatrais; descaracterização das especificidades da linguagem teatral forçando comparações
com o Cinema e a TV; redução dos processos de ensino de teatro na escola a mera produção de “pe-
cinhas teatrais”; deslocamento do ensino de teatro na escola para fora da rotina curricular circuns-
crevendo-o ao âmbito das atividades extracurriculares. (ARAÚJO, 2005, p. 31).

Essa situação talvez ocorra, e isso merece investigação, pela deficiente orientação dos Referenciais
Curriculares aos quais os professores têm acesso.

Sobre a atuação docente e os Parâmetros Curriculares Nacionais-Arte, estabelecidos pela Secretaria de


Educação Fundamental do Ministério da Educação e do Desporto do Brasil, em 1997, Maura Penna
(2001) aponta que problemas ocorrem por esses parâmetros não estabelecerem uma sequência de con-
teúdos, deixando os professores com grande liberdade nas suas decisões do que trabalhar e como traba-
lhar, não referenciando questões relacionadas aos conteúdos e nem à organização da prática pedagógica.

E, a autora afirma, ainda, que não se trata apenas de liberdade, mas de uma responsabilidade deixa-
da nas mãos dos profissionais docentes, cabendo a eles a decisão de fazer algo pela educação, e pela

226
aprendizagem e desenvolvimento de seus alunos em relação à vida e à sua área específica de arte ou
não, simplesmente relega a eles o direito deste desenvolvimento e do conhecimento estético e a vivên-
cia artística (PENNA, 2001).

Em contrapartida, o município de Natal possui, desde 2008, seus próprios Referenciais Curriculares
para o Ensino Fundamental, inclusive para a área de Artes, elaborado pela Secretaria Municipal de
Educação da Prefeitura da Cidade do Natal, e estes trazem detalhadamente a divisão de conteúdos de
cada linguagem artística para cada ano letivo: Ensino de Artes Visuais (1º, 2º e 6º anos), Ensino de
Dança (5º e 8º anos), Ensino de Música (3º e 7º anos) e Ensino de Teatro (4º e 9º anos).

Estes referenciais parecem ter sido construídos considerando os termos de políticas educacionais de
meados da década de 90 no Brasil, que estavam diretamente relacionadas ao quadro neoliberal que
se desenhava no mundo, e que começava a se apresentar na política brasileira, pois, apesar de negar
isso em sua apresentação, sendo colocado como instrumento norteador, não obrigatório, traz em
sua escrita e seleção de conteúdos uma visão centralizadora e uniformizante. O que é preocupante,
na medida em que, como aponta Sousa (2010), as escolas têm tido muita dificuldade no quê e como
ensinar, e por isso apresentam uma relação falha de ensino-aprendizagem. E que isso se dá, pelo fato,
de as propostas curriculares não pensarem as necessidades culturais dos alunos e a sua realidade.

A evidente necessidade de repensar as práticas pedagógicas e os currículos está diretamente ligada à


relevância de prezar por uma Educação Dialógica. Só é possível pensar em algo novo se temos uma
observação e/ou vivência de algo anterior, e uma reflexão sobre tal, que é exatamente o que uma das
etapas da prática educativa dialógica, proposta por Pernambuco e Paiva (2005; 2013), o Estudo da Re-
alidade, apresenta como fazer, além de, a partir disso, ser possível organizar e aplicar o conhecimento
de modo que essa prática pedagógica preze pela troca de saberes entre professores e alunos, o encon-
tro destes para problematizar a sua realidade, a construção do conhecimento entre esses sujeitos.

1. METODOLOGIA

O desenho investigativo do trabalho que se apresenta nos conduziu a pensar uma abordagem meto-
dológica que não expusesse apenas o Diálogo Freireano e sua relação com o Ensino de Teatro apenas
como objeto do estudo, mas como um fundamento para a realização de toda pesquisa. Desse modo,
foi preciso compreender como realizar esta pesquisa e que referências metodológicas mais se aproxi-
mariam de um trabalho nesse sentido, que não seria apenas de descrever uma prática, de estudar um
caso, mas de dialogar com os sujeitos e construir a pesquisa junto com eles.

A partir da compreensão de que em uma pesquisa participante cujo movimento constante e dialé-
tico de ação-reflexão-ação pretende existir, ela foi a escolhida, e decidimos junto a esta decisão, de
fato, assumir o diálogo freireano não apenas como objeto de estudo a ser problematizado, mas como
fundamento epistemológico do projeto, das ações e da construção das práticas com os integrantes do
PIBID-Teatro/UFRN e com os demais agentes envolvidos nesse processo.

Nesse sentido, a investigação desenvolve um trabalho conjunto com os envolvidos, contando com a
“dialogicidade” e a “abordagem problematizadora” como fundamentos metodológicos mobilizadores
para a construção de conhecimentos.

227
Por meio de uma pesquisa participante, num constante movimento de ação-reflexão-ação, e fazendo uso
de alguns instrumentos da etnografia escolar, como a observação participante, entrevistas não estrutura-
das, e registros infográficos e textuais, é que se tem trilhado e construído o caminho dessa pesquisa, vi-
venciando e questionando essa experiência. Desse modo, os referenciais teóricos desta escrita se situam
nos trabalhos de Paulo Freire no que se refere, principalmente, à educação dialógica, nas sistematizações
pedagógicas do Grupo de Estudos e Práticas Educativas em Movimento (GEPEM/UFRN), e nas produ-
ções do Laboratório de Estudos Cenográficos e Tecnologias da Cena (CENOTEC/UFRN), no que diz
respeito à construção de um processo educativo que considera as realidades dos sujeitos, estabelecendo
relações entre essas realidades e os conhecimentos específicos da área ensinada, relações entre a área
específica e outras áreas do conhecimento, e reconhecendo a escola como espaço de diálogo.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Na perspectiva da Educação Dialógica, que tem suas bases no que Paulo Freire apresenta em relação
ao diálogo na prática educativa, compartilho do pensamento de Freire (2007), entendendo-a como
a troca de saberes entre professores e alunos, o encontro dos seres humanos para refletir sobre sua
realidade, como a fazem e refazem, por essa ideia convergir diretamente para a compreensão dos seres
humanos como seres históricos e produtores de cultura (FREIRE, 2000), e na qual é papel do educa-
dor criar meios de compreensão das realidades políticas e históricas que deem origem a possibilidades
de mudanças por parte do corpo discente (FREIRE, 2001).

Antes de prosseguir na discussão, acho necessário evidenciar sob qual conceito de realidade estou
pautando minha ideia, tendo em vista que essa prática dialógica está interligada ao ensino que consi-
dera a realidade do corpo discente.

Nesse sentido, trabalho com a compreensão do conceito de realidade defendido por Duarte Júnior
(2011), que compreende a realidade como plural, ou seja, realidades, pois “existem diferentes manei-
ras de se apreender o mesmo objeto: em cada uma delas o quadro possui uma realidade diversa” (DU-
ARTE JÚNIOR, 2011, p.10), portanto, a realidade como dado de percepção e construção, variando
pelos sujeitos que a percebem e constroem.

O autor entende ainda a realidade como socialmente edificada e dependente de como o conhecimento
é disposto na sociedade, sendo as estruturas sociais construídas sobre a gama de conhecimentos de
que se dispõe socialmente, do grau de consciência sobre a realidade. Duarte Júnior (2011) afirma o
homem enquanto construtor da realidade, mas que ele não se percebe assim, de maneira que se coloca
na posição de submetido à realidade, sendo conduzido pelas forças naturais e sociais sobre as quais ele
não tem e não pode vir a ter controle.

Esse conceito de realidade me parece plausível, na medida em que é possível relacioná-lo diretamente
ao pensamento de Paulo Freire, dos seres humanos como fazedores de sua própria história, ou seja, de
sua realidade, e por isso capazes de pensar sobre ela e modificá-la.

Acredito que perspectiva educacional que reconhece a realidade dessa forma e procede de modo a mu-
dar o quadro de “submissão à realidade” através do diálogo em sala de aula é a Educação Dialógica e, so-
bretudo, a proposta elaborada e posta em prática pelo Grupo de Estudos e Práticas Educativas em Movi-

228
mento da UFRN (GEPEM/UFRN), coordenado pela Prof.ª Dr.ª Marta Maria Pernambuco, cujo grupo é
citado, e as obras publicadas pelos participantes do mesmo são referências primordiais dos trabalhos do
Centro de Educação da UFRN, que versam sobre o Estudo da Realidade Escolar e Práticas Pedagógicas
Freireanas, como pude constatar na realização do Estado da Arte para minha pesquisa da dissertação.

O grupo defende uma prática educativa dialógica em 3 momentos: primeiro, o Estudo da Realidade,
a fase de levantamento da realidade, análise da situação e problematização, questionando os modelos
explicativos propostos sobre ela; o segundo, a Organização do Conhecimento, onde os conteúdos for-
mais são enfatizados, em confronto com a problematização inicial, buscando uma nova concepção
das situações analisadas e introduzindo novos elementos que ampliem a compreensão de determi-
nada problemática; e terceiro, a Aplicação do Conhecimento, fase na qual a partir do conhecimento
organizado é possível reler e reinterpretar a realidade, além de extrapolar para novas situações que
gerem novas problematizações. (PERNAMBUCO e PAIVA, 2005; 2013).

A partir destes três momentos, a Educação Dialógica ainda é subdividida no GEPEM/UFRN em 6 eta-
pas: a primeira é realizada pelos educadores, o estudo preliminar da realidade; a segunda é a escolha
de possíveis situações significativas identificadas na etapa anterior pelos professores; a terceira reúne
educadores, a equipe da escola, a comunidade e os alunos em círculos de investigação temática sobre
as situações significativas identificadas; a quarta etapa são as definições de temas geradores a partir das
situações identificas pelos educadores, primeiro em conjunto e depois divididos por área; a quinta eta-
pa consiste na problematização e construção do programa das disciplinas por série a partir dos temas
geradores; e a sexta etapa é preparação e aplicação das aulas. (PERNAMBUCO e PAIVA, 2005; 2013).

Desse modo, o GEPEM/UFRN desenvolve suas práticas educativas entendendo que:

O ponto de partida do nosso fazer pedagógico deve ser conhecer a realidade dos sujeitos envolvidos
no processo educativo, o que significa conhecer suas experiências familiares, sua comunidade, suas
estratégias de sobrevivência, seus conhecimentos, suas expectativas, suas formas de lazer, pois tais
elementos orientam suas condutas nos diversos espaços da vida social, seja na escola, seja na comuni-
dade, constroem interpretações e explicações sobre as coisas. (PERNAMBUCO e PAIVA, 2005, p. 3)

Logo, nessa proposta dialógica de trabalho educativo, os conhecimentos específicos de cada área de-
vem ser relacionados aos demais conhecimentos de áreas componentes do currículo escolar e as de-
mandas apontadas pelo estudo da realidade local.

Para Araújo (2005), essa concepção de prática pedagógica construída sob a égide do pensamento de
Paulo Freire, no âmbito da alfabetização de jovens e adultos, vem se tornando, na produção desses
autores acima citados, uma referência cada vez mais acessível a outros campos do conhecimento
(ARAÚJO, 2005, p. 97).

Portanto, revela-se possível o desenvolvimento de um trabalho, como este relacionado ao Ensino de


Teatro, se este for entendido na perspectiva de Araújo (2005), que trata o Ensino de Teatro como um
ato de construção e não apenas de assimilação, tendo como base conhecimentos que possibilitem
rupturas e ampliações de concepções iniciais, de modo que os objetivos do ato de ensino estejam
articulados ao contexto no qual se dará a prática educativa.

229
Após essa exposição das ideias que norteiam meu pensamento para a pesquisa sobre a relação indis-
sociável da prática pedagógica e da realidade escolar, irei, a partir de agora, discutir o que acredito ser
pertinente para que se pense o Ensino de Teatro em diálogo com Paulo Freire. Contudo, o que irei
expor, em momento algum, quer se propor como um modelo a seguir, seguido à risca, pois isso iria
de encontro à principal ideia de que o ensino de qualquer que seja a disciplina deve estar diretamente
relacionado à realidade escolar e por isso é preciso organizar propostas diferenciadas e flexíveis.

A proposição desse diálogo parte da própria compreensão do pensamento de Paulo Freire, que destaca
o educando como sujeito do conhecimento, a urgência do diálogo entre a escola e as realidades, entre
professores e alunos, a convivência solidária, a importância da ética e da estética, e a rigorosidade do
trabalho com os conceitos jamais separados do desvelamento da realidade, entendendo que “educação e
arte guardam a possibilidade de trabalhar a favor da emancipação” (SAUL, 2011, p. 15).

Lendo Desgranges (2003), é possível compreender como o Teatro pode se revelar um meio impor-
tante para entender a realidade, a vida cotidiana, de maneira mais enfática e crítica, numa sociedade
espetacularizada como esta em que vivemos.

Desgranges (2003) evidencia a importância de adquirir instrumentos linguísticos na sociedade con-


temporânea que auxiliem o desenvolvimento do pensamento crítico. E, conforme afirma Saul (2011),
a prática teatral, numa perspectiva crítica de educação, possibilita aos educandos “que estes se sintam
estimulados por uma nova linguagem, ampliem sua percepção estética e adquiram conhecimentos
que potencializem sua possibilidade de leitura e transformação do mundo” (SAUL, 2011, p. 20).

Sob essa ótica, é preciso conceber que são necessárias algumas ampliações e mudanças no Ensino de
Teatro que está posto, que privilegia por vezes o desenvolvimento de um trabalho centrado na figura
do ator, voltado para o jogo teatral, pois ele não atende a todas as demandas que se apresentam. É
comum encontrar materiais disponíveis no mercado relacionados ao Ensino de Teatro, que se pro-
põem como práticas pedagógicas, mas que versam apenas sobre o trabalho com jogos teatrais em sala
de aula. Não critico o uso dos jogos. São necessários e possuem sua importância, mas considero que
existe uma série de outros procedimentos metodológicos que podem/devem ser pensados e postos
em prática ao longo do tempo. Percebendo que cada um possui objetivos específicos na educação, não
faz sentido não os utilizar em detrimento de outro, somente.

Alves (2001) evidencia que no Ensino de Teatro é importante balancear teoria, prática e apreciação,
de modo que a aprendizagem de teatro englobe todas as possibilidades inerentes ao fazer teatral, o
que inclui a prática teatral, a apreciação de espetáculos e contextualização histórica.

Corroborando desse pensamento, considero de grande importância pensar práticas de sala de aula
para o Ensino de Teatro que façam uso de procedimentos metodológicos que Haydt (2006) chama
de individualizantes, socializantes e socioindividualizantes; uma prática inovadora, e que amplia as
práticas das aulas de Teatro.

Os métodos individualizantes de ensino são aqueles que prezam por um atendimento às diferenças
individuais, e são adequados ao nível de maturidade e ritmo de aprendizagem, estando relacionados

230
ao esforço individual do aluno, e exemplos deles são as aulas expositivas e o estudo dirigido. Os pro-
cedimentos socializantes valorizam a interação social, versando por ideais de cooperação e respeito.
Este tipo de procedimento está voltado para os trabalhos em grupo, que colocam duas ou mais pesso-
as em função de um objetivo comum, planejando juntas, dividindo tarefas, trocando ideias. E os pro-
cedimentos socioindividualizantes são aqueles que relacionam os dois procedimentos anteriormente
citados, de modo a articular os objetivos de ambos de forma mais concreta (HAYDT, 2006).

Para saber quais procedimentos utilizar em cada situação, Haydt (2006) faz uma consideração muito
importante, de que esse reconhecimento se dá a partir da percepção de qual deles irá auxiliar os alu-
nos a incorporar os conhecimentos de forma mais ativa e em consonância com a realidade observada,
e que é somente após esta percepção que se pode encontrar qual recorte no conteúdo deverá ser feito
para atender às necessidades do corpo discente.

Então, revela-se aplicável o pensamento de escolha de procedimentos metodológicos de Haydt no


Ensino de Teatro na fase de organização do conhecimento da Educação Dialógica, tendo em vista que
antes de pensar conteúdos e os procedimentos, é preciso estudar as realidades. Valendo salientar, que
tudo isso não terá valia se o educando não for colocado como construtor do conhecimento e fazedor
de sua própria história, e se a realidade não for de fato problematizada e servir apenas de ilustração
para as aulas. Conforme afirma Freire (1987), “o educador dialógico tem como uma de suas tarefas,
devolver o universo temático recolhido na investigação, como problema, e não como dissertação, aos
homens de quem recebeu” (FREIRE, 1987, p. 102).

Para Araújo (2005), os processos pedagógicos de Teatro que abordam tanto o ensino quanto a apren-
dizagem, numa perspectiva dialógica, precisam ser capazes de:

Perceber quão necessário os alunos consideram aprender um determinado conhecimento, para além
da relevância daquele campo de conhecimento para a humanidade; problematizar os conhecimentos
que os sujeitos da educação já trazem sobre o assunto a ser trabalhado; refletir acerca dos instrumen-
tos e conhecimentos que possibilitem rupturas e ampliações de concepções iniciais; sistematizar no-
vas construções de conhecimento, fruto das interações e reflexões geradas no processo pedagógico.
(ARAÚJO, 2005, p. 92)

Baseando-se no diálogo de Paulo Freire, e em Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002), que propõem
uma prática educativa dialógica, organizada em momentos pedagógicos específicos para as diferentes
etapas de um processo de ensino e aprendizagem – estudo das realidades, organização do conheci-
mento, e aplicação do conhecimento –, conforme apresentado anteriormente, Araújo (2005) propõe
que, metodologicamente, os conteúdos de Teatro sejam abordados numa perspectiva problematiza-
dora, “construída através de um diálogo organizado entre os objetivos pedagógicos da disciplina, os
interesses e curiosidades dos alunos e o conhecimento universalmente acumulado na área” (ARAÚ-
JO, 2005, p. 96).

Além disso, em sua tese de doutoramento Araújo (2005) apresenta pontos em comum entre os crité-
rios de organização e propostas pedagógicas que compõem o trabalho dos pesquisadores do GEPEM/
UFRN e as propostas pedagógicas e sistematizações do trabalho teatral de nomes como Viola Spolin
e Augusto Boal.

231
Em relação a Viola Spolin, o autor aponta que sua “valorização de processos de ensino de teatro calcados
na conscientização gradativa que os sujeitos possam desenvolver acerca das técnicas teatrais, mediante
a solução e avaliação de situações cênicas organizada por meio de jogos teatrais” (ARAÚJO, 2005, p. 98)
pode ser relacionada ao pensamento dos pesquisadores do Grupo de Estudos e Práticas Educativas em
Movimento da UFRN, tendo em vista que o grupo considera o ensino como “um processo de constru-
ção do conhecimento, que se dá a partir da prática da mobilização dos sujeitos em torno de problemati-
zações geradas por temas oriundos das realidades dos alunos” (ARAÚJO, 2005, p. 98).

Quanto a Boal, o autor relaciona a defesa da necessidade de práticas teatrais e seu ensino como instru-
mentos para o sujeito transformar o meio onde atua, deste, com a defesa de práticas educativas trans-
formadoras, do conhecimento como ação, dos autores Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002).

Nesse quadro, Araújo (2005) revelou-se para mim o autor que traz uma reflexão mais cara sobre a
relação entre Educação Dialógica e Ensino de Teatro, tratando-o como um ato de construção e não
apenas de assimilação, tendo como base conhecimentos que possibilitem rupturas e ampliações de
concepções iniciais, de modo que os objetivos do ato de ensino estejam articulados ao contexto no
qual se dará a prática educativa. Além disso, por estruturar o estudo das práticas teatrais em três eixos:
questões do texto, questões do corpo e questões do espaço, de modo que nenhum eixo do fazer teatral
seja subjugado em função de outro, trazendo à tona, neste ensino, Cenografia e Tecnologias da Cena,
por exemplo, trabalha na perspectiva de ampliação deste ensino nas escolas.

Partilhando do pensamento de Araújo (2005), afirmo que um Ensino de Teatro dialógico, pelas pos-
sibilidades de construção que apresenta, por perceber que a natureza iminentemente coletiva do fazer
teatral, a dimensão multidisciplinar, a capacidade de reunir o universal e o particular numa mesma
representação, tudo isso possibilita que as práticas teatrais sejam um espaço de ressignificação dos
sujeitos em relação a si, aos outros e ao mundo. (ARAÚJO, 2005, p. 103).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da pesquisa desenvolvida, coadunamos com o pensamento de Taís Ferreira (2012), porque
ela consegue expor a evidente necessidade na qual acredito, de que a cultura prevalente, essa que
os alunos já levam para a sala de aula, deve ser considerada no processo educativo, pois ela será
anterior a qualquer outro conhecimento que possa ser construído no ambiente escolar. E que isso
contribui diretamente na compreensão do educando como sujeito histórico, fazedor de sua própria
história, sendo, portanto, um agente que pode interferir nas realidades e não estar meramente su-
jeito a elas.

Nesse sentido, acredito que um Ensino Dialógico de Teatro, pensando a partir das reflexões sobre as
vivências no âmbito do PIBID-Teatro/UFRN e das referências citadas ao longo desta escrita, deve
considerar essa cultura prevalente, sem esquecer que existem objetivos e conteúdos que são próprios
a esta arte e precisam/devem ser trabalhados na escola, estabelecendo as devidas conexões com ob-
jetivos maiores e temas mais amplos necessários à compreensão crítica das realidades e que, estas
também sugerem aos alunos determinados conhecimentos acerca de características e especificidades
do Teatro, de uma batalha de compreensão das realidades que é travada no campo da linguagem.

232
Enfatizando a importância disto, Desgranges (2003) entende a sociedade contemporânea como es-
petacularizada. Nesse sentido, acredito que a prática teatral, numa perspectiva crítica de educação,
possibilita aos educandos que estes se sintam estimulados por uma nova linguagem, ampliem sua
percepção estética e adquiram conhecimentos que potencializem sua possibilidade de leitura e trans-
formação do mundo.

Sob a ótica do pensamento freiriano, relacionando-o à arte teatral, entendo que a educação e a arte
guardam a possibilidade de trabalhar a favor da emancipação, percebendo o Teatro como uma forma
criativa, alegre e combativa de aprender, revelando-se como um auxiliar na desmistificação de símbo-
los e no desvelamento dos códigos da ideologia dominante presente na contemporaneidade. Diante
disso, na busca por um Ensino Dialógico de Teatro, que se proponha transformador, capaz de contri-
buir na formação de sujeitos críticos e que leem as realidades considerando-se parte delas e criadores
das mesmas, precisamos de um ensino que considere o Teatro como linguagem, como construção
cultural e que reconheça o lugar de fala dos participantes do processo educativo.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, José Sávio de Oliveira. A cena ensina: uma proposta pedagógica para formação de professores de
teatro. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2005.
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.
DUARTE JÚNIOR, João Francisco. O que é realidade. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.
FERREIRA, Taís. Teatro na sala de aula, no pátio, na biblioteca, no auditório, na rua... In: FERREIRA, Taís;
FALKEMBACH, Maria Fonseca. Teatro e Dança nos anos iniciais. Porto Alegre: Mediação, 2012, p. 9-57.
FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001.
______. Política e Educação. 8. ed. rev. Ampl. Indaiatuba/SP: Villa das Letras Editora, 2007.
HAYDT, Regina Célia Cazaux. Curso de didática geral. São Paulo: Editora Ática, 2006.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.
PENNA, Maura. A Orientação geral para a área de arte e sua viabilidade. In: ALVES, Erinaldo, SANTANA,
Arão Paranaguá de. Este é o ensino de arte que queremos? Uma análise das propostas dos Parâmetros Curri-
culares Nacionais. João Pessoa: Editora Universitária, Programa de Pós-graduação em Educação, Centro de
Ciências Humanas Letras e Artes da UFPB, 2001, p. 31-55.
PERNAMBUCO, Marta Maria; PAIVA, Irene Alves de. Caderno didático 1: pesquisando as expressões da lin-
guagem corporal; (Artes e Educação Física). Natal: Paidéia/UFRN, 2005.
______. (Orgs.). Práticas coletivas na escola. Campinas: Mercado das Letras; Natal, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, 2013.
SAUL, Alexandre Pinto. Prática teatral dialógica de inspiração freiriana: uma experiência na escola, com jovens
e adultos. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São
Paulo, 2011.

233
Uma pedagogia do teatro popular:
uma experiência no Colégio Estadual
Padre Palmeira
Sergio dos Santos Reis

E ste artigo esta pautado no intuito de sugerir conteúdos, bem como uma metodologia na elabo-
ração de um currículo de teatro na educação fundamental dois. Para isto, foi realizada uma oficina
de teatro com adolescentes de 13 e 14 anos, tendo como matéria-prima para a produção de conhe-
cimento a peça didática “Aquele que diz Sim e Aquele que diz Não”, de Bertolt Brecht, que propõe o
exercício de uma “didática não depositória”65, “pelo qual o aluno aprende por si próprio e verifica até
onde caminhou com o conteúdo” (KOUDELA, 1991, p. 100). No folheto de cordel A Filha Que Bateu
Na Mãe Na Sexta-Feira Da Paixão, de Rodolfo Coelho Cavalcante, associados à história de vida dos
participantes, num processo focado nos movimentos, ações e gestos para a interpretação teatral.

A oficina foi fruto do estágio obrigatório do VI módulo, do curso de Licenciatura em Teatro, planejada
para acontecer com os membros do Bloco Danados de Coutos, comunidade do Congo, no Bairro de Alto
de Coutos, em parceria com coletivo Artitude de Rua66, no qual estou como coordenador, porém, devido
à ocorrência de uma chacina67 na casa vizinha à sede, não foi possível. Diante do desafio de atender o
prazo de estágio, contei o apoio e articulação de outros membros do coletivo Artitude de Rua, no bairro
de Mussurunga, onde tem certo reconhecimento pelos trabalhos já desenvolvidos, conseguindo, assim,
realizar a experiência no Colégio Estadual Padre Palmeira e que trago para uma análise neste artigo.

A oficina foi composta por nove encontros, executados no período de 24 de novembro a 06 de dezem-
bro de 2014, totalizando uma carga horária 45 h, e teve como forma de divulgação um esquete de 15

65. O conceito de “didática não depositória” é oriundo da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire.
66. As experiências dos “Mutirões Culturais” do coletivo Artitude de Rua surgiram em 2006, no bairro de Mussurunga, com o objetivo de
promover o acesso da comunidade aos bens culturais, às práticas artísticas e à divulgação das produções dos artistas locais, utilizando-as
como pré-texto para ações comunitárias com intervenções de multiplicidade artística. Sua ações se desdobraram para outros bairros, e,
num estudo de caso, levei para análise, no trabalho de conclusão de curso intitulado Uma Pedagogia de Teatro Popular: Um estudo de
caso na Comunidade da Nova Constituinte e no Colégio Estadual Padre Palmeira, onde relato a experiência que vem sendo realizada na
Comunidade Nova Constituinte, desde 2010, no bairro de Periperi, subúrbio ferroviário da periferia de Salvador.
67. O crime aconteceu no dia 10 de agosto, durante uma festa de aniversário, e vitimou seis pessoas, veiculado em noticiários, e bastante
massificado por programas sensacionalistas na televisão, que alimentava diariamente um estranho sentimento de pânico aos moradores
daquela região, a ponto de as pessoas optarem por não transitar naquela rua, inviabilizando a oficina de estágio. Apesar de este fato triste
manchar de sangue esta página, não devo deixar de registrá-lo. Disponível em: <http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/dois-
-suspeitos-de-envolvimento-na-chacina-de-periperi-sao-presos/?cHash=c9396a97deda0078d3eaffe2dd0f0382.

234
minutos, em que uma personagem era apresentada como professora substituta. Tradicional e rigorosa,
Tia Sônia, levantava questão a respeito da vida cultura dos estudantes, se frequentavam as salas de espe-
táculo da cidade e qual o último espetáculo que assistiram, e, entre brincadeiras e gracejos, informava a
realização de uma oficina de teatro. O processo ocorreu no auditório, pois não há um teatro no colégio,
que conta com uma estrutura de 15 salas, biblioteca conjugada com sala de vídeo, auditório, quadra po-
liesportivo, estacionamento, cozinha, e fica localizado no Conjunto Habitacional Mussurunga1.

O bairro de Mussurunga foi criado em dezembro de 1978 como um conjunto habitacional popu-
lar, edificado em terras da antiga fazenda de mesmo nome (possivelmente desmembrada da fazenda
Itapuã), financiado pelo extinto Banco Nacional da Habitação. Seu nome é de origem indígena e o
significado não se sabe ao certo, mas alguns moradores o associam à multiplicação da planta junco
em planícies alagadas. Seus bairros vizinhos são Cajazeiras e São Cristóvão.

Situado à margem da Av. Paralela, uma das principais vias públicas, de fronte ao Parque de Exposições
de Salvador e ao lado do condomínio de alto luxo, Alphaville, próximo à Estrada do Coco (BA-099)
– estrada de acesso a belas praias do Litoral Norte da Bahia – e o aeroporto de Salvador, região onde
o metro quadrado de terreno é um dos mais caros da cidade. Com 102 mil habitantes, o bairro ainda
mantém certa atmosfera de cidade do interior. Hoje, os caminhos (subdivisões das ruas) vêm se trans-
formando em condomínios fechados, devido a mudanças e ao fator da crescente violência.

A experiência teve com aporte teórico os teatrólogos Bertolt Brecht, Augusto Boal, e o pedagogo Pau-
lo Freire, respectivamente, no conceito de modelo de ação das peças didáticas; nos jogos de improvi-
sação do teatro do oprimido descritos na obra, Jogos para Ator e não Ator; e nos conceitos construídos
na obra Pedagogia da Autonomia, com objetivo de proporcionar um olhar crítico e a transformação
dos sentidos dos sujeitos envolvidos no processo.

Além de ter como elemento impulsionador a realidade cotidiana dos participantes na construção cê-
nica, também percebi um potente motivador no pensamento de Jacques Roubine (1998), que acredita
que, ao trabalho com as ações e gestos para cena aberta, como no teatro popular de rua, descondiciona
o ator/estudante dos moldes tradicionais de evolução do espetáculo à italiana – de cena fechada – em
que o ideal de encenação só é alcançado quando, através de técnicas de ilusionismo, e as técnicas e ins-
trumentos de produção do espetáculo são voltados para camuflar a realidade, o espectador é levado,
com seu consentimento, a confundir a ficção do espetáculo com a realidade.

Com esta percepção, apliquei as atividades preferencialmente em círculo para que todos os partici-
pantes pudessem enxergar uns aos outros e o trabalho de aquecimento corporal com ênfase na voz,
sem a divisão tradicional de corpo e voz. Com tensão e relaxamento, a musculatura e as caixas de
ressonâncias faciais foram trabalhas num formato de brincadeira de faz-de-conta para liberar a criati-
vidade. O participante, imitando o zumbido de uma abelha, deveria percorrer toda a roda e entregá-lo
ao outro jogador, que dava continuidade ao zumbido.

O objetivo era trabalhar os movimentos com o máximo de neutralidade, sem pretensões cênicas, e,
mesmo que inconscientemente, os participantes já exploravam pantomimas e os planos altos, médio
e baixo, associados à mímicas corporais e à visualização, pois deveriam montar na moto, segurando

235
devidamente o guidão, percorrer todo o círculo, vibrando os lábios, e passar a moto para o outro par-
ticipante, sem deixar o som parar.

Nessa mesma perspectiva, para aproximar a experiência no Colégio Estadual Padre Palmeira do que
diz Gerd Bornheim (1979) a respeito da constante transformação e revisão do caráter popular do te-
atro, em contradição ao modelo analógico e ao pensamento marxista sobre “essência e aparência” da
realidade, onde “toda ciência seria supérflua se a forma das aparências coincidissem imediatamente
com a essência das coisas” (MARX apud BORNHEIM, 1979), sendo assim, a realidade se dá de forma
ambígua, mas sem dualismo, em um único plano natural, que apenas constata e aceita o real; o que
numa leitura de classe quer dizer, uma leitura estática e ingênua da economia clássica.

Para Bornheim, estaria sendo feito a mesma constatação no teatro, diante das reformulações do popular
que se prende à atenção, à comicidade ou a situações insólitas, reduzindo a um popular pacífico, com
repetição do natural, ao mesmo tempo em que abdica do ponto de vista crítico, e salta o muro para um
teatro burguês, e que só uma leitura mais crítica do natural, para Marx, historiciza e desmascara a ilusão.

E, mesmo depois de experiências, no sentido de liberta-se desta estética de cena fechada, como no
teatro medieval, o palco elisabetano e os tablados da commedia dell’arte68, segundo Roubine, a cena
fechada continua sendo a mais difundida, suplantando a cena aberta ao ponto de fazer da moldura,
das cortinas e bambolinas a nossa própria ideia de teatro.

Optei por inserir o folheto de literatura de cordel A filha que bateu na mãe na sexta-feira da Paixão, de
Rodolfo Coelho Cavalcante, para compor o processo, e influência o seu resultado, e por outros diver-
sos fatores que aqui listarei: a leitura literária na escola vem se constituindo um desafio cada vez mais
difícil de ser enfrentado; por apresentar elementos da oralidade a poesia de cordel, se apresenta como
ferramenta lúdica para se trabalhar com textos, tendo em vista a extensa carga teórica que é exigida
em outras disciplinas do curso regular; por sua métrica e musicalidade constituírem excelentes recur-
sos para se desenvolver os níveis ortográfico, fonéticos, semânticos da linguagem; exercer prestígio
popular enquanto expressão cultural, em especial, na região Nordeste do Brasil;

A expressão “literatura de cordel” foi inicialmente empregada pelos estudiosos de nossa cultura para
designar os folhetos vendidos nas feiras sobre tudo nas cidades de interior do Nordeste, em aproxi-
mação com o que acontecia em terras portuguesas. Em Portugal eram chamados cordéis os livros
impressos em papel barato, vendidos em feiras, praças e mercados. Segundo Mário Abreu, a literatura
de cordel portuguesa (...), abarca autos, pequenas peças, farsas, contos fantásticos, moralizantes. His-
tórias, peças teatrais, hagiografias, sátiras, notícias... Além de poder ser escrita em verso sob a forma
de peça teatro (ABREU apud MARINHO; PINHEIRO, 2012, p.19, grifo do autor).

Como forma de contribuir para formar leitores de folhetos e de literatura em geral, além de incluir
um elemento da cultura popular no processo e na encenação, mas, principalmente, por identifica as

68. Suas origens exatas são desconhecidas porém os primeiros registras datam entre o século XV e XVI, na Itália, país que ainda manti-
nha viva a cultura do teatro popular da antiguidade clássica, a “Commedia dell’arte” vem se opor à Comédia Erudita, se afirmando até o
século XVII. Também foi chamada de “ Commedia all’improviso” e “ Commedia a soggetto”. Suas apresentações eram feitas pelas ruas
e praças públicas, ao chegarem em uma cidade pediam permissão para se apresentar, em suas carroças ou praticáveis, pois eram raras as
possibilidades de conseguir um espaço cênico adequado. Ela se fundamenta no seguinte parâmetro: A ação cênica ocorria no improviso dos
atores, que passavam a serem autores dos diálogos apresentados, seguiam apenas um roteiro que se denominava Canovecci, possuindo total
liberdade de criação, os personagens eram fixos e muitos atores desta estética de teatro viviam seus papeis até a morte.

236
características similares utilizadas por Brecht no seu teatro épico e a partir destes elementos similares
na poesia popular, “compreendê-la em seu contexto, a partir de critérios estéticos específicos, para
poder perceber sua dimensão universal” (MARINHO; PINHEIRO, 2012, p. 126), transpormos para
uma realidade mais próxima dos estudantes os temas trabalhados pela peça didática Aquele que Diz
Sim e Aquele que Diz Não, como família, tradição, mito.

[...] uma longa narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de interesse nacional e social, ela
representa, juntamente com todos os elementos narrativos (o narrador, o narratório, personagens,
enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos
passados reúne mitos, heróis, e deuses, podendo se apresentar em prosa (como canções de gesta me-
dievais) ou em versos (como Os lusíadas) (SOARES apud MAIA, 2007, p.18).

William, participante da oficina, destacou em tom jocoso um aspecto de discriminação de gênero.

Uma mulher virar cachorra! Mulher cachorra é mulher que não presta.

Alessandra também participante da oficina se ateve a aspectos geográficos.

Posso conhecer o Brasil pela leitura.

Nestas falas, pode-se destacar o indispensável caráter interdisciplinar da metodologia ao tratar


de temas de outros campos de conhecimento e de temas transversais, além, reivindicar um teatro
congenitamente popular, que capacita cientificamente do ponto de vista do espectador e do ator, a
possibilidade de recompor criticamente a cena, é que para identificar a realidade enganadora, em
consonância com Bornheim, a experiência encontra em Bertolt Brecht, “a alternativa de o povo se
inventar através do teatro, para além da técnica de distanciamento. Este teatrista identifica além
do que é popular, existe o que se torna popular” (p. 158), ou seja, transforma e se transforma no
processo histórico.

A proposta de Brecht vem ao encontro de ideia de valorizar o espectador/receptor, tornando-o mais


atuante em relação aos espetáculos que assiste a sociedade pós-moderna de consumo na qual está
inserido e a enxurrada de informações que de maneira geral o anula enquanto indivíduo. Brecht se
utiliza de temos como modelo de ação, ato artístico coletivo e estranhamento, como elementos con-
dutores de um teatro que objetiva fornecer ao receptor/espectador a possibilidade dele se encontrar
consigo mesmo, refletindo e questionando o que parece normal (MAIA, 2007, p. 108-109).

O encontro 05/12/2014 foi dedicado a ensaiar a montagem cênica, e neste momento, podemos exer-
citar a relação palco/plateia, sobretudo, em sugestão de atuação daqueles que assistiam, como sugere
Boal, o ator que age ao encontrar dificuldade (um estado de opressão) para desenvolver com bom
desempenho (e encontra uma saída) pode ser ajudado pela plateia; e o “se” mágico stanislavskiano,
por consequência, é imaginado pela plateia e sugerido ao ator, e, desta forma foi montado e ensaiadas
todas as cena das duas possibilidade de fim “D’aquele que diz: Ainda não sei”.

Com a desmistificação dos códigos teatrais, o estudante interroga-se sobre aquilo que pretende mos-
trar, e sobre a maneira pela qual ele deseja que o espetáculo seja apreendido, ao ser apresentado os
gestos em seus níveis de complexidade, em paralelo com as suas histórias de vida, despertam uma

237
relação mais participativa na transformação da realidade escolar, a qual se constitui um impasse para
teoria e prática educacional na atualidade.

O objetivo da peça didática para Brecht se refere ao processo de construção coletiva, não na encena-
ção, por isso o público é desnecessário. São dois instrumentos pedagógicos que a peça didática tra-
balha: o modelo de ação e o estranhamento, ambos com claro objetivo político (MAIA, 2007, p. 109).

Imbuídos na maior valorização no processo criativo, a experiência vê nas teorias de Bertolt Bre-
cht e de Paulo Freire os elos necessários para refletir uma didática para práxis pedagógica do teatro
educação e, neste âmbito, a promoção de discussão do indivíduo e a sociedade; e, nas experiências
desenvolvidas com o Teatro Arena, por Augusto Boal, o caminho da transformação dos sentidos dos
participantes da experiência, especificamente no que toca à estrutura de interpretação do ator.

Em sua proposta para o Teatro Arena, Boal, primeiro e prioritariamente, valorizou as emoções, para
que elas pudessem determinar livremente a forma final, deixando de valorizar as “técnicas” de repre-
sentar sem realmente sentir nada do que estava representando, em vigor na época. O que surge “como
uma mão na roda”, para proporcionar aos educandos um trabalho sistemático de sensibilização em
contato com emoções no teatro, o desenvolvimento de um senso artístico crítico e a formação de
sujeito político participativo.

Mas como podemos esperar que as emoções se manifestem livremente através do corpo do ator, se tal
instrumento (nosso corpo) esta mecanizado, muscularmente automatizado e insensível em 90% das
suas possibilidades? (BOAL, 2000, p. 60, grifo do autor).

Por acreditar que o processo de estruturação e seleção produzido pelos sentidos leva à mecanização,
pelo qual os sentidos selecionam sempre os mesmos estímulos da mesma maneira, Em Boal, a meto-
dologia aplicada na oficina acredita proporcionar para o ator/estudante um descondicionamento ético,
estético e político, no nível ideológico e prático, a partir da exploração de movimentos, ações, gestos; as-
sim como através de jogos teatrais de improvisação e de exercícios focados na voz, no corpo e no espaço.

Para a apresentação, foi utilizado a máscara branca à mascara neutra, e maior valorização da expres-
são facial com as pantomimas. O figurino ficou por conta da malha preta, para valorização dos movi-
mentos e gestos, as mensagens corporal e como previsto em nosso ensaio:

No dia 04/12/2014 passamos toda peça só com gestos e sem texto, com objetivo de trabalhar movi-
mentos, ações e gestos, com ambiente sonoro e encontrando uma trilha sonora para a narrativa, ficou
mais expressivas as intenções e emoções e latente o reflexo do trabalho com o cordel nos ritmos das
músicas escolhidas pelo elenco para ilustrar as situação e identificar a tríade (onde, o quê e quando),
que apresentavam predominantemente melodias com temas regionalistas, e também permitiu traba-
lhar as cenas isoladamente como coreografias, o que reforçou o caráter pantomímico na construção
corporal, o que para a experiência parece responder ao questionamento supracitado feito por Boal. E,
a respeito do assunto, esclarece Ingrid Koudela:

Gestos, no significado corrente são gesticulações que acompanham a fala, através de movimentos ex-
pressivos. Os gestos tornam visível, corporalmente, aquilo que aparece apenas interiormente, intelectu-

238
almente através da linguagem verbal. Os gestos objetivam posicionamentos internos, exteriorizando-os
[...]. Brecht não compreende o gesto nos termos do significado corrente – como “expressão corporal” de
sentimentos e ideias. Ele inverte o conceito: gestos são a expressão do comportamento real, de atitudes
reais. Não é o ‘interior’ que se objetiva para o ‘exterior’. O interior é orientado pelo exterior, torna-se seu
gestus. Com isso, o gestus se desprende do domínio subjetivo e transporta sua significação para o domí-
nio intersubjetivo: se as atitudes reais e o comportamento real determinam o comportamento intelec-
tual, subjetivo e interior, então aquilo que é determinante se origina na convivência social dos homens,
na intersubjetividade da vida social e da linguagem (KOUDELA, 1991, p. 101-102, grifos do autor).

A turma foi muito bem-sucedida, sem grandes dificuldades tomaram o jogo com grande divertimen-
to, percebendo que só havia utilizado a palavra anteriormente como facilitadora da percepção das
diferenças entre as duas situações.

No dia da mostra cênica, 06/12/2014, éramos o sétimo e a última turma a se apresentar. Tivemos a
oportunidade de experimentar diferentes sensações e ângulos perceptivos muito importantes e inu-
sitados na formação dos iniciantes, a possibilidade de assistir algumas encenação nos bastidores do
teatro, diante de parte de sua mecânica, bambolina, ciclorama, marcação no palco, passagem de luz,
assistir outras encenações sentados nas cadeiras como plateia, e em seguida se apresentar no palco,
grande possibilidade de aguçar e tornar mais crítico o senso estético teatral e, ao perceber as diferen-
tes formas de teatro, as poéticas de cada estudante/educador e suas turmas.

As reflexões arroladas no decorrer dessa pesquisa me levam a entender que, embora o teatro educação
apresente inúmeros desafios através de uma prática que busque o prazer na preparação do ator/estudan-
te para uma cena aberta, é possível fazer a diferença na maneira pela qual as aulas de teatro são condu-
zidas. Dificuldades foram encontradas, currículo rígido que hipervalorizam as metas em detrimento do
processo, alunos que não leem, a ausência de um teatro na escola, a ausência de uma arena na Escola
de Teatro da Universidade Federal da Bahia, não impossibilita o estudo de outras estéticas que têm no
espaço aberto seu palco, também motiva para a inclusão de um olhar crítico diante dessas dificuldades.
Mesmo assim, foi apresentado Aquele que diz: ainda não sei, no Teatro Martin Gonçalves, na Escola de
Teatro da Universidade Federal da Bahia, como resultado cênico da oficina de teatro do estágio do VI
módulo. Em meio aos aplausos, diante da euforia pós-apresentação, enquanto me inclinava para agra-
decer ao público, foi surpreendido por um sussurro que dizia: “Professor, precisamos fazer de novo”.

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
GERD, Bornheim. Sobre o teatro popular, a situação e o impasse. Encontro com a Civilização Brasileira, n. 10,
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MARINHO, Ana Cristina; PINHEIRO, Hélder. O cordel no cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 2012.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: Um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva; Editora da Universida-
de de São Paulo, 1991.
OLIVEIRA, Urânia Auxiliadora Santos Maia. A criação de textos teatrais a partir de jogos teatrais e das peças
didáticas de Bertolt Brecht. 2007. 280 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2007.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

239
Pedagogia do teatro e alteridade:
desafios e reflexões na
realidade escolar
Aline Catiane Paz Almeida/ Amanda Caline da Silva Omar

N o decorrer da história do mundo, o teatro sempre teve um papel importante na cultura dos po-
vos em várias e diferentes nações, como apresentou Reverbel (1997), quando fez um breve histórico
do tema, desde Platão, com a cultura grega e a ênfase ao teatro, à dança, à música e à literatura, per-
passando pelos jogos descritos por Aristóteles e a poesia renomada de Horácio, assim como os jogo e
danças investidos através dos mimos na Roma.

A autora também apresenta o período da renascença, no qual o teatro na escola passou a “florescer”.
Período em que surgem personagens importantes para a história do teatro, como John Locke, Michel
de Montaigne e Jean-Jacques Rousseau, sendo este último forte influência nos pensamentos de gran-
des nomes, como Friedrich Froebel, Johann Heinrich Pestalozzi, Maria Montessori e John Dewey,
pessoas que observaram o comportamento das crianças e perceberam nos jogos formas de desenvol-
ver a criatividade infantil.

Ao rever o percurso histórico do ensino de teatro no Brasil, percebe-se que a montagem de textos
dramáticos estava inserida em um modelo tradicional de educação. Isto se refere ao início do século
XX, quando o professor coordenava e ditava todas as regras e não se preocupava em buscar algo que
se relacionasse à realidade dos alunos, enquanto estes apenas decoravam textos de forma mecânica,
ou seja, a criação de espetáculos na escola era experimentado sem o objetivo da valorização da lingua-
gem teatral e da incorporação dos participantes nessa construção (NEVES, 2006).

Durante algumas décadas, o ensino de teatro na escola era tratado como entretenimento, servindo
para apresentações em festividades escolares, perdendo suas características, seu fundamento no es-
paço de aprendizagem. Essas ideias sobre a desvalorização do teatro e seu uso para festividades, de
acordo com Koudela (2009), produziam um espontaneísmo que distanciava qualquer possibilidade
de arte como forma de conhecimento. Assim:

A oposição ao teatro é sempre fundamentada nos aspectos formais que o espetáculo impõe à atuação
e que são exteriores à criança. O aluno que simplesmente decora um texto clássico e o espetáculo que

240
se preocupa apenas com a produção não reflete valores educacionais, se o sujeito da representação
não foi mobilizado para uma ação espontânea. Mas a visão puramente espontaneísta também corre
o risco de reduzir a proposta de educação artística a objetivos meramente psicológicos, o que afasta a
possibilidade de entender a arte como forma de conhecimento. (KOUDELA, 2009, p. 25).

Entretanto, essa visão do teatro, principalmente na esfera escolar, vem sofrendo positivas modifica-
ções, pois há, nos dias atuais, um crescente uso das linguagens artísticas na escola, não apenas pela
obrigatoriedade do ensino de artes, mas pelo reconhecimento se sua real importância no desenvolvi-
mento dos alunos. A prática teatral envolve diversos elementos formais, composição e movimentos
que devem ser explorados nas aulas de teatro. Assim como o espaço, o tempo e texto devem estar
ligados a propostas que ajudem a desenvolver a improvisação e a expressão como um todo.

Essas ideias são frutos das transformações pedagógicas da Escola Nova, que influenciou o ensino de
teatro no Brasil. Inspirada pelo expressionismo, tinha como pressuposto a arte como expressão e o
teatro passou a ser visto como veículo de manifestação espontânea de sentimento e forma de libe-
rar emoções (SANTANA,2014). Além da visão de criação de espetáculos, o teatro adentra na escola
como experiência marcada por reflexões. Para Ward “esta mudança de ênfase do aspecto exibicionista
para o aspecto educacional fez com que o teatro se transformasse em uma disciplina do currículo
escolar que tem uma contribuição valiosa para a educação” (apud KOUDELA, 2009, p. 21).

Com as mudanças textuais, curriculares, metodológicas, avaliativas e de representações sociais que


surgiram no último século na educação, tornou-se essencial pensar essas novas práticas e refletir,
diante de todas as dificuldades existentes para executar um trabalho artístico pedagógico na escola
que permita reflexões e questionamentos sobre os desafios do ensino de teatro na instituição escolar,
sobretudo do conceito de alteridade envolvido nas práticas em sala de aula.

Trabalhar o teatro em sala de aula é sempre desafiador e tem se tornado tema constante de vários
debates e relatos de experiências. Organizar uma encenação, trabalhando o corpo, voz e ritmos;
escolher as tipologias que mais chamarão a atenção do grupo (tragédia, comédia, situações do
cotidiano, mistério etc.); colocar os alunos em contato com diversos livros e autores com esti-
los variados, sabendo que a mesma encenação pode transmitir tanto conhecimentos específicos e
transversais como históricos, científicos, culturais ou morais; envolver os alunos nas tramas e com
os personagens e ainda proporcionar prazer visceral no ato do teatro é hoje um desafio cheio de in-
terrogações e incertezas dos profissionais que atuam em escolas formais dentro de uma conjuntura
nada favorável ao fazer teatral.

Dessa forma, torna-se necessário refletir e questionar sobre aspectos do ensino de teatro na escola e
na área da pedagogia do teatro e, dentre as interrogações que permeiam nosso dia a dia, nos pergun-
tamos: É possível, mesmo diante desta conjuntura nada favorável nas escolas formais, realizar os jogos
teatrais de maneira que contemple realmente o desenvolvimento das crianças? Será que é possível
desenvolver todo potencial criador das crianças e envolvê-las nesse processo de sentir-se participante
do fazer teatral? Poderemos elevar a autoestima desses sujeitos, estimulando seu senso crítico, como
ator social, trabalhando no sentido da alteridade, de maneira a valorizar e respeitar cada criança em
seu ser único, individual, mesmo estando envolvidas em um grupo?

241
Essas e outras questões se apresentam constantemente no cotidiano daqueles que desenvolvem ativi-
dades artísticas na escola. Uma insistente preocupação com o aprendizado artístico e com o desenvol-
vimento dos sujeitos envolvidos no processo com foco da prática diária.

Diante disso, possibilitar vivências aos alunos utilizando teatro é fundamental para seu desenvolvi-
mento, visando, através da busca de novos conhecimentos, um melhor desempenho em outras ativi-
dades e o crescimento individual. Pois:

O trabalho do teatro na escola mesmo caracterizando-se como uma ação formal e mesmo sendo mi-
nistrada por um professor habilitado para tal, em muitos casos ultrapassa o conteúdo programático
do ensino de arte e passa a ser usado como recurso didático para outras disciplinas, caracterizando-
-se assim como um recurso pedagógico importante, cuja ação didática se justifica e é enaltecida em
função de sua dinâmica escolar (CARTAXO, 2001, p. 65).

Na vida real se vive, mas no teatro se vivencia, abre-se espaço para reflexão, ou seja, ao passo que as
situações são revividas no palco, as cenas da vida real podem ser melhor compreendidas e suas so-
luções buscadas por meio da improvisação. Através do teatro, o homem descobre que pode observar
a si mesmo e, ao ver-se, percebe quem realmente é, descobre o que não é, imagina o que pode ser. A
imaginação é uma função que permite pensar o inexiste, amplia o repertório de ações, associações
com acontecimentos.

Segundo Reyli (1986) e Atack (1995), a arte existe com inúmeras formas de linguagens que oferecem
diversas vias de comunicação, expressão e autoafirmação, que contribuem para o desenvolvimento da
criatividade. Este é o ponto central do ensino de teatro: estimular modos de se expressar e destaca-
-se por oferecer inúmeras possibilidades de interação, internalização da cultura, uso da palavra e
expressão afetiva. Além disso, configura-se como importante para o desenvolvimento da criança e do
adolescente, pois promove o aprendizado através da partilha, da brincadeira, do jogo.

Os jogos coletivos, promovidos durante o processo de aprendizagem, possibilitam o forta-


lecimento de partes do funcionamento do cérebro necessárias para um pensamento mais flexível,
habilidades de comunicação e maior sensibilidade para as trocas sociais (BORBA, 2005), pois é na
interação entre pares que o indivíduo percebe seus próprios pensamentos e os compara aos pensa-
mentos dos outros, coloca-se no lugar do outro, contribuindo para a reflexão sobre o outro e sobre
si. Sob esta ótica, criam-se possibilidades de trabalhar e compreender a diversidade, as diferenças e
semelhanças entre cada sujeito, permitindo a percepção e o autoconhecimento (COURTNEY, 1990).

Na perspectiva de Spolin (1987), percebe-se que há a elaboração de uma relação do sujeito com o
meio, uma ampliação da percepção de si com o mundo. Para ela, todos poderiam aprender a atuar e
não haveriam formas certas ou erradas para resolução dos problemas em cena, pois a diversidade de
soluções enriqueceria o aprendizado. O teatro seria utilizado para auxiliar o despertar desses sujeitos
em suas inúmeras habilidades. Assim, apoia-se como importante a ideia do ensino de teatro na escola,
pois influenciaria o processo educativo, atuando no desenvolvimento da ampliação da consciência
humana (KOUDELA, 2009).

242
O aprendizado em teatro, atualmente, pode acontecer de diversas maneiras, mas acreditamos
que pode se tornar mais significativo na trajetória escolar desses alunos se for criado um prazer vis-
ceral junto às crianças, para que elas possam desenvolver seus saberes de maneira satisfatória.

O teatro é abordado nos PCNs/Arte, focando as diferentes culturas e tempos. Está presente
nele o jogo, que é conceituado a partir das fases do desenvolvimento humano, sendo entendido como
instrumento de aprendizagem, promovendo o crescimento da criatividade rumo a uma educação
estética. Nesse sentido, os jogos teatrais seriam jogos de construção que trabalhariam a articulação
da linguagem artística do teatro, colaborando, consequentemente, para o processo de estruturação da
linguagem da criança. (KOUDELA, 2011).

O texto dos PCNs ainda aponta que o professor seria responsável por organizar uma sequên-
cia que ofereça estímulos, por meio de jogos preparatórios, para progresso na aquisição da linguagem
teatral, por parte dos alunos, não como uma técnica rígida, e caberia, ainda, ao professor ter a sensi-
bilidade para perceber que

O teatro, no processo de formação da criança, cumpre não só função integradora, mas dá oportunida-
de para que ela se aproprie crítica e construtivamente dos conteúdos sociais e culturais de sua comu-
nidade mediante trocas com os seus grupos. No dinamismo da experimentação, da fluência criativa
propiciada pela liberdade e segurança, a criança pode transitar livremente por todas as emergências
internas integrando imaginação, percepção, emoção, intuição, memória e raciocínio. (MEC, p. 57).

Fluência criativa esta que Nicolau chamou de “capacidade humana que se manifesta nas instâncias
internas e externas do ser, podendo ser estimulada e exercitada, sobretudo pela Educação” (1997, p.
13). Cartaxo (2001) exemplifica, ao afirmar que o processo de aprendizagem de um conteúdo, através
de um trabalho em teatro, é acelerado, pois os indivíduos trabalham utilizando todos os seus sentidos,
inclusive oportunizando sua liberdade para poder pensar, criar e vivenciar. É o que, na prática dessa
ação pedagógica, chama-se dramatização.

Fundamentar práticas realizadas em sala, culminando na aprendizagem, é reconhecer a potencializa-


ção da ação pedagógica. Teresinha Fialho aponta que “o teatro na escola é excelente ferramenta de mu-
dança, incorporando a necessidade de criar, inovar, renovar, abrigando o imprevisível e o risco natural
de quem se aventura. Não há certo nem errado nos jogos, tudo é experiência, vivência” (1998, p. 39).

Caberia ao professor não esquecer que o objeto da sua prática é a própria criança, que neste trabalho
conviverá com sujeitos em constante e profunda transformação. Pois o próprio educador “durante a
interação com o aluno, se modificará, enriquecendo o seu repertório cultural” (REVERBEL, 1989, p.
48) e organizará suas atividades de maneira que “todas as atividades de expressão propostas aos alu-
nos devem estar escritas num contexto contemporâneo e social. O aluno pensa, cria e recria a partir
de dados concretos de sua própria vivência” (Ibid., p. 148).

O professor, nesse aspecto, seria um guia, que permitiria, através de suas atividades, a liberação de
emoções e pensamentos, no sentido de motivar uma expressão autêntica na “busca pelo próprio aper-
feiçoamento, o conhecimento do outro através de reflexões sobre a cultura e realidade em que está

243
inserido, a promoção do desenvolvimento da espontaneidade, criatividade e originalidade, entre ou-
tros” (SILVA e FERREIRA, 2010).

Além de desenvolver todo potencial criador da criança envolvida nesse processo de se sentir parti-
cipante do fazer teatral, elevar sua autoestima, estimulando seu senso crítico como ator social, tra-
balhando no sentido da alteridade, de maneira a valorizar e respeitar cada criança em seu ser único,
individual, mesmo estando envolvidas em um grupo. Além disso, o processo educativo em teatro tem
contribuições singulares, diferente de outros campos de estudo.

Neste sentido, voltamos nosso olhar para questões ainda pouco direcionadas quando se trata do pro-
tagonismo da criança em determinadas atividades, dessa forma, buscamos no pensamento antropo-
lógico de Toren (2012) caminhos para refletir sobre essas relações. A autora afirma que:

As crianças deveriam ser centrais à análise etnográfica simplesmente porque estão destinadas, ao
longo do tempo, a constituir um saber sobre as práticas dos adultos e as ideias que estes usam para
as justificar. (...) apenas [as crianças] podem nos dar acesso ao que elas sabem sobre o mundo e as
pessoas, e o que elas sabem pode darmos elementos para uma compreensão analítica que não podem
ser obtidos de nenhum outro modo (Ibid., p. 113).

Muito além do que compreender a criança como um ser único e proporcionar a ela uma aprendi-
zagem significativa e contextualizada, é necessário, ainda, pensar que essas práticas artístico peda-
gógicas, que realizamos com ensino de teatro na escola, estão ligadas, também, a um processo de
formação humana dos sujeitos, formação esta que poderia ser entendida aqui como processo no qual
os indivíduos estão inseridos e no qual se percebem como inacabados, buscando desenvolvimento
em todos os sentidos, em busca de aperfeiçoar-se cada vez mais, para se relacionarem com a realidade
que os cercam.

E a partir dos conhecimentos das crianças e seus desdobramentos frente aos desafios que lhes forem
propostos, é que percebemos suas necessidades, pois, como afirma Hissa (2012), “Nada está com-
pletamente a mostra. Dentro de nós, habitam sombras. Vejo-me no outro e não vejo sua inteireza e
nele, percebo o quanto posso não perceber de mim”. Existe nas crianças diversas possibilidades para
o trabalho com o teatro, a fim de o compreenderem como processo criativo. O mesmo autor, discu-
tindo sobre a ciência da pesquisa que estimule o pensamento e a participação do outro na construção
de nosso próprio pensamento, cita a filósofa Hannah Arendt, quando diz que “a pesquisa é feita de
um processo que se aproxima de um cultivar a compreensão” (p. 17). Dessa maneira, cada um seria
corresponsável por sua formação e proporcionaria, a si mesmo, experiências nas quais poderia se
aproximar cada vez mais de sua humanidade (RÖHR, 2002).

Diante do que foi exposto até agora, pretendemos alçar voos no conhecimento do teatro e suas pos-
sibilidades para fortalecer vivências educativas e pessoais em sala de aula com nossa prática diária,
sabendo que temos nelas um enorme campo de estudos que nos proporciona material científico e
pedagógico para desenvolvermos essas pesquisas relacionadas ao teatro/educação e suas implicações
no universo dos alunos/sujeitos construtores de conhecimentos. Tendo ainda muitas questões para
serem respondidas e muitos percursos a serem trilhados durante os processos artísticos pedagógicos,

244
no qual, o experimentar junto às crianças possibilitará compreender suas necessidades, e mostrará os
desafios e possibilidades para encontrarmos soluções que responderão às inúmeras interrogações que
certamente surgirão ao longo do caminho, tendo plena consciência de que o nosso trabalho não será
em vão, pois a arte traz ao ser humano “...um prazer que atua no sensível, mergulhando o homem na
escuridão do próprio abismo, iluminando-o, à medida que isto for sendo possível” (VIEIRA, 2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho, procuramos demonstrar como a arte, e sobretudo o teatro, é uma lingua-
gem rica de potencialidade autotransformadora que, por consequência, também possibilita trans-
formação social, tendo em vista a amplitude das questões por ela contempladas. O professor, nesta
realidade, torna-se fundamental neste processo, pois, além de mediador, é responsável por dirigir,
articular as demandas entre os sujeitos da ação, além de compartilhar e trocar conhecimentos com
seus alunos em sala.

Acreditamos que o educador deve, também, estar aberto para aprender sempre com seus alunos,
vislumbrando na alteridade a principal maneira de perceber melhor suas necessidades e utilizar do
jogo, da expressão dramática e dos exercícios corporais para o desenvolvimento dele como um todo,
visando enriquecer a educação de forma completa, para a formação de uma sociedade mais autêntica,
autônoma e crítica.

Assim, em um balanço provisório e incompleto como este, um ensaio de conclusão nos aponta para
os caminhos que não foram trilhamos e que necessitam de uma continuidade de pesquisa, sabendo
que um trabalho científico requer uma imersão completa na mesma, e que, a partir desta, poderemos
responder aos questionamentos já expostos no decorrer de toda discussão, porém nos sentimos sa-
tisfeitas em concluí-lo, e motivadas a pesquisar ainda mais em nossos laboratórios diários, os quais
comumente chamamos de sala de aula de teatro.

REFERÊNCIAS

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VIEIRA, Paulo. O laboratório das incertezas. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 2013.

246
Intimus: um caminho para os
elementos visuais do espetáculo
nas artes cênicas
Guilherme Kokeny

1. ORIGEM

O primeiro paço que seguimos para a realização deste trabalho foi procurar mais informações sobre
os elementos que constituem os elementos visuais do espetáculo. Através de pesquisas, chegamos a
quatro títulos bibliográficos, para melhor entender os aspectos que envolviam os elementos visuais:
Semiologia do teatro, de J. Guinsburg; Linguagem do vestuário teatral, de Janice Ghisleri; A linguagem
cenográfica, de Nelson José Urssi e Função Estética da Luz, de Roberto Gill Camargo, além, é claro, das
informações fornecidas em sala de aula, através da palestra sobre elementos visuais no espetáculo de
Espaçamento, exercício de análise da peça e aulas sobre o assunto.

Depois de entender conceitos e observar a execução dos elementos em diversas montagens, partimos
para a construção do trabalho.

2. ELEMENTOS VISUAIS DO ESPETÁCULO

Entendo que se faz necessário discorrer sobre as linguagens visuais e sua relação com a semiologia
para a cena. Porém, apesar dos elementos visuais constituírem a cena teatral, eles podem ser opcio-
nais, pois o mais importante para a arte cênica são as ações, as relações que se criam entre um artista
e outro e também do artista com o público.

2.1. Pensando a luz

De acordo com Nelson Solano Vianna, cerca de 70 % da percepção humana é visual. Ela faz parte de
sua vida e de seu dia-a-dia, do seu modo de habitar. Desde que nasce, o homem está sendo submetido
ao ritmo da natureza, da existência da noite e do dia, elementos que são condições necessárias para
que ele se sinta pertencente ao próprio tempo. (SERRAT, 2006, p.4).

De acordo com Serrat (2006), a luz é um elemento constante na vida do ser humano, sendo impor-
tante nas reações humanas e nas percepções pessoais. Por mais que ela considere a luz num sentido

247
visual, a luz tem a capacidade de sugerir, ainda, o tato, a audição, o olfato. Pela capacidade da luz de
atingir quatro dos cinco sentidos, consideremo-la algo sensorial. A iluminação garante propriedades
além do estímulo visual, possibilitando uma visão ampla e sensações completas para o público.

A luz cênica não permite somente uma visão sensorial, mas, também, metafísica, como diz Pavis:

Vivificando assim o espaço e o ator, a luz assume uma dimensão quase metafisica, ela controla, mo-
daliza e nuança o sentido, infinitamente modulável, é o contrário de um signo discreto [...] é um
elemento atmosférico que religa e infiltra os elementos separados e esparsos, uma substância da qual
nasce a vida. (apud FIGUEIRDO, 2007, p. 202).

A luz se acomoda nos olhos e mostra algo a alguém. Essa luz, que permite a visibilidade para o ser
humano, é indispensável à vida, tanto que, por mais que não exista em sua forma natural, o indivíduo
forja a sua existência, pois ela é uma parte necessária na vivência do homem.

Como diz Fonseca e Azevedo (2005), em quase todas as civilizações primitivas, o Sol foi considerado
a causa da vida e o responsável pelos eventos na Terra. Como veremos depois, essa ideia do sol como
algo da essência de vida fará com que a duração do teatro se guie pela sua existência e não existência
da luz, por isso a iluminação tem uma intrínseca relação com a existência do teatro.

A manipulação da luz começa com a utilização do fogo pelos primitivos e a evolução até a lâmpada. Essa
ideia do humano em capturar a luz para utilizá-la é a tentativa de recriar um estado inicial da vida, a algo
anterior à geração do ser, por isso o transcender ou o elevar-se é considerado voltar, ou enxergar a luz.

Como diz Appia, cor é luz, por isso necessita de uma reflexão de sua existência. A luz comporta to-
das as cores presentes na natureza. O que define a cor é a refração que o objeto tem a capacidade de
manifestar. As cores são tão importantes como a luz para o entendimento humano, elas podem gerar
pensamentos e sensações simbológicas, capaz de enviar intenções ao receptor.

A ausência da luz é designada como sombra, portanto, sendo parte integrante dela. As imagens pro-
duzidas pelo cérebro humano são as pertinentes a cenas da realidade ou criadas pela imaginação,
sendo, a segunda, reflexos distorcidos pelo ser, e, portanto, pertinentes à natureza. Os instantes de
imagens captadas são compostos de claro e escuro. As imagens retratadas pelas artes plásticas são,
também, compostas por essas imagens, portanto, também ressaltam esse contraste.

A luz e a sombra também são capazes de manipular a visão, ressaltando ou sugerindo uma tridimen-
sionalidade, que é uma das funções indispensáveis no teatro moderno, de acordo com as descobertas
de Appia citadas por Camargo (2000, p. 28): [...] “o palco é o espaço da tridimensionalidade, sujeita à
evolução do tempo”.

2.2. Pensando o figurino

Nos rituais, a vestimenta tinha um poder ancestral que incorporava naquele que o usava característi-
cas referentes àquela vestimenta de cada animal.

248
Desde os primórdios da encenação, o homem se veste para viver uma personagem. Nos rituais pré-
-históricos, ao usar as peles dos animais capturados e máscaras que representavam seus espíritos, o
homem praticava um ato teatral. Ao endossá-los, ele não só ativava sua força, como também, por um
espaço de tempo, incorporava os próprios animais e passava a representá-los. Essa transformação só
era possível por meio dessa vestimenta, que tinha poderes mágicos. Sem ela não havia transforma-
ção, não existia representação (GHISLERI, 2001; LEITE, 2002).

É possível ver, também, ainda, algum resquício desta ideia em alguns artistas cênicos que colocam o
figurino como parte importante de chegar ao estado corpóreo para a persona, como é o caso do Clo-
wn e Drag Queens, que demonstra, nos figurinos, parte importante de sua construção.

O figurino é parte da construção cênica, podendo ser utilizado de diversas formas, como parte da
simbologia da cena, como parte das informações sobre a personagem/persona, o lugar, espaço e o
tempo onde se passa a encenação.

Contudo, muito além do aspecto material, o figurino pode ser visto como um símbolo, um instru-
mento e elemento essencial da narração. Ghisleri (2001, p.13) aponta que o espaço emoldura o per-
sonagem e o figurino, enquanto elemento visual, estabelecendo um essencial elo de significação entre
o personagem e o contexto do espetáculo. O figurino, além de permitir essa ligação entre a figura
dramática e o espetáculo, é parte fundamental da própria construção do personagem. Leite e Guerra
(2002) corroboram com essa ideia ao comparar o figurino às vestimentas rituais. Nas cerimônias
religiosas ou místicas, a vestimenta dos participantes cumpre o papel de fio condutor por onde passa
o transcendente. O traje induz à incorporação de “personagens” dentro do círculo ritual. (PERITO;
RECH, 2012, grifo do autor).

Por fim, é importante pensar neste figurino como elemento narrativo que compõem a cena e que
dialoga, pois se não estiver em sintonia com a cena, pode gerar ruídos indesejados.

2.3. Pensando a Maquiagem

Juntamente com o figurino, a maquiagem é aquele elemento que irá compor a caracterização do ar-
tista cênico.

Segundo o semiólogo Tadeusz Kowzan, “A maquiagem está destinada a valorizar o rosto do ator que
aparece em cena em certas condições de luz” (KOWWZAN, 1978, p.108) Este elemento plástico da
carpintaria teatral, que valoriza e contribui para constituir a fisionomia da personagem é um dos
elementos que aparecem em cena, no rosto e ou no corpo do ator. A maquiagem como signo teatral,
segundo Patrice Pavis, “veste tanto o corpo como a alma daquele que o usa” (PAVIS, 2005, p. 170),
portanto na cena contemporânea, deve ser vista como elemento que agrega valores, por estar sempre
relacionada com a encenação e por ser um dos signos que podem fazer parte da concepção de um
espetáculo. (SAMPAIO, 2012).

Como podemos observar, tendo, nos primórdios do teatro, uma relação de unidade:

Com o surgimento do teatro italiano com a sua caixa preta, boca de cena, cortinas, telões e luzes na
ribalta, no século XVII, a aproximação do palco com a plateia diminui e a máscara, que até então era

249
um adereço da indumentária do ator, passa a ser colada ao rosto, uma pintura, que quando necessá-
rio poderia ser usada por outras partes ou por toda extensão do corpo do ator, inaugurando assim,
de forma mais determinante, o uso da maquiagem no teatro. (SAMPAIO, 2012).

Podemos ver, também, que a maquiagem pode ser constituída por pintura no rosto e no corpo, assim
como uma máscara que cobre esse rosto ou corpo.

Novamente volto a rememorar a representação ritualística dessa máscara ou maquiagem, entendendo


o poder de acesso ao estado corpóreo necessário para a cena, assim como o acesso da persona presen-
te no clown e na drag queen.

2.4. Pensando a cenografia

A primeira impressão que o público tem de uma apresentação teatral, seja em palcos convencionais
ou em espaços alternativos, é a composição do espaço cênico. Quando a plateia adentra um espaço
de apresentação teatral ou quando a cortina se abre, a primeira percepção da identidade do trabalho
é estabelecida através da captação visual do aparato cênico. (SILVA, 2007).

A cenografia preenche o palco com informações simbólicas sobre o espaço, tempo e, também, sobre
a psicologia da cena. Sendo parte do desenvolvimento da ação, que, é claro, pode ser descartada, po-
rém, o uso dela pode criar diferentes atmosferas.

A função básica dessa composição é, então, localizar, elucidar e identificar visualmente a ação
num ambiente que trará significado aos elementos dramáticos do trabalho escolhido, enfatizando
o tema, o enredo e o ambiente emocional. Independente da natureza do trabalho definir-se como
encenação de uma forma literária, como na tragédia clássica; de uma forma musical, como na
ópera; ou, ainda, a montagem de espetáculos que se baseiam em som e imagem, como é o caso
do ballet clássico e da dança moderna, o design apropriado de cena deve sempre enfatizar a ação.
(SILVA, 2007).

3. A CENA

Para a execução do trabalho, fizemos uma tempestade de ideias, cada um veio com suas propostas
para a execução do grupo e entendemos que era necessário equalizar para chegarmos a um resultado
final. A primeira ideia para execução do trabalho veio de forma inversa: primeiro foi pensado na
forma e posteriormente no conteúdo. Essa ideia inicial colocava o elemento visual em destaque. A
proposta era executar uma técnica de Dança cigana, através da dança dos leques, fazendo relação com
os elementos fogo e água. O problema que encontramos foi a falta de um conteúdo que preencheria
essa forma, seria, assim, uma dança apenas pelos elementos?

As perguntas a seguir foram importantes para encontrarmos o caminho para fazer o trabalho. O que
queremos falar? O que queremos construir? Qual assunto da nossa dança? Qual a comunicação que
faremos com nosso público?

250
A partir desses questionamentos, foram suscitadas várias ideias, mas o que nos instigou mais foram
duas perguntas: Como nos comunicamos hoje? Qual tipo de relacionamento que temos? Conversan-
do muito sobre o assunto, chegamos a um tópico que passou a ser nosso guia gerador do trabalho:
Intimidade.

Os relacionamentos modernos se tornaram algo estranho. Ao nosso ver, era inevitável para o grupo
falar algo que não fosse sobre as relações de intimidades no mundo moderno. Percebemos em nossa
discussão que se relacionar nem sempre é equivalente a ser íntimo. Quantas vezes vamos para algum
lugar, sentado no ônibus, ao lado de um amigo que conhecemos a bastante tempo e ficamos em um
silêncio constrangedor, pois a intimidade que antes existia já não está mais lá, ou que estamos em um
relacionamento frio, no qual não conseguimos ser íntimos, apesar de verem um ao outro todos os
dias e praticarem atos íntimos, como tomar banho juntos, almoçar juntos, dormir juntos, fazer sexo
e mesmo assim existe um constrangimento que é preenchido por algo mais “interessante” como um
celular, um computador e tornarem-se dois estranhos que moram juntos. A relação, qualquer que
seja, precisa de manutenção para continuar existindo. Pensamos, assim, na problematizarão de ser
íntimo, nos empecilhos e do como chegar à intimidade.

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (Antoine de Saint-Exupéry).

Chegamos, então, à ideia central. Falaríamos sobre Intimidade e relacionamento. A partir dessa
ideia a questão que nos ficou no ar foi: Como executaríamos essa ideia?

4. CONSTRUÇÃO

A primeira ideia era criar cenas do íntimo pessoal e em duplas que mostrassem o que é intimidade
para você, a partir de um cenário pré-estabelecido, que seria a mesa de uma casa, simbolizando o
espaço onde as pessoas são obrigadas a se visualizarem, pois é um local de comunhão e retangular,
forçando as pessoas a encarar a pessoa que está na frente. Usaríamos, também, a metodologia de en-
cenação de Peter Brook, através do tapete que delimita o espaço de jogo cênico. Essa ideia foi descar-
tada (possivelmente arquivada para outro momento), pois demandaria mais tempo para amadurecer
a proposta.

Depois de muito pensar, depois de ler um pouco sobre o assunto e encontrar o texto A fragilidade dos
laços humanos, de Jorge Marcos Henriques Fernandes, entendemos que era necessário mais simplici-
dade para o momento. Falaríamos sobre o amor, mais cruamente. Chegaríamos ao fundo da ideia de
intimidade e a ideia chegou.

4.1. Cenário, elementos cênicos e Luz

No Palco, duas pessoas presas por cordas, representando a busca pelo íntimo e a busca pelo toque,
mas é difícil chegar um ao outro, pois ser íntimo não é só fazer sexo, o beijo, o toque. Ser intimo é
uma constante busca em encontrar o outro, entender o outro e chegar no outro de outras formas que
não só a forma tátil. Será difícil chega ao toque, quedas e obstáculos farão com que eles não possam
chegar ao tão almejado encontro.

251
A escolha do palco nu é para gerar uma ideia de intimidade dos dançarinos, será como estar
dentro do espaço que existe entre eles, observando sobre a visão do casal de que só existe eles e
nada mais.

A iluminação terá duas funções: além de iluminar a cena também terá informações adicionais para
o acontecimento do palco. Decidimos projetar o vídeo Afterglow, de Wilkinson, que demonstra, ma-
tematicamente, o relacionamento de duas pessoas. O grupo coloca o vídeo como elemento que de-
monstra cruamente um relacionamento, pensando ele friamente, sem colocar o sentimento, mostran-
do só os fatos que aconteceram nessa relação.

4.2. Figurino e Maquiagem

O figurino será o nu. Estar nessa condição, vulnerável, exposto, ou seja, expondo suas partes vistas
por poucos, símbolo da extrema intimidade corporal. Entendemos que é uma construção social que
faz as pessoas se vestirem com roupas e essa convenção é baseada, além de preceitos religiosos, numa
condição de esconder-se do outro, portanto o nu será um equivalente à Intimidade.

Assim, como entendemos que estar nu é um símbolo de intimidade, não usar uma máscara ou ma-
quiagem também simboliza essa mesma questão, portanto, será uma escolha utilizar o não uso de
maquiagem como elemento para a cena.

4.3. Mudanças acontecem

Com a ideia já concluída e faltando alguns dias para execução do trabalho, ideias apareceram e foram
revistas. Será que não seria interessante trazer de volta velhas ideias? Será que o que vai para o palco
realmente é o resultado que esperamos?

Foram marcados dois encontros para organizar o trabalho e, durante o primeiro encontro, tudo foi
repensado: teríamos que chegar a um resultado satisfatório para todos. Era necessário colocar a prova
o que já tínhamos e perceber o que funcionaria.

5. RESULTADO FINAL

5.1. Construção Final

Sinopse: Duas pessoas almoçam em cenário decadente, pessoas comuns, com roupas comuns
e hábitos comuns. O casal olha e a intimidade não está lá, o que os incomoda. As roupas se
vão e em seu prato há o resto de intimidade. Eu mastigo, tu mastigas, nós mastigamos. A
vergonha. Suas vergonhas à mostra, seu íntimo. Não toca! Estou com vergonha de você que
conheço há anos. Seu toque me queima as bochechas, me fazem acender um fogo que eu lem-
brava que existia no fundo do meu corpo. Agora me mostra sua intimidade. Que isso? Seios,
Pernas, Coxa, Bunda, sua alma, seu íntimo. Espera! Cadê minhas vergonhas? Cadê minhas
vergonhas? Não importa, eu tenho você de volta agora, nesse momento. Me toca, me toca, me
toca. Me beija, me fode, me beija.

252
A partir das ideias que já havíamos citado anteriormente, construímos um texto que dizia tudo o
que queríamos que construísse a cena. Voltamos com o cenário pré-estabelecido e com o conceito
do íntimo e estava pronto nosso roteiro. Ficou decidido, também, que iríamos construir a cena em
um caráter performático, ou seja, estabelecemos um roteiro e um papel para cada um dos intérpre-
tes, mas não existe movimentos e passos pré-estabelecidos. Usaríamos do improviso a partir dos
laboratórios e tudo seria construído dos registros que ficaram no corpo, sempre sendo guiado pelo
roteiro. Nossas pesquisas em performance foram baseadas no livro Performance Como Linguagem,
de Renato Cohen.

5.2. Cenário, elementos cênicos final

O cenário voltou a remeter a um ambiente íntimo e utilizado um veiculo de relação entre as pessoas,
que seria a mesa de jantar. O conceito estabelecido anteriormente continuou, ou seja, seria um am-
biente retangular de fluxo de diálogos, onde é necessária uma interação, já que as pessoas estão dis-
postas em posições que exige-se estar constantemente em contato direto, um de frente para o outro.
Era necessário para o grupo externalizar o relacionamento do casal também na cenografia. E já que o
conceito era a intimidade, pensamos que, para o cenário, o subtítulo desse conceito seria decadência.
A decadência seria mostrada com móveis velhos e um lugar amontoado, com uma mesa quebrada,
sem lugar para apoiar os pratos que não existiriam, um quadro sem tela e torto.

Haveria roupas caindo sobre eles, assim como no vídeo, para fazê-los perceber o que eles sentiam a
pouco tempo atrás. Onde estariam suas vergonhas?

5.2. Luz final

A luz foi dividida em duas partes. A primeira seria o momento em que tudo está esclarecido. O casal
se encontra consciente de seus atos e continua sua vida como sempre foi. Nesta primeira parte, a utili-
zação de luzes frontais e contras, para criar a sensação de uma luz geral, com um foco a pino para des-
tacar a cena central da mesa. A segunda parte, quando o casal entra em dúvidas sobre sua intimidade,
sobre seu relacionamento, a partir desse momento os refletores se apagam e o projetor toma conta
da cena. Estas imagens são distorcidas, psicodélicas, mostrando a confusão desse casal. Há imagens
de glúteos e imagens distorcidas que lembram sexo e intimidade. Para finalizar, o vídeo mostra um
casal em uma rua sem fim, remetendo ao relacionamento que virá a partir daquele momento e roupas
caindo do céu, demonstrando que várias outras vezes eles terão que lidar com obstáculos no caminho.
As roupas também recobram a ideia do estar nu e da falta de intimidade.

5.3. Figurino e maquiagem final

O figurino e a maquiagem foram uma das poucas coisas que estavam estabelecidas desde o começo.
Ficamos com o nu na maior parte do tempo, porém um novo elemento foi acrescentado com a cena
inicial. As roupas remetem à ideia de estar com uma armadura, aquela armadura que nos blinda
contra o último passo para a intimidade total. Além, é claro, de compor a ideia de um casal jantando
juntos em uma vida comum. A roupa também foi colocada como elemento de duas pessoas um pouco
mais formais, para simbolizar essa distância entre os dois.

253
5.5. Laboratórios

Tivemos 3 laboratórios para construir os corpos, as relações e os registros. No primeiro laboratório,


queríamos que os intérpretes se relacionassem com o cenário e com as roupas para criar o clima e
entender o estado corporal para a cena. No segundo laboratório construiríamos relações entre o casal,
passando a criar repertório para a improvisação. Nesta etapa, fizemos o laboratório do nu para estar
em contato pele a pele. O terceiro laboratório foi inusitado, durante o projeto de extensão Jam no
CAC, que ofereceu a oficina de Zen Contato, no dia sete do mês de julho, mesmo dia da apresentação.
Os intérpretes que executaram o trabalho fizeram pesquisas com o corpo, com a relação do trabalho
em mente e coisas foram estabelecidas também naquele momento.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizamos o trabalho com a expectativa de ter conseguido transmitir o conhecimento que parti-
lhamos com a turma nesse último semestre, entendendo que o exercício proposto como avaliação foi
executado através da reflexão e cumprimento da cena e o trabalho escrito, onde podemos colocar à
prova a ideia da existência dos elementos visuais do espetáculo para a construção de um espetáculo
e sendo parte importante para a construção desses, durante nossas propostas pedagógicas para o
ensino da dança no futuro.

REFERÊNCIAS

CAMARGO, Roberto Gil. A função estética da luz. Sorocaba/SP: Ed. Fundo de Cultura, 2000.
FIGUEIREDO, L. M. de. Luz: A matéria cênica pulsante. Apontamentos didáticos e estudos de caso. 160 f. Dis-
sertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
GHISLERI, Janice. Linguagem do vestuário Teatral. Disponível em: http://ecojane.wordpress.com/2010/10/21/
linguagem-do-vestuario-teatral/ Acesso em: 9 mai. 2012.
GUINSBURG, J; COELHO NETTO, J. TEIXEIRA; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do teatro. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
PERITO, Renata Zandomenico; RECH, Sandra Regina.A criação do figurino no teatro. In: Colóquio de Moda.
8., 2008, Caxias do sul. Anais... Caxias do Sul: [ s.n.], 2008. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.
br/anais/anais/8-Coloquio-de-Moda_2012/GT09/POST ER/102328_A_Criacao_do_Figurino_no_Teatro.pdf.
Acesso em: 12 dez. 2015.
SAMPAIO, José Roberto Santos. A maquiagem nas formas espetaculares. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS. 7., 2012, Porto Alegre. Anais...
Porto Alegre: ABRACE, 2012.
SERRAT, B. S. B. V. M. Iluminação cênica como elemento modificador dos espetáculos: Seus efeitos sobre os ob-
jetos de cena. 86 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2006.
SILVA, Eliana Rodrigues. Encenação e cenografia para dança. Revista Diálogos Possíveis, Bahia, jan./jul. 2007,
p. 19-31.
URSSI, Nelson José. A linguagem cenográfica. 2006. 122 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Escola de
Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

254
A experiência como prática de
criação e reflexão em dança – uma
passagem pela poética do espetáculo
“Dança baixa” da Companhia dos Pés
Reginaldo dos Santos Oliveira

N o trato com ideias e assuntos de dança, em Alagoas, vi-me diversas vezes frente ao fato de que,
em todo o tempo dedicado à arte como artista, como docente e como espectador de teatro e de dança,
permaneci em busca de questões sobre o corpo, o movimento, sobre a criação em dança. Em vista disso,
meu percurso artístico esteve marcado por inquietações acerca do uso do corpo nas artes cênicas e de
suas possibilidades criativas. Nesse território, a experiência vivenciada no espetáculo “Dança Baixa” tem
me marcando fortemente, sobretudo pela forma de tratar o dançarino e o processo compositivo, o que
contribuiu para que eu pudesse pensar o corpo enquanto discurso e à criação, enquanto uma rede que
se constrói e se materializa em meio às suas ondulações, instabilidades e incompletudes.

Focalizando a “experiência” como potencializadora da prática de criação em dança, proponho dis-


cutir a poética deste espetáculo, amparado pelos autores Jorge Larrosa Bondía e Walter Benjamim.

É importante salientar que as reflexões apresentadas nesta escrita são frutos de minha experiência
criativa enquanto dançarino, compreendido ao mesmo tempo como um sujeito que pensa, reflete,
discute, pergunta, responde e questiona junto com o outro, em colaboração. Isto é, um dançarino
autor de sua própria dança, refletindo sobre sua atitude criativa, suas relações com o outro e com o
mundo. Esse processo de criação foi compartilhado na Companhia dos Pés com os dançarinos Edson
Santos, Joelma Ferreira e Telma César, sendo, esta última, diretora do espetáculo e da referida com-
panhia de dança.

1. A CIA DOS PÉS

A Cia dos Pés, companhia de dança contemporânea atuante em Maceió, Alagoas, surgiu em 2000,
pela iniciativa da bailarina e professora pesquisadora Telma César, buscando diálogo entre a dança
contemporânea e elementos da cultura tradicional e popular do Brasil. Este grupo teve duas forma-
ções de elenco: de 2000 a 2005 (primeira formação) e 2008 a 2016 (formação atual). Ao logo de sua
trajetória, foram desenvolvidos oito espetáculos, dentre eles “Pé, Umbigo e Coração”, “Yerma Maria

255
da Silva”, “Qual é a história que você quer que eu conte?”, “Miami dos Mendigos ou As Privadas”,
“Dentroforaadentro”, “Azul Quente”, “Encontros” e “Dança baixa”.

A dança contemporânea que se produz na Cia dos Pés, sobretudo na construção de seus espetáculos,
tem como um de seus princípios fundamentais a busca por corpos disponíveis para propostas coreo-
gráficas plurais, por sua vez baseadas na participação do dançarino em um processo onde a experiên-
cia possa atravessar o sujeito, ou seja, interessam “corpos ideias e não corpos ideais” (SETENTA, 2007,
p. 144). Imbricado por tal entendimento, o que interessa no fazer desta companhia são as questões
que o corpo vai elaborando em meio às experiências que vai vivenciando no processo criativo.

[...] A Cia dos Pés foi responsável por transformações e pela busca de desenvolvimento de uma lin-
guagem da dança centrada na singularidade de cada corpo. Esse modo de operar em dança, de per-
ceber o que cada corpo oferece enquanto potencia, ao invés de organizar o corpo para se adequar a
determinando tipo ou padrão de movimento [...]. (LOPES, 2004, p. B1).

É notório, nesse sentido, que a Companhia dos Pés tem como foco norteador, para suas criações, a
experiência e a singularidade do dançarino, partindo da compreensão e da assertiva da experiência
como discurso e como potência.

2. A POÉTICA

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrup-
ção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para
olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para
sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspen-
der a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e
os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDIA, 2002, p. 24).

A fala que se anuncia no fazer-dizer (SETENTA, 2008) da Cia dos Pés, como já comentado anterior-
mente, apresenta um tipo específico de criação em dança, que lança um olhar sobre a experiência
do Sujeito Dançante, possibilitando a emergência da voz do dançarino no processo criativo, pois o
mesmo é entendido enquanto um co-criador da obra artística. Nesse jeito de pensar a dança, o espaço
da criação se organiza para que o sujeito se coloque no processo enquanto um pesquisador de sua
própria dança, numa busca, por encontrar nela, o desvelamento de si mesmo.

Neste processo de comunicação, ocorre um fluxo discursivo entre falantes e ouvintes, onde esses
discursos são transformados mutuamente, ou seja, ecoa no discurso do falante o discurso do ouvinte
e, no discurso do ouvinte, o do falante. O sujeito não produz um discurso único. Ao contrário disso,
é uma voz contaminada pela voz do outro (SETENTA, 2008, p.61).

Na Cia dos Pés e de modo mais específico em “Dança baixa”, a criação em dança abriu-se para o espa-
ço/tempo da experiência, buscando, no diálogo com a alteridade, a oportunidade para dar sentindo
ao que acontece com o sujeito que dança. Neste campo de construção de sentido onde o dançarino
encontra-se a si mesmo em meio às suas questões, ocorrem reorganizações constantes. Isso signifi-

256
ca dar tempo e espaço para que os acontecimentos sejam reconhecidos pelo próprio sujeito. Em tal
perspectiva, cultivam-se os mínimos e simples detalhes dos acontecimentos vivenciados pelo sujeito
a partir do intercâmbio de suas experiências.

Neste sentido, a dança experienciada e produzida na Cia dos Pés busca uma espécie de tateio no-
turno, um caminho sempre desconhecido, misterioso, incerto, enigmático, que se distancia daquele
modo de operar, onde a dança se configura num ideal de certeza, numa prática que estabelece um
percurso carregado de iluminações para atingir a máxima nitidez na tradução das impressões sen-
síveis do objeto.

Deste modo, se falamos em dar tempo para que os acontecimentos se acomodem no corpo, cada in-
divíduo terá um tempo particular para afagar as suas dúvidas e sensações. O tempo da percepção, da
pausa, do sentir. Um tempo lento e, nessa lentidão, o corpo se abre para receber o outro, o que implica
em reorganizações constantes.

Com esse viés, a temporalidade suscita uma escuta do corpo, a necessidade de “parar” para escutar,
para perceber o caminho interno do movimento, para observar o outro. Tudo isso implica em tempo,
um tempo lento, em um tempo que é o tempo do conhecimento e não da informação acachapante
promovida desde a modernidade.

Esse jeito de fazer dança da Cia dos Pés, atravessado pela experiência da alteridade, busca a comunhão
entre os tempos de cada sujeito, imbricados em um tempo comum. O tempo da relação, do intercam-
biar experiências. O tempo da capacidade e habilidade do sujeito em escutar o outro, uma escuta que
dá sentindo ao que acontece durante a criação, uma escuta sinestésica. Uma abertura para o afeto do
outro, para produzir com este afeto uma ação que afeta, gerando e gerenciando seus próprios espaços,
criando seus próprios meios de ação juntos, buscando uma heterogeneidade de forças e ações com-
positivas em dança. No campo da construção técnica corporal, ocorreu, em “Dança baixa”, uma busca
das possibilidades de cada sujeito, num trabalho que reestruturou, que reformou, que transformou os
corpos, implicando-os em tempo – tempo de experiência.

Nesse entendimento, importou trilhar o caminho do tempo do aprofundamento, da assimilação,


do decantar das ideias. O tempo para acontecer a experiência, para perceber o que nos toca. O
tempo do abrigo das modificações, das alterações, das transformações reconhecidas pelos sujei-
tos. O tempo da inclusão, da diluição, da retirada, da desistência, resistência, da existência, da
transformação, do distanciamento, do mergulho. Outro tempo. Um tempo que buscou pausa e
escuta. Paradas para ouvir o outro que dança. Calar para escutar o companheiro e a si mesmo, e
“[...] por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pes-
soal” (BONDIA, 2002, p. 27).

Assim, percebe-se que o ambiente criativo se deu enquanto espaço/tempo de experiência, estabele-
cendo relações e agenciamentos entre atitudes dos sujeitos na busca de si e daquilo que lhe afeta, do
tempo da experiência da alteridade, transformando a composição. Com esse norteamento, cada dan-
çarino apoderou-se do seu corpo, tornou-se autor de sua própria dança e, com isso, a gestualidade do
trabalho se apresentou de forma inesperada, flexível, complexa e sempre singular.

257
Importa, então, tomar a abordagem de “Dança baixa” como transformação, contribuindo para levar
em conta a complexidade do processo compositivo, evitando a sua redução a um circuito informativo
e mecânico, sendo possível considerar a construção do sujeito baseada na experiência vivenciada a
partir de experiências compartilhadas em dança, observando, assim, a construção de uma atitude
crítica do artista. Dito de outro modo, “o sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se
expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua
oportunidade, sua ocasião” (BONDIA, 2002, p. 25).

Ainda conforme o referido autor, o sujeito da experiência é aquele que está aberto aos acontecimentos,
definindo-se “[...] por sua recepção, por sua disponibilidade, por sua abertura com [...] uma recepti-
vidade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial” (BONDIA,
2002, p. 24). Importa pensar a experiência, remetendo-se a certa intercambialidade, a uma relação
de deslocamento, ou seja, a uma faculdade de trocar experiências, de transmiti-las ao outro, e nessa
transmissão há a construção de propriedades compartilhadas.

A poética da Cia dos Pés, então, passou a ser entendida como espaço/tempo de experiências, abrindo
espaço para modificações e transformações do sujeito. Trabalhamos, portanto, com a hipótese de que
quando o processo criativo em dança é vivenciado a partir da experiência e do compartilhamento
de pensar/fazer entre os sujeitos, a composição em dança expande, amplia, cria territórios singulares
e inesperados, organizando contradições e dissensos. Potencializando, então, a experiência de cada
sujeito dançante como estratégia de configuração de outras territorializações possíveis do/pelo corpo,
do/pelo movimento, da/pela dança.

Desse modo, deu-se ênfase aos atos compositivos compartilhados entre os dançarinos, distanciando-
-os de uma possibilidade individualista de criação na dança e aproximando-os de possibilidades co-
muns, da capacidade de compor junto. Os sujeitos dançantes encontraram na relação com a alterida-
de o desenvolvimento de questões específicas e relevantes surgidas no processo criativo.

Quando o ambiente da composição abre espaço para o reconhecimento da experiência pelo próprio
sujeito evita-se a reprodução de modelos já prontos. Na contramão desse caminho, constroem-se in-
terlocuções entre os indivíduos presentes neste processo de criação artística. A composição torna-se
então um espaço aberto, dinâmico, repleto de inter-relação e troca entre os sujeitos e suas experiên-
cias, no entendimento da experiência enquanto ambiente de transformação.

Portanto, quando o processo compositivo em dança pavimenta seu caminho sobre a experiência de
cada dançarino, aposta no reconhecimento da experiência que é sempre singular; no desconhecido, no
indefinido e no infinito, na suspensão do não saber. Essa suspensão cria um tempo-espaço que afaga a
dúvida, acaricia questões, gera pontos de atenção e de escuta, pontos de fuga rumo a desvelar o anôni-
mo. Proporciona situações inclassificáveis; de perguntas, mais que respostas; do não concluído, mas que
permite o encontro de vozes diferentes, e neste encontro há um ato generoso de acolher o outro, pois
é a partir da experiência da alteridade, do que é exterior ao sujeito, que a experiência se assenta. Nessa
lógica, importa pensar o sujeito enquanto um Sujeito da Experiência, enquanto sujeito que reconhece
em si os atravessamentos e as transformações, para transmiti-las ao outro, intercambiá-las. Então, para
que esse sujeito se mostre presente e exposto, há que haver uma necessidade de pausa, de parada.

258
Essa atitude de “parar” pode ser percebida como uma atitude política de quem para para expor-se,
e nesta exposição, criam-se zonas de acontecimento onde se articulam atravessamentos, adaptações
e transformações. Com essa tônica, o sujeito se apresenta como um sujeito exposto. Sujeito este que
dá passagem para os afetos e acontecimentos gerados em sua experiência, deixando marcas e vestí-
gios. Vale lembrar que importa não apenas dar passagem à experiência, aos acontecimentos, mas sim
reconhecê-los, intercambiá-los, transmiti-los. Portanto, para que estes vestígios sejam reconhecidos,
há que se dar tempo. Dar tempo para que algo aconteça e transforme o indivíduo. Nessa caminhada,
o sujeito dançante passa a ser definido:

“[...] não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade,
por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma
passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primei-
ra, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial” (BONDIA, 2002, p. 24).

Essa abertura produz no dançarino a capacidade de olhar para si mesmo, para seus acordos e cruza-
mentos, para os acontecimentos vividos, com certa acuidade e paciência, para entender e compreen-
der o acontecido. “Parar” não se remete a uma atitude de desistência. Em vez disso, passa a ser uma
atitude para a existência, para outra maneira de existir na dança, no mundo. Neste sentido, é gerada
no sujeito uma autonomia criativa e uma atitude política que ressignifica suas ações, dando sentido
à sua transformação, à sua exposição. O sujeito contamina e é contaminado pela experiência da alte-
ridade, numa troca que não cessa e que não produz apenas concordâncias, mas oposições, posições
distintas, perspectivas diferentes.

A partir do entendimento de Bondía (2002) acerca da “experiência”, relacionado a processo de criação


do espetáculo “Dança”, o indivíduo é compreendido enquanto potência, em seu poder de afetar e ser
afetado, de contaminar e ser contaminado, de abrir e deixar-se aberto para o inusitado, definindo
uma relação de habitar e permanecer em invenção. Habitar e permanecer em invenção significa, aqui,
transitar por caminhos tensos e escuros, propor estratégias diferenciadas de chegar onde se quer, ou
onde se pensa querer chegar. Um caminho onde o compartilhamento seja modos propulsores de fazer
o corpo encontrar outras zonas de fugas, de acesso, ou seja, propositor de interações, adaptações e
conexões heterogêneas.

Diante disso, a dança no âmbito da experiência ocorre num “[...] fluxo de transformação e agindo
sobre o processo de construção de diferenças (SETENTA, 2008, p. 39), em um campo de provisorie-
dade que apresenta aos sujeitos a experiência de alteridade enquanto anunciadora de outras ideias,
experiências e significados. Esse jeito de fazer dança gerenciado pela experiência do sujeito e na sua
relação com o outro, promove uma negociação entre o geral e o específico, gerando variações de tons
e acentos de movimento, a partir das relações e conexões que transformam e modificam os sujeitos
e seus movimentos. Estabelece-se, assim, processos que vão se dar em estreita aproximação com o
campo das possibilidades, da reorganização, inventando possíveis maneiras de enunciar seus senti-
dos, subjetividades, e de expor-se com suas indagações e transformações em seu modo de fazer, de
operar, de falar, de dizer, de dançar.

Envolvidos neste processo, os sujeitos produzem significados permeados por contextos estabeleci-
dos pela relação de alteridade, num processo de trocas evolutivas, mantendo viva a multiplicidade e

259
a heterogeneidade, abrindo caminho para processos de apropriação e transformação. Então não se
pode falar em um processo que seja produzido por um “[...] sujeito exclusivo e sim por um sujeito
atravessado, contaminado e modificado pelo próprio processo de exposição e diálogo” (SETENTA,
2008, p. 58).

Nesta pavimentação, o corpo do sujeito não se paralisa em uma rigidez preestabelecida, não se sus-
tenta em uma postura inteiramente resoluta, pronta, acabada. É antes um sujeito cuja inclinação é a
de um corpo formulador de questões, tombado, que não cristaliza poderes, que por vezes interpela,
que se fragiliza, porque aceita que há algo que não se reduz ao seu domínio, mas que lhe é alheio.

O sujeito da experiência [...] é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que per-
manece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que
se propõe ou que se apodera do que quer (BONDIA, 2002, p. 25).

Por conta disso, o sujeito passa a confiar na experiência como território de surpresa, de desafios, e
também enquanto espaço que possibilite a construção e contra-produção de propriedades comparti-
lhadas a partir da experiência da alteridade, onde a cooperação pode atuar como potente ação deses-
tabilizadora de modos hegemônicos de pensar a dança.

Aqui, busca-se refletir sobre o ambiente da criação em dança enquanto espaço\tempo de experiência
em constante processo de transformação e modificação, que possa contribuir para que os aconte-
cimentos do sujeito sejam transmitidos, compartilhados e refletidos coletivamente. Isso implica na
construção de propriedades compartilhadas, intercambiadas a partir da geração de conflitos, de dis-
sensos e contrapontos entre diferenças, no reconhecimento da experiência da alteridade, fazendo, do
ambiente da composição, um ambiente que possa dar sentindo ao que somos e ao que nos acontece.
Para tanto, torna-se necessário pensar o sujeito dançante enquanto um sujeito da experiência.

Nesse sentindo, o ambiente experienciado na criação do espetáculo “Dança baixa” da Cia dos Pés
compreendeu a composição em dança enquanto espaço/tempo de transformação do sujeito ao invés
da reprodução de formas já determinadas. Partindo dessa visão, a construção do corpo do artista
apóia-se no reconhecimento e intercâmbio de experiências e no exercício investigativo coletivo e
compartilhado.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A motivação desse artigo se deu a partir da reflexão sobre o processo de criação da Companhia dos
Pés, especificamente em Dança baixa. Este processo faz parte de uma pesquisa compartilhada, onde
a experiência emergiu como prática de criação e de reflexão em dança. Isso significou diferenças, sin-
gularidades, pensamentos heterogêneos e possibilidades de movimentos. Neste percurso processual,
a criação constituiu-se a partir de um modo particular de tratar o corpo e a dança, onde o indivíduo
foi o foco central da pesquisa.

Foi nessa perspectiva que procurei construir este trabalho. Uma reflexão sobre um processo onde
não houve corpos pré-definidos nem uma técnica única: os corpos são gerados a partir da vivência,

260
a experiência fazendo parte do processo criativo e assim transformando corpos e movimentos. Nesse
processo que privilegia uma escrita do movimento próprio, o dançarino se comporta e se forma a
partir de suas próprias experiências, passando a ser co-autor de suas criações. Ele não é, portanto, um
mero objeto ou um simples executor de códigos preestabelecidos, permitindo-se ser um corpo cria-
dor. Neste sentido, “Dança Baixa” investiu em um dançarino criador da escrita que dança, refletindo
e questionando junto sobre o seu processo criativo. Nesse modo de tratar o fazer dança, ideias he-
gemônicas passaram a dar passagem para conversas dialógicas, criando pontes e conexões variáveis,
heterogêneas.

Observamos, então, que o processo de criação deste espetáculo construiu, sua trajetória, num ter-
ritório de sensibilização, transformando artistas e público. Neste sentido, a ação de refletir sobre tal
processo criativo contribui com a construção do conhecimento artístico, clareando ideias e modos
de fazer, quando revisitamos a trajetória percorrida de forma distanciada e crítica. Este processo de
reflexão [...] é o que aciona a produção de subjetividade num trânsito de informações que torna visível
o que estava invisível no início do processo (SETENTA, 2008, p. 57). Por conta disso, conseguimos
perceber a construção de uma atitude crítica nos artistas envolvidos nesse processo baseado na expe-
riência vivenciada, o que contribuiu para a construção de autonomia frente ao próprio movimento,
tornando os dançarinos críticos de suas danças, na partilha de sensações e reflexões com os outros
dançarinos.

Benjamin (1986), ao problematizar a questão da pobreza de experiência na modernidade, considera


a questão do tempo e o espaço de troca com o outro como fatores importantes para que a experiência
possa ser abrigada no corpo. Acreditamos, então, que este espaço de abertura, criado nesta obra, per-
mitiu uma apropriação e recriação do movimento, da dança, num espaço de troca que se desenvolveu
na busca pela abertura e receptividade ao outro. Essa abertura contribuiu para que pudéssemos criar
possibilidades que nos distanciassem do “lugar conhecido”, lançando-nos em fluxo de investigação
criativa.

Neste sentido, a partir do processo vivenciado, conseguimos perceber que o estar com o outro, o en-
contro com diferenças de pensamentos e de movimentos, ao mesmo tempo em que não é uma tarefa
fácil, é também um caminho prazeroso de descobrimento, de aventura, de mistério que contribuiu
para o amadurecimento dos integrantes do grupo e do trabalho artístico. Além disso, visualizamos,
também, que a diferença possibilitou uma escuta mais refinada, onde se abriu espaço e tempo para
escutar a si mesmo e ao outro. Essa escuta foi gerando partilha de ações e sensações que fortaleceram
o ambiente de grupo dentro da Companhia dos Pés, transformando seus integrantes e potencializan-
do a criação artística.

Por fim, sob a reflexão apresentada, pensa-se que o presente trabalho evidencia aspectos teóricos/
práticos determinantes da prática artística de um grupo consolidado, através dos quais acredita ser
importante fomentar e difundir o campo de saberes sobre os processos de criação em dança. Diante
desses aspectos – pensamentos e conexões – pensamos que estes serão válidos, se imbricados pelo
entendimento de composição enquanto processo que abriga experiências, ou seja, transformações
e modificações que o próprio sujeito dá sentido a seu corpo, tomando conta daquilo que acontece e
articulando a cooperação e a cumplicidade na experiência da alteridade.

261
REFERÊNCIAS

AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó/ SC: Argos, 2009.
______. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2005.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Volume I. Magia e Técnica, Arte e Política. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BONDÍA, Jorge Larossa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Trad. João Wanderley Geraldi.
Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, jan./fev./mar./abr. 2002, p. 20-28.
BONDÍA, Jorge Larossa; SKLIAR, Carlos (Orgs.) Experiencia y alteridad en educación. Rosario/AR: Homo Sa-
piens/FLACSO, 2005.
LOPES, Antônio. O movimento contemporâneo de dança em Alagoas. Gazeta de Alagoas, Maceió, 14 abr. 2004,
Caderno B, p.1.
SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo. Dança e performatividade. Salvador: Editora da Universi-
dade Federal da Bahia (EDUFBA), 2008.
______. Performatividade na dança contemporânea: o corpo interessado em perguntar e não em responder. In:
NORA, Sigrid. (Org.). Húmus 2. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2007.

262
O que é uma peça-game? – reflexões
para delinear um novo gênero
Lorena de Oliveira Chagas

INTRODUÇÃO

Apresento, aqui, uma reflexão a partir da pesquisa de mestrado em fase de finalização no Progra-
ma de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes, na Universidade Federal Flumi-
nense. Iniciei minhas investigações na área, durante a iniciação científica, quando comecei a pes-
quisar sobre dramaturgia para games, um projeto que buscava um possível método para a escrita
dramatúrgica dos games. Na época, aluna do curso de direção teatral da Universidade Federal da
Bahia, tentei unir os resultados obtidos sobre dramaturgia interativa à prática teatral. Daí surgiu
o primeiro projeto, “#Perfil – uma peça-game”, em que oito peças possíveis foram ensaiadas, com
três momentos de votação do espectador, feitos por meio de levantamentos de placas. A peça se
apresentou na Bahia, em 2011, e, em 2012, no Rio de Janeiro. O segundo projeto, “In.com.patí-
veis – melodrama Interativo”, fez duas temporadas, em 2014, no Rio de Janeiro, e contava com
uma intranet para os espectadores, que, acessando-a com seus smartphones, podiam votar em
três momentos do espetáculo, escolhendo dentre três opções, ocasionando, assim, 18 espetáculos
possíveis.

Além da própria prática, tentei fazer um levantamento de outros artistas que estivessem realizan-
do experimentos parecidos e, embora tenha encontrado um número crescente de experimentos
práticos, a produção acadêmica acerca do tema é ainda bastante incipiente. Na contramão da inci-
piência acadêmica, a nomenclatura “peça-game” já tem sido usada pela imprensa como resposta à
pergunta “gênero de espetáculo”, gênero teatral, gênero dramatúrgico, na minha e em outras obras.
Estas realizações apresentam, em certa medida, uma dificuldade de ser encaixado em um gênero
teatral, nas diversas agendas culturais e meios de divulgação. (Comédia, drama, etc.). Foca-se,
nesta comunicação, em buscar delinear possíveis características deste aparente novo gênero, re-
fletindo sobre a pertinência e necessidade de seu uso, na hora de definir alguns espetáculos com
tais características.

Estaria mesmo se delineando um novo gênero? Antes de refletir sobre isto, é importante ponderar o
que se considera aqui como um game.

263
1. O QUE É JOGO E O QUE É GAME?

O que é jogo? Pergunta para a qual é difícil dar uma resposta simples. É certo que o jogo está presen-
te na cultura e em qualquer esfera, é perceptível a olho nu, sem muito conhecimento teórico sobre
o tema, bem como percebemos o jogo na rotina de alguns animais, como os cachorros e os gatos.
Concomitantemente, apesar de não ser uma exclusividade humana, também não é uma necessidade
biológica ou bioquímica; não é algo imprescindível para estar vivo. Mas, então, o que é e para que
serve o jogo?

Johan Huizinga (2007)69, filósofo que viveu durante as Primeira e Segunda Guerras Mundiais, argu-
menta que o jogo é o fato mais antigo de uma cultura, além de estar presente em todas as diversas ati-
vidades culturais. Lemos (2015) defende que existem os seres de jogo, aqueles que precisam da nossa
solicitude, pois o ser de jogo requer a atenção dos outros para existir. Para ele, jogar não é o espaço de
descarregar a subjetividade anteriormente acumulada, mas é lugar de produzi-la e daí necessitar da
atenção de alguém que a absorva.

Há mesmo algo de “ludus” e de “paedia”, portanto, nos seres do jogo. Eles produzem um mundo
para além da querela entre narratologia e ludologia, convocando narrativas midiáticas (e hoje trans-
midiáticas), bem como aspectos competitivos agonísticos. O modo lúdico alcança sua condição de
felicidade ao nos convocar (...), e essa convocação se dá sempre por “intermédios” - técnicas objetos,
mídias. (LEMOS, 2015, p. 15, grifos do autor).

Gadamer (2002), estudioso da obra de Huizinga, acrescenta que é peculiar ao jogo a ideia de um
movimento contínuo, de ir e vir, sem ponto de partida ou chegada. Supõe que uma das suas utilida-
des seja a de apreender aquilo que vamos precisar fazer em algum momento, como caçar, lutar. De
certo modo, ambos os autores erguem sobre a ideia do jogar um certo destaque. O que outrora já foi
deixado de lado nos estudos acadêmicos e filosóficos, por ser algo aparentemente “menor”, ganhou
um novo status, mostrando sua importância na atividade cultural. Acreditam no jogo como uma ação
sem fins, fluída e brincante, que está além do que se joga ou quem joga. Instaura, no momento de sua
existência, um espírito de jogo, um plano paralelo, onde tudo acontece. Esse plano paralelo é o que
Huizinga chama de “círculo mágico”.

No jogo, as regras são de extrema importância para que ele aconteça, alguns mais livres, outros com
maior complexidade. De todo modo, para Lemos (2015), são as regras que delimitam o estar ou não
estar brincando, e garante, “temporariamente”, a boa convivência no espaço e tempo construídos arti-
ficialmente. São as regras que ajudam a identificar os limites do “círculo mágico”.

Para Lemos (2015), nos tempos de hoje, há uma excessiva “gameficação” da cultura, espalhando o
jogo e seres de jogo, nas mais diversas camadas desta, de modo que, por vezes, identificar as regras
e os limites do “círculo mágico” se torne uma atividade um pouco mais complexa. Apesar disso,
para ele, discordando um pouco de Huizinga, mesmo em jogos como os de realidade alternativa

69. O Livro do autor foi escrito em 1938, em alemão. Aqui uso a tradução brasileira de 2007.

264
(ARGS)70, que se propõem, de certa forma, a dissolver o círculo e se misturar com a realidade, mesmo
nesses jogos o círculo nunca se dissolve completamente, já que é ele que nos faz perceber o “estamos
jogando”.

No português, menos que em outras línguas, a dificuldade em definir inicia-se no dicionário. Há


sempre uma gama muito grande de atividades ligadas a uma mesma palavra: jogo. No inglês, é tradu-
zido por play. A mesma palavra designa peça de teatro, o ato de “soltar” uma música ou filme em um
aparelho eletrônico (dar o play), jogar, brincar, tocar um instrumento. Denota tanto o jogo quanto o
ato de jogar. O mesmo acontece na língua alemã, língua de origem de Huizinga, com a palavra “spiel”
e, no latim, com a palavra “ludus”. No português, a palavra jogo vem do latim jocus, que indica joco-
so, cujo sentido especifico é ligado a zombar do outro, caçoar. No entanto, o termo foi assumindo as
peculiaridades e significados do vocábulo ludus, tornando-se ligado intimamente a tudo que é lúdico.
É sobre o lúdico e tudo aquilo que é ligado a ele que se dedica Huizinga. Tomo aqui o lúdico pelo que
chamamos por jogo, seja aquilo que de fato o é ou naquilo que reconhecemos um espírito de jogo.
O ludus está na origem da palavra ilusão e, pelo que mostram os estudos de Huizinga, abarca desde
as brincadeiras infantis, aos jogos sagrados. Neste sentido, é importante observar como o teatro está
íntima e intrinsecamente ligado à ideia de jogo de simulação/ilusão.

Acrescentando a esta, a ideia de que teatro é jogo, estão os estudos de Gadamer (1960), quando enten-
de que o jogo é utilizado pelo humano como mecanismo de compreensão do mundo. De modo que
a imitação da realidade humana, pensando e refletindo a partir da observação do que se assiste, seria
um dos principais modos de compreender a própria lógica humana e, portanto, em essência, um jogo.
A importância de se chegar a um lugar do que seria o jogo está relacionada à dissociação entre a pala-
vra play, que aqui traduzo por jogo/brincadeira, e a palavra game, que tem sido cada vez mais presente
na língua portuguesa, ganhando também sentidos próprios.

Richard Schechner, estadunidense estudioso da antropologia e da performance, leitor dos estudiosos


do jogo, comenta que este é, essencialmente, algo que não é pra valer, diferente do ritual, que contém
“o martelo da autoridade” (SCHECHNER apud LIGIÈRO, 2012, p. 92). O jogo é mais livre e permis-
sivo. Para ele:

O jogo é algo muito difícil de definir ou pontuar. É um estado de humor, uma atividade, uma erupção
espontânea; algumas vezes cercado de regras, noutras muito livre. É generalizado. É algo que todo
mundo faz na mesma medida em que todo mundo observa outros fazerem - tanto formalmente, em
dramas, esportes, na televisão, filmes; quanto casualmente, nas festas, no trabalho, nas ruas, nas áreas
de lazer. O jogo pode subverter os poderes estabelecidos, como na paródia ou no carnaval, ou então
pode ser cruel, poder absoluto [...]. (Ibid., p. 92).

Se o jogo seria tão ligado ao amplo, ao livre, ao lúdico, ao estabelecimento de espaços que não são
pra valer, que estão em suspenso no mundo real e ao mesmo tempo que são quase que inseparáveis

70. Um Alternate Reality Game (ou Jogo de Realidade Alternativa) envolve os jogadores numa história ficcional e incentiva sua participa-
ção ativa nessa narrativa. Os jogadores devem resolver enigmas e interagir com os personagens a partir de eventos reais, sites na internet,
e-mails e telefonemas, seguindo uma espécie de gincana que usa o mundo real como plataforma e cuja história oficial vai se modificando
e desenvolvendo de acordo com as ações e ideias de seus participantes.

265
do próprio ato de viver, os games, por sua vez, ocupam uma gama menor de descrições. Games, para
Schechner, estão contidos no conjunto jogo (play), e se diferenciam por serem “mais estruturados
que os jogos. Games são limitados por regras, acontecem em espaços definidos e envolvem jogadores
claramente marcados” (SCHECHNER apud LIGIÈRO, 2012, p. 96). Um simples mentir no dia 1º de
abril, dia da mentira, caracterizar-se-ia como um jogo, enquanto o game exigiria um pouco mais.

Embora seja uma tênue linha de separação, se observamos as conceituações de Gadamer, Huizinga
e Lemos sobre jogo, percebemos que o game está ligado a atividades mais definidas e o jogo a ativi-
dades mais livres, embora isso não signifique a dissolução do círculo mágico. Desta feita, o teatro,
por exemplo, pode aparecer tanto como jogo, feito mais livre, na rua, sem ser fruto de uma indústria,
quanto pode aparecer como um game, com participações, regras e formatos mais definidos. De todo
modo, é inegável que, na língua portuguesa, embora usemos palavras diferentes para definir teatro e
jogo, teatro se associe mais a um tipo de jogo que ao uso que damos à palavra game. Em se tratando
de nomenclatura, é importante perceber que a palavra game tem ganhado sentidos muito próprios,
distanciando-se, a princípio, o que se pensa por teatro.

Ao mesmo tempo em que tanto as palavras game e play são traduzidas por jogo, a palavra game é uti-
lizada na língua portuguesa para designar um tipo específico de jogo, que é submetido a plataformas
eletrônicas, que pressupõe interação entre o jogador e o meio eletrônico e que se assemelha à ideia
de alguém que se alterna entre as funções de ser espectador, para as cenas em vídeo, introduções e
até mesmo as próprias histórias do avatar do jogo (ainda que sua história seja simplesmente atirar
ou organizar caixas) e ser, ao mesmo tempo, jogador ativo, já que tem poder de interferir no próprio
jogo. Isso nos leva a refletir que, embora a divisão entre play e game, no inglês, seja tênue e complexa,
no nosso idioma, com o abrasileiramento da segunda, esta ganhou significados bem mais definidos.

Para Janet Murray (2003), em seu livro Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa e do ciberespaço, todo
jogo tem narrativa, mesmo que no princípio pareça extremamente mecânico e simples, como no caso do
game Tetris71. Se ponderamos um pouco sobre os aspectos dos games como os definimos acima, jogos de
ambiente digital, que misturam narrativa e jogabilidade, com interação do espectador-jogador, esta refle-
xão vai ao encontro das teorias de Murray, quando ela explica que os ambientes digitais têm quatro carac-
terísticas essenciais: (1) os ambientes digitais são procedimentais, ou seja, têm regras exatas de comporta-
mento (se programados corretamente, executam reações, sentimentos, comportamentos humanos); (2)
são participativos, reagem às informações que inserimos neles e, sobre isso, a autora ressalta: “É isso o que,
na maioria das vezes, se pretende afirmar quando dizemos que os computadores são interativos. Significa
que eles criam um ambiente que é tanto procedimental quanto participativo” (MURRAY, 2003, p. 80);
por fim, (3) os ambientes digitais também são enciclopédicos, têm a capacidade de armazenar e recuperar
informações e palavras e (4) são espaciais, pois têm a capacidade de representar espaços navegáveis.

Certa feita, para este estudo, a palavra jogo será utilizada para definir os jogos de um modo mais am-
plo, livre e natural, enquanto a palavra game será empregada aqui para representar um tipo de jogo,
aquele que é interativo, mediado por uma plataforma digital: computador, videogame, internet, etc.

71. O Tetris é um jogo muito popular, criado em 1984, e jogado por milhões de pessoas em todo o mundo, até hoje. Para jogar, só é preciso
empilhar as pecinhas que vão caindo infinitamente. A missão do jogador é conseguir eliminar as linhas que se formam com as pecinhas.

266
1.1. A peça-game

As tentativas de hibridismo entre game e teatro são recentes, embora com crescimento cada vez mais
rápido e notável. A produção acadêmica acerca do tema, no entanto, é ainda bastante incipiente, tor-
nando o ato de traçar um breve histórico dessas realizações uma atividade muito ligada à capacidade
de analisar e relatar da própria pesquisadora. Assim sendo, levanto aqui um olhar sobre o cenário
teatral nacional de 2010 até 2015, a partir da listagem de críticas, releases e depoimentos de especta-
dores, uma vez que são peças que já aconteceram, recortando sobre as experiências que partem deste
pressuposto de um formato híbrido entre game e teatro, desde que esta mistura traga resultados de
maior interação entre o público e o espetáculo.

Começamos, em 2010, em Salvador, com o espetáculo O Programa, formatura da diretora Ana Antar,
então aluna do curso de direção teatral da Universidade Federal da Bahia. Segundo os releases encon-
trados nas buscas pela internet, tenta-se criar um espetáculo construindo um reality show e o público
escolhia quem saía e quem ficava, fazendo um enredo diferente a cada dia. As votações e interações
não eram mediadas por tecnologia, sendo feitas pelo levantamento da mão ou do celular. Segundo
comentários informais de alguns espectadores, um dos principais problemas era justamente o excesso
de tempo dedicado ao período de votação, embora fosse divertido e interessante. Como ponto positi-
vo, o espetáculo atraía os jovens não só pelo formato, mas também pela temática.

No ano seguinte, em 2011, Victor Cayres, escritor de games, ator e, na época, aluno do mestrado no
programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, estreia um espetá-
culo chamado Véu-carmim, que prometia ser um “jogo-espetáculo”, que no release se explicava por
uma junção entre game e teatro a partir do caráter procedimental dos games, defendido por Murray.
O espetáculo fez apenas uma temporada.

A peça usou o conceito de interatividade, mas não investia muito em tecnologias a serem usadas no
palco e as votações eram feitas a partir de uma apresentação de quatro cartas. A atriz as mostrava a
uma pessoa, e cada processo de escolha desta pessoa, determinava o destino do enredo. No mesmo
ano, eu regressava de uma mobilidade acadêmica feita no Rio de Janeiro, desde 2010, ainda sem co-
nhecimento, sobre os dois espetáculos acontecidos anteriormente e com o projeto de encenar #Perfil
- uma peça-game, que seria minha montagem de formatura. Embora com pouco conhecimento, havia
um desejo de mediar as votações por tecnologia e de realizar a montagem dentro de experimentações
no campo da projeção e uso de novas mídias. Por falta de acesso à técnica necessária, como explico
mais à frente, as votações foram feitas de modo semelhante a como aconteceu em O Programa, mas,
no campo da encenação, arrisquei-me em algumas experimentações relativas às novas mídias, como
cenas com filmagens ao vivo sendo transmitidas ou uma conversa toda por SMS, projetando as men-
sagens enviadas, em vez de falas. O tema e o texto eram todos inspirados nas redes sociais a partir da
pergunta: “como seria não ter um perfil em rede social em 2050?” Além disso, o tema das redes sociais
dominou a pesquisa e fizemos experimentações no sentido de criar um perfil real na rede social dos
personagens principais do texto, ainda que não soubéssemos exatamente o que fazer com isso.

No ano seguinte, 2012, fiz financiamento colaborativo e fui selecionada para um projeto de residência
artística no Teatro do Jockey. Lá apresentamos #Perfil - uma peça-game, com um elenco carioca. Além

267
disso, em Salvador, estreou #SMS - Saga Metropolitana de Salvador”. O espetáculo ganhou patrocínio
da empresa telefônica OI e foi dirigido por Alan Miranda, também egresso da Universidade Federal
da Bahia, do curso de direção teatral. A promessa era que o público poderia escolher o destino dos
personagens enviando mensagens SMS, mas a tecnologia não funcionou e a interação praticamente
não aconteceu. Provavelmente pela dificuldade de sinal nos teatros e a própria demora das operadoras
em entregar as mensagens. Também neste ano entrou em cartaz Incubadora, em São Paulo. Dirigida
por Ivan Andrade, aluno do programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da USP, o espetáculo
foi objeto de estudo do seu mestrado. Trata-se de um projeto com o qual mais vejo diálogo com o
meu trabalho, e que se propõe a ser inspirando num game de nome The Sims. Um espetáculo-game
(nomenclatura cunhada por ele e que discuto mais à frente neste mesmo capítulo) por um caminho
menos narratológico em relação a esta pesquisa que aqui apresento, bastante bem-sucedido, realizou
duas temporadas naquele ano. Entre nossos dois trabalhos, a principal diferença parece ser o ponto
de partida. Eu parti do texto dramático, ele da encenação interativa. Os resultados são peças-game /
espetáculos-game bem diferentes em suas estruturas, mas que se entrecruzam em algumas dificulda-
des e descobertas nos processos de criação, teste e interação com o espectador.

Seguindo adiante, em 2013, o texto que escrevi para minha segunda peça-game é finalista do Prêmio
de Dramaturgia do Centro Cultural do Banco do Brasil e ganha leituras dramatizadas no Rio e em
Brasília. Após tais leituras, foi realizada montagem, dirigida por mim, de In.com.patíveis - melodrama
Interativo, processo que inspira boa parte deste trabalho e sobre o qual me aprofundarei. No mesmo
ano, participei de um Laboratório de Pesquisa e Criação da Cena, na UFF, dirigido pela professora
Martha Ribeiro, e fui dramaturgista do projeto Fantasmas uma peça-game, espetáculo experimental,
dirigido pela professora. A peça misturava textos de Pirandello, objeto de estudo dela, com minha
experiência em teatro e interatividade e foi muito pouco bem-sucedida nesse aspecto de jogabilidade.
Por fim, neste ano, o espetáculo Game of You (SP) estreia com uma proposta de criar um game entre
atriz e público, mas não trava nenhum tipo de interatividade / participação. O espetáculo usa novas
mídias para projeções no cenário e joga com novas possibilidades de interpretação da atriz, sem que-
brar a quarta parede, sem estabelecer nenhum tipo de jogo diferente com a plateia.

Em 2014, finalmente, entrei em cartaz com In.com.pativeis, concretizando nessa montagem dois ob-
jetivos: a votação mediada por software em smartphones (semelhante à estrutura de Incubadora) e
uma interação estendida, com uma página na internet que funcionasse para além de um mecanismo
de divulgação. O tema da peça era tudo o que acontece nos diálogos inbox, para os jovens. No mesmo
ano, durante a segunda temporada de In.com.patíveis, estreou também o espetáculo #sejoga, dirigido
por Patrícia Pinho, passando a fixar na imprensa carioca o uso do termo peça-game.

O espetáculo fez apenas uma temporada. A ideia foi misturar as técnicas de improvisação da comédia
com um aplicativo que seria baixado no celular e usado com 3G dentro do teatro. Não encontrei crí-
ticas sobre o mesmo espetáculo com detalhes de como aconteceu.

2015, já no segundo ano do mestrado, Felipe Vidal dirigiu um espetáculo no Centro cultural do Banco
do Brasil, no mês de abril; Contra o Vento. O texto apresentava uma ficção sobre um lugar histórico do
Rio de Janeiro, Solar da Fossa, e no início da peça, ainda sem conhecer o espetáculo, por meio de le-
vantamento de cartões, sem mediação tecnológica, a plateia escolhia a ordem da história a ser contada,

268
montando para a mesma uma ordem diferente a cada dia. Em 2015, iniciei também o projeto Ex.troll.
genio. Além de uma peça-game, buscamos de fato ser “transmídia”, O monólogo conta três histórias ins-
piradas em textos recebidos por internautas a partir da pergunta: “qual a posição da mulher nas redes so-
ciais?” Algumas novas experimentações no campo da jogabilidade também foram testadas mais a fundo.

Como as pesquisas aconteceram em paralelo, até hoje não havendo muito diálogo em suas constru-
ções, cada encenador, em seu lugar geográfico, convencionou chamar a experimentação por um nome
diferente. Os termos que têm sido mais usados são os da nomenclatura de Ivan Andrade, “espetáculo-
-game”, e da nomenclatura proposta por mim, “peça-game”.

Por essência, o espetáculo-game / peça-game caracteriza-se por ser uma peça interativa que tem, no
seu conceito de interativo, os parâmetros básicos de meios digitais, delineados por Murray (2003).
Ademais, busca causar em seus espectadores, mediados pela tecnologia, a sensação de coautoria da
obra, através dessa junção entre os caráteres procedimentais e participativos.

Enquanto as primeiras tentativas, em 2010 e 2011, engatinhavam em relação à tecnologia, as obras encon-
tradas a partir de 2013 já apresentam a ideia de votação por meio de um software ou mesmo de aplicativo
como algo absolutamente acessível e factível. Além de ser interativo, sendo esta interação mediada por
aparelho eletrônico, esta é incentivada, embora não obrigatória, com enredos e narrativas que se tornam
absolutamente dependentes de um mínimo de resposta do espectador por meio do software, de modo
que esta influi diretamente no enredo final, dependendo este, na verdade, do espectador para acontecer.

Deste modo, observando as práticas e as características que se delineiam parecidas nas produções te-
atrais estudadas, percebo a pertinência numa reflexão sobre esta nomenclatura. Já é possível notar um
gênero teatral se desenhando e é importante refletir sobre o quanto os demais gêneros são capazes de
dar conta destes espetáculos. Existiria um novo gênero teatral? Seria também um gênero dramático já
pressupõe uma diferente escrita do texto? Eia uma reflexão que se faz urgente e necessária.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Ivan. Teatro vs. game: o drama gameficado. 2013. 179 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas)
– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Trad. Enio Paulo Gianchini. Petrópolis/RJ: Vozes; Bragança
Paulista/SP: Editora Universitária São Francisco, 2002.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro. 4. ed. São
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LEMOS, André. Por um modo de existência do lúdico. Contracampo, Salvador (publicação do programa de
pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, UFF), n. 32, p. 4-17, abr./jul. 2015. Dis-
ponível em <http://wwwuff.br /contracampo>.
MURRAY, Janet H. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Trad. Elissa Khoury Daher e
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SCHECHNER, Richard. Jogo. In: LIGIÈRO, Zeca (Org.). Performance e antropologia de Richard Schechner. Rio
de Janeiro: Mauad, 2012, p. 91-128.

269
O método Nascimento do Passo:
ensino-aprendizagem da dança do frevo
Rafaela Cristina Mendes Gomes da Silva

INTRODUÇÃO

Francisco do Nascimento Filho, o Nascimento do Passo, nasceu no dia 28 de dezembro de 1936, na


província amazonense de Benjamin Constant. Segundo Queiroz (2009), com apenas 13 anos de ida-
de, em 1949, chega ao Recife, “clandestinamente, no navio Almirante Alexandrino, vindo fugido de
sua terra natal devido a uma travessura que fez e teria ficado com medo de levar uma surra de sua
mãe” (p.26). Foi menino de rua por um bom tempo, para se sustentar desenvolveu várias atividades,
como camelô, engraxate, jornaleiro, pintor de parede, dentre outras.

Conseguiu seu primeiro emprego fixo, na casa de um casal de alemães, passando a morar numa
pensão por trás do Clube Vassourinhas, onde tomou gosto pelo frevo, observando os ensaios do
clube, que aconteciam na rua. Com apenas três meses de sua chegada, Nascimento já participava de
concursos de passos. O primeiro concurso que venceu foi em 1957, realizado pelo Departamento de
Cultura da Prefeitura do Recife. Entretanto, foi em 1958, quando aconteceu um concurso para substi-
tuir Egídio Bezerra, conhecido como o Rei do Passo, que Francisco Nascimento Filho foi chamado de
Franscisco Nascimento do Passo.

Ele adotou como codinome, apenas o Nascimento do Passo, desde então passou a ganhar inúmeros
outros concursos, iniciando sua vida artística, viajando para divulgar o passo em outros estados e
países, e, cultivando a inteligência para sistematizar seu método de ensino do frevo. Realmente es-
tava nascendo não só um passista, mas uma nova ordem de enxergar a dança do frevo e seu ensino.
(QUEIROZ, 2009, p. 27).

Em 1976, Nascimento narrou para o Diario de Pernambuco que o frevo entrou em decadência mais ou
menos em 1958, quando foi realizado o último grande concurso de passo. Com a chegada da televisão
e as cheias, quase que o frevo desaparece. “As pessoas que dançavam juntas, nas regiões inundáveis,
foram transferidas para as casas construídas pelo governo, dispersando-se os grupos”. Ao perceber
que, na “Capital do Frevo”, local onde sempre existiu grandes passitas, agora só tinha ele, “foi aí então
que decidi abrir luta firme para criar novos passistas”. Unindo sua vontade de ensinar e algumas
pesquisas realizadas sobre o frevo, pesquisas essas “indispensáveis para qualquer pessoa decidida a

270
ensinar”, que, em 31 de janeiro de 1973, ele criou a “Escola de Frevo Recreativa Nascimento do Passo”,
conhecida como “Academia do Passo”, que funcionava, inicialmente, de maneira intinerante, nos es-
paços públicos. Ele relatou que teve várias dificuldades para manter a escola, “comi o pão que o diabo
amassou”. Chegou a vender grande parte dos móveis da sua casa para comprar uma vitrola, autofalan-
tes e alguns discos. Derrubou as paredes internas da casa, para transformá-la num grande salão para
ensaiar e servir de apoio para as aulas, onde durante o dia era um quartel do passo e ao término de
suas atividades “forrava as esteiras no chão e íamos todos dormir” (PASSISTA, 1976).

Nascimento do Passo viajou para o Estado do Amazonas, entre 1967 e 1969, com o objetivo de conhe-
cer o seu pai. Aproveitando vários contatos, nesse período, também realizou apresentações no Peru,
na Bolívia, no Paraguai e no Uruguai. “De volta ao Recife, Nascimento começa a desenvolver a ideia
de organizar as informações sobre a dança do frevo para repassá-las, visto que nenhum grande passis-
ta atuava na cidade” (VICENTE, 2009, p. 56). Ele temia o esquecimento dessa arte, pois não existiam
locais e pessoas com disposição para continuá-la.

Na década de 70, não conformado com a falta de espaço para ensinar a dança do frevo no Recife, Nasci-
mento sistematiza um método que tem como principal objetivo ensinar o passo (QUEIROZ, 2009, p. 28).

Portanto, o ensino do frevo foi estruturado, inicialmente, por este passista, cuja formação se deu
dançando, imitando e criando movimentos de frevo, ou seja, sem uma formalização previamente
padronizada ou aulas formais de outras técnicas de dança. Diante do desafio de ensinar o frevo,
Nascimento do Passo organizou um método de ensino baseado em um padrão de aula a ser aplicada
junto aos alunos. (VICENTE e KIRAN, 2015, p. 32).

Com o seu conhecimento e a vontade de preservar o passo para as novas gerações, “Nascimento im-
primiu, na tradição do frevo, a sua visão individual, através da sistematização do ensino dessa dança,
que até então era aprendida apenas pela observação e por interpretações pessoais” (VICENTE, 2009,
p. 58), criando a Escola Recreativa Nascimento do Passo, Academia do Passo, onde ministrou aulas de
maneira itinerante em diversos espaços do Recife. Como resultado da sua atuação e esforço, recebeu
do prefeito da cidade do Recife, em 1996, a Escola Municipal de Frevo, “onde este ritmo era o carro
chefe da instituição e tinha o Método Nascimento do Passo (MNP) como sua proposta metodológica”
(QUEIROZ, 2009. p. 30).

O Método Nascimento do Passo de ensino de frevo utiliza o processo de repetição de movimentos


como base principal. O aprendizado dos movimentos é baseado no acompanhamento rítmico do frevo,
o que facilita a execução dos mesmos e, ao final da aula, estimula-se o envolvimento dos movimentos
com as dinâmicas da música, através de improvisação com os movimentos. (VICENTE, 2009, p. 59),

1. O MÉTODO NASCIMENTO DO PASSO

O MNP “pode ser considerado como tradução do frevo de rua que existia no Recife até então” (VI-
CENTE, 2009. p. 59). Mas, para transformar o que existia, no tocante à dança do frevo, num método
sistematizado de ensino, Nascimento precisou realizar um trabalho complexo de organização e estru-
turação dessas informações. Existem poucas pesquisas sobre o MNP, por isso acreditamos ser válido
desbravar, de maneira sucinta, o percurso percorrido por Nascimento para catalogar os passos que

271
constituem seu método. Sendo assim, com base nas informações obtidas em Queiroz (2009), Vicen-
te (2009), Vicente e Kiran (2015), bem como utilizando os conhecimentos adquiridos durante esta
pesquisa, por meio das leituras de jornais, artigos, e das observações realizadas em campo, pôde-se
perceber que a catalogação dos passos que compõem o MNP foi estruturada da seguinte forma:

Mestre Nascimento
do Passo

Observa passistas Utiliza da sua Utiliza da sua


de rua experiência experiência

Identifica um Banaliza o movimento


movimento do frevo com um nome

Compreende o Descreve e cataloga o


movimento movimento como passo

Não
Já possui
nome? Agrupa em uma família
Sim

É classificado como
Sim
variante do passo
Surgiu a partir de um
passo existente?
Concluida a
catalogação do passo Não

Figura 1: Catalogação dos Passos de Frevo - Método Nascimento do Passo


Fonte: a Autora.

Segundo Vicente (2009), para criar seu método, Nascimento observou como os demais passistas faziam
o passo. Passando tal fase, buscou compreender os caminhos que o corpo percorria ao desenvolver tais
movimentos, acrescentando a isso suas vivências e percepções como passista. Catalogando, em seguida,
os movimentos já existentes e nomeando os que foram surgindo a partir da sistematização.

272
O MNP não ficou pronto de uma hora para outra. Inicialmente, tinha dez passos e aos poucos foi
ganhando forma e consistência. Hoje, segundo Queiroz (2009, p. 28), “o método é constituído por 40
passos básicos, que de forma crescente, apresenta os passos do frevo desfragmentados e conectados
um ao outro, de modo que o primeiro e mais simples movimento está intimamente ligado ao pas-
so mais elaborado”. Sua didática consiste em quatro momentos: o aquecimento, o alongamento, o
ensino-aprendizagem da dança do frevo e a roda do improviso. Para uma melhor compreensão,
descreveremos, a seguir, como funciona, na prática, o MNP. Para isso, será descrita, de maneira teóri-
ca, a aula ministrada no Projeto Frevo na Praça, pelo grupo Guerreiros do Passo, grupo formado por
discípulos do Mestre Nascimento do Passo.

A aula inicia com o aquecimento e alongamento, onde os instrutores “buscam relaxar, esquentar e
desprender” o corpo do aluno para a aprendizagem dos passos (QUEIROZ, 2009). O aquecimento
consiste em esquentar as articulações dos pés, joelhos, quadril, mãos e braços, sendo realizado “a
partir da articulação lenta de alguns movimentos do próprio frevo” (VICENTE, 2009, p. 59), tendo
como fundo musical os frevos de blocos. Já o alongamento “é realizado a partir do passar lentamente
pelos lugares mais estendidos do movimento” (VICENTE, 2009, p. 59). Assim, os músculos ficam
mais flexíveis, resultando num condicionamento físico mais adequado para a prática do passo, além
de auxiliar na prevenção de lesões. A seguir, estão os dez passos utilizados para aquecer e alongar:
“Balanço; Remador; Boneco de Olinda; Cata-vento; Manivela; Abanador; Bico de Papagaio; Lavanca;
Chutando com o pé e Metrô de superfície” (QUEIROZ, 2009, p. 41-42).

A próxima etapa, o ensino-aprendizagem da dança do frevo, é a parte mais técnica da aula, onde
os alunos têm contato, de maneira gradual, com os trinta movimentos básicos da MNP (Maçaneta;
Base; Sobe em ritmo; Swing nos ombros; Na onda do passo; Saci Pererê; Ponta de pé-calcanhar;
Trocadilho; Pontinha de pé; Pontilhando; Balanço; Chapa quente; Chutando de frente; Chutando
de lado; Muganga; Abre o leque; Folha seca; Passa-passa em cima; Passa-passa em baixo; Rã ele-
trizada; Carrossel; Tesourão; Gaveta; Faz que vai, mas não vai; Serrote; Banho de mar para frente;
Banho de mar para trás; Guerreiro; Rojão; Abre-alas e Pernada). Vale ressaltar que o aluno é esti-
mulado a utilizar os dois lados do corpo, possibilitando uma atuação ambidestra (QUEIROZ, 2009,
p. 42-43).

Após os movimentos básicos, o instrutor “passa a esmiuçar seus aspectos intrínsecos, é o momento
de ampliar e aprimorar o repertório dos passos, estimular a criatividade, o raciocínio rápido, a agili-
dade, o equilíbrio e o desequilíbrio, o corpo no espaço, a gravidade e a leveza”, para isso, ele trabalha
os movimentos mais elaborados, como “os passos em baixo” ou “agachados” (Ligadura; Locomotiva;
Plantando mandioca; Festival de bailarina; Patinho; Apertando a porca; Enxada; Chave de cano; Ali-
cate; Tesourão), os “passos em cima” (sem o apoio dos pés no chão: Tesoura passando a sombrinha;
Tesoura em retrospecto; Tesoura no ar; Tesoura cruzando em vice-versa; Vôo da andorinha; Pulo do
Grilo; Coice de burro. Com o apoio dos pés no chão: Pernada; Tesoura simples; Tesoura tramelando;
Dobradiça; Ferrolho; Parafuso; Chã de barriguinha; Pulando corda; Tramela; Passeando na pracinha;
Pisando em brasa; Rojão; Espalhando brasa; Saca rolha; Serrote) e os “passos novos” (Britadeira em
movimento; Britadeira parada; Britadeira passando a sombrinha; Metrô subterrâneo; Pulo do grilo;
Pé de vento). Em paralelo aos movimentos, são abordadas “as modalidades, as variantes e as famílias
dos passos”. (QUEIROZ, 2009, p. 42-45).

273
As famílias dos passos, na concepção de Nascimento, conforme apresentada por Queiroz (2009), é
“uma conversa que o passista faz com os passos, que permite seu entendimento, e facilita a apreensão
dos mesmos em busca de uma ligação lógica para um melhor desenvolvimento de sua dança” (p. 47).

Família é o nome dado ao processo de conectar movimentos que possuem algum tipo de semelhança
formal, como usar o peito do pé no chão, ou as pernas cruzadas, ou se apoiar sobre o calcanhar. [...]
É uma maneira de estimular a conexão entre os movimentos, facilitando a improvisação. (VALÉRIA
e KIRAN, 2015, p. 33, grifo dos autores).

Logo, reunir os movimentos semelhantes em famílias distintas auxilia no aprendizado dos passos, “o
passo da Tesoura, por exemplo, ligar-se-ia ao passeando na pracinha, que puxaria o ferrolho trans-
lado, que chamaria o faz que vai, mas não vai, depois o cumprimentando, o plantando mandioca e
assim em diante”, exemplo fornecido por Queiroz (2009), através da fala do Coordenador do Projeto
Frevo na Praça, Eduardo Araújo. “A divisão em ‘famílias’ agrupadas pelo tipo de operação motora
facilita a ligação entre os diferentes movimentos” (VALÉRIA e KIRAN, 2015, p. 59), estimulando a
criatividade do aluno, além de ampliar suas possibilidades de dançar o frevo.

Os passos classificados como variantes são movimentos que possuem a mesma base, entretanto são
executados de forma diferente. Como é o caso do passo “Tesoura” e seus variantes: “Tesoura passando
a sombrinha”, “Tesoura em retrospecto”, “Tesoura no ar”, “Tesoura tramelando”, “Tesoura cruzando
em vice-versa”, dentre outros (QUEIROZ, 2009). Os aspectos positivos das variantes são destacados
abaixo por Vicente e Kiran (2015).

Variante é o nome dado a todo movimento que surge a partir da manipulação de outro movimento
preexistente. Pode ser considerada uma forma de estimular a criatividade do passista na manipula-
ção dos elementos do passo, criando novos movimentos. Quando um novo passo é identificado este
é batizado, as vezes com o nome do seu criador por isso pode ser considerado uma forma valorização
da participação do indivíduo na constituição da tradição. A principal forma de variante é a alteração
da velocidade e do nível espacial de execução do movimento, bem como a mistura de dois passos. (p.
33, grifo dos autores).

As posturas incorporadas pelos alunos ao fazer o passo são chamadas de modalidades. Logo, ao
frevar, é possível acrescentar “formas de dançar e de se movimentar que têm uma maneira pré-de-
terminada de expressão corporal e facial, buscando a semelhança com o tipo de passo em questão”
(QUEIROZ, 2009, p. 45). Vicente e Kiran (2015, p. 34) pontuam que ao usar uma modalidade, a
pessoa estará assumindo, conscientemente, um papel a ser interpretado, passando a realizar o passo
como se estivesse imitando personagens como, por exemplo, um idoso ou um bêbado.

Modalidade é uma denominação dada por Nascimento. A partir de observações que ele fazia, du-
rante o carnaval, de foliões anônimos que apresentavam o movimento. Ele criou essa divisão. Esses
foliões iam atrás das orquestras. Ele observava e o que chamava atenção na multidão, no movimento
desses foliões anônimos, ele nomeava como uma modalidade. (SILVA, 2014, n.p.).

No total, oito modalidades foram classificadas por Nascimento do Passo, são elas: “Cinquentão”, “Gi-
nasta no Passo”, “Passo do Mamulengo”, “Passo do Capoeira”, “Passo do Bêbado”, “Passo da Criança”,

274
“Passo da Mulher Pernambucana” e “Passo do Carancolado” (QUEIROZ, 2009, p. 46). Com base
nas informações colhidas com o instrutor Gil Silva, durante pesquisa de campo realizada no Projeto
Frevo na Praça, buscou-se descrever o que representava cada modalidade, uma vez que não foi encon-
trado registro formal de tais informações. São elas:

• Modalidade Cinquentão: desenvolvida para representar o passista que, devido à sua ida-
de mais avançada, não fazia o passo com tanta habilidade. Esse passista era encontrado nos
clubes e atrás das orquestras, sua dança era marcada por passos curtos, lentos e inacabados,
mesmo assim, conseguia destacar-se na multidão por sua forma graciosa e harmônica de
brincar com o frevo;
• Modalidade Ginasta no Passo: desenvolvida para representar o passista que tinha como
repertório de passos, prioritariamente, movimentos que deixassem o seu corpo alongado.
Uma das características desse passista era a execução de passos que esticassem, ao mesmo
tempo, a perna e o braço;
• Modalidade Passo do Mamulengo: desenvolvida para representar o passista que, seguin-
do o ritmo da música, ficava balançando os ombros e os braços. A movimentação rápida
dos braços o diferenciava da multidão, pois sua dança lembrava uma marionete;
• Modalidade Passo do Capoeira: desenvolvida para representar o passista que seguia à
frente da orquestra de frevo com o objetivo de protegê-la de possíveis ataques de grupos
rivais. Dançava, utilizando, em sua maioria, movimentos de defesa da capoeira;
• Modalidade Passo do Bêbado: desenvolvida para representar as pessoas que tentavam
dançar o frevo estando alcoolizadas. O bêbado seguia atrás da orquestra, dando um verda-
deiro show de equilíbrio, ao tentar frevar sem deixar o copo de bebida cair;
• Modalidade Passo da Criança: desenvolvida para representar a maneira peculiar da crian-
ça frevar. Sua dança é marcada por passos realizados sem preocupação técnica, o constante
derrubar da sombrinha de frevo no chão e a tentativa, mesmo sem perfeição, de reproduzir
passos de outras pessoas, geralmente dos adultos;
• Modalidade Passo da Mulher Pernambucana: desenvolvida para representar a mulher
que dançava nos camarotes dos clubes. Sua dança era mais recatada, por ser feita, não raro,
sob a supervisão do marido. Encontrar uma mulher que se soltasse no frevo era difícil, ao
contrário, seu estilo beirava a elegância. Entre as principais características estavam os pe-
quenos movimentos dos pés, os braços elevados e o sorriso constante no rosto;
• Modalidade Passo do Carancolado: desenvolvida para representar o passista que exe-
cutava passos agachados, similares aos movimentos de um caracol. O passo que resultava
nesse movimento era um tipo de plantando mandioca sendo que cruzado, já a virada do
corpo deve ser oposta à do braço.

É importante frisar que a descrição das modalidades, acima citadas, como já dito, é fruto das infor-
mações e observações realizadas durante a pesquisa de campo, motivada exclusivamente pelo desejo
de registrar formalmente o que significa cada uma. No entanto, não se trata de uma definição fechada
e imutável. Principalmente por compreender que a proposta do MNP é convidar qualquer pessoa a
desenvolver novos passos, novas modalidades e novas formas de dançar o frevo, incentivando, assim,
o potencial criativo do aprendiz.

275
Os conceitos de família, variantes e modalidades [...] devem ser estimulados junto aos alunos. Esses
conceitos ou subdivisões do método podem ser considerados ferramentas para estimular a criativi-
dade e a procura por um estilo pessoal e devem ser pensados como forma de evitar a padronização
excessiva e a repressão da individualidade dos intérpretes do frevo. (VICENTE e KIRAN, 2015, p.
33, grifos dos autores).

A parte final da aula é a Roda do improviso, onde, dialogando com a música, o aluno, individu-
almente ou em par, entra no centro da roda e, com base nos passos aprendidos, no conhecimento
prévio do frevo, nas preferências pessoais, no seu humor no dia, entre outras variáveis, apresenta, sem
prévio planejamento ou coreografia, sua dança. A Roda do improviso, geralmente, ocorre no final
da aula, mas, dependendo do instrutor, pode acontecer mais de uma vez. Na Roda é possível colocar
em prática a proposta da família dos passos, tornando-se um dos momentos mais esperados da aula,
pois “no momento em que o aluno, através da roda, dá forma individual ao passo, vai ele mesmo se
percebendo, afirmando e/ou recriando sua identidade, se dando forma enquanto ser ativo, construtor
de uma cultura que também lhe pertence” (QUEIROZ, 2009, p. 48, grifo do autor). A roda é finalizada
com todos dançando ao mesmo tempo.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A descrição da aula utilizada para demonstrar o Método Nascimento do Passo foi focada apenas no
método. É importante ressaltar que a metodologia de ensino-aprendizagem adotada no Projeto Frevo
na Praça não foi abordada neste artigo. Em suma, o MNP é dividido em: aquecimento, alongamento,
técnica do frevo (modalidades, variantes, famílias dos passos) e a roda.

O aquecimento e alongamento preparam o corpo do aluno para iniciar a aula; as modalidades são for-
mas de dançar e de se movimentar levando em consideração a expressão corporal associada ao passo
em questão. Já as variantes são aqueles passos que partem de um único passo, no entanto eles são exe-
cutados de maneira diferente. As famílias são movimentos que podem ser ligados a outros, procurando
uma sequência lógica entre si. A roda tem como objetivo valorizar as singularidades do passista, sendo
o improviso a sua principal característica, onde o aluno pode apresentar seu entendimento do passo,
utilizando os movimentos aprendidos na aula aliados ao seu potencial criativo (QUEIROZ, 2006).

O Método Nascimento do Passo (MNP) foi criado e desenvolvido com a intenção de salvaguardar o
frevo, através da formação de passistas e ativistas. Ele almeja a criação de uma visão positiva da dança
do frevo, que resultasse na ampliação do espaço do frevo durante todo o ano. Para isso, seu método
pretendeu desenvolver uma sistematização da dança, com a ampliação dos passos do frevo e a utiliza-
ção exclusiva do frevo como ferramenta de ensino e preparação. (VICENTE e KIRAN, 2015, p. 32-33).

Nascimento do Passo faleceu no dia 2 de setembro de 2009, aos 73 anos de idade. Muitos dos seus
alunos criaram os seus próprios grupos e alguns chegaram a desenvolver um estilo próprio de ensino-
-aprendizagem da dança do frevo, conforme incentivava o Mestre Nascimento do Passo. E apesar de
ele não se encontrar mais nesse plano, uma coisa é fato: não importa em qual local do mundo você
esteja, se houver uma pessoa dançando frevo, ali estará o fruto do seu legado. Por isso, a sua contri-
buição para a preservação da dança do frevo deve ser lembrada e mantida viva na história da cultura
pernambucana.

276
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Maria do Carmo. Nascimento do Passo. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Re-
cife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>.  Acesso em: 13 abr. 2014.
PASSISTA reclama apoio oficial para o frevo. Diario de Pernambuco, Recife, 03 ago. 1976.
QUEIROZ, Lucélia A. de. Guerreiros do passo: multiplicar para resistir. 2009. Monografia (Especialização) –
Faculdade Frassinetti do Recife, Recife, 2009.
SILVA, Gil. Método Nascimento do Passo: depoimento [out. 2014]. Entrevista concedida a Rafaela Cristina Men-
des Gomes da Silva – Recife, PE.
VICENTE, Ana Valéria. Entre a ponta de pé e calcanhar: reflexões sobre como o frevo encena o povo, a nação e
dança no Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009; Olinda: Ed. Associação Reviva, 2009.
VICENTE, Ana Valéria; SOUZA, Giorrdani G. Q. de. Frevo para aprender e ensinar. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 2015; Olinda: Ed. Associação Reviva, 2015.

277
Pernas que andam corpos
que dançam: um diálogo com
a teoria das inteligências múltiplas
Avaci Duda Xavier

1. INTRODUÇÃO: UM CONVITE PARA DANÇA

A dança constrói, desconstrói, torna-se música no corpo de quem se movimenta, torna-se poesia
nos olhos de quem ver. Sentimos nossas emoções aflorarem ao assistir o clássico filme “Tango”, do
espanhol Carlos Saura, ou ficamos admirados com os movimentos frenéticos de um passista de frevo,
que, ao frevar, faz-nos ferver de alegria. França (2003), na sua tese de doutorado, fala-nos que dança

É a expressão que contamina. Quem é capaz de ver um passista frevando sem, ao mesmo tempo,
bater os pés no solo? Os movimentos, expressões, a disposição de espaço e tempo aqui retratados,
retroalimentam a energia para lidarmos com as expressões da corporeidade [...]. (FRANÇA, 2003,
p. 23-24).

Essas são apenas algumas sensações que nos tocam ao apreciar ou praticar dança. Dançamos todos
os dias, ao caminhar; dançamos na vida, quando somos feitos de tolos; dançamos nos palcos, quando
ensaiamos uma coreografia; dançam os bichos para acasalar; dançamos entre abraços para amar; dan-
çamos na rua, quando queremos quebrar a quarta parede dos teatros ou queremos emocionar aqueles
que não têm o hábito de apreciar arte.

Assim, entendemos que nossas pernas não apenas andam, mas bailam ao construir movimentos. Os
corpos bailam e, bailando, queremos apontar caminhos para a importância da Educação Física e da
Arte na construção de uma escola que transcenda o olhar tradicional e excludente que dialoga com
poucas disciplinas. Kohl (2007, p. 15) diz que “desde sempre, o eu-corpo, no conjunto do nós-corpos,
cria possibilidades qualitativas da expressão corporal como linguagem”.

Queremos uma escola em que todos se tratem com e nas suas diferenças, e não mais numa busca
incessante por um padrão de homogeneidade. A escola é o lugar da diversidade, da busca por uma
identidade em que os jovens possam aprender a aprender a ser, a fazer e principalmente a conviver,
como nos aponta Jacques Delors, quando fala da importância dos pilares da educação.

278
Neste diálogo, Santos (2003) nos fala da importância de uma escola em que todos sejam tratados nas
suas especificidades. Um local onde cada um tenha direito de escolher o que dançar, onde dançar e
com quem dançar.

[...] temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser
diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que re-
conheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.
(SANTOS, 2003, p. 56).

A Educação Física torna-se protagonista na quebra de muitos paradigmas, ao dialogar com espaços que
ultrapassam as paredes das salas de aula. Atletas, dançarinos, artistas..., todos acabam desenvolvendo
características que, para Gardner, não são apenas habilidades, mas inteligências, que são valorizadas
como tal.

É preciso, no entanto, que a escola, com o conjunto de seus sujeitos históricos, professores, alunos,
gestores, aproprie-se desse pensamento, a fim de problematizar situações de ensino-aprendizagem
com saberes que contribuam para que os alunos possam assumir o protagonismo de sua formação
educativa. “É por meio de nossos corpos, dançando, que os sentimentos cognitivos se integram aos
processos mentais e que podemos compreender o mundo de forma diferenciada, ou seja, artística e
estética” (MARQUES, 2007).

A linguagem da dança é visceral quando um(a) bailarino(a) reveste-se de emoções ao dançar. O


bailarino, o atleta, o mímico torna-se diferente, pois os treinos acabam transformando seu corpo,
dominando seus movimentos. “A dança, portanto, como uma das vias da educação do corpo criador
e crítico, torna-se praticamente indispensável para vivermos presentes, críticos e participantes na
sociedade atual” (MARQUES, 2007). Essas pessoas desenvolvem a inteligência cinestésico-corporal
com muito mais intensidade quando lapidam seus movimentos e seus corpos através de uma dança
que “cura ou mata”, que alivia ou destrói, que é verso ou prosa, que é água ou fogo, que abraça ou
afasta, que cicatriza ou faz sangrar.

1.1. Entendendo a teoria das Inteligências Múltiplas

A teoria das inteligências múltiplas surgiu a partir das ideias de Howard Gardner, em 1983, quando
o referido autor publicou o livro Estruturas da Mente, obra que veio para contrapor à visão limitada
com que a escola sempre tratou os seus discentes.

A teoria de Gardner se torna inovadora, a partir do indicativo para ampliar o olhar sobre a importân-
cia da valorização das diferentes inteligências. Durante muito tempo, as inteligências lógico-matemá-
tica e linguística eram vistas como as mais relevantes para a formação. Nesse contexto,

Em 1904, o ministro da educação pública de Paris pediu ao psicólogo francês Alfred Binet e a um
grupo de colegas que criassem um meio para determinar quais alunos do ensino fundamental esta-
vam “em risco de fracassar, para que pudessem receber uma atenção remediadora. De seus esforços
surgiram os primeiros testes de inteligência. (ARMSTRONG, 2001, p. 13).

279
Segundo Howard Gardner, a maioria dos testes de QI72 mediam apenas as inteligências lógico-ma-
temática e linguística. Acreditava-se que quem tivesse um bom resultado nas áreas citadas seria um
bom estudante e teria possibilidades de se tornar um profissional bem-sucedido.

Na década de 1980, com a teoria das Inteligências Múltiplas, Gardner propõe que todos os indivídu-
os, em princípio, podem desenvolver a habilidade de questionar e procurar respostas, usando todas
as inteligências. Com os seus estudos, Gardner propôs, a princípio, a existência de, pelo menos, sete
inteligências básicas.

As Inteligências Múltiplas podem ter um papel de grande relevância na escola, pois possibilita aos
professores avaliar os seus alunos de uma maneira mais ampla. Arreola (2010), no artigo “Las inteli-
gencias múltiples: un apoyo al proceso educativo” diz que,

La teoría de las inteligencias múltiples proporciona a los profesores un panorama diferente en


relación a los aprendizaje de los alumnos, esta teoría se puede convertir en una herramienta de
apoyo, si un alumno tiene dificultades para entender algo del modo tradicional, esta le permite
abrirse a una metodología amplia, en la que se incluyan ejercicios y actividades, y llegar con mayor
seguridad a los diferentes perfiles o inteligencias de los alumnos en la actualidad, lo cual garan-
tizará un aprendizaje significativo, que pueda perdurar en ellos para su futuro y que les permita
poder desarrollarse como profesionistas y como seres humanos en las actividades que ellos elijan.
(ARREOLA, 2010, p. 6).

A escola, quando se faz protagonista, não pode segregar os componentes curriculares, seus discentes e
seus docentes, muito embora, “ainda seja muito forte na educação do Brasil uma educação alicerçada
numa pedagogia voltada para a transmissão de conteúdos, de caráter funcional, que ignora a diversi-
dade cultural, impondo saberes legitimadores da dominação (KOHL, 2007)”.

1.2. Dialogando com Educação Física e Arte

Nossa pesquisa dialogou com vários estudantes, pessoas que dançam e pessoas que não dançam, cor-
pos que bailam e corpos que passam.

Analisando os parâmetros nacionais do componente curricular arte, constatamos que esses nos
apontam algumas possibilidades que, em consonância com a educação física, podem ser muito
importantes,

A dança é uma forma de integração e expressão tanto individual quanto coletiva, em que o aluno
exercita a atenção, a percepção, a colaboração e a solidariedade. A dança é também uma fonte de
comunicação e de criação informada nas culturas. (BRASIL, 1997, p. 44)

Neste contexto, como não levar em consideração a dança como mola propulsora de desenvolvimento
cognitivo? Marques (2007), no livro Dançando na Escola, nos aponta que

72. Testes utilizados para aferir o grau de inteligência (Q I – Quociente de Inteligência)

280
A bandeira da arte como forma de conhecimento já é bastante conhecida e acenada pelos professores
de arte. Este argumento tem sido, inclusive, um dos mais usados para convencer os meios escolares
e políticos de que a arte deve ter um lugar próprio no currículo escolar com a mesma importância e
carga horária que as demais disciplinas. (MARQUES, 2007, p. 24).

Na construção do presente trabalho, dialogamos também com as obras de Gardner (1983), Freire
(1996), Antunes (2012), Armstrong (2001), entre outros, a fim de encontrar soluções para as nossas
inquietações. Na tentativa de encontrar tais respostas, estamos realizando uma pesquisa de cunho
qualitativo, tendo como norte metodológico uma abordagem etnometodológica. Esta pesquisa se
propõe a conhecer como as inteligências múltiplas podem ser importantes na construção de um cor-
po que dança.

Buscamos responder à seguinte pergunta: quais as inteligências mobilizadas pelos alunos da EREM
Severino Farias? Entendemos que as pessoas são diferentes, e como tal, tem gostos, aptidões, habili-
dades e inteligências distintas.

Antunes (2012) diz que dançarinos, escultores, cirurgiões e instrumentistas, bem como grandes mí-
micos desenvolvem uma maneira diferenciada e hábil para expressar seus movimentos. Nesse contex-
to, a linguagem gestual se apresenta muito nítida no artista e no atleta, de forma que não necessitam
elaborar cadeias de raciocínios na execução de seus movimentos corporais.

A Educação Física e a Arte têm um importante papel na formação da identidade do estudante, bem
como na construção de um corpo que não se move apenas, mas se descobre como ser que dança.

2. OBJETIVOS

Objetivo Geral:
• Analisar as inteligências mobilizadas pelos alunos da EREM Severino Farias.

Objetivos Específicos:
• Identificar as inteligências mobilizadas pelos alunos que dançam.
• Compreender como a teoria das inteligências múltiplas pode contribuir na aprendizagem dos alunos.

3. METODOLOGIA

O presente trabalho de pesquisa é de cunho qualitativo, tendo como norte metodológico de constru-
ção as categorias da abordagem etnometodológica. De acordo Coulon (1995, p. 30),

A etnometodologia é a pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido
e ao mesmo tempo realizar as suas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões, raciocinar.

Escolhemos fazer essa abordagem metodológica, porque ela se baseia no fato de identificarmos a
necessidade de uma concepção teórica que nos possibilite compreender a ação cotidiana dos atores
sociais da pesquisa (ARAÚJO, 2012).

281
Para a realização desse trabalho, está em curso uma pesquisa de campo numa escola de ensino médio
da rede estadual de educação na cidade de Surubim. O próprio pesquisador ministrou uma aula ex-
positiva dialogada para seis turmas, além de terem sido aplicados 145 questionários, com o objetivo
de conhecer as inteligências mobilizadas pelos alunos pesquisados.

Utilizando-nos da etnometodologia, escolhemos três conceitos que estão relacionados com a nossa
temática. Pontuamos princípios, como a prática e a realização, a reflexividade e a dialogicidade.

Para a análise dos nossos resultados, buscamos estudar as informações coletadas, os materiais siste-
matizados e a explicitação dos conteúdos registrados. O significado é tomado como principal refe-
rencial. O processo de análise dos dados está sendo realizado a partir das categorias da abordagem
etnometodológica. Paulo Freire considera que o docente não deve se limitar ao ensinamento dos
conteúdos, mas, sobretudo, ensinar a pensar, pois “pensar é não estarmos demasiado certos de nossas
certezas” (FREIRE, 1996, p. 28).

Acreditando que a Teoria das Inteligências Múltiplas pode ter um papel central na escola atual, vol-
tamos a dialogar com Freire, quando ele diz que: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar
as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”  (FREIRE, 1996, p. 21). Dessa forma,
entende-se que a aprendizagem acontece dentro e fora das salas de aula, desde que exista uma preo-
cupação com o ato de ensinar.

Nesse aspecto, Pereira et al. colocam que:

[...] a dança é um conteúdo fundamental a ser trabalhado na escola: com ela, pode-se levar os alunos
a conhecerem a si próprios e/com os outros; a explorarem o mundo da emoção e da imaginação; a
criarem; a explorarem novos sentidos, movimentos livres [...]. Verifica-se assim, as infinitas possibi-
lidades de trabalho do/para o aluno com sua corporeidade por meio dessa atividade. (PEREIRA et
al., 2001, p. 61).

No artigo, Dança escolar: uma possibilidade na Educação Física, (GARIBA; FRANZONI, 2007, p. 13
- 14) apontam, em suas conclusões que,

A dança inserida na disciplina de Educação Física favorece a possibilidade da elaboração de um cur-


rículo não restrito ao ensino do desporto e abre espaço para se trabalhar a dança em suas diferentes
abordagens. [...] esse profissional liberta-se do estereótipo de que seu único espaço de atuação são as
quadras de esporte, identificando-se cada vez mais como educador.

Rudolf Laban, no seu livro Domínio do movimento, nos apresenta seu pensamento sobre a dança,
quando diz que,

O HOMEM se movimenta a fim de satisfazer uma necessidade. Com sua movimentação, tem por
objetivo atingir algo que lhe é valioso. É fácil perceber o objetivo do movimento de uma pessoa, se é
dirigido para algum objeto tangível. Entretanto, há também valores intangíveis que inspiram movi-
mentos (LABAN, 1978, p. 19).

282
Compreendemos que a dança é uma mola propulsora que pode colaborar no desenvolvimento da
inteligência cinestésico-corporal e de muitas outras inteligências que o jovem pode desenvolver. A
escola, ao se tornar um espaço de transformação social, possibilita aos seus estudantes se tornarem
protagonistas de suas vidas. Partindo do princípio de que a escola é um espaço para a inclusão, enten-
demos que esta deve incentivar seus alunos a irem além do aprendizado cognitivo que se consolidou
durante muito tempo como função da escola.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesta pesquisa, temos detectado que muitos jovens apresentam dificuldades em mobilizar algumas
inteligências, em especial, a linguística. Constatamos, ao analisar os dados e dialogar com os sujei-
tos pesquisados, que, mesmo a inteligência linguística sendo uma das mais valorizadas pelo sistema
educacional da rede estadual, essa valorização não se reflete na aptidão dos alunos em ações simples,
como ler, escrever e interpretar. Muitas pessoas ainda não têm compreendido que a língua escrita não
é uma representação da língua oral. A professora Magda Soares nos afirma que “[...] não se escreve
como se fala, mesmo quando se fala em situações formais; não se fala como se escreve, mesmo quan-
do se escreve em contextos formais” (SOARES, 2007, p. 17).

Os alunos que dançam na escola acabam desenvolvendo outras habilidades, além da inteligência
corporal. (BETTI, 1994a, 1994b) diz que “A Educação Física deve, progressiva e cuidadosamente,
conduzir o aluno a uma reflexão crítica que o leve à autonomia no usufruto da cultura corporal de
movimento”. Entendemos que essa disciplina colabora ativamente na construção da cultura corpo-
ral dos jovens, assim como a Arte que dialoga diretamente com a subjetividade e o imagético das
pessoas.

A seguir apresentamos alguns resultados em forma de tabelas dos sujeitos investigados.

Tabela 1: Pessoas que não dançam – inteligências mobilizadas

Inteligência Sim de 1450 Não de 1450 Porcentagem


Interpessoal 1003 447 69,17%
Intrapessoal 947 503 65,31%
Espacial 838 612 57,79%
Musical 830 620 57,24%
Matemática 729 645 50,27%
Naturalista 698 752 48,13%
Corporal 698 752 48,13%
Linguística 555 895 38,27%
Fonte: O autor.

283
Tabela 2: Pessoas que Dançam – inteligências mobilizadas

Inteligência Sim Não Porcentagem


Interpessoal 79 21 79 %
Intrapessoal 69 31 69%
Musical 69 31 69%
Corporal 60 40 60%
Espacial 56 44 56%
Matemática 54 46 54%
Linguística 43 57 43%
Naturalista 42 58 42%
Fonte: O autor

No caso dos alunos que dançam, evidenciaram-se algumas semelhanças com os que não dançam,
no que se refere às inteligências mobilizadas por ambos os grupos. Percebemos que as pessoas que
dançam também demonstraram grande interesse pelas inteligências interpessoal e intrapessoal. Uma
especificidade relevante é a aptidão para atividades que possibilitam a mobilização da inteligência
cinestésico-corporal, ponto que foi detectado em menor proporção nas pessoas que não praticam
dança.

Outro dado importante é o fato de que os alunos que dançam acabam desenvolvendo mais ativamente
a noção de espaço e musicalidade. Compreendemos nesse aspecto que a dança aproxima, resgata,
possibilita o encontro, o protagonismo.

Os resultados vêm mostrar que todo ser humano é capaz de mobilizar várias inteligências, de modo
diferenciado, respeitando as afinidades de cada indivíduo. Dialogamos mais uma vez com Marques
(2007), quando ela nos aponta que: “[...] os alunos podem ser educados em e pela dança do mesmo
modo que a teoria e a prática podem se relacionar” (grifo da autora).

É necessário que a escola se aproprie da teoria das inteligências múltiplas como suporte que pos-
sa colaborar com a aprendizagem dos alunos. Os Parâmetros para a Educação Básica do Estado de
Pernambuco (2013, p. 40) afirmam que “A dança se vale do corpo em movimento como um meio
de expressão, comunicação e criação. Assim, a linguagem da dança merece e precisa ser ensinada,
aprendida e vivenciada”. Concordarmos, inteiramente, com essa afirmação, por acreditar que a escola
é um espaço de inclusão que favorece a diversidade e a pluralidade cultural. Volto a Marques (2007),
quando ela nos diz que “uma educação pela dança encobre a possibilidade de os alunos serem edu-
cados em dança”.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais na área de arte (1996) nos apontam muitos benefícios que a
dança pode proporcionar às pessoas:

284
A atividade da dança na escola pode desenvolver na criança a compreensão de sua capacidade de
movimento, mediante um maior entendimento de como seu corpo funciona. Assim, poderá usá-
-lo expressivamente com maior inteligência, autonomia, responsabilidade e sensibilidade. (PCN’s,
1996, p. 41).

Dessa forma, entendemos que essa atividade física, tanto no âmbito da cultura corporal como no
aspecto artístico, pode colaborar de forma relevante na construção da personalidade do indivíduo
que a pratica.

Considerações finais

Ao compreender o papel da escola, enquanto instituição que se propõe a formar um cidadão crítico e
consciente do seu papel, entendemos que é preciso valorizar todos os componentes curriculares, in-
clusive a Educação Física e a Arte, pois estas podem colaborar na mobilização das várias inteligências
nos discentes.

Os Parâmetros Curriculares de Pernambuco (2013), afirmam que “A Educação Física deve ainda ins-
trumentalizar e incentivar os estudantes a criarem e/ou ressignificarem as práticas corporais.” Enten-
demos que a citada disciplina, ao assumir um papel protagonista na construção de uma escola, pode
contribuir mais ativamente na formação social dos seus alunos.

Referências

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ARAÚJO, Mônica Lopes Folena. O quefazer da educação ambiental crítico-humanizadora na formação inicial
de professores de biologia na universidade. 242 f. 2012. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.
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americano de la comunicación Educativa-Red Escolar. Méxio/ MEX: Revista e-FORMADORES, ILCE/ Red
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ARMSTRONG, Thomas. Inteligências múltiplas na sala de aula. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.
BETTI, M. Valores e finalidades na Educação Física escolar: uma concepção sistêmica. Revista Brasileira de
Ciências do Esporte, v. 16, n. 1, p. 14-21,1994ª.
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Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1998.
COULON, Alain. Etnometodologia e Educação. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis/RJ: Vozes,
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FRANÇA, Tereza Luiza de. Lazer – Corporeidade – Educação: o saber da experiência cultural em prelúdio. 2003.
Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2003.

285
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GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre: Artes Medicas,
1983.
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KOHL, Henrique Gerson. Gingando na prática pedagógica escolar: expressões lúdicas no quefazer da educação
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LABAN, R. Domínio do movimento. (Org.) por ULLMANN, Lisa. São Paulo: Summus, 1978.
MARQUES, Isabel A. Dançando na escola. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
PEREIRA, Silvia Raquel C. et al. Dança na escola: desenvolvendo a emoção e o pensamento. Revista Kinesis,
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PERNAMBUCO. Parâmetros para a Educação Básica do Estado de Pernambuco Parâmetros Curriculares de
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SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp. 2003.

286
Entrelaces do Yoga e o ensino
da dança: percepções a partir
da observação de aulas de dança
no ensino não formal
Leandro Henrique Regueira de Mendonça/
Guilherme Rodrigues Silveira Kokeny

INTRODUÇÃO

Refletindo sobre a observação do ensino da dança, realizada a partir da disciplina de práticas do ensi-
no das artes cênicas, percebemos que é necessário uma íntima ligação entre o que se faz em aula e as
práticas diversas do professor. A partir dessa ideia estruturadora, era necessário investigar dentro de
nossas próprias vivências, relações com a prática da professora que estava sendo observada. Uma pis-
ta dos entrelaces da prática do professor de dança e o yoga surgiu diante da nossa simultânea forma-
ção em arte educação e instrutor de yoga. Essa relação foi estabelecida como base de nossa pesquisa e,
a partir dela, começamos a tecer algumas investigações no âmbito da docência em dança.

Durante o estágio de observação, pudemos acompanhar as turmas de Dança Contemporânea (iniciante),


Dança de Salão (iniciante), Dança para criança e o Grupo de pesquisa em dança. Todas as turmas fazem
parte dos cursos oferecidos pelo SESC Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, e ministrados por Ivana
Motta, que possui graduação plena em dança pela Universidade Estadual de Campinas em São Paulo.

O ensino da arte no Brasil teve início no ano de 1971, quando:

[...] de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a arte é incluída no currículo
escolar com o título de educação artística, mas é considerada “atividade educativa”, sem valor de dis-
ciplina. O conteúdo era mais voltado aos trabalhos manuais e desenho geométrico ou canto e coral.
(VOLPE, 2006, n.p.).

Neste período, a arte era ensinada por artistas, pois não havia formação acadêmica. O curso superior
em educação artística foi criado, inicialmente, de forma polivalente e com duração de somente dois
anos, o que claramente resultou em uma aprendizagem superficial da arte.

287
Posteriormente, a arte foi reconhecida como disciplina no ensino básico, tendo entrado a dança, se-
gundo Porpino (2012), como parte da disciplina somente no ano de 1997.

É fato que o ensino da dança no Brasil não começou em 1997, pois, nos espaços não formais, já existia
muito antes das Diretrizes de Bases (LDB), e é este tipo de ensino exercido nos espaços não formais
que abordaremos neste artigo, de acordo com as observações feitas a partir da cadeira de Práticas de
ensino I, do curso de Artes Cênicas da UFPE.

1. ENTRELACE DO ENSINO DA DANÇA E DO YOGA EM ESPAÇOS NÃO FORMAIS

O ensino de dança nos espaços formais fez um grande progresso com a inclusão da dança como par-
te da disciplina de arte, mas são nos espaços não formais, que se continua obtendo resultados mais
expressivos.

As discussões em torno do termo espaço não formal são abrangentes e, assim, como Jacobucci (2008a),
acreditamos que é preciso entender primeiro o que é espaço formal para depois prosseguirmos em
busca de um conceito que melhor represente o espaço não formal. Ainda de acordo com Jacobucci
(2008b), os espaços formais são caracterizados por se firmarem numa educação garantida por lei e
organizada dentro de padrões nacionais. Em síntese:

[...] pode-se dizer que os espaços formais de Educação referem-se a Instituições Educacionais, en-
quanto que os espaços não-formais relacionam-se com Instituições cuja função básica não é a Edu-
cação formal e com lugares não-institucionalizados. (JACOBUCCI et al, 2008).

Partindo desta premissa, podemos entender o SESC Piedade como um espaço de educação não for-
mal, onde são realizadas atividades dentro desta perspectiva. Incluiremos, aqui, o curso de formação
de instrutor em Hatha Yoga, do qual fazemos parte, para as devidas relações e estudo entre a dança e
o Yoga. O curso Hatha Yoga é introdução à medicina Ayurvedaé, sediado no espaço Libertas, unidade
de Casa Amarela, ministrado por Fernando Sujan, primeiro a trazer aspectos da medicina Ayurvédica
no Recife.

A autonomia oferecida pelos espaços não formais possibilita a inserção de novos métodos e olhares
acerca da utilização do ensino da dança e do yoga, acrescentando-lhes o caráter hibrido, mesmo den-
tro de uma escola tão tradicional como a do Hatha Yoga.

As aulas ministradas nos cursos do SESC Piedade têm como base a poética e vivência da professora,
interferindo de forma mais direta na sala de aula, diferente da educação formal. Da mesma forma se
dá o curso de formação em Hatha Yoga, no espaço Libertas, onde o professor adapta alguns dos ensi-
namentos à realidade ocidental, imprimindo sua poética dentro do ensino do yoga.

A flexibilidade presente nos espaços não formais não elimina a cobrança por um resultado, assim
como acontece nos espaços formais. A diferença é o tipo de apresentação deste produto. No que diz
respeito à dança, os professores das instituições formais sofrem uma imensa pressão para que o re-
sultado seja um espetáculo onde os pais possam apreciar os dotes e habilidades dos filhos, exibindo-

288
-os no palco como troféus. Já no ensino não formal, o caráter experimental pode ser abordado com
mais liberdade, pois existe a preocupação com o ego dos pais, que é posta em segundo plano, quando
interessa mais ao professor as questões de quem dança e a satisfação dele enquanto dançarino e ser
consciente de sua individualidade.

No Hatha yoga, o instrutor deve seguir o modelo clássico de aula, tendo a liberdade de alterar a or-
dem dentro de uma estrutura predefinida por questões fisiológicas e holísticas, limitando o seu olhar
enquanto pesquisador, quando o mesmo é. Em Pernambuco, o yoga permeia o campo da educação
não formal, começando a ganhar espaço dentro da educação formal nos níveis de pós-graduação,
seguindo vertentes terapêuticas ou da área de saúde. Apesar de firmado na educação não formal, o
instrutor de yoga também sofre com a pressão de um produto, tendo às vezes que estabelecer metas
para satisfazer as individualidades dos alunos, por vezes abrindo mão de alguns princípios do yoga
para adaptá-lo à cultura ocidental. Aspectos como a quebra do ego por meios psicofísicos ou medi-
tação ativa, os Asanas, ao contrário da dança, podem ser melhores explorados na pequena parcela do
yoga inserido no ensino formal, pois não há a preocupação com a satisfação do ego de quem participa
da aula por não fazer parte de um mercado, como acontece com o ensino em espaços não formais.

A finalidade do yoga e da dança variam de acordo com os espaços em que essas práticas holístico-
-corpóreas estão inseridas, afetando diretamente na forma em que serão abordadas, podendo, até
mesmo, serem desviadas de seus princípios essenciais, como no caso da dança, quando se resume à
coreografia, e do yoga, visto apenas como fitness.

2. O YOGA NO CAMINHO DA DANÇA

É possível detectar dentro do ensino da dança algumas práticas que mostram resquícios da utilização
do yoga na dança praticada atualmente, podendo ser visto não como o yoga em sua totalidade, mas
o uso a partir de seus princípios fisiológicos. Observando entre muitas vivencias em dança, aulas,
cursos, espetáculos e preparações corporais, assim como, em livros, teses, dissertações e estudos, é
pontual o uso do yoga para preparação do corpo em relaxamento e alongamentos, em posturas do
corpo e movimentação a partir de três elementos básicos do yoga: Meditação (Samadhi), Alinhamen-
to postural (Asana73) e controle da respiração (Pranayama).

Dentro desta pesquisa, é preciso entender as diversas relações entre o yoga e a dança. Procuramos as
relações do uso do yoga em sua história para entendermos a utilização na dança na contemporanei-
dade. Veremos então relações na história da dança em que há a utilização da prática do yoga como
meio de preparo para um corpo dançante, ou como estruturador físico e espiritual e até mesmo como
base coreográfica.

Os primeiros sinais da existência da dança são encontrados em registro rústicos da era pré-histórica.
É possível encontrar em desenhos rupestres marcas de que o homem realizava, em seus rituais, dan-
ças primitivas de caça, dança para proteção dos eventos da natureza, ou de celebração, sendo inti-
mamente ligados ao sagrado. Durante muito tempo, a dança seria considerada ritualística, passando,

73. Asanas são posturas psicofísicas praticadas no yoga.

289
posteriormente, a ter um caráter mais festivo, abandonando, aos poucos, a ligação com o ritual. Nessa
mudança, ela passa a ser mais esquemática e mantém regras mais predefinidas, como passos e coreo-
grafias. No século XV, nasce o movimento mais expressivo da dança, o Balé, que passa a manter maior
codificação técnica e garante à dança uma visão mais profissionalizante. Essa hegemonia só viria a ser
quebrada cinco séculos depois pela dança moderna, movimento que se instala na história da dança,
juntamente com acontecimentos da história mundial, que modificaram os panoramas do mundo e do
pensamento humano, constituindo uma nova sociedade.

A dança moderna nasce no início do século XX, sendo o marco desse novo movimento a norte ame-
ricana Isadora Duncan, que propõe algumas quebras no padrão da dança clássica. Além de Duncan,
uma das principais pioneiras da dança moderna foi Ruth St. Denis, um nome de grande importância
para nossa investigação.

St. Denis investigava a dança a partir de valores espirituais relacionados ao campo místico do Oriente;
dentre eles, a cultura Egípcia, Indiana, Japonesa e Babilônica. Além dos valores espirituais, ela agrega-
va a estética oriental à sua dança, junto às matrizes presentes nos tipos de representações do oriente,
quebrando os paradigmas do Ballet Clássico, assim como Isadora Duncan.

Em 1915, Ruth St. Denis, juntamente com seu marido, Ted Shawn, fundam a escola de dança Denisha-
wn, que dá origem à Companhia de mesmo nome.

Students came to Denishawn from all over the country. Along with classes in ballet and ethnic dance,
they took courses in music, dramatic gesture, lighting, makeup, and costume design. They attended
lectures on the history and philosophy of dance, joined discussions on Oriental art and Greek phi-
losophy, and had sessions in yoga and meditation conducted by Miss Ruth wering on of her many
sari as the students sat at her feet. (FREDMAN, 1998).

St. Denis já tinha influência do Yoga em sua dança. Ela trouxe a filosofia e a pratica do Yoga para a
dança moderna como prática corporal de treinamento para dançarinos em sua escola/companhia.

Diversos nomes importantes da dança moderna passaram pelas influencias de Ruth St. Denis,
como Doris Humphrey e Charles Weidman. Um dos nomes mais notáveis que leva a prática do yoga
adiante é Martha Graham.

Graham passou pela Denishawn, em 1926, e, além de aluna, fez parte da companhia. Sofreu, nessa
época, grandes influências das habilidades que adquiriu na escola, mas era inquieta quanto ao objeto
abordado por St. Denis. Ela ansiava por tratar de temas sobre seu país, temáticas que falariam do ho-
mem norte americano e, por isso, começou um caminho solo pela investigação na dança.

Na procura por sua própria poética “She read widely as she was searching for ideas and inspiration,
studying psychology, yoga, potry, the Greekmyths, the bible” (FREDMAN, 1998), ou seja, Graham pro-
curava, em diversas áreas, inspirações que a auxiliasse em sua dança, e uma delas foi o Yoga. Apesar
das influências orientais e o desejo de construir uma dança mais americana, Graham não exclui seu
aprendizado na Denishaw.

290
Em termos de técnica corporal e estética, foi dado a Graham explorar todo o potencial subjacente à
herança oriental que ela herdou pessoalmente de St. Denis. Sua técnica mantém muito da linha “pri-
mitiva” oriental que St. Denis popularizou no ocidente. E foi Graham (...) quem primeiro objetivou o
que veio a se tornar uma espécie de “bíblia” da dança moderna, que Isadora Duncan tinha vislumbra-
do apenas subjetivamente: o movimento inicia-se a partir do centro. Localizando este ponto dentro
do corpo e concebendo que a energia flui desse centro para fora, Graham abriu novas perspectivas
para a apropriação do oriente pelos dançarinos modernos (WHEELER apud ANDRAUS et al, 2013).

São notórios alguns aspectos da técnica desenvolvida por Graham advindo do yoga. A respiração para
Graham, assim como para o yoga, exerce um papel importante na reestruturação do corpo através do
movimento. Dentro de sua técnica:

O que a bailarina Martha Graham propôs, em meados da década de 1950, com a elaboração de uma
técnica influenciada por um pensamento oriental, a partir da Yoga, foi reunir no corpo um pensar
e mover simultâneos a partir do uso da respiração. A artista desejava liberar a musculatura e, as-
sim, produzir modificações anatômicas, encontrar diferentes dinâmicas, numa sucessão contínua a
reverberar por diversas partes do corpo (LEAL, 2006). Ela deseja fluir no movimento (GIL, 2004),
produzindo uma nova relação consigo e com o mundo. (GONÇALVES, 2012).

Aspectos mais sutis foram trazidos para sua técnica como a ideia de Kundaline:

O olhar de Martha Graham para o oriente estava voltado especialmente para a questão da técnica. O
uso de contrações partindo da pélvis, uma das maiores características de seu trabalho, tem relação
com sua experiência em yoga, que foi também a experiência de outros coreógrafos que a sucederam,
como Anna Halprin. Segundo Wheeler, Graham usava explicitamente o termo kundalini, oriundo do
yoga, para corrigir os alunos: “there’s no kundalini” (McDONAGH apud WHEELER, 1984, p.169),
dizia ela. (ANDRAUS et al, 2013).

Kundaline é uma energia sutil visada na prática do yogui74. Essa energia visa uma movimentação sutil
dentro de um grande esforço físico. No yoga, pode ser obtida através do pranayama e de tonificação
do músculo.

Na estruturação técnica, foram usadas, também, ideias que partiram do corpo adquirido pelo yoga:

Wheeler cita muitos exemplos de apropriação do Oriente no trabalho de Graham no âmbito da téc-
nica: a ideia de originar os movimentos da pélvis; o uso da postura sentada com as pernas cruzadas,
oriunda do yoga, em três sequências de seu trabalho de aquecimento; a coordenação entre respira-
ção e movimento, associando expiração com contração e inspiração com relaxamento, entre outras
(ANDRAUS et al, 2013).

E:

An intensely reflective and innovative artist, Graham created a movement vocabulary and danced
philosophical statements that revolutionized concert dance traditions at the time. Deeply influenced

74. Yogui é o praticante do yoga dentro de todas as esferas, não só física.

291
by Asian movement forms, she drew on principles of yoga to make the floor a partner with the mo-
ving body and work in different ways with the spine (SHOOK, 2005).

Técnicas estas que viriam para modificar a estrutura da dança, como o movimento articulado da
espinha e a dança de solo.

Merce Cunningham e Steve Paxton, grandes nomes da dança moderna, utilizaram do yoga como in-
fluência no seu trabalho. Paxton sofreu influências principalmente nos exercícios de respiração em
sua técnica de contato improvisação.

Vinhas (2007) relata que para esta técnica de dança contemporânea, pesquisada na Oberlin College,
na Faculdade de Oberlin, Ohio, paradoxalmente, não existe uma forma de certificação institucional
para professores. Seu criador, Steve Paxton, utilizou diversos recursos para treinamento, ou prepara-
ção corporal dos dançarinos, que envolviam técnicas de relaxamento, visualização interna do movi-
mento, exercícios respiratórios com uso da Yôga e princípios do Aikido (FARIA, 2013).

Na dança da contemporaneidade, a busca por novas formas de ver o corpo e práticas corporais diver-
sas dentro do estilo de dança próprio é indispensável. Esta é uma herança do pensamento da dança
moderna que perpetua até os dias atuais. Dentro dessa busca por uma corporeidade múltipla, arraiga-
da em diversas formas e possibilidades, exige, também, uma busca pelo corpo, dentro dessas diversas
formas, saudável, orgânico e original.

Segundo Louppe, desde o começo dos anos 1990 começaram a surgir reações a esse “deslocamento”
do bailarino. A autora identifica duas reações opostas: a primeira sugere a volta do interesse pelos
grandes ensinamentos e práticas fundadores da modernidade/contemporaneidade do corpo. Esse
movimento, que busca um “resgate da herança perdida”, justifica a nova onda de interesse pelos ar-
tistas que fizeram a história da dança no século XX, seja na programação de eventos ou na formação.
É um retorno à procura (iniciada nos anos 1960 com a dança pós-moderna americana) de um corpo
autônomo e consciente, formando em continuidade com princípios filosóficos e corporais sólidos e
independentes das leis do mercado e das tendências estéticas vigentes. Este “retorno ao corpo”, para
usar a expressão de Isabelle Ginot, pode ser relacionado a uma visão “essencialista” do corpo, ligada
às tradições modernas. Resgatar um corpo original, orgânico e verdadeiro, a partir do investimento
nas técnicas somáticas alternativas (yoga, artes marciais, Alexander, Feldenkrais, etc.) e nas práticas
de improvisação. (BARBOSA, 2008).

Resquícios do yoga na dança são visto na estruturação de alguns alongamentos, aquecimentos e pos-
sibilidades de movimentação do corpo, sendo, provavelmente, herança desses mestres da dança.

3. APROXIMAÇÕES DO YOGA COM A DANÇA E A EDUCAÇÃO SOMÁTICA

Durante o período de observação no estágio, notamos o uso de elementos do yoga (asanas) pela pro-
fessora, ao mesmo tempo em que ele vinha de forma inconsciente como elemento de reestruturação
corporal e de ganhos apenas fisiológicos, a partir de uma abordagem somática.

A educação somática

292
[...] é um campo teórico-prático composto de diferentes métodos cujo eixo de atuação é o movi-
mento do corpo como via de transformação de desequilíbrios mecânico, fisiológico, neurológico,
cognitivo e/ou afetivo de uma pessoa (BOLSANELLO, 2011).

Para a dança, a educação somática é um elemento reestruturador do corpo do dançarino, pois traba-
lha o indivíduo em todas as esferas: corporal, cognitiva e holística. Esta vertente pedagógica pode ser
observada nas aulas da professora Ivana e em sua formação, que se inicia no ballet clássico, firma-se
na dança contemporânea, passando pelas danças populares, hip hop e danças circulares, moldando
seu corpo a diferentes padrões de movimentos e técnicas.

O histórico de vivências em dança da professora Ivana possibilita um olhar mais abrangente no que
se refere às técnicas e práticas corporais utilizadas para dança e da própria dança, em busca de uma
reorganização do corpo cotidiano para o corpo que dança. O corpo que dança exige do indivíduo
possibilidades que o corpo cotidiano, moldado à nossa sociedade, não contempla. Os encurtamentos
ou falta de alongamento são chamados de contrações e. para a dança. Essas contrações precisam ser
distencionadas, abrindo espaços no corpo do dançarino para a fruição do movimento. Essas contra-
ções vistas pelo aspecto somático se dão não só a partir de questões fisiológicas, mas também holís-
ticas, como o conceito de bloqueios energéticos presentes tanto no yoga, com as Nadis75, quanto na
teoria de Reich, com as couraças musculares76.

O caminho para os desbloqueios energéticos no yoga são através dos asanas, e, na dança, pelos exer-
cícios que a precedem: os alongamentos, aquecimentos, exercícios rítmicos a partir de partituras de
movimentos, etc. Observando a prática da professora neste processo prévio à dança, pudemos notar
a inserção de alguns asanas visando à preparação do corpo.

Para os indianos, o yoga vai além de uma prática corporal: é uma filosofia de vida.

Ioga significa atar, juntar, prender, unir, ligar – elevar a inteligência do corpo ao nível da mente e então
atar as duas para uni-las à alma. O corpo e o planeta terra com toda sua diversidade. A alma e o espírito, o
céu acima de nós. A ioga é o instrumento que liga os dois, a multiplicidade à unidade. (IYENGAR, 2007).

O yoga dialoga com a educação somática, por uma vertente alternativa, entendendo o indivíduo como
ser integrado com o corpo, mente e alma. Os asanas utilizados na dança como exercício exercem outro
papel no yoga. Além dos benefícios do alongamento, os asanas trabalham as respirações e distensões
energéticas e musculares por meio do autoconhecimento do corpo e do indivíduo. No Hatha yoga,
a sequência de asanas funciona como um tipo de meditação ativa, onde o indivíduo, ao trabalhar o
corpo, trabalha também aspectos morais e éticos. Um bom exemplo é o respeito que o praticante de
yoga deve ter com o seu próprio corpo, trabalhando dentro de seus limites e possibilidades.

Na contemporaneidade, diferente da modernidade, o que chega de herança do uso do yoga, por St.
Denis, Graham e tantos outros na dança, são apenas aspectos físicos, sendo o yoga uma prática que

75. Nadis são canais energéticos responsáveis pela manutenção dos Chakras.
76. “A rigidez muscular e a rigidez física são uma unidade, sinal de uma perturbação de motilidade vegetativa do sistema biológico como
um todo” (REICH apud FARIA, 2009).

293
agrega muitas outras possibilidades que, se levado em conta e abordado de forma consciente, será
visto com um grande retorno da dança ao uso de um yoga mais próximo de sua essência e de outros
aspectos da dança e educação somática que carecem de estar mais presente nas práticas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessas ideias que convergem na dança, no yoga e na educação somática e que em seu cerne
têm algumas relações íntimas nos objetivos e, por vezes, semelhantes, é possível observar afastamen-
tos e pensamentos paralelos. Foi satisfatória a nossa busca em diversos campos de pesquisa, na his-
tória, nas filosofias e nos pensamentos dos objetos estudados. Encontramos resquícios de caminhos
que se entrecruzam e se afastam e ficou confirmado nossa pergunta inicial sobre a existência de um
cruzamento entre o yoga e a dança, no qual a dança carregou certos princípios e movimentos do yoga.

Nosso intuito inicial ao optar pelo estudo do campo de ensino da dança em nossa prática de ensino
não tinha qualquer relação com o yoga, mas, devido a uma prática simultânea das duas linguagens,
foram dispersos interesses comuns e naturais a todo pesquisador.

Por fim, entendemos que, apesar de todo o entrecruzar entre o yoga e a dança, alguns aspectos origi-
nais do yoga citados no decorrer do texto foram sendo esquecidos ou eliminados pela dança, com o
intuito de extrair apenas aquilo que achava ser necessário, porém, mais tarde, com a ideia da educação
somática e de uma nova cultura ao corpo saudável, holístico e original, é necessário rever alguns con-
ceitos perdidos e que podem ser possíveis ou necessários de um resgate. Dentro dessa esquematização
do yoga na dança, que foi modificada por cada um dos detentores do conhecimento, seria modificada,
mais uma vez, tentando encontrar seu conteúdo original.

REFERÊNCIAS

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temporânea ocidental. Interfaces, São Paulo, v.13, n.1, p. 71-82, jun.2013.
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Editora SENAC; São Paulo: Edições SESC SP, 2008.
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dade somática e tecnologia interna. Motrivivência, ano XXIII, n. 36, p. 306-322, jun. 2011.
FARIA, C. C. M. O conceito de couraça e a educação em Wilhelm Reich. In: ENCONTRO PARANAENSE E
CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOTERAPIAS CORPORAIS. 14. E 9., 2009, Curitiba. Anais... Curitiba:
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FARIA, Ítalo Rodrigues. O Contato Improvisação: bases históricas para um processo de criação. Arterevista, São
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Acesso em: 15 ago. 2013.

294
IYENGAR, B.K.S. Luz na vida: a jornada da ioga para a totalidade, a paz interior e a liberdade suprema. São
Paulo: Summus, 2007.
JACOBUCCI, D. F. C; NOGUEIRA, F. H. N; SANTANA, F. R. Representações de educação não-formal e uti-
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PORPINO, Karine de Oliveira. Dança na escola. Rio de Janeiro, Ano XIII, boletim 2, abril 2012. Disponível em:
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SHOOK, J. R. Modern American Philosopher. Vol. 1, 2, 3 e 4. Bristol: [s.n.], 2005.
VOLPE, Patricia. Parâmetros curriculares nacionais do ensino de arte: um diálogo com docentes. 2006. 138 f.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo,
2006.

295
Campo da educação
somática e hatha yoga –
diálogos experimentados77
Sheila Bezerra/ Emelly Linhares

O presente artigo resulta da análise das articulações entre os fundamentos do Hatha Yoga e o
campo da Educação somática. As intersecções entre as referidas práticas têm sido investigadas na
medida em que acontece o Projeto de yoga com pessoas cegas e com baixa visão, idealizado e realizado
por mim de modo voluntário, e que conta com o apoio da Escola Especial Instituto de Cegos, em
Recife - Nordeste do Brasil. O projeto tem por objetivo levar às pessoas os ensinamentos do yoga que,
mais do que relativos apenas aos exercícios físicos, dizem respeito ao caminho rumo ao autoconheci-
mento por meio da consciência corporal e respiração consciente, elementos estes que são fundantes
no campo da educação somática.

Apenas a título de introdução neste espaço que está reservado à arte e à educação, exponho aqui
algumas ideias em torno do Yoga que significa união, mas também trabalho, aplicação, controle da
mente e dos sentidos, transcendência do ego, ou caminho rumo ao autoconhecimento. Significa ainda
liberdade, pois cultiva o discernimento como meio para destruir a ignorância. Por fim, Yoga não é a
prática, mas o estado de consciência em que se entra quando são aplicadas as técnicas de respiração
e as posturas (ou âsanas).

O Hatha Yoga é um método de Yoga Tântrico que tem por fundamento o despertar por meio do es-
forço extremo, seja do ponto de vista físico, seja do ponto de vista mental. Tem, entre seus principais
fundamentos, a prática de âsanas (ou posturas confortáveis), prãņãyãma (ou controle da respiração)
e também as purificações (şaţkarma, trãtaka, kapãlabhti, nauli, neti, dhauti e vasti).

Para o presente exercício dissertativo, interessam-nos todos os elementos do Hatha Yoga, isto porque
na interlocução entre yoga e dança, todos/as estão presentes. As âsanas, por exemplo, despertam a
estrutura biológica por meio de exercícios físicos; o prãņãyãma propicia mediante exercícios respira-
tórios contínuos, o controle do movimento da mente (FEUERSTEIN, 2005, p. 180), e as purificações

77. O artigo é basicamente fundamentado nos relatos de experiência de Sheila Bezerra, e é por isso que está em escrita autobiográfica. No
entanto, a participação de Emely Linhares foi fundamental quando do estudo das técnicas e críticas ao processo.

296
se assemelham àquilo que Artaud chama um corpo sem órgãos, isto porque os órgãos acumulam
toxinas e aprisionam o corpo, e as purificações são a base para que se possamos nos desfazer de tudo
que nos aprisiona.

Toda a tematização do corpo sem órgãos é uma variação em torno deste tema biopolítico por exce-
lência. A vida se desfazendo de tudo aquilo que a aprisiona. E o que a aprisiona, dentre outras coisas,
é o que Artaud, na sua loucura, conseguiu formular; o que nos aprisiona é também o organismo, os
órgãos. (PELBART, 2007, p. 64).

1. SOBRE O PROJETO DE YOGA COM PESSOAS CEGAS

O projeto foi iniciado em abril do ano corrente, e hoje conta com cinco participantes regulares. É um
projeto muito recente, em pleno processo de experimentação, e o relato etnográfico a seguir é resul-
tado das observações realizadas ao longo dos encontros. Para que cheguemos ao relato propriamente
dito, e para uma melhor compreensão do processo, faz-se necessária uma breve consideração do meu
encontro com um instrutor de yoga e uma bailarina, ambos cegos, e que se tornaram referências na
prática de investigação corporal. Além disso influenciaram nas ideias que tornaram possíveis as adap-
tações e consequente subsídios para superação das dificuldades que certamente surgiriam ao longo
do caminho.

Figue Diel, professor de Yoga e surfista – Eu conheci Figue em Mariscal - SC, “terra” de surfistas de
águas geladas. Ele era uma promessa do surf aos 16 anos, mas sofreu um grave acidente de carro e
ficou cego. Esteve depressivo ao longo de 10 anos, e aos 26 anos (acho que essa é a história) se lançou
na vida, realizando, como eu, um curso de yoga. Figue, nos dias de hoje, além de surfista, é instrutor
de yoga, e ele foi um dos professores que fizeram parte da minha formação a partir do curso livre para
Formação de Instrutores/as de Yoga do professor Pedro Kupfer.

A presença de Figue é digna de registro, pois, há seis anos, aproximadamente, realizo acompanha-
mentos periódicos da córnea, esta que é bem acabadinha, como a de uma velhinha de 60 anos (se-
gundo o oftalmo). Saramago, em “Ensaio sobre a cegueira”, fala do choque das pessoas quando estas
constatam que estão cegas: “estou cego!” Também assim é o choque quando a cegueira constatada é
aquela que em nada tem a ver com o lado sensual da visão. Assim tem sido comigo desde o encontro
com Figue, desde o encontro com Jô e com todas as pessoas cegas que tenho encontrado, enquanto
(re)conheço cegueiras de toda ordem em mim e no mundo.

Jô, a bailarina – Ela faz parte do grupo Giradança, do Rio Grande do Norte - RN. Foi com ela que
aprendi (ainda mais do que a partir do Hatha yoga), que respiração é tudo. “Respira, gente! Respira!”,
e assim, sentindo a respiração, Jô corre e dança em velocidade sem esbarrar em ninguém, como quem
vê além do que está dado, além do corpo, simplesmente além. Ela ficou cega aos 23 anos. Perguntei-
-lhe como era sua vida antes de ficar cega e ela disse: “…mulher, eu não era gente”. Aquilo ficou muito
marcado em minha memória, pois ela definitivamente havia refeito sua vida no sentido da liberdade
após ter perdido o sentido da visão. Aguçara de modo complexo e, por vezes, perturbador, todos os
outros sentidos em meio ao processo da dança, colocando em xeque a percepção das pessoas que, em
tese, enxergam. A verdade é que somos muitíssimos limitados, e aqui não cabem metáforas, afinal,

297
como disse Saramago, “só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”. Acho que
é bem por aí…

Tive a oportunidade de conhecer e compartilhar pelo menos dois dias ao lado de Jô, graças ao Multi-
plicando Olhares, projeto de dança com pessoas cegas, do Coletivo Lugar Comum, que a trouxe do Rio
Grande do Norte para nos ensinar a enxergar melhor o mundo na medida em que mergulhamos em
nossas próprias cegueiras. A partir do referido projeto, aprendi que, para além das dificuldades, há sim
muita liberdade entre pessoas cegas e com baixa visão. Entre as dificuldades, eu percebi, por exemplo,
que se há um mundo machista para as meninas/moças que veem, esse mundo é ainda mais castrador
quando as meninas/moças são cegas, isto porque a possibilidade da liberdade é inversamente proporcio-
nal ao conservadorismo de suas famílias (principalmente se têm preceitos religiosos fundamentalistas),
de quem, com grande recorrência, dependem, quer seja para ter permissão para fazer algo, ou para
“simplesmente” se locomover. No caso de Jô (que também relatou os “receios” de sua família), por já ser
uma adulta, ela assumiu a responsabilidade e as consequências sobre suas escolhas num contexto em
que sair sozinha, e à noite, seja para um curso de dança, ou qualquer outro lugar, tem sido perigoso para
qualquer mulher nesse país, cujo feminicídio alcança números assustadores.

A (não) acessibilidade é outro grande problema, seja no que diz respeito às calçadas, seja no que diz
respeito aos transportes públicos. Estes são, com certeza, grandes problemas que limitam a vida de
quem se lança na superação de outros limites, inclusive existenciais. Apesar deles, hoje sei que cegos/
as têm facebook (e a tecnologia da “fala” tem sido maravilhosa e útil nesse sentido), cegos/as jogam
futebol de salão, cegos/as dançam MUITO, cegos/as são namoradores/as, vaidosos/as, enfim, pessoas
cegas são pessoas tais como aquelas que veem. O que as diferenciam é que elas precisam de um pouco
mais daquilo que temos, mas também precisamos (e muito): respiração para que seus ouvidos sejam
seus olhos, toques/tato/afeto para entender com as mãos o que seus olhos não alcançam, discerni-
mento, pois, nesse mundo de visionários, a cegueira é coletiva, ou seja, o que as pessoas cegas preci-
sam é o que todos/as nós precisamos quando da resistência à vida nua: respiração, autoconhecimento,
afeto e sabedoria.

Figue e Jô apontaram os caminhos dessa resistência que pula sobre a própria sombra pela consciência
fina, finíssima, do próprio corpo.

3. CORPO NA CONTEMPORANEIDADE, OU “QUEM ESTÁ REALMENTE VIVO, HOJE?78”

Participam do projeto de Yoga com pessoas cegas e com baixa visão quatro mulheres e um homem,
todos na faixa etária de 50 a 75 anos. Por já serem adultos idosos (ou quase idosos), e também seden-
tários, seus corpos têm demandado adaptações constantes, que, no caso, devem acontecer para além
dos cuidados que normalmente já seriam tomados pelos limites que a falta da visão impõe. Apenas
o homem é cego desde o nascimento, as demais perderam a visão gradativamente, e uma delas tem
baixa visão. Além da idade avançada e sedentarismo, entre os seus relatos estão as seguintes doenças

78. A pergunta de Zizek é a seguinte, e é a pergunta que ele retoma a São Paulo – não a cidade, mas ao santo: “quem está realmente vivo
hoje?”. E Zizek acrescenta: “e se só estivermos realmente vivos se nos comprometermos com uma intensidade excessiva, que nos coloca
além da vida nua?”Zizek pergunta: “e se ao nos concentrarmos na simples sobrevivência mesmo quando ela é qualificada como uma vida
boa, se quando nós privilegiamos apenas a sobrevivência o que realmente perdermos for a própria vida?” (PELBART, 2007, p. 61).

298
e inscrições médicas: pressão alta, glaucoma, câncer controlado, ansiedade, estresse, síndrome de
pânico, diabetes, asma, cirurgias e transplantes, ou seja, um grande desafio.

Nenhum deles, ao longo de suas vidas, realizou atividades físicas, e apenas uma das mulheres já ha-
via praticado Yoga, mas desistiu porque estava perdendo a visão e sentiu vergonha dos erros que
estava cometendo enquanto tentava realizar as Âsanas. São histórias assim, de corpos com pouca ou
nenhuma consciência de suas infinitas possibilidades, rígidos pelas inconstâncias do espaço urbano,
dos conservadorismos morais e pelo imobilismo próprio aos corpos contemporâneos, que, pouco e
pouco, são desveladas pela desconstrução dos valores pela mobilização sutil de cada pequena parte de
seus corpos, dos seus “sentires” de suas subjetividades.

Os valores normatizantes que pouco e pouco engessam e adoecem os corpos são a expressão genuína
do poder sobre o corpo, como nos diz Peter Pál:

[...] o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência, e as mo-
bilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até
a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido, colonizado; quando não
diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, com
todos os riscos de simplificação: as ciências, o capital, o Estado, a mídia etc. Os mecanismos diversos
pelos quais se exercem esses poderes são anônimos, esparramados, flexíveis. (PELBART, 2007, p. 57).

É pela possibilidade de construir um corpo novo que reage ao poder institucional ou capitalizado pela
sobrevida que tanto o Hatha Yoga, quanto o campo de Educação Somática, se justificam.

A construção do corpo novo está vinculada à iniciação, o novo “nascimento” do praticante. Cons-
trói-se o corpo novo para perder a identificação com o ‘antigo’, vinculado a couraças de tensão
muscular, samskãras e latências mentais. O Haţha Yoga quer dar um corpo novo ao praticante que
ele mesmo irá construir, célula por célula, fibra por fibra. Usando esse novo corpo como instru-
mento, ele poderá avançar a passos largos em direção à meta do Yoga. O único que se precisa ter é
muita disposição e força de vontade. (KUPFER, 2009, p. 48)

[...] a Educação Somática se coloca como uma via de descondicionamento: dispõem de uma vasta gama
de estratégias pedagógicas para levar os alunos a ampliarem sua noção de corpo, refletindo sobre aquilo
que chamam “meu corpo” como sendo muitas vezes uma entidade (de) formada por valores sociocul-
turais. Os diferentes métodos de educação somática orientam a pessoa em um processo de empodera-
mento que passa pelo sentir o próprio corpo, negociando tempos e espaços. (BOLSANELLO, 2012, p. 3).

Como pode ser observado acima, em ambas linguagens, o partipris é o corpo biológico, o corpo que
o biopoder contemporâneo, segundo Giorgio Agamben, reduz a vida à sobrevida biológica. “A sobre-
vida é a vida humana reduzida ao seu mínimo biológico, é a vida sem forma, reduzida ao mero fato
biológico. É o que Agamben chama de vida nua”. (PELBART, 2007, p. 59).

Diante de tudo exposto,

[...] seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, na sua dor, no encontro com a
exterioridade, na sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por

299
elas. Seria preciso retomar o corpo na sua afectibilidade, no seu poder de ser afetado e de afetar
(PELBART, (?) p. 62).

Tem sido com essa ideia em mente que tapetes, bloquinhos, faixas, bolinhas e o toque em si têm subsi-
diado essa retomada do corpo. Através da propriocepção pelo toque do corpo com as próprias mãos,
por exemplo, uma participante redescobriu a cicatriz de uma cirurgia para retirada de um nódulo de
câncer realizado há mais de 10 anos. Ela disse que tinha quebrado um tabu em relação a si mesma.
Foi ali que percebi que estava no caminho certo. Seria necessário explorar esse toque o quanto fosse
possível para chegarmos aos Âsanas propriamente ditos que, de algum modo, já requerem algum grau
de consciência sobre o corpo. Provavelmente eu poderia receber críticas neste ponto, mas digo isto
porque, entre os exercícios pensados e realizados com participantes, estão aqueles do Pavanamukta-
sana, que são muito suaves e indicados, entre outras coisas, para processos reumáticos, períodos pós-
-operatórios, para gestantes e idosos. A questão é que, mesmo o Pavanamuktasana, para o perfil dos/
as participantes supracitado, já parece algo que demanda um momento anterior, e isso dá, certamente,
por ocasião do limite da falta de visão, e é aqui que entra a educação somática em diálogo com o Yoga.

3. EDUCAÇÃO SOMÁTICA E HATHA YOGA – ARTICULAÇÕES E ADAPTAÇÕES

“Sentemos todos no chão com as pernas cruzadas tocando os ísquios (esses ossinhos do bumbum)
no chão”. Esta seria uma primeira orientação para um público jovem, saudável, e não cego, mas,
para os participantes do projeto, essa orientação deve ser: “Sentemos como for possível. Encostem-
-se na parede, caso sintam necessidade. Sentem em uma cadeira, caso não consigam, no dia de hoje,
sentar no chão; Abram bem o peito. Deixem a coluna o mais retinha possível, e o pescoço seguindo
alinhamento da coluna”. O que acontece: a coluna não consegue ficar reta, o pescoço tampouco
(pois entre as pessoas cegas, muitas vezes, os ouvidos são os olhos, então, para estimular o ouvido,
levam junto o pescoço na lateral, criando um vício corporal, que, ao longo dos anos, tende a deses-
truturar a própria concepção sobre o que é ter o pescoço seguindo o alinhamento da coluna). Da
mesma forma, o que são os ísquios? Flagrei um aluno com a mão no quadril enquanto orientava
para que sentissem os ossinhos lá embaixo do bumbum perto da virilha. Não, ele não queria tocar
em si. E eis mais um desafio.

Esquerda, direita, em cima, embaixo, lateral do corpo, tudo, absolutamente tudo sendo reapropriado
ou, mesmo, apropriado. Yoga para pessoas cegas requer descrição densa de todos os movimentos
solicitados. Requer não só a minha própria habilidade de o fazer, como requer também a capacidade
de escuta dos/as participantes; o que, aos poucos tem sido trabalhado. Apenas duas participantes res-
pondem fidedignamente às orientações. Os/as demais têm uma capacidade muito reduzida de escuta,
e a isso não me refiro ao aspecto biológico. Existem elementos que ainda não sou capaz de analisar
aqui, mas, apenas exercitando as possibilidades dessa análise, diria que os/as participantes ainda se
sentem tensos com a “exposição” do seu corpo (e isso no caso do homem), pela perda absoluta da
vergonha do filtro do olhar do outro – o que é bom por um lado, mas difícil num ambiente em que o
silêncio é necessário. Por fim, essa capacidade de escuta fica reduzida a zero quando se está definiti-
vamente “out” pelos efeitos estendidos dos remédios tomados para dormir à noite. Há um caso recor-
rente em que, por exemplo, a participante dorme sentada enquanto a perna está dobrada e o braço por
cima da perna. Sono durante uma atividade – remédios da noite fazendo efeito no dia – tudo junto

300
e ao mesmo. Em cada negação, em cada vício, em cada não escuta, em cada sono, o corpo pede para
ser acordado, e ele vai, aos poucos.

3.1. Breve Relato Etnográfico

No primeiro encontro, foram realizadas orientações gerais, repassadas oralmente, mas também por
meio da distribuição do material, gentilmente traduzido em braile, pelo Instituto de Pessoas Cegas,
e os/as participantes se apresentaram, bem como às limitações corporais e emocionais. O segundo
dia, sim, foi aquele em que se tornou explícita a dificuldade dos/as participantes em localizar partes
do seu corpo e até mesmo direcioná-las de acordo com as orientações. A partir do terceiro dia, após
observação da respiração (apenas observação, como parte do processo inicial de se conhecer, de co-
nhecer o ritmo, as partes do corpo mobilizadas durante a respiração, músculos acessados, sensações,
entre outras), foram iniciados os trabalhos do tato consciente e eutonia. O desenvolvimento da cons-
ciência de toda superfície da pele é o ponto de partida de qualquer experiência em eutonia. Eutonia
(ou equilíbrio do tônus) é considerado um dos primeiros métodos de educação somática e, segundo
Gandolfo, “é uma prática terapêutica e pedagógica que leva em conta as relações entre mente e corpo
a partir da experiência corporal” (GANDOLFO, 2013, p. 1).

Toques suaves em todas as partes do corpo, desde o menor dedo do pé até o couro cabeludo, sentindo
a pele (textura, temperatura, marcas, cicatrizes), os ossos, calos, nervos, o peso, volume. Cada um, em
seu tapetinho, orientados a respirarem, enquanto realizam suavemente o toque em seu corpo, o (re)
conhecimento.

A partir do quarto dia de encontro, foram inseridas bolinhas nas atividades com o corpo e é aqui que
entra a técnica de ambitato79. Segundo Bolsanello (2012, p. 5):

O objeto é a porta de entrada de uma distinção sensorial entre pele, fáscia, tendão, aponevrose, mús-
culo, osso, órgão, líquidos orgânicos. Ele é um “pretexto” para que o aluno possa sentir que seu corpo
é igual ou diferente da textura de uma bola, por exemplo.

Para corroborar a prática do ambitato, também foram inseridas faixas de tecido e blocos que, adaptados
às práticas de âsanas, contribuem para indicar o alinhamento dos eixos articulares. Como já dito aqui,
em outras palavras, os/as participantes têm um vocabulário gestual restrito e, pouco e pouco têm sido
estimulados à execução de uma mesma tarefa de maneiras diferentes, e isso acontece a partir da noção
de circuito. É pela identificação do motor do movimento que é possível a variação de circuito, onde se
pode, através dele, “escolher entre diferentes caminhos aquele que é o mais apropriado para a execução
de um dado movimento em um dado momento” (BOLSANELL0, p. 8). Exemplo de aplicação da técnica
de variação de circuito está no modo de levantar depois da Âsana de relaxamento – Śavasana. O hábito
os puxa pelo tronco pela frente, mas a recomendação é que se levantem sempre pelo lado direito, já que
o coração fica do lado esquerdo e sobre ele não se recomenda colocar o peso do corpo. Além disso, subir
pela frente, demanda certo esforço do pescoço e cervical, o que em corpos sedentários pode levar a lesões.

79. Ambi, em latim quer dizer “duplicidade”, de “ambos os lados”. O ambitato se refere ao papel do objeto nas aulas de Educação Somá-
tica. Ambitato é o encontro entre o corpo e o objeto.

301
Principalmente naqueles que relataram ansiedade e depressão, pôde-se logo perceber que existe uma
certa estagnação corporal pela presença de movimentos “quadrados” e, sobre isso, sabemos que tal es-
tagnação pode acontecer por algum trauma físico ou psíquico, diminuição das sensações por ocasião
do que Bolsonello conceitua como sendo “anestesia senso-motora”, e assim por diante. Neste caso, a
técnicas de referência são a automicromobilização, a modulação respiratória e os diálogos entre as
unidades de coordenação motora que apóiam, entre outras coisas, músculos que nem sempre são
trabalhados como, por exemplo, do assoalho pélvico.

Muito ainda poderia e deverá ser dito acerca do projeto, pois está em pleno desenvolvimento e em
processo de experimentação. Temporariamente, nós podemos dizer que entre Yoga e dança as inter-
secções são múltiplas e, para mim, começaram a fazer total sentido por um dos mais importantes
símbolos da mitologia hindu – Shiva, o Senhor Shiva Nataraja – dançarino do universo e criador do
Yoga. É a partir da explicação de seu simbolismo que este artigo é finalizado.

Shiva sob o aspecto Natarajaaparece como o rei (raja) dos dançarinos (nata). Ele dança dentro de um
círculo de fogo, símbolo da renovação e, através de sua dança, Nataraja cria, conserva e destrói o uni-
verso. Ela representa o eterno movimento do universo que foi impulsionado pelo ritmo do tambor
e da dança. Apesar de seus movimentos serem dinâmicos, como mostram seus cabelos esvoaçantes,
Shiva Nataraja permanece com seus olhos parados, olhando internamente, em atitude meditativa.
Ele não se envolve com a dança do universo pois sabe que ela não é permanente. Como um yogue,
ele se fixa em sua própria natureza, seu ser interior, que é perene. Em uma das mãos, ele segura o
Damaru, o tambor em forma de ampulheta com o qual marca o ritmo cósmico e o fluir do tempo. Na
outra, traz uma chama, símbolo da transformação e da destruição de tudo que é ilusório. As outras
duas mãos, encontram-se em gestos específicos. A direita, cuja palma está a mostra, representa um
gesto de proteção e bênçãos (abhayamudrá). A esquerda representa a tromba de um elefante, aquele
que destrói os obstáculos. Nataraja pisa com seu pé direito sobre as costas de um anão. Ele é o demô-
nio da ignorância interior, a ignorância que nos impede de perceber nosso verdadeiro eu. O pedestal
da estátua é uma flor de lótus, símbolo do mundo manifestado. A imagem toda nos diz: “Vá além do
mundo das aparências, vença a ignorância interior e seja como o Sr Shiva, o meditador, aquele que
enxerga a verdade através do olho que tudo vê (terceiro olho, Ájña Chakra)”.80

REFERÊNCIAS

BOLSANELLO, Débora Pereira. A Educação Somática e o Contemporâneo Profissional da Dança. Revista DA


Pesquisa, Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina, n. 9, p. 1-17, jul. 2012. Disponível em: http://
www.ceart.udesc.br/dapesquisa/files/9/ 01CENICAS_ Debora _Pereira_Bolsanello.pdf.
GANDOLFO, Luciana. Eutonia: A percepção da variação do tônus através da atenção às sensações corporais.
In: ENCONTRO PARANAENSE, CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOTERAPIAS CORPORAIS. 18., 13.,
2013, Curitiba. Anais... Curitiba: Centro Reichiano, 2013.
KUPFER, Pedro. Formação em Yoga. Curso Livre. Módulo 1. 2009.
PELBART, Peter Pál. Biopolítica. Sala Preta, São Paulo, USP, v. 7, n. 1, p. 57-66, 2007.

80. https://pt.wikipedia.org/wiki/Shiva

302
A investigação das poéticas
na curadoria: um percurso pelas
trajetórias de Moacir dos Anjos
e Adriano Pedrosa
Alexandre Nepomuceno Targino

INTRODUÇÃO

Inicialmente, faz-se necessária uma contextualização da curadoria na arte, tendo como recorte a se-
gunda metade do século XX, época em que se tornou evidente o contraste entre os espaços oficiais e
legitimados de arte e as práticas artísticas que eram originadas. Ali se pode dizer que nasceu o espírito
da atividade do curador, não apenas no sentido estrito de zelar por uma coleção ou montar exposi-
ções, mas muito mais no âmbito de conceber e criar significados a partir das obras de arte. Christophe
Cherix, curador do Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA, em prefácio do livro de Hans
Ulrich-Obrist81, sinaliza que:

[...] no final dos anos 1960, o triunfo do curador como criador82 como chamou Bruce Altshuler, não
apenas modificou nossa percepção das exposições mas também criou a necessidade de documentá-
-las de modo mais completo (2010, p. 17).

Busca-se aqui a compreensão de uma atividade que remonta ao século passado, mas que assume a
cada dia novas configurações. Esta figura que hoje parece disputar com os artistas o status de criador
pode trazer à luz, com suas propostas, os diferentes matizes e nuances que a arte contemporânea
contempla, a despeito da relação do artista com a própria obra, a relação do artista/obra e seu público
e ainda entre a obra mesma e seu sentido, relações tais que podem ser evidenciadas tanto pela crítica
de arte como pela curadoria.

81. Hans Ulrich Obrist é codiretor de exposições e programas e diretor de projetos internacionais da Serpentine Gallery, Londres. Autor do
livro: Uma breve história da curadoria. São Paulo: Editora BEI, 2010.
82. ALTSHULER, Bruce. The avant-garde in exhibition: new art in the 20th Century. Nova York: Harry N. Abrams, 1994, p. 236.

303
Não é propósito deste trabalho contemplar a totalidade dos projetos curatoriais nas artes visuais
contemporâneas, visto que é infinito o número de exposições, mostras, bienais, que há décadas
vem se avolumando em todos os continentes. Mesmo em espaços alternativos, como a internet, se
proliferam os blogs e sites em que são exibidos trabalhos que tem como marca a escolha de um ou
mais editores ou curadores. Como exemplo, há o Apexart, uma organização artística sem fins lucra-
tivos, em Nova York, concebida para oferecer oportunidades aos curadores independentes e artistas
emergentes. Tampouco é nossa intenção discorrer sobre o significado da atividade curatorial, no
sentido histórico, sua origem e evolução até os dias atuais, visto que outros trabalhos já abordaram
tal aspecto83.

Pretende-se, no entanto, um percurso sobre a bibliografia existente na área, sem se deter nos as-
pectos puramente técnicos da curadoria, mas buscando compreender de forma mais ampla o que
se entende por estudos curatoriais84, área em que o processo curatorial é visto como produção de
conhecimento. Tal acervo bibliográfico não é vasto na língua portuguesa, fato este que reforça a re-
levância da pesquisa para fornecer material para abordagens futuras. Pretende-se, como objeto da
pesquisa, a análise de duas propostas curatoriais de extrema relevância, realizadas pelos curadores
brasileiros Moacir dos Anjos e Adriano Pedrosa, buscando traçar um paralelo entre ambas, a partir
dos pontos de convergências e diferenças dos métodos e práticas curatoriais dos referidos curado-
res e de suas poéticas. Outra questão pertinente à pesquisa é o desejo de entender de que forma
a curadoria atua como mediadora do processo artístico e se ela pode ser colaboradora e, muitas
vezes, coautora deste processo.

Justifica-se tal escolha devido ao reconhecido trabalho dos curadores nas mais prestigiadas ins-
tituições de arte do país e do exterior, suas experiências diretas com artistas visuais múltiplos e a
prática curatorial em distintos formatos, sejam bienais, exposições individuais, além de trabalhos
colaborativos com outros profissionais da área, o que resulta em uma trajetória plural e hetero-
gênea. Além do exposto, pretende-se obter, através da análise e investigação de suas práticas,
possíveis peculiaridades no que diz respeito às suas respectivas regiões e instituições por eles
representadas.

Acredita-se que entender as dimensões estético-filosóficas aliadas aos diversos contextos em que as
propostas curatoriais são apresentadas, traz-nos, de certa forma, um maior entendimento da arte na
contemporaneidade.

Temos aqui um aspecto relevante na realização da pesquisa, que é o estudo da relação curador-artista,
além da relação entre teoria e a prática curatorial. Vale salientar que, para desenvolver tal reflexão,
pretende-se buscar respostas tanto na análise da trajetória dos curadores, como nas suas relações com
os artistas, suas obras e mesmo as instituições comumente relacionadas neste processo – museus e
galerias de arte, sempre que isto demonstrar ser relevante.

83. Como exemplo há a dissertação de mestrado de Bettina Rupp - Curadorias na arte contemporânea: precursores, conceitos e campo
artístico. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, 2010.
84. Tradução do termo anglo-saxão curatorial studies.

304
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

ser contemporâneo é antes tudo, uma questão de coragem.


Giorgio Agamben

abordar o transitório e o fugidio requer, portanto,


uma familiaridade com a matéria.
Lisette Lagnado

No intuito de compreender a dinâmica do ofício da curadoria em artes visuais, propõe-se um cami-


nho através de diversos autores, em distintos formatos, sem se ater propriamente à conceituação do
termo, mas buscando a conexão da prática com pressupostos críticos, e abrindo o leque de discussões
sobre esta figura que se apresenta cada vez mais como protagonista no que tange à área de arte, crian-
do denominações como curador-autor ou curador-artista. Segundo Herkenhoff (2008), curadoria é
produção de conhecimento, mas é também intimidade com cada obra de arte.

Sabe-se que, no passado, ao curador cabia o papel da conservação das obras em um museu, função
esta que parece ter permeado os séculos XVIII e XIX. Com o advento da modernidade e as diferentes
facetas que a arte empreendeu, vide as vanguardas artísticas, os papéis dos atores deste cenário se
modificaram e se ampliaram em uma espiral de aceite e recusa por normas e padrões estabelecidos.
A afirmação vale para artistas, críticos, historiadores, público e, pode-se dizer também, para os cura-
dores, que teriam que se adaptar aos novos formatos artísticos. O próprio papel do curador se amplia
e é ressignificado como muito mais que um mediador do artista, sendo, na verdade, um depositário
do signo do outro – este sim, o artista (CARVALHAES, 2008). Está aberto, pois, todo um caminho ao
que se denominará de arte contemporânea na segunda metade do século XX.

Este tempo será marcado na arte por novas configurações. Agora, até mesmo uma ideia pode ser
uma obra. Qualquer ato ou pensamento pode ser convertido em arte conceitual. No lugar de telas
e esculturas, teremos instalações, performances, happenings, processos, intervenções no meio am-
biente, como é o caso da Land-art. Não apenas a arte mudou na forma, como também subverteu as
instituições, eliminando ou minimizando o papel da galeria e do museu. Fazendo eco à era da des-
materialização da arte, as décadas de 60 e 70 veriam a crescente facilidade no acesso às tecnologias de
comunicação, não só na fotografia e no filme, mas também em equipamentos de áudio e vídeo. Nas
mostras de arte e as curadorias que as assinavam procuravam estabelecer novas formas de convívio e
até mesmo os espaços expositivos teriam de responder aos novos tempos. O curador se aliava então
aos responsáveis pelo desenho da exposição, fazendo com que os arquitetos criassem formas de con-
vívio coerentes com as linguagens propostas (MATOS, 2009).

São conhecidas as propostas expositivas que marcaram seu tempo, seja pelo ineditismo ou mesmo pela
confrontação com o status quo. Mencionamos o papel de três curadores brasileiros que assim o fizeram,
deixando seus nomes impressos na seara da curadoria brasileira, em três momentos da Bienal de São
Paulo: Walter Zanini, Sheila Leirner e Paulo Herkenhoff. Com três propostas distintas, proporcionaram
novos olhares e novas intencionalidades com suas assinaturas, criando novos parâmetros curatoriais,
quer seja com artistas, quer com o público que teve a chance de percorrer os ambientes das bienais.

305
Uma constatação, porém, precisa ser ressaltada, que é o fato de, a partir do final dos anos 70, a figura
do curador ter expandido seus domínios para além de critérios puramente museológicos. Conceben-
do os conceitos das mostras de arte, o curador teria que ter a sensibilidade afinada com o público. Nas
bienais de arte, o curador-chefe ganharia cada vez mais destaque e nesse papel poderia muitas das
vezes ofuscar as próprias obras e artistas escolhidos. Tadeu Chiarelli afirma que:

[...] essa popularidade rápida do curador independente ou convidado, ocorreu em grande parte por-
que coincidiu com um momento histórico onde várias convenções do campo artístico (incluindo
aqui igualmente as convenções museológicas e museográficas estabelecidas na modernidade) vi-
nham sendo questionadas por artistas, historiadores e teóricos. (1998. p. 9).

É um fato, pois, incontestável, que o curador de arte se configurou como um importante ator no
cenário artístico, fazendo o papel outrora reservado ao crítico e ao mesmo tempo sendo um malaba-
rista, no equilíbrio das relações travadas com seus interlocutores: produtores, arquitetos, educadores
(LAGNADO, 2008). Jacques Leenhardt (2007, p. 108) afirma que os curadores são “os interventores
imediatamente contemporâneos da criação, diretamente implicados na avaliação e interpretação das
obras propostas pelos artistas”.

Se percebemos a arte contemporânea permeada por questões relativas à própria vida do artista, à du-
alidade memória-apagamento, podemos dizer que assim se reveste o ofício do curador e aqui reside
talvez a diferenciação mais elementar do ofício do crítico. Ainda que haja juízo de valor ou critérios
particulares de escolha, a construção de sentido na curadoria parece se contaminar pelo processo po-
ético do artista, na assimilação das diversas fontes por onde este elabora suas poéticas. Argan (1987)
discorre sobre a sucessão das poéticas, representando a vontade de definir a relação entre arte e vida
contemporânea. O próprio artista muitas das vezes se converte em curador quando é convidado a
assinar uma exposição de jovens artistas, por exemplo. Tais observações nos levam a divagar sobre o
surgimento de uma dinâmica própria do ato curatorial, intimamente associada à contemporaneidade.
Hans Dieter Rubernos acena:

The curator is becoming increasingly self-reflective. He reflects his activity critically or uncritically. It
is no secret, in communication science, that increased self-reflectivity and increased discourse lead
to the differentiation of an autonomous subsystem that I would like to call the ‘curator system’. But it
does not seem to have become completely autonomous and differentiated yet, because many curators
are simultaneously active as critics and some also as artists. (2004, p. 125-127).

As relações estabelecidas no ato de elaborar uma curadoria são, pois, vistas como pertencentes à esfe-
ra de obra aberta, tal qual estabelece Eco (1968). Se a obra de arte permite diversas interpretações uma
vez que será analisada, vista, comentada, criticada, tocada por inúmeros fruidores, assim podemos
pensar o processo curatorial, que, na maioria das vezes, é independente daquela primeira intenciona-
lidade artística, quando o artista concebeu sua obra. A curadoria expande o conceito das obras, abre
possibilidades de convívio, de (des)entendimento e mesmo de visualizações.

Se falamos que a arte contemporânea se iniciou há mais de cinquenta anos, tendemos a perceber as
linguagens em formatos cada vez menos definidos. Se já não há nenhum eco dos movimentos artís-
ticos e tampouco das vanguardas, o fruidor, espectador e mesmo o artista terá de trilhar um cami-

306
nho inseguro, pois o universo da arte agora é cada vez mais fragmentado, confuso, indefinido, como
somos nós, humanos pós-modernos. Hall (2006) nos fala sobre os processos sociais marcados pela
globalização, em que somos confrontados por uma gama de diferentes identidades. Se vivemos na era
da superioridade da imagem frente à comunicação verbal, o mundo exige a maior acuidade visual
possível, um refinamento do olhar que será adquirido com calma e paciência.

Nesta pesquisa, busca-se empreender de que forma a curadoria pode estar afinada a este princípio,
que é criar vínculos entre sua poética, a poética dos artistas escolhidos e mesmo a poética que é
construída pelo expectador ao longo de sua fruição, sabendo que as relações não se limitam a tais
territórios, que os caminhos são vastos e abertas estão as possibilidades de convívio, de contágio, de
contaminação e de espanto.

Para fundamentar teoricamente o argumento deste trabalho, utilizaremos, em princípio, autores que
estabelecem um vínculo arte e sua práxis, como Martin Heidegger, Jacques Ranciére, René Passeron.
Serão estudados, também, autores contemporâneos que abordam especificamente questões relaciona-
das à curadoria, como Hans Ulrich Obrist, entre outros.

2. METODOLOGIA

2.1. Sujeitos e Campos da pesquisa

Pretende-se realizar uma pesquisa exploratória ou descritiva, no intuito de investigar as práticas e


processos desenvolvidos pelos curadores Moacir dos Anjos e Adriano Pedrosa, tendo como recorte
as exposições Cães sem Plumas de autoria do primeiro e a exposição Histórias Mestiças, concebida
por Pedrosa, em parceria com a curadora Lilia Moritz Schwarcz. Como ferramenta metodológica,
pretende-se analisar os textos curatoriais das mostras, bem como resenhas críticas sobre as mesmas,
a fim de compreender a natureza da prática da curadoria.

A pesquisa de campo pretende ser realizada através de entrevistas presenciais e à distância com os
curadores a fim de compreender a lógica ou método em seus trabalhos, investigar quais os critérios
utilizados, além de conhecer seus relatos de experiência, sendo esta, advinda do contato com a arte
brasileira e internacional e suas inserções no complexo panorama atual da arte contemporânea. As-
sim, alguns deslocamentos estão previstos para as cidades onde os curadores atuam, especificamente
Olinda, Recife e São Paulo.

2.2. Procedimentos Metodológicos

Aqui, cabe ressaltar o caráter qualitativo da pesquisa, a observância dos pressupostos em que as pes-
soas agem em função de suas crenças, percepções, sentimentos e valores e seu comportamento tem
sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo imediato, precisando ser des-
velado (SERTORIO, 2012).

A pesquisa demonstra ser fundamentalmente voltada para as artes visuais, todavia, não há um méto-
do especialmente designado para a investigação da função curatorial. Quando muito, podemos evo-

307
car o que Zamboni (2001, p. 57) trata como algo não linear, intuitivo e racional ao mesmo tempo. A
investigação parece ser também de ordem fenomenológica, como parte de uma relação de significado
extraído das experiências vividas pelos participantes.

Entrevistas com artistas visuais contemporâneos e outros curadores poderão ocasionalmente acon-
tecer e servirão para enriquecer a pesquisa e trazer um olhar plural e diversificado. Espera-se, assim,
que este estudo possa contribuir para uma melhor compreensão da relação existente entre o artista e
o curador.

Nesta abordagem investigativa, serão também utilizadas fontes secundárias como livros, teses, catálo-
gos de exposições e revistas, além de periódicos especializados e fotografias. Cabe aqui destacar que,
como a literatura específica sobre curadoria não é extensa, a fala dos participantes será primordial, no
intuito de se construir um entendimento baseado em suas ideias.

Ademais, busca-se com este estudo aprofundar a reflexão sobre as práticas curatoriais, examinando
as conexões que se podem fazer para uma curadoria pertinente às questões contemporâneas da arte,
além de contribuir para a crescente demanda por estudos que alinhem teoria e prática.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste primeiro momento, tem-se abordado dois aspectos que são de relevância à iniciação na pes-
quisa. Temos visto questões de natureza metodológica, em que processos e métodos estão sendo
apresentados para uma futura adequação ao que foi relatado neste artigo. Em um estudo desta
natureza, em que a pesquisa qualitativa demonstra ser a mais indicada, novas possibilidades, no
que concerne à pesquisa em artes visuais, são vislumbradas. Desde a coleta e registro de dados, à
maneira como será feito o relato, estamos confrontando, a cada dia, novos parâmetros de inves-
tigação.

Outro aspecto diz respeito ao aprofundamento na teoria da arte, em uma abordagem filosófica que
nos ajuda a construir pontes com autores inicialmente pensados para a pesquisa. Dos autores, reali-
zamos uma série de leituras e programamos apresentações/seminários para outros pesquisadores do
mesmo programa de mestrado, provocando o debate acerca das ideias e conceitos.

Em virtude do estágio inicial em que se encontra este estudo, partimos para a coleta bibliográfica geral
e específica, trabalhando na organização dos conceitos e ideias principais do estudo. Estão sendo reu-
nidos títulos sobre curadoria, processos curatoriais, textos de exposições, além do material originário
das mostras pesquisadas e citadas na introdução deste artigo. Em um futuro próximo, pretendemos
partir para a pesquisa de campo, realizando as entrevistas, onde um questionário semiestruturado e
um roteiro com tópicos-chave serão utilizados.

Esperamos, portanto, que tal estudo alcance os objetivos planejados e podermos afirmar, diante dos
passos relatados aqui, que estamos construindo a apropriação da experiência artística, percebendo
como o pensar/fazer a arte provoca algumas certezas, mas acima de tudo, nos impele sempre à per-
gunta, ao aberto, ao que nos escapa.

308
REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó/
SC: Argos, 2009.
ARGAN, Giulio Carlo. As fontes da arte moderna. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n 18, p. 49-56, 1987.
CARVALHAES, Maria Helena. Dez anos depois: um debate com Paulo Herkenhoff. Revista do Mestrado em
Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina, São Paulo, a. 1, v. 1, 2008.
CHIARELLI, Tadeu. As funções do curador, o Museu de Arte Moderna de São Paulo e o Grupo de Estudos em
Curadoria do MAM. Catálogo do Grupo de Estudos sobre Curadoria do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Exposições organizadas em 1998. São Paulo, 1999.
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1968.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Trad. Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro. São
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HERKENHOFF, Paulo. Bienal 1998: princípios e processos. Revista do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade
Santa Marcelina, São Paulo, a. 1, v.1, 2008.
LEENHARDT, Jacques. Crítica de arte e cultura no mundo contemporâneo. A palavra e a imagem. Revista do
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 2007.
LAGNADO, Lisette. As tarefas do curador. Revista do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina,
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MATOS, Diego Moreira. Curador e arquiteto em diálogo: os casos das Bienais Internacionais de Arte de São Pau-
lo de 1981 e 1985. 2009. 315 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2009.
OBRIST, Hans Ulrich. Uma breve história da curadoria. São Paulo: BEI Comunicação, 2010.
PASSERON, René. Da estética à poética. Porto Arte Revista de Artes Visuais, Porto Alegre: Instituto de Artes/
UFRGS, v.8, n.15, p.103-116, nov.1997.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Monica Costa Netto. São Paulo: EXO ex-
perimental org.; Editora 34, 2009.
______.O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
RUBER, Hans Dieter. Artists as curators - curators as artists? In: TANNERT, Christoph; TISCHLER, Ute (Hg.):
Men in black, handbook of curatorial practice, Frankfurt am Main/GER: Revolver – Archiv für aktuelle Kunst,
2004, p. 125-127.
SERTORIO, Patrícia Valeria. Relações entre arte e público no MASP: um olhar do presente em direção a 1970.
2012. 114 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo,
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ZAMBONI, Sílvio. A Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. 2. ed. Campinas: Autores Associados,
2001.

309
Relação escola e museu:
apresentação de pesquisa
Vanessa Soares Lorega

INTRODUÇÃO

Sabemos que atualmente muitos dos equipamentos culturais que estão espalhados pelas cidades do
Brasil, que são voltados para a área de artes visuais, possuem em sua estrutura uma coordenação e/
ou um planejamento de ações educativas a serem desenvolvidas por aquela instituição. Essas ações são
pensadas e direcionadas em sua maioria, para os grupos de escolas públicas e privadas do ensino básico,
que são grande parte do público que visita as exposições das galerias e museus de arte dessas cidades.

Também temos conhecimento de que não são todos os professores da disciplina de Artes das insti-
tuições de ensino formal que fazem uso desses equipamentos culturais e participam de suas ações
educativas, a fim de somar ao conteúdo da disciplina, seja por dificuldade de meios de transporte,
distância entre cidades e consequente falta de tempo hábil para exercer as atividades, por essa confi-
guração de aula não fazer parte do planejamento do professor, por não saber, às vezes, como viabilizar
esse acesso, como se apropriar desses espaços, por não haver museus e galerias de arte na cidade em
questão, entre outros motivos profissionais e pessoais que podem existir.

Desta forma, a principal intenção da pesquisa é investigar como se dão os usos e acessos dos espaços
culturais nas práticas do ensino da arte. Em paralelo, refletir sobre a presença ou ausência de equipa-
mentos culturais voltados para artes visuais na cidade de Paulista, onde há uma grande quantidade
de habitantes e está mais afastada de onde se localizam os museus e galerias de arte que estão em evi-
dência no circuito de artes visuais da Região Metropolitana do Recife, e saber, a partir dessa pesquisa,
como isso reverbera no ensino de artes de algumas escolas situadas em um dos bairros dessa cidade.

Essa pesquisa objetiva trazer para a comunidade científica da área e para a sociedade em geral uma
atualização sobre comunhão entre o ensino formal e o ensino não formal na região em questão, como
também apontar soluções para os problemas que possam ser evidenciados no decorrer do processo,
e propor reflexão sobre o conhecimento que emergir, para que todos que entrem em contato com a
pesquisa possam, de alguma forma, contribuir para a melhoria da nossa educação. Para a análise de
relação entre esses ensinos, a pesquisa terá como base para coleta de dados três escolas do ensino bá-

310
sico do bairro de Pau Amarelo, em Paulista, que tenham a disciplina de artes, e, a partir dessas escolas,
saber se e como os professores da disciplina usufruem no ensino não formal presente em museus e
galerias de artes visuais, que estejam localizados na cidade de Paulista e/ou em cidades vizinhas, am-
pliando o conhecimento sobre a situação do ensino de artes visuais na região.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para desenvolver conhecimento de arte, ou através da arte, é necessário estar ciente da existência da
arte. Em se tratando de artes visuais, a imagem é o elemento mais significativo para, através de um
mediador (professor, familiar, livro, etc.), saber que aquilo que lhe está sendo apresentado trata-se
de um objeto de arte. É a leitura de imagem um dos pilares da Proposta Triangular sistematizada por
Ana Mae Barbosa, que foi adotada por muitos educadores como a base do ensino de artes visuais no
Brasil, que afirma que “A Proposta Triangular salientou a importância da interpretação da Arte e das
vantagens de ver e analisar as obras ao vivo”.

Recordando o ensino de artes na escola há algumas décadas, podemos acessar em nossas lembranças
um método do qual nossos professores se utilizavam para nos dar referências de obras de arte: livro
em punho voltado para os estudantes, mostrando a fotografia de alguma obra em questão. Com o
avanço da tecnologia, o acesso à imagem dessas obras passou a ser facilitado, e, hoje em dia, podemos
não apenas ter acesso às imagens dessas obras em alta resolução, como somos capazes inclusive de
fazer visitas virtuais à museus mundialmente conhecidos, como o Museu do Louvre, por exemplo.

Porém, sabemos, na qualidade de professores, alunos, expectadores, que a aproximação física e efe-
tiva com obras de arte nos proporciona um sentindo diferente. É o momento que percebemos que a
arte visual é real, palpável algumas vezes, e podemos ter uma aproximação verdadeira do objeto de
arte. Essa aproximação nos é permitida se tivermos a oportunidade visitar o atelier de algum artista,
comprar algum trabalho, ou se frequentarmos os museus e galerias de arte que estão próximos a nós.

A maioria dos dispositivos culturais da atualidade voltados para artes visuais possuem um setor que
é responsável pelo desenvolvimento de atividades educativas direcionadas, geralmente, para os gru-
pos de escolas que os visitam, composto por uma equipe que não apenas acolhe o público, a fim de
promover o encontro do expectador com a obra, mas que estimula a produção de conhecimento
através do diálogo, de oficinas, produções gráficas, etc. Essa comunhão pode começar com o simples
propósito de aproximar fisicamente o estudante do objeto de arte, mas pode alcançar objetivos que
estejam um pouco mais além através das reflexões trazidas para aquele momento, como mostrar que
aquele espaço está ali presente a serviço da sociedade, que o estudante e sua família fazem parte da
sociedade, despertando assim uma nova consciência social.

Valiosos aliados dos educadores populares que atuam nas ONGs, assim como dos educadores esco-
lares, são os departamentos de educação dos museus. O prestígio dos serviços educativos é muito
recente embora ainda haja enorme resistência por parte de curadores, críticos, historiadores e artis-
tas à idéia do museu como instituição educacional. Museus são Laboratórios de Conhecimento de
Arte, tão importantes para a aprendizagem da Arte como os Laboratórios de Química o são para a
aprendizagem da Química. Compete aos educadores que levam seus alunos aos museus estender nas
oficinas, nos ateliês e salas de aula o que foi aprendido e apreendido no Museu. (BARBOSA, 2004).

311
Podemos notar, tanto observando a prática dos educadores dos espaços formais e não formais, quanto
analisando os Parâmetros Curriculares Nacionais de Artes (visuais) e os textos publicados que tem
como foco o serviço educativo de museus e galerias de arte (A educação não-formal e o papel do edu-
cador social, presente no livro Não-fronteiras: universos da educação não-formal, por exemplo) que
os objetivos dessas instituições – escola e museu – em relação ao desenvolvimento de conhecimento
do seu público não divergem, se entrelaçam, se ambos os trabalhos forem exercidos de forma ética e
profissional.

Em um artigo de apresentação de pesquisa de mestrado, intitulado Museu e escola: espaços de sentidos,


Ivana de Macedo Mattos (UFES-ES) e Moema Martins Rebouças (UFES-ES) nos apresentam o seu
lugar de pesquisa. Contextualizam historicamente o surgimento dos serviços educativos de museus
no Brasil, trazem diferentes exemplos da relação entre museu e escola, incluindo, evidentemente, a
própria experiência da pesquisa de mestrado no Museu de Arte do Espírito Santo. Fazendo um para-
lelo com sua pesquisa, as autoras nos apresentam, em seu texto, as propostas educativas do Museu de
Arte Contemporânea de Serralves, tomando como um bom exemplo de serviço educativo.

Segundo as autoras, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves tem um serviço educativo que rea-
liza ações dirigidas a diferentes públicos e contextos, realizam projetos em parceria com escolas e tem
colaboração com universidades, associações, instituições nacionais e internacionais, com o intuito de
criar novas formas de participação cultural. A principal relação do Museu de Arte Contemporânea de
Serralves com as escolas se trata de um projeto anual desenvolvido pelo museu.

[...] o Serviço Educativo de Serralves na programação do “Projeto anual com Escolas” a cada ano
tem uma temática diferente e provocadora, possui uma sequencialidade de ações organizadas e pro-
postas em um cronograma que se subdivide em três etapas. A primeira etapa envolve a apresentação
da temática e inscrições; seminário para educadores e professores; ações de formação e de oficinas
para educadores e formadores; oficinas temáticas para alunos do pré-escolar ao secundário; visitas
ao parque e ao museu; entrega de trabalhos produzidos nas escolas, essas ações giram em torno de
seis meses. Inicialmente, é realizado um seminário que conta com a participação dos professores que
querem se integrar ao projeto anual, depois são propostos encontros com especialistas das áreas que
o projeto abrange. A presença do professor é imprescindível, pois aquele é o momento do debate e
das propostas a serem realizadas nos momentos subsequentes.
Os seminários, as oficinas e as visitas constituem-se de ações de apoio para a segunda e terceira eta-
pas que são realizadas nas escolas. [...]
Como culminância de todo esse trabalho, acontece, no Museu de Serralves, uma exposição de todos
os trabalhos desenvolvidos pelas escolas (as produções plásticas, os vídeos, as fotos e os cartazes dos
trabalhos com indicação das respectivas turmas), sem que haja seleção valorativa deles, com uma
concepção de montagem e de produção comparável às que estão expostas nas demais dependências
do Museu. É produzido um catálogo que, em suas páginas, explicita a data da exposição, o funcio-
namento do Projeto, as ações que o envolvem, apresenta cada uma das escolas e/ou associações bem
como os respectivos professores e finaliza com as informações dos artistas, monitores, estagiários
envolvidos, assim como as equipes responsáveis pela concepção, montagem e produção. Essas expo-
sições, que têm a duração em torno de cinco meses, são visitadas tanto pelos habituais visitantes do
museu, como pelas crianças e jovens participantes do projeto, que levam as suas famílias para conhe-
cer o museu e a sala expositiva em que estão os seus trabalhos. A exposição permite uma interação

312
entre os trabalhos e os seus participantes, que segundo a consultora Elvira Leite é “uma oportunidade
avaliativa do projeto, não somente para o SE de Serralves, mas para os professores e alunos”. (MAT-
TOS, 2014 apud. REBOUÇAS, 2013).

A disponibilidade de tempo, os recursos para o desenvolvimento do projeto, a quantidade de profis-


sionais comprometidos com o trabalho, a cultura européia de visitação aos espaços culturais: esses são
alguns dos fatores que fazem com que haja um firmamento na relação museu e escola. Mas um deles,
e talvez o principal, é o compromisso do professor com o todo, pois, sem o engajamento do professor,
boa parte do projeto estaria comprometido.

Segundo a análise da autora, constatou-se que o elo entre Serralves e as escolas se dá pela participação
do professor. É o professor que se inscreve no projeto e em todas as ações que o envolvem, dos semi-
nários às oficinas. Para que os alunos participem das oficinas, é necessária a presença do professor ou
de outro profissional da escola designado por ele ou pela própria escola. É também o professor que se
responsabiliza pela segunda e terceira etapas do projeto e as inclui em seu planejamento escolar com
a turma, além de escolher a turma que participará do projeto. Para participar de todas essas ações do
projeto, esse educador tem de atender a sua carga horária semanal na escola e, para estar presente nos
seminários e oficinas direcionados a ele, tem de encontrar horários alternativos aos de sua docência.
Pode-se afirmar que o Projeto com as Escolas de Serralves “é um contrato de confiança firmado entre
o professor e Serralves, e que, para se constituir como um projeto interinstitucional entre escolas
e Serralves, é antes um projeto pessoal/profissional estabelecido entre os professores e Serralves”.
(MATTOS, 2014 apud. REBOUÇAS, 2013).

É deste ponto que partirá a pesquisa: do professor das escolas do ensino básico, dialogando com
museus de arte a partir da sua prática pedagógica. Esse diálogo existe? Produz sentidos para os es-
tudantes? É integrado ao conteúdo trabalhado em sala de aula? São muitas as questões para serem
trabalhadas na pesquisa, e soluções para serem pensadas. Nós, que estamos atuantes na área de arte/
educação, temos conhecimento de diversos relatos de experiência sobre a conexão entre escola e mu-
seu, sobre as eficiências e ineficiências que se dão nessa troca, desde um posicionamento profissional,
até alguma questão de infraestrutura.

Em paralelo ao projeto com as escolas do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, falarei


um pouco da minha experiência como educadora de um serviço educativo da cidade do Recife.
A relação inicial com os professores a cada exposição era um pouco parecida com a de Serralves:
No início de cada exposição, era reservado um ou dois dias para que houvesse uma “formação” de
professores relacionada à mostra daquele período. Algumas vezes, com o artista presente, a for-
mação consistia em conhecer a exposição, participar de uma mediação, e conversar com o artista,
com o objetivo de, além de contribuir para expansão de conhecimento do professor, o mesmo
pudesse votar, trazendo suas turmas. As primeiras formações que estive presente quase não tive-
ram inscrições, chegando a participar apenas um professor em cada horário estabelecido para a
formação. Com o passar de alguns meses, a divulgação melhorou, e, nas formações posteriores,
mais professores participaram.

Algumas escolas agendavam mediação sem mesmo o professor ter ido antes conhecer a exposição.
Neste caso, ficavam tão surpresos quanto os estudantes, dependendo da exposição. Alguns profes-

313
sores ficavam dispersos e não faziam questão de participar da mediação, não sabendo (ou sabendo
talvez) da importância que a pessoa dele tem naquele momento. Nós, educadores, sabemos que a ida
ao museu ou galeria durante o momento de aula não se trata de um passeio, e sim de uma aula.

Lembro que as atividades que elaborávamos eram, em sua maioria, bem sucedidas. As crianças, os
adolescentes e alguns professores usufruíam bem do momento da mediação e das atividades propos-
tas, tornando o momento produtivo e agradável para todos. O serviço educativo tentou se organizar
uma vez para visitar uma das escolas que tinha ido à exposição, para conhecer o trabalho que tinha
sido feito após a visita, mas não foi possível. Durante o tempo que estive lá, não tivemos acesso ou
notícia de nenhum dos trabalhos das escolas desenvolvidos após a ida a exposição.

Outro ponto que me chama a atenção é o tempo de mediação e o deslocamento. O serviço edu-
cativo no qual eu estagiava era um dos poucos da cidade que disponibilizava um ônibus para as
escolas públicas que pudesse visitar a exposição. O tempo que tínhamos disponível para a vivência
da mediação era uma média de uma hora e meia, em função do tempo que se levava para professor
e turma se deslocarem no trajeto de ida e volta para a escola, sem que atrapalhasse os horários da
mesma.

Minha experiência e muitos dos relatos que estudei e ouvi vêm da relação museu e escola, mas,
na pesquisa em andamento, o ponto de partida de que se toma é outro, o sentido muda: a dire-
ção agora é a relação escola e museu. O ponto de vista, partindo do professor, dos estudantes,
da escola, de uma das cidades mais populosas da Região Metropolitana do Recife. Então, qual a
porcentagem das escolas da região que têm a disciplina de artes na grade curricular frequentam
museus e galerias? Por quais motivos alguns professores deixam de levar seus alunos ao museu,
caso isso aconteça? Os estudantes já tiveram acesso a algum objeto de arte a partir do professor
da disciplina?

O propósito dessa pesquisa é responder essas perguntas, outras que podem surgir durante o pro-
cesso, e deixar algumas para que o outro possa refletir e talvez responder. Saber se e de que forma
tem funcionado essa parceria entre escolas de Paulista e museus existentes na cidade e/ou arredo-
res, conhecer os obstáculos que existem entre essas instituições, e compartilhar o resultado dessa
pesquisa auxiliando os professores na sua docência, estimulando a valorização dos espaços cul-
turais, apresentando alternativas que realmente despertem o interesse dos estudantes, chamando
atenção para os desvios que podem ser encontrados durante o trajeto e que ainda prejudicam o
processo de ensino/aprendizagem, a fim de contribuir para o desenvolvimento da arte educação
na região.

2. OBJETIVOS

O objetivo geral da pesquisa aqui apresentada é investigar como se dão os usos e acessos dos espaços
culturais nas práticas do ensino da arte. Saber se e como os professores e estudantes das disciplinas de
arte do ensino básico de três escolas do bairro de Pau Amarelo se deslocam para os museus e galerias
de arte e analisar se essas visitas têm relevância nas práticas de ensino dos professores, e, por conse-
quência, na aprendizagem dos estudantes.

314
2.1. Objetivos Específicos:

• Perceber como e se é realizado o deslocamento dos professores com sua turma de estudan-
tes aos espaços culturais;
• Saber como e se os professores relacionam as atividades de sala de aula às atividades do
educativo do museu ou galeria;
• Compreender os motivos pelos quais alguns professores deixam de levar suas turmas aos
espaços expositivos de artes visuais, caso este fato seja diagnosticado;
• Analisar a presença ou inexistência de equipamentos culturais com foco em artes visuais
na cidade de Paulista;
• Perceber de que forma a presença ou ausência de galerias e museus de arte próximos à
escola influenciam no ensino de arte dessas escolas.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para o início da pesquisa, foi traçado um perfil com alguns requisitos para as escolas que serão os
objetos de estudo do processo: serão três escolas localizadas no mesmo bairro (Pau Amarelo - Pau-
lista), sendo uma estadual, uma municipal e uma particular. Estas escolas deverão ter em seu currí-
culo escolar a disciplina de artes, e o professor da disciplina com ou sem formação na área de artes.

A pesquisa será desenvolvida através de observações e documentações das aulas de artes das esco-
las em questão, de observações e registros das visitas das escolas aos espaços culturais (caso haja),
entrevistas e/ou questionários que serão realizados com professores, estudantes, gestores das esco-
las, educadores dos espaços culturais, e posterior análise dos documentos e dados fornecidos pelas
instituições colaboradoras da pesquisa, dialogando sempre com o levantamento bibliográfico feito
durante toda a pesquisa.

Também faz parte do processo de pesquisa buscar informações em outras instituições, como por
exemplo, a Secretaria de Educação da Cidade do Paulista e o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). O contato com essas outras instituições fornecerá dados como o quantitativo
de escolas na região com a disciplina de artes em seu currículo, a formação dos professores que
ministram esta disciplina nas escolas, no caso da Secretaria de Educação, e um levantamento sobre
os museus e espaços culturais destinados às artes visuais presentes na cidade de Paulista e/ou em
cidades próximas, no caso da pesquisa pelo IBGE. A busca por informações nestes outros órgãos,
apesar de não serem objetos diretos da pesquisa, ajudam a enriquecer e contextualizar sobre o que
está sendo trabalhado.

A última etapa será o diálogo da análise de toda a documentação produzida durante o período de
um ano e meio, com a bibliografia estudada paralelamente ao longo do mesmo tempo, resultando na
dissertação.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo/Porto Alegre: Perspectiva, 1991.

315
______. Museus como laboratórios. Revista Museu, Rio de Janeiro, 04 abr. 2004. Disponível em: < http://revis-
tamuseu.com/artigos/art_.asp?id=3733>.
______. Teoria e Prática da Educação Artística. São Paulo: Cultrix, 1995.
BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane (Orgs.). Arte/Educação como Mediação Cultural e Social. São Paulo:
Editora UNESP, 2009.
CAMNITZER, Luis et. al. (Org.) Educação para a arte/Arte para a educação. Tradução de Gabriela Petit et. al.
Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2009. Disponível em: <http://www.fundacaobienal.art.br/novo/
arquivos/publicacao/pdf/Livro_Arte_Educacao.pdf>. Acesso em: 16 set. 2015.
EIDELMAN, Jacqueline; ROUSTAN, Mélanie; GOLDSTEIN, Bernadette. O lugar do público: sobre o uso de
estudos e pesquisas pelos museus. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras; Itaú Cultural, 2014. Dis-
ponível em: <http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront. net/wp-content/uploads/2014/09/Lugar_publico_FINAL.pdf>.
GOHN, Maria da Glória et al. Não fronteiras: universos da educação não-formal. São Paulo: Itaú Cultual, 2007.
MARTINS, Mirian Celeste (Org.) Didática do ensino da arte. A língua do mundo; poetizar, fruir e conhecer
arte. São Paulo: FTD, 1998.
MATTOS, Ivana de Macedo; REBOUÇAS, Moema Martins. Museu e escola: espaços de sentidos. 2014. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL DA FEDERAÇÃO DE ARTE/EDUCADORES, 2., 2014, Ponta Grossa.
Anais... Ponta Grossa: UEPG, 2014. Disponível em: <http://www.isapg.com.br/2015/html/areas/Artes%20Vi-
suais/11/22.pdf>.

316
O podcast como mediação cultural:
iradex podcast e as conexões
com ideias e pessoas
Gustavo Henrique da Silva Pereira

INTRODUÇÃO

A condição social humana pressupõe a participação e mediação de um outro ser. O conceito de me-
diação em Vygotsky85 revela que o desenvolvimento humano acontece através do processo em que o
mundo passa a ter significado para o indivíduo. Isso ocorre conforme se torna um ser cultural e se re-
laciona com os demais. A relação do homem com o mundo não é direta, mas sim fundamentalmente
mediada, e requer a presença de um elemento mediador, portanto a própria humanização se entrelaça
com os processos de graduais ganhos culturais.

Nesse contexto, destacamos a mediação cultural, a qual presume a participação presencial da ex-
posição, do visitante e do agente mediador humano, pois necessita de estímulos sensoriais para a
construção do conhecimento e sensibilização do espectador para a obra (FAUCHE, 2002). Acon-
tece, então, que, dentro de uma perspectiva virtual, os ambientes expositivos são unilaterais e não
são desafiadores para os visitantes, desde que, partindo do pressuposto de que os conhecimentos
presentes nos museus e galerias não são transmitidos diretamente para os visitantes — o que mos-
tra a importância da mediação para o público —, podemos afirmar que na podosfera86 acontece o
contrário.

A informação tratada num podcast — aqui essencialmente sobre a cultura pop87— é acessível e
direcionado ao próprio visitante/ouvinte, mas que, pela vastidão de materiais disponíveis e a ten-
dência a consumir artigos de um mesmo nicho, acaba não tendo o contato. Os podcasts se tornam

85. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
86. Diz-se, na cultura pop, de toda a esfera relacionada aos podcasts.
87. “Conjunto de práticas, experiências e produtos norteados pela lógica midiática, que tem como gênese o entretenimento; se ancora, em
grande parte, a partir de modos de produção ligados às indústrias da cultura (música, cinema, televisão, editorial, entre outras) e estabe-
lece formas de fruição e consumo que permeiam um certo senso de comunidade, pertencimento ou compartilhamento de afinidades que
situam indivíduos dentro de um sentido transnacional e globalizante”. SOARES, Thiago. Abordagens teóricas para estudos sobre cultura
pop. LOGOS 41, Rio de Janeiro, v. 2, n. 24. 2014. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ logos/article/viewFi-
le/14155/10727> Acesso em: 01 maio 2016.

317
espaços diversificados de comunicação na sociedade contemporânea, que consolidam a relação
do público com o artista/autor e aproximam seu ouvinte da interação com os espaços, obras e
produtos desconhecidos, mas destinados a ele. Ocupando lugar próspero na podosfera nacional,
o Iradex Podcast88 (aqui chamaremos de IP), iniciado em 2013, conta com milhões de downloads89
e tem abordagem diferenciada no seu conteúdo, pois — por apresentar um conteúdo que foge à
regra do hype90 — inclui nos seus episódios indicações de projetos (música, literatura, audiovisual
etc.) menos difundidos e menores em relação à grande indústria cultural bem como trabalhos fora
da atualidade.

Portanto, chegamos às nossas questões que serão analisadas a partir da primeira seção desta pes-
quisa, passando pelo foco na mediação cultural por meio de Lamizet (1999), dentre outros autores,
pela segunda seção, com foco no podcast e no IP (CARVALHO, 2010). A terceira seção aborda o
que identifica o objeto de estudo como meio de mediação cultural, além de responder às pergun-
tas de partida contidas nesta introdução: como o IP se comporta em relação à divulgação desse
conhecimento? O que identifica o IP como espaço de mediação cultural e qual sua importância?
O que lhe diferencia enquanto divulgador e quais são suas estratégias? Por fim as considerações e
referências.

1. A MEDIAÇÃO CULTURAL

Inicialmente pensadas para o universo dos museus, as preocupações com a institucionalização dos
serviços educativos e dos intermediários culturais que aí trabalham avançam de forma generalizada
a partir de meados dos anos 1970, acompanhando transformações mais amplas ao nível das políticas
culturais (FERREIRA, 2002). Assiste‑se, assim, a uma alteração progressiva da missão e objetivos de
muitos serviços dos museus propiciando uma atitude de maior experimentalismo e a busca de estra-
tégias inovadoras. Por vezes, estas mudanças geram conflitos no seio dessas instituições, decorrentes
da necessidade de promover uma conciliação entre as tradicionais responsabilidades e competências
dos profissionais e a nova visão destes equipamentos como agentes ativos na promoção da inclusão
social (SANTOS, 2005).

Na medida em que “a cultura se dá visível pela mediação91” (LAMIZET, 1999, p. 15), torna-se favo-
rável o desenvolvimento de práticas coletivas de sociabilidade e a mediação cultural se mostra como
um trabalho de representação de um lugar social.

Há uma proposta expansiva sobre a definição da mediação cultural na perspectiva linguística de


Bernard Lamizet (1999), onde o conjunto de atividades produtivas de representação e significação
artísticas na sociedade participa da mediação cultural.

88. http://iradex.net/3747/saiba-o-que-e-podcast-e-conheca-o-iradex-podcast
89. http://iradex.net/7385/sem-fim-escute-ate-o-fim-serio
90. “Promoção extrema de uma pessoa, ideia, produto. É o assunto que está “dando o que falar” ou algo que todos falam e comentam.
Geralmente é algo passageiro, como o assunto da moda. A palavra deriva de hipérbole, figura de linguagem que representa o exagero de
algo ou uma estratégia para enfatizar alguma coisa”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Hype > Acesso em: 04 maio 2016.
91. Traduzido pelo autor: “la culture se donne à voir par la médiation”.

318
A mediação representa o imperativo social92 essencial do diálogo entre o singular e o coletivo, e da
sua representação em formas simbólicas. A sociedade pode existir apenas se cada um dos seus mem-
bros tem consciência de uma relação dialética necessária entre a sua própria existência e a existência
da comunidade: é o sentido da mediação que constitui as formas culturais de pertença (...) É no espa-
ço público que são levadas a efeito as formas da mediação, que trata-se do lugar no qual é possível tal
lógica das formas coletivas e as representações singulares. O espaço público é, por definição o lugar
da mediação cultural93. (LAMIZET, 1999, p. 9).

Fauche (2002) trata essa mediação em dois níveis: a mediação direta ou presencial; e a mediação
indireta ou de suporte. A mediação direta implica na presença física de um mediador no espaço de
realização do projeto, enquanto que a mediação indireta seria mais conhecida pelas proposições onde
o público tem um percurso livre.

A mediação direta, a qual depende diretamente da presença de um profissional da mediação, trabalha


com a interação deste profissional com grupos de visitantes e a gestão de como o percurso será reali-
zado. Já a mediação indireta trabalha com outras possibilidades de suportes físicos e virtuais. Na for-
ma indireta, a mediação abarca as tecnologias e, como elas, desenvolve-se ininterruptamente e trans-
formam alguns conceitos relativos à noção de equipamentos culturais e as formas de transmissão e
difusão cultural. Assim, acredita-se que a mediação cultural e seus mediadores sejam diferenciados
nos ambientes virtuais (FAUCHE, 2002).

A tarefa do mediador é a de aproximar o público em todas as suas determinações e complexidades


com o que está exposto, com a leitura e compreensão crítica das mais diversas produções, interme-
diando este conhecimento e tornando-o mais próximo ao público (MARTINHO, 2007). O repertório
de um mediador se ancora em práticas culturais, tais como leitura, seriados de tevê, filmes, álbuns
musicais etc. Ele, em suas ações, agrega múltiplas informações e funções. O fato é que todos somos
formados não apenas pela educação escolar e pelos intercâmbios ocorridos no ambiente profissional,
também somos diretamente influenciados pelos meios de comunicação de massa, pelo currículo cul-
tural particular. A mediação cultural passou a ter novos significados e formas de execução na socie-
dade da informação atual (PERROTI, 2007).

Importante deixar claro que — segundo a perspectiva que adotamos — o objetivo de qualquer
mediação será a autonomia, a emancipação e a participação ativa dos sujeitos, dessa forma, me-
diar cultura é um ato de colocar em relação protagonistas e repertórios culturais, tornando-se
nesse processo o mediador, como os demais envolvidos, também protagonista, sujeito cultural

92. “Capacidade de que os indivíduos, enquanto cidadãos, podem se aperfeiçoar de maneira infinita ao ponto da perfeição, ideia essa in-
timamente ligada à de progresso que incidiria ao mesmo tempo na individualidade e na sociedade. Dessa forma, o projeto de construção
da felicidade humana foi enunciado como possível para todos os indivíduos” FOGAÇA, Jôse; PEREZ, Clotilde. Felicidade adjetivada:
polifonia conceitual, imperativo social. Intercom, RBCC. São Paulo, v.37, n.1, p. 217-241, jan./jun. 2014. Disponível em: < http://www.
scielo.br/pdf/interc/v37n1/a11v37n1.pdf> Acesso em: 04 maio 2016.
93. Traduzido pelo autor: “La médiation représente l’impératif social majeur de la dialectique entre le singulier et le collectif, et de sa
représentation dans des formes symboliques. La société ne peut exister que si chacun de ses membres a conscience d’une relation dialecti-
que nécessaire entre sa propre existence et l’existence de la communauté: c’est le sens de la médiation qui constitue les formes culturelles
d’appartenance (...) C’est dans l’espace public que sont mises en œuvre les formes de la médiation, en ce qu’il s’agit du lieu dans lequel
est possible une telle dialectisation des formes collectives et des représentations singulières. L’espace public est, par définition le lieu de
la médiation culturelle”.

319
atuante e participante dos processos cognitivos e socioculturais que se desenvolvem (PASCHO-
AL, 2009).

2. O PODCAST E O IRADEX PODCAST

Para essa investigação, tomamos o IP como estudo de caso, pois, ao utilizar esse procedimento e ao
selecionar apenas um objeto de pesquisa, obtemos grande quantidade de informações sobre o caso
escolhido e, consequentemente, aprofundamos seus aspectos (MATOS e VIEIRA, 2002). Na pesquisa
bibliográfica, utilizamos do canal formal as fontes que veiculam informações já estabelecidas ou com-
provadas através de estudos acessíveis em pesquisas de livros, artigos em periódicos e teses. Na pes-
quisa documental, apuramos fatos de canais informais sem tratamento analítico, estes contribuíram
para correlacionar informações a partir de podcasts e textos (COSTA, 2008). Por ser uma pesquisa
sobre arte tomamos como método análises pontuais oriundas dos questionamentos delimitados por
um ponto de vista particular, propomos uma reflexão sobre aspectos da própria arte e da cultura
(REY, 2002). Salientamos ainda que esta pesquisa tem cunho qualitativo.

Dessa forma, apresentamos aqui a ferramenta chamada podcast, que se trata de um ficheiro de áudio
ou vídeo, distribuído através da Internet, que pode ser subscrito através de feeds94 RSS95 e é facilmente
descarregado para o computador ou celular, como exemplos dos dispositivos mais usados (CARVA-
LHO, 2010). Por esse motivo, os podcasts têm boa aceitação e difusão pelos utilizadores de dispositivos
móveis devido a predominância dos smartphones atualmente. É usado no intuito de apresentar progra-
mas temáticos, para um público específico “com diferentes finalidades, nomeadamente: para apresentar
conceitos, dar feedback, orientações, recomendações, fazer revisões, sínteses” (CARVALHO, 2010, p. 4).

O podcast não deve ser de longa duração, porque causa diminuição na atenção e uma subsequente
diminuição na compreensão. É preferível mais podcasts curtos sobre aspectos específicos. O podcast
deve ter qualidade técnica. Walch e Lafferty (2006) recomendam que é importante evitar barulho de
fundo, enganar-se enquanto grava porque interrompe o fluir do discurso. E imprescindível ter uma
certa energia para que o ouvinte se mantenha envolvido. (CARVALHO, 2010)

No Brasil, os podcasts emblemáticos são Nerdcast (conduzido por Alexandre Otttoni ou “Jovem Nerd”
e Deive Pazos ou “Azaghal”) e Rapadura Cast (capitaneado por Jurandir Filho também responsável
pelos podcasts 99 Vidas e Canal 42). Neles, a temática nerd96 em voga e os filmes, respectivamente,
são apresentados como pontos de partida para o diálogo, para a partilha e a colaboração, fomentando
assim espaços de interação entre seus ouvintes. O áudio, conforme Machado, “é um meio poderoso
para transmitir emoções, atitudes e recriar determinada atmosfera” (2010, p. 3), portanto os podcasts
citados primam pela autenticidade, numa forma que reproduzem uma conversa informal aproximan-
do o público dos seus trabalhos. E o IP não se diferencia nesse ponto.

94. Na prática, são usados para que um usuário de internet possa acompanhar os novos artigos e demais conteúdo de um site ou blog sem
que precise visitar o site em si.
95. Really Simple Sindication.
96. Inseridos na temática nerd existem os geeks que se dedicam à tecnologia, aos conhecimentos científicos e à informática; os gamers são
jogadores e conhecedores de vídeo games; os RPGistas que disputam partidas Role Playing Games (RPG); os Fanbase ou Fandom, grupos
de fãs de uma certa obra dentre outros.

320
Imagem 1. Logomarca do Iradex
Fonte: https://www.facebook.com/iradex/

Proveniente de Fortaleza-CE, o Iradex Podcast está inserido no site agregador de podcasts Iradex da rede
RIPA onde além dele contém outros como Sete Reinos, Sem Fim, PH Santos Show e Caixa de Histórias.
Surgido de um vlog97 depois da solicitação para criação de feed em áudio do conteúdo do vídeo por um
deficiente visual, os áudios foram publicados e se tornaram o embrião do que logo viria depois, então
foi criado pelos podcasters98 Raphael PH Santos e Kaio Anderson o IP com a proposta de indicações.
Cada programa é dividido em blocos onde cada integrante tem um tempo estimado em 20 minutos para
apresentar algo que esteja acompanhando, seja livro, quadrinho, banda, jogo, app, filme, seriado de TV,
dentre outros, e,, geralmente, tem a duração de 1 hora a 1 hora e 30 minutos. No total são 3 indicações
por episódio. No decorrer do tempo o integrante Gabriel Franklin tornou-se fixo do programa.

Constituindo-se como preservador e propagador de culturas pouco reconhecidas, o IP populariza o que


se propõe a expor e descentraliza os temas maiores da cultura dominante. Unido ao conteúdo, expres-
sam suas vivências, o que permite a quem lhes acompanha compreender melhor como são expressos os
pensamentos, sentimentos e valores através das diversas linguagens exibidas. Nesse sentido, como a me-
diação se apresenta como terceiro, cujo desempenho é indispensável às trocas impostas pelas condições
do viver junto, ela não é apenas “ação de servir de intermediário (...) entre dois seres”99.

3. IDEIAS, PESSOAS E RESPOSTAS

Na perspectiva de Perroti e Pieruccini (2007), não há restrição aos trabalhos realizados pelos pro-
fissionais da informação quando todo e qualquer elemento dos dispositivos virtuais informacionais
dedicados à mediação cultural primam por “intrigar e provocar a percepção e a ação do público,
instigando deslocamentos”100.

97. E a abreviação de videoblog (vídeo + blog).


98. Quem faz ou grava podcasts.
99. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 656.
100. COUTINHO, Rejane Galvão; NAKASHATO, Guilherme; LIA, Camila Serino; ARANTES, Tatiana. Mediação cultural: uma estra-
tégia performática para a exposição Yoko Ono. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO DE PESQUISADORES EM ARTES
PLÁSTICAS (ANPAP), 17., 2008, Florianópolis. Anais... Florianópolis: ANPAP, 2008. p. 1394.

321
Aqui, verificamos a espontaneidade do IP em se apresentar como meio de mediação cultural, desde
que “amplia o conhecimento, fazendo sentido por se relacionar com experiências para desenvolver o
estético estimulando e ressignificando o conhecimento”101, por meio disso os mediadores do IP tor-
nam amplo o olhar do observador a respeito da informação.

Imagem 2. Os 3
podcasters do Iradex
Podcast.
Fonte: http://iradex.
net/wp-content/
uploads/2015/04/
iradex-en-
saio-2015-7412

Numa mediação indireta (FAUCHE, 2002), desenvolvem repertório cultural, fazendo jus à posição
intermediária e à cadeia produtiva de mediadores. O objetivo de garantir a construção e reprodução
do conhecimento considerado socialmente relevante acentua a organização reflexiva das identidades.
Pelo costume de trabalharem divulgando elementos fora do hype da indústria cultural e dos recôn-
ditos da cultura pop, muitas vezes de assuntos desconhecidos dos ouvintes, o IP permite e expande
o universo cultural — e consequentemente o social — de quem o acompanha. A delimitação de um
universo cultural e social remete às pessoas um estranhamento do desconhecido. E é exatamente o
não reconhecimento do outro e, ao mesmo tempo, a necessidade de afirmação de sua própria cultu-
ra, que estimula o preconceito. Logo, quando as culturas passam a serem conhecidas, a tendência ao
preconceito é diminuída.

 O programa adequa a sua oferta de serviços compreendendo seu lugar dentro das constantes mudan-
ças da cultura pop que afetam os seus campos específicos de intervenção, ao mesmo tempo, buscam
o feedback afetuoso e aproximado dos seus ouvintes, constituindo, assim, os fatores que favorecem à
adoção de atualização das estratégias de mediação no contexto de um espaço de mediação cultural.
Afinal, o IP é claramente um espaço de escolhas e intencionalidades – do artista, da obra, dos pod-
casters e, sobretudo, do público – e por meio destas estratégias é que se pode instigar o ouvinte. São
capazes de moldar espaços de maior visibilidade e, desse modo, vender melhor o serviço cultural,
alargando as suas audiências e potenciais patrocinadores.

101. MARTINS,M. C. Mediação: estudos iniciais de um conceito. Blogspot.com. 27 jun. 2007, p. 76. Disponível em:< http://equipearte.
blogspot.com/2007/06/mediaoestudos-iniciais- de-um-conceito.html> .Acesso em: 15 maio 2016.

322
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pluralismo cultural foi assumido na proposta do Iradex, onde é caracterizado pela coexistência e
convivência de vários grupos culturais que cooperam entre si. O Iradex tanto promove isso, que abriu
um espaço que se apresenta como um estímulo ao convívio, que se chama “bando de ruma” e agrega
mais de 1 mil pessoas na rede social Facebook, onde temas referentes aos episódios da rede RIPA são
debatidos e os integrantes coexistem em harmonia.

A multiculturalidade do IP está relacionada com a diversidade cultural dos seus 3 integrantes, en-
quanto o conceito de interculturalidade advém do enfoque que se estabelece à comunicação, ao re-
conhecimento e à ação dos 3 que pertencem a diferentes culturas. Concluímos esta pesquisa identi-
ficando o Iradex Podcast como um lugar de mediação cultural por excelência, enxergando que seus
integrantes propiciam o conhecimento e o reconhecimento de múltiplas informações para seus ou-
vintes e os humaniza concomitante concede identidade cultural e social a nós.

REFERÊNCIAS

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tosinhos, n. 8, 2010. Disponível em: <http://www.rcaap.pt/detail.jsp?id= oai: repositorium.sdum.uminho.
pt:1822/9432 > Acessado as 12:14 em 04 de maio de 2016.
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Ciência da Informação) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2008.
FAUCHE, Anne. La médiation-présence au musée d’Histoire des Sciences de Genève. In: La lettre de l’Ocim nº
83, Dijon/FR, 2002, p. 3-9.
FERREIRA, Claudino. Intermediação cultural e grandes eventos. Notas para um programa de investigação
sobre a difusão das culturas urbanas. Oficina do CES, n. 167. 2002.
GUERRA, Rodrigo. Brasileiros transformam o hobby do podcast em negócio lucrativo. UOL jogos, 01 mar.
2016. Disponível em: <http://jogos.uol.com.br/ultimas-noticias/2016/04/01/ brasileiros-transformam-o-ho-
bby-do-podcast-em-negocio-lucrativo.htm> Acesso em 04 maio 2016.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
LAMIZET, Bernard. La médiation culturelle. Paris: L’Harmattan, 1999.
MARTINHO, Teresa Duarte. Apresentar a arte. Estudo sobre monitores de visitas a exposições. Lisboa: Obser-
vatório das Atividades Culturais, 2007.
MATOS, Kelma Socorro Lopes de; VIEIRA, Sofia Lerche. Pesquisa educacional: O prazer de conhecer. Fortale-
za: Ed. Demócrito Rocha, 2002.
PASCHOAL, Sônia Barreto de Novaes. Mediação Cultural dialógica com crianças e adolescentes: oficinas de lei-
tura e singularização. 103 f. 2009. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Escola de comunicação
e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
PERROTTI, Edmir; PIERUCCINI, Ivete. Infoeducação: saberes e fazeres da contemporaneidade. In: LARA, M.;
FUJINO, A.; NORONHA, D. P. (Orgs.). Informação e contemporaneidade: perspectivas. Recife: Néctar, 2007.
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em Artes Visuais. In: TESSLER, E.; BRTITES, B. O
meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em Artes Plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002.
SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos. Contribuições para a formulação de políticas públicas no horizonte 2013
relativas ao tema Cultura, Identidade e Património. Lisboa: Observatório das Atividades Culturais, 2005.
WALCH, R.; LAFFERTY, M. Tricks of the podcastings Masters. Indianópolis/USA: QUE, 2006.

323
Arte, memória e patrimônio:
experiências educativas em
escolas públicas de Belém
Paulo Sérgio das Neves Souza

A s cidades são grandes galerias a céu aberto, constituídas por diversas edificações e corpos que
habitam e transitam pelo seu contexto desvelando suas entranhas num vai-e-vem misturado pela for-
ça da urbanidade contemporânea. Suas ruas se compõem em exercícios de poder e reivindicações de
direitos numa coexistência com seus moradores e seus transeuntes comungando com as praças, casas,
bosques, prédios históricos, escolas, museus, monumentos, becos, esquinas etc. A cidade se constitui
como um grande terreno onde aparecem e ocorrem as transformações das culturas urbanas, na mes-
ma velocidade em que ocorre seu desenvolvimento, estimulando reflexões críticas sobre as variadas
formas de arte que permeiam seu campo.

As dinâmicas que acontecem nas cidades estão ligadas aos variados meandros de resistência e afirma-
ção de suas expressões sociais, culturais, artísticas, políticas, patrimoniais etc. São formas de diferen-
tes modos de demonstrar aos moradores e visitantes o reconhecimento de sua política para com o uso
dos espaços públicos urbanos constituídos de processos patrimoniais e estéticos, bem como perceber
suas formas de identidades.

Pensar a cidade é também pensar sobre o patrimônio cultural que faz parte de seu contexto, e de
como seus transeuntes se movimentam e vivem em sua complexa teia urbana relacionando-se com
sua paisagem e percebendo seu cotidiano. Estar na cidade é perceber que estamos vivendo juntos com
outros corpos que são nossos contemporâneos. Calvino (2000) diz da cidade como um espaço onde se
contempla nossas aspirações e satisfações: “A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é
desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros
lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer” 102.

A cidade reflete sua gente, seus transeuntes, suas vidas e suas posturas tomadas diante dos espaços que
comungam; daquelas que cuidam da cidade, e das que a maltrata. Os espaços públicos são a conti-
nuidade de nossas moradas e de nossos corpos onde estão situados, resguardados, expostos com suas
construções que determinam o espaço urbano.

102. Calvino, 2000, p. 08.

324
São espaço urbano o pórtico da basílica, o pátio e as galerias do palácio público, o interior da igre-
ja. Também são espaço urbano os ambientes das casas particulares; o retábulo do altar da igreja, a
decoração do quarto de dormir ou da sala de jantar, até mesmo o vestuário e o ornamento com que
pessoas se movem, recitam a sua parte na dimensão cênica da cidade. Também são espaço urbano,
e não menos visual para ser mnemônico-imaginárias, as extensões da influência da cidade além de
seus limites: a zona rural de onde chegam os mantimentos para o mercado da praça, e de onde o ci-
tadino tem suas casas e suas propriedades, os bosques onde vai caçar, o lago e os rios onde vai pescar;
e onde os religiosos têm seus mosteiros, e os militares suas guarnições 103.

Quando um artista toma o espaço público para compor uma obra de arte está discutindo sobre cida-
de, inclusive a cidade que não está somente no grande centro, no dito urbano, excluindo o rural, como
aponta Argan (2005). A cidade está em todos os lugares e é constituída de sua gente. São as pessoas
que dizem da cidade produzindo seu patrimônio, seja cultural, econômico, político, artístico, social,
histórico, bem como sua memória individual e coletiva. É a partir das produções humanas que a ci-
dade se qualifica como tal e se mostra aos seus transeuntes.

A cidade guarda a fragmentação de sua história, inclusive a fragmentação da história de sua arte, de
sua gente, de seu patrimônio relacionado ou não entre si. Nesse labirinto vislumbramos descobertas
por onde a cidade caminhou, e por onde caminha, e por onde possamos caminhar nela e com ela. A
história das cidades será sempre uma história construída por seres humanos e por suas ações como
contribuição ou não às cidades.

Desenhar essa complexidade não é tarefa fácil, mas por outro lado não rabiscá-la é deixar de enten-
der e perceber, sobretudo, as manifestações artísticas e culturais que dizem de uma cidade politizada
através de seu patrimônio e de sua arte. Sabe-se que a cidade é a representação de classes, porém, é a
partir desse contexto que se constitui também um saber político contido nas artes e, aqui neste caso,
em seus patrimônios artístico, histórico e arquitetônico, que servem também como instrumentos na
continuidade da educação de crianças, jovens e adultos afirmando, a partir desse contexto, as mani-
festações que constituíram e constituem sua história e sua memória.

A cidade que conduz a formação e a educação de seus moradores, realizada através da preservação e da
divulgação de seu patrimônio, seja ele artístico, estético, cultural, arquitetônico, histórico etc... Diz de
um lugar onde ainda se desperta o interesse e o resguardo de sua memória. Com isso, a cidade torna-se
um espaço de favorecimento e fomentação de educação demonstrando suas inúmeras faces culturais.

1. BELÉM, PORTAL VERDE DA ERA DO FERRO NA AMAZÔNIA

Belém é uma cidade entrelaçada por suas centenárias mangueiras, pelas cores e sabores de sua culiná-
ria, pelos ritmos e bailados de suas danças e folguedos, por sua diversidade cultural, por sua produção
artística e sua religiosidade, por sua arquitetura neoclássica introduzida por Antônio Landi, bem
como de estilo eclético, que teve seu apogeu com a extração da borracha na Amazônia. Essa Belém,
algumas décadas vem apresentando consideráveis preocupações com o resguardo e o restauro de

103. Argan, 2005, p. 43.

325
prédios históricos, praças, monumentos, casarios que constituem parte da cidade; bem como pelas
atuantes mudanças em seu comportamento artístico, político, cultural e social.

Esse comportamento busca também discutir questões ligadas à preservação e resguardo da memória
dessa cidade, através de seu patrimônio material e imaterial. São múltiplos os desdobramentos cultu-
rais que são impressos e apresentados na diversidade desse contexto, inclusive atuantes preocupações
para com a memória do legado de seu patrimônio, no caso desses escritos, do patrimônio arquitetô-
nico e monumentos imbricados a cultura, as crenças, a vida e ao cotidiano de sua gente.

De tempos em tempos a cidade vai sendo apresentada através de cores, de curvas, de formas, de
badaladas de sinos, de relógios que marcam o tempo da vida da cidade, ou que pararam no tempo.
Imagens impregnadas de liberdade, de conhecimento, de crença e fé. São relações que vão sendo
constituídas na cidade e pela cidade.

Essa cidade marcada pela textura de seu tempo exibe-se num verde-mar de avenidas onde sua gente é
destaque principal e suas mangueiras são seus carros alegóricos. Metrópole acolhedora que apresenta
ares de cidade pequena, provinciana, mas repleta de imagens em movimento, opulência de formas,
vitalidade, tensão, efeitos ilusionistas, monumentalidade. Características marcantes do fluxo e do re-
fluxo da cidade, pelo seu excessivo gosto ornamental dotado de exuberância emocional, sensualidade,
predomínio de curvas e contracurva oriundas de uma sempre remontada Belle Époque.

Para o professor Paes Loureiro, essa “(...) celebrada Belle Époque de Belém, como se diz, na verdade
foi o fausto colonialista da Belle Époque francesa beneficiando-se do mercado consumidor do Pará
amazônico, ainda com os bolsos cheios do dinheiro da borracha”104. Nesse Verde Portal, de grande
influência francesa, encontradas edificações de ferro oriundas desse tempo da extração do látex na
Amazônia, que os “coronéis da borracha” ou os administradores governamentais da época mandaram
construir.

O período que prosperou a efervescência pelas edificações e monumentos com a utilização do ferro
importado da Europa, considerado a “(...) Era do Ferro no Pará, revela Belém entre o fim do século
XIX e começo do XX, quando se verifica o florescimento econômico da região e a ascensão de uma
burguesia enriquecida com o comércio da borracha”105. Nesse período, Belém passa pela mais impor-
tante transformação econômica e cultural dessa época, sendo remodelada em sua estrutura urbana
tendo como princípio as modernizações ocorridas em cidades da Europa que muito foram transfor-
madas devido a Revolução Industrial ocorrida no século XIX. “É quando (...) uma nova arquitetura
feita totalmente de ferro trazida da Europa é erguida na Amazônia, hoje adotada como marco visual
de grande valor simbólico e afetivo para o paraense: o Mercado de Peixe, o Relógio de Ferro, o Mer-
cado de Carne, o reservatório de São Brás, os galpões do porto das Docas, dentre outros”106. Um
conjunto arquitetônico de significado valor histórico, tanto pela quantidade diversificada de prédios,
monumentos e mobiliário urbano ou quanto pela qualidade e suntuosidade em sua decoração.

104. Loureiro, 2011, p. 01.


105. Sobral, 2012, p.01.
106. Idem.

326
Parte desse patrimônio arquitetônico de ferro, ainda preservado, oriundo desse período da extração
da borracha, foi, em 2012, utilizado no projeto de educação patrimonial denominado “Era do Ferro”,
cujos objetivos foram os de divulgar e difundir em escolas públicas da cidade de Belém uma educação
escolar também pautada através do patrimônio arquitetônico, bem como discutir a necessidade de
resguardo e preservação do patrimônio público comum.

Este projeto entende que o modo mais eficiente de resguardar a nossa memória é através da educa-
ção, visão que levou à elaboração de um programa ambicioso que conta com a publicação de milha-
res de maquetes de prédios históricos para serem montados pela população (...), como também, em
particular, por alunos de escolas públicas de Belém como maneira de despertar em comunidades
escolares a importância da preservação e do resguardo do seu patrimônio histórico/arquitetônico
de ferro 107.

Como parte do projeto foi organizada exposição itinerante de maquetes produzidas por alunos do
curso de Arquitetura da cidade de Belém. Essa exposição foi realizada em escolas públicas municipais
e estaduais da região metropolitana da cidade de Belém e no Museu da Universidade Federal do Pará.
Foram expostas maquetes das seguintes edificações: o Mercado de Peixe e o Mercado de Carne; Gal-
pão da Cia. das Docas do Pará; Teatro Estação Gasômetro; Pavilhão de música Santa Helena Magno;
Relógio de Ferro do Ver-O-Peso; Reservatório de água de São Brás; Chalé Álvaro Adolpho – Chalé de
Ferro da Universidade Federal do Pará; e o Farol de Salinas-Pa.

O projeto foi idealizado e coordenado pelo artista plástico Armando sobral, tendo fundamental apoio
do Museu da Universidade Federal do Pará. A coordenação das ações educativas do projeto e da
exposição foi realizada por mim. Essa exposição aconteceu entre os meses de abril a maio/2012. Tive-
mos como mediadores alunos dos cursos de Artes Visuais e Museologia da Universidade Federal do
Pará, e professores de Arte e Matemática da Rede Municipal de Ensino de Belém, que contribuíram
no desenvolvimento das atividades de visitação de alunos durante a exposição, bem como nas oficinas
de confecção de maquetes em papel.

2. ETAPAS DO PROJETO

2.1. 1ª Etapa: Laboratório de maquetes.

A produção das maquetes aconteceu a partir do trabalho colaborativo entre estudantes do curso de
Arquitetura, além de alguns arquitetos e artistas visuais da cidade de Belém a fim de contribuir com
a formação de futuros profissionais mais preocupados e comprometidos acerca da preservação do
patrimônio arquitetônico do Pará.

Os participantes tiveram informações sobre a história e as técnicas de construção de prédios histó-


ricos representativos do período da extração da borracha na Amazônia paraense, mas precisamente
na cidade de Belém. No período da elaboração das maquetes realizadas no Museu da Universidade
Federal do Pará – MUFPA – houve visitação de estudantes de escolas públicas e público em geral po-

107. Idem.

327
dendo ver os processos que levam à representação de prédios históricos em maquetes. O laboratório
de maquetes foi ministrado a 10 alunos do curso de Arquitetura da Universidade Federal do Pará e
da Universidade da Amazônia.

Figura 1. Oficina de maquetes


para estudantes do curso de
Arquitetura

Figura 2. Maquete do Merca-


do de peixe.

2.2. 2ª Etapa: Palestras “A Era do Ferro no Pará”

As Palestras sobre a arquitetura do ferro no Pará foram realizadas no Museu da Universidade Fe-
deral do Pará pelo professor Dr. Aldrin Figueiredo, do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pará; e pela Arquiteta e professora Jussara Derenji, Diretora do Museu da
Universidade Federal do Pará.

Essas palestras foram direcionadas para o público em geral, para professores de escolas públicas,
bem como para estudantes de Arte e Arquitetura. Os professores apontaram os processos históricos,
arquitetônicos e artísticos das edificações em questão, além de discussões a cerca da preservação do
patrimônio local e nacional.

328
Figura 3. Palestra “A Era do
Ferro no Pará” – Museu da
Universidade Federal do Pará.

2.3. 3ª Etapa: Exposição de maquetes em escolas públicas.

A apropriação do projeto pelas escolas visou garantir os alunos o conhecimento e a importância de


manter preservados estes monumentos. A educação patrimonial em escolas é importante, pois muitas
vezes as pessoas depredam ou mesmo sujam estes monumentos por não conhecer sua história. Atra-
vés do projeto, nós conseguimos repassar informações sobre essas edificações reavivando a memória
da cidade e de seus cidadãos. Assim, mantemos o patrimônio da cidade preservado.

Através de ações de Arte/Educação foram ministradas oficinas de confecção de maquetes aos alunos
e professores abordando conhecimentos sobre arte e História da Arte, sobre educação patrimonial,
história dos prédios representados em maquetes, além de proporção matemática sobre tamanho real
e proporcional, espaço geográfico da cidade de Belém, pertencimento e entendimentos sobre preser-
vação de prédios históricos e do bem público, memória, desenvolvimento de atividades em grupo e
conhecimentos sobre o bairro onde a escola está inserida.

Solicitamos junto a Equipe Diretiva e professores que participaram das atividades nas escolas que
continuassem desenvolvendo com os alunos estudos e pesquisas referentes à cidade de Belém com
objetivo de melhorar sua capacidade crítica e de preservação do patrimônio histórico, artístico e cul-
tural da cidade como bem público que contém memória e pertence aos seus moradores e visitantes,
levando-os a perceber que eles têm obrigação para com o resguardo e divulgação da produção artísti-
ca, história e da memória dessa cidade que completou 400 anos. O projeto foi levado para 10 escolas
públicas da região metropolitana de Belém, onde atendemos aproximadamente 3.300 pessoas.

Muitos dos estudantes que participaram das atividades realizadas na escola ficaram entusiasmados
em conhecer os monumentos in lócus, pois não conheciam esses lugares da cidade e tampouco já
havia saído de seu bairro ou não tinha prestado atenção na cidade. O estudante Denilson Erik de

329
Souza, de 07 anos de idade e aluno do 3º ano do I Ciclo da Escola Liceu Mestre Raimundo Cardoso,
comentou que o monumento que mais gostou foi o relógio do Ver-o-Peso ficando encantado com
a bússola que ornamenta o topo da torre do relógio. “Eu nunca tinha visto antes, mas achei ele
bonito”108. Não somente esse aluno, mas outros alunos dessa escola ficaram curiosos com a expo-
sição indagando sempre mais sobre a história dos monumentos. Por outro lado, o silêncio tomava
conta quando montavam as maquetes do Mercado de Carne, do Galpão da CDP e da Estação Ga-
sômetro.

A Escola Liceu Mestre Raimundo Cardoso foi a primeira escola a receber o projeto, onde foram aten-
didos durante as ações educativas cerca de 300 alunos. O Liceu, que através de seu Projeto Pedagógi-
co, vem alguns anos desenvolvendo contínuas atividades de preservação da memória e resguardo da
identidade cultural da comunidade onde a escola está inserida através ações de educação patrimonial.
Segundo Janice Souza, diretora da escola, para essa comunidade, que na sua maioria é formada por
famílias que ainda trabalham artesanalmente com cerâmica, o recebimento do projeto se faz como
um contribuinte para que os alunos/filhos desses artesãos tenham mais conhecimento sobre o local,
sobre a cidade que moram e sua a construção de suas identidades.

[...] o projeto é importante para que os alunos sintam que pertencem a uma realidade maior. Os
alunos precisam conhecer esses prédios porque eles estão inseridos no nosso espaço urbano e aju-
dam a compreender nossa história. Isso é fundamental para que eles também se sintam motivados a
preservá-los 109.

Seguem abaixo imagens de alunos de algumas escolas atendidas.

Liceu Escola Municipal


Mestre Raimundo
Cardoso.
Figura 4. Alunos da
escola Liceu em oficina
de maquetes.

108. Em entrevista ao jornal Diário do Pará. Ver http://www.diarioonline.com.br/noticia-198405-a-era-do-ferro-e-sucesso-entre-estudan-


tes.html
109. Em entrevista ao jornal Diário do Pará. Ver http://www.diarioonline.com.br/noticia-198405-a-era-do-ferro-e-sucesso-entre-estudan-
tes.html

330
Escola Estadual Professor
Avertano Rocha
Figura 5. Alunos em
mediação educativa.

Escola Municipal Walter


Leite Caminha.
Figura 6. Alunos da Escola
Walter Leite.

Escola Municipal João


Carlos Batista
Figura 7. Alunos durante a
exposição de maquetes.

331
Figura 8. Alunos da
Escola João Carlos
Batista participando de
oficina de maquetes.

Escola Estadual
Paulino de Brito.
Figura 9. Alunos
da Escola Estadual
Paulino de Brito
realizando oficina de
maquetes.

Figura10. Alunos
da escola Paulino de
Brito em mediação
educativa.

332
Escola Municipal
Palmira Lins de
Carvalho.
Figura 11. Alunos da
Escola Palmira Lins de
Carvalho em oficina
de maquetes.

Escola Municipal Ma-


ria Stellina Walmont
Figura 12. Alunos e
professora em ativida-
des de montagem de
maquetes.

O pertencimento elimina a rejeição. Busca inibir o juízo crítico valorativo em função do que se es-
tabelece antes perante algo ou alguém, bem como perante a história social e política de uma cidade:
seu patrimônio arquitetônico, sua memória, educação, civilidade, sua construção, a arte e sua gente.
A educação patrimonial e estética, a preocupação com o resguardo e preservação de sua memória
individual e coletivizada se redimensiona quando é aceito aquilo que faz parte da sua cultura, da sua
cidade, do campo de relações sociais e culturais com a cidade, inserido com a mesma disposição inte-
lectual que se olha o outro, que se olha o cenário urbano, sua comunidade, sua escola, seu patrimônio
intelectual.

A preocupação para com e educação de crianças, jovens e adultos é o maior e mais importante pro-
duto da criatividade e das atividades humanas que busca produzir mundos. Uma escola que se pre-
ocupa com a educação de seus alunos, utilizando o patrimônio de sua cidade como mote para uma
educação libertária, produz um mundo que é cheio de informações sobre o mundo onde está inserida

333
construindo um mundo de realidades para com seus aprendizes. Nesse projeto, denominado a “Era
do Ferro”, a utilização e aproveitamento do patrimônio histórico e artístico/arquitetônico da cidade de
Belém buscou complementar a educação formal de seus alunos, como também despertar o interesse
pela preservação do patrimônio cultural de sua cidade. Nas escolas, mesmo percebendo de imediato
apenas um despertar pela beleza dessas edificações de um tempo outro, mostradas através da expo-
sição e da confecção de maquetes em papel, buscou-se primordialmente discutir a necessidade de
preservar e resguardo do bem comum público e sua contribuição para com a melhoria da educação
patrimonial, artística e estética de crianças, jovens e professores na cidade de Belém buscando levar
conhecimentos outros para a formação continuada de todos que participaram dessas ações.

Entende-se que todo processo formador é também uma autoformação, que ultrapassa limites e continua
se [re]formando num campo aberto e dinâmico, sem ser um procedimento abstrato, sem existência de
muro entre formação educacional e pessoal. É buscar encontros sem hierarquização com entradas em
seus múltiplos devires. A formação do educando consiste em afinidades dialéticas entre teoria e prática,
uma unidade entre sujeito e objeto do conhecimento, relação entre corpos e identidades praticada num
lugar de construção do saber, ou em seu cerne, e de experimentações e fazeres artísticos.

REFERÊNCIAS

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em: <http://www.diarioonline.com.br/noticia-198405-a-era-do-ferro-e-sucesso-entre-estudantes.html> Aces-
so em: 04 mai. 2016.
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BARBOSA, Ana Mae. Arte/Educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2010.
CAMPANANI, Adriana. Educação Patrimonial: uma experiência em busca de uma inovação no ensinar e no
aprender. Revista Brasileira de Estudo Pedagógico, Brasília, jan./dez 1997.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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SOBRAL, Armando. A Era do Ferro: Memória e Patrimônio. Belém, 2012. Mimeo.

334
Repertórios visuais entre
estudantes do ensino fundamental
da cidade de João Pessoa
Maria Emilia Sardelich/ Camylla Ranylly Marques Paiva

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta os repertórios visuais identificados entre estudantes do Ensino Fundamental, de
uma escola da rede pública estadual, da cidade de João Pessoa, Paraíba, no âmbito do componente curri-
cular Arte. Este trabalho de pesquisa faz parte de um projeto de ensino mais amplo, intitulado Educação
da Cultura Visual: propostas pedagógicas, desenvolvido no Programa de Licenciatura (PROLICEN) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no ano de 2015, com a finalidade de disseminar o conheci-
mento do emergente campo de estudo da Cultura Visual entre professores de Educação Básica da rede
pública de ensino do estado da Paraíba. O projeto teve por objetivo geral analisar propostas de interven-
ção pedagógica no emergente campo de estudo da Cultura Visual, publicadas na Coleção Educação da
Cultura Visual (MARTINS; TOURINHO 2014, 2013, 2012, 2011, 2010, 2009), entre os anos de 2009 a
2014, e disseminar esse conhecimento entre professores da rede pública de ensino do estado da Paraíba.

Uma das docentes de Arte participantes deste Projeto manifestou o desejo de conhecer mais sobre
as propostas da Cultura Visual para a Educação Básica, bem como sobre o Referencial Curricular do
Ensino Fundamental do estado da Paraíba para o componente curricular Arte, que se baseia na pro-
blemática da visualidade. Assim sendo, abriu um espaço em seu horário escolar semanal, destinado
ao componente curricular Arte, para que desenvolvêssemos um projeto de trabalho colaborativo com
os estudantes do sexto ano do Ensino Fundamental. O projeto de trabalho colaborativo se fundamen-
tou no campo da Cultura Visual e foi implementado em uma escola pública da rede estadual, situada
no bairro Castelo Branco, em João Pessoa.

A capital do estado da Paraíba guarda algumas características das cidades coloniais do Brasil, pois se
divide socialmente em dois grandes polos: leste, de baixa vulnerabilidade social, e sudeste de alta vulne-
rabilidade social. O bairro Castelo Branco, no qual se encontra a escola pública da rede estadual em que
se realizou o projeto de trabalho, localiza-se no polo sudeste. Apesar de esse bairro se localizar no polo
de alta vulnerabilidade social, pelo fato de se encontrar próximo ao Campus I da UFPB, caracteriza-se
como um bairro de estudantes, devido a tendência de construções e habitações para os universitários,
sendo considerado de média vulnerabilidade social, mesmo que o poder público ignore as necessidades
de Educação, Saúde e Habitação de grande parte da população do bairro (MAIO, CÂNDIDO, 2014).

335
Colaboraram com a realização deste projeto 24 estudantes do sexto ano do Ensino Fundamental, com
idades entre 11 e 16 anos, sendo 14 do gênero feminino e 10 do masculino. Compreendemos o conceito
gênero como as relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, que se constituem no
interior de relações de poder. O gênero, como uma construção social, normatiza, diferencia e subordina
mulheres e homens, produzindo formas assimétricas nas relações, estabelecendo o que pertence ao femi-
nino e masculino (SCOTT, 1990). O projeto de trabalho que apresentamos neste artigo teve como ponto
de partida conhecer os repertórios visuais dos estudantes, identificar as imagens presentes em seus coti-
dianos, observando como se relacionam com seus artefatos visuais preferidos e se estes podem favorecer
determinadas visões de mundo. Este diagnóstico teve a finalidade de abrir um espaço para discentes e do-
centes refletirmos sobre como “somos subjetivados por diferentes imagens e artefatos, assim como o que
produzimos durante esses processos” (OLIVEIRA; PAZ, 2014, p. 120). Utilizamos a expressão repertório
visual compreendendo como um conjunto, um acervo de artefatos visuais com os quais esses estudantes
se relacionam no cotidiano. A noção de repertório visual, a partir dos estudos da Cultura Visual, abrange
todo tipo de artefato que se coloca diante de nossos olhos, sejam as imagens das capas dos cadernos es-
colares, as estampas das camisetas, os grafites dos muros da cidade, as histórias em quadrinhos, vídeos,
filmes, bonecos, que, por sua vez, modificam nosso modo de ver o mundo e a nós mesmos.

Na linguagem comum do cotidiano utilizamos o vocábulo visual e visualidade como sendo aquilo
que vemos e tudo aquilo que é visível. No âmbito da optometria, a vista -o olho, o órgão da visão- é
a habilidade para ver algo e a visão a capacidade para compreender o que vemos. A visão implica
captar a informação visual, processá-la e dar um significado a essa informação. Por isso a visão é um
processo dinâmico, de organização, interpretação e compreensão do que vemos e que está em cons-
tante transformação (GIMÉNEZ, 2008). Isso quer dizer que nascemos com a vista, porém a visão é
aprendida. Nesse entendimento o significado não está no objeto que se vê, mas é na relação com o
que vemos que construímos o significado do que foi visto. É o conceito de visualidade, como modos
de ver, que vai articular a Cultura Visual como campo de estudo próprio.

Desse modo realizamos uma atividade de sondagem a fim de identificar os tipos de artefatos visuais com
os quais os estudantes se relacionam, quais seriam seus repertórios visuais e se esses repertórios podem
favorecer determinadas visões de mundo. Após um período de planejamento colaborativo com a docen-
te de Arte, assumimos a mediação pedagógica compartilhada com a mesma em sala de aula. O recorte
da experiência que relatamos neste artigo apresenta, a seguir, a caracterização do campo de estudo da
Cultura Visual e seus fundamentos; os repertórios visuais identificados entre os estudantes do sexto ano
do Ensino Fundamental e, por fim, as considerações transitórias alcançadas até o momento.

1. O CAMPO DA CULTURA VISUAL

A partir da década de 1990 começou a circular no âmbito da História da Arte, Comunicação e Edu-
cação a expressão Cultura Visual que ampliou a discussão sobre o papel da imagem nos processos de
simbolização e produção do conhecimento. Como campo de estudo emergente, em construção, há
muitas divergências entre os estudiosos da Cultura Visual, tanto na delimitação do mesmo quanto no
seu objeto de estudo. Apesar da tensão existente entre a recusa de se estabelecer fronteiras ao campo
e o interesse em diferenciá-lo, é possível delinear alguns marcos de referência.

O conceito de visualidade, entendido como modos de ver, articula a Cultura Visual como campo de
estudo próprio. Desse modo, a Cultura Visual se diferencia da História da Arte por compreender que
a visão não é um dado natural e, também, questionar a universalidade da experiência visual. Por isso,
a Cultura Visual admite a especificidade cultural dos modos de ver em tempos e espaços que devem

336
ser contextualizados. A tradição disciplinar da História da Arte Ocidental tem privilegiado o que se
vê, o objeto, e o produtor do objeto visto, por meio de uma visão disciplinadora. Hernández (2011)
destaca que a tradição ocidental sobre a Arte e as imagens privilegiou o objeto e o produtor do objeto
como um criador individual. Nesse entendimento a visão se dirige para o que é visto e tratado como
uma espécie de enigma a ser decifrado com o auxílio da disciplina História da Arte. Nessa tradição
tanto a escola como o museu são lugares que disciplinam a visão para ver o que deve ser visto. Essa
visão disciplinada e disciplinadora não se pergunta sobre o efeito que aquilo que é visto tem em quem
vê. Em relação ao efeito, Hernandez (2011) afirma que, para além do efeito emocional ou evocativo,
podemos indagar sobre o efeito posicional e subjetivador.

Em nosso entendimento, alcançado ao longo do estudo bibliográfico desenvolvido nesta investiga-


ção, a Cultura Visual se diferencia de outras abordagens com as imagens, sejam da Arte ou não, por
enfatizar a interpretação daquele que vê e não o objeto que é visto, nem o produtor desse artefato. A
Cultura Visual privilegia a interpretação daquele que vê, os significados que aquele que vê constrói na
medida em que se relaciona com os artefatos visuais, fala e é escutado, sobre a relação que estabelece
entre aquilo que vê e seu próprio contexto. Nessa perspectiva, mais do que pensar em representações
e artefatos, a Cultura Visual explora os discursos sobre os quais as representações constroem relatos
do mundo que habitamos e favorecem determinadas visões sobre o mundo e nós mesmos. Por essa
razão, questiona a tentativa de fixar significados nas representações e como isso pode afetar nossas
vidas. Também discute as relações de poder que se produzem e se articulam por meio das representa-
ções e que podem ser reforçadas pelos modos de ver e produzir essas representações.

A análise da bibliografia estudada nesta investigação (ARANTES, 2009; ALVES; ANDRADE, 2013;
CUNHA, 2010; NASCIMENTO, 2009; NUNES, 2010; PLA, 2013; TAVIN, 2009; UCKER, 2009) reve-
lou alguns pontos em comum nas diversas atividades realizadas em escolas de Educação Básica. Essas
atividades não propõem aprender um meio, uma técnica, mesmo que isso possa acontecer em algumas
delas. Todos os autores estudados trabalham com problemas, questões, que surgem a partir das imagens,
sejam imagens da arte ou não. Discutem estereótipos, não só de classe social ou gênero, mas, sobretudo
noções estereotipadas sobre o próprio processo pedagógico. O ponto em comum dessas atividades é a
característica da reflexibilidade, tanto de discentes como de docentes, voltando-se para si mesmos na
tentativa de compreenderem seus contextos, como também seus posicionamentos nesses contextos.

2. OS REPERTÓRIOS VISUAIS DOS ESTUDANTES

Entre os meses de agosto e novembro de 2015 interagimos com a docente de Arte e os estudantes do
sexto ano do Ensino Fundamental da rede pública estadual. De acordo com os fundamentos do cam-
po de estudo da Cultura Visual, partimos da compreensão dos discentes como produtores culturais
e não somente consumidores de imagens. Assumimos uma mediação baseada na “conversa cultural”,
na possibilidade de conhecer o outro e construir o “nós da relação pedagógica em que caibam as múl-
tiplas subjetividades que ocupam tanto dentro como fora da escola” (PLA, 2013, p. 154). Propusemos
a organização da turma por duplas de trabalho. Na conversa cultural que foi se estabelecendo nos
contatos semanais com a docente e os discentes, que ocorreram sempre às sextas-feiras no segundo
horário do componente curricular Arte, que correspondia ao último horário da turma da manhã,
notamos uma grande variação no número de estudantes presentes nas aulas. Consideramos que essa
variação se deveu ao fato de que o docente responsável pelo componente curricular que ocupava os

337
dois primeiros horários do turno matutino se ausentava com certa frequência, o que levava os estu-
dantes a retornarem a casa e não esperarem pela aula de Arte.

Para conhecer, respeitar e saber questionar as produções de visualidades dos discentes e, ao mesmo tempo,
realizar um trabalho que os orientasse a compreenderem seus contextos, a descobrirem a si e aos outros,
que explorasse seus potenciais de problematização, propusemos uma produção de imagens e textos a par-
tir do que os discentes veem no cotidiano. Na conversa cultural que foi se estabelecendo nos contatos se-
manais com os estudantes identificamos a familiaridade dos estudantes com os seguintes artefatos visuais:

Tabela 1. Artefatos Visuais Preferidos pelos Estudantes do Ensino Fundamental


NÚMERO VEZES MENCIONADO
NÚMERO VEZES POR GÊNERO
ARTEFATOVISUAL
MENCIONADO
F M
Televisão 24 14 10
Desenho Animado 12 9 3
citados como Desenho Animado:
Barbie 3 3 -
Bob Esponja 3 3 -
O menino maluquinho 1 1 -
Pica pau 1 - 1
Pink e o cérebro 1 1 -
Animes (sem especificar qual) 3 1 2
Filme 11 7 4
Filme de Terror (sem especificar qual) 6 4 2
citados como Filmes de Terror:
Annabelle 2 2 -
Motoqueiro fantasma 2 - 2
Novela 8 8 -
citados como Novela:
Caminho das Índias 2 2 -
Chuiquititas 2 2 -
Malhação 1 1 -
Programas de Cozinha/ Comida 2 2 -
Ultimate Fighting Championship (UFC) 2 2 -
Séries (sem especificar qual) 1 - 1
Videojogo 4 - 4
citados como Videojogo:
Pro Evolution Soccer (PES) 3 - 3
Kid Games 1 - 1
Lucky block (Minecraft) 1 - 1
Vídeo do Youtube 1 1 -
citado como vídeo do Youtube
Jout Jout (youtuber) 1 1 -

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A partir da tabela apresentada podemos constatar que os estudantes constroem seus modos de ver o
mundo, e ser nesse mundo com os outros, predominantemente por meio da televisão. Fischer (2002)
discute o modo como a mídia em geral, e especificamente a televisão, opera na constituição de su-
jeitos e subjetividades na sociedade contemporânea, pois a televisão produz imagens, significações,
saberes que se dirigem às pessoas. A autora desenvolve o conceito de “dispositivo pedagógico da
mídia”, pois esta não é, apenas, uma das básicas fontes de informação e lazer, mas sim um lugar que
produz e faz circular valores, concepções, representações, relacionadas à aprendizagem cotidiana so-
bre quem somos, o que fazer com nossos corpos. Fundamentada nos estudos de Michel Foucault, Fis-
cher (2002) compreende que a televisão – como meio de comunicação, linguagem visual ou simples
eletrodoméstico – tem participação decisiva na formação das subjetividades, nas experiências que o
sujeito faz de si mesmo enquanto está submetido tanto a relações de controle e dependência quanto
chamado a olhar para si mesmo, construir verdades para si e sobre si mesmo, o que abre brechas para
se posicionar contra possíveis formas de sujeição, contra a submissão da subjetividade. As brechas são
possíveis porque os processos de subjetivação são históricos. Os modos de existir, que são aprendidos
nas mais variadas dinâmicas de poder e saber, não são compactos e definitivos, pois sempre há neles
interstícios, possibilidades não pensadas pelos saberes e poderes em jogo.

Fischer (2002) considera que um trabalho pedagógico coerente olha para a mídia, para a televisão,
como um lugar em que a sociedade produz sentidos para “desmanchar” esses modos de subjetivação,
esses modos de ensino e aprendizagem de formas de agir, sentir, atribuir valores, por meio de uma cri-
teriosa leitura. Propõe um exercício cotidiano de leitura sobre a enorme quantidade de informações
que circulam nos produtos televisivos além das emoções e sentimentos que cada narrativa audiovi-
sual suscita no espectador. Esse exercício expõe os discursos que circulam nesses produtos, pois há
uma expectativa por parte dos produtores, criadores, emissores, do potencial de significação, porém
há uma operação dos interpretes desses produtos. Olhar criteriosamente a televisão e seus produtos
requer ultrapassar as evidências e ir além do que nos é dado a ver como, também, assumir que se olha
a partir de um determinado lugar, de um ponto de vista.

O ponto de vista a partir do qual nos posicionamos para olhar a televisão e os artefatos visuais com os
quais os estudantes se relacionam é o que entende que estes artefatos conformam as identidades so-
ciais, produzem, organizam e fazem circular modos de existir para a infância, adolescência e juventu-
de, que se constituem em meio a práticas culturais no cruzamento de questões de raça, classe, gênero
e diferenças sexuais (GIROUX, 1995). Constatamos que as preferências dos estudantes incluem desde
os desenhos animados de Barbie, Bob Esponja, Pink e o cérebro, a filmes de terror como Annabelle,
Motoqueiro Fantasma (Ghost Rider).

Figura 1. Desenhos dos Artefatos Visuais Preferidos pelos Estudantes


Fonte: Acervo autoras do projeto

339
Essas preferências apresentam diferenças em relação ao gênero, pois o feminino consome produtos
como Telenovela, Programas de Culinária, citados pelas meninas/jovens como Programas de Cozi-
nha e Comida, e também Ultimate Fighting Championship (UFC), os torneios de Artes Marciais Mis-
tas, conhecidas como MMA. Por outro lado, meninas/jovens não citam entre seus artefatos visuais
preferidos os videojogos, indicados por meninos e jovens, que citaram o Pro Evolution Soccer (PES)
3 vezes, Kid Games, um website genérico que oferece diversos videojogos, 1 vez, e Lucky Block, 1 vez.
Este último é uma modificação, ou MOD, introduzida no videojogo Minecraft, um jogo de jogabili-
dade não linear, com desafios que podem ser completados sem uma sequência fixa de fases e permite
a construção de mundos por meio de blocos. O Lucky Block é um cubo amarelo com interrogações
introduzido no jogo Minecraft que rompe com a estética medieval do mesmo e gera surpresas, pois
oferece itens aleatórios para a construção de mundos, como uma picareta de diamantes, uma arma-
dura ou invocar o poder de um zumbi ou dragões.

Na conversa cultural que foi se estabelecendo nos contatos semanais e nas quais fomos aprendendo
com os estudantes sobre seus repertórios visuais, consideramos a possibilidade de produzir uma situ-
ação real que permitisse divulgar as imagens e textos produzidos pelos discentes sobre as visualidades
cotidianas. A cada encontro/conversa/aula foi ganhando forma a proposta da produção de uma Revis-
ta para veicular seus trabalhos. Diagnosticamos o contato e a familiaridade da turma com esse artefa-
to cultural e identificamos que 10 estudantes revelaram intimidade com esse artefato cultural, sendo
citado por 8 estudantes do gênero feminino e 2 do gênero masculino. As revistas citadas pelo gênero
feminino foram: Revista da Avon, 3 vezes; Revista Atrevida, 2 vezes; Revista de Moda, sem especificar
qual, 2 vezes e Revista em Quadrinho, sem especificar qual, 1 vez. A Revista em Quadrinho, também
citada sem especificação, foi citada por estudantes do gênero masculino 2 vezes.

Desse modo, os discentes colaboraram para produzir a Revista de acordo com o conhecimento prévio que
possuíam sobre esse artefato cultural e os recursos que dispúnhamos na escola naquele momento. Sempre
por meio da conversa respeitosa, cada discente pode propor e argumentar em favor da sua proposta de
nome e formato da Revista. Em votação os discentes escolheram o título Revista Criação na Escola. Defi-
nido o nome, os discentes passaram para a etapa de criação do layout da capa e diagramação dos artigos.

Figura 2. Capa Revista Criação na Escola


Ano 1, n. 0, setembro de 2015
Fonte: Acervo autoras do projeto

340
O número 0 (zero) da Revista Criação na Escola, de caráter experimental, está dedicado às imagens e
textos produzidos pelos discentes relacionados com os artefatos visuais de suas preferências.

3. CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS

O recorte apresentado sobre o repertório visual dos estudantes do sexto ano do Ensino Fundamental
indica que estes constroem seus modos de ver o mundo, a si mesmos e ser nesse mundo com os outros,
predominantemente por meio da televisão. As práticas culturais com esses artefatos visuais regulam as
percepções, sentimentos, pensamentos, gestos dos estudantes, indicando como meninas/jovens e meni-
nos/jovens devem ser. Os artefatos visuais indicados por esses estudantes revelam seus gostos, desejos,
comportamentos aceitos para cada gênero, como também algumas transgressões, aquelas possíveis bre-
chas para um confronto contra possíveis formas de sujeição, contra a submissão da subjetividade.

Chamou nossa atenção que meninas/jovens indicassem preferência por filmes de terror e torneios de
MMA. Essas pequenas brechas são possíveis, pois os processos de subjetivação são históricos e, ape-
sar de as meninas/jovens ainda serem fortemente subjetivadas por artefatos visuais tradicionalmente
indicados para fabricar o gênero feminino, como Barbie, os Programas Culinários, as Revistas de
Cosméticos e Moda, elas também revelam preferência por outros modos de existir. Compreendemos
que em meio aos desafios que se apresentam a cada dia, tanto na Educação Básica como no Ensino
Superior, também contamos com oportunidades.

Como educadoras, continuamos a considerar onde queremos chegar, o que pretendemos realizar, com
quem nos comunicamos, como desenvolvemos essa comunicação e, em que medida, o uso que fazemos
das visualidades que temos a nossa disposição para realizar o trabalho docente está sintonizado com o
processo de inclusão escolar. Consideramos que o recorte do projeto apresentado contribui para ampliar
as possibilidades de uma formação, tanto de discentes quanto de docentes, que possibilite a consciência
de nossas representações, por meio de uma relação que ressalte as visualidades em contexto, mas, sobre-
tudo valorize as formas de interpretação daqueles que veem e pensam com as imagens.

REFERÊNCIAS

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NHO, Irene. (Orgs.). Educação na cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa. Santa Maria/RS: Ed. da UFSM,
2009, p. 79-100.

342
Fantasmas imaginários
do corpo casa: mediação
entre antigos e novos significados
afetivos através da vídeoperformance
Anna Carolina Coelho Cosentino

A intenção desse artigo é compartilhar um projeto de pesquisa que está em processo: o estudo
acerca de meu percurso de criação em artes visuais. Trata-se de uma reflexão sobre meu trabalho
enquanto performer e vídeo artista, cuja narrativa é expressa no trajeto que parte de escritos, poesias,
cadernos de sonhos com respectivas ilustrações, diálogo com objetos herdados, até a realização de
videoperformances.

A pesquisa prevê a execução de performances registradas em vídeo, com sua correspondente análise,
sobre o ponto de vista do corpo na vivência da sexualidade feminina e suas consequências. Nessa
perspectiva, uma investigação conduzida por métodos artísticos foi iniciada nos videoarte/perfor-
mance: Espaços do silêncio (2008), Agora eu também quero sair (2014), Origem (2014), Tecelagem
Lenta (2015) e Corpo Explícito (2015), produzidos e realizados por mim.

Mais do que arte, as performances acima citadas foram a transgressão necessária, a possibilidade de
libertação de muitos fantasmas internos que haviam em mim. Dou significado aos fantasmas, consi-
derando aquelas vivências infantis e pré-natais que repercutem na vida como compulsões inconscien-
tes, muito tempo depois do momento em que se originaram. Assim como certas experiências vividas
por antepassados, que afetam gerações, numa espécie de herança emocional sentida e experimentada,
porém não reconhecida, nem compreendida.

Se esta memória permanece inscrita no corpo, é possível reordenar as marcas que ficaram do pas-
sado? Realizar uma digestão emocional dos acontecimentos que as provocaram? O título da investi-
gação “Fantasmas imaginários do corpo-casa” apresenta a inquietude: o que aconteceu com minhas
antepassadas, com relação a investidas em criatividade? Percorrer minha árvore genealógica materna,
relacionando esta indagação com as experiências ocorridas nos corpos dessas mulheres, assim com a
repercussão disso em minha trajetória, foi a vertente escolhida.

O tema se refere ao infortúnio de que, entre elas, desde 1850, pelo menos, até a presente data, mulhe-
res e crianças morrem no período final de gestação. Através da videoperformance, pretendo compa-

343
rar estas observações com as marcas em meu próprio corpo, visto que os afetos herdados na memória
física, corpórea, constituem o principal elemento ativador de minha prática artística.

Sendo o corpo a casa mais íntima, onde se experimentam toda sorte de vivências, elegi a performance
aliada ao vídeo como recurso de abordagem a tais indagações. Por meio deles, cogito compor uma
espécie de novo continente, para os referidos conteúdos afetivos que, através dos atos performáticos
filmados, meu corpo natural possa ser ao mesmo tempo, um corpo que cria, que registra e arquiva,
nessa herança materna, imagens inéditas. A arte permite ressignificações para a vida.

A intenção de realizar um certo número de performances é também a tentativa de propiciar gestos


inversos. Que existam não apenas silêncio e eco, mas ações de geração e criatividade autorizadas, pa-
ridas para viver. Em Origem (2014), utilizo meu próprio sangue menstrual para escrever na parede,
durante uma residência artística, uma espécie de manifesto poético para que as referidas mortes pre-
maturas não precisem mais se repetir. E ainda na ação Agora eu também quero sair (2014), desvisto
camisolas de minha avó, mãe, e minhas próprias; camisolas de noites de núpcias.

Em seguida estes vestidos são entregues ao mar, em oração, numa tentativa de desidentificação de
parte desse conteúdo. É relevante notar que ao mesmo tempo em que busco este descolamento das
experiências repetidas, uma nova identificação acontece. Ao mesmo tempo em que entrego ao mar as
referidas vestimentas, dou passos no sentido de descobrir o significado de toda essa epopeia.

A presente pesquisa traz, também, uma pulsante intenção de alargamento da visão de mundo e das
relações com o mesmo, através do aprofundamento no estudo da arte. Pretendo construir de uma
análise inspiradora para indivíduos que talvez se encontrem em situação semelhante, em estágios mais
preliminares e que se interessem por também se debruçar sobre sua história pessoal. A transmissão e
o compartilhamento dos conhecimentos adquiridos serão de relevante importância.

“A arte na contemporaneidade, muitas vezes pressupõe que os artistas sejam, também, teóricos de
sua produção poética” (FREDDI, 2011, p. 01). Nessa tarefa, a investigação vai permear a análise dos
processos de criação artística de vídeoperformances que têm seu foco em experiências ocorridas nos
corpos de mulheres da família Plessman Cruz Coelho (minha ascendência materna), observando
como isso reverbera em mim.

Segundo Paulo Freire (1997), ao realizar autorreflexões o homem percebe-se inacabado, por isso está
em constante busca, sendo este o fundamento essencial da educação. Para o autor, a aprendizagem
seria um processo de ver a si mesmo e ao mundo (FREIRE apud BARBOSA, 2010); um constante des-
velar daquilo que é próprio de cada um, através do diálogo com a cultura. Elliot Eisner (2008), outro
grande filósofo da Educação, corrobora com Freire no entendimento de que as artes são uma forma
especial de conhecimento. Nesse sentido, a performance e o vídeo podem ser inseridas nas discussões
sobre conhecimento. Ambas se articulam a conceitos, estabelecem elos entre as manifestações da cul-
tura e facilitam reflexões para experiências futuras, individuais ou coletivas.

De acordo com Eisner (2008), as modalidades artísticas oferecem um “sentido de vitalidade” e uma
“mobilização de afetos”, fundamentais à experiência de aprendizagem. O referido autor afirma que estes

344
são, talvez, os únicos aspectos que asseguram a manutenção do conteúdo aprendido, ao longo da jorna-
da de formação intelectual de um indivíduo. Por isso interessa ser proporcionada pela Metodologia da
Educação, a possibilidade de interlocução entre o sujeito, suas experiências e as disciplinas estudadas.

Ademais, Eisner (2008) ressalta que a vida prática não se subjuga a respostas únicas corretas. Por isso
as formas de pensar que as artes instauram e desenvolvem são muito mais apropriadas para a realida-
de educativa. O método artístico é vantajoso: oferece meios para se lidar com mensagens ambíguas e
soluções criativas para os problemas, além de opções de avaliação alternativas, para casos de ausência
de regras (EISNER, 2008).

O autor critica a constante busca por uniformidade nos tradicionais modelos de ensino, sugerindo
que “há virtudes em ter objetivos e na capacidade de os concretizar. O que é problemático é o empur-
rão para a uniformidade” (EISNER, 2008, p. 08) nos objetivos, conteúdos, avaliações e expectativas.
Como lidar com tanta uniformidade quando o interesse educacional se constitui, também, em desen-
volvimento identitário daquilo que é mais particular de cada um?

No acompanhamento da formação ou do reconhecimento de identidades, é preciso ser capaz de atu-


ar, enquanto educador, a partir das diferenças, das necessidades especiais. Entre os múltiplos aspec-
tos da cultura, o ensino de artes perpassa enfaticamente tal processo. Portanto, os profissionais que
utilizam procedimentos artísticos na educação podem precisar se contrapor “às supostas verdades
educacionais e às mais suspeitas ainda certezas da escola” (BARBOSA, 2010, p. 12).

Além disso, a educação é transmitida pelo mundo em que se vive. Nisso estão de acordo o já men-
cionado Eisner, além de John Dewey e Paulo Freire. Para os autores, “a educação é mediatizada pelo
mundo em que se vive, formatada pela cultura, influenciada por linguagens, impactada por crenças,
clarificada pela necessidade, afetada por valores e moderada pela individualidade” (BARBOSA, 2010,
p. 12). A educação seria uma experiência geradora de significados a partir das trocas com o mundo
empírico, com a cultura e a sociedade.

É especialmente na valorização dessa experiência que os referidos filósofos e/ou epistemólogos con-
cordam. “Se, para Dewey, experiência é conhecimento, para Freire é a consciência da experiência que
podemos chamar conhecimento. Já Eisner destaca da experiência do mundo empírico sua dependên-
cia de nosso sistema sensorial biológico [...]” (BARBOSA, 2010, p. 12).

Como formas de experimentação do mundo empírico e mesmo como métodos de aprendizagem, tanto
a performance como a videoarte são possibilidades atuais, pertinentes ao debate. Ambas alcançam a con-
temporaneidade, desfrutando da prerrogativa de se inserirem numa imensa profusão de práticas, uma vez
que são elucidativas não apenas de temas subjetivos, mas também sobre questões sociais e culturais.

A performance realizada e compreendida como modalidade artística, tem início na década de 1960,
com o grupo Fluxus110. Um artista muito importante dessa organização foi o alemão Joseph Beuys.

110. O Grupo Fluxus foi um movimento que marcou as artes das décadas de 1960 e 1970, opondo-se aos valores burgueses, às galerias e ao
individualismo. Criado em 1961, em Wiesbaden, na Alemanha, durante o Festival Internacional de Música, recebeu a liderança de George
Maciunas. Foi integrado por artistas de várias partes do mundo, como Joseph Beuys, Nam June Paik e Yoko Ono.

345
Do latim, flux: modificação, escoamento, catarse. Beuys chega a declarar que somente a arte torna a
vida possível (ARCHER, 2008, p. 115). Sobre esta perspectiva, Archer afirma que a performance teria
despontado como uma forma de criação de uma espécie de “vida paralela” ou da própria vida “reves-
tida por uma representação intensiva de si mesma” (ARCHER, 2008, p. 110). Isso parece com o que
Eisner sugere, quando “conceitua educação como um processo de aprender a inventar a nós mesmos”
(BARBOSA, 2010, p. 12).

Esse ponto de vista evidencia que o sujeito performativo tanto pode construir novos sentidos, como
desconstruir outros previamente existentes. Goldberg (2006) reforça esta ideia, quando observa a per-
formance como sendo uma arte viva, que acontece em determinado espaço e que tem, no tempo real
do acontecimento, sua maior potência. Relata que a performance nasce como ruptura, como modo de
transgressão de formas estabelecidas no campo artístico, como meio para demolir categorias e apontar
novas direções. “Ao ser-obra pertence a instalação de um mundo” (HEIDEGGER, 2010, p 113).

Não há questionamento de que a vida mais potente da performance, onde se apresenta com mais
clareza o “novo mundo” a ser criado, situa-se no momento de sua execução. No entanto, Archer
levanta a possibilidade do uso de recursos audiovisuais para registro de tais eventos e posterior
transmissão. Elabora que, “mesmo quando acontece numa galeria, a performance só pode existir
para todos, com exceção dos poucos presentes como audiência, a partir desses registros” (AR-
CHER, 2008, p. 110).

Dentre as linguagens áudio visuais, e mais especificamente, sobre o uso do vídeo na contemporanei-
dade, nota-se que “passa a ser solicitado como um circuito, como processo, e não necessariamente
como produto ou obra acabada” (MELLO, 2008, p. 22). É abrangente o diálogo entre o mesmo e as
múltiplas formas de expressão artística, incluindo a performance.

Trata-se de um momento da arte que revela um alto grau de retroalimentação entre os mais variados
procedimentos e linguagens, e o vídeo, híbrido por natureza, passa a ter a habilidade de recodifi-
car experiências contemporâneas e transitar no âmbito das mais diversas expressões. Não por acaso
ouve-se muito dizer que “tudo é vídeo na contemporaneidade” (MELLO, 2008, p. 22).

Utilizando o vídeo como recurso, histórias podem ser contadas a partir da voz do sujeito criador, de
performances, a partir de distintas composições imagéticas, etc. Sob o prisma do ensino das artes
visuais, é considerável a importância de tais narrativas como complemento à narrativa escrita dos
trabalhos e investigações.

Outrossim, em atividades dessa natureza, tanto na performance como no vídeo, o corpo consiste em
mote privilegiado de pesquisa e criação estética. Em muitos trabalhos de artistas mulheres, as ima-
gens criadas oferecem, também, o potencial de romperem com estereótipos culturais sobre o gênero.
Luciana Loponte (2008) questiona de que forma o corpo feminino tem sido construído no imaginário
da arte ocidental, afirmando que, de fato, existe a atuação de uma espécie de “pedagogia visual do
feminino” (LOPONTE, 2002), naturalizando e legitimando este corpo como objeto de contemplação.
A autora refere-se ao corpo e à sexualidade feminina como postos em discurso, no campo das artes
visuais, a partir de um determinado modelo de olhar masculino.

346
Por outro lado, promovedora do debate, mais que desvelar subjetividades, a performance oferece o
potencial de pôr em pauta as relações entre o eu e o outro, através dos liames do corpo. Hernández
(2013) questiona quais são as possibilidades que os estudos sobre performatividade abrem para
repensar o espaço educativo, “como lugar de encontro de sujeitos biográficos e corporalizados”
(HERNÁNDEZ, 2013, p. 53).

Nas condutas educativas, a percepção dos indivíduos como seres corporais é levada em consideração?
“Nosso corpo traz marcas sociais e históricas, portanto questões culturais, questões de gênero, de
pertencimentos sociais podem ser lidas no corpo” (NÓBREGA, 2005, p. 610). No corpo se problema-
tizam afetos, temores, dores e medos, dentre tantos outros aspectos mantenedores de conhecimento
sobre os indivíduos e as diversas situações.

Segundo a autora, permanece o desafio de se pensar um currículo mais flexível, que contemple “novas
e insuspeitas direções, espaços e lugares que acolham a corporeidade, e com ela a intensa paixão de
conhecer” (NÓBREGA, 2005, p. 613). Que neste processo não se busque a uniformidade, sínteses
apaziguantes, fundamentos únicos. É preciso notar que ideologias, esperanças, expectativas, incerte-
zas e ambiguidades fazem parte da aventura de ser humano. Por isso, faz-se coerente, nos processos
educativos, a abertura para múltiplas conexões, assim como a busca por experiências significativas;
além da consideração da existência de novos territórios e potenciais a serem explorados.

Para este fim, nada melhor que a arte. Então, na presente pesquisa, busco analisar e refletir sobre os
processos de criação artística de vídeoperformances realizadas por mim. Isso num contexto em que
as funções de artista e de pesquisadora estão unidas no mesmo sujeito, possibilitando um arte/educar
pela performatividade.

Com intuito de alcançar os objetivos estabelecidos, estou desenvolvendo algumas etapas bem defini-
das. Dentre elas: investigação, coleta e organização das fontes de pesquisa, através de levantamento do
material existente no acervo familiar; análise e discussão dos conteúdos estudados; realização de ví-
deoperformances; escrita e documentação dos resultados. Estas etapas estão sendo distribuídas para
todo o tempo de execução da pesquisa, ocorrendo, por vezes, em simultaneidade.

Além do mais, compreendo como de fundamental importância, as considerações éticas que envol-
vem uma proposta desta natureza. FREDDI (2011, p. 02) observa que a pesquisa acadêmica em arte
e sobre a arte apresenta “o paradoxo da subjetividade como fio condutor do pensamento estrutura-
do pela objetividade”. Nestes casos, acentua a importância de uma preocupação com procedimentos
metodológicos que levem em consideraçăo tanto a subjetividade quanto a objetividade do artista
pesquisador (FREDDI, 2011).

Outro fator que merece destaque, referente à coleta de dados, é a implementação de um diário de
atelier para todo o decorrer da pesquisa, com o fim de documentação e correspondente acompanha-
mento dos desdobramentos do processo. Podendo ser sempre revisitado, este material tem servido
inclusive como facilitador para uma imersão reflexiva mais aprofundada. Também, nessa documen-
tação, as motivações e inquietações do ato de performar estão sendo elaboradas. Isto somado ao estu-
do bibliográfico e à comparação com trabalhos de outros artistas, constituem um material agregador

347
de conhecimento a respeito da vídeo performance, aliada à reflexão processual. “Eisner propõe, na
tradição de Dewey que o conhecimento pode também derivar da experiência. E uma forma genuína
de experiência é a artística” (HERNÁNDEZ, 2013, p. 43).

Serão realizadas, ainda, as novas videoperformances, com respectiva análise das ações, e de suas de-
correntes consequências. Feito isso, o objetivo seguinte será a articulação desta parte com o restante
do material disponível, a fim de alcançar um resultado em forma de dissertação. Desta feita, a in-
tenção é a de que as elaborações conclusivas da pesquisa sirvam de abertura para novas indagações,
dando seguimento ao processo de busca por ampliar o conhecimento sobre o assunto.

REFERÊNCIAS

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em: <https://pt.scribd.com/doc/255909115/Michael-Archer-Arte- Contemporanea-Uma-Historia-Concisa>.
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LOPONTE, Luciana Gruppelli. Sexualidade, Artes Visuais e Poder. Pedagogias visuais do feminino. Revista Estu-
dos Feministas, Rio de Janeiro (UFRJ), v. 10, n. 2, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
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MELLO, Christine. Extremidades do vídeo: o vídeo na cultura digital. 2008. Disponível em: <www.ucs.br/etc/
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NÓBREGA, Terezinha Petruciada. Qual o lugar do corpo na educação? Notas sobre conhecimento, processos
cognitivos e currículo. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 599-615, maio/ago. 2005. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/es/v26n91/a15v26 91.pdf>. Acesso em 10 set. 2015.

348
A recepção e interpretação
de um vídeo de arte-educação
sob o paradigma da teoria da atividade
Rosileide Guedes Sant’Ana de Farias

INTRODUÇÃO

Este ensaio propõe o relato e uma reflexão acerca da elaboração e aproveitamento de um estudo-piloto
que toma a Teoria da Atividade [TA], de Leontiev, e Constructo, de Engeström, como método investi-
gativo da relação de um grupo de alunos [sujeitos], em uma escola pública, e um vídeo [instrumento]
acerca da pichação e grafitagem, intitulado Grafitagem em Pernambuco, em um contexto de ensino-
-aprendizagem de uma aula de artes, isto é, em uma conjuntura de arte-educação111. O estudo-piloto
foi entendido, em linhas sintéticas, como um experimento preliminar, isto é, antecedeu ou poderá
subsidiar um ou mais experimentos propriamente ditos.

1. DESENVOLVIMENTO

1.1. Teoria da Atividade: alguns princípios norteadores

1.1.1. A atividade e a mediação

O paradigma de Leontiev é sustentado pela ideia de Vygotsky (1978), a qual, entre outras coisas,
considera que todas as conexões entre o homem e o seu ambiente não se realizam de maneira direta,
e sim mediadas por instrumentos e signos (modelo mediador das interações humanas com o ambien-
te – Vygotsky). Conforme Leontiev (1981), a atividade que aparenta não ser feita por intermédio de
um objeto (instrumento mediador) tem, na verdade, um objeto oculto a ser identificado e analisa-
do. Portanto, podemos dizer, a ação é mediada pelo uso de um instrumento, material ou simbólico
– concepção fundamental da denominada atividade mediada. O que, no senso comum, pôde ser
entendido como atividade, ou seja, alguma prática ou ação vinculada diretamente a uma ferramenta
estritamente material, converte-se, à luz do paradigma da atividade mediada, em sistema de ações
mistas capazes de abranger infinitas possibilidades interpretativas.

111. Consideramos a Arte-Educação ou ensino da arte como a educação que oportuniza ao sujeito o acesso à arte como linguagem
expressiva e forma de conhecimento.

349
Nesses termos, Leontiev colabora da seguinte maneira, com sua construção teórica (Quadro 1):

• A necessidade gera a atividade, assim como a atividade pretende compor uma delimitação de ne-
cessidade geral;
• A atividade executa por meio de ações;
• As ações têm objetivos particulares associados à necessidade geral;
• As ações têm a capacidade de serem realizadas de modo demarcado por meio de operações.

Relações da Situação Objetal

Quadro 1 - Diagrama das relações estabelecidas da situação objeta


Atividade Necessidades
Ações Objeto
Operações Condições

1.1.2. A configuração da Teoria da Atividade [TA]

A TA tem a sua gênese na definição de mediação por instrumentos de Vygotsky e da noção de ativi-
dade de Leontiev.

Vygotsky (1978) inicialmente introduziu a ideia de que as conexões entre o homem e o seu ambiente
não são realizadas de maneira direta e sim mediadas por meio de instrumentos e signos. Esta ideia é
caracterizada pelo modelo mediador das interações humanas com o ambiente.

Leontiev (1981) ampliou os conceitos de mediação social e cultural de Vygotsky, construindo o mo-
delo hierárquico da atividade humana. Engeström (1987), por conseguinte, iluminado por este pen-
samento, expôs uma versão expandida do modelo original de Vygotsky, introduzindo os aspectos
sociais e culturais da atividade humana, de Leontiev. Engeström apresentou o modelo triangular da
atividade para representar a natureza coletiva e colaborativa da atividade humana.

Figura 1. Diagrama amplia-


do proposto por Engström
(1987)

350
A Teoria da Atividade [TA] está baseada em um sistema de natureza interdisciplinar com o intuito
de verificar o modo diversificado como o homem lida e desenvolve suas tarefas.

Para Kuutti (1996), a atividade é tudo aquilo que resulta do ato de agir ou de uma ação e que está
sempre associada a um tema por meio de um objeto dentro de um contexto. Ela, por conseguinte,
não pode ser compreendida fora da TA. As conexões existentes entre os elementos que compõe uma
atividade são produzidas pela mediação de artefatos existentes ou ainda pela elicitação e procedi-
mentos de tarefas, que, segundo a perspectiva vygostskyana, podem ser instrumentos físicos [ex.:
DVD, livro] e/ou psicológicos [ex.: linguagens, atitudes].

Kuutti (1996) enfatiza sobre o que fomenta a existência de uma atividade. Conforme o autor, ela é mo-
tivada por meio do objeto para atingir o objetivo e o seu respectivo resultado. Esse objeto coopera
fomentando para que haja engajamento do sujeito [ex.: professor, aluno, gestor escolar], preparando-
-o, modificando-o e alargando suas experiências, servindo como mediador das informações. Sendo
estas produzidas em um contexto tecido durante a atividade, através de uma comunidade existente
[ex.: grupo de escolares, de trabalhadores], alinhado às regras sociais eleitas no referido meio [ex.:
determinação de horários, determinação sobre tipos e formas de uso dos artefatos], distribuídas pela
divisão de trabalho [ex.: professor elabora plano de aula – aluno realiza exercícios propostos pelo
professor].

1.2. Estudo-piloto

Definimos o estudo-piloto como um experimento preliminar.

O Estudo-piloto desenvolvido no presente ensaio foi caracterizado pela tomada da Teoria da Ativida-
de [TA] de Leontiev e Constructo de Engeström como método investigativo da relação de um grupo
de alunos [sujeitos], em uma escola pública, e um vídeo [instrumento] sobre pichação e grafitagem,
intitulado Grafitagem em Pernambuco, em um contexto de ensino e aprendizagem de uma aula de
artes.

A expectativa da análise é de possibilitar às atividades conduzidas por professores e que almejam con-
cretizar um objetivo [no sistema conceitual e estrutural da TA, chamado ‘objeto’ pedagógico, através
da introdução de ferramentas materiais específicas, com ênfase em vídeo sob o suporte de DVD, entre
outros. Cuja a indagação surge: Qual a distância entre o objetivo [objeto] do professor e a de grupo
de alunos em torno de sistema de ações realizado em sala de aula?

A escolha específica pelo instrumento vídeo se encontra respaldo em Duarte (2003), quando nos diz
que, ao verificarmos o processo de aprendizagem através da contextualização da arte fílmica, sendo
evidenciado então uma prática social.

Como uma das formas de levantamento de dados, decidimos pela aplicação de dois questionários e a
observação do comportamento dos alunos durante este experimento preliminar, cuja escolha temáti-
ca se baseou nas propostas dos vídeos da coleção DVDteca do Arte na Escola, que foi objeto e parte
da pesquisa do Mestrado em Design.

351
Figura 2. Aplicação do diagrama de Leontev e En- Figura 3. Síntese dos procedimentos
geström ao contexto do experimento. envolvidos no estudo-piloto. 112

Conforme Vigotsky (1991), não é qualquer ensino que promove o desenvolvimento psíquico. O mes-
mo defende a importância do ‘bom ensino’.

Na perspectiva desse pensamento, Leontiev (1978) se dedicou em pesquisar sob quais condições e
onde a aprendizagem dos conteúdos escolares se processa, sendo essa, de maneira consciente para as
crianças. Ele confirma que a efetiva aprendizagem acontece de dois pontos imprescindíveis: o que a
criança toma consciência daquilo que lhe é ensinado e como esse conteúdo se torna consciente
para a criança.

Engeström (1987) chama atenção para a relação entre sujeito e sujeito e ou sujeito e objeto.��������
�������
O rela-
cionamento entre indivíduos, no ambiente, localiza-se no campo da ação ou na liberdade de ação,
o que implica a negociação com o outro (engajamento), razão por que fizemos, no referido estudo,
observações acerca dos comportamentos alunos-professor e alunos-alunos. Logo, tanto o mediador/
instrumento/professor quanto o espectador/aluno e ou grupo social desempenham papel primordial
nas atividades educativas com vídeos. Portanto, as pesquisas no espaço educativo sobre o uso e a
efetividade do instrumento em questão em arte/educação (e na educação em geral) devem se apoiar
em estudos de compreensão desse tipo de material, ou seja, de leituras e conceitos produzidos por seus
mediadores e espectadores no momento da experiência de visualização da obra audiovisual.

No experimento 1: receptividade a vídeos em DVD e, especificamente, ao vídeo em DVD sobre pi-


chação e grafitagem. Em linhas gerais, o questionário aplicado anuncia, em destaque:

• Que todos os alunos consideraram, em algum grau, relevante o uso de vídeos no ensino de arte na
escola, como recurso que ajudaria na compreensão dos conteúdos discutidos na escola;
• Que parte predominante do grupo de alunos não lembrou ou não teve, na escola, nenhuma expe-
riência que envolvesse o uso do vídeo como ferramenta de ensino-aprendizagem de arte na escola.

112. O referido estudo teve a contribuição de William Guedes Lins Júnior, também, então, na condição de aluno especial da disciplina.

352
No experimento 2, aplicado de maneira oral e com a possibilidade de respostas livres, os alunos evi-
denciaram a compreensão sobre o vídeo apresentado.

Quadro 2 – Resultados do experimento 2.

60%: o artista, que antes era pichador, transformou-se em um artista famoso.


O que mais chamou sua atenção? 30%: as obras ficaram famosas.
10%: nada.

Existe diferença entre grafitagem e 60%: sim.


pichação? 40%: não.

1.3. Dados sobre a dinâmica comportamental dos alunos durante a aplicação do estudo-piloto.

Além da aplicação dos dois questionários, solicitamos dados acerca da dinâmica da aula, tais como
aspectos de participação, prática, engajamento, interesse, interferência perceptiva, experiência visual,
de forma a complementar a pesquisa com informações que pudessem ajudar a interpretar compo-
nentes sugeridos por Engeström (1987) ao paradigma da TA, de Leontiev, especialmente quanto às
relações sociais, fator a ser considerado como um dos determinantes da atividade. De maneira espe-
cífica, definimos uma pesquisa de campo com caráter exploratório, objetivando conhecer e procurar
compreender a prática educativa específica no contexto das dinâmicas desenvolvidas por seus sujeitos
sensibilizados por condições de regras sociais (comunidade e divisão do trabalho). Consideramos,
então, na relevância das interações estabelecidas entre as partes, o comprometimento dos alunos e as
oportunidades de aprendizagem criadas.

Figura 4. Participação dos sujeitos em relação ao pesquisador

353
Figura 5. Participação dos sujeitos em relação aos pares.

O eixo vertical dos gráficos (figuras 4 e 5) anuncia situações quantificadas em função do número de
sujeitos participantes visualizados no eixo horizontal graduado de zero a 10 (número de alunos par-
ticipantes – sujeitos).

2. Considerações do estudo preliminar

Nele, tivemos a intenção de simular uma situação real e de criar parâmetros por meio da TA relaciona-
da à receptividade do vídeo e à compreensão do seu conteúdo. Entendemos que não existem soluções
prontas, contudo, há procedimentos orientados que permitem encontrá-las de maneira eficiente e eficaz.

Os componentes da TA e os dados colhidos e significados com base no sistema paradigmático que ela
permitiu ao pesquisador estruturar, em especial ao estudo-piloto, ajudaram-nos a apontar:

• Todos os alunos consideraram, em algum grau, relevante o uso de vídeos no ensino de arte
na escola, como recurso que ajudaria na compreensão dos conteúdos discutidos na escola;
• Parte predominante do grupo de alunos não lembrou ou não teve, na escola, nenhuma
experiência que envolvesse o uso do vídeo como ferramenta de ensino-aprendizagem de
arte na escola;
• Os alunos evidenciaram a compreensão sobre o vídeo apresentado, de forma que a ativi-
dade proposta atendeu ao objetivo (objeto) almejado pelo professor.

Este estudo preliminar considerou que a formação de novos processos de aquisição do conhecimento
não acontece espontaneamente nem apenas resulta do mero amadurecimento biológico; ela depende

354
do processo de apropriação, pelos alunos, da atividade material e intelectual condensada, de modo
adequado, nos respaldos científicos, filosóficos e artísticos em suas formas mais desenvolvidas.

REFERÊNCIAS

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355
O cinema no ensino formal:
uma experiência possível
Diogo José de Moraes Lopes Barbosa

INTRODUÇÃO

Neste artigo, pretendemos relatar algumas experiências ligando o campo da educação e da arte/edu-
cação aos meios de criação audiovisual produzidos em ambiente escolar. Tais experiências foram vi-
venciadas em um colégio de educação formal com turmas de ensino médio e fundamental, dentro da
disciplina de educação artística, mas, especificamente, direcionada ao ensino do cinema e audiovisu-
ais, já que existem outras disciplinas no campo das artes no mesmo colégio. A escola em questão não
possui apenas uma disciplina da área de arte, mas outros componentes da mesma, ministrados em
aulas distintas, com professores específicos de cada linguagem artística. São elas: o teatro, a música, as
artes plásticas e a dança. Os professores de cada eixo de ensino possuem habilitações em suas devidas
áreas e, apesar de se tratarem de matérias diferentes, existe também um processo de interdiscipli-
naridade em determinados eventos e culminâncias. Como exemplo, o professor de teatro trabalha
em uma montagem pedagógica de um espetáculo juntamente com o professor de educação musical,
construindo com os alunos a parte cênica e musical, além da junção de coreografias coordenadas pelo
professor de dança e dos elementos visuais (maquiagem, cenários), pelo professor de artes plásticas. A
escola em questão é o Centro Educacional Universia (CEU), localizado no Município de Camaragibe,
em Pernambuco. O perfil de seu público é formado por alunos de classe média alta. Apesar de existir
esta vivência artístico/pedagógica por parte dos estudantes, o cinema ou abordagens que utilizassem
o audiovisual ainda não possuíam tanto espaço. Começamos, desta forma, um trabalho com os alunos
de iniciação à cultura digital em forma de oficinas curtas e esporádicas. Oferecemos experiências com
criação de pequenos filmes, com técnica de stopmotion e construção de bonecos a partir de material
descartável; experimentações em dublagens de filmes, envolvendo tradução de roteiro para outras
línguas e gravação da voz dos alunos; desenvolvimento de roteiros e filmagem de videoclipes; dentre
outras vivências envolvendo arte e tecnologia. A recepção dos alunos aconteceu de forma tão positiva
que a direção do colégio me convidou para ministrar uma disciplina continuada de cinema. Esta, foi
ofertada durante minha permanência na instituição (de 2012 a 2014), dentro de sua grade de disci-
plinas, tendo existido uma continuidade com outros professores após minha saída. Todo o desenvol-
vimento do trabalho foi cercado por experimentações, vezes positivas, vezes não; inseguranças, pois,
a literatura sobre o assunto ainda era e é escassa; buscas e reflexões sobre os benefícios pedagógicos
trazidos para as crianças e adolescentes diante de tais conteúdos; além de momentos extremamente

356
prazerosos vivenciados por mim e visivelmente, pelos alunos, talvez por se tratar de algo tão novo na
escola, mas já tão comum em nosso cotidiano: a tecnologia.

1. CINEMA PARA TODOS

Estas primeiras experimentações no universo do “fazer cinema” surgiram justamente com o pensa-
mento de que esta prática, desde sua invenção, esteve restrita aos grandes estúdios, às grandes produ-
toras e aos cineastas profissionais, nunca esteve acessível às massas em geral. A elas, restavam assistir
ao que era produzido. Algo que por si só, era bastante interessante, já que a sétima arte teve grande re-
levância na vida dos trabalhadores. Lembremos que o cinema, em seu início, divertia e tranquilizava
as classes operárias no fim de um dia exaustivo, isto em grandes espaços, ao preço de um único nickel:

Os niclelodeons surgem a partir de 1905, quando muito empresários de diversões começam a utilizar
espaços bem maiores que os vaudeviles para a exibição exclusiva de filmes. Ao contrário dos teatros,
cafés ou dos próprios vaudeviles frequentados por uma classe média de composição diversificada,
esses novos ambientes eram, em geral, grandes depósitos ou armazéns adaptados para exibir filmes
para o maior número possível de pessoas, em geral trabalhadores de poucos recursos. (MASCA-
RELLO, 2006, p. 27).

Desta forma, o ato de assistir filmes sempre esteve ligado à maior parte da população. Um outro salto
desta apropriação do cinema pela população poderia ter acontecido através dos filmes de Eisenstein,
pois, como conta Walter Benjamin (1994), [...] “Muitos dos atores que aparecem nos filmes russos
não são atores em nosso sentido, e sim pessoas que se auto-representam, principalmente no processo
do trabalho” (p. 184). Estes ainda não possuem o controle criativo da película, contudo, diferente de
antes, já são retratados nela. Outros momentos na história do audiovisual surgiram dando possibili-
dade de empoderamento do homem sobre os meios de produção audiovisual, a chegada do vídeo, a
película de super 8, o VHS e as primeiras filmadoras domésticas. Mas, sem dúvida, o grande avanço
neste sentido está acontecendo agora, através das tecnologias digitais.

Foi a popularização das novas tecnologias e da internet que fez com que as pessoas comuns (não
pequenos grupos) começassem a se aventurar na produção audiovisual informal. Os resultados es-
téticos destas produções nem sempre são positivos, sobretudo nos aspectos técnicos, de criação de
imagens interessantes, de temas e histórias relevantes a serem contadas; isto acontece talvez pela falta
de conhecimento sobre a linguagem cinematográfica em si. Apesar disto, muitos vídeos distribuídos
pela internet ficam famosos a cada dia pela sua criatividade ou pela sua autenticidade, mesmo que
caiam em esquecimento posteriormente. Este panorama, onde as pessoas se apropriam dos meios de
produção de conteúdo audiovisual, traz diversas implicações em vários ambientes da sociedade. Um
deles, que aos poucos abrem as portas para estas novas práticas, é a escola.

2. O CINEMA E A ESCOLA

As instituições educacionais de nível fundamental e médio já possuem um grande histórico no âm-


bito do ensino das artes: a dança, o teatro, a música, a pintura e a literatura já galgaram um espaço
nelas. Algo, inclusive, já conquistado juridicamente. Segundo as Leis e Diretrizes Básicas da Educação

357
Brasileira, o ensino de quatro eixos (teatro, dança, música e artes visuais) são obrigatórios em todos
os níveis da educação, e este ensino deve ser orientado por profissionais com formação e habilitação
específicas. Já o cinema enquanto linguagem, com muitas dificuldades, adquiriu há tempos o status
de arte. Lançamos, então, uma primeira pergunta: ele não deveria participar juntamente com estas
outras linguagens do ambiente educacional, já que, de certa forma, já vem sendo praticado por tantos
adolescentes e jovens de forma independente?

Na verdade, os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação sugerem que o cinema deve
ser visto, também, dentro do programa de arte, mais especificamente no programa de artes visuais:

As artes visuais, além das formas tradicionais (pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura, ar-
tefato, desenho industrial), incluem outras modalidades que resultam dos avanços tecnológicos e
transformações estéticas a partir da modernidade (fotografia, artes gráficas, cinema, televisão, vídeo,
computação, performance). (p. 45).

Desta maneira, sabemos que, em teoria, as artes audiovisuais devem ser contempladas pelos alunos e
que neste ambiente (a escola), o papel de ensinar tal conteúdo ficaria a cargo do professor da discipli-
na de arte. Resta-nos saber se, na prática, isto acontece. Será mesmo que as instituições educacionais
de ensino fundamental e médio realmente trabalham com algum programa de ensino do audiovisual
e será que este profissional possui algum conhecimento de como conduzir um processo de ensino/
aprendizagem desta linguagem?

Mas, antes disto, talvez tenhamos que nos questionar por que o aluno deve aprender cinema na escola?
Porque a LDB pede para que se ensine? A experiência artística, como sabemos, pode ser adquirida em
vários ambientes fora da escola e muitas vezes, de maneira mais eficaz. A arte pode, por vezes, ser apren-
dida de forma espontânea, sem imposições, sem avaliações. Será então que alguma obrigatoriedade de
aprendizado do audiovisual não viria apenas a atrapalhar esta prática? Mas caso se constate que a escola
poderia ser uma boa opção para tal proposta, quais seriam as melhores formas de ensinar/aprender isto?
A grande maioria destes questionamentos, obviamente, não serão sanados aqui neste momento, con-
tudo, são aspectos que devemos problematizar, pois, muitos já realizaram ou realizam trabalho com o
audiovisual na escola e em outros espaços educacionais, como ONGs e fundações, contudo, de maneira
ainda rasa, necessitando de mais embasamento em suas proposições e práticas. Esta última indagação,
por exemplo, é algo que deve ser avaliada com cautela e estudo. Como (que metodologia) ensinar cine-
ma? Uma suposta forma de como realizar um ensino do audiovisual na escola seria através da proposta
triangular, algo que tentamos em nossas práticas no Centro Educacional Universia.

3. O ENSINO DE CINEMA E O PENSAMENTO

Para fundamentar nosso trabalho em sala de aula, alguns teóricos e pesquisadores de diferentes áreas
do conhecimento foram essenciais para a realização de nossa prática. Isto, devido ao caráter híbrido
do cinema, pois não se trata de uma linguagem exclusivamente pertencente ao campo da arte/edu-
cação, tão pouco da comunicação. Desta forma, acreditamos que ao juntar pensamentos de áreas,
em princípio distintas, como a da educação, da arte e da comunicação, poderíamos chegar a opções
metodológicas mais eficazes.

358
Assim sendo, o primeiro dos nomes encontrados foi o do pensador francês, Alain Bergala, tendo
sido também cineasta e crítico de cinema. No ano 2000, foi convidado pelo então ministro da edu-
cação na França, Jack Lang, a desenvolver uma proposta onde professores ensinariam a linguagem
cinematográfica a alunos de escolas públicas no país. Bergala, então, trabalharia na implantação de
oficinas de cinema, de cinematecas, DVDtecas e práticas de cineclubismo. O teórico acredita que a
aproximação da criança com o universo do cinema poderia desenvolver a sensibilidade, a intuição, a
criticidade etc. Suas propostas já foram inseridas em nosso país através de alguns artigos escritos por
pesquisadores brasileiros, ainda assim, de forma muito tímida. O que pretendia nas aulas de cinema,
enquanto educador, era encontrar diálogos entre suas pesquisas e as nossas práticas, já que trabalhos
de apreciação e análise fílmica ou cineclubismo já faziam parte da realidade de muitas escolas, contu-
do, tais ações são muitas vezes desenvolvidas intuitivamente, sem referência ou embasamento teórico
e, consequentemente, sem acréscimo em termos educacionais para nossos alunos.

A segunda pesquisadora que fez parte desta busca foi uma brasileira já bastante conhecida e respeitada
no campo da arte/educação, Ana Mae Barbosa. Seus trabalhos já fazem parte do dia a dia de qualquer
estudante de arte, é distante imaginar uma pesquisa neste campo sem fazer uso de suas teorias, espe-
cialmente quando desejamos sanar questões no âmbito da metodologia do ensino das artes, já que toda
prática consistente em ensino de arte dialoga com a sua proposta triangular, mesmo que, por vezes, de
forma equivocada quanto à interpretação de seu uso. A abordagem triangular, apesar de muitos pen-
sarem que sua utilização é realizada apenas no campo das artes plásticas, é utilizada por professores de
teatro e dança, que também se apegam aos três vértices do triângulo. Na verdade, o ensino de qualquer
linguagem artística pode fruir facilmente através de tal abordagem, sejam artes plásticas, teatro, dança
ou música. É com esse pensamento que surge um de nossos questionamentos: e o ensino do cinema e
do audiovisual enquanto expressão artística, poderia também fazer uso da proposta triangular? Quanto
aos aspectos da leitura e contextualização da obra de arte, sim, mas e quanto ao fazer?

Outro nome levantado no decorrer das práticas diárias em sala de aula foi o do pensador alemão
Walter Benjamin, que acreditava no potencial libertador do cinema e na sua capacidade de emancipar
as massas. Para Benjamin, o cinema, juntamente com a fotografia, seria responsável pela quebra da
“aura” da obra de arte, causando, assim, um processo de dessacralização dela. Este fenômeno seria
fundamental para que, em um processo de reprodutibilidade, as massas tivessem acesso à imagem,
seja estática ou em movimento. O homem comum, a partir daí, poderia se ver representado nas telas
dos cinemas. O que Benjamin não teria previsto é que a arte digital, além de facilitar ainda mais o
acesso do homem à obra, ainda seria capaz de torná-lo agente criador dessa obra.

Com o pensamento dele em seu ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, junta-
mente com as teorias dos dois pensadores anteriores, julgamos que a utilização da proposta triangular
seria a mais apropriada no processo de ensino/aprendizagem em cinema. Estava clara que era essen-
cial que as crianças e adolescentes, além de aprenderem algo de teoria e história do cinema (no âmbito
da contextualização), assistirem a alguns clássicos do acervo do cinema mundial (no âmbito da leitura
da obra de arte), deveriam, também, produzir seus próprios filmes para que se pudesse consolidar um
ensino de cinema completo. E foi com este pensamento que muitas aulas foram reservadas à prática,
com equipamentos e materiais, mesmo que não profissionais, como filmadoras, tripés, claquetes, gra-
vadores de voz, microfones, refletores, rebatedores etc.

359
4. COMO ENSINAR CINEMA NA ESCOLA

A abordagem triangular é uma opção de ensino de artes que já vem sendo utilizada no Brasil há al-
gumas décadas. Sua teoria consiste no ensino/aprendizagem de arte a partir de três eixos: a leitura, a
contextualização e o fazer. Para que alguém tenha um aprendizado completo de alguma linguagem
artística, ele deve se apropriar destas três práticas, como explica a idealizadora de tal pensamento, a
professora Ana Mae Barbosa:

Um currículo que interligasse o fazer artístico, a análise da obra de arte e a contextualização estaria
se organizando de maneira que a criança, suas necessidades, seus interesses e seu desenvolvimento
estariam sendo respeitados e, ao mesmo tempo, estaria sendo respeitada a matéria a ser aprendida,
seus valores, sua estrutura e sua contribuição específica para a cultura. (BARBOSA, 2010, p. 36).

O cinema, até então, só poderia ser visto em sala de aula a partir de duas pontas do triângulo, a leitu-
ra e a contextualização, já que trabalhar com o fazer estaria além da realidade financeira da maioria
das escolas. Hoje, como já mencionamos, o aluno pode facilmente realizar o fazer artístico em um
aprendizado audiovisual. A abordagem triangular já faz parte da realidade no ensino de outras lin-
guagens artísticas, da mesma forma que sua eficácia já se mostra positiva. Contudo, será que para o
aprendizado de cinema, ela seria a melhor alternativa? Devemos então, deixar que o aluno se expresse
livremente com uma câmera na mão e nenhuma ideia na cabeça ou é possível existir uma metodolo-
gia coerente para aquisição deste conhecimento tão novo e, talvez, tão necessário?

Desta forma, a abordagem triangular viria para unir estas duas supostas práticas de ensino do cine-
ma na sala de aula: o fazer filmes e o assistir. A nós, parece que apenas ter acesso à obra na condição
de espectador (como já acontecia, mesmo em menor escala, desde a invenção do vídeo cassete e do
VHS), cujo intuito é analisar os filmes, não se mostra uma prática educacional completa em termos
de aprendizagem. Para que o aluno tenha o conhecimento desejado do cinema enquanto linguagem
artística é necessário que haja, também, a criação de filmes por eles próprios. É fundamental que
aconteça o ato de filmar e de criar, pois, como afirma Alain Bergala:

[...] a passagem ao ato é indispensável. Há algo de insubstituível nesta experiência, vivida tanto no
corpo como no cérebro, um saber de outra ordem, que não se pode adquirir apenas pela análise dos
filmes, por melhor que seja conduzida. Não se aprende a esquiar assistindo a competições pela tele-
visão, sem que se tenha sentido no corpo, nos músculos, as sensações do estado da neve, os relevos
da decida, a velocidade, o medo e a alegria. (BERGALA, 2008, p. 171).

Assim, as experiências vivenciadas no Centro Educacional Universia privilegiavam o ensino do cine-


ma através da análise fílmica e da prática de filmar. Na sala de aula, munido das teorias apresentadas,
optamos, nos primeiros encontros, em explicar e contextualizar para os alunos como o cinema fun-
ciona tecnicamente e como se deu seu surgimento. De que forma acontece a ilusão de movimento nas
linguagens audiovisuais, algo que sempre despertava bastante interesse neles, pois, poucos sabiam o
que era um “frame” ou conheciam conceitos como persistência retiniana. Quando tomavam conhe-
cimento de que eram necessários vinte e quatro frames (fotos) por segundo para existir o movimento
no filme, todos ficavam bastante espantados. Alguns filmes clássicos eram exibidos nestes primeiros
encontros, tais como “A chegada do trem à estação”, dos irmãos Lumière, ou “Viagem à lua”, de Geor-

360
ges Milès. A partir disso, começávamos a explicar quais elementos compunham uma película cinema-
tográfica, uma produção televisiva ou qualquer outra forma de audiovisual. Estes elementos eram os
planos, os enquadramentos, movimentos e angulações de câmera, a fotografia cinematográfica (ilu-
minação), a direção de arte (cenário, figurino e maquiagem), o roteiro, a montagem, dentre outros.
Cada tópico era explicado em uma ou duas aulas, havendo um momento teórico e outro mais prático,
experimentando os conceitos nos equipamentos levados para sala de aula. Se, em determinado dia,
falávamos sobre enquadramentos (planos gerais, planos médios, closes), cada estudante poderia ex-
perienciar isto na própria câmera, realizando algumas gravações curtas. Quando os conceitos sobre
linguagem cinematográfica estavam mais claros, trabalhávamos, então, para realizar a produção de
filmagens com melhor elaboração. Após as primeiras semanas explicando sobre os aspectos inerentes
à imagem audiovisual, os alunos, de forma coletiva, produziriam alguns roteiros. Para tal, aprendiam
como se encontrar uma boa história e dar forma a ela no papel (criando as divisões de atos, os diá-
logos, as indicações técnicas, como ambientes externos e internos, nome das cenas etc.). Depois de
alguns roteiros desenvolvidos, chegava a hora da escolha de planos e enquadramentos que seriam
aplicados nas cenas. Após isto, reservávamos momentos de ensaio de entonação e gestualidades para
os atores, de como o áudio seria capturado, como os cinegrafistas movimentariam as câmeras em
função das marcações de cena, simultaneamente, outros alunos planejavam a escolha de figurinos e
locações utilizados nas futuras filmagens.

Em todas as dinâmicas, os alunos pareciam sempre bastante interessados. Todos faziam tudo, reve-
zando funções: em um dia, um operava a câmera, enquanto, em outro, segurava a haste do micro-
fone. A maior dificuldade nesta dinâmica de revezamento era quando precisávamos de alguém para
desenvolver a função de ator na frente das câmeras; todos pareciam bastante tímidos para realizar tal
papel e, definitivamente, um assunto (ator) a ser filmado era fundamental. Nestes momentos, optáva-
mos por seguir uma linha menos ficcional e mais documental. Nesta segunda vertente, poderíamos
realizar entrevistas com alunos de outras turmas ou funcionários da escola, eram as soluções mais
recorrentes. Apesar da reclusa de estar diante das câmeras, com um pouco de insistência, os alunos
desempenhavam as funções de atores, repórteres ou apresentadores, mas não todos. Os mais tímidos,
realmente, nunca faziam estes papéis. A nós, enquanto educadores, pensávamos que não seria inte-
ressante partir de alguma obrigatoriedade, já que a exposição ao vídeo poderia se tornar algo mais
danoso que pedagógico.

De qualquer forma, no decorrer do ano letivo, eles aprendiam a fazer vídeos mais elaborados. No
início, quase não tinham consciência de iluminação, enquadramento e usavam o áudio da própria
câmera, porém, conforme os conteúdos sobre direção de fotografia, planificação, técnicas de uso do
microfone eram desenvolvidos, os vídeos produzidos por eles começavam a ficar mais elaborados.
Obviamente que a intenção das aulas de cinema nunca fora formar cineastas profissionais, mas sim,
criar uma consciência de como a sétima arte é produzida, pois, como afirma Bergala (2008), “(...) o
prazer de compreender é tão efetivo e gratificante quanto o prazer supostamente ‘inocente’ do puro
consumo” (p. 132).

Pensamos, também, em alguns momentos, em munir os alunos com um maior conhecimento crí-
tico em relação à linguagem em questão. Poderia ser interessante, do ponto de vista da formação
de cidadãos conscientes, como os audiovisuais nos influenciam em nosso cotidiano. Estimular este

361
pensamento poderia surtir efeitos na leitura de outras vertentes do audiovisual, como a televisão,
a internet e mesmo o cinema mainstream. Sabemos que as crianças e adolescentes são bombardea-
dos, diariamente, por conteúdos, muitas vezes, duvidosos, exibidos em canais TV aberta ou fecha-
da, em vídeos disseminados na internet, sem nenhuma preocupação ética ou mesmo estética e nos
blockbursters, cujo único empenho é atuar como entretenimento vazio sem nenhuma preocupação
de âmbito artístico. Contudo, não temos como comprovar se o estudo do cinema pode (e mesmo
se deve) funcionar como uma forma de vacina a estas questões da indústria cultural e da educação
para as mídias.

5. ENTRE DIFICULDADES E ACERTOS

Nossa primeira dificuldade apareceu no primeiro semestre de nossas práticas: a pouca carga-
-horária que nós tínhamos na disciplina de cinema. Contávamos apenas com uma hora e meia por
semana, durante seis meses, em cada turma, o que era excelente para os padrões do ensino de artes
em geral, mas que, mesmo assim, não era suficiente para que pudéssemos amarrar um conheci-
mento mais completo em cinema e audiovisual. Práticas como edição de vídeo, por exemplo, não
era possível de ser executada, já que, além da necessidade de um tempo hábil maior para aprender
a utilizar um software de edição, nos deparávamos com outros problemas, como licenciamento
destes softwares e até mesmo no uso de computadores com a capacidade necessária para suportá-
-los. Desta forma, o trabalho de edição dos vídeos produzidos pelos alunos tinha que ser realizado
pelo docente.

A questão dos recursos necessários para realização das aulas acabou se tornando outro problema,
pois, em uma aula de teatro ou dança, o professor precisa, ao menos, de um espaço apropriado e dos
alunos para realizar o processo de ensino/aprendizagem. Em uma aula de cinema se torna, talvez, im-
possível de se realizar quaisquer trabalhos sem, ao menos, um equipamento para capturar as imagens.
Mesmo que seja um celular, um tablet, este material tem que existir, pois, de outra forma, uma aula
de cinema com prática de filmagem não acontece. Em nosso caso, utilizávamos muitos equipamentos
e materiais (câmeras, microfones, tripés, cabos, rebatedores de luz, gravadores de voz, claquetes),
itens que, ao meu ver, traziam diferencial às aulas. Não eram equipamentos de uso profissional, mas
serviam perfeitamente ao que era pleiteado. Sabemos que não são todos os colégios que estariam dis-
postos a oferecer este acervo ao professor, especialmente na rede pública. Neste caso, penso que, para
acontecer a aprendizagem, alguém deverá arcar com isto, em geral, o professor. Desde a aquisição dos
materiais, como transporte dos mesmos, algo que pode se tornar bastante incômodo e cansativo para
o docente.

Acreditamos, contudo, que tais dificuldades não invalidam o trabalho que foi realizado, e que é algo
possível de ser realizado por vários professores interessados no uso do cinema, enquanto arte, na sala
de aula. Consideramos que, além de perfeitamente possível ensinar cinema em escolas para crianças
e adolescentes, é uma experiência bastante enriquecedora, que pode munir as crianças e adolescentes
de uma visão privilegiada do que é apreciar e produzir arte (cinema), além de fazer uso de forma pe-
dagógica de todo este universo tecnológico que. a cada dia, faz parte de nosso cotidiano. Para os que
estão dispostos, é uma experiência bastante recompensadora em termos de ensino/aprendizagem e
prazerosa para todos: alunos e professores.

362
REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. Anos oitenta e novos tempos. 8. ed. São Paulo: Perspectiva,
2010.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.
BERGALA, Alain. L’hipothèse cinéma. Petit traité de transmission du cinema à l’école et ailleurs. Paris: Petit
Bibliothèque des Cahiers du Cinéma, 2006.
______. A hipótese-cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Trad. Mônica
Costa Netto e Silvia Pimenta. Rio de Janeiro: Booklink - CINEADLISE-FE/UFRJ, 2008.
MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.
BRASIL. Ministério da Educação – Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
arte. Brasília: MEC/SEF, 1997.

363
Vozes no palco: dramaturgia com
histórias da comunidade de São Bento
Natalyne Pereira dos Santos

1. CONTADORES DE HISTÓRIAS OU GRIÔS

O documentário Sotigui Kouyaté113: um griô no Brasil, lançado em 06 de agosto de 2006, apresenta refle-
xões formidáveis, ricas e minuciosas a respeito do ser griô. Ele demonstra durante todo o documentário
uma relação de pertencimento: “Eu sou griô antes de qualquer outra coisa”, afirma o Sotigui Kouyaté em
uma de suas falas. O ser griô, na sua concepção, é o homem disponível, além de ser artista, um homem
social. Acredito que essa disponibilidade na África Ocidental é algo levado extremamente a sério. Na
África Ocidental, para ser griô, é preciso nascer griô. Segundo o pesquisador Toni Edson, o termo “griô”
não existe em nenhuma língua africana. Entre eles, os contadores dessas castas se chamam de djeli. Em
viagem de pesquisa na cidade de Bobo-Diulasso, Burkina Faso, na África, Toni Edson entrevistou Fran-
çois Moise Bamba, que trouxe informações que melhor conceituam o termo djeli:

F: Um djeli é verdadeiramente a memória viva, é um historiador por essência, um djeli é aquele que
tem a arte da palavra, que tem a cultura com ele para poder passar a mensagem que ele precisa passar,
é aquele que sabe fazer falar um instrumento, que sabe contar, que sabe contar uma história através
de uma música, através de uma música que vá acalentar o coração.

No Brasil, o termo griô pode ser usado como forma de transcriação. Segundo o Sotigui: “A palavra é
o trabalho do Griô”. Ele ainda afirma, “o griô é a pessoa em que todos podem contar sempre, sem he-
sitar, mas que pode e deve seguir adiante, sem que esqueça de sua raiz, o seu passado, podendo assim
buscar o seu sucesso, sem pisar em ninguém, respeitando ao seu semelhante”. Eu posso comparar o
ser griô, para o africano, aos nossos mestres de tradição, como o mestre de capoeira, mestre de samba
de roda, entre outros. As histórias de ambos são muito parecidas, ambos sofreram preconceitos em
relação à sua visão de mundo e à sua forma de atuação no mundo, assim como tem conseguido con-
quistar o seu espaço e podem cumprir o seu destino, mantendo vivas suas manifestações populares.

113. O documentário, dirigido por Alexandre Handfest, traz o ator, diretor e griô africano, que trabalhou com Peter Brook, falando da
missão de passar adiante seus conhecimentos. Direção: Alexandre Handfest. Produção: Sesc SP. Classificação: Livre. Música: “Chakwi”,
por Stella Chiweshe (Google Play / iTunes). Categoria: Entretenimenton. Licença padrão do YouTube. Memória do continente e da impor-
tância da escuta para arte, comunicação e vida.

364
A memória é o que guia o contador de histórias e a história oral surge enquanto elemento central
no processo de transmissão de saberes, que vai passando de geração em geração, alimentando o
universo da cultura popular, da tradição – que é o que objetiva este trabalho. Se o conhecimento
não é transmitido, a tradição é interrompida. Na contemporaneidade, essa interrupção se dá nor-
malmente por parte das últimas gerações, que estão imersas em uma gama de informações e de
estímulos. A moda, a tecnologia, as redes sociais, são fatores persuasórios que despertam o interes-
se dos jovens, impedindo-os de levar a diante a tradição, de saberem a sua história e terminando,
assim, por menosprezar o tradicional. Os jovens atuais terminam por viver a cultura do consumo
compulsivo, como comenta o Milton Santos (2006), ao dizer que “o mundo se torna menos unido.
Tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o
culto ao consumo é estimulado” (p. 9).

Esse consumo tem se tornado destrutivo para nós e para o ambiente. Em São Bento das Lages,
existem muitos bons contadores, que são invisibilizados pela modernidade. Na oficina, os alunos
entrevistaram essas pessoas e eu segui os passos deles.

2. SÃO BENTO, BURACO VELHO TEM COBRA DENTRO:


AS GERAÇÕES E A ARTE DO PERTENCIMENTO

Uma canção popular diz: Valei-me Deus/ Senhor São Bento/ buraco velho/ tem cobra dentro. Este
termo – “buraco velho tem cobra dentro” – traz consigo muitos significados a respeito do bairro,
como por exemplo a discriminação dos demais bairros da cidade para com São Bento, por dizerem
que só moravam no bairro quem era “cobra” (malandro, bandido). Na dramaturgia isso é representa-
do pela formação de um duelo entre bairros, em que trabalho coro cantado e falado.

A cena retrata a multiplicidade das manifestações culturais existentes em São Bento, onde parte do
duelo representa os demais bairros e a outra parte o bairro de São Bento, que defende, com muita
garra, os pontos positivos do bairro. Descrevo situações vividas na comunidade. Elas antes diziam
respeito somente a mim e compartilho impressões delas aqui nesse trabalho, que ganha força nas vo-
zes enunciadas pelos mais velhos. Ao mesmo tempo em que eu ensinava os mais novos, aprendia mais
sobre quem somos e isso é um processo educativo concreto. “Cada grande comunidade cria [...] suas
naturezas, seus homens, seus deuses, seus demônios, seus aliados e seus inimigos, os significados e os
significantes [...] relações, desejos, sonhos e mistérios que só a ela dizem respeito íntimo” (CALDAS,
1999, p. 62; 71).

Nosso primeiro encontro formal, com a proposta de estágio, foi no dia 20 de setembro de 2014.
Apresentei para as crianças a proposta do projeto de oficina, e oficializei os nossos encontros, que, até
então, eram esporádicos. Combinamos de nos encontrarmos aos finais de semana e feriados durante
três meses.

Após ler o projeto e tirar as dúvidas, entreguei a cada criança uma folha de papel ofício, contendo
apenas o título: “São Bento, buraco velho tem cobra dentro”. No momento seguinte, solicitei que
eles escrevessem nesses papéis as opiniões relacionadas ao tema proposto para as oficinas, a partir
do que eles entendiam sobre o assunto, qual o sentido, que relações se estabeleciam, etc. Nesse

365
momento, eles puderam expor essas questões da forma que melhor lhes cabia. As respostas foram
diversas: alguns colocaram palavras soltas, outros, frases inteiras, desenhos. Um dos alunos me
chamou atenção quando associou o tema ao ditado: “Panela velha é que faz comida boa”. E outro
ainda perguntou: “só tem cobra aqui no bairro, é?” A partir desse diálogo, surgiram vários ques-
tionamentos, fortalecendo, assim, a proposta do projeto. Ao final passei a seguinte orientação: que
eles entrevistassem as pessoas mais velhas da comunidade. Dessa forma, foram elaborados alguns
questionamentos que nortearam a entrevista. Ao mesmo tempo, eles estavam livres para elaborar
mais perguntas, se necessário.

Alguns fizeram as entrevistas, outros não. Fizemos, na aula seguinte, um aquecimento, alongamento
corporal-vocal e um jogo para canalizar a energia. Depois, em uma roda de conversa, cada um apre-
sentou sua entrevista e expôs a sua experiência. Alguns gravaram áudios e outros se limitaram ao
papel, e os que não haviam feito a entrevista, fizeram-se como ouvintes.

Houve, então, uma segunda chance para os que não haviam realizado a entrevista. O meu desejo era
o de que todos vivenciassem, desde o princípio, todos os momentos propostos, para tornar fluído o
processo, e futuramente orgânico o resultado. “[...] o essencial nas relações entre educador e educan-
do, entre autoridade e liberdade, entre pais, mães, filhos e filhas é a reinvenção do ser humano no
aprendizado de sua autonomia” (FREIRE, 1996, p. 36).

Eles me deram um norte, introduzindo no meu trabalho títulos de causos, fatos históricos e biografias
de pessoas da comunidade. A partir disto é que fui a campo. Começamos por seu Paulo, meu pai,
agente cultural da comunidade, de 55 anos. Este contou uma história por cima da outra, lançou uma
tempestade de acontecimentos sobre nós, de mitos a histórias reais. Em seguida, fomos em busca de
mais pessoas, e, nesse caminho, é que encontramos Dona Candinha, uma senhora de aproximada-
mente 85 anos, que eu não via há muito tempo, e que fez parte da minha infância. Esse momento foi
carregado de emoção, um reencontro entre o passado, o presente e o futuro.

A partir do momento em que entrevistei Dona Candinha, filmando e escutando-a falar, fui escreven-
do toda a dramaturgia em minha cabeça, e sendo tomada por um estado de ansiedade.

A próxima foi Dona Ozânia, uma senhora de aproximadamente 78 anos, com uma memória bem
defasada e que nos contava os causos e fatos bastante atuais, acontecimentos meses passados.
Ela ajudou bastante a contextualizar o bairro, comparando os dias atuais com o passado, porém,
diferente de Dona Candinha, que despertou em mim a vontade de sair correndo para escrever,
Dona Ozânia me trouxe um choque de realidade, trazendo-me a reflexões. Ela falava de um bair-
ro violento que tomou uma proporção muito vasta. Este bairro que ela me apresentava não era o
mesmo bairro no qual vivi toda a minha infância. Outra pessoa foi Dona Sinha, minha mãe, uma
senhora de 52 anos, merendeira do bairro há mais de 25 anos, que nos contou muitos causos e
indicou várias pessoas que julgava adequadas para serem entrevistadas. Sinha foi a nossa guia,
nossa “caça Griô”.

A partir do que já havíamos conseguido de informações, iniciamos as atividades com foco na identi-
dade, a fim de conhecer cada aluno de forma mais ampla.

366
Trabalhar com comunidade é estar sempre flexibilizando as ações. Diferente da escola, a comunidade
é quem coordena diretamente as nossas ações, os nossos métodos, as sequências didáticas. Ela deter-
mina a hora de parar. Paralelo a isso, quando a conquista acontece, a comunidade se entrega, veste a
camisa e fica eternamente grata.

Todas as pesquisas a respeito da contextualização do bairro, da cidade, assim como as entrevistas com
os moradores, geraram discussões e contribuíram para a oficina, em que trabalhamos a oratória, a
criticidade, a autoconfiança e a coragem. Partimos para um momento de imaginação, tendo como
passaporte as histórias contadas, pesquisadas e vivenciadas, até mesmo para fixação de conteúdo.
Logo, um exercício corpóreo-vocal utilizando a voz, o andar, os tiques, gestos marcantes, das pessoas
entrevistadas serviu como estímulo.

Foi necessário ensaiar em um espaço alternativo durante alguns dias. Nesse lugar, utilizamos um
projetor de luz alternativa, confeccionado por Lucas Ferreira – um dos alunos mais velhos da oficina
– que se interessou em confeccionar projetores desde quando lhe apresentei um projetor que havia
construído, em uma oficina de iluminação alternativa

Nesse espaço alternativo, aproveitamos o dia para conversar sobre tudo, inclusive sobre a vida deles na
família, na escola e na comunidade. Essa conversa foi necessária, pois alguns pais ameaçavam retirar
seus filhos do processo da oficina de teatro, pois temiam que isso ocasionasse um baixo rendimento
escolar, ou o descumprimento das tarefas em casa. Então, cabia a mim o papel de enfatizar a impor-
tância do processo e esclarecer a respeito do estímulo dessas atividades, com o teatro, como forma,
inclusive, de estimular as crianças a estudar mais. Os pais compreenderam bem, e depois dessa con-
versa, fiz visitas ocasionais, a fim de saber como as crianças estavam na escola.

Retornamos ao nosso espaço e o ensaio foi um sucesso. Fizemos uma preparação de corpo e voz, e
ao invés de começarmos o ensaio pelo início da peça, principiamos repassando as cenas que mais
precisavam ser ajustadas. Neste dia, dediquei-me em desenhar estas marcações. Assim, os alunos
puderam expor suas opiniões sobre a complexidade dessas movimentações e passamos a buscar a
nascente desses movimentos, para entendê-los e realizá-los com precisão. Após fazer esses ajustes,
partimos para ensaiar a peça completa, sem interrupções. Pude perceber a grande diferença: as
cenas estavam muito mais limpas, as músicas com uma sonoridade suave, melódica e afinada, o
tempo das saídas e entradas estavam bem equalizados, daí a importância de parar para fazer rea-
justes, avaliar detalhe por detalhe.

Algumas aulas depois, tivemos uma conversa sobre os materiais cênicos e a importância de zelar por
eles, pois eu havia comprado duas esteiras de palha, para serem usadas em algumas cenas e, após dois
ensaios, elas se encontravam destruídas. Eles ficaram sentidos, pediram desculpas e demonstraram
preocupação.

A minha relação com eles era pautada sempre na verdade e na autonomia. Dessa forma, deixava-os a
par de todas as dificuldades enfrentadas, para fazer com que a oficina acontecesse. Eu estava disposta
a enfrentar os obstáculos.

367
Ao final de uma aula, fizemos como todos os dias: limpamos a sala, organizamos as cadeiras e juntos
carregamos os instrumentos até a minha residência. O que diferenciou este dia foi que os alunos des-
ceram batucando e numa mesma sintonia. Sem combinar, começaram a performatizar, e, de repente,
alguém se aproximou e deu-lhes umas moedas. Logo se viram pedindo dinheiro na comunidade de
uma forma involuntária. Em torno de 2h, as crianças já haviam arrecadado 50,00 e entregaram em
minhas mãos com a seguinte frase: “aqui está o dinheiro para comprar as esteiras, professora!” “A
união faz a força” e eles descobriram rápido o sentido de ser artista. O meu deslumbramento só au-
mentava, vi o teatro renascer em meu bairro e estava muito feliz.

Num outro dia, no período da tarde, os alunos se reuniram mais uma vez por conta própria e organi-
zaram “um arrastão” para o arrecadamento de verbas. Pintaram os rostos, colocaram roupas coloridas,
pegaram instrumentos e conseguiram convencer o meu pai, Paulo Rasta, e Gliuson, outro agente cultu-
ral, a seguirem com eles pelas ruas da comunidade. Eu havia informado que eles só poderiam fazer isso
na presença de um adulto – nesse momento eu precisei ir a Salvador – eles se organizaram e me ligaram
depois felizes. Além de terem ganhado 10 m de tecido, arrecadaram R$ 100,00. Nesse mesmo dia, Dona
Marina, avó de uma das crianças, iniciou a confecção dos figurinos de nossa apresentação.

Além de Dona Marina, outros parentes se disponibilizaram a contribuir com o projeto, cada um
dentro de sua especialidade. A partir dessas intervenções, os alunos demonstraram muito mais inte-
resse pelo trabalho, inclusive fazendo ensaios abertos ao público. Ainda assim, enfrentamos alguns
problemas.

Na véspera da apresentação, a sensação era de que todo o trabalho estaria caindo por terra. Uma su-
cessão de acontecimentos negativos me fez pensar que todo o trabalho construído acabaria naquele
instante. O ônibus que havíamos solicitado à Prefeitura foi negado; mães que proibiram as crianças
de fazerem o espetáculo, pelo motivo de terem ido mal na escola; o figurino que não ficou pronto a
tempo; além de outros fatores que me preocupavam.

Trabalhar com comunidade é estar preparado para esses imprevistos, e este foi mais um aprendizado
consumado depois de lágrimas derramadas. Ver todos envolvidos e preocupados, foi satisfatório. Eles
choravam junto a mim, iam à busca de soluções, foi um verdadeiro trabalho de equipe.

3. DA PONTE PARA O PALCO

Enfim, o grande dia. As crianças estavam radiantes com tudo o que viram. O palco, as pessoas, o ca-
marim, e mesmo estando tão impressionadas, pareciam que já faziam teatro há muito tempo.

Cada um cuidou da sua produção, e, na hora de entrar, eles deram conta do recado, entraram do-
minando a cena. Pude experimentar intensamente ser diretora, e esta atua tanto quanto o ator. O
momento mais marcante da apresentação foi quando Mariana, uma aluna “hiperativa”, saiu de cena e
entrou na coxia onde eu estava e disse: “professora, me perdoe, eu esqueci o que senhora disse sobre
a coxia, que não é legal esteticamente entrar pelo mesmo lado da coxia em que saiu”. Emocionada, e
antes que ela se desconcentrasse disse-lhe: “Não tem problema, depois falamos sobre isso, você tem
que entrar agora”. E ela entrou.

368
Após a apresentação, era chegada a hora de arrumar as malas e voltar para casa com o dever cum-
prido. Enquanto nos arrumávamos, uma aluna, Saynara, em meio a toda a euforia, pediu silêncio a
todos. “Se antes eu já sabia que o que eu queria pra minha vida era fazer teatro, imagina agora? Agora
é que eu nunca mais me afasto do teatro!” E a euforia se instalou novamente.

4. A FONTE QUE NÃO PODE SECAR

A principal tentativa da globalização é padronizar o mundo. Essa busca veio fazer com que o universo
da cultura popular fosse invisibilizado para sobreviver. Mesmo que usufruindo da cultura globaliza-
da, a luta pela continuidade da tradição ainda é presente na comunidade de São Bento. No contexto
social em que estamos inseridos, a voz do povo é cruelmente submergida. O povo de São Bento tinha
muito a falar, então tentamos, através do teatro, com foco na oralidade, fazer com que essa voz domi-
nasse a cena e revelasse a memória do bairro através das histórias contadas.

“O teatro permanece teatro, mesmo quando é teatro pedagógico e, na medida em que é bom teatro,
é diversão” (BRECHT, 1967, p. 99). Eu tinha em minhas mãos duas preciosidades: a História Oral e
a Comunidade. Foram muitos dias em que fiquei estática, sem saber o que fazer com tanta riqueza e
acredito que, depois de longas noites sem dormir, pensando por onde começar, eu fiz a escolha certa,
já que o bairro fervilhava de cultura, arte e tradição.

“Assim como para os aldeões africanos, contar histórias é uma manifestação da vida cotidiana”,
(HAMPATÉ BÁ, 1977) estávamos tendo o prazer de viver isso também. Um momento que não foi
proporcionado apenas para as crianças da oficina, ou para os mais velhos que há muito tempo não
“proseavam” com pessoas mais jovens, pelo fato de estas não terem paciência para o tempo-ritmo
deles. Já diz o Hampaté Bá (1977): “o que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio
valor do homem que faz o testemunho [...] em suma: a ligação entre o homem e palavra”.

As pessoas da comunidade puderam assistir ao espetáculo na escola As três Marias e na ponte. Fi-
cavam muito felizes enquanto assistiam e, depois das apresentações, eram muito corteses com as
crianças. O engraçado é que tanto as crianças que faziam parte do elenco, quanto a outras crianças da
comunidade, sabiam o espetáculo ao pé da letra. Uma passava para a outra nos momentos de brin-
cadeira, de recreio da escola, em todas essas ocasiões, o teatro e as histórias estavam presentes. Dessa
forma, fundamos a Companhia de Teatro Aponte é Comum, e, em passos lentos, estamos cuidando
para que dure por muitas gerações.

“A educação tradicional começa, em verdade, no seio de cada família, onde o pai, a mãe ou as pessoas
mais idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores e constituem a primeira célula dos tradicio-
nalistas” (HAMPATÉ BÁ, 1977). É nesta educação em que eu acredito. Ao longo do trabalho tentei
fortalecer, nas crianças, o valor familiar, essa educação que ninguém pode nos tirar. Por isso, busquei
estar sempre em contato com os familiares das crianças, em especial com as mães, que são as mais
envolvidas na vida delas. Elas depositavam em mim a confiança de levar e trazer os seus filhos de
volta para casa. Todos esses fatores me fizeram refletir a importância desse trabalho nas comunida-
des. Acredito que todas as comunidades deveriam ser contempladas com trabalhos assim, em que a
educação sociocultural, paralela à educação tradicional, estivesse em diálogo constante, envolvendo
pais, filhos e a comunidade em que estes estão inseridos.

369
REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plinio Dentzien. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar, 2003.
BAMBA, François Moise. Entrevista concedida a Toni Edson Costa Santos, 2015
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1967.
CALDAS, Alberto Lins. Oralidade, texto e história - para ler história oral. São Paulo: Ed. Loyola, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa de ensino. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 15. ed. São Paulo: Cortez/Autores
Associados, 1989.
GAYOTTO, Lucia Helena da C. Voz: Partitura da ação. São Paulo: Plexus, 2000.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2006.

370
O processo colaborativo em
invencionices – de Manoel e as nossas
Jéssica Cristina Souza do Nascimento /
Laura Caldas Miguel/ Marcus Flávio da Silva

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a relatar a experiência vivida por alunos(as) de Teatro (da primeira série do en-
sino médio, do Colégio de Aplicação da UFPE), durante a construção do exercício cênico intitulado
INVENCIONICES – de Manoel e as nossas. Para tanto, será feito um resgate do processo quanto às
metodologias utilizadas, às dificuldades e aprendizados que fazem parte do conhecimento construído
a partir dessa vivência.

O trabalho é resultado de um exercício anterior, em que cada aluno(a) escolheu uma poesia, perten-
cente ao universo poético do escritor cuiabano Manoel de Barros (1916-2014). A partir do poema
selecionado, partiu-se para a próxima fase: construção de solos performáticos. Nesse momento, cada
aluno(a) precisou pensar nas possibilidades de cena que o texto escolhido poderia ganhar, para, de-
pois de experimentar, concluir o trabalho e apresentar aos demais.

Na segunda unidade do ano letivo de 2015, seguindo a sugestão do professor orientador Marcus Flá-
vio, houve a costura dramatúrgica dos solos. Nesta fase, ocorreu um reagrupamento de alunos(as),
assim como inserção de novos textos do Manoel de Barros, o que conferiu ao trabalho uma nova
espacialidade. O trabalho inicial tomou, assim, outra dimensão, e seguiu sendo construído por todos
que dele fizeram parte: professor e alunos(as).

Como suporte para relatar o processo da experiência na construção de INVENCIONICES – de Ma-


noel e as nossas, serão utilizados recursos como fotografias; fragmentos de protocolos – registros
feitos por dois alunos(as) a cada aula, em que estes registravam suas percepções sobre o processo de
construção do exercício cênico; e filmagens dos ensaios abertos realizados na presença de alunos(as)
de outras turmas, e das duas apresentações que aconteceram no Festival de Arte e na Feira Científico-
-Cultural do Colégio de Aplicação em 2015.

371
1. O TRABALHO COMO PROCESSO COLABORATIVO

Para que seja possível falar do senso de coletividade como um aprendizado marcante adquirido com
a vivência do trabalho, é importante reconhecê-lo, sobretudo, como um processo colaborativo, um
modo de criação que se caracteriza por uma dinâmica já conceituada pelo encenador e professor da
USP, Antonio Araújo, que afirma:

Tal dinâmica, se fôssemos defini-la sucintamente, constitui-se numa metodologia de criação em que
todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo,
trabalhando sem hierarquias – ou com hierarquias móveis, a depender do momento de processo – e
produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos. (2002, p. 127).

Desta forma, a construção do exercício cênico INVENCIONICES – de Manoel e as nossas se cons-


tituiu através de um processo em que a colaboração de todos foi de extrema importância, ou seja,
professor/diretor e alunos(as)/jogadores(as) se encontraram dentro do espaço da sala de aula, com o
mesmo intuito propositivo, o que, ao mesmo tempo em que rompe com um modelo tradicional de
ensino que hierarquiza as relações professor-aluno, coloca todos os membros envolvidos no trabalho
como sujeitos protagonistas do processo, decidindo tanto quanto às questões mais técnicas, como o
cenário, o figurino e a sonoplastia, como quanto ao conceito, sentidos e estética das cenas.

À medida que o professor trazia provocações, os(as) alunos(as) eram levados a pensar no trabalho
e suas especificidades, buscando soluções e sugestões para sua reelaboração. Até a concretização do
exercício, da sequência das cenas, da sonoridade, dos adereços cênicos, por exemplo, o espaço era de
constante experimentação. Assim, foi necessário se desprender da ideia de imutabilidade das deci-
sões, pois sempre que alguém propunha algo novo a ser acrescentado ou mesmo mudado em algum
momento do trabalho, acolhia-se a sugestão, experimentando-a e, através do diálogo, verificando se
seria interessante aproveitar algum elemento ou não. Portanto, o que existiu, até o fechamento do
exercício cênico, foi uma espécie de “uma encenação em processo, de uma cenografia em processo e
assim por diante, com todos esses desenvolvimentos juntos compondo o que chamamos de processo
colaborativo.” (ARAÚJO, 2002, p. 130, grifo do autor).

Ao tomar como base o processo de criação do espetáculo O Paraíso Perdido (primeira produção do
grupo Teatro da Vertigem, estreado em 1992), para discorrer sobre o processo colaborativo de forma
geral, Araújo destaca as três fases fundamentais do processo colaborativo, sendo a primeira:

Etapa de livre exploração e investigação: em que as questões centrais do projeto são estudadas, im-
provisadas e experimentadas, com o objetivo de mapear o campo da pesquisa, levando à identifi-
cação de parâmetros e possibilidades. Aqui é onde se dá, fundamentalmente, o levantamento do
material cênico (Ibidem, p. 131).

Essa primeira etapa corresponde, na construção de INVENCIONCES – de Manoel e as nossas, à tran-


sição entre o exercício feito na primeira unidade do ano letivo de 2015, que consistiu na criação de
solos independentes através de poemas de Manoel de Barros, e o momento da união destes solos,
quando o exercício cênico começava a surgir. Essa passagem foi marcada pela entrada e saída de tex-
tos, pelo estabelecimento de uma ordem inicial de apresentação, pela exploração das possibilidades de

372
espaço que poderíamos ter. Foi quando começou a se perceber o espaço de outra maneira, não mais
restrito à apresentação do solo para uma plateia formada por um professor e pelos demais colegas,
mas sim como um espaço de construção coletiva, em que, apesar de ser composto por vários solos,
houve a necessidade de interação olho a olho com a plateia que precisava dialogar com o que aconte-
cia em cena. A segunda etapa, para Araújo, consiste na:

Etapa de estruturação dramatúrgica: em que ocorre a seleção do que foi levantado, visando à cria-
ção de partituras de ação, esboços de cena e, em seguida, à roteirização propriamente dita. Essa
etapa pressupõe o estabelecimento de, pelo menos, uma primeira versão do texto (ARAÚJO, 2002,
p.131)

A segunda etapa da construção desse processo colaborativo foi, sobretudo, um momento de constante
experimentação. Os momentos de aula, nesse período, voltaram-se para aqueles esboços de cena que
tinham mais aspectos a serem resolvidos. Definimos, após experimentar alguns formatos, dispor a
plateia em círculo, e os(as) próprios(as) alunos(as) jogadores(as) eram parte dessa plateia atenta da
qual foram emergindo, uma a uma, em seu devido tempo, as personagens.

Para que houvesse tempo de trabalhar em todas as necessidades que surgiam conforme o trabalho
crescia, o professor/diretor estabeleceu prazos para aqueles(as) que desejassem participar mais ati-
vamente do exercício, pois o processo de entrada consistia na escolha de um novo texto para en-
cenação de um solo a ser inserido no trabalho, ou mesmo na formação de um grupo de alunos(as)
jogadores(as) para dividir uma mesma cena. Assim, foi possível definir uma primeira ordem que
as cenas tomariam a partir daquele momento, restando-nos, como autores da obra, pensar, sugerir
e experimentar meios de interligar as cenas, estabelecendo um sentido poético entre os textos,
que se deu com a utilização de diferentes recursos. Como caracterização da terceira etapa, Araújo
esclarece:

Etapa de estruturação do espetáculo e de aprofundamento interpretativo: em que a escrita da cena


passa a ocupar o centro das preocupações, tanto no que diz respeito às marcações, ao espaço cênico,
ao tratamento visual e sonoro, quanto ao aprimoramento do trabalho do ator. O aspecto drama-
túrgico continua a ser desenvolvido aqui, enquanto lapidação e acabamento, porém com um foco
secundário. (ARAÚJO, 2002, p. 131).

Quando a roteirização já se encontrava em um estado mais sólido, restava-nos, ainda, estabelecer


conexões de sentido entre os textos e, a cada encontro, levávamos para casa o trabalho de pensar em
algo que pudesse conectar as cenas. Nesse sentido, o professor/diretor trouxe muitas contribuições,
colocando à disposição materiais que lhe pareciam uma boa ponte de transição entre um trecho e
outro, ou que já denunciavam algo sobre o próprio texto, sempre em sintonia com o uso do corpo e
da voz. Neste ponto da trajetória, já compreendíamos a necessidade da conexão e da colaboração de
todos(as) os(as) alunos(as) jogadores(as) para que a cena acontecesse como planejado. Numa deter-
minada parte do exercício, em que a personagem feita pela aluna Anna Beatriz Oliveira brincava de
esconde-esconde, construindo seu brinquedo em um emaranhado de elástico, outros(as) alunos(as)
jogadores(as) precisavam ajudar para montar a cena, o que exigiu atenção e concentração de todos,
como podemos verificar na imagem abaixo.

373
Imagem 1. Momento de
apresentação do exercí-
cio cênico INVENCIO-
NICES – de Manoel e
as nossas, no Festival
de Arte do Colégio de
Aplicação, ano 2015.
Foto: Jamilly Andrade.

A maior parte das dificuldades quanto ao uso do corpo e da voz já tinha sido superada com o trabalho
constante da segunda etapa do processo. As atenções, nesse momento, voltam-se às questões mais
técnicas para a execução das ideias, como a marcação do tempo correto para a entrada de cada um,
seguindo a trilha sonora, e a adequação das posições dos(as) jogadores(as) ao espaço da apresentação.
Vale ressaltar que, embora tenha sido um trabalho cuja construção se alicerçou no acolhimento de
vozes plurais e na condução contínua e conjunta, tratou-se, também, de um processo individual, por-
que lidou com particularidades de cada sujeito envolvido, dependendo, assim, da disposição e inicia-
tiva de cada um(a), no sentido de acolher críticas e sugestões dos(as) demais alunos(as) jogadores(as).
Portanto, o processo colaborativo na construção do exercício cênico INVENCIONICES – de Manoel
e as nossas constitui um procedimento metodológico em que “protagonismo e autoria se cruzam e se
interligam.” (MUNDIN, 2013, p. 173).

2. DA POESIA DE MANOEL DE BARROS

Manoel de Barros (1916-2014) foi um escritor sul-mato-grossense de grande importância para a po-
esia nacional. Declarado, pelo também escritor Carlos Drummond de Andrade, como o maior poeta
brasileiro da época, a poética de Manoel de Barros retrata muito de sua realidade regional; o pássaro,
a árvore e as pedras são termos recorrentes em seus poemas, mas, para além de componentes da na-
tureza, sua poesia fala da essência do homem, trata de problemas de dimensão universal, e, para isso,
recorre à linguagem comum ao início de todos: a linguagem das crianças.

A sua poesia subverte os padrões linguísticos, e seu universo poético é marcado pela ressignificação
das pequenas coisas do cotidiano, que se dá principalmente por um desvio do sentido usual das
palavras. Manoel de Barros rompe com as expectativas do leitor e o coloca em outra consciência, e
para a compreensão de seus poemas, é necessário se propor a um novo ponto de vista, como disse
Manoel, no poema “VII”, da quarta parte do livro O guardador de águas: “O sentido normal das
palavras não faz bem ao poema. / Há que se dar um gosto incasto aos termos. / Haver com eles
um relacionamento voluptuoso”, só assim, partindo de uma nova perspectiva, podemos adentrar o
universo desse poeta.

374
3. METODOLOGIA

Por todo o percurso de construção de INVENCIONICES, diferentes procedimentos metodológicos


permitiram ao trabalho uma pluralidade de olhares e foram essenciais para o resultado final deste
exercício cênico, como os jogos e exercícios psicofísicos, os protocolos e os ensaios abertos.

3.1. Jogos e exercícios psicofísicos no cotidiano da sala de aula

O teatro lúdico, segundo Brito, é uma forma de fazer o teatro que difere das concepções tradicionais, e
nesse fazer, que se dá através dos diversos caminhos do jogo, é essencial o envolvimento completo do
ator – nesse contexto colocado como alunos(as) jogadores(as) – que expressa emoções e verdades do
seu exercício cênico (o jogo) para a plateia, nessa forma de jogar. Foi deste modo que INVENCIONI-
CES – de Manoel e as nossas, estabeleceu sua conexão com o fazer teatral, buscando, através da poética
de Manoel de Barros, construir um exercício cênico que despertasse os(as) alunos(as) do primeiro
ano do ensino médio para outra forma de estruturação e vivência da linguagem teatral.

Para a organização dessa nova forma de exercício cênico não foram utilizados cenários tradicionais,
ou uma caracterização específica a todos os personagens. Brito (2009) afirma que é de extrema im-
portância considerar, também, o espaço onde esse tipo de jogo ocorre:

A ausência de cenários, portanto, cria uma concentração maior na figura do ator, levando o público
a perceber mais detalhadamente o que acontece com ele. [...] Da mesma maneira que a ausência de
cenários ativa a imaginação criadora da plateia, os objetos ou coisas usadas num teatro lúdico, isto
é, os adereços, podem se transformar, de acordo com o trabalho do ator e o jogo que estiver sendo
praticado. (p. 5).

Ao longo da construção de INVECIONICES, os exercícios psicofísicos, jogos e improvisações que


aconteceram foram fundamentais para o aprimoramento, e, por diversas vezes, podemos dizer des-
cobrimento, do corpo e da voz no exercício cênico, principalmente nas etapas iniciais do processo.
Desde o primeiro momento, em que cada aluno(a) escolheu um dos poemas do Manoel de Barros
para construir seu solo, já estávamos jogando. Este primeiro exercício serviu para que cada um(a)
pudesse exercitar sua criatividade, e como não houve qualquer tipo de impedimento para que diferen-
tes alunos(as) trabalhassem o mesmo texto, em alguns casos como no do poema “Retrato do artista
quando coisa”, puderam perceber as variadas interpretações de cada aluno(a) jogador(a) para um
único texto poético, onde foram produzidas diferentes representações, pois cada um teve sua maneira
de se expressar, mas que, ao mesmo tempo, foram semelhantes, colocando-os diante de diferentes
situações teatrais.

Os exercícios propostos pelo professor funcionaram não só como aquecimento corporal, mas tam-
bém para um despertar dos sentidos. Na maior parte das atividades os(as) alunos(as) recebiam estí-
mulos sonoros pra entrar no jogo, que não eram necessariamente verbais, e tinham que corresponder
a esses estímulos na forma de andar, de olhar e de se colocar no espaço, sempre tendo em mente os
poemas de Manoel de Barros e o personagem que interpretavam. Esses exercícios trouxeram novas
possibilidades de expressão de sentimentos e emoções através do corpo.

375
Imagem 2. Momento de aquecimento corporal, antes da realização do exercício cênico em ensaio aberto, realizado no pri-
meiro semestre do ano letivo de 2015. Foto: Thaynara Lessa.

3.2. O uso do protocolo

O protocolo consiste em um instrumento de trabalho idealizado pelo poeta, encenador e drama-


turgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), sendo a veracidade dos fatos a única regra para quem
o escreve, visto que o discurso do protocolo se caracteriza pela sua espontaneidade, ao invés da
formalidade.

Durante a construção de INVENCIONICES – de Manoel e as nossas, a utilização do protocolo se esten-


deu do início ao fim do processo. Uma vez por semana, dois alunos(as) jogadores(as) voluntários(as)
se comprometiam a fazer o registro do encontro, e o texto era lido no início da aula seguinte.

Além da valorização à escrita, o uso do protocolo como recurso metodológico de ensino-aprendiza-


gem possibilitou uma visão ampla do processo de construção do trabalho, bem como a sistematiza-
ção, reflexão, compreensão e reelaboração deste, sempre partindo do ponto de vista do outro, de suas
sugestões, críticas e avaliações. Em um protocolo final solicitado pelo professor, em que todos nós
deveríamos falar da vivência das aulas de Teatro naquele ano, o aluno Victor Felipe Figueiredo reflete
sobre a sua participação enquanto sujeito protagonista deste processo colaborativo, dizendo-nos:

Muitas vezes o professor falava e eu entendia um pouco da ideia que ali estava pairando, captando
aos poucos eu até participava da edificação da peça dando algumas opiniões (isto também me ajudou
a compreendê-la), me obrigando a parar e pensar: não, deste jeito é melhor, hm... isso não tá batendo
com o texto, por quê? (grifo do autor).

A aluna Ana Júlia Oliveira, em seu protocolo sobre as aulas de Teatro em 2015, compreende a cons-
trução do trabalho como um processo colaborativo, destacando que:

Uma particularidade desse projeto envolvendo poemas de Manoel de Barros, é que, durante a sua
elaboração, todos podiam compartilhar opiniões ou recomendações acerca de determinados tópicos,
e por isso o trabalho estava em constante recriação, estimulando nossa criatividade e senso crítico.

Os exercícios de escrita e leitura dos protocolos foram, portanto, fundamentais, tanto para a inserção
plena de todos(as) os(as) alunos(as) jogadores(as) no universo do trabalho, cientes dos avanços e

376
necessidades deste, quanto para a constante retomada do caminho já percorrido, rememorando os
encontros anteriores, proporcionando a reflexão e reelaboração do exercício cênico em andamento.

3.3. Ensaios abertos

Os ensaios abertos aconteceram durante diversos momentos de montagem do INVENCIONICES


– de Manoel e as nossas. Funcionaram como um momento em que outros(as) alunos(as), que não
faziam parte da turma de Teatro daquele ano, ou de outras séries, iam assistir a um ensaio do exer-
cício. Esses ensaios ocorreram em diferentes momentos do ano letivo; uma parte deles ocorreu num
período inicial, quando tínhamos acabado de elaborar uma primeira forma de realizá-lo, e outros,
quando já estava mais próximo das apresentações, no Festival de Arte e na Feira Científico-Cultural
do Colégio.

Imagem 3. Alunos em exercício cênico, no ensaio aberto re-


alizado no primeiro semestre do ano letivo de 2015. Foto:
Amanda Moraes.

Depois das apresentações, os(as) alunos(as) e professores(as) que haviam assistido eram convidados
a tecerem críticas quanto à forma que o exercício vinha se concretizando até aquele momento. Tais
críticas foram de extrema importância para o amadurecimento dos(as) alunos(as) jogadores(as) dian-
te das questões que eram colocadas, como a necessidade de uma melhor articulação e projeção das
palavras, e outros pontos quanto à forma de apresentação e ao figurino, que vinham como sugestão
da plateia e que depois eram pensados por todos se seria interessante acatá-las ou não.

Para além de críticas quanto a questões técnicas do exercício, a convivência com a plateia durante
os ensaios abertos permitiu uma interação com o público, que foi essencial para os(as) alunos(as)
jogadores(as), que tinham uma nova visão sobre o que estavam produzindo. Isso estabeleceu relações
criativas com a plateia, que participava do espetáculo de uma forma ativa, não apenas na interação e
nos olhares, mas em um momento específico ao interagir lendo um trecho da poesia entregue por um
aluno jogador, sendo sua presença indispensável para que o jogo estivesse completo.

377
4. DAS DIFICULDADES DO PROCESSO

Falar sobre as dificuldades sentidas durante a construção de INVENCIONICES – de Manoel e as


nossas requer falar, antes de qualquer outra coisa, sobre a especificidade de um trabalho cênico criado
através de um processo colaborativo, tendo como matéria prima o universo poético. Em virtude dis-
so, o trabalho carrega consigo uma intensidade estética e até ideológica que torna o exercício de dar
corpo ao texto mais difícil. Quanto a isso, a aluna Jéssica Souza, também coautora deste artigo, reflete,
em seu protocolo sobre as aulas de Teatro em 2015:

Fiquei dias e dias a pensar como o texto ganharia uma cena, uma personagem, uma roupa, uma voz.
Mexer com o poético é, muitas vezes, difícil. E me pareceu uma dificuldade muito grande encontrar
algo que pudesse representar o texto e toda a carga poética que nele está contida.

O aperfeiçoamento da expressão corporal e vocal foi um aspecto da construção do trabalho que exigiu
intensa dedicação de todos(as) os(as) alunos(as) jogadores(as), e grande parte dos ensaios foi voltada
para o exercício do uso adequado do corpo e da voz nas cenas, no qual os jogos e exercícios psicofí-
sicos foram essenciais, uma vez que colocava cada um(a) no desafio de expressar corporalmente as
personagens, pensando sempre no texto poético.

Ademais, cabe ressaltar que INVENCIONICES – de Manoel e as nossas é um trabalho construído por
ideias coletivas, mas não só isso: a sua dinâmica também implica a necessidade da participação do
outro, da troca de olhares, da conexão que dá força e intensidade à poesia que toma forma de/na cena.
Entretanto, por vezes, o andamento do trabalho foi prejudicado, porque nem todos os envolvidos
estavam suficientemente concentrados.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção de INVENCIONICES – de Manoel e as nossas possibilitou o exercício de diversos as-


pectos: a postura corporal/vocal, a pronúncia clara das palavras e imposição da voz. São competências
claramente (re)construídas e melhoradas ao decorrer dos ensaios, da mesma forma que a expressivi-
dade corporal, com reconhecimento e apropriação do espaço cênico, inerente ao fazer teatral.

O contato com os textos de Manoel de Barros foi capaz de aguçar olhares para a beleza das coisas
“desimportantes”, para a poesia contida nos fatos corriqueiros ou nas paisagens mais simples. Durante
todo o processo, fomos sempre estimulados a pensar criativamente, a nos despir da falta de sensibi-
lidade cotidiana e adentrar o universo poético no qual o trabalho se construiu, a dividir responsa-
bilidades, a trabalhar coletivamente sem perder a autonomia, tornando-nos, desta forma, sujeitos
protagonistas do trabalho cênico realizado.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Antonio. O processo colaborativo no Teatro da Vertigem. Sala preta: Revista do Departamento de Artes
Cênicas, ECA- USP, n. 6, 2002. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57302/60284.
Acesso em: 9 abr. 2016.

378
BARROS, Manoel. Poesia completa – Manoel de Barros. 2. ed. São Paulo: Leya Brasil, 2013, 481 p.
BRITO, Iremar M. de. Jogo teatral na pedagogia da criação cênica. O Percevejo Online, v. 1, n. 2. 2009. Dispo-
nível em: <http://www.seer.unirio.br/index.php/operceve joonline/article/view/527/470>. Acesso em: 20 abr.
2016.
CRUZ, Wanêssa; FHILADELFIO, J. Alves. Manoel de Barros: cosmologia poética. São João Del-Rei/MG: Uni-
versidade Federal de São João Del-Rei, 2008.
KOUDELA, Ingrid Dormien (Org.). Um vôo brechtiano: teoria e prática da peça didática. São Paulo: Perspecti-
va/FAPESP, 1992.
MENEZES, Edna. Manoel de Barros: O poeta universal de Mato Grosso do Sul. Jornal de Poesia. Disponível em:
<http://www.jornaldepoesia.jor.br/ednamenezes1.html>, Acesso em: 9 abr. 2016.
MUNDIN, Liliane. Percursos em pedagogia do teatro: processo colaborativo como práxis. In: TELLES, Narciso.
Pedagogia do teatro: práticas contemporâneas na sala de aula. São Paulo: Papirus editora, 2013.

379
Como conhecer o mar? –
uma experiência em drama
Amanda de Sampaio Alves Duarte

D esde que o curso de Educação Artística com ênfase em Artes Cênicas, da Universidade Federal
de Pernambuco, modificou seu currículo e passou a se chamar Teatro/Licenciatura, no ano de 2011, a
graduação passou a dedicar toda a sua carga horária ao ensino dos elementos, das metodologias e das
técnicas que dizem respeito à linguagem teatral. Dentro dessas novas escolhas curriculares surgem
as disciplinas intituladas Metodologia do Ensino do Teatro (1-5), que são destinadas a apresentar aos
graduandos as formas mais adequadas de ensinar teatro em diversos ambientes e com diversas faixas
etárias.

A experiência que descrevemos neste artigo ocorreu dentro da disciplina Metodologia do Ensino do
Teatro 2, realizada durante o quarto período da graduação, momento no qual os alunos já estudaram
alguns instrumentos da pedagogia, como didática, avaliação e psicologia da educação. Sua ementa
oficial prevê que esse período de tempo deva ser dedicado ao “estudo dos fundamentos teóricos me-
todológicos do teatro na educação, em turmas de educação infantil e ensino fundamental nos 1º, 2º,
3º e 4º ciclos.” (UNIVERSIDADE, 2013).

Sabendo disso, o plano de curso desenvolvido pelo professor Luís Reis, responsável pela disciplina
durante o período dessa experiência, tinha como objetivo geral “introduzir os licenciandos nas prin-
cipais abordagens e metodologias para o ensino do teatro em turmas da Educação Infantil e do Ensino
Fundamental nos 1º, 2º, 3º e 4º ciclos, com especial ênfase nos Jogos Dramáticos, nos Jogos Teatrais e
no Drama” (REIS, 2013, p. 1).

Feito esse recorte na diretriz geral, o professor anunciou o encaminhamento metodológico no qual es-
colheu dar às aulas: elas seriam, predominantemente, ministradas à luz do Drama, mas este não seria
executado de forma estanque; receberia interferências de aspectos basilares dos Jogos Teatrais e dos
Jogos Dramáticos, que atuariam, principalmente, aumentando o repertório de jogos e improvisações.
Assim, experimentaríamos em nós, sem esquecer nossa posição de adultos, uma mescla metodoló-
gica que poderia ser utilizada no trabalho com o público infantil, deixando o ministrante livre para
modificar a teoria até que ela seja útil a cada turma.

380
Os alunos da disciplina, a partir de um pré-texto, seriam estimulados a criar um experimento cênico
inspirado na própria relação com os jogos – experimento que teria como objetivo apresentar um re-
sultado estético que também atendesse à infância. Apesar de saber que esse encaminhamento poderia
ser reproduzido com crianças, não havia a pretensão de fingir que se trabalhava com crianças. Ao
contrário, assumia-se a formação e as habilidades de cada indivíduo, mostrando-os que, quando o
jogo se estabelece, não é a faixa etária que irá impedir a criação.

Sobre o Drama, Heloise Vidor explica:

Drama, process drama ou teatro-educação são maneiras distintas de fazer referência à metodologia
criada na Inglaterra, que alia formas dramáticas ao âmbito educacional. Com toda a sua tradição
em termos de literatura dramática, é perfeitamente compreensível que a terra de Shakespeare seja o
berço desta metodologia, que vem se disseminando por várias partes do mundo pelo seu potencial
de aproximação do aluno com a linguagem do teatro, principalmente através da construção drama-
túrgica e do jogo de alteridade, quando ao assumir papéis coloca-se no lugar do outro, como possi-
bilidade de melhor compreendê-lo. (VIDOR, 2010, p. 27).

A escolha pelo Drama e pela criação por meio dos jogos de improvisação gerou um ambiente pro-
pício à criação compartilhada, pois “explicita a opção por uma dinâmica processual de criação do
texto teatral” (VIDOR, 2010, p. 31). Por mais que existisse um claro professor-encenador e que a
turma estivesse dividida em subgrupos, por área de interesse, o contato com os jogos, como aponta
Desgranges (2006), sempre “possibilita que os participantes exprimam, de diferentes maneiras, os
seus pontos de vista, fomentando a capacidade de manifestarem sensações e posicionamentos [...]”
(p. 88). Ao mesmo tempo, o tripé fundador da experiência com Drama – criação-execução-recepção
(HORNBROOK, 1991) – proporcionava, ao longo de toda a criação, a modificação do olhar e a cons-
trução de novos conhecimentos e de novas percepções sobre o próprio trabalho, estimulados pelas
interferências produzidas pelos companheiros.

Faz-se importante saber que “o caráter espetacular, teatral, pode ser potencializado ou não pelo con-
dutor do processo” (VIDOR, 2010, p. 30). Alguns estudiosos do Drama dizem que a apresentação
final do trabalho e o consequente contato com o público externo pela primeira vez é fundamental,
mas não se trata de uma unanimidade. Todavia, por seguir mais firmemente as propostas de David
Hornbrook, Luís Reis optou pelo caminho de mostrar o trabalho a uma plateia que desconhecia o
processo, tanto para verificar o impacto do produzido, quanto por acreditar que a experiência teatral
só se dá verdadeiramente dessa forma (REIS, 2014).

O pré-texto114 escolhido para alimentar os episódios115 e para servir de mote ao exercício cênico foi
o livro O mar de Fiote, escrito e ilustrado por Mariângela Haddad. Luís Reis teve o primeiro contato
com a obra durante o concurso da editora CEPE de literatura infantil e juvenil, no ano de 2011, do
qual era um dos jurados. Encantado pelo material e pela riqueza cênica que o texto e as ilustrações
poderiam produzir, resolve, dois anos depois do concurso, descobrir uma encenação capaz de abarcar

114. Texto ou narrativa que serve como fonte para o processo e dá referências para que a criação se mantenha focada.
115. Podemos pensar os episódios como todos os momentos em que a narrativa dá um passo adiante, ou seja, cada novo fragmento, criado
em grupo, que compõe o desenrolar da história.

381
uma experiência parecida com a que era vivenciada durante a leitura. Não seria tarefa simples: quase
não há o elemento dramático na forma como a história é apresentada textualmente. O livro,

[...] conta a história de um menino que, com pai ausente e cercado de irmãs tagarelas, não consegue
se expressar. Quando ele conhece um vizinho que o ajuda a sair de uma situação de conflito e lhe
oferece um presente onde pode entrever o mar, sua personalidade começa finalmente a aflorar. (Site
da CEPE, acessado em 26/10/2015)

Esse menino, que quase não fala e ao mesmo tempo é o protagonista da história, apresenta-se, durante
quase todo o tempo, por meio de seus pensamentos – o que pode ser fácil de resolver no papel, mas
super desafiador de resolver na cena. O único momento de – frágil – fio dramático reconhecível é o
encontro entre Fiote e o vizinho assustador Messiê, fragmento no qual eles se veem obrigados à rela-
ção e estabelecem uma forma particular de diálogo.

Como apresentar na encenação um menino que não fala? Como tornar seus pensamentos visíveis?
Como valorizar o encontro e torná-lo significante e significado do espetáculo? Eram essas as pergun-
tas que precisavam ser respondidas. E o caminho pelo qual elas poderiam ser respondidas era por
meio dos jogos de improvisação (oriundos de variadas metodologias) sobre o pré-texto, o que foi
possível porque a turma, por um contágio do professor, interessou-se pelo enredo.

As perspectivas de que se criaria coletivamente, de que os rumos da disciplina e do exercício cênico


final dependeriam das soluções encontradas pelos alunos e de que uma energia especial deveria ser
acionada para a cena foram introduzidas logo no encontro inicial, quando a turma foi apresentada à
‘zona do estranho’. O professor, depois de um breve momento de descanso e relaxamento, pediu para
que a turma “começasse”. Sem explicações, sem justificativas, sem indicações. Apenas começar.

Passado o susto inicial, a turma começou a estabelecer algumas relações, brincando, dançando
e incentivando outros movimentos, mas em grupos separados. Aproveitando a situação de uma
aluna deitada ao chão, Luís captura a atenção de todos e estimula uma unidade ao atribuir um
significado àquele momento: ela estava “passando mal”. “Socorrê-la”, no entanto, exigiria grande
cuidado, pois ela estava na ‘zona do estranho’ e qualquer um que atravessasse a fronteira agiria de
forma extra-habitual. Desde o medo de entrar até chegar a uma rave do estranho, diversas situações
foram criadas dentro desse espaço para que todos se posicionassem criativamente diante do grupo.
Era necessário estar atento, preparado, disponível e se relacionando: estava instaurado o espírito
do jogo.

Só então, depois que corpo e mente estavam mobilizados e aquecidos para a criação, os alunos foram
apresentados ao pré-texto, ao pequeno mundo de Fiote – o que certamente interferiu na forma como
o livro foi recebido. Divididos em dois grupos, deveriam demonstrar como são e como se movem um
cachorrossauro e uma galinhossaura. Em uma demonstração da tríplice do Drama, pensada por David
Hornbrook, em relação com os Jogos Dramáticos, tais grupos foram estimulados a criar os animais-
-monstros, apresentá-los aos demais, ouvir as críticas e voltar à criação para corrigir os problemas e
valorizar os pontos positivos. Essa forma de trabalho sobre possíveis cenas, assim como o espírito do
jogo, seria reproduzida durante o decorrer de todo o processo.

382
Essa estrutura inicial se manteve durante os demais encontros que, de forma geral, se dividiam em
três momentos: aquecimento por meio de jogos/brincadeiras, momentos de criação sobre o pré-texto
e momentos de discussão teórica sobre a pedagogia do teatro. Nessa escolha, apresenta-se uma com-
preensão de que o espaço-tempo destinado ao trabalho deve ser cuidado, compreendido e preparado.
Estima-se, no Drama, a criação de uma espécie de ‘rito de passagem’ no início da aula, que permita
aos participantes deixarem o estado cotidiano para trás e assumirem um estado de trabalho.

Instaurado esse novo estado, o pré-texto é introduzido como “um tema que gera um conflito e que dá
o mote para a construção da história e, consequentemente, para a escolha das estratégias que serão
utilizadas” (VIDOR, 2010, p. 29), sobre o qual se criam os episódios que darão um novo passo rumo
ao desfecho do problema. O estímulo à criticidade, ao apuro estético e ao compartilhamento nasce,
nessa perspectiva, nos momentos em que as soluções encontradas são postas à prova diante dos de-
mais, em busca de uma solução coletiva.

Pensando tal criação a partir de episódios, no processo de O mar de Fiote, os alunos foram estimu-
lados a, em cada aula (fossem as ministradas pelo professor, fossem as ministradas pelos próprios
alunos durante as minioficinas), criarem uma nova cena que pudesse abarcar uma parcela do mundo
ficcional que estava sendo trabalhado. Para isso, outros pré-textos eram trazidos de acordo com o que
estava por ser experimentado – texto sobre a figura paterna, músicas do universo infantil, reprodução
de brincadeiras da infância, ruídos do mar. Tudo o que pudesse se ligar à materialidade da história de
Fiote e os levasse adiante na compreensão desse menino, servia como incentivo à criação.

Como uma consequência, esses estímulos também faziam a narrativa passar pela subjetividade dos
alunos e, assim, transformar-se. Ao serem questionados, por exemplo, sobre qual seria o sonho de
Fiote ou o que aconteceria de diferente se o pai do menino estivesse em casa, os alunos foram con-
vocados a buscar, dentro das experiências vivenciadas em sala de aula, uma solução cênica na qual
eles se utilizassem da relação individual com o tema (sonho, pai, infância, brincadeira, medo...) para
contar uma história já existente. Durante os quatro meses e meio de criação, diversas situações pa-
recidas foram instauradas e provocaram resultados que levaram à visualidade do produto final: uma
cenografia baseada na presença corporal dos atores.

Apesar de, logo no começo do processo criativo, ter se cogitado a possibilidade de trabalhar com
teatro de sombras ou teatro de objetos, o que se estabeleceu, enquanto dinâmica de trabalho, foi bem
diferente. Como todas as aulas trabalhavam sobre jogos e a criação era constante, sem grandes pre-
parações materiais, fez-se necessário que as soluções encontradas utilizassem o que estava disponível
naquele momento: corpos, guarda-chuva, corda, pião. E essa utilização do disponível, como resultado
do que era natural para o grupo, tornou-se uma opção estética.

Escolhida a visualidade que se queria imprimir na cena, era hora de decidir o que seria levado ao
exercício final. Muitas cenas e imagens potenciais foram criadas no decorrer dos encontros: cachor-
rossauro e galinhossaura, o sonho de Fiote, o pesadelo de Fiote, e se papai estivesse aqui?, brincadeiras
infantis, Fiote e o mar, Fiote e a caverna, tableau vivant, o casamento ao qual Fiote e as irmãs irão,
narrar versus fazer, trocar os personagens, entre outros. Eram muitos alunos, eram muitas ideias,
eram muitas decisões a serem tomadas.

383
Somente oito encontros antes da apresentação final é que a unidade começou a ser trabalhada com
mais ênfase, tentando estabelecer um roteiro/texto dramático que unisse não só as cenas escolhidas,
mas também o que se pensava para o figurino, para a cenografia, para a maquiagem, para a sonoplas-
tia e para a iluminação. Entretanto, tendo todas as propostas sido criadas em sala de ensaio, diante de
todos e recebendo interferência de todos, a essência do que seria o exercício cênico já estava no imagi-
nário coletivo. Por isso, o trabalho de unir os elementos em uma linha que fizesse sentido cenicamente
não afetou a ligação que alunos e professor tinham com o produzido.

E o momento de encontrar tal organização coincidiu, numa programação intencional do professor,


com a volta do recesso, que interrompeu o período, devido às festas de final de ano. Essa parada,
apesar de ter retardado o desdobrar da disciplina, em alguma medida também auxiliou o trabalho de
composição do exercício cênico. Isso porque, ao voltar à sala de ensaio, todos foram estimulados a
pensar no que havia acontecido de mais significante nas etapas anteriores. O tempo, naquele momen-
to, funcionou como um filtro daquilo que tinha ou não força para perdurar.

Então, no primeiro encontro após as festas, a primeira providência tomada pelo professor foi solicitar
que os alunos, em duplas, desenhassem um momento da disciplina que os marcou, pensando em
expor esse retrato para o restante da turma. Em seguida, pegava-se o desenhado por outra dupla e
criava-se um tableau vivant daquele momento, refletindo sobre qual era a situação proposta e o que se
estava sentindo durante a criação. Como significante da relação do grupo, a maioria das experiências
lembradas diziam respeito aos primeiros dias de trabalho, aos primeiros pensamentos e brincadeiras
com o mundo de Fiote.

Ainda nesse dia de retorno, outra importante decisão foi tomada: a turma foi dividida em subgru-
pos, por áreas de interesse, responsáveis por diferentes elementos constitutivos da cena. Dessa forma,
alguns ficaram responsáveis pela dramaturgia/dramaturgismo; alguns ficaram responsáveis pela en-
cenação; outros, pela direção de arte; alguns ficaram responsáveis pela iluminação; outros, pela sono-
plastia; alguns ficaram responsáveis pela preparação vocal; outros, pela preparação corporal; alguns
decidiram fazer produção e dar apoio aos demais. Todos tiveram a oportunidade de se posicionar,
assim como o professor pôde indicar pessoas-chaves para cada grupo.

Há, também, nessa posição adotada pelo professor, um reflexo da metodologia que defende. David
Hornbrook, um dos muitos professores ingleses que pensaram sobre o ensino de teatro nas escolas
por meio do Drama, defendia que a aula de teatro deveria ensinar nada mais do que teatro. Todas as
aprendizagens outras que surjam durante as aulas, sejam elas científicas ou filosóficas, devem surgir
de forma natural dentro da experiência propriamente teatral, sem que se torne obrigação do teatro
desenvolver essas outras habilidades.

Todo esse conhecimento foi articulado por Luís Reis ao tomar a decisão de dividir a turma. Ele esperava
que, estando os alunos em suas áreas de interesse, eles se engajassem na criação e tivessem uma nova
visão sobre seu papel diante do grupo. Dividir as responsabilidades, além de todo o acréscimo pedagó-
gico que proporcionou, ainda incentivou a percepção de que se tratava de uma nova etapa do processo:
antes, preparávamos o terreno e criávamos episódios aparentemente desconexos; agora, preparamos
uma apresentação e precisamos encontrar uma forma de equilibrar o material que já está disponível.

384
A partir desse momento, as decisões começaram a ser tomadas e a encenação passou a dar passos
mais largos. Em apenas oito encontros, algo deveria ser mostrado ao público – e ninguém gostaria
que fosse algo mediano.

No primeiro dia da etapa final, os representantes de cada subgrupo apresentaram suas ideias iniciais:
brincar cenicamente com o unir ação e narração de diferentes formas; manter as vinte e cinco pessoas
em cena todo o tempo; demarcação de tempos por meio do abrir e fechar do livro; brincar com as
“tralhas” que deixamos num quintal; estabelecer uma iluminação em tons de amarelo, azul e verde;
lustre de ponteiras116; criar as sonoridades processualmente e utilizar a execução da sonoplastia no
palco. No meio dessas contribuições, Analice Croccia, responsável pelo núcleo de dramaturgia, trou-
xe um primeiro roteiro para o exercício cênico.

A união do primeiro roteiro com as propostas trazidas pelo subgrupo de encenação estabeleceu uma
imagem que nortearia a presença cênica do grupo: essas pessoas, no palco, contariam a história de
Fiote, como crianças que brincam de inventar um novo mundo. Assim, elas seriam terreirão, animais,
personagens e coro. Tudo surgiria a partir da imaginação e da vontade dessas crianças de tornar o li-
vro real, transformando em material cênico o impulso espontâneo do faz de conta infantil, percebido
por Peter Slade como child drama117 – conceito utilizado anteriormente no trabalho.

No ensaio seguinte, quando se começou a experimentar sobre a cena central do espetáculo – Fiote
pula a cerca e encontra Seu Messiê e Petit, sendo obrigado a se relacionar com esses personagens que
o apavoram –, um experimento sobre o olhar veio à tona. Para substituir o outro e fazer o mesmo que
ele é preciso mirá-lo, estudá-lo. A brincadeira só acontece de forma fluida e instigante quando todos
estão conectados a ela e por ela se interessam, estejam jogando na cena, estejam jogando no coro.

Para além disso, o olhar do coro sobre a cena principal passou a funcionar, também, como um farol,
que ilumina o ponto pelo qual o espectador deve se interessar. É por meio da atenção, da conexão e do
estímulo à “vez do outro” que a plateia vai, constantemente, sendo convidada a participar, a brincar
junto, ainda que em sua posição privilegiada. Esse convite, quando aceito, tem o poder de fazer com
que o espectador entre em outro tempo: o tempo do jogo – que toda criança sabe não ser medido mais
por minutos, mas por quanto envolvimento se tem com a ação. E esse tempo diferente, como afirma
Desgranges (2012), é fundamental para que o apreciador se conecte com a obra, pois “o ato da leitura
solicita a instauração de um tempo que contrarie a lógica do cotidiano, que abra espaço para outro
modo perceptivo, que nos afaste do conhecido, do habitual, do esperado” (DESGRANGES, 2012, p. 17).

Seis encontros antes da apresentação, ainda havia muito a ser feito. Percebendo essa necessidade e o
pouco tempo que restava – o que impossibilitou, por exemplo, que o grupo decidisse conjuntamente
o roteiro a ser executado –, Luís trouxe uma proposta de sequência cênica: primeiro, o sonho de Fio-
te; depois, o pesadelo de Fiote; a família de Fiote; Fiote pula a cerca e tem medo – com três elencos
distintos –; Messiê empresta a garrafa; e, o final – que ainda não tinha sido encontrado. Havia, ainda,

116. Ponteira é o nome dado ao barbante utilizado durante a brincadeira do pião, para fazê-lo girar. Assim, o lustre foi confeccionado em
cizal, artesanalmente.
117. Traduzido para o português como ‘Jogo Dramático’, o que o colocou, equivocadamente, em um campo metodológico ao qual não
pertence.

385
a gravação de um texto de Eduardo Galeano sendo lido por Júlio – filho de Luís –, que merecia ser
encaixado em algum espaço.

A partir da chegada desse novo roteiro, os quatro ensaios seguintes foram aperfeiçoamentos e experi-
mentações sobre ele – ensaios que sempre permitiam a descoberta de novas soluções cênicas. A turma
ainda não sabia, mas essa viria a ser a metodologia de trabalho empregada durante toda a carreira do
espetáculo: a cada novo ensaio, a cada nova apresentação, algo novo era revelado e incorporado à cena.
Nada seria definitivo, imutável. E essa relação manteve o trabalho vivo e instigante durante dois anos.

Foi por meio desse trabalho que surgiram as cenas mais tocantes do espetáculo, de acordo com as
fichas preenchidas pelo público – da mesma forma que detalhes que não haviam sido bem resolvidos
foram aperfeiçoados e passaram a ter significado relevante para a encenação. No último ensaio, antes
da primeira – e única, até então – apresentação, as últimas cenas foram acrescentadas, ficando defi-
nido que o som do mar seria produzido com bolas de gude sendo arrastadas no chão e que os atores
se transformariam em Fiotes, ao final, contando a primeira vez em que viram o mar enquanto sobem
pela plateia, formando uma “onda de fiotes”. Somente neste momento a turma tomou consciência do
todo que seria a apresentação e o encantamento pela história se renovou.

No dia 26 de fevereiro, finalmente, era chegada a hora de encontrar o público. Mostrar o que foi cria-
do para pessoas alheias ao processo para ter a verdadeira dimensão da potência do que foi descoberto.
Para os alunos-atores e para o professor-encenador, a apresentação foi motivo de grande alegria. O
espírito do jogo estava presente, os participantes estavam envolvidos pela ação, o público foi envolto
pelo mar e o pião girou. Tudo ocorreu da forma esperada.

Fiote se apresentou ao público, nesse cenário, como convite à experiência. Pensando, aqui, a expe-
riência como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (BONDÍA, 2002, p. 21), ou seja,
convite a que o indivíduo se permita ser “algo como um território de passagem, algo como uma
superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algu-
mas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (BONDÍA, 2002, p. 24).

Não sabíamos, até determinado momento, o poder do objeto estético que tínhamos nas mãos. Cuida-
mos dele e o fizemos crescer, porque, antes de qualquer resposta dos espectadores, estávamos felizes
por fazer parte do processo, por estarmos juntos, por termos entrado em contato com uma história
tão delicadamente potente, por criarmos. Estávamos contentes, simplesmente, por subirmos ao palco
e mostrarmos o – todo nosso – Fiote.

Assim, parece que, por mais que muitas dificuldades tenham surgido, a vontade que a turma dispo-
nibilizava para agir enquanto grupo e para dar o máximo de si a fim de que a cena fosse interessante
para quem assistisse garantiu que a experiência caminhasse positivamente. Por mais que as pessoas
tenham personalidades bastante distintas, o elenco funcionava bem em sua unidade, e isso garantia
uma boa dose de confiança e felicidade.

Talvez, mais do que nos aspectos teóricos, resida o “segredo” desse espetáculo: o grupo estava feliz.
Era desafiante e gostoso subir ao palco, uma vez depois da outra. Era sempre uma alegria renovada.

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Eram sempre águas novas. Era sempre uma maré diferente. Maré partilhada, maré de convite a brin-
car, maré de mão estendida ao outro.

REFERÊNCIAS

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista brasileira de educação, n.
19, p. 20-28, jan./abr. 2002.
COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO. Sinopse de ‘O mar de Fiote’. Disponível em: <http://www.cepe.
com.br/lojacepe/index.php/o-mar-de-fiote.html>. Acesso em: 26 out. 2015.
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006.
______. A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo: Hucitec, 2012.
HORNBROOK, David. Education in drama. London: The Falmer Press, 1991.
REIS, Luís. Plano de curso da disciplina Metodologia do ensino do teatro 2, no semestre letivo 2013.2. Documento
primário. 4 páginas. Recife: 2013.
______. E aí, girou? Uma experiência em Pedagogia do Teatro inspirada pelo brinquedo popular do pião. Ras-
cunhos, Uberlândia, v. 1, n. 2, p. 169-180, jul./dez. 2014.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO. Ementa dos componentes curriculares da graduação em Te-
atro/Licenciatura. 28 jun. 2013. Disponível em: <https://www.ufpe.br/proacad/images/cursos_ufpe/teatro_per-
fil_1111.pdf>. Acesso em: 26 out. 2015.
VIDOR, Heloise. Drama e teatralidade: o ensino do teatro na escola. Porto Alegre: Mediação/Edital Elisabete
Anderle, Fundação Catarinense de Cultura, Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, Governo de
Santa Catarina, 2010.

387
Literatura, história e arte:
Os Miseráveis, de Victor Hugo,
em um projeto didático-pedagógico
no ensino médio
Carlos Cleiton Evangelista Gonçalves

INTRODUÇÃO

Na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Bernardino José Batista, situada no município
de Triunfo – Paraíba, foi desenvolvido, no ano de 2014, um projeto intitulado de Por Dentro da His-
tória: Uma Análise Crítica e Interpretativa da Obra Os Miseráveis, de Victor Hugo. Surgiu como uma
oportunidade de enriquecer o estudo de conteúdos já constantes no plano curricular da disciplina de
História, como o Iluminismo, a Revolução Industrial, as Ondas Revolucionárias da Europa do século
XIX, mas principalmente a Revolução Francesa, do século XVIII. Dessa forma, procurou-se promo-
ver o aprofundamento destes conteúdos em um horário extra, com a utilização de diversos recursos
pedagógicos, como gêneros textuais literários e os recursos do tipo audiovisuais, que pudessem en-
dossar o que consta no livro didático. Sua experiência marcante, a notoriedade que sua metodologia
alcançou dentro do espaço escolar e desempenho dos alunos nesse projeto renderam ao professor o
prêmio Mestres da Educação118, concedido pelo Governo da Paraíba.

Em um horário diferente do que estudavam, os alunos estiveram envolvidos em atividades que pu-
deram lhes redirecionar para um olhar mais próximo do contexto histórico em estudo, assuntos de
suma importância para os alunos de segunda série do Ensino Médio, pois trata-se de um importante
pré-requisito para entender os conflitos internacionais do século XX, como o Imperialismo, o Neoco-
lonialismo e os conflitos resultantes deles: as guerras mundiais e a Guerra Fria.

A leitura e análise crítica e interpretativa de Os Miseráveis propiciou uma viagem ao mundo revolu-
cionário da França e da Europa e proporcionou ao alunado uma melhor reflexão sobre os aspectos

118. O prêmio Mestres da Educação é uma iniciativa da Secretaria de Estado da Educação do Governo do Estado da Paraíba, que premia,
anualmente, professores que tiveram práticas pedagógicas exitosas e que demonstraram sucesso no enfrentamento dos desafios de ensino
e aprendizagem dos estudantes em 2014. O professor referido no resumo (e autor deste artigo) foi premiado também em 2015 por um
projeto semelhante, que utilizou a obra Mary Poppins, de Pamela L. Travers, como referencial para contextualização histórica das Guerras
Mundiais do século XX.

388
sociais, culturais, políticos, religiosos e econômicos que fizeram deflagrar o rompimento com o mo-
delo político anterior e analisar as mudanças e as continuidades históricas no que se refere também à
vida simples e privada.

No ambiente escolar, um estudo aprofundado dos conteúdos previstos na grade curricular é sempre
um grande desafio. No que tange ao componente curricular de História esse desafio é rotineiro, pois
um estudo efetivo que possa contemplar outras formas de conhecer o contexto do que está em expo-
sição requer tempo para a aplicação de uma metodologia mais bem elaborada, com uso de toda sorte
de recursos que facilitem uma boa compreensão por parte dos alunos.

Uma metodologia rica e dinâmica que possibilite a aprendizagem de forma mais concreta encontra
uma barreira no tempo destinado às aulas. Um filme, por exemplo, que se configure como longa-
-metragem, que tenha cerca de duas horas de duração e que seja essencial para o entendimento de
um determinado fato histórico, nem sempre é possível ser exibido integralmente, mesmo que as
aulas sejam geminadas. Se levarmos em conta o tempo destinado para montagem do equipamen-
to de mídia e para as intervenções que são necessárias ao decorrer da exibição, veremos o quão
difícil é usar o filme como recurso pedagógico dentro da limitação do tempo da aula. Porém, é
indiscutível que recursos pedagógicos, principalmente os do tipo audiovisuais, ajudam bastante na
compreensão da temática.

O lançamento de debates e o estímulo à produção textual se tronaram, também, pontos altos dessa
proposta. O fator tempo foi importante: as atividades propostas fluíram naturalmente em torno do
desenvolvimento de atividades extra-aulas, nas quais os alunos estiveram envolvidos num redirecio-
namento para um olhar mais próximo do contexto histórico dos conteúdos em pauta, mas em outro
horário que não o cronometrado do turno em que estudavam.

Neste artigo conheceremos melhor este projeto de aproximação entre Literatura e História. Na pri-
meira parte deste trabalho, apresenta-se a fundamentação teórica que embasou o projeto, na premissa
de que o estudo de obras literárias pode ajudar os alunos a entenderem os costumes contemporâneos
ao período em estudo e conhecerem de forma mais aprofundada os aspectos sociais e culturais pre-
sentes no contexto do que está sendo visto na sala de aula. Na segunda parte, trataremos dos dados
empíricos, na busca de respaldos que possam dar garantias de que a metodologia usada no projeto
pode ser uma alternativa confiável para promover efetivamente o aumento do conhecimento e do
rendimento dos alunos nas aulas de História, através do estudo de obras literárias.

1. OS MISERÁVEIS, DE VICTOR HUGO, E SUA RELEVÂNCIA PARA A CONTEXTUALIZAÇÃO


DOS ACONTECIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS DA EUROPA, NOS SÉCULOS XVIII E XIX.

Contextualizar em História é penetrar nos aspectos mais sutis da época histórica em estudo. É se
atentar para os costumes, para as condições sociais, históricas, políticas e culturais que influenciaram
diretamente o fato ou fenômeno histórico sucedido. É investigar o que está oculto. Abster-se das
limitações de um texto específico e mergulhar em outras leituras, em outras opiniões, encher-se de
conhecimentos para lançar suas próprias ponderações e tornar-se apto para fazer o contraponto com
a atualidade, comparar, argumentar, criticar, concluir, agir...

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A contextualização do que se estuda em História é fundamental. Assim, o aluno consegue fazer uma
relação entre o período em estudo e o que ele está vivenciando no seu dia a dia. Mas o fato é que,
nas escolas, a limitação ao livro didático é uma realidade. Além das dificuldades ainda existentes que
giram em torno do uso das novas tecnologias para enriquecer o estudo, o curto tempo da aula é um
notável agravante. E fazer com que os alunos aprofundem o assunto fora do tempo e do espaço escolar
é também uma ação delicada, que geralmente não é bem recebida pelos educandos, que acabam por
fazê-lo de forma superficial e por uma mera obrigação.

FONSECA (2003) propõe uma reflexão sobre a história enquanto disciplina e afirma que ela tem o pa-
pel central de formar a consciência histórica dos alunos, possibilitando a construção de identidades,
a elucidação do vivido, a intervenção social e praxes individual e coletiva:

[...] o debate sobre o significado de ensinar história processa-se, sempre, no interior de lutas políticas
e culturais. Logo, discutindo, procuramos desvendar a lógica das relações que envolvem tanto a pro-
dução quanto a difusão do conhecimento, apontando limites, possibilidades, desejos e necessidades
historicamente construídas. (FONSECA, 2003, p. 89).

O professor de História não pode abrir mão de um plano de aula que contemple leituras e atividades
que possam ir além do livro didático. Os próprios livros didáticos trazem várias sugestões de livros,
filmes, documentários, sites e atividades extras que podem engrandecer a discussão e levar a um co-
nhecimento mais amplo e diversificado.

Livros literários, que foram escritos contemporaneamente ao conteúdo em estudo e que possam tra-
zer elementos da realidade social à época, são sempre bem-vindos para complementar a edificação
do conhecimento histórico. Os Miseráveis, do autor francês Victor Hugo119,baluarte da escola literária
romântica francesa, por exemplo, é a pura descrição da vida social, cultural e político-revolucionária
de um período importantíssimo para ser bem compreendido pelos alunos em formação.

Na adaptação de Os Miseráveis para a coleção Literatura em Minha Casa, da editora FTD, traduzida
e adaptada por Walcyr Carrasco, e distribuída pelo FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação – para as escolas públicas do Brasil, é possível ler o seguinte comentário sobre Victor Hugo:

[...] nasceu em 26 de fevereiro de 1802 e faleceu em 1885, na França. É considerado o principal nome
do romantismo francês, e escreveu muitos poemas e romances lembrados até hoje. Entre eles, O Cor-
cunda de Notre Dame e Os Trabalhadores do Mar. A obra de Victor Hugo supera seu tempo. Retrata
com profundidade a condição humana e todos os níveis da sociedade, dos nobres aos excluídos. Seus
personagens possuem vida própria, pois são capazes de denunciar a miséria, a falta de justiça e a
necessidade de construir um mundo melhor. (HUGO, 2008, p. 7).

119. Victor Hugo nasceu em Besançon, no dia 26 de fevereiro de 1802, tendo falecido em 22 de maio de 1885, na cidade de Paris, na
França. Foi um escritor novelista e teve um trabalho social de caráter ativista pelos direitos humanos (GASPAR, 1997), trazendo, em seu
principal romance, Os Miseráveis, a sua própria filosofia política, (LOUREIRO, 1997). Viveu em um período em que a sociedade francesa
se encontrava em plena reestruturação de umas das maiores revoluções da história, com vai-e-vem de inúmeras outras pequenas revoluções
localizadas, patrocinadas pelas insatisfações com os modelos de governos constantemente alterados, frágeis e instáveis. E assim, utilizando
sua própria história cotidiana, Hugo, em suas escritas retrata a realidade social e política de um século de transições.

390
Os Miseráveis é um importante ponto de partida para se chegar A contextualização histórica da Re-
volução Francesa. O livro, os personagens e os elementos históricos que estão presentes na obra são
ricos pontos para serem discutidos de forma abrangente.

Um dos aspectos mais importantes dessa obra em particular para o estudo da Revolução Francesa
é o fato de que o autor viveu em meio a essa realidade revolucionária e foi contemporâneo aos
desdobramentos políticos que margeavam a sociedade miserável daquele lugar e dava suporte para
constantes insatisfações e motins que partiam do próprio povo, como nunca visto antes na história
da humanidade.

Está ouvindo as pessoas cantarem?


Cantarem a música dos homens furiosos?
É a música de um povo
Que não será escravo novamente
Quando a batida de seu coração
Ecoa nas batidas dos tambores
Há uma vida prestes a começar
Quando o amanhã chegar!”
(SCHONBERG, 2013)

Inspirando filmes, series, peças teatrais e musicais no mundo inteiro, “Os Miseráveis” é, além de uma
obra importantíssima do ponto de vista de documentação histórica (LOUREIRO, 2010), uma nar-
rativa interessante e envolvente para ser trabalhada com um público que, em sua maioria, não apre-
cia textos didáticos ou acadêmicos sobre um assunto. Essa obra literária, especificamente, desperta
sentimentos e um senso de criticidade quase que automática acerca dos sistemas sociais, políticos,
econômicos e culturais, que tiveram sua atual configuração forjada a partir da Revolução Francesa,
ponto chave da obra de Victor Hugo.

2. LITERATURA NA ESCOLA: O PROJETO DE ANÁLISE CRÍTICA E INTERPRETATIVA


DE UMA OBRA LITERÁRIA COM ALUNOS DO ENSINO MÉDIO.

No dia 15 de julho de 2014, numa das dependências da escola já citada neste trabalho, lançava-se um
projeto onde alunos, direção escolar e demais professores assistiram à apresentação dos pontos mais
importantes, como: seus objetivos e metodologias que, resumidamente, tratavam-se de uma nova for-
ma de aprendizagem dos conteúdos de História, a partir da utilização de um recurso pedagógico até
então incomum na escola para tal disciplina: um livro literário, que serviria de base para um processo
de estudo baseado em sua contextualização.

No dia 29 de julho, aconteceu a primeira oficina. Esta foi dedicada para estudo da temática. Foram
apresentados textos, imagens e vídeos sobre a Revolução Francesa e as Ondas Revolucionárias da
Europa que ajudaram, significativamente, a uma melhor compreensão do conteúdo, que já era conhe-
cido, pois já havia sido exposto em sala de aula. Muitos mostraram seus conhecimentos, colocando
a todo instante seus posicionamentos em relação ao movimento revolucionário, seus antecedentes,
rumos e consequências.

391
Nesta mesma oficina, também foram colocados alguns aspectos gerais da obra Os Miseráveis, inje-
tando um pouco de estímulo pela leitura que deveria ser feita como lição de casa para discussão na
próxima oficina.

Foi dado aos alunos participantes do projeto um prazo de quinze dias para que o livro fosse lido. E
assim, a oficina do dia doze de agosto foi destinada para a análise crítica e interpretativa do livro.
Houve relatos espontâneos sobre o que acharam dele e os depoimentos foram surpreendentes. Muitos
acharam a obra fantástica e foi possível ouvir alunos dizendo que gostariam de ler novamente ou ler
a obra original, já que leram uma obra adaptada e, portanto, resumida.

Falaram sobre o que mais gostaram. Mostraram-se compassivos pelo sofrimento dos personagens e
arriscaram-se a dar palpites sobre rumos diferentes que a história ou que alguns personagens pode-
riam ter tido.

Após um momento de espontaneidade debatendo sobre a história, o professor interviu nas discussões
para um direcionamento que pudesse levá-los ao entendimento pleno da obra. Foram resgatados
alguns dos acontecimentos relatados no livro e os alunos foram surpreendidos com o pedido de iden-
tificação de aspectos sociais correspondentes à época em que a história se passou. E assim, os alunos
foram fazendo a relação entre a história do livro e a época das revoluções. Os itens abaixo exemplifi-
cam o tipo de relação feita pelos próprios alunos com os personagens e os aspectos sociais, políticos,
econômico e culturais do período:

• Jean Valjean e a miséria social, o sofrimento, a injustiça;


• Fantine e a ética, o preconceito, o machismo, a intolerância;
• Javert e a rigorosidade da lei, os abusos de autoridade;
• Cosette e a exploração do trabalho infantil, a maturidade precoce;
• Gavroche e a mendicância, o abandono familiar, a exclusão social;
• Marius e o Iluminismo, a contestação ao sistema, a revolta;
• Os Thenardier e a ação clandestina;
• O Bispo e a força da religião, a liberdade religiosa, o humanismo.

No dia 19 de agosto, aconteceu a oficina de contextualização histórica. Na oportunidade, fez-se uma


relação dos valores éticos, estéticos, sociais, culturais, políticos, econômicos e religiosos no período
com esses mesmos valores na atualidade. A discussão foi muito interessante. O vídeo Ilha das Flores120
ajudou a impulsionar a discussão sobre a questão da miséria social, ponto alto da obra em estudo.
Os alunos foram levados a refletir o porquê das desigualdades sociais e quais seus próprios níveis de
intolerância e preconceito com quem se configura pertencente a um grupo de minorias: mulheres,
negros, índios, homossexuais, sem-terras e sem-tetos.

120. É um filme de curta-metragem brasileiro, do gênero documentário, escrito e dirigido pelo cineasta Jorge Furtado em1989, com produ-
ção da Casa de Cinema de Porto Alegre. O filme foi realizado com o apoio de Kodak do Brasil, Curt-Alex Laboratórios e Álamo Estúdios
de Som e mostra como a economia gera relações desiguais entre os seres humanos.

392
No dia 26 de agosto, os alunos participantes do projeto estiveram diante de um momento muito
esperado: a exibição do filme musical Os Miseráveis, de Tom Hooper121.Durante a exibição, pôde-se
observar o quão atentos todos os alunos estavam e o quanto a grande produção cinematográfica, que é
adaptação desse musical pôde despertar risos e lágrimas nos expectadores. E, ao final, todos estavam
extasiados de satisfação. Declararam ter aprovado o filme e fizeram algumas considerações a respeito
da adaptação da história.

O próximo passo do projeto foi preparar os alunos para exporem, de forma mais técnica, os seus co-
nhecimentos a respeito de tudo o que tinham absorvido até ali. E isso se daria de forma mais prática,
através da produção de uma resenha e da apresentação de seminários, que aconteceriam futuramente.
Nesse sentido, a oficina do dia dois de setembro foi dedicada a uma orientação metodológica acerca
da produção de uma resenha. Os alunos deveriam escrever um texto pontuando relações entre a obra
literária analisada e os aspectos históricos nela embutidos, pontuando com a realidade social da época
e a atual. Foi dado um prazo de quinze dias para que entregassem os trabalhos.

Os resultados foram surpreendentes. Além do domínio do conteúdo em si, a maioria dos alunos
conseguiram se mostrar num nível de criticidade bastante elevado, dando conta de julgar aspectos
sociais de forma criativa, mas com seriedade e respeito. Dessa forma, atinge-se o objetivo primordial
do projeto, que era desperta a análise não apenas interpretativa de um texto, mas, principalmente, a
análise crítica.

O seminário sobre os personagens e o que eles representavam no contexto dos acontecimentos his-
tóricos aconteceram no dia 30 de setembro, duas semanas depois do dia em que as resenhas foram
entregues e em que os grupos foram divididos para preparem suas apresentações sobre seus persona-
gens e a temática que eles representavam.

A apresentação foi feita para toda a escola e de forma muito produtiva, onde alunos de outras turmas
que não estavam participando do projeto puderam assisti-lo e conhecer melhor a obra e toda a con-
textualização que ela propõe. As exposições sobre personagens, enredo, elementos históricos foram
feitas de forma muito responsável e segura, permitindo que aqueles que não leram ou que não assisti-
ram ao filme pudessem compreender perfeitamente do que se tratava e, o melhor, despertando neles
a vontade de ler o livro e conhecer melhor a história.

A última oficina foi de orientação para a produção e apresentação de uma fotonovela baseada na obra
lida, analisada e já bem trabalhada pelos alunos. Nessa oficina, que aconteceu no dia 07 de outubro, os
alunos se reuniram em quatro equipes para adaptarem a história para uma novela, que seria contada
a partir de fotos que deveriam ser tiradas de câmeras fotográficas simples, como as de celular. Cada
equipe ficou com uma parte da obra e cada parte contendo cinco fotografias. Dessa forma a história
d’Os Miseráveis foi resumida em vinte fotografias, que continham imagens dos alunos caracterizados
dos personagens e com legendas embaixo que descreviam as respectivas cenas.

121. Distribuído pela Universal Pictures (2012), o longa-metragem, com duração de duas horas e vinte minutos, é uma adaptação do fa-
moso musical francês, de 1980, composto por Claude-Michel Schönberg. Para que o filme pudesse ser assistido numa tela grande e num
volume alto que não pudesse atrapalhar as outras turmas, ele foi exibido no Centro Cultural Francisca Fernandes Claudino, no centro da
cidade, onde os alunos puderam se acomodar e assistir ao filme com conforto e com áudio e vídeo de qualidade.

393
A produção para as fotos, as legendas e o agrupamento delas foi de total responsabilidade dos pró-
prios alunos. A escola incumbiu-se de providenciar a revelação. E no dia 28 de outubro, a fotonovela
foi exibida na feira cultural anual da escola, momento em que todos os professores apresentaram seus
projetos desenvolvidos durante o ano letivo. O trabalho dos alunos participantes desse projeto foi
muito apreciado e muito elogiado por toda a comunidade escolar.

3. ESCOLA E PROJETO: OS RESULTADOS INTERNOS

Em relação ao desempenho dos alunos participantes, pôde-se observar uma progressiva melhora
nas notas escolares, principalmente na disciplina de História. Uma análise das notas do terceiro e
quarto bimestres nesta disciplina, especificamente, mostraram uma progressiva melhora. Os alunos
das turmas participantes comprovaram o aumento no rendimento escolar, bem como na frequência
escolar. Estes dados estão constantes no relatório de execução do projeto, na parte de resultados finais,
arquivado na escola em que o mesmo foi realizado.

Na parte de resultados finais pode-se apreciar, também, depoimentos de professores, de alunos e de


membros da direção escolar. Todos com um tom bastante positivo, como pode-se observar no depoi-
mento da professora Claudiana Maria Alves Bezerra122:

Como ministrante da Disciplina de Literatura e Língua Portuguesa, sei perfeitamente da necessidade


que existe em promover essa contextualização da obra com o período histórico, não só do tempo e
espaço em que a história se passa, mas do tempo e espaço que vivemos atualmente. A maioria dos
alunos participantes do projeto é minha clientela também. Pude ajudá-los com a revisão das resenhas
críticas que lhes foram solicitadas, que por sinal ficaram muito boas. Pude também observar o entu-
siasmo deles com o que estavam vivenciando o projeto.

A diretora da Instituição, Maria Irivan Alves Gualberto123, comentou também sobre o projeto e seu
depoimento também consta no relatório de execução do mesmo:

Estive presente ao lançamento do projeto do professor Carlos Cleiton e acompanhei de perto algu-
mas das oficinas de execução do mesmo. Só tenho a dizer que a iniciativa foi muito boa e que gerou
muita satisfação nos alunos, pelo que pude perceber. O projeto está de parabéns. Foi notável o esforço
que o professor teve para o sucesso dele, principalmente porque as oficinas aconteciam num horário
em que ele não dava aulas na escola, não tinha obrigação de estar lá. Mostrou compromisso com a
educação e com a escola em que trabalha. Que sirva de exemplo para os demais profissionais e que
os alunos possam tirar bom proveito de todo o conhecimento adquirido.

No tocante ao que os alunos acharam do projeto, os seus depoimentos também constam anexados
aos resultados finais do relatório de execução. Natália Gonçalves dos Santos, do 2º Ano “A”, disse que
“A gente ficava com muita ansiedade pela próxima oficina. Adorei ler e conhecer a história de Os
Miseráveis e o filme foi fantástico”. Manoel Alves Neto, do 3º Ano “C”, enfatizou o estímulo que foi

122. Tem Licenciatura em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e é professora de Literatura e Língua Portuguesa
nas turmas do Ensino Médio, na escola em que o projeto sobre o qual trata este artigo foi realizado.
123. É pedagoga pela Universidade federal da Paraíba (UFPB) e é diretora da Instituição em que o projeto foi realizado desde o ano de 2012.

394
dado pelo professor para a leitura de textos literários, os quais ele próprio já lê assiduamente, mas os
colegas, até então, não.

Thaís Ewelin Cândido, da turma do 3º Ano “A”, fez um argumento forte sobre a quebra de preconcei-
tos com o estudo feito a partir de outras fontes que não (somente) o livro didático:

De início eu fiquei muito receosa de participar porque tinha de ler um livro e eu imaginei que seria
um livro ruim de se ler, pois era um livro que se passava durante a Revolução Francesa, então eu
pensei que seria uma história chata, mas me enganei. É uma história linda, de amor e superação.
Amei os personagens e aprendi muito sobre a revolução lendo o livro. E o filme então? Esse nem
se fala. Ótimo. Só tenho a agradecer ao professor Carlos Cleiton por ter tido a iniciativa do projeto.
Infelizmente estou concluindo este ano, mas espero que o professor possa continuar com esse tipo de
projeto para mais alunos terem a oportunidade de aprender mais e mais.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Projeto se desenvolveu superando todas as expectativas possíveis. Foi um sucesso! As oficinas que
aconteciam num horário extra às aulas não se constituíram em um empecilho. Boa parte dos alunos
que era alvo desse projeto foi atendida. E daqueles que se cadastraram, uma grande porcentagem
participou efetivamente das discussões e das produções que lhes foram solicitadas.

A escola se faz dessa forma: procurando mecanismos que possam atender da forma mais dinâmica
possível a sua clientela, dando-lhe a oportunidade de ingressar no mundo do conhecimento, obtendo
experiências enriquecedoras para sua vida escolar, cidadã e profissional.

O Projeto desenvolvido possibilitou o aprofundamento do período histórico em questão, enrique-
ceu a dinâmica de ensino-aprendizagem e elevou o grau de conhecimento dos alunos. Todos os
objetivos foram, com certeza, alcançados. Espera-se ter o mesmo resultado, ou melhor ainda, na
segunda edição deste projeto, em que será selecionado um outro período histórico e uma outra
obra literária para ser realizado, novamente, esse trabalho de contextualização, que se mostrou
um grande sucesso dentro da escola e que proporcionou experiências marcantes que os alunos vão
levar para a vida toda.

REFERÊNCIAS

CASTOLDI, R.; POLINARSKI, C. A. A utilização de recursos didático-pedagógicos na motivação da aprendi-


zagem. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE ENSINO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. 1., 2009, Ponta Grossa – PR.
Anais... Ponta Grossa: UTFPR, 2009, p. 684-692. Disponível em: <http://atividadeparaeducacaoespecial.com/
wp-content/uploa d/2014/09/recursos-didatico-pedag%C3%B3gicos.pdf >. Acesso em: 05 fev. 2015.
EIZIRIK, M. F. (Re) pensando a Representação de Escola: um olhar epistemológico. In: TEVES, N. A.; RAN-
GEL, M. (Org.). Representação social e educação: temas e enfoques contemporâneos de pesquisa. Campinas:
Papirus, 1999.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História: experiências, reflexões e aprendizados.
Coleção Magistério: formação e trabalho pedagógico. Campinas – SP: Papirus, 2003.

395
FURTADO, J. Ilha das Flores. [Curta-metragem]. Produção de Nora Goulart. Porto Alegre, Casa de Cinema,
1989. Vídeo, 13:07 min. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=e7sD6mdXUyg >. Acesso em: 28
abr. 2016.
GASPAR, L. Victor Hugo – Biografia. Truca, entre 1997 e 2011. Disponível em: <http://www.truca.pt/ouro/
biografias1/victor_hugo.html>. Acesso em: 09 mai. 2015.
HUGO, Victor. Os Miseráveis. Coleção Literatura em Minha Casa. Adaptação de Walcyr Carrasco. São Paulo:
FTD, 2008.
______. Os Miseráveis. Lisboa: Editorial Minerva, 1962.
ILHA das Flores. Direção e produção de Jorge Furtado. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ilha_das_
Flores_%28curta-metragem%29> Acesso em: 29 abr. 2014.
LOUREIRO, M. França celebra 200 anos do nascimento de Victor Hugo. BBC Brasil.com, 27 fev. 2012. Dispo-
nível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/cultura/020226_victorhugobg. shtml>. Acesso em: 29 mai. 2014.
SCHONBERG, Claude-Michel. Do you hear the people sing? In: Les Misérables. Hollywood: universal, 2013. 1
CD.

396
Múltiplos olhares sobre o passado:
uma experiência de leituras de
A mameluca, de Albert Eckhout,
em Teresina, Piauí, Brasil
Zozilena de Fatima Fróz Costa/ Iris Victoria Montalvan Shica/
Erika Fernanda Pereira da Silva

INTRODUÇÃO

Na primeira metade do século XVII, especificamente em 1637, Pernambuco e Brasil foram presen-
teados pelas obras de dois artistas holandeses: Albert Eckhout e Frans Post, da corte de Maurício de
Nassau. Este primeiro artista produziu, entre outras obras, um grupo de oito grandes telas de casais,
homens e mulheres, conseguindo estabelecer uma tipologia sobre os habitantes do Brasil: Homem
Negro, Mulher Negra, Homem Mulato, Mulher Mameluca, Homem Tupi (1646) Mulher Tupi (1641),
Homem Tapuia (1641), e Mulher Tapuia (1641). Ressalta-se, entretanto, que é objeto desse artigo a
pintura a Mameluca.

Embora pouco se conheça sobre Albert Eckhout a literatura informa que foi sobrinho do pintor
Ghehtert Roeleffs, residindo em Amsterdã e trabalhou como ilustrador, quando foi convidado por
Nassau para integrar sua expedição ao nordeste brasileiro. Permaneceu no Brasil no período de 1637-
1644, na cidade de Recife, na categoria de membro de um ativo grupo de estudiosos da comitiva de
Nassau. Seu papel era desenvolver um trabalho de valor documental com desenhos e telas essencial-
mente sobre frutas e flores, bem como de animais e índios, trabalho que continuou em Gröningen,
mesmo após sua volta à Holanda, sob o patrocínio de Nassau.

Após a criação de suas grandes telas, mudou-se para Amersfoort, cidade onde batizou seus três filhos.
Morou em Sachsen, Dresden (1653-1663), contratado por João Jorge II da Saxônia como pintor de
sua corte, mas, vitimado pela malária adquirida em sua estada na América, voltou para sua cidade
natal, onde morreu no ano seguinte. Oito de seus desenhos originais foram presenteados (1679) por
Nassau ao rei Luís XIV, da França, que, mais tarde (1687-1730), foram levados para a manufatura de
tapeçarias dos Gobelins, que os reproduziu na série peças denominadas de “Les anciennes Indes”, que
se tornaram muito populares no século seguinte.

397
Como pintor, sua obra totalizou oito representações, em tamanho natural, de habitantes locais e uma
série de doze naturezas-mortas com frutas tropicais, sendo que essa coleção pertence ao Museu Na-
cional de Arte da Dinamarca, presente de Maurício de Nassau a seu primo Frederico III da Dinamar-
ca. D. Pedro II, imperador do Brasil, encomendou cópias em escala menor de seus quadros, que se
encontram no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. Albert Eckhout foi pintor
e desenhista de gênero (tipos e costumes), animalista, naturalista, documentador e paisagista de ex-
cepcional domínio do desenho do modelo vivo e de inquestionável linguagem estilística individual
ainda mesmo em face da limitação, da dificuldade de sua pintura de caráter realista, excessivamente
verista, totalmente implicada na descrição da natureza exótica, que era o novo mundo.

Vale lembrar que a pintura não é um registro fiel da realidade, mas é uma forma de criar realidades
sobre a óptica de outrem. A aproximação do mundo visível resulta do inteligível e do que seja sensível,
e que um modo especial de construção de uma imagem fiel ao natural é uma conquista, um processo
de elaboração cognitiva que precisou de alguns séculos para que os artistas conseguissem apreender,
selecionando, e, criando sistemas de enquadramento, como por exemplo, a perspectiva renascentista.
É importante esclarecer que copiar do natural já era um costume difundido entre os artistas da Re-
nascença e até recomendado nos manuais e tratados de arte, mas este estudo do natural deveria passar
por uma seleção, pela sensibilidade do artista para superar as imperfeições da natureza.

A Renascença estimulou a pintar o que se via, criando as ferramentas para que o artista pudesse
representar o mundo natural, tais como a perspectiva baseada na Teoria da Cor ou na matemática.
Entretanto, as imagens revelavam que as convenções ainda se impunham a essa tentativa de observa-
ção do natural. Os artistas, ainda que sofisticassem suas imagens, como no caso do holandês Eckhout,
acabaram por aplicar fórmulas aprendidas em detrimento de se ater ao natural. Com as imagens
dos ameríndios isto se torna evidente. O artista encontra nas convenções da arte e na tradição as
ferramentas para estabelecer coordenadas familiares, por meio dos esquemas. Sem eles, não poderia
pintar, desenhar ou gravar; sem códigos ganhos com sua experiência, não poderia representar o que
está diante de seus olhos. Isso sucumbiria às formas e às cores.

As pinturas de Eckhout estabelecem várias novidades que mudaram os esquemas de representação até
esse momento. O gosto pelo descritivo, já formava parte da tradição artística da Europa Setentrional.
À primeira vista, as suas enormes telas se distanciam do ideal de beleza clássico, isto é, os esquemas
corporais de suas pinturas parecem distanciar-se do ideal clássico. Como é sabido o interesse pela exa-
tidão descritiva levou os artistas da Renascença à preocupação de trabalhar objetos, plantas, animais
e pessoas do natural.

Eckhout vai inaugurar uma época em que a imagem mais descritiva e naturalista vai se impor nos
registros dos viajantes. Ademais, não é possível separar o que se “vê” do que se “sabe” (experiência).
A pintura holandesa de Eckhout é prova disso; ainda que o artista possua técnicas apuradas, como na
de velatura ou veladura, o uso da perspectiva, o domínio das cores, a habilidade nos detalhes, ferra-
mentas para representar o mundo natural, está evidente que “redutos de convenções” – parafraseando
Gombrich – faziam com que os artistas aplicassem fórmulas aprendidas ao invés de se apoiarem com-
pletamente no natural. As pinturas modificaram os esquemas de representação, promovendo as bases
dos registros dos viajantes depois do século XVII e XIX, dos retratos etnográficos.

398
No sentido de tentar categorizar a pintura de Albert Eckhout, podemos refletir que pertence à pin-
tura de gênero, que “faz referência às representações da vida cotidiana, do mundo do trabalho e dos
espaços domésticos, que tomaram a pintura holandesa do século XVII”. Essa tipologia se encontra
inserida em pleno florescimento do barroco na Europa católica, evidenciada nos Países Baixos, sobre-
tudo, notadamente, na Holandesa protestante. Razão pela qual se caracteriza pela presença de estilo
sóbrio, realista, cuja narrativa enuncia cenas rotineiras, relativas aos temas da vida diária, como ho-
mens dedicados aos seus ofícios, bem como mulheres no interior da casa e de festas comunitárias, no
campo e na cidade. Nas imagens, apresentam riqueza de detalhes e apuro na técnica com a intenção
de registrar a realidade.

Por fim, procuramos ancorar nas reflexões da Barbosa (2005, p.99): “arte na educação, como expres-
são pessoal de como a cultura é um importante instrumento para a identificação cultural e o desen-
volvimento individual”.

1. O PRIMEIRO OLHAR SOBRE A MAMELUCA, DE ALBERT ECKHOUT: UMA DIALÉTICA SUBJETIVA

As bolsistas do PIBID de Artes Visuais, do curso de Licenciatura em Artes Visuais do Centro de Ciên-
cias da Educação da UFPI (Universidade Federal do Piauí), levaram a proposta de leituras da pintura
A Mameluca de Albert Eckhout para os alunos do 70 ano da Unidade Escolar Maria Melo, situada na
zona leste de Teresina, Piauí. Diante do exposto, procurando articular a seguinte problemática: qual
a importância da aplicação da Abordagem triangular no desenvolvimento das atividades artísticas do
PIBID de Artes Visuais na escola Maria Melo?

Essa experiência estética teve como metodologia em situação de prática educativa a Abordagem
Triangular. Desse modo, a experiência se deu em duas importantes fases: na primeira, foi apresentada
a pintura em slide de Albert Eckhout, e na segunda, foi apresentada uma performance, cujo persona-
gem principal foi uma estudante da escola. A partir daí, instalou-se na sala de aula um jogo figurativo,
no sentido de contextualizar a obra, e, desde então, foram surgindo várias questões pelos estudantes
dessa instituição: Quem era Albert Eckhout? Onde e em que época ele viveu? O que Albert Eckhout
quis nos transmitir com essa obra? Porque uma figura de mulher na obra? E as outras obras desse
artista, quais são e onde encontramo-las?

Os estudantes logo responderam que Albert Eckhout era um pintor, desenhista, artista plástico e
botânico holandês, nascido na cidade de Groningen, Holanda, nos Países Baixos no ano de 1610 e
morreu em 1666 na mesma cidade. Esse pintor veio retratar o Brasil para os europeus junto com
outro pintor Frans Post, quando Johan Maurits, conde de Nassau-Siegen, o Mauricio de Nassau,
governava Pernambuco no sec. XVII. Como haviam realizado pesquisa sobre Barroco, prossegui-
ram contextualizar a obra em estudo. Um outro aluno, muito observador, se pronunciou: “Então,
professora, a pintura substituía a máquina fotográfica, porque naquele tempo não tinha máquina,
não é? Por isso tinha que ser muito real”. Ponderou o aluno. “Isso mesmo!” Respondeu a monitora.
E continuou: “A pintura retratava uma cena com muitos detalhes, porque ele recebeu a encomenda
de Mauricio de Nassau para representar o Brasil com suas paisagens, sua gente, sua flora e sua fau-
na”. Completou a bolsista do programa de docência.

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Então, prosseguindo, ainda: O que veem na cena? Uma mulher, respondeu outro. Depois veio outra
observação: mas também tem um animal, um preá. Mas, porque ela está vestida numa camisola? Que
frutas ela carrega? A partir daí, foram surgindo muitas questões durante a aula. Eram questões que se
referiam a diferentes aspectos em relação à forma e ao conteúdo da pintura apresentada.

Dando continuidade à dialética do cotidiano com a leitura da obra, um outro estudante muito curioso
chamou a atenção sobre a paisagem dizendo que tinha caminhos, e, mais ainda, questionou porque
havia esses caminhos, pois, se tratava de um retrato. Contudo, um educando logo se apressou a res-
ponder: “Ora devia ser porque essa paisagem era da terra natal do Eckhout, não acham?” Seria então
de Groningen, Países Baixos, sua terra natal ou de Olinda?. Diante de tantas questões foram apresen-
tadas outras obras do mesmo artista e de Frans Post, artista contemporâneo do artista estudado. Sur-
gindo, assim, algumas relações por analogias. Aspectos formais, por exemplo: a paisagem repartida
em linhas que levaram o olhar para fundo da obra por meio dos caminhos em zig-zag. Foi apresen-
tada a obra de Frans Post, o Panorama Brasileiro, datada de 1652, Paisagem com Tamanduá, de 1669,
dentre outras que demonstram a utilização recorrente do esquema compositivo em zig-zag. Para
aumentar o espaço de reflexão e discussão, foi apresentada a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, datada
de 1503-1504. Todos conheciam a pintura e seu autor, mas logo surgiram os questionamentos: quais
as semelhanças e diferenças na obra? A turma respondeu em coro: ambas são retratos, ambos têm pai-
sagem no fundo, mas são de tempos diferentes. São de estilos diferentes: a Mona Lisa é renascentista e
a Mameluca barroca, por quê? Mas, a primeira é representada apenas ao meio, vocabulário bem sim-
ples num código bem infantil, a de Eckhout inteiro, é por causa do estilo? Não é só isso, vamos então
proceder a uma leitura das linhas, do espaço/tempo, cor, textura, estamos nos referindo aos elementos
formais da composição, respondeu a monitora do programa. Vamos então pensar que Leonardo Da
Vinci começou a desenhar o retrato de mulher, da Gioconda, e, primeiramente desenhou um triân-
gulo bem centralizado e sobre ele inseriu a figura feminina. Ora, é sabido que o triângulo é a figura
por excelência do equilíbrio, da solidez, eleita pelos Renascentistas, que voltaram seus olhares, por
sua vez, para a obra dos clássicos, gregos e romanos, por essa razão são denominados renascentistas.
Contudo, a segunda obra, a Mameluca, também se encontra inserida numa triangulação que domina
o primeiro plano, o que faz a imagem feminina se encontrar em primeiro plano também. A compo-
sição se encontra subdivida em planos por meios da dominância de linhas horizontais, formando o
primeiro plano, que corresponde ao solo e a outra que forma a linha do horizonte em contraste com
a linha vertical insinuada pelo dominante cajueiro, situado à esquerda da composição. Portanto, ape-
sar dos elementos formais recorrentes, a pintura de Eckhout é típica do estilo barroco, da pintura de
gênero. Nesse momento, é despertada a atenção da turma na qual estávamos realizando uma análise
formal. Em relação às pinturas, como eram feitas? Esse educando estava se referindo à materialidade
da obra. Outra semelhança, ambas eram pintadas na técnica de óleo sobre tela, por meio de velaturas
ou veladuras. O que significa isso?

Bem, os pintores antigos costumavam pintar camada sobre camada bem finas misturando o verniz
com a tinta, tornando as tintas muitos finas, ralas. Essa materialidade era distribuída com pinceis de
cerdas muito delicadas que não permitiam ver as pinceladas do artista.

Voltando à questão, sendo ela: por que têm características formais semelhantes se as pinturas citadas
pertencem a estilos diferentes? Pergunta, sem dúvida, muito bem articulada. Foi então que se procu-

400
rou ancorar na Historia da Arte no Brasil e então foi explicado que o Barroco brasileiro é diferente
do europeu, pois o Brasil colonial ainda estava vivendo o gótico tardio e por essa razão seguia as
características recorrentes, como a dominância da triangulação, do equilíbrio e a da solidez, embora
a imaginária mantivesse o uso da cor simbólica e hierárquica, como a imaginária portuguesa. Por
último foi lembrado que as duas pertenciam às seguintes temporalidades Mona Lisa, de 1503-1504, e
A Mameluca, de 1641.

Os adolescentes demonstram estar preparado não só para lerem, mas a reconhecerem e, a partir daí,
fazerem as suas criações. Antes, vale lembrar que possuem repertórios próprios, não só na linguagem
oral e escrita como artística e que está em correspondência com o seu processo de mundivivência
individual e cultural. Nesse momento é sempre interessante encontrar nas reflexões de Buoro (2003,
p.43) sobre os objetivos gerais de um projeto pedagógico:

Valorizar a expressão singular do aluno, desenvolvendo sua percepção visual e imaginação criadora,
para que ele se sinta como indivíduo integrante de uma cultura; ampliar o repertorio de leitura e cons-
trução de imagem por meio das leituras de imagens da Arte; introduzir o conhecimento da Arte por
meio da leitura da obra de arte e de visitas a museus, galerias e ateliês de artistas.

Após essa primeira etapa da Abordagem Triangular, seguiu-se a segunda etapa, quando entra em cena
a performance, cujo tema apresentado era também a pintura A Mameluca (Fig.01).

Figura 1. A Mameluca, de Albert Eckhout.


Fonte: https://www.google.com.br

Figura 2. Estudante do 7º Ano do CETI Maria Melo.


Foto: Erika Fernanda Pereira da Silva.

A estudante se ofereceu para ser o personagem da A Mameluca (Fig. 02). Os demais estudantes se ofere-
ceram para ornamentar a sua cabeça com uma tiara de flores colhidas no jardim da escola e com frutas,
que foram trazidas pelos educandos da instituição. Assim, a cesta foi composta de carambolas, limões,
laranjas, graviola, cajá e um galho com urucum. Como já havia realizado a leitura, contextualizando a
pintura, a atenção dos educandos foi voltada para a imagem da jovem vestida com camiseta verde em
comemoração à semana da água, festejada na escola. Dando continuidade a este processo, a jovem to-

401
mou como referência a pintura, assumindo uma postura semelhante à jovem mestiça retratada na obra.
Nessa etapa, tem-se uma questão de representação mimética da realidade. Se fizermos comparação en-
tre as duas imagens são duas mestiças, e, por sinal, muito parecidas, pura coincidência?

Na verdade, a estudante que serviu de modelo está sempre estimulada a participar das atividades prá-
ticas propostas pelas colaboradoras do programa de Arte, e, desta vez, se prontificou a personificar A
Mameluca. A partir daí o jogo enunciativo continuou com a produção dos educandos (Fig.03 e 04).

Figura 3. Estudante do 7o ano do CETI Maria Melo. Figura 4. Estudantes do 7o ano do CETI Maria Melo.
Foto: Isis Victoria Montalvan Chica Foto: Erika Fernanda Pereira da Silva

2. APRENDENDO A VER E PRODUZINDO

Segue-se, então, a terceira etapa: a produção ou o fazer artístico. Para esse exercício, foi oferecido
como suporte o papel para desenho, Canson, peso 60g e a coleção de lápis de desenho e de cera. O
silêncio dominou o espaço da sala de aula, todos envolvidos com o seu fazer. Iniciaram por desenhar
com lápis de desenho 2B e, de vez em quando, tiravam o rosto do papel e observavam atentamente a
figura, pousando na frente da sala. Aos poucos, foram surgindo os desenhos cobertos de cor. Logo,
alguns chamam as tias, as Pibidianas e a supervisora, para consultar suas opiniões. Tomamos para
analisar dois desenhos (figuras 05 e 06), dentre outras produções da sala.

Na figura 05, o desenho colorido da estudante demonstra que ela optou em se expressar, tomando
por referencia a pintura de Eckhout. O espaço da representação recebeu um tratamento com traços
livres, gestuais, na cor vermelha, dividindo em duas grandes áreas de cor: a de baixo, em verde, com
texturas sugeridas por traços horizontais, em clara referência ao solo da pintura. Em relação à cor,
essa estudante escolheu a relação de cores complementares? Verde versus vermelho. Contudo, a
imagem esta estruturada em um rico esquema corporal, configurado em dois triângulos invertidos.
A perspectiva escolhida é a invertida, segundo Rudolf Arnheim (1989, p.167) que reflete que esta
resolução formal:

Ocorre quando em períodos da historia da arte que não são submetidas à tirania da perspectiva
dominante. E um recurso pictórico utilizado por artistas que não tem consciências da geometria
da perspectiva imposta na pintura ocidental no século XV, ou que não se sentem mais obrigados a
obedecê-la, como Picasso e outros pintores do nosso século.

402
Figura 5. Desenho da estudante do 7º. Ano do CETI Figura 6. Desenho da estudante do 7º ano do CETI
Maria Melo. Maria Melo.
Foto: Erika Fernanda Pereira da Silva Foto: Erika Fernanda Pereira da Silva

Por isso se justifica o sistema apresentado pela estudante, que optou em representar a cesta tão aberta,
de modo a permitir observar as frutas no seu interior.

Quanto à linguagem gestual, além de procurar reproduzir as duas imagens, procurou representar a
figura voltada para nós, pressupostos observadores.

Na figura 06, a estudante desse desenho escolheu representar a personagem da performance. Dividiu
o espaço em duas áreas, resultante do tratamento do lápis, uma clara alusão ao solo, sugerido por
traços na cor verde. O que desperta maior atenção é o esquema da figura feminina, pois procura
transmitir uma sensação de anatomia, já que desloca as pernas na mesma postura da figura da perfor-
mance, com a perna direita projetada para frente, enquanto a esquerda se encontra dobrada numa ati-
tude natural. A opção dessa educanda foi uma escolha no sentido de representar o que estava vendo,
a performance da estudante. Evidências estas, de acordo com a representação, com cabelo loiro, com
uma folhagem na cabeça, com blusa de tonalidade verde e de sandália nos pés. O sistema escolhido
foi a perspectiva invertida, provavelmente para revelar o conteúdo da cesta de frutas. Ressalta-se que
este esquema foi amplamente utilizado pela arte flamenga, por artistas como Rogier van der Weyden
e Jan van Eyck, depois retomado pelas pesquisas de Paul Cezanne, Picasso, dentre outros. Por fim,
abre-se um espaço para citar Barbosa (1991, p. 24) quando salienta que “a idéia de reforçar a herança
artística e estética dos alunos com meio ambiente” foi muito válida e os trabalhos aqui analisados de-
monstraram a sua ideia. Contudo, não se deve esquecer a sua outra advertência, que “se não for bem
conduzida, pode criar guetos culturais e manter grupos amarrados aos códigos da sua própria cultura
sem possibilitar a decodificação de outras culturas” (Ibid., p. 24). Sendo assim os jogos enunciativos
utilizados nas leituras possibilitaram identificar o quanto os educandos da CETI Maria Melo ficaram
estimulados a realizar as proposições de leituras, apresentando produções artísticas com muito bons
resultados.

403
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aplicação da Abordagem Triangular se mostrou muito significante, pois foi sentido o estímulo dos
educandos no CETI Maria Melo. A supervisora do PIBID de Artes Visuais dessa instituição de en-
sino comentava recorrentemente o quanto era sentido a falta de interesse dos seus estudantes pelas
aulas de arte, por mais que ela se esforçasse em levar algumas estratégias de ensino diferentes, não
conseguia mobilizar sua turma. Contudo, nesse dia, foi algo diferente no cotidiano da escola, quan-
do os alunos se movimentaram se ofereceram para ajudar na realização dessa atividade, o Quadro
Vivo, tendo como tema a pintura A Mameluca, de Eckhout. Os resultados dos desenhos em lápis de
cor foram visíveis, um olhar atento sobre as produções que foram perceptíveis no sentido de identi-
ficar como conseguiram captar o essencial da obra: a concepção espacial, o jogo de cores e detalhes
como a roupa e cesto de frutos, inseridos numa leitura iconográfica. Dessa forma, mais uma vez foi
comprovado que a aplicação da Abordagem Triangular é uma estratégia de ensino utilizando a Arte,
extremamente valiosa para possibilitar ao educando uma alfabetização estética significante.

REFERÊNCIAS

ARNHEIM, Rudolf. Intuição e intelecto na arte. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1989.
BARBOSA, Ana Mae (Org.). Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo:
Cortez, 2005.
______. A imagem do ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.
BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira. Abordagem triangular: no ensino das artes visuais
e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.
BUORO, Anamélia Bueno. O olhar em construção: uma experiência de ensino e aprendizagem da arte
na escola. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez,1995.
PARSONS, Michel. Compreender a arte. Lisboa: Editorial Presença, 1992.
PIAGET, Jean. A formação de símbolos na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
______. A representação do mundo da criança. Rio de Janeiro: Record, 1926.

404
Na intimidade do ninho:
sala de artes como lugar de liberdade
Rodrigo Gomes da Silva/ Renata Wilner

1. IMPULSOS PARA UMA DOCÊNCIA ARTÍSTICA POLÍTICA

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender, participamos de uma ex-
periência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica estética e ética, em que a boni-
teza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a serenidade. (FREIRE, 2015).

É com o sabor inicial das palavras de Paulo Freire que este texto vem tomar gosto, compreendendo esta
“experiência total”, que Freire descreve como um entregar-se por completo ao ofício de ensinar arte em
todas as suas variantes, visto que o experimentar só pode ser potencializado em espaços onde ecoa a
liberdade. Este experimentar, em toda sua intensidade, busca a liberdade, alimenta-se da vontade de
ser livre. Esta experiência total pode ser o estar em plenitude com a autonomia, faz-se pertencente à
sua vocação ontológica em Ser Mais. A experiência, vista dessa forma potencializada, é extremamente
perigosa aos poderes de contenção. Depois de experimentada, a experiência passaria a dar sentido e a
revelar de forma direta à política que inspeciona e oprime os seres ousados de corpos indisciplinados.
A experiência seria também ideológica, evocaria ideais pré-estabelecidos, através de ideologias que
antecedem e fertilizam o ensinar. Seria igualmente gnosiológica, pois confirmaria a validade do co-
nhecimento a favor do indivíduo. Seria pedagógica, pois representaria o ato de ensinar e aprender por
meio de uma vivência. Seria estética, pois estaria dando forma e poética. Seria ética, pois, diante toda
esta complexidade, seria o caminho para a autenticidade do ensina-aprender, originando o autêntico, o
que existe de mais genuíno. Com isso, alcançaria, então, a tríplice aliança entre o bonito, o descente e o
sereno. Neste sentido, o bonito não representa o mesmo que beleza. O bonito traz consigo a responsa-
bilidade da serenidade e da decência. O bonito vai além da beleza, é algo que dá gosto.

Será decisivo o amor pelo que se faz em um ensino autêntico em arte. Parece fácil, falando assim, mas
falta amor na prática do lecionar. Amar não é para todos. Os que possuem corações frágeis são atingi-
dos e afetados por discursos que põe as artes e seu ensino na “rabiola” da educação. São profissionais
extremamente frágeis e carentes. Ensinar arte é um fazer especial e político. E o professorado em arte
possui todos os motivos para lutar por seu espaço político e tomar as decisões sobre seus destinos. O

405
amar será decisivo na luta por direitos políticos. E desse amor brotará o direito de defesa, como uma
mãe ao defender sua cria. Este apetite pela defesa do que ama será impulsionado pela conscientização
e indignação. Não faltam motivos para se indignar. A indignação foi tema de um ensaio do escritor
alemão Stéphane Hessel – Filho de Helen Grund, pintora e amante da música. Hessel exemplifica
alguns caminhos que movem os indignados.

Aos Jovens eu digo: olhem à sua volta e vocês encontraram os temas que justificam a sua indignação – o
tratamento dado aos imigrantes, aos sem documentos, aos ciganos. Vocês encontraram situações con-
cretas que os levarão a praticar ações cidadãs fortes. Procurem, e encontraram! (HESSEL, 2011, p. 18).

As ideias acima foram extraídas do ensaio chamado Indignai-vos!, escrito em 2011. O livro vendeu
mais de 1,5 milhão de exemplares e foi traduzido em quase 12 países. No texto, Hessel desenvolve
relatos muito afetivos sobre sua longa vida de indignações múltiplas e intermináveis, uma saga de
esperança por mudanças sociais. Na configuração política atuante, ele pontua os dois principais desa-
fios da atualidade: o primeiro é a desigualdade e a distância entre os muitos ricos e os muitos pobres;
o segundo são os direitos humanos e o estado do planeta. A partir destas duas grandes problemáticas
universais, convida os jovens a estarem sempre juntos, unidos e atentos em estado de vigilância.

Mais do que nunca, hoje temos necessidade desses princípios e valores. Precisamos nos manter vigi-
lantes, todos juntos, para que esta continue sendo uma sociedade da qual nos orgulhemos; não a so-
ciedade dos imigrantes sem documento, das expulsões, das suspeitas aos imigrantes; não a sociedade
na qual sejam questionadas as aposentadorias, os direitos adquiridos da Previdência Social; não a
sociedade na qual a mídia está nas mãos dos ricos - todas essas coisas que teríamos recusado avalizar
se fôssemos os verdadeiros herdeiros do Conselho Nacional da Resistência. (HESSEL, 2011, p. 8).

Não seria este o pensamento a ser fomentado pelos professores de arte? O professor de arte tem to-
dos os motivos para indignar-se! Além dos já conhecidos: hora aula reduzida, entendimentos anti-
quados sobre sua função, discriminação por conta da ainda frágil legitimação do campo, eles ainda
possuem diversos outros e menos problematizados fatores corrosivos embutidos nestes já citados.
Visto que, dentro das escolas, os profissionais da arte passam por uma série de restrições sistemáti-
cas, por vezes não tão evidentes. Estão em minorias e, em pequenas escolas, trabalham em solidão,
pois nestes casos representam o único professor da área presente no local. Isso se deve à reduzida
hora aula que lhes é ofertada no currículo escolar. Este profissional pode indignar-se quando não
lhe é favorável o espaço físico a sua prática docente. Deve indignar-se quando, no boletim de notas
entregue à família dos alunos, a disciplina Artes é posicionada na última linha da tabela. Também
poderá indignar-se quando o responsável pelo estudante não compra o material artístico, achando
que o jovem não irá precisar usar na escola, ou, pior ainda, quando não compra, por medo de seu
herdeiro tomar gosto pela arte. Esses últimos casos estão ofuscados, mas são alimentados todos os
dias. É preciso estar atento e forte.

2. ENTRE OS MICRO E MACRO: ARTE POLÍTICA E SUAS VARIAÇÕES

Situações como as relatadas acima fazem parte da rotina diária dos professores de arte. Alimentam o
discurso diminutivo sobre a prática e a área. Seria preciso, então, pensar que as formas de combate a
esses diminutivos se dariam dentro da própria prática artística e de seu ensino, no sentimento de que

406
a presença da arte seria o elemento mais político e cabível em combate às equivocadas designações.
Entender o ensino de arte como ato político cabe uma análise do que existe de político nela.

A pesquisadora Suely Rolnik, no texto Arquivo para uma obra-acontecimento, situação onde discute a
obra da artista Lygia Clark, convida o leitor aos desencantamentos da história artística hegemônica e
propõe a amplificação do potencial político da arte. Para isto, flexiona o político no sentido macro e
micro. Essa dualidade é esmiuçada pela pesquisadora, como presente no trecho a baixo:

As ações artísticas macropolíticas veiculam basicamente conteúdos ideológicos, o que as converte


em práticas mais próximas de militância do que da arte. No segundo tipo de ação, o político constitui
um elemento intrínseco à investigação poética, e não algo situado em sua exterioridade. (ROLNIK,
2011, p. 21).

O segundo tipo de ação citado por Rolnik são as ações artísticas micropolíticas. O contexto em ques-
tão propõe pensar a arte como um fazer intrinsecamente político, pois, intencionalmente ou não, este
fazer reverbera política como parte de sua essência. Neste sentido, a arte não estaria a serviço da po-
lítica e sim faria parte dela. Tanto o micro quanto o macro possuiriam esta potencialidade. O macro,
no momento em que se torna dispositivo reacionário, e o micro, no simples ato de existência poética
da arte. Logo, é interessante pensar que toda a arte é política, pois as denominações, panfletária, de
guerrilha, de esquerda não são redutos da arte escandalosamente política. Estes adjetivos representam
momentos de efervescência causados por sistemas de opressão como as ditaduras. Situações onde são
colocadas em questão a liberdade de expressar ideias. Por exemplo, no Brasil de estado ditatorial, o
crítico em artes Frederico Morais criou a denominação “Contra-arte”, como situa no trecho abaixo:

O que chamei, em artigos, de Contra Arte, obviamente tem sua contrapartida numa contra cultura
e numa contra-história. Uma arte e uma história marginais, que não se constituíram com ismos,
estilos, que não se deixaram cristalizar em formas para consumo doméstico nos manuais escolares.
(MORAIS, 1970).

Frederico representava uma nova crítica. Almejava uma crítica transformadora, ativista e proposito-
ra. Frederico propõe, com sua contra-arte, enxergar a política da arte como algo contrário ao estabe-
lecido e moldado pelas vanguardas modernas, mas não só contra essas últimas: a contra-arte vem dar
visão ao lado omitido e escondido pelo reino/poder. Ela procura por evidência o lado “sujo”, que é
aniquilado por não pertencer a um mundo higienizado ditatorial. Ela amplifica e ecoa a entoação do
canto de revolta das periferias. Algo contracultural, experimental, independente, subterrânea, under-
ground. Como um reflexo, ele criou essa adjetivação por influência direta do contracultura da década
de 60. Ele e outros críticos de arte daquela época estavam imensos nos contextos revolucionários,
envolvidos pelo aquecimento do socialismo e, consequentemente, das esquerdas, em diversos locais
no mundo. A contra-arte é uma arte de guerrilha, uma arte contra repressão.

No livro Arte de guerrilha, o historiador de artes Arthur Freitas estuda a obra de Frederico Morais.
Dentro da pesquisa, Freitas elabora um engenhoso olhar sobre o conceitualismo no Brasil. Reconstrói
pontes, escapando dos lugares comuns da crítica. No trabalho, Freitas analisa e explica o que de fato
seria essa arte de guerrilha, tomando como base os estudos de Frederico. Como pontua no trecho
abaixo:

407
Refém de uma “emboscada”, o público precisava assumir uma postura ativa e “tomar iniciativas”. A
“obra” não passava de uma “situação artística”, e o artista, desalojado da condição de criador de ob-
jetos, tornava-se agora um “propositor de situações” ou mesmo – bem ao estilo duchampiano – um
simples “apropriador” das coisas do mundo. A esse estado, digamos, conceitualista, formado por
uma arte ou “contra-arte” disposta como “vivência”, conceito ou “proposta”, Frederico Morais no-
meou “arte de guerrilha”. (FREITAS, 2013, p. 55-56, grifos do autor).

Neste sentido, a arte de guerrilha representa os ideais essenciais para uma “contra-obra”. Conforme
o trecho, nota-se a transformação encarnada pelo artista e pelo modo de viver arte como prática de
guerrilha. O artista passa a ser um integrante da ação e não mais o ser mentor, o líder. Ele agora seria
o indivíduo que promove atos de suspensão social contra a opressão dos sistemas, sejam estes totali-
tários ou não. A arte de guerrilha pode ser entendida como um híbrido, um conjunto de princípios
estético-militares. Entre eles, o descaso pelo estabelecido, a capacidade de gerar surpresa e romper
com as expectativas da arte. Muitos artistas do período ditatorial brasileiro passaram a integrar, efeti-
vamente, o processo de luta armada vindo a abandonar o fazer artístico.

Muitos artistas faziam versos, faziam livros, faziam cinema e eram cortados pela censura. Dessa ne-
cessidade de agir contra o sistema, eles refaziam, faziam uma outra coisa, e era nessa outra coisa que
surgia uma linguagem figurada, metafórica e alusiva (FAVARETTO). E essa necessidade de “se jogar
pelo mundo” era movido pela compressão da ditadura. A experimentação, nos anos 70, promove uma
criação de espécie variada. Modificam-se os jeitos de escrever, interpretar, pintar, agora o corpo estava
regido pela necessidade básica da sobrevivência do experimentar e do desejar da liberdade.

Mário Pedrosa, outro crítico de arte muito prestigiado, optou por chamar de “exercícios experimentais
de liberdade” algumas ações artísticas do mesmo período ditatorial. Essas ações propuseram a não
comercialização das artes, desconstruindo a tradição moderna do conceito de arte como objeto. Por
não ser algo palpável, a arte experiência estaria confrontando este mercado estabelecido. Conforme a
professora Claudia Carliman, Mario Pedrosa assim descrevia o “exercício experimental de liberdade”.

Práticas artísticas que resistiram ao mercado de arte – ações que não poderiam ser apropriadas como
mercadorias pela sociedade consumista, mas que, em vez disso, consistiam em ações coletivas e ati-
tudes baseadas na experiência e na criatividade. Pedrosa estava se referindo a artistas que concebiam
a arte não como um objeto acabado, mas como um processo, uma proposta aberta ou uma situação
a ser vivida e experimentada. (CALIRMAN, 2013, p. 48).

Nesta referência de Calirman fica claro a amplificação que a designação experiência comporta ou
reverbera. Neste sentido, as experiências que promovem o conceber estão interminavelmente em
trânsito. Diante da impossibilidade de um término, a arte vem revelar sua atemporalidade própria.
Esta arte como experiência não está fechada, enquadrada ou moldurada. Por assim ser, não pode
sofrer reducionismos modais. Não pode estar entre muros, mas acima deles. Pois arte é o poder
acima de qualquer poder. Não estando submissa aos estados, aos sistemas e nem mesmo ao próprio
corpo, a arte existe para ser livre, para fluir, flutuar, uma arte sem fim. Arte como experiência traduz
o espírito de reinvenção do próprio acontecer artístico, sem amarras, sem algemas, sem padrões,
sem contenções, sem privatizações dos estímulos que movem o fazer. Arte como estado de espírito.
O corpo como obra. O instante como eterno. Toda a potencialidade do transcendental em momen-

408
to de acontecimento. Experimento como movimentação e intersecção de vidas. Vidas partilhadas
e compartilhadas em espaços supradimensionais. Ciclo não vicioso e reinventivo. Sem lenço e sem
documento ao aroma do vento.

Imersa nos territórios totalitários ou não, a arte está sempre inserida em um contexto de poder. Poderes
muito maiores que estados ou nações, poderes fluidos. Reinos, impérios, instituições, valores, lideran-
ças, discursos. Perante tantos e diversificados contextos de poder, existem movimentos de confronto,
proliferações de experiências comunitárias. Ações artísticas sem centros hegemônicos ou periferias, elas
brotam em todos os lugares de poder. Situações que desacreditam e desprestigiam o romantismo fadado
das grandes revoluções. Acontecimentos que não esperam o momento de levante e estão acontecendo
nos mais inimagináveis contextos sociais. Motivados pela decadência do revolucionário, mas inspirados
na crença da possível contribuição por meio de atos rápidos e dispersos no tempo. Na visão do histo-
riador Hakim Bey, estes repentinos atos contra o poder podem ser adjetivados como zonas autônomas
temporárias, as chamadas TAZs: Temporary Autonomous Zone, como descreve abaixo:

A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerri-
lha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para ser e – fazerem outro
lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa
primordialmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um
bom tempo, “ocupar” clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algu-
mas pequenas TAZs tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais – porque passaram
desapercebidas, porque nunca se relacionaram como Espetáculo, porque nunca emergiram para fora
daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação.
A Babilônia toma suas abstrações como realidades. É precisamente dentro dessa margem de erro que
a TAZ surge. Iniciar a TAZ pode envolver várias táticas de violência e defesa, mas seu grande trunfo
está em sua invisibilidade - o Estado não pode reconhecê-la porque a História não a define. Assim
que a TAZ é nomeada (representada, mediada), ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando
para trás um invólucro vazio, e brotará novamente em outro lugar, novamente invisível, porque é
indefinível pelos termos do Espetáculo. Assim sendo, a TAZ é uma tática perfeita para uma época em
que o Estado é onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas.
E, uma vez que a TAZ é um micro cosmo daquele “sonho anarquista” de uma cultura de liberdade,
não consigo pensar em tática melhor para prosseguir em direção a esse objetivo e, ao mesmo tempo,
viver alguns de seus benefícios aqui e agora. (BEY, 2001, p. 16).

Neste sentido, Bey promove repensar os estímulos que move a vontade pela liberdade. Ele convida o
leitor a refletir e questionar sobre a real existência de uma liberdade gritada, alimentada pela ideia de
progresso nas revoluções históricas. Em oposição a isso, desperta olhares para as utopias na promo-
ção de conquistas de liberdades temporárias. Sugeri que a invisibilidade perante o poder, nessas “li-
berdades temporárias”, caracteriza a TAZ como um lugar desgovernado. Portanto, qualquer força de
contenção estaria inviável. A TAZs seria possível em sociedades pré-moldadas? É interessante pensar
a TAZ como presente em zonas libertas em potencial. Situações onde seres únicos se encontram para
partilhar de momentos de prazeres diversos, onde a espontaneidade é crucial. Algo que não está no
calendário. Como um festival sem data, sem normas, sem hora, com integrantes abertos às experiên-
cias de liberdade, onde as estruturas de poder se diluem no festejo. Seriam, então, os fazeres artísticos
zonas políticas de potencial libertário?

409
A contra-arte, os exercícios experimentais de liberdade, a arte de guerrilha, a arte acontecimento, os
trabalhos com ênfase nas micro e macro políticas seriam zonas de evocação das liberdades? Visto que
só o fato de serem arte já possuem a característica construtiva e reinventiva do fazer, possuem como
característica orgânica a essência dionisíaca da criação, confrontando o estabelecido, questionando o
dito, instaurando levantes, ecoando outros sentidos a favor, nem que seja de migalhas de liberdades.
Seria a arte uma grande promotora de zonas temporárias de autonomias? Pois a arte como potência
retira o homem de sua prisão social e o eleva ao espaço além. Espaço espiritual, lugar transcendental a
existência. Lugares onde os valores e princípios humanos não contam. Lugares onde o desejo e a ética
não são julgados. Lugares inexplicáveis, onde o humano é livre e sempre será.

Como essas obras, todos esses conceitos desembocam na escola? Como eles se apresentam, habitam,
influenciam, nascem, despertam-se nas poéticas artísticas dos professores? Como essas práticas artís-
ticas se hibridizam com a autenticidade da prática pedagógica dos professores. Pois a maioria dos pro-
fessores em arte são artistas educadores. Estas questões serão aguçadas na terceira parte deste estudo.

3. POR UM ENSINO DE ARTE LIVRE

A autenticidade que Paulo Freire descreve se trata de uma experiência aberta. Aberta para receber as mais
diversas contribuições para a elevação do ser mais, tão aclamado pelo autor. Tal elevação pode ser alcan-
çada pelo ensino de arte, quando possibilita apropriações, cruzamentos, tramações teóricas/práticas. Por
exemplo: as reflexões empenhadas sobre as obras podem ser pensadas como dispositivos educacionais,
pois se comportam como ações de libertação dos membros sociais. Todo professor de artes é artista, e sua
proposta pedagógica é a obra construída com seus estudantes. Nesta visão, pode-se dizer que a crítica,
quando estuda e reflete sobre arte, também está problematizando um processo de ensino aprendizado.

Ensinar arte se apresenta como um exercício experimental de liberdade. Pois, quando se desperta
nos estudantes ações e proposições estéticas políticas, está os auxiliando a encontrar os instrumentos
para agir contra os sistemas de opressão, os mecanismos de “poda” e os enquadramentos sociais. Arte
como ensino é experiência de liberdade, pois educação não deve ser tratada como um lugar de troca.
O mercado é um sistema controlador e um lugar de trocas, e a arte está no lugar oposto, o de descon-
trole. Como pensar que nações inteiras, ainda hoje, possuem seus sistemas educacionais sufocados
pela iniciativa privada. Nestes contextos, a arte vem possibilitar vivências que o liberte dos empaco-
tamentos do mundo comercial individual, impedindo a insistência deste mundo individual, impe-
dindo, também, a reinvenção frenética desta individualidade a favor do desfrute das experiências
libertárias desregradas. Nesta concepção, o ensino de arte passa a se comportar como um mediador,
despertador, como uma rosa ao abrir para o sol ou para lua, a flor da lua.

Ensinar arte também é ser do contra. Potencializar olhares questionadores sobre hábitos culturais
alienados. Assumir um ensino artístico como um ato de transgressão. Lecionar e peitar as regras
ultrapassadas de uma sociedade arcaica e dura. Sociedade esta, que cobra das instituições condutas
contrárias às suas próprias práticas. Ensinar arte é sentir-se livre e ilimitado na prática e na ação. Com
isso, atingir equilíbrio entre a capacidade de agir e os desejos de liberdade. Para que a intensidade
do desejo não supere o poder da realização, da consumação do contrário, ou seja, o próprio ato de
protesto. Paulo Freire fala que os educandos devem manter vivo o gosto pela rebeldia, aguçando a

410
curiosidade, arriscando-se, imunizando-se contra a passividade, e isso é parte de um verdadeiro en-
sinar (FREIRE, 2005). É interessante pensar este ensino como guerrilha artística pedagógica, pois a
prática do professor é uma intensa militância por ideais que promovem uma sociedade mais justa e
igualitária. Um professor de arte militante possui sentidos dilatados para os acontecimentos políticos
de seu espaço, e introduz, nas suas propostas educativas, a necessidade de ser rebelde.

A docência em artes pode ser entendida, também, como uma zona autônoma temporária. Por di-
versos sentidos, ela provoca levantes em cada unidade de ensino, em cada bairro ou cidade, o ensino
provocará rupturas com a realidade local. Sem, nem mesmo, o estado perceber. O professor deixa de
ser protagonista e passa a ser mediador, e o educando, aprendiz da zona, vive o ensino em toda intei-
reza e substância. Docência como zona autônoma contempla o educar como ato festivo, como boicote
aos sistemas hegemônicos.

Ser professor ou professora de artes implica contemplar as micros e macros políticas nos membros so-
ciais, pois no momento em que media artes, professores cultivam decência e pureza por meio do ensi-
no de estéticas éticas, onde o social é experimentado como espaço poético, e não como lugar imperial
do gosto. Então, a micropolítica artística estaria presente de forma intrínseca no ato educativo. Estaria
substanciada nas pesquisas, nas buscas e nas indagações artísticas, procurando anunciar o implícito,
revelar os pilares da arte politizada. O Macro desperta a curiosidade artística nos estudantes, instiga
através da arte uma curiosidade crítica sobre os contextos sociais, não uma crítica ingênua, mas uma
crítica macro política, uma crítica militante, guerrilheira, resultante de vivências prático-teórica, pre-
sentes na corporeidade do tecido social como dispositivos contra totalitários.

4. ENSINO DE ARTE COMO CONTÍNUO EXERCÍCIO DE LIBERDADE

Na intimidade das salas de arte se consumam experimentos de liberdades. Lugares de elevação e po-
der. Espaço autoral do voo. Revelação das purezas e consumação dos cantos. Grandes descobertas dos
olhares, cheiros e paladares. Água que baila na descida do rio para ser mar. Brisa leve, que cora a pele
e reescreve a vida as folhas oraculares.

REFERÊNCIAS

BEY, Hakim. TAZ, zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001.
CARLIMAN, Claudia. Arte brasileira na ditadura militar: Antonio Manuel, Arthur Barrio e Cildo Meireles. Rio
de Janeiro: Reptil, 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51. ed. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 2015.
FREITAS, Artur. Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.
HESSEL, Stéphane. Indignai-vos! São Paulo: Editora Leya Brasil, 2011.
MORAIS, Frederico; BITTENCOURT, Francisco. A Geração tranca-ruas. Jornal do Brasil, 9 maio 1970.
ROLNIK, Suely. Rompe-se o Feitiço. In: Arquivo para uma obra-acontecimento. São Paulo: Sesc, 2011.
ANOS 70: Trajetórias. Produção de dezenove som e imagens. In: DVDteca Arte na escola. São Paulo: Itaú cul-
tural, 2001.

411
Retratos e autorretratos, na escola
contemporânea. Diálogos interculturais
com novas tecnologias.
Dione Souza Lins/ Luís Ricardo Pereira de Azevedo

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem o objetivo de expor atividades realizadas em duas escolas do estado do Rio de
Janeiro (uma pública e uma particular), que abordaram a observação e leitura de representações de
figuras humanas – em diferentes períodos da história da arte – através de Retratos e Autorretratos,
bem como propor um debate sobre a utilização de celulares e aplicativos de desenho nas aulas de artes
visuais. O trabalho traz como reflexão teórica o debate que Ana Mae Barbosa nos apresenta em um
de seus ensaios no livro Arte/Educação Contemporânea (2008) e projeta uma possível ponte com o
tema transversal Pluralidade Cultural, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1996) orientam.
No Estado do Rio de Janeiro, bem como no Município do Rio, temos um currículo chamado de “mí-
nimo” ou Orientações Curriculares, que, respectivamente, deixam professoras e professores muito à
vontade para elaborarem seus planejamentos e Projetos em linguagens artísticas.

Temos, por metodologia, elaborar nossas aulas através de Projetos que envolvam uma abordagem do
desenvolvimento cultural dos estudantes por meio do conhecimento em ARTE, de forma que cons-
truam a percepção crítica e a produção visual. Por isso, muitas vezes, os desdobramentos se dão de
forma tão dinâmica, que um trabalho vai puxando outro e o assunto que iria durar duas ou três aulas,
dura cinco ou mais! Foi o que aconteceu nessa experiência.

Ao final da apresentação e do debate desse trabalho, a proposta é realizar uma atividade prática de
produção visual de retratos ou autorretratos à escolha dos participantes, seja com recursos do aplica-
tivo do tablet, através do desenho e colagens com diferentes materiais, ou fotografia com a criação de
tableau vivant124.

124. Tableau vivant é uma expressão francesa para definir a representação por um grupo de atores ou modelos de uma obra pictórica pre-
existente ou inédita, quadro vivo.

412
1. A FIGURA HUMANA E SUA REPRESENTAÇÃO

A arte como linguagem aguçadora dos sentidos transmite significados que não podem ser transmi-
tidos por meio de nenhum outro tipo de linguagem, tal como a discursiva ou a científica. Dentre
as artes, as visuais, tendo a imagem como matéria prima, tornam possível a visualização de quem
somos, de onde estamos e de como sentimos. (BARBOSA, 2008, p. 99).

Podemos, através das imagens e produções visuais realizadas ao longo da história, transportar-nos
para um ambiente ou nos colocar no lugar de uma pessoa representada.

Ao observarmos, por exemplo, a “Monalisa”, Leonardo da Vinci, 1506; “Moça com brinco de Péro-
la”, Veermer, cerca de 1665; “O Grito”, Edward Munch, 1893; “Os amantes”, Rene Magritte, 1928;
ou os autorretratos de Tarsila do Amaral, 1923; Frida Kahlo, 1940 ou Van Gogh, 1889 podemos
tecer diferentes tramas de discussão. Nessa experiência, nosso foco é a representação humana em
seus diferentes momentos e em diferentes olhares. E por quê? Porque somos diferentes, estamos
em lugares e épocas diferentes, pensamos diferente. Artistas em épocas distintas também vão
representar de formas diferentes. Os trabalhos realizados tiveram o objetivo fazer os estudantes
se colocarem como sujeitos de uma época diferente, entretanto com as técnicas e tecnologias con-
temporâneas.

Em especial com o tableau vivant, os estudantes incorporam personagens, pesquisam objetos ce-
nográficos e indumentária para recompor a cena. Neste exercício, combinamos diferentes lingua-
gens, a medida que nos apropriamos do conhecimento do corpo através da mimeses, da postura
dos personagens retratados pelo artista, do sentido de movimento, ou seja, um exercício cinesté-
sico.

Acreditamos que ao trabalhar a partir destas obras obtemos ferramentas para a identificação cultural
e, consequentemente, para o desenvolvimento individual e o conhecimento em arte do sujeito com
quem trabalhamos.

2. MUDAR E ELABORAR SOLUÇÕES DIFERENTES. OU NÃO

Depois de conhecer os retratos e autorretratos, seus autores, suas épocas, curiosidades sobre cada
artista, chega a hora de transformar e produzir, pois é a produção individual ou em grupo que vai
fixar o conteúdo a ser construído em cada sujeito. Quando envolvidos nestes projetos, os estudantes
desenvolvem habilidades que, por vezes, são ou foram cerceadas por falta de credibilidade em si pró-
prio. Ana Mae sinaliza em seu texto: “Desconstruir para reconstruir, selecionar, reelaborar, partir do
conhecido e modificá-lo de acordo com o contexto e a necessidade são processos criadores desenvol-
vidos pelo fazer e ver arte, e decodificadores fundamentais para a sobrevivência no mundo cotidiano.
” (BARBOSA, 2008, p. 100). Por isso, nosso trabalho se constitui do que selecionamos para construir
nossas próprias criações, dentro de nossa realidade.

Foi nesse sentido que diferentes leituras foram elaboradas através do desenho, de colagem, da expres-
são corporal nos quadros vivos com fotografia e técnica mista com fotos e desenhos.

413
3. TEMPOS DE NOVAS TECNOLOGIAS EM SALA DE AULA

Desde 2007, em diferentes estados brasileiros e na câmara federal, já se discutia o uso de celulares e
aparelhos eletrônicos em salas de aula, pois o argumento era de que os celulares atrapalhavam quando
utilizados “para conversas telefônicas, jogos, troca de torpedos, e, em casos extremos, são relatados
casos de acesso a pornografia ou a cenas de violência nas salas de aula” (CÂMARA, 2007). Em 2009,
após muitos pareceres e emendas, formularam o substitutivo ao projeto original, onde ficou deter-
minado que: “Serão admitidos, nas salas de aula de estabelecimentos de educação básica e superior,
aparelhos eletrônicos portáteis, desde que inseridos no desenvolvimento de atividades didático-peda-
gógicas e devidamente autorizados pelos docentes ou corpo gestor” (Idem, 2007).

Certamente, passamos por inúmeras situações desagradáveis desde o surgimento do celular em nossa
sociedade e, na maioria de nossas escolas, hoje, a Lei se aplica ainda na forma “original”. Entretanto,
sabemos o quanto as tecnologias digitais se inserem em projetos educativos de forma positiva, mesmo
que de forma muito arcaica nas nossas escolas, que ainda não se adaptaram à “era digital”.

No campo do ensino da arte, e principalmente nas artes visuais, vislumbramos a relação da tecnologia
também com o processo de construção do conhecimento e do processo criador. E é nesse sentido que
introduzimos a fotografia, a produção e edição de vídeos e utilização de aplicativos relacionados ao pro-
cesso criativo em nossa sala de aula. Acreditamos que a tecnologia não deve ser utilizada somente como
meio operacional, mas também como objeto de transformação, de crítica e construção de conceitos.

Para finalizar, apontamos uma reflexão que Ana Mae nos traz: “Para compreender e fruir a arte pro-
duzida pelos meios eletrônicos, o público necessita de uma nova escuta e de um novo olhar” (BAR-
BOSA, 2008, p. 110). Para isso, é tarefa nossa na escola não somente nos apropriarmos do uso destes
meios, mas nos empoderarmos, através deles, como instrumentos de mediação cultural.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência desse trabalho, com retratos, autorretratos e tableau vivant, foi realizada com uma
turma do 1º ano do Ensino Médio, num estabelecimento particular e com uma turma do 7º ano do
Ensino Fundamental de um estabelecimento público. Em ambos, tivemos a feliz conclusão de que a
tecnologia está a nosso favor. A fotografia e/ou a utilização de aplicativo de desenho promove o pro-
cesso criativo, pois, de uma certa forma, desinibe o sujeito que não tem uma continuidade de conte-
údos, no seu currículo escolar, em Artes Visuais.

É relevante acrescentar que consideramos que é necessário ter em nossos debates acerca do ensino
da arte na escola que esta experiência não pode estar dissociada dos elementos culturais aos quais
estamos ligados, que são esses elementos que nos formam e que são a soma de diferentes elementos
que cada sujeito traz consigo, que vai construir história e significados. A educação e a cultura estão
envolvidas em processos de transformação da identidade e subjetividade.

Ao trabalhar com figuras humanas, reconstruir e produzir nossos próprios retratos e autorretratos,
estamos estabelecendo relações com culturas diferentes (artista/público na escola) e descobrindo que

414
na escola somos também diferentes culturas no mesmo espaço. A partir daí, podemos construir mais
desdobramentos e debates acerca de nossa identidade individual, coletiva e cultural.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae (Org.). Arte/Educação Contemporânea: Consonâncias Internacionais. São Paulo: Cortez,
2008.
BRASIL. Ministério da Educação – Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
Arte. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CÂMARA dos Deputados Federais. Projeto de Lei 2246/207, de 17 out. 2007 - Veda o uso de telefones celu-
lares nas escolas públicas de todo o país; tendo parecer da Comissão de Educação e Cultura, pela aprovação
deste e dos de nºs 2.547/07 e 3.486/08, apensados, com substitutivo. Relatora: Dep. Angela Portela. Disponível
em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=517286&filename=Avulso+-
-PL+2246/2007>. Acesso em: 04 maio 2016.
JANSON, H. W. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
LITTLE, Stephen. Ismos para Entender a Arte. São Paulo: Globo, 2010.
OLIVEIRA, Inês Barbosa; SGARB, Paulo (Orgs.). Redes Culturais, diversidade e educação.. Rio de Janeiro: Edi-
tora DP&A, 2002.
TABLEAU vivant. Wikipédia, 24 mar. 2015. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/ wiki/Tableau_vivant>.
Acesso em: 04 maio 2016.

415
Arte, vida e natureza: experiências
sobre ensino da arte contemporânea
Maria Clara de Lima Santos/ Marianna Melo

1º PASSO: ARAR A TERRA

Origem [Ursprung] significa aqui aquilo a partir e através do qual uma coisa [Sache] é o que ela é e
como ela é. O que algo é, como ele é, denominamos sua essência [Wesen]. A origem de algo é a pro-
veniência de sua essência. A pergunta pela origem da obra de arte pergunta pela proveniência de sua
essência. (HEIDEGGER, 1957 apud MOOSBURGUER, 2007, p. 5).

Segundo o Filosofo alemão Heidegger, autor da conferência que foi transformada em texto, “A ori-
gem da obra de arte”, e que inspirou a artista plástica Marilá Dardot a produzir uma obra homônima,
buscar a origem de algo é procurar sua essência. Ao procurar a origem da palavra natureza, atinou-se
para a palavra em latim Natura, que vem do verbo nasci, “nascer”. Portanto, a natureza está intima-
mente ligada ao nascimento. Nascimento que vem seguido de crescimento e amadurecimento. Pro-
cessos que são inerentes à humanidade e ao qual ela está submetida. A partir dessa ideia, procurou-se
construir um projeto pedagógico que relacionasse e problematizasse arte e natureza ao processo de
desenvolvimento subjetivo: O eu (indivíduo) – natureza (MOOSBURGUER, 2007; DULLEY, 2004).

2º PASSO: ABRIR PEQUENOS SULCOS NA TERRA

As observações e realização do projeto ocorreram na Escola Municipal Magalhães Bastos, que está
situada no bairro da Várzea, a poucos metros da Universidade Federal de Pernambuco. Apesar da
constante procura de alunos de diversas licenciaturas e pedagogia para a realização de estágios cur-
riculares, a escola não conta com nenhuma parceria com a Universidade. A instituição de carácter
misto, é em parte, mantida pela Prefeitura do Recife e, em parte, pelo trabalho beneficente do Con-
vento Magalhães Bastos. Sendo assim, as religiosas do convento (que é ao lado da escola) possuem
bastante influência nas decisões administrativas da instituição. A escola conta com o ensino infantil e
fundamental, nos horários da manhã e da tarde. Apesar de ter um espaço físico bastante deteriorado,
a escola passa por reformas e é constantemente vistoriada pela fiscalização da Secretaria de Educação.
A instituição atinge a população em seu entorno, a maioria dos alunos reside no bairro.

416
A turma observada foi o Terceiro Ano-B, no turno da tarde, composta por 28 alunos, entre 8 e 12
anos, estando muitos fora da faixa destinada à turma. A docente da turma, A.P., é pedagoga e foca suas
aulas no ensino da matemática e da língua portuguesa, segundo a própria, devido ao déficit que os
alunos apresentam nessas duas disciplinas. As aulas de artes são esporádicas e visam uma interdisci-
plinaridade. As aulas ministradas são pensadas a partir do planejamento, previamente, realizado pela
Secretaria de Educação Municipal. No segundo bimestre do ano, estava delineado que a disciplina de
arte iria trabalhar a relação arte e natureza.

Após um longo período de observação, foi montado um projeto de aulas que se baseava no conceito de
ensino de arte pós-moderno, que, segundo BERG (1991) está ligado à cognição e à construção do pensa-
mento a partir de imagens. Notando que as aulas ministradas pela docente observada giravam em torno
apenas da prática artística, foi procurado uma maior reflexão e contextualização dos conteúdos. Oliveira e
Lampert (2006) defendem que o ensino da arte deve articular saberes que tenham significado na vida dos
alunos. Durante todo o processo de planejamento das aulas, houve uma grande preocupação em abordar
o tema de uma forma que trouxesse a meditação sobre o processo de crescimento e amadurecimento que
eles, como todos os indivíduos, estão inseridos. Justificando, assim, a escolha por priorizar a relação eu-
-indivíduo e eu-natureza. A ideia de interdisciplinaridade permeou toda concepção do projeto, buscando
“uma relação de reciprocidade e colaboração, com o desaparecimento de fronteiras entre as áreas do co-
nhecimento” (Richter, 2007, p. 95). Buscou-se incorporar não apenas noções de arte contemporânea, mas
também de literatura, teatro, ciências naturais, entre outras disciplinas, de forma homogênea.

3º PASSO: COLOCAR AS SEMENTES DENTRO DO SULCO

Um passarinho pediu a meu irmão para ser uma árvore.


Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol
de céu e de lua mais do que na escola.
Manoel de Barros, 2013.

Na primeira aula Plano, foi pedido aos estudantes que sentassem em círculo e se apresentassem uns aos
outros. Essa dinâmica teatral é bastante utilizada quando se precisa superar uma tensão e timidez de
grupos de pessoas recém-conhecidas. Apesar de os discentes já se conhecerem a algum tempo e terem
bastante intimidade um com o outro, queria-se superar o fator do docente pouco familiar para eles. E,
também, prepará-los para a prática teatral que vinha a seguir. Logo após terminada as apresentações, foi
perguntado aos alunos o que eles entendiam por natureza. As diversas falas convergiam nas respostas,
entendendo a natureza como “uma bonita paisagem”, “árvores e plantas” e “o que nos dá frutas”. Obser-
vou-se que os alunos tinham a ideia de natureza como um local, algo externo, conceito bastante voltado
ao “ambiental”, e mesmo assim, de forma bastante vaga. Em algumas falas, foi possível notar também a
relação do homem com a natureza, como maléfica para essa última, como exemplo “o homem queima as
matas e joga lixo no rio”. Esses relatos foram de vital importância para entender a visão dos alunos sobre
o tema e indicar um ponto de partida na construção do conhecimento.

Em seguida foi disponibilizado a cada um dos estudantes uma cópia do poema “Árvore”, de Manoel
de Barros. Esse poema foi escolhido por obter uma concepção de natureza muito próxima da adotada

417
no projeto. No primeiro momento, os educandos leram individualmente o texto. Depois, foi pedido
para que os discentes escolhessem um personagem para representar e que formassem grupos desses
personagens (como exemplo: o grupo dos pássaros, o grupo das árvores, etc.). E na medida em que
as docentes liam o texto, as crianças iam interpretando os personagens. Essa prática corporal possibi-
litou uma interpretação mais subjetiva do poema. Por fim, foi pedido que representassem através de
desenhos o seu ser- árvore.

Imagem 1. Representações a partir dos desenhos do se eu-natureza.

Nos desenhos produzidos pelos educandos durante a primeira aula, assim como nas falas dos pró-
prios, percebe-se que a noção de natureza deles ainda é muito próxima ao conceito de meio ambiente.
Geoffrey de Saint-Hilaire, naturalista francês que usou o termo milieu (no Brasil equivale a meio
ambiente) pela primeira vez, compreende o conceito como um lugar em que o ser vivo está inserido
e suas características físicas e geológicas (SILVA, 2008). Contudo, para Santos (2004, p. 19), “[...] não
há mais sentido, nos dias atuais, para a clássica e rígida separação entre homem, mundo natural e
mecânico”. Logo, a relação homem-natureza não pode ser delimitada facilmente, contribuindo para
a visão de homem como parte integrante e não apenas um fator desassociado, externo à um meio.

4º PASSO: COBRIR AS SEMENTES COM TERRA

A palavra latina natura que liga-se à raiz nasci (nascer)


e significa em primeiro lugar: a ação de fazer nascer.
(LENOBRE,1969 apud DULLEY, 2004, p.16).

No segundo dia, foi mostrado aos discentes fotografias da obra “A origem da obra de arte”, da artista
Marilá Dardot. Essa instalação do instituto Inhotim foi originalmente exposta no Museu de Arte da
Pampulha e se trata de uma obra iminentemente interativa. Segundo Pedrosa e Moura (2002),

O que está em jogo aqui é o conceito de obra enquanto possibilidade de realização. A imagem do ‘can-
teiro de obras’ é emprestada para criar um campo de possibilidades de experimentação para o aconteci-
mento e a construção da obra de arte, para além do espaço do próprio Museu. A utilização de vasos de
cerâmica encomendados a uma olaria do interior sugere outra aproximação: nestes singelos e sedutores
objetos, que constituem o ponto de partida para a ação proposta ao espectador-participante, dá-se um
revelador encontro entre utensílio/instrumento, por um lado, e obra/objeto de arte, por outro. Funda-
mental aqui é o cruzamento entre a prática artística e o trabalho artesanal ou manual, apontando para a
antiga oposição entre natureza e cultura - algo que se reflete também nos próprios espaços nos quais o
trabalho-obra se fragmenta e desloca, de uma sala denominada ‘multiuso’ para os Jardins.

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Imagem 2. A origem da obra de Arte, de Marilá Dardot.
Fonte: www.google.com.br

Dado um tempo para a fruição, foi perguntado para as crianças o que aquela imagem mostrava. As
respostas convergiram em uma descrição das fotos. Após essa etapa, os estudantes foram questiona-
dos “O que essas imagens dizem de você?” As respostas obtidas foram “Me dá paz”, “Tranquilidade”,
“É tão bonito!”, “Me sinto calmo!” As docentes indagaram: “O que é arte?” E foram respondidas por
diversos alunos que arte era “Um desenho bonito!”, “Um quadro”, “Sabendo pintar e desenhar se faz
arte”. Foi perguntado se o conteúdo das imagens apresentadas eram arte. Todos os discentes concor-
daram que sim. Então, foi pedido que os educandos explicassem a discrepância das respostas. Eles
argumentaram que a plantação poderia ser arte, pois a natureza é arte. E que eram coisas diferentes,
porém uma não excluía a outra, um desenho é arte e um vaso com flores também é. Em seguida, as
professoras finalizaram a discussão com o conceito de arte conceitual, da relação arte e vida na con-
temporaneidade e ato criativo, trazendo à ideia as “formas de vida” e “modos de discurso” como arte
para a conversa, que, de acordo com Fabrinni (2014, p.42),

Esta tentativa de “retorno ao real” adquiriu, contudo, nos anos 1990 outra configuração; pois, reagindo
à volta às linguagens da tradição como a pintura, escultura ou objetos da década anterior (o que levou,
inclusive, ao reaquecimento do mercado de arte) a nova geração de artistas então emergente procurou
reatar os vínculos práticos da arte com a vida sem a mediação destas linguagens. (grifo do autor).

Por fim, convidaram os alunos para reproduzir o ato criativo da obra “A origem da obra de arte”. Uti-
lizando terra, copos plásticos e sementes de feijão os alunos começaram a plantar. Alguns revelaram
já ter experiência com a prática, outros relataram nunca ter feito aquilo e sua preocupação em fazer
de maneira errada e em consequência que suas sementes não florescessem. Dessa forma foi determi-
nado que os mais experientes ajudariam os que tivessem com dificuldades. Todo ato aconteceu com
bastante empolgação por parte dos estudantes. O planejado era que cada um tivesse um recipiente
para trabalhar, mas, a pedido das crianças, cada um ganhou dois recipientes.

Após a plantação das sementes, a turma discutiu sobre as necessidades de uma planta. Chegou-se à
conclusão de que a planta necessita de água durante o dia e ficar ao sol (tomando cuidado com os dias
mais quentes). Cada educando ganhou um pequeno caderninho (em formato de cordel) e foi expli-
cado que eles levariam seus recipientes semeados para casa e seriam responsáveis por cuidar deles até
que as plantas crescessem. Durante o processo, tudo seria anotado e/ou desenhado em seus diários.
Imediatamente, começaram as anotações do primeiro dia: o da plantação.

Segundo a supervisora de estágio, durante os dias de observação e cuidado com as plantinhas, os


alunos estavam completamente empolgados e dedicados ao processo. “O diário da plantinha”, como

419
ficou sendo carinhosamente chamado o diário pelas crianças, esteve presente todos os dias na sala de
aula. Os discentes compartilhavam suas experiências e buscavam ajuda uns com os outros quando
necessário. Alguns pais, notando o interesse do filho pela atividade, comentaram sobre a empolgação
dos estudantes com a supervisora. O último dia do projeto coincidiu com o último dia de aula. E,
apesar de alguns alunos terem recebido dispensa dias antes por bom rendimento escolar, eles compa-
receram especialmente ao último dia para mostrar seus diários e concluir a atividade.

5º PASSO: AGUAR A TERRA

Na terceira aula, último dia de regência do Estágio 1, foi pedido que a turma mostrasse os diários e
comentasse sobre a experiência que tivera ao cuidar das plantas. Os educandos imediatamente come-
çaram a expor as alegrias e dificuldades que passaram durante todo o processo. Ao relembrar a per-
gunta e as respostas do primeiro dia do projeto, “O que é a natureza?”, foi perguntado se as respostas
continuavam as mesmas. Com bastante empolgação, os alunos responderam que algo tinha mudado.
A natureza não era apenas “uma paisagem bonita”, mas que era vida. E que o processo de cuidar da
planta remetia à ideia de amor. Passado esse momento, os professores retomaram aos conceitos uti-
lizados nas aulas anteriores, relacionando arte, natureza e vida, fazendo-os perceber que o processo
criativo/artístico pode estar associado ao nosso dia a dia a partir da maneira que percebemos o mun-
do, as plantas. Já que a vida pode ser um ato artístico.

Imagem 3. Diários das plantas, produzidos pelos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – 6º PASSO: ACOMPANHAR O DESENVOLVIMENTO.

Através desse texto, é possível compreender como um conceito subjetivo de natureza, que foge da
corriqueira abordagem do meio-ambiente, foi construído com crianças do ensino fundamental. Vi-
sando um ensino das artes visuais crítico e uma aprendizagem significativa que pudesse repensar as
relações dos indivíduos com a arte e a relação arte e vida. Partindo-se dos conhecimentos prévios dos
estudantes e através atividades interdisciplinares, lúdicas e dinâmicas, foi realizada uma caminhada
de reflexão pelo processo de amadurecimento e introduziu-se aspectos da arte contemporânea.

REFERÊNCIAS

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BERG, E. Apresentação do livro. In: BARBOSA, A. M. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991,
p. XI-XIV.

420
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MOOSBURGUER, Laura de Borba. A origem da obra de arte de Heidegger: tradução, comentários e notas. 2007.
158 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2007.
OLIVEIRA, Marilda Oliveira de; LAMPERT, Jociele. O estágio curricular como campo de conhecimento e suas
especificidades no ensino de artes visuais. Revista Digital Art&, n. 6, a. 4, out. 2006. Disponível em: <http://
www.revista.art.br/site-numero-06/trabalhos/4.htm>. Acesso em: 10 abr. 2016.
PEDROSA, Adriano; MOURA, Rodrigo. Sem título, volante de exposição. Belo Horizonte: Museu de Arte da
Pampulha, 2002.
SILVA, T. C. O Meio Ambiente na Constituição Federal de 1988. Jus Vigilantibus, v. 1, p. 37531, 2008.

421
Considerações investigativas
sobre o fazer artístico como uma
plataforma de autoconhecimento*
João Pedro Tavares da Silva

INTRODUÇÃO

Conhecer a si mesmo favorece o processo de criação de obras de arte. Ter consciência de alguns de
seus gostos, valores, intenções, virtudes e defeitos são elementos ricos para a construção de uma obra.
É através dessa compreensão que a pesquisa se concentra em “fertilizar” uma espécie de “solo” para
estudantes de arte – como eu – que refletem sobre o campo das artes visuais, utilizando, como foco,
a ligação entre vida e arte, sobretudo no processo criativo. Portanto, esta pesquisa convida a refletir,
sensivelmente, o metaprocesso, antes de manifestar o desenvolvimento dos ofícios.

As questões que vivificam essa investigação suscitam a partir da maneira com a qual os processos
subjetivos do fazer apontam para uma construção de si. Em busca desses procedimentos operatórios,
surgem perguntas: como o processo criativo ajuda a pensar no direcionamento pelo qual o estudante
de arte dá à sua própria vida? Como se opera o fazer artístico como um viés de autoconhecimento?
Como se desenvolvem as afetações sensíveis entre o criador e a obra? Será possível, durante o pro-
cesso de experimentação e criação, pensar na operação como plataforma de autocompreensão? A
que caminhos isso nos leva? Vale salientar que a trilha por onde envereda essa pesquisa nasce da
importância do fortalecimento de laços entre vida e processo criativo em busca de uma organicidade
poética do fazer artístico.

Durante o processo de elaboração da obra, quando o criador segue um conjunto de regras e normas
pré-estabelecidas, para se adequar a um determinado território já sedimentado no campo da arte, o
produto, ao ser colocado em circulação, é passível de funcionar como uma mera reprodução de dis-
curso, ausente de singularidade e sentido. Ou seja, a pragmaticidade excessiva do fazer funciona da

*
Este trabalho se trata de uma atualização do artigo O fazer artístico como procedimento de autoconhecimento: uma maneira de ver a obra
como parte de si, publicado e comunicado no evento IV Diálogos Internacionais em Artes Visuais e I Encontro Regional ANPAP Nordeste
2015, promovido pelo Programa Associado de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco e Universidade
Federal da Paraíba (PPGAV UFPE/UFPB), em novembro de 2015.

422
mesma forma da produção industrial por meio da técnica ou do método – adquirido pelo artista – e
inclina-se para a (re)produção de objetos e discursos. Um ofício ausente de singularidade. Para me-
lhor ilustrar, de maneira conotativa, tal ação é comumente vista como uma receita de bolo: escolhe-se
um tema, uma técnica, um suporte e determinada linguagem “disponível nas prateleiras” dos livros de
história da arte, em seguida põe-se todos os “ingredientes” numa forma e espera o fogo “agir”, ou me-
lhor, em sentido denotativo, expõe os itens para a venda. Evidentemente, esse é um exemplo de uma
receita de um bolo sem personalidade, pois o que importa neste caso é o uso do produto pronto ao
invés da criação dele. Entretanto, esta pesquisa defende que o processo de criação deve possuir uma
dimensão mais profunda, algo que está ligado ao ser e, para que isso ocorra, é preciso que a metodolo-
gia também seja matéria de manipulação. Essa matéria deve ser regulada conforme as necessidades do
processo criativo, para que a mesma não tolha determinadas singularidades que envolvem a relação
entre o sujeito e o objeto (artista e obra). Caso contrário, o condicionamento das reproduções sobre
determinado fazer artístico causam sintomas, delimita a fronteira que distancia a maneira de ver e
agir na obra, no valor, conceito, imagem e processo como somente um produto externo isolado do
artista, algo a ser vendido e mostrado: apenas um objeto formatado destituído de sua singularidade.

Portanto, este artigo propõe uma relação mais próxima entre sujeito e objeto. Dentro dessa perspecti-
va, justifica dizer que o fazer é orgânico, necessita de várias fases, porque o artista está sempre em mo-
vimento. Suas ideias produzidas recebem outras “vestimentas” ao longo do tempo, ou seja, em outro
momento, podem ser desdobradas, readaptadas, reformuladas e etc. A obra finalizada indica não só
o contexto em que o artista está envolvido, mas sua subjetividade dentro desse recorte. A obra está si-
tuada num determinado espaço-tempo: é a materialização presente de sua subjetividade, ou seja, ali o
artista está contido no trabalho. Dessa maneira, a “pele da obra”, ou seja, sua dimensão formal, já não
é mais parte de seu criador, mas extensão dele (ou, no caso de uma arte-ação, uma experiência que
se evoca em determinado lugar). Portanto, esquecer que a obra é um fragmento do próprio artista,
como uma “extensão de seu corpo” (MCLUHAN, 1964) dotada de singularidade, anestesia a potência
investigativa pela qual buscamos em seu processo.

Pensar na obra como sendo uma extensão do artista, viabiliza pensar num fluxo de outros fatores que
permitem a análise do que pertence à subjetividade do mesmo. Como por exemplo, sua trajetória
dentro do discurso, os desdobramentos de suas produções, a escolha da temática, a relação de sua
vida com sua poética etc. Para colocar em prática essa investigação, a pesquisa se baseia em alguns
autores da área da filosofia, como Deleuze-Guattari, Jacques Rancière, Peter Pál Pelbart e John Berger
para pensar esse território da arte e do processo criativo.

1. A OBRA E O ARTISTA

Por mais que a investigação teórica em artes visuais construa alicerces que fortificam a base conceitual
do estudante, e ainda que proporcione um ambiente fértil para criar “ilhas de afinidade” em diversos
campos da área das Artes Visuais, não podemos destituir o fato de que o combustível necessário para
desenvolver a produção é a vontade. Caso contrário, a sensação de vazio predomina e substitui o lugar
onde deveria localizar o propósito, dificultando, muitas vezes, que a ideia vigore na mente e que se
torne um produto tangível. É sabido que, para dar concretude a determinada ideia, o fazer necessita
de disposição, motivação e um método. Entretanto, para que o método respeite a singularidade do

423
criador e da obra, ele deve ser passível de alteração, mudança e modificação: um método “afetado” que
será abordado mais a frente.

Entre o artista e o que virá a ser a obra, existe o fazer. Essa é a relação da criação. Esse fazer é vital e
orgânico, está próximo do que sente o ser, e tal sentimento é o que transmite a singularidade da situ-
ação, fator necessário para afetação e aquisição dessa razão sensível.

Durante o processo artístico, o método se pronuncia através da necessidade, assim como ocorre com
o ser:

A Necessidade é a condição do existente. É o que torna a realidade real. [...] Até recentemente, todos os
relatos que as pessoas faziam de suas vidas, todos os provérbios, fábulas, parábolas, abordavam a mesma
coisa: a eterna, temível e eventualmente bela luta da vida com a necessidade, que é o enigma da existên-
cia – o que se seguiu à Criação, e que subsequentemente sempre continuou aguçando o espírito humano.
Necessidade produz tragédia e comédia. É o que beijamos, ou no que batemos nossa cabeça.

Hoje em dia, no espetáculo do sistema, ela não existe mais. Consequentemente, nenhuma experiência
se comunica. Tudo o que resta para partilhar é o espetáculo, o jogo que ninguém joga e todo mundo
pode assistir. Como jamais anteriormente, as pessoas precisam tentar localizar sua própria existência
e suas próprias dores, sozinhas, na vasta arena do tempo e do universo. (BERGER, 2004, p. 16).

Para que seja possível criar algo, em analogia com o que diz Berger (2004), essa criação se dá mediante
à Necessidade, seja ela qual for. A Necessidade aparece em diversas camadas do processo de criação,
como por exemplo: a necessidade da elaboração da obra; a necessidade de utilizar determinado re-
curso ou linguagem; a necessidade de escolha de algum procedimento e etc. Ao invés de identificar
cada necessidade, é importante atentar para o fato de que existem inúmeras micropolíticas envolvidas
na criação. Isso acontece nas pequenas decisões que fazem o artista optar por uma coisa, e não outra,
dentro do próprio processo. “No espetáculo do sistema”, como diz Berger (2004), é importante “jogar
o jogo” que, como o autor aponta, ninguém joga, e é exatamente nesse “jogar” que prefiro “enraizar”
esta investigação.

Esse “jogo” que menciona Berger, e que permite “localizar sua própria existência”, é o objetivo a que
se propõe essa pesquisa: o autoconhecimento, cujo fim é o “campo fértil”, onde reside a singularidade,
pois, o indivíduo que se conhece – e legitima seus interesses no trabalho – produz uma “voz” que
evoca de sua obra, e isso é um exercício político.

Efetivamente, em primeiro lugar, a política não é o exercício do poder e da luta pelo poder. É, antes de
tudo, a configuração de um espaço específico, a circunscrição de uma esfera particular de experiência,
de objetos localizados como comuns e que respondem a uma decisão comum, de sujeitos considera-
dos capazes de designar a esses objetos e de argumentar sobre eles (RANCIÈRE, 2005, p. 18, tradução
nossa).125

125. Efectivamente, la política no es en principio el ejercicio del poder y la lucha por el poder. Es ante todo la configuración de un espacio
específico, la circunscripción de una esfera particular de experiencia, de objetos planteados como comunes y que responden a una decisión
común, de sujetos considerados capaces de designar a esos objetos y de argumentar sobre ellos. (RANCIÈRE, 2005, p. 18).

424
Durante o processo de criação, cria-se uma delimitação de fronteira, ou seja, uma demarcação de
território. Esse lugar é o espaço específico que proporciona a esfera particular de experiência e, a
partir desta é que são tomadas as decisões para a elaboração da obra, respeitando as necessidades que
envolvem o processo.

Todavia, quando não há disponibilidade e abertura para os requisitos políticos que o processo solicita,
nem tampouco dá importância a autocompreensão e auto-observação durante o fazer artístico, a ten-
dência é desviar para um caminho “já pré-estabelecido”. A produção pode corroer a diferença – propor-
cionada pela experiência singular do indivíduo – e enveredar para outro caminho já configurado e bem
delimitado. Inclina-se, portanto, para a “receita de bolo” apontada no início deste artigo, quando aquele
indivíduo que cria utiliza determinadas “equações artísticas” para reproduzir a mesma voz que profere
regras poéticas, políticas ou estéticas de um determinado lugar já edificado. Dessa maneira, desconsidera
a voz da singularidade no processo, acaba por adotar certos fatores que conduzem a um “lugar-comum”,
já politicamente constituído por normas hierárquicas de um contexto social imposto, ou seja, silencia essa
“voz” da singularidade para veicular outras “frequências”. Como por exemplo, discursos enraizados numa
suposta “razão” econômica, determinada “verdade” midiática, terror político de um securitizado ou uma
confiança no “saber” representativo. Estes são os principais sintomas das “figuras subjetivas da crise” (NE-
GRI; HARDT, 2014, p. 21), que estão presentes na reprodução dos discursos contemporâneos. Quando
não se dá abertura para a “informação viva”126 que está presente na voz da singularidade, uma outra fala
assume, completamente vestida de “informação morta que reforça o funcionamento da disciplina e das
relações de subordinação” (NEGRI; HARDT, 2014, p. 30) e destitui o potencial político da obra.

O potencial político da obra está ligado à sua diferença radical das formas estéticas mercantis e do
mundo administrativo. Mas, este potencial não reside no simples isolamento da obra. A pureza que
este isolamento autoriza é a pureza da contradição interna, da dissonância por meio da qual a obra dá
testemunho de um mundo não reconciliado. (RANCIÈRE, 2005, p. 34, tradução nossa).127

Essa “dissonância por meio da qual a obra dá testemunho”, é onde se encontra a diferença, ou seja, a
singularidade sensível pela qual a experiência individual se apresenta. Segundo o autor, a linguagem é
o veículo das políticas entre os homens. Essa política veiculada pela linguagem está presente durante
os processos que envolvem a experimentação, pois dá sentido ao trabalho.

Quando o indivíduo se relaciona pragmaticamente com sua produção, por meio de técnicas,
ações, formatos, procedimentos destituídos de algum sentido individual, corre-se o risco de assi-
nar embaixo políticas de um “corpo produzido” configurado pelo seu meio. Dá notoriedade aos
condicionamentos de biopoder128 que, por consequência, expõe nitidamente sintomas da crise da

126. NEGRI; HARDT, 2014, p. 30.


127. El potencial político de la obra está ligado a su diferencia radical de las formas de la mercancía estetizada y del mundo administrado.
Pero este potencial no reside en el simple aislamiento de la obra. La pureza que este aislamento autoriza es la pureza de la contradicción
interna, de la disonancia por medio de cual la obra da testimonio del mundo no reconciliado. (RANCIÈRE, 2005, p. 34).
128. Para resumi-lo numa frase simples: o poder já não se exerce desde fora, desde cima, mas sim como que por dentro, ele pilota nossa
vitalidade social de cabo a rabo. Já não estamos às voltas com um poder transcendente, ou mesmo com um poder apenas repressivo, trata-
-se de um poder imanente, trata-se de um poder produtivo. (PELBART, 2009, p. 58). [...] O poder tomou se assalto vida. Isto é, o poder
penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psi-
quismo, até a inteligência, a imaginação e a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido, colonizado; quando não diretamente expropriado
pelos poderes. (PELBART, 2007).

425
subjetividade contemporânea, apontado por Negri e Hardt (2014), evidenciando, a diluição da
singularidade sensível no trabalho, ou seja, nota-se um objeto dotado de intenções alheias à sua
própria estrutura.

Por outro lado, quando se está dentro da visão homogênea entre sujeito e objeto, o trabalho é consi-
derado parte do indivíduo que a criou. Uma extensão. Portanto, seus processos cognitivos, sensitivos
e práticos são parte de diferentes níveis de criação que auxiliam no autodesenvolvimento, aproximan-
do-se do conceito metadesign e auto-poiésis:

É neste sentido que Maturana (1998) utilizam o termo. Para o autor, “metadesign” é um processo pelo
qual um ser vivo atinge sua autorregeneração, ou ainda sua autocriação (o que Maturana e Varella
chamam de auto-poiésis). (MATURANA apud VASSÃO, 2010, p. 21, grifos do autor).

A autopoiésis é elemento importante tanto para a criação como para a metodologia utilizada para dar
concretude à ideia, pois é necessário ser flexível às necessidades que se tornam presentes durante o
processo. A autocompreensão também se desenvolve durante o fazer artístico e, dessa maneira, o pro-
cesso se assemelha a upgrades de programa de computador. Tal fenômeno proporciona investigações
do indivíduo sobre ele mesmo, através da relação observação/auto-observação; análise/ autoanálise e
criação/autocriação, ou seja, uma consciência em constante diálogo com o trabalho. Pois, a obra, fru-
to de processos internos, é percebida como um órgão, o qual foi expelido e exposto em determinado
momento da vida. Isso cria uma conexão, a obra torna-se uma ampliação de si como uma pele que se
descola do corpo e que “aponta” para o indivíduo que a deixou.

2. SOBRE A METODOLOGIA AFETADA E AUTOCONHECIMENTO

A metodologia afetada é uma forma híbrida de outras metodologias, cujo desenvolvimento é altera-
do conforme as circunstâncias, pois o upgrade desse tipo de metodologia consiste em não ser uma
metodologia fechada, “dura” ou precisa, mas que seja ajustável de acordo com as mudanças, sempre
buscando um caminho resoluto pelo qual seu objetivo possa fluir. Portanto, podemos considerar que
o processo é sempre dinâmico, assim como a própria vida, esta que não se encontra “descolada” da
obra, ou melhor, a obra não está apartada da vida do criador.

Para que o ideal se torne material realizado, necessita-se de uma construção metodológica que facilite
o caminho, logo, deve se pensar em construir uma base. Tal estrutura, que será alicerce para a cons-
trução da obra, é passível de transformações, de descobertas e mudanças, pois, para garantir o livre
fluxo da criação, o método deve ser flexível, para que o propósito possa emergir. De fato, o próprio
trabalho exigirá diversas maneiras de lidar com seu objeto, propondo problemas a serem resolvidos.
Para isso, a metodologia deve estar “aberta” à manipulação e ajustes, em outras palavras, passível de
ser alterada, conforme a execução da obra.

Tudo isso ocorre de forma cíclica, sempre se autorregulando. E, para manter um campo fixo dentro
de tanta flexibilidade, é necessário a elaboração de uma espinha dorsal, tal como o planejamento de
um programa de ação – semelhante a proposta de programa performativo da Eleonora Fabião (2013)
–, sempre intercalando com momentos de suspensão e reflexão dos processos.

426
O experimentalismo na produção de arte permite descobrir autonomamente seus processos. Estar sozi-
nho consigo mesmo na execução proporciona aprendizados sobre si e sobre o que se faz através da ex-
periência. De qualquer forma, ter consciência e participação desse processo, é investigar-se em reclusão.

Pensar em si mesmo é também buscar a si através da obra, fazer e perceber-se nela: afetar-se.

Não há como separar essas duas coisas ao se entender a obra como uma explicitação do pensamento
ou da forma de pensar do artista. Ela evidencia algumas coisas a seu respeito, a respeito de suas pre-
ferências, de sua visão de mundo. Portanto, a obra é, com certeza, um dos aspectos formadores da
imagem do artista. (ARAÚJO, 2008, p. 114-115).

A arte está ligada diretamente ao indivíduo, pois o trabalho se viabiliza através de uma série de ações mi-
cropolíticas do ser que a veicula. Se nos permitimos a imaginar, a obra exposta seria como um fato con-
creto, ou uma espécie de “fotografia”, da subjetividade do indivíduo e do contexto daquele determinado.

O universo que envolve seguir a carreira das Artes Visuais é vasto e diverso, necessita de uma meto-
dologia de ação e um posicionamento claro sobre si, conforme seus objetivos, ou seja, de que forma
se quer atuar. É autônomo e autogestionado. Diante deste fato, podemos saber que não há fórmula
padrão, e aqueles que se interessam por tal campo devem desenvolver sua própria maneira, através
da percepção. Pensar no campo da Arte com seu conjunto amorfo de modos de processo, diversas
fronteiras de atuação e inúmeros métodos de planejamento e criação é caminhar por um percurso que
só será definido e explorado por si mesmo: escolher estar sozinho, caminhando com sua autonomia,
experimentando quais as melhores ferramentas a utilizar.

Ao iniciar a carreira nas Artes Visuais, existem fatores que são necessários durante o processo do tra-
balho daquele que cria, um deles é a necessidade do fazer como “formação de si”. Durante o desen-
volvimento criativo, ficam em evidência, situações, reflexões, sensações e outros procedimentos que
envolvem a gênese; operações essenciais para determinar o desenvolvimento orgânico da metodologia
do propositor. Compreende-se que o processo criativo de uma obra parte de acordo com a maneira em
que se vive, sente e age o criador, cujo planejamento e a forma de se lidar com o trabalho está anexado à
existência dele e é passível de periódicas mudanças em sua concepção. Importante reforçar: o processo é
dinâmico. O fazer, pensar e sentir são orgânicos e cooperativos, autocriam-se e se autoregeneram.

Dessa maneira, o processo deve experimentar a constante autopercepção, levando em consideração a


flexibilização do método, aproximando-se daquela voz que o ser compartilha com aquilo que cria. Do
contrário, “se existe distância muito grande entre o artista e a sua obra, pode-se criar um problema”
(ARAÚJO, 2008, p. 115). Fazer sem ter consciência do que se faz pode cair na inércia da reprodução
constante ou apenas “correr atrás do próprio rabo”. Segundo Araújo, “uma proximidade do artista
personaliza o objeto de arte, cria um diálogo” (ARAÚJO, 2008), portanto os atos de “perceber” e “ob-
servar” são os primeiros passos para abrir a porta para outras complexidades que envolvem a Arte.
Trato aqui algo semelhante ao conceito de bioascese129: observar a própria vida como minério para a

129. Bioascese é um cuidado de si visando o corpo, é adequar o corpo, seja para uma vida saudável ou aos moldes da cultura do espetá-
culo, conforme um modelo de celebridade. Essa decisão é autoimposta, uma tentativa de ser autonomamente explorado. (ORTEGA apud
PELBART, 2009, p. 60).

427
produção, autoimpondo valores próximos ao cuidado de si, partindo de percepções que se adéquam
a si mesmo. Produzir a si mesmo e construir a obra, assim como seu contrário.

Um exemplo de experiência é produzir e ocupar espaços urbanos para descobrir os próprios limites
enquanto artista. Nesse ambiente, a feitura de obras não necessariamente precisa seguir uma série
de normas de alguma instituição, nem tampouco cumprir ordens ou uma série de regras impostas.
É exigido uma postura provida de interesse, organização e responsabilidade com o próprio trabalho,
pois a produção da cultura urbana é, antes de tudo, uma criação para si, pois o que importa é a assina-
tura e a aquisição de território. Logo, pode-se compreender que possui forças autocráticas. Para que
se veicule a obra no espaço urbano, é exigido uma série de programas para a realização do trabalho,
desde a escolha de um tema, como o local onde vai ser inserido, até as formas de registro. Um exemplo
de prática autônoma que permite, por meio desta, adquirir experiências necessárias para aquele estu-
dante que investiga a carreira nas Artes Visuais para criar estruturas sólidas que auxiliem seu próprio
processo de produção.

O fato de intervir no espaço público por conta própria exige do indivíduo postura para várias situ-
ações ligadas ao contexto social urbano. Fatores que envolvem a segurança pública, a desigualdade
social, restrições jurídicas e morais que, pelo fato de não estar sendo acompanhado por alguma ins-
tituição ou curador que financie o trabalho, faz com que o artista desenvolva sua autonomia. Diante
disso, para atingir um grau de realização gratificante, a autonomia exige uma metodologia “afetada”,
adequada ao processo, em que o artista necessita de um método que se adéque ao seu modo de ser,
de agir e viver no mundo.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar na ligação entre artista e obra possibilita questionar o direcionamento pelo qual o estudante
está seguindo em sua própria vida. O que está em questão neste artigo não é a imagem de ambos, mas
a relação entre criador e criatura (mesmo que seja ela um objeto), onde há uma conexão sensível entre
ambos, embora independentes um do outro. Perceber essa extensão que conecta um ao outro é um
fator que auxilia a consciência como um recurso criativo. Mostra um caminho.

O processo de criação e a escolha de onde e como atuar não é apenas uma escolha simples, é preciso
ter método e conhecimento de si. No caso das Artes Visuais, o indivíduo deve compreender que a
produção da obra depende também do envolvimento de seus interesses e valores que estão presentes
em seus “órgãos”, pois o sentido desse envolvimento na produção não está apenas nas “influências”
midiáticas nem nas “tendências” contemporâneas do corpo social, mas também na crença que o indi-
víduo tem na singularidade de seu próprio trabalho. Ou seja, nesse caso, também, em si.

Olhar para si mesmo com a contemplação de um pesquisador-artista permite entender como funcio-
nam seus próprios processos. As descobertas enveredam para uma captação de recursos necessários
à existência, fator imprescindível que demonstra, por meio da linguagem, o espírito e a intenção de
quando se faz Arte. Por conseguinte, levando em consideração que o funcionamento “em anonimato”
é um processo natural do inconsciente, sendo difuso, profundo e oceânico, o objetivo de identificar
estados de si mesmo é detectar os fatores que emergem na “superfície”, ou seja, quando se obtém

428
consciência do fato. Portanto, o trabalho finalizado é uma “matéria-pronta” do estado subjetivo do
artista. É sua extensão, pois contém ali uma apresentação da intencionalidade do criador dentro do
espaço-tempo. A partir do momento em que é exposta, a obra se desdobra como também o artista se
desdobra, entrando em contato com novas experiências, cujo processo é notavelmente retroalimenta-
do tanto pela obra quanto pela sua vida.

REFERÊNCIAS

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429
A montagem do filme na
construção da cultura visual
Leandro Machnicki Altaniel

O cinema e sua produção em relação às artes visuais é tema bastante conhecido de pesquisa, po-
rém em áreas mais específicas, como na montagem do filme, ainda há pouca exploração teórica sobre
sua contribuição para a cultura visual. Nas etapas de pré-produção, produção e pós-produção, algu-
mas atividades parecem bastante claras na sua contribuição para o universo das artes, como é o caso
da fotografia, da direção de arte e mesmo da produção de figurinos. Nestas atividades, o legado para a
cultura visual é facilmente reconhecido, pois, a retratação de determinada sociedade está diretamente
ligada às formas visuais como esta é representada nos filmes em cada época.

A linguagem produzida pela montagem refletiu em cada época diferentes modos de organizar a for-
ma de exibição da narrativa. Ao trabalhar com a representação, a partir do universo simbólico e seus
significados, a montagem será a base para a análise desta linguagem no contexto do cinema.

O tema a ser investigado neste trabalho se refere à relação entre as possibilidades utilizadas pelo
cineasta e designer Saul Bass na montagem de aberturas que criou para os filmes, como forma de
apresentar narrativas de maneira alternativa ao cinema clássico, para produzir efeitos diferenciados,
bem como em seus cartazes e a possível influência desta linguagem nos trabalhos do artista Poty
Lazzarotto.

Portanto, a pergunta que norteará o desenvolvimento desta pesquisa é: a linguagem criada pelas mon-
tagens de Saul Bass influenciou a arte de Poty?

O contexto social, político, econômico e cultural em que alguns filmes foram realizados e exibidos,
como é o caso dos filmes russos de Serguei Eisenstein, sugerem que, por meio da montagem, é pos-
sível exibir ao espectador uma interpretação específica da história narrada. O intervalo entre as ima-
gens, sua disposição, a sequência de fotogramas exibidos de forma alternada, entre outras técnicas,
apresentam um novo contexto social de interpretação para aqueles filmes. Para Eisenstein (2002), é
possível inserir ideias sobre o trabalho, sobre a relação da sociedade com a revolução, sobre o po-
der etc, por meio da montagem. Ao se relacionar com o universo da representação, o espectador é
conduzido à análise das imagens de forma mais significativa, a partir de determinado contexto. Ou-

430
tros cineastas também trabalham com este mesmo conceito de produção de linguagem por meio da
montagem, ainda que essa construção, do modo como concebeu Eisenstein, tenha sido questionada
posteriormente. Todavia, a utilização da montagem como recurso para criar efeitos dramáticos, para
simular a passagem do tempo, para sugerir conteúdos ao espectador é um mecanismo amplamente
utilizado pelos diretores e cineastas na produção de seus filmes.

Para o embasamento desta pesquisa serão utilizados autores em artes visuais, em cinema e em comu-
nicação. Mais especificamente, os assuntos a serem abordados serão: a cultura visual, a imagem, os
fundamentos da semiótica, a montagem e a narrativa em relação a uma construção de significados.

O objetivo geral desta pesquisa será explorar a possível relação entre as montagens de Saul Bass e a
arte de Poty Lazarotto a partir da estruturação de um panorama contextualizado de análise das aber-
turas dos filmes de Saul Bass em comparação às obras de Poty.

Para isso, os objetivos específicos serão: analisar as aberturas dos filmes em que Saul Bass criou inter-
ferências gráficas e visuais; coletar e organizar os cartazes dos filmes criados por Saul Bass; verificar os
mecanismos utilizados por este cineasta quanto à estrutura narrativa e aos elementos gráficos utiliza-
dos nestas aberturas; estruturar um panorama com os trabalhos criados por Poty Lazarotto; verificar
possíveis semelhanças e diferenças entre os trabalhos destes dois artistas.

O objeto de estudo desta pesquisa é a influência do trabalho do cineasta Saul Bass na arte de Poty
Lazzarotto.

A pesquisa será documental, teórica e exploratória com o objetivo de relacionar atividades e ações
que compreendam a montagem e a contextualização dos trabalhos dos dois artistas quanto à cultura
visual. Para tanto, será realizada uma revisão bibliográfica, para verificar o posicionamento dos auto-
res quanto ao tema. Da mesma forma, esta pesquisa será qualitativa, uma vez que ela será descritiva
com a interpretação e atribuição de significados às informações analisadas.

As fontes documentais serão as aberturas de filmes e os cartazes do cineasta Saul Bass e os murais cria-
dos pelo artista brasileiro Poty Lazarotto. Essa escolha levou em conta diferentes universos culturais e
lapsos temporais para que a contextualização e análise possa ser percebida para além de cada obra.

Como é parte do processo da própria arte constituir linguagens e propor pontos de vistas particulares e
diferenciados, entende-se que a pesquisa qualitativa seja a mais adequada para esta pesquisa, uma vez
que pretende tratar de questões subjetivas e de significados criados por estes artistas em seus trabalhos.

1. CULTURA VISUAL

Considerando a fragmentação presente no mundo contemporâneo, e as várias áreas que estudam o


universo da visualidade, como o cinema, as artes visuais, a antropologia, a sociologia, etc., a definição
considerada neste trabalho é a de cultura visual de Barnard (1998), na qual duas vertentes de estudos
são consideradas. A primeira delas enfatiza o visual, e tenta normatizar seus objetos de estudo como
sendo a arte, a moda, o design, entre outras. A segunda vertente, parte da cultura como linha estru-

431
turante dos estudos e, por isso, está relacionada aos valores e às identidades de determinada cultura a
partir do visual. Esta segunda vertente é discutida por Mirzoeff (2003), segundo o qual a experiência
visual não é necessariamente relacionada com a habilidade de interpretar as imagens. Ele afirma que
cultura visual não se trata apenas de uma história imagética ou que dependa apenas das imagens,
pois, envolve, também, o social e a construção das identidades. Ainda, o autor sugere que a discussão
sobre a cultura visual é nova, por focar na criação e discussão de significados, e, que a priorização
para entendimento desta área é a experiência cotidiana do visual, portanto, o papel de consumidor
das representações e das imagens.

A partir desta definição e considerando a cultura, surge a questão da contextualização, que situa de for-
ma mais ampla o modo como as imagens são produzidas e consumidas. Neste sentido, vale diferenciar
a visão da visualidade, pois, segundo Walker e Chaplin (2002), a visão é o processo fisiológico no qual a
luz impressiona os olhos, enquanto a visualidade se define como o olhar socializado. Este olhar é justa-
mente o que contém o universo das representações e o meio para entender o contexto da cultura visual.

2. IMAGEM E REPRESENTAÇÃO

A imagem é um dos itens mais básicos desta análise, uma vez que a qualidade de seus significados e
do seu uso estão presentes no cotidiano das artes visuais e também do cinema. A representação é uma
das qualidades da imagem que merece maior atenção. Santaella (2005, p. 16) demonstra que,

Na semiótica geral, encontram-se definições muito variadas do conceito de representação. O âm-


bito de sua significação situa-se entre apresentação e imaginação e estende-se, assim, a conceitos
semióticos centrais como signo, veículo do signo, imagem (“representação imagética”), assim como
significação e referência.

Assim, uma representação pode trazer significados que podem ser interpretados pelo observador da
imagem. A partir da representação, presente na imagem, uma análise parte da visão de que esta in-
terpretação depende de fatores culturais, sociais e de aprendizado. Para Joly (2004), a distinção entre
percepção e interpretação é necessária, pois

reconhecer este ou aquele motivo e nem por isso significa que se esteja compreendendo a mensagem
da imagem na qual o motivo pode ter uma significação bem particular, vinculada tanto a seu contex-
to interno quanto ao de seu surgimento, às expectativas e conhecimentos do receptor (p. 42).

Desta forma, para analisar uma imagem, é necessário entender mais do que apenas a intenção do
autor ou mesmo o significado da imagem como se percebe, é também importante o contexto ao qual
ela está inserida. O trabalho do analista da imagem seria o de “decifrar as significações que a “natura-
lidade” aparente das mensagens visuais implica”.

Nesta abordagem, fica claro que a interpretação da imagem é uma linguagem e, nesta condição, é
heterogênea e diferente do mundo real, uma vez que se utiliza de signos para transmitir sua mensa-
gem. Quanto às funções da imagem, ainda são observados outros fatores pela autora, como “situar
os diversos tipos de imagens no esquema de comunicação e comparar os usos da mensagem visual
com os das principais produções humanas destinadas a estabelecer uma relação entre o homem e

432
o mundo” (JOLY, 2004, p. 55). Isso demonstra a importância na compreensão do uso das imagens
nos filmes como representação para criar significados que se relacionam com o universo simbólico
do observador.

Na qualidade de signo, as imagens podem ser tratadas como significante e significado, como propõe
Saussure, e ainda a partir da visão triádica proposta por Pierce. Os signos carregam sentidos próprios
que podem ser arbitrários, como é o caso do símbolo descrito na classificação de Pierce, que nasce
a partir de uma convenção. Por outro lado, os signos podem indicar interpretações abertas e, assim,
muitos universos de contextualização são possíveis e podem ser interpretados a partir do universo de
referências do observador. Barthes (2001) demonstra a importância dos signos no cotidiano:

Uma roupa, um carro, uma iguaria, um gesto, um filme, uma música, uma imagem publicitária, uma
mobília, uma manchete de jornal, eis aí, aparentemente, objetos completamente heterogêneos. Que
podem ter em comum? Pelo menos o seguinte: todos são signos (p. 177).

O autor discorre também sobre a leitura destes signos e suas relações com o sujeito:

O homem moderno, o homem das cidades, passa o tempo a ler. Lê primeiro e principalmente ima-
gens, gestos, comportamentos…essas “leituras” são importantes demais na nossa vida, implicam de-
masiados valores sociais, morais, ideológicos etc.

O universo de sentidos gerado pela leitura dos signos e neste caso, especialmente o das imagens, é fato
que se insere no cotidiano de cada um que interpreta aquilo que percebe, gerando significado para
si e para o contexto. Da mesma forma, acontece com um filme que, ao contar uma história, traz um
universo ainda mais amplo de visões de mundo, de perspectivas morais, ideológicas e de significados.
A representação da imagem, para Aumont (2012), é uma operação de ordem narrativa, em que se
representa o espaço e o tempo, este último chamado de diegético.

A diegese é uma construção imaginária, um mundo fictício que tem leis próprias mais ou menos
parecidas com as leis do mundo natural, ou pelo menos com a concepção, variável, que dele se tem.
Toda construção diegética é determinada grande parte por sua aceitabilidade social, logo por con-
venções, por códigos e pelos simbolismos em vigor numa sociedade (Ibid., p. 259).

Considerando a questão, o autor formula sobre o sentido da imagem, relacionando as imagens às


palavras e as imagens à linguagem. A imagem icônica pura não seria possível, pois, seu processo de
compreensão envolve o domínio da linguagem verbal. O simbólico só se torna possível quanto à sig-
nificação, por estar associado diretamente a esta linguagem.

3. MONTAGEM NO CINEMA

A montagem pode ser definida como o conjunto de operações que estão ligadas para ajustar, ordenar,
escolher os planos e as sequências que farão parte do filme. Também é possível atribuir significações a
partir destas escolhas. De acordo com Aumont (2012), a montagem pode ser utilizada para criar con-
textos narrativos, dramáticos, informativos, visuais, experimentais, etc., com o objetivo de alcançar o
sentido pretendido pelo filme.

433
Este processo permite que a ideologia do autor se faça presente, uma vez que as imagens e sua ordem
não serão uma fiel reprodução do mundo real, mas sim uma representação com conteúdo simbólico.
Munstenberg (1999) coloca a montagem como uma arte da subjetividade, que consegue imitar a
forma como a consciência trabalha com o mundo dos fenômenos, traduzindo o espaço e o tempo do
mundo exterior para a percepção relativa à atenção, à imaginação, às emoções e à memória. Assim, a
partir da montagem do filme, é possível gerar um processo de percepção de realidade. Essa capacida-
de, segundo este autor, insere a montagem como representante de uma reestruturação da percepção
das imagens em movimento e, por isso, insere o cinema no século XX como construtor de uma cul-
tura visual, que une espetáculo e consumo, a partir da subjetividade.

Por outro lado, Eisenstein (2002) produz uma teoria em relação à montagem, no caminho contrário:
o da objetividade. Ele entende como imagem a construção da soma das representações geradas pela
leitura das qualidades sensíveis de uma obra. Para ele, a imagem-representação é a primeira impres-
são do espectador ao se deparar com um objeto estético. Coloca ainda esta imagem como individual,
distinta e constituinte da imagem-conceito. A imagem-conceito, para ele, é a soma destas imagens
individuais e traduz o sentido pretendido pelo autor. Com isso, ele formula que a apreciação da ima-
gem-conceito deve ser completa para que seja compreensível o sentido pretendido pelo autor da obra.
Tarkovski (1998) questiona o modelo proposto por Eisenstein:

Uma vez em contato com a pessoa que o vê, o filme se separa do autor, começa a viver a sua própria
vida, passa por mudanças de forma e significado. (...). Não aceito os princípios do ‘cinema de mon-
tagem’ porque eles não permitem que o filme se prolongue para além dos limites da tela, assim como
não permitem que se estabeleça uma relação entre a experiência pessoal do espectador e o filme
projetado diante dele (Ibid., p. 140).

Nesta questão, Tarkovski questiona que, para além desta teoria, existe a percepção do espectador. Ele
sugere que a imagem pretendida pelo autor não é apreendida pelo espectador de maneira fiel, porque
também depende da percepção e das sensações que este último irá desenvolver, não mais ligada à
obra, mas sim a ele mesmo. Pierce (1999) propõe que esta é a função representativa, que é a relação do
signo com o pensamento, independente da qualidade material e da aplicação pura. Para ele, a função
representativa é a representação subjetiva, portanto ligada à percepção e interpretação do signo.

4. TEMPO NO CINEMA

Intervalo foi o termo utilizado pelo cineasta Dziga Vertov para designar a distância entre as imagens
em um filme. Ele propõe o intervalo como fundamento de um tipo de cinematografia, onde a signi-
ficação viria da combinação de relações abstratas entre formas, enquadramentos, durações etc. Na
representação do tempo, ele utiliza o intervalo para definir a passagem brusca de um estado temporal
para outro, entre dois planos com imagens, quando não é possível reestabelecer nenhuma continui-
dade. O salto define essa mudança de plano quando o ponto de vista é mantido, apesar da mudança,
e então se cria uma elipse temporal. Um exemplo disso, é a utilização do som, pois, utilizado em
conjunto com a imagem, potencializa a representação do tempo. A continuidade do som, apesar de
um corte de plano, pode criar a sensação de que a cena não acabou e, assim, simular um novo tipo de
expectativa em relação à percepção das imagens e do tempo.

434
A avaliação da narrativa de um filme, as relações de causa e efeito, as construções de significados,
podem ser interferidas pela montagem, a partir da sequência temporal que é introduzida no filme,
de forma psicológica, não mais ligada à duração real do tempo do filme ou de cada plano. O tempo, a
partir desde conceito, é subordinado à estrutura narrativa e vinculado à relação de causalidade.

Deleuze (1985) também postula em relação ao tempo e à imagem, inserindo o conceito, entre outros,
da imagem-cristal para definir metaforicamente a coexistência da imagem atual e da imagem virtual.
A segunda está inserida no contexto, como o passado no presente, ou, “o passado contemporâneo”.
Aumont (2012) cita exemplos em relação a esta proposição de Deleuze:

Encontra os exemplos principais no cinema dos anos 1950 e 1960, de Orson Welles e de Alain Res-
nais, que exploram o tema da memória e o transpõem em formas fílmicas, de Alain Robbe-Grillet,
cujo cinema não distingue entre futuro, passado, presente e produz todos os acontecimentos suces-
sivos “como um único e mesmo acontecimento”, e finalmente de Jean-Luc Godard, que trabalha o
tempo como operador do devir, do aparecimento, da metamorfose (p. 254).

O autor cita a relevância do estudo de Deleuze, informando que a própria reflexão sobre o tempo foi
alterada pelo cinema. Em relação à síntese temporal da imagem, a imagem-cristal

[...] não se apresenta como colagem ou montagem, mas é seccionada pela dupla ação do tempo no
interior dela mesma. Mais amplamente, essa metáfora do cristal, que refrata a realidade multiplican-
do-a, talvez seja a mais sugestiva das fórmulas que se podem aplicar à representação do tempo na
imagem: refratado, parado, multiplicado, dividido - e sempre voltado para um presente.

Para Aumont (2012), a representação do tempo e do espaço na imagem, na maior parte das vezes, é a
representação de um acontecimento também situado no tempo e no espaço. Assim, a imagem, ainda
que representativa, tem o efeito de imagem narrativa, ou seja, apresenta características da linguagem
narrativa.

5. ELEMENTOS DA NARRATIVA

Os elementos básicos da narrativa são: o narrador, o cenário, os personagens, o enredo, o tempo e o


espaço. A importância de um ou de outro depende do tipo de narrativa escolhida. No caso de filmes
literários, por exemplo, o personagem é quem poderá ocupar o lugar principal na trama, uma vez
que suas ligações com o protagonista, com o antagonista e com os coadjuvantes é que determinarão a
jornada na história a ser revelada.

Machado (2002, p.103) coloca que “a sucessão dos planos é montada como as premissas e conclu-
sões de um teorema, a ordem dos fatores determinando o produto. Essa lógica que subjaz à suces-
são foi fator determinante na tendência rumo à linearização narrativa” e trouxe uma “fragmentação
da narrativa em unidades elementares de sentido”. Assim, os cineastas desenvolveram uma nova
linguagem, a partir da captura e seleção de planos, que pudesse formar uma sequência lógica e criar
sentido para os espectadores. Entende-se, a partir dos conceitos expostos acima, que uma análise
mais aprofundada da montagem necessariamente deve considerar os elementos da estrutura nar-
rativa.

435
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa se encontra em andamento e, por isso, a coleta de dados sobre as obras dos artistas Saul
Bass e Poty Lazarotto está em estágio de execução. As informações aqui apresentadas são parciais,
restando o desenvolvimento da pesquisa para apresentação de conclusões quanto ao objeto de estudo
apresentado.

No entanto, já é possível inferir, a partir da análise dos autores mencionados sobre a imagem e sobre a
montagem, que o processo de interpretação é subjetivo e que este depende tanto da mensagem visual
criada pelo autor quanto do repertório individual de cada sujeito. Outra questão colocada se refere ao
universo cultural de cada época, é possível perceber, a partir desta discussão, que toda interpretação
criada sobre as imagens depende de uma contextualização social, política, histórica, entre outros fato-
res, que também exercem influência quanto ao entendimento das imagens em relação à cultura visual.

REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 2012.


BARNARD, M. Art, Design and Visual Culture. London: Macmillan, 1998.
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
______. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
EISENSTEIN, Serguei. O sentido do filme. São Paulo: Jorge Hazar Editor, 2002.
______. Métodos de montagem. In: A Forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 2004.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. Campinas: Papirus, 2002.
MIRSOEFF, N. Una introducción a la cultura visual. Barcelona, Paidós, 2003.
MUNSTENBERG, Hugo. Trechos escolhidos. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência cinematográfica. São
Paulo: Graal, 1999.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva. 1999.
______. Métodos de tratamento do material (montagem estrutural), Os Métodos do Cinema; O Diretor e o
Roteiro. In: A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal/ Embrafilme, 1983.
SANTAELLA, Lúcia; NOTH, Winifried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2005.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VERTOV, Dziga. Nós, variação do manifesto, Resolução do conselho dos três, nascimento do Cine-olho; Extra-
to do ABC do Kinoks. In: A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal/ Embrafilme, 1983, p. 245-263.
WALKER, J. A.; CHAPLIN, S. Una introducción a la cultura visual. Barcelona: Octaedro, 2002.

436
Miller e os 300 –
graphic novel & cinema
Kyrti de Aguiar Silveira Ford

Vem e toma.
[Resposta do Rei Leônidas à exigência do Rei Xerxes para
que os espartanos depusessem suas armas.
Em grego antigo molon labé.]

1. O DESENHISTA

Para aqueles que transitam pelo universo das HQs é difícil não reconhecer o nome de Frank Miller.
É um nome associado à vanguarda, inovação, maestria e inédita criatividade. Miller revolucionou a
literatura dos quadrinhos na década de 1980, época em que se popularizaram as Graphic Novels130.
Começou a desenhar desde jovem, inicialmente para fanzines131, passando, em seguida, a trabalhar
como free-lance para as grandes editoras de quadrinhos nos EUA, a DC e a Marvel Comics. Nesta
última, obteve o posto de desenhista regular do personagem Demolidor. Não demorando muito para
se tornar, também, escritor. Sua visão para o Demolidor, voltada para o público adulto e mais exigen-
te, reformulou o personagem, revestindo-o de tridimensionalidade e profundidade narrativa, que o
marcou definitivamente. A adaptação cinematográfica do Demolidor (2003), interpretado pelo ator
americano Ben Affleck, assimilou diversos aspectos que foram desenvolvidos por Miller.

Em 1986, Miller vai além do êxito que obteve na reestruturação do Demolidor, quando, associado à
DC Comics, criou o argumento, o roteiro e fez a arte para a Graphic Novel ‘O Cavaleiro das Trevas’.
Nela, Miller resgata o caráter sombrio do Batman, tecendo o personagem como um violento e ines-
crupuloso vigilante. A história, publicada em duas partes, estabelece definitivamente o seu nome no
universo dos quadrinhos. Tal qual o Demolidor, a interpretação que Miller deu ao Batman influen-
ciou as versões do personagem para o cinema.

130. Uma história ficcional longa e elaborada que é apresentada em tiras de quadrinhos, mas em formato de um livro. O termo foi inicial-
mente usado em 1964, mas apenas em 1978 começou a ser utilizado pela comunidade diretamente ligada a indústria dos HQs.
131. Publicações feitas por pessoas e para as pessoas que gostam de um determinado tema. Vocábulo oriundo da contração das palavras
em inglês fanatic magazine (Revista de fãs).

437
Miller começou a trabalhar para o cinema fazendo os roteiros para os filmes Robocop (1990) e Ro-
bocop 2 (1993). Após este último, decepcionado com as interferências constantes que a indústria
cinematográfica fazia em seus roteiros, teria afirmado que jamais permitiria que suas histórias fossem
alteradas. Esta posição de Miller mudaria com a adaptação para o cinema de sua própria série em
quadrinhos Sin City 132 (Imagem 1)133. O filme foi co-dirigido por Miller e Robert Rodriguez (diretor
de El Mariachi134). Quentin Tarantino teve a participação especial como diretor de uma cena. O filme
segue com fidelidade as nuances de luz e sombra desenhadas por Miller.

Imagem 1. Capa da edição americana de Sin City.


Fonte: Comic Book Resources [blog].

Nos quadrinhos, de onde o filme é originário, Miller utiliza uma paleta de apenas três cores:
preto, branco e vermelho. A película segue o tom noir, com toques surrealistas da HQ (Imagens
2 e 3)135. Miller assistiu a muitos filmes noir na juventude e apreciava os traços cinematográfi-
cos dos mangás japoneses. Os gibis japoneses não são – em sua grande maioria – impressos em
cores.

132. Série em quadrinhos publicada em treze partes. Lançada nos EUA em 1991. Última parte publicada em 2000.
133. Disponível em: <http://robot6.comicbookresources.com/wp-content/uploads/2010/05/sin-city-1-for-1.jpg>. Acesso em: 08 set. 2014.
134. Filme de ação mexicano-estadunidense produzido em 1992.
135. Imagem 2 – Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/_e43pCcKG6bQ/SNKS-o0txGI/AAAAAAAABgA/ fxXlz9tzn6Y/s320/
sin+city+hartigan+e+nancy+10_1.jpg>. Acesso em: 08 set. 2014. e Imagem 3 – Disponível em: <https://rcichocki.files.wordpress.
com/2010/04/scene1.jpg>. Acesso em: 08 set. 2014.

438
Imagem 2. Sin City em sua versão quadrinhos e a Imagem 3. John Hartigan. Sin City em sua versão
adaptação para as telas. quadrinhos e a adaptação para as telas.
Fonte: FiXão Files [blog]. Fonte: R. Cichocki’s blog.

Os personagens são John Hartigan e Nancy,


interpretados respectivamente por Bruce Willis e
Jessica Alba.

2. OS ESPARTANOS

O sucesso de Sin City (2005) levaria às telas outra adaptação cinematográfica de uma das Graphic
Novels desenhada e roteirizada por Miller. O filme 300 (2006) é baseado na Graphic Novel Os 300 de
Esparta136. Ela descreve, em cinco partes, o episódio da Batalha das Termópilas, ocorrida no ano de
480 a.C., quando um reduzido grupo de soldados espartanos enfrentaram, até a morte, o exército per-
sa invasor. O combate é marco de destaque na história devido à enorme desvantagem numérica entre
os gregos e os persas. É citado pelo geógrafo e historiador grego Herótodo de Halicarnasso137 (485 –
420 a.C.) em sua obra As Histórias de Heródoto138. A Batalha de Termopilas é um momento histórico
que fez parte das Guerras Médicas139 e, por isso, é citada por outros historiadores como Plutarco140.
As Guerras Médicas também inspiraram o dramaturgo grego Ésquilo141, que a cita em sua peça Os
Persas. Termópilas era um balneário de águas térmicas (Daí o nome ‘portões quentes’) e foi o cenário
do embate travado pelo pequeno contingente do exército grego comandado pelo Rei Leônidas contra

136. Título brasileiro. A Graphic Novel foi publicada no Brasil pela Editora Globo. Nos EUA, foi publicada, em 1998, pela editora Dark
Horse, sob o título 300.
137. Atualmente a cidade de Bodrum na Turquia.

138. As Histórias foram posteriormente divididas em nove livros cujos títulos possuíam os nomes das musas.

139. Conflitos bélicos entre os antigos gregos e o Império Aquemênida durante o século V a.C.
140. Romano de origem grega (46 - 120 d.C.) foi além de historiador, biógrafo e filósofo platônico.
141. Além de dramaturgo foi soldado. Nasceu em 525 a.C e faleceu aos 69 anos. Os Persas é a mais antiga peça de teatro que se conhece
o texto completo.

439
o exército persa comandado pelo Rei Xerxes I. A batalha se desenrolou por três dias. O escritor e
dramaturgo americano Steven Pressfield publicou, em 1998, o livro ‘Portões de Fogo’ (Gates of Fire
no original em inglês), onde descreve a batalha. O épico, uma ficção histórica resultante de pesquisa
elaborada e minuciosa, é requisito na Academia Militar dos Estados Unidos. O livro é ensinado em
West Point, a academia naval americana.

Em entrevista à versão online da revista americana Entertainment Weekly, Miller confessa que sua
Graphic Novel, da qual o filme homônimo se originou, surgiu de uma fascinação pelo tema que o
acompanhou por toda a vida. Essa paixão se originou após assistir aos cinco anos a versão cinema-
tográfica da Batalha de Termópilas retratada na produção americana de 1962 Os 300 de Esparta142.
Miller explica:

Todas as grandes culturas têm, pelo menos, uma dessas pequenas joias de história [de guerra], uma
história onde você vê um pequeno contingente de homens, ou até mesmo um homem, atingir uma
vitória notável, mesmo que seja apenas moral, contra uma horda enorme. Como o Alamo, Horácio
na ponte, os 47 Ronin, Masada143. (DALY, 2007).

O filme 300 foi dirigido por Zack Snyder144, diretor de cinema americano, ficando Miller com o título
de produtor executivo. A cinematografia segue de perto a visão de Miller. Cenários e figurinos são fi-
éis aos traços da HQ (Imagem 4)145. Enquadramentos e planos são guiados pela narrativa imagética de
Miller. A Graphic Novel é virtualmente utilizada como o storyboard do filme (Imagem 5)146. A HQ não
atingiu entre os leitores de Miller a mesma popularidade de outras como A Queda de Murdock (1981),
que escreveu para a Marvel, Comics ou O Cavaleiro das Trevas (1986), que roteirizou e desenhou para
a DC. Os 300 de Esparta possui o traço forte e angular de Miller, mas ele está mais solto. O filme, tanto
como a Graphc Novel, não aprofunda ou desenvolve os personagens. Pelo menos, não singularmente,
se considerarmos que há, em verdade, duas grandes personas: o ethos do guerreiro espartano e o logos
da máquina invasora persa.

Precisões históricas são ignoradas em prol de direcionar a narrativa para a dramática batalha travada
entre gregos e persas. Na HQ, os espartanos seguem seminus para o front, portando apenas lanças,
espadas, escudo e elmo. Muito do terror e respeito que os soldados espartanos impunham aos seus
adversários, um dos aspectos que os tornaram lendários, era a vigorosa armadura completa que tra-
javam. Seguindo à risca a visão de Miller, o filme também é inadequado na descrição da vestimenta
persa. O Rei Xerxes I é erguido à categoria de um megalomaníaco vaidoso e egocêntrico, portador de
uma estatura sobre-humana. A única distinção vai à personagem da rainha Gorgo, esposa de Leôni-
das, que é inexistente na HQ, mas que assume certo destaque e representatividade na versão cinema-

142. Produzido e dirigido por Rudolph Maté (1898-1964). Diretor do lendário Gilda estrelado por Rita Hayworth.
143. Tradução Nossa.
144. Na filmografia de Zack Snyder estão os filmes Madrugada dos Mortos (2004), Watchmen: O filme (2009), Sucker Punch: Mundo
Surreal (2009) e Homem de Aço (2013) entre outros.
145. Disponível em: <http://static.flickr.com/121/262552628_dd0c023085_o.jpg>. Acesso em: 08 set. 2014. OBS: A imagem original foi
editada pela autora.
146. Disponível em: <http://static.flickr.com/107/262552533_fb74811ad3_o.jpg>. Acesso em: 08 set. 2014. OBS: A imagem original foi
editada pela autora.

440
tográfica. Miller confessa em entrevista que relutou um pouco com o destaque dado à rainha no filme.
Para ele, o Batalha de Termópilas é uma história essencialmente masculina, um Clube do Bolinha
espartano. Sobre as imprecisões históricas, Miller argumenta:

As imprecisões, quase todos elas, são intencionais. Tirei deles as placas peitorais e saiotes de cou-
ro por uma razão. Eu queria que esses caras se movessem e eu queria que possuíssem uma boa
aparência. Em dada medida removia seus capacetes de guerra para que, em parte, os personagens
pudessem ser reconhecidos. Espartanos, em trajes completos, são quase indistinguíveis, exceto em
ângulo muito próximo. Outra liberdade que tomei foi, todos tinham plumas, mas eu só dei a pluma
a Leônidas, para destacá-lo e identificá-lo como um rei. Eu estava procurando mais uma evocação
do que uma lição de história. O melhor resultado que posso esperar é que se o filme emocione
alguém, eles mesmos irão explorar as histórias. Porque histórias são infinitamente fascinantes.147
(DALY, 2007).

Imagem 4. O guerreiro esparta-


no Stelios salta sobre os persas,
Stelios foi interpretado por
Michael Fassbender.300 em sua
versão quadrinhos e a adapta-
ção para as telas. Comparação
de plano e enquadramento.
Fonte: Portal Net. [Fórum na
internet].

Além das imprecisões quanto à vestimenta, há inadequações históricas quanto ao número de solda-
dos retratado tanto no filme quanto na HQ. Estima-se que o exército aliado grego que marchou para
o norte era constituído de 7.000 homens e os persas, cuja lenda reza que chegavam a cinco milhões
de homens, possuíam de fato cerca de 300.000 indivíduos, o que não deixa de ser uma diferença
considerável. O Rei Leônidas possuía cerca de sessenta anos quando tombou em Termópilas, mas,
tanto na HQ quanto no filme, é retratado por um homem jovem no auge do vigor físico. Muitos dos
soldados que acompanharam Leônidas na famosa batalha também eram guerreiros experientes em
idade madura. No filme, Leônidas foi interpretado pelo ator escocês Gerard Butler, que tinha, no ano
da produção da película, trinta e sete anos.

147. Tradução Nossa.

441
O filme inicia-se com a narrativa do soldado Dilios148, sobrevivente à batalha. É um discurso apai-
xonado, com o objetivo de conclamar as tropas gregas a se reunirem e erguerem-se juntas contra o
invasor persa. Na época, século V a.C., a Grécia era dividida em cidades-estados, cada uma liderada
por um rei distinto. A logística de reunir a todos e o exercício político que era exigido para convencê-
-los eram complicados e levava tempo. No filme, esse aspecto é apresentado através dos esforços da
rainha Gorgo em convencer os comandantes e líderes políticos em liberar seus exércitos. Tal momen-
to é inexistente na HQ.

Imagem 5. Leônidas empurra


emissário do rei Xerxes no
poço. 300 em sua versão qua-
drinhos e a adaptação para as
telas. Comparação de plano e
enquadramento.
Fonte: Portal Net. [Fórum na
internet].

Na Graphic Novel, a história é inicialmente conduzida pelo soldado sobrevivente, também Dilios, que
a narra aos camaradas ao redor da fogueira. A história é narrada de forma direta e episódica. O filme
segue a ordem cronológica, começando desde a infância de Leônidas até sua morte no desfiladeiro
de Termópilas. O ritmo segue em um crescendo, conduzido pela clássica narrativa da jornada do
herói: o chamado à aventura, a travessia do limiar, os testes, a aproximação do objetivo (no caso de
Termópilas, conter o exército persa tempo suficiente para que os gregos se reagrupem), a provação
máxima que também é a conquista da recompensa e o retorno do herói (a morte e a vitória). A ação
cresce e decresce, passando pela complicação, crise, clímax, desfecho e resolução. O herói é o exército
espartano, que passa por uma provação descomunal, combatendo estoicamente algo imbatível. “[...]
há dois tipos de proeza. Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a
batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o
nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem” (CAPBELL, 1990). É o conto
clássico do supremo sacrifício: não render-se, não desistir e lutar até a morte.

148. No livro de Steven Pressfield, Portões de Fogo, quem narra a história é o soldado moribundo Xeones. Heródoto, por sua vez, enuncia
a história de forma direta sob o ponto de vista do narrador onisciente e neutro.

442
Imagem 6. Cena em 300 com uso da técnica Chroma key.
Fonte: NeoTeo. [Blog].

Para estar à altura do soldado espartano idealizado por Miller em sua HQ e transportado para as
telas por Zack Snyder, o elenco principal foi submetido a um intenso e rigoroso treinamento físico.
Gerard Butler, o ator que interpreta Leônidas, passou por longo treinamento que durou oito semanas
e envolvia levantamento de peso, aliado a treino de força em circuito. Os espartanos iniciavam seu
treinamento militar em idade tenra. Por volta dos sete anos de idade eram separados de suas mães e
enviados a acampamentos de treino. Tanto a HQ quanto o filme indicam este aspecto.

Para a precisão de locações tão próximas às idealizadas por Miller em sua HQ todo o cenário para o
filme é fictício e montado em estúdio. Os atores atuavam cercados por painéis azuis e a técnica crhoma
key (Imagem 6)149 foi largamente usada nas filmagens. Esta técnica também é uma alternativa para
barateamento de custos de produção. Um filme todo rodado em estúdio permite um controle maior
de iluminação, som e posicionamento de câmeras.

149. Disponível em: <http://www.neoteo.com/wp-content/uploads/2013/07/capture111.png>. Acesso em: 08 set. 2014.

443
Imagem 7. A esquadra per-
sa é destruída pela tempes-
tade. 300 em sua versão
quadrinhos e a adaptação
para as telas. Comparação
de plano e enquadramento.
Fonte: Página no Flickr de
Solace Cinema.
[Site aberto de armazena-
mento de imagens na in-
ternet].

3. ISTO É ESPARTA!

Ao assumir o papel de contador de história, Miller abraça, sem embaraço, todas as permissões que uma
licença poética permite. Seu olhar sobre o drama espartano é de um apaixonado pelos feitos fantásticos
que um herói clássico possui. A suspensão da descrença é erguida a um patamar mais alto e os espartanos
de Miller vão das páginas da HQ (Imagem 7)150 para as telas do cinema, imbuídos de uma aura de lenda
tão fantasiosa e quimérica quanto é possível ser reproduzida pelos recursos técnicos permitidos pela
transcrição da linguagem cinematográfica. O olhar de Miller busca direcionar o expectador (e o leitor de
HQ) à sua própria procura através do imaginário que é provocado pela narrativa e através da visão.

Por definição, o ponto de vista é o lugar a partir do qual se olha. Mais geralmente, é também a ma-
neira como se olha. No filme narrativo, esse ponto de vista está na maior parte do tempo atribuído
a alguém: seja uma das personagens da narrativa. Seja, expressamente, o da instância narradora.
(AUMONT; MARIE, 2003, p. 99).

Miller escolheu uma boa história. A Batalha de Termópilas mexe com o imaginário desde Heródoto,
no século V a.C., até Mary Renault151 e Steven Pressfield, no século XX. O olhar que Pressfield, por sua

150. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/solaceincinema/262552533/>. Acesso em: 08 set. 2014. OBS: A imagem original foi
editada pela autora.
151. Em seu romance histórico publicado na década de 1960, The lion in the gateway Renault narra os conflitos entre persas e gregos
através dos reinados de Darius e Xerxes.

444
vez, lançou sobre a batalha teve aspectos tão marcantes quanto à sua precisão histórica e glorificação
dos espartanos, que a cidade de Esparta, capital do município grego da Lacônia, concedeu-lhe o título
de cidadão honorário. Na filmografia universal, alguns exemplos que dialogam com o imaginário em
torno da batalha são os filmes Patton (1970) e O último samurai (2003).

REFERÊNCIAS

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CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
CORAL, Guilherme. Crítica – Os 300 de Esparta (Graphic Novel). Disponível em: <http://www. planocritico.
com/critica-os-300-de-esparta-graphic-novel/>. Acesso em: 09 set. 2014.
DALY, Steven. Miller’s Tale. Entertainment Weekly, 13 mar. 2007. Disponível em: <http:// www.ew.com/ew/
article/0,,20014175,00.html>. Acesso em: 09 set. 2014.
GOMES, Renata. 300 de Zack Snyder. Revista Cinética. Disponível em: <http://www.revista cinetica.com.
br/300.htm>. Acesso em: 09 set. 2014.
HALICARNASSO, Heródoto de. História – Heródoto. E-book. Disponível em: <http://www. ebooksbrasil.org/
eLibris/historiaherodoto.html>. Acesso em: 08 set. 2014.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.
MILLER, Frank. Blog oficial. Disponível em: <http://frankmillerink.com/> Acesso em: 08 set. 2014.
______. Guia dos quadrinhos. Disponível em: <http://www.guiadosquadrinhos.com/artista/ frank-miller/61>.
Acesso em: 08 set. 2014.
OS 300 de Esparta. Adoro cinema. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-59634/>. �����
Aces-
so em: 09 set. 2014.
PACE, Robert. Gerard Butler’s ‘300’ Training Regimen. ET Online, 25 abr.2013. Disponível em: <http://www.
etonline.com/movies/133367_Flashback_Gerard_Butler_s_300_Training_Regimen/>. Acesso em: 10 set. 2014.
POR HERÓDOTO de Halicarnasso. Disponível em: <http://juizdeforasegura.blogspot.com.br /2012/10/a-ba-
talha-de-termopilas-foi-narrada-por.html>. Acesso em: 09 set. 2014.
RODRIGUES, Washington O. A batalha de Termópilas foi narrada.
SANTANA, Ana Lucia. Graphic Novel. Disponível em: <http://www.infoescola.com/literatura/ graphic-novel/>.
Acesso em: 08 set. 2014.
THIS IS Sparta. Cinema com rapadura. Disponível em: <http://www.cinemacomrapadura. com.br/especiais/
this_is_sparta/>. Acesso em: 09 set. 2014.
YAMAY, Fabrizio. O que é fanzine? Disponível em: <http://fanzineexpo.wordpress.com/o-que-e-fanzine/>.
Acesso em: 08 set. 2014.

445
Uma rançosa teatralidade:
Eisenstein e o teatro no cinema
Anamaria Sobral Costa

S erguei Eisenstein afirma que o seu primeiro filme, A greve (Stachka), patinhava numa rançosa
teatralidade, que se tornava estranha a ele” (2002, p. 24). Mas que elemento ‘estranho’ seria esse, o
qual ele entende compor essa teatralidade, e por que ela seria “rançosa”? Esse ranço diz respeito a
uma forma específica de teatro ou a qualquer gesto que possa ser considerado ‘teatral’? As perguntas
se multiplicam, quando Eisenstein pondera a respeito de como teria começado a fazer ‘cinema’ ainda
durante o período em que realizava ‘teatro’. O que o cineasta entende como cinema e como teatro, e
que surgem como conceitos que parecem escapar ao senso comum? É possível entender a perspectiva
de Eisenstein como um olhar que vai além de uma visão singular e que reflete uma gama de sensa-
ções, opiniões e posicionamentos que interpretam como ‘rançosa’ a presença do teatro no cinema?
O que nesse elemento-teatro incomoda tanto Eisenstein? Tais perguntas serão usadas como balizas
para investigar significações possíveis em torno da perspectiva do cineasta sobre o teatro e o cinema,
inferindo, a partir daí, alguns aspectos das relações entre esses campos.

1. ONDE ESTÁ A TEATRALIDADE?

A greve mostra uma fábrica na qual um operário acusado de roubo se mata, deixando um bilhete que
explica a razão do seu ato. O suicídio desencadeia uma revolta e uma paralisação dos trabalhadores,
prenunciada pelos ‘olhos e ouvidos’ do diretor da fábrica, ou seja, personagens que vão até o gabinete
daquele, para delatar essa movimentação. É interessante observar que o filme inicia alternando closes
nos rostos dos atores que interpretam os espias e o diretor, com imagens dos operários, mostrados em
pequenos coletivos que se misturam às estruturas/engrenagens do lugar.

O diretor da fábrica compõe a típica imagem do famigerado capitalista, que usa cartola, casaca e lança
baforadas do seu charuto em direção à câmera. Seus espias são espécies de homúnculos, curvando-se
em frente ao chefe, arregalando os olhos exageradamente e desenhando gestos largos que assumem
um tom farsesco, e que remetem ao grotesco e ao universo dos bufões. Na mesma linha, são compos-
tos os tipos dos policiais e de seus comparsas – agentes cujas personalidades, desenhadas segundo
os princípios da montagem152 de Eisenstein, são associadas a bichos (raposa, macaco, urso). Um dos

152. A montagem é uma das características mais marcantes do cinema de Eisenstein. Além de montar os fragmentos do filme, de acordo
com os objetivos do filme, o cineasta associava/fundia imagens para conduzir as impressões do espectador. A ênfase na montagem foi um
elemento preponderante do cinema soviético da década de 1920.

446
ápices desse apelo ao grotesco acontece quando, após invadir e destruir as casas dos grevistas, um
policial montado a cavalo segura uma criança do alto de alguns andares e a solta lá de cima. Em se-
guida ao plano que expõe o corpo da criança morta no chão, Eisenstein mostra o também gordo rosto
do chefe de polícia, que gargalha de modo quase histérico. Este não está no local do crime, mas suas
gargalhadas conferem ainda mais sadismo aos atos dos policiais.

Curiosamente, ao compor os trabalhadores, Eisenstein os mostra em interpretações muito mais pró-


ximas de um naturalismo/realismo: sem tantos exageros no uso da pantomima, que tanto marcaram
o cinema mudo e que frequentemente foram vistos segundo o viés da teatralidade. O cineasta retrata
os proletários e suas famílias, enquadrando seus corpos, algumas vezes em contraluz e, conforme dito,
misturando-os ao corpo da fábrica/ de um barco/ de outras maquinarias; ou mesmo em aspectos da
vida em comum: uma festa ao ar livre, reuniões para deliberar sobre a greve, a fuga da multidão acu-
ada pelos policiais. Seria possível enxergar nessas escolhas de Eisenstein e no seu modo de filmar algo
que clareie a ideia da “rançosa teatralidade”?

Tentarei responder, inicialmente, com uma breve explicação do que seria esse tom farsesco, de uma
bufonaria grotesca e que atribuí à composição dos personagens dos capitalistas, dos seus espiões e
dos policiais. De acordo com o Dicionário de Teatro de Patrice Pavis, a palavra farsa vem de farcir, em
francês, que significa uma espécie de alimento temperado que serve como recheio para carnes: “indi-
ca o caráter de corpo estranho desse tipo de alimento espiritual no interior da arte dramática” (2001,
p. 164). Ou seja, o tom farsesco remete a formas de interpretação que tiram partido de uma estranhe-
za frequentemente pautada no exagero. Ainda, segundo Pavis: “a farsa sempre é definida como forma
primitiva e grosseira que não poderia elevar-se ao nível da comédia”, e deveria “sua eterna popularida-
de a uma forte teatralidade e a uma atenção voltada para a arte da cena e para a elaboradíssima técnica
corporal do ator” (Ibid., p. 164)).

Ressalto que “a forte teatralidade” da farsa, segundo Pavis, aparece ladeada de uma ênfase na cena
(e não na palavra), bem como na “elaboradíssima técnica corporal do ator”. Esses pontos são impor-
tantes para uma cartografia inicial dessa teatralidade. Diante da ideia de farsa como corpo estranho,
como uma “forma primitiva e grosseira” e que apresenta “uma forte teatralidade”, seria viável entender
que o elemento estranho, dentro de A greve, acontece no gesto dos burgueses, uma vez que os traba-
lhadores são mostrados de modo mais ‘limpo’? Eisenstein não fornece essa resposta e, justamente por
isso, o esforço feito aqui parte de uma interpretação que conecta a leitura do filme, o pensamento do
seu criador e o contexto que o envolve (trajetória, parcerias, objetivos).

A trajetória de Sergei Eisenstein mostra que este dedicou boa parte de sua vida ao socialismo: de
quando fez parte do exército vermelho, passando por sua experiência como cenógrafo e diretor de
teatro, até os tempos de cineasta e teórico do cinema. E o socialismo pedia aos seus partidários en-
gajamento à causa. Obviamente, a arte e os artistas engajados, não querendo se furtar aos propósitos
socialistas, passam a pensar numa ‘arte revolucionária’, cuja forma dialoga com a ideia de ‘produtivi-
dade’, entendendo que nenhuma obra faz sentido se não for ‘útil’ na perspectiva da revolução.

Nesse filme de estreia, Eisenstein deixa claro em que frente se posiciona. Iniciando com uma fala de
Lênin sobre a necessidade de organização dos proletários, o filme termina com uma carnificina, que

447
alterna o abate daqueles ao abate dos bois num matadouro. O que ele pretende, parece óbvio: uma
incitação à organização da classe operária contra a opressão de ‘capitalistas de casaca’ defendidos por
policiais armados’. Mas qual a relação disso com o teatro/ com a teatralidade?

Ao compor ‘os inimigos do povo’ de modo farsesco, Eisenstein os ridiculariza aos olhos do espec-
tador. São bufões os capitalistas ociosos, recostados em suas poltronas a beber e a fumar, enquanto
analisam as reivindicações dos grevistas. São bufões seus encarregados, os agentes que se disfarçam, e
também os policiais. A greve mostra uma tragédia, mas seu tom é farsesco na interpretação dos opres-
sores, e melodramático, quando os mostra como vilões (no primeiro plano em que aparece, o diretor
da fábrica coça o queixo e ri, inclinando a cabeça para trás). Vilões que perseguem vítimas inocentes,
como uma criança e uma mãe – que tenta resgatar o filho que se escondera embaixo das patas dos
cavalos dos policiais e é cruelmente chicoteada, com o menino no colo. Para defendê-la, os operários
avançam para os policiais que contra-atacam, encurralando a massa que tenta inutilmente se prote-
ger. O filho resgatado é mostrado em primeiro plano, chorando, enquanto a luta de classes acontece.

O filme não deixa dúvida; suas tintas são bem marcadas, distinguindo vilões e mocinhos, e alternando
tragédia e comédia, como em um melodrama teatral do século XIX. Mas, apesar de o melodrama ser
um termo que vem do teatro (e da ópera), ele encontrou no cinema um vasto campo de expressão,
não podendo ser um índice de teatro. E se o melodrama designa um gênero que não se prende a um
suporte específico, a conclusão seria que não é no mesmo que se localiza a tal “rançosa teatralidade”?

Volto a Pavis quando este fala da dificuldade de se encontrar uma ‘essência’ a um campo de expressão,
entendendo que o conceito de ‘teatralidade’ “tem algo de mítico, de excessivamente genérico, até mes-
mo de idealista e etnocentrista” (2001, p. 372). De fato, falar “teatralidade” remete, por vezes, a algo
que extrapola a arte teatral, referindo-se a uma espécie de instinto humano. Nesse âmbito, Nicolai
Evreinov (1879-1953) fala de “um instinto de transfiguração” (s.d., p. 35), enquanto, no âmbito das
artes, Roland Barthes (1915-1980) afirma que teatralidade “é o teatro menos o texto, é uma espessura
de signos e de sensações que se edifica em cena a partir do argumento escrito, é aquela espécie de
percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, luzes, que submerge o texto sob
a plenitude de sua linguagem exterior” (apud PAVIS, 2001, p. 372).

Pergunto: a mesma definição não poderia ser aplicada a uma suposta ‘cinematicidade’, que submete-
ria seu aspecto literário à “sua linguagem exterior”, à “percepção ecumênica dos artifícios sensuais”,
compondo-se, ainda, dos “gestos, tons, distâncias, luzes”? O que dizer, em Asas do desejo, da queda do
anjo, que sangra pela primeira vez e prova desse sangue, signo de seu novo mundo colorizado, carna-
lizado e sensualizado, no filme de Win Wenders? E da dança de Eva Braun em seu isolado castelo, em
Moloch, de Alexander Sokúrov? E da sequência do ritual pagão em Andrei Rublev, de Tarkóvski; e das
longas cenas de imagens e música em 2001, Uma Odisséia no espaço, e de tantas outras construídas a
partir da imagem e do som, submergindo o artifício das palavras? Não estariam essas cenas/sequên-
cias cheias dessa ‘teatralidade’ descrita por Barthes, ao mesmo tempo em que se tornaram icônicas
dentro para o cinema, de forma alguma sendo vistas por historiadores e críticos como teatrais?

Mas, para se afirmarem como campo ou como conceito, as artes e as ciências precisam de um contor-
no que soe como próprio deles mesmos, ou simplesmente não teriam função como tal. Assim, o teatro

448
e o cinema, a despeito das intersecções, têm especificidades que demarcam duas formas de expressão/
dois conceitos distintos.

De um modo geral, a presença do ator ao vivo é o elemento mais crucial para determinar as distinções
entre o teatro e o cinema. De acordo com o cineasta e diretor teatral brasileiro, Evaldo Mocarzel, “o
cinema é o templo da imagem e do som, enquanto o teatro é o templo do ator, da atriz e da palavra”
(MOCARZEL, 2013, n.p.). Como templo “do ator, da atriz e da palavra”, a co-presença entre atores
e espectadores no teatro repousa, portanto, como eixo de uma teatralidade calcada na presença em
relevo do ator, no encontro entre este e sua plateia, na coabitação de um espaço-tempo.

É curioso observar que, enquanto para Barthes, a teatralidade é o teatro menos o texto (o que poderia
também se aplicar ao teatro do cinematógrafo, sem que isso suponha qualquer subserviência do cine-
ma aos meios teatrais), Mocarzel afirma o teatro como templo do ator e da palavra, ideia que aparece
com certa frequência entre pensadores e realizadores do cinema e que, possivelmente, desenvolve-se
a partir do fato de que, quando do seu surgimento, o cinema era pura imagem, “a dança das imagens”,
em movimento.

As dinâmicas da teatralidade e da cinematicidade permeiam essa reflexão e serão confrontadas outras


vezes, mas, por ora, volto a Eisenstein e à construção do seu olhar sobre a teatralidade. Lembro que,
ao dizer que sua trajetória no cinema começou quando ele ainda estava no teatro, o cineasta ‘bagunça’
essas fronteiras, que, no senso comum, repousam nessa noção de presença. Para entender o modo
como o cineasta desenhou esses conceitos, parece-me necessário falar de sua experiência com o teatro
e do modo como o diretor a enxergou.

2. DO TEATRO AO CINEMA: “UMA NOVA MINA”

O encontro de Eisenstein com o cinema foi precedido por sua participação intensa na vanguarda
teatral russa. O teatro teria chamado sua atenção quando este assistiu Princesa Turandot, de Gozzi,
em 1912. O ápice desse interesse aconteceria quando o futuro diretor assistiu Mascarada – de Mikhail
Lermontov, dirigida por Vsevolod Meyerhold, a quem o cineasta considerava um pai espiritual. A ex-
periência marcou o abandono da engenharia e a adesão ao teatro. Entre 1917 e 1920, ele trabalhou em
uma média de 75 peças, cujos desenhos de cenários foram conservados em seus arquivos. Em 1920,
ele entra no Teatro da Proletkult, que era dirigido por Meyerhold.

Nesse teatro engajado, a tônica é a negação do ‘teatro burguês’ – que privilegiava histórias de indiví-
duos, baseadas na psicologia e na interioridade. O teatro burguês seria a forma ‘velha’, que priorizava
a ‘alta cultura’ e que, portanto, deveria ser superada. Um dos principais representantes desse teatro
‘burguês’, Konstantin Stanislávski, adotava a noção de teatralidade como “depreciadora”, de acordo
com o professor Edélcio Mostaço, usando o termo teatral “para designar atores caricaturais, falsos,
empolados ou cujas expressividades soassem distante do verdadeiro ou do natural, evidenciando pos-
suir por padrão artístico de referência o verossímil” (MOSTAÇO, 2007, n.p.).

O caso Stanislávski aponta que o ‘antiteatralismo’ existiu/existe dentro do próprio teatro, constituin-
do-se como uma espécie de força autocrítica que exige uma renovação. A essa vertente o teatro re-

449
agirá, buscando a teatralidade negada pela primeira. A vanguarda teatral russa negava esse ‘teatro
antiteatral’ – visto como burguês, psicológico, reacionário – procurando em formas populares como
o circo, o music-hall, a acrobacia e o melodrama, modos para construir uma nova arte que se comu-
nicasse diretamente com as plateias de camponeses e de operários. Nessa ‘atmosfera vanguardista’,
fundam-se métodos e conceitos que acompanharam o artista Eisenstein, bem como o modo como
este situou a presença do teatro no seu cinema.

No artigo no qual afirma aquela “rançosa teatralidade”, Do teatro ao cinema, de 1934, Eisenstein faz
uma reflexão sobre sua trajetória no teatro, entendendo que começara a fazer cinema no período
mesmo em que ‘ainda’ praticava teatro.

Em geral diz-se que minha carreira no cinema começou com minha encenação da peça de Ostrovsky
Mesmo o mais sábio se deixa enganar [...]. Isto é verdadeiro e não é verdadeiro. Não é verdadeiro se
se baseia apenas no fato de que esta encenação continha um filme de curta metragem [...]. Está mais
perto da verdade se se baseia no caráter da produção, porque já nessa ocasião os elementos da espe-
cificidade mencionada acima podiam ser detectados (EISENSTEIN, 2012, p. 17).

Os elementos da especificidade do cinema seriam, de acordo com Eisenstein, o plano (“fotofragmen-


tos da natureza”) em articulação com a montagem (inúmeras possibilidades de combinação desses
fragmentos). Eisenstein falará ainda de uma “tendência do plano à completa imutabilidade factual” o
que o tornaria basicamente um registro/fotofragmento do mundo, fazendo com que seja a montagem
“o principal meio para uma transformação criativa realmente importante da natureza” (EISENSTEIN,
2012, p. 16).

Ressalto a frequente associação feita por Eisenstein entre o cinema como um meio de mostrar o
mundo/a natureza: “concordamos que o primeiro sinal de uma tendência do cinema é mostrar even-
tos com um mínimo de distorção, objetivando a realidade factual dos fragmentos” (Ibidem, p. 17).
É nessa ideia que repousa a afirmação de Eisenstein de que o seu cinema não ‘começou’ com um
curta-metragem dentro de uma peça, mas antes, em O mexicano, peça dirigida por Shmysliaev, e que
falava de um grupo de revolucionários, do qual um jovem se oferece para lutar boxe com o objetivo
de conseguir dinheiro para a causa. Eisenstein conta que, ao invés de seguir as “tradições do teatro de
arte”, na qual o clímax da peça ocorre atrás do palco,153 ele sugeriu ao diretor que a luta de boxe que
valia o prêmio, não apenas fosse vista pelo público, mas também fosse encenada no meio da plateia,
assemelhando-se às lutas” reais”:

Enquanto as outras cenas influenciavam a plateia através da entonação, gestos e mímica, nossa cena
usou meios realistas, até estruturais – luta real, corpos caindo no chão do ringue, respirações ar-
quejantes, o brilho do suor nos corpos e, finalmente, o inesquecível choque das luvas contra a pele
esticada e os músculos tensos. Cenários fictícios deram lugar a um ringue realista [...].

Assim, percebi que descobrira uma nova mina, um elemento materialista-factual do teatro (Ibidem,
p. 18).

153. Ele se refere à ideia, corrente na tragédia grega e registrada em A poética, de Aristóteles, de que cenas de sangue não deveriam ocorrer
às vistas do público, cabendo ao teatro mostrar apenas os efeitos/reações a tais atos.

450
A “nova mina” marca uma autodescoberta de Eisenstein como diretor de teatro154, além de ser conside-
rada por ele como o início do seu cinema. Os elementos descobertos em O mexicano seriam explorados
nas peças seguintes. Chamo atenção a respeito do conceito de ‘novo’; “nova mina” que surge, aparen-
temente, como uma coordenada importante dessa ‘cartografia do olhar de Eisenstein’. Ora, se o teatro
de vanguarda negava o teatro burguês, as ‘velhas formas’, e o ex-engenheiro, em sua prática do teatro
revolucionário descobre uma “nova mina”, a qual ele já chama cinema, parece-me que esse cinema surge
alinhado a uma ideia de novo contra a qual o milenar teatro não poderia rivalizar. A ideia se fortalece se
pensarmos que o uso de “meios realistas”, ou mesmo de “um elemento materialista factual”, fica a cargo
das escolhas poéticas e singulares dos criadores – sejam estes do teatro ou do cinema, não havendo no
teatro, enquanto meio de expressão, nada que impeça enfaticamente essas escolhas.

Mas o realismo pretendido por Eisenstein não se pauta no ‘verossímil’. Isso se verifica com a sua trajetó-
ria no teatro, quando ele investiu naquilo que chamou “teatro excêntrico”, dentro do qual, nos momen-
tos de tensão extrema, os atores expressavam essa intensidade com um movimento acrobático que não
estava diretamente relacionado ao contexto da cena: “um gesto se expande em ginástica, a violência se
expressa através de uma cambalhota, a exaltação através de um salto mortal, e o lirismo no “mastro da
morte” (EISENSTEIN, 2012, p.18). A ideia desse teatro excêntrico destoa de uma encenação realista/
naturalista dentro da qual a mão/o olhar construtor deve ser esfumaçado, parecendo ao espectador estar
diante da vida em seu curso ‘natural’. Esse esfumaçamento é oposto aos objetivos artísticos de Eisenstein,
dentro dos quais o caráter de ‘construção’ da obra de arte funcionava como um modo de mostrar ao
espectador que a vida também é uma construção que pode e deve ser modificada155.

Esse ‘outro realismo’ combinado ao ‘excentrismo’ do seu teatro deixou suas marcas em A greve, no
qual, de acordo com Leandro Saraiva, o diretor não pretendeu contar a história de uma paralisação de
trabalhadores, num sentido naturalista: “[...] Seu realismo é de outra ordem: aposta numa encenação
influenciada pelo teatro de Meyerhold e pelo “excentrismo” de seus jovens amigos da FEKS156. [...]
mesclando um estilo afeito ao teatro de vanguarda a elementos esquemáticos típicos do maniqueísmo
melodramático (2012, p. 120).

Ainda sobre essa “outra ordem” de realismo, Eisenstein afirma que a cena das escadarias de Odessa,
em O Encouraçado Potemkin, “se comporta como um ser humano em estado de êxtase”; enquanto que
o galope dos cavaleiros, em Alexandre Nevsky, seria “no tema – a batida dos cascos; na estrutura – a
batida de um coração excitado” (2012, p. 172). Diante de tais exemplos, ele deduz: “o que importa é a
concretude, materialidade e absoluta compatibilidade de todas essas realizações com as exigências de
realismo, a condição categórica para a arte vital, meritória e frutífera – a arte socialista” (Ibid., p.172).
A “nova mina” de Eisenstein parece ter brilhado não apenas nos corpos suados e nas “respirações
arquejantes” de uma “luta real” encenada num palco de teatro, mas também na irradiação dessa arte
socialista, diante da qual, segundo a perspectiva do diretor, o teatro se desenhou mais pelos seus limi-
tes, do que pelas suas potencialidades.

154. Apesar de a direção da peça ser de Shmysliaev, a influência de Eisenstein em aspectos decisivos, como a cena da citada luta, pode ser
entendida como uma co-direção.
155. Esse é exatamente o fundamento do teatro épico pensado por Bertolt Brecht, cujo pensamento e obra apresentam inúmeras semelhan-
ças com os de Eisenstein.
156. Sigla da Fábrica do ator excêntrico (nota da autora).

451
3. A SUPERAÇÃO DE TODAS AS ARTES

Entendo que, em parte, quando Eisenstein fala teatro, ele se refere a algo que lhe soa demasiadamente
atrelado a convenções que atravancavam a realização de sua “nova mina”. O diretor pensa numa par-
cela que ele toma pelo conjunto todo, vinculando a ideia de teatro, de um modo geral, a uma mímica
convencional e distante da vida pulsante, do “brilho do suor nos corpos”, da “arte vital” e daquilo que
ele passou a entender como ‘cinema’. Por outro lado, recorrendo à reflexão deixada pelo diretor, fica
claro que, neste cinema, Eisenstein enxergou não apenas uma superação do teatro, mas uma culmi-
nância de todas as artes; algo cujo caráter ‘novo’, e ‘revolucionário’, seria uma superação de limites ex-
pressivos jamais vista: “[...] o cinema é a síntese genuína e fundamental de todas as manifestações ar-
tísticas que se desagregaram depois do auge da cultura grega, que Diderot procurou em vão na ópera,
Wagner no drama musical, Scriabin em seus concertos cromáticos e assim por diante” (2012, p. 165).

A afirmação é importante para entender como a imagem do teatro no cinema passa a ser desenhada
como “estranha” e de como um sabor rançoso passa a lhe ser atribuído, afinal, se o cinema supera
todas as artes, o teatro, por sua virtual semelhança com o cinema, perde a razão de ser. Desse modo,
mais do que repelir um modo de teatro específico, parece-me que o cineasta passa a enxergar em
qualquer objeto, gesto/interpretação que soem como teatrais, um empecilho à plena execução da-
quela arte vital que ele perseguiu. Isso fica claro no relato sobre sua última experiência no teatro, o
espetáculo Máscaras de gás, realizado em parceria com Tretiakov, entre 1923 e 1924. Eisenstein relata
a experiência como um fracasso, porque, segundo ele, “o diretor teve a maravilhosa ideia de produzir
uma peça sobre uma fábrica de gás – numa verdadeira fábrica de gás” (2012, p. 19). A princípio a
afirmação soa estranha, já que o fato de a encenação ter ocorrido em uma fábrica, não parece capaz
de explicar o fracasso da produção, que é analisado do seguinte modo:

[...], os verdadeiros interiores da fábrica nada tinham a ver com nossa ficção teatral. Ao mesmo
tempo, o charme plástico da realidade da fábrica se tornou tão forte que o elemento de realidade
despontou com força nova – tomou as coisas em suas próprias mãos – e finalmente esse elemento
teve de sair de uma arte que ele não podia dominar (EISENSTEIN, 2012, p. 19).

Atualmente, a reflexão espanta se pensarmos nas inúmeras produções de espetáculos ‘teatrais’ que
saem dos espaços fechados e convencionalmente pensados para o teatro, buscando, muitas vezes,
espaços públicos que propõem outras espacialidades e agreguem à cena outras significações. Só para
citar um exemplo, lembro o grupo de Teatro da Vertigem e de seus espetáculos O paraíso perdido, O
Livro de Jó, Apocalipse 1, 11 e BR-3, encenados respectivamente, em igrejas, hospitais, espaços relacio-
nados ao sistema prisional e em um barco-palco que se desdobra e inclui as margens do Rio Tietê, em
São Paulo. Deveríamos pensar essas formas-teatro como impregnadas por uma perspectiva cinema-
tográfica? Ou deveríamos, talvez, imaginar que, ao longo de sua história, as formas artísticas de um
modo geral, e o teatro de um modo particular, aconteceram frequentemente nas ruas, a céu aberto,
sendo o confinamento em uma caixa protetora da ficção, algo bem mais recente?

Mas, no momento em que realiza sua reflexão, a sensação de realidade buscada por Eisenstein – ins-
taurada pela presença física de uma fábrica real – apareceu como uma força que não apenas não cabia
no teatro, mas também o fazia soar inadequado e até mesmo ridículo:

452
Em Máscaras de gás vemos o encontro de todos os elementos das tendências cinematográficas. As tur-
binas, o segundo plano da fábrica, negavam os últimos remanescentes da maquiagem e trajes teatrais, e
todos os elementos pareciam fundidos independentemente. Os acessórios teatrais no meio da plástica
real da fábrica pareciam ridículos. O elemento de “encenação” era incompatível com o cheiro acre do gás.
[...]. Em resumo, a produção foi um fracasso, e nós nos vimos no cinema (EISENSTEIN, 2012, p. 24).

A fábrica de gás – cujo “charme plástico” tornou incongruentes “os últimos remanescentes” de um
‘ainda teatro’ no ‘já cinema’ de Eisenstein – será espelhada na fábrica onde se passa o primeiro filme
do diretor. E assim como o cinema aparecera no teatro de Eisenstein, o teatro vai acompanhá-lo ainda
em A greve, gerando o tal ranço que é tema dessa reflexão.

Ranço, conforme o Dicionário Antônio Houaiss, refere-se à decomposição de uma substância gor-
durosa em contato com o ar, causando um “gosto acre” e um “cheiro desagradável”. Também pode
significar o cheiro de algo úmido que foi privado de ar (mofo) e ainda algo “de caráter obsoleto, ou
que perdeu a atualidade, se tornou antiquado” (2001, p. 2382).

Entendo que o ranço em A greve estaria – tomando como fundamento o olhar de Eisenstein sobre sua
própria obra – na interpretação dos atores que representam os capitalistas, os policiais, seus agentes
e espiões; estaria no elenco da Proletkult e nos resquícios daquele teatro excêntrico que foi tema das
investigações artísticas de Eisenstein. Um teatro que se valia de elementos populares e da ênfase na
técnica corporal dos atores. Sendo o teatro o templo do ator (Mocarzel) entendo que a rançosa teatra-
lidade está fortemente associada à presença desses corpos ‘teatrais’.

Essa hipótese é reforçada, se levarmos em consideração o artigo do diretor intitulado Realização.


Neste, Eisenstein discorre sobre a interpretação de atores de teatro, principalmente em seus primeiros
trabalhos no cinema, dizendo que o que seria “o auge da verdade” no palco, “aparece gritante na tela
como caretas epilépticas, ou o tipo mais inacreditável de atuação exagerada” (2012, p. 173). O cineasta
enfatiza a necessidade de que mesmo os “maiores mestres do palco” realizem o esforço de transformar
a teatralidade “em vitalidade genuína na tela” (Ibid., p. 173). Aparentemente essa ideia parece atual, já
que um sem número de cineastas pede aos seus atores (ou ‘não atores’) minimalismo na interpretação.

Nessa analogia, a teatralidade aparece como oposta à “vitalidade genuína na tela”, avizinhando-se do
‘falso’, do ‘exagero’ das “caretas epiléticas”, de uma maquiagem pesada e de “acessórios ridículos”. O
teatro passa a significar, portanto, a representação no sentido menos nobre, um limite a ser superado,
segundo a perspectiva da arte revolucionária e vital tão pretendida por Eisenstein.

4. É RANÇOSA A TEATRALIDADE?

Entendo que a teatralidade no filme de Eisenstein se materializa na atuação dos atores que interpretam os
vilões da história e que apelam para o arsenal da farsa, da pantomima e do gesto grotesco. Essa interpre-
tação – contrastando com os corpos dos trabalhadores e seus gestos mais ‘limpos’ – são o ‘local’ dessa tea-
tralidade, o lugar do que excede e lembra uma tradição anterior ao cinema: a tradição teatral. Esta passa a
ser associada às velhas formas; ao exagerado gesto dos atores em suas “caretas epilépticas”; a maquiagens
e trajes que excedem, parecendo ‘sobrar’ ante aquele elemento vivo e potente que o diretor vislumbrou no

453
cinema. O ‘velho e limitado teatro’, só poderia mesmo soar rançoso diante daquela “nova mina”, capaz de
instaurar a potência de um mundo plástico, pela via da montagem, e mutável, pelo gesto revolucionário.

Às perguntas a respeito da rançosa a teatralidade, somam-se outras: em que medida esse pensamento de
Eisenstein a respeito do teatro e do cinema ecoa ao longo da história do teatro e do cinema em relação?
A amplitude da pergunta torna impossível uma resposta genérica. No entanto, talvez não seja absurdo
considerar que, parte desse estranhamento e desse olhar ecoa em outros períodos, associando o teatro ao
artifício, ao limite e à convenção, enquanto o cinema estaria associado à vitalidade, à potência e à ideia de
revolução. Em outras palavras, o caso Eisenstein reflete um contexto mais amplo e alimenta a narrativa do
teatro como forma artificiosa e exagerada; como uma impureza da qual o cinema, de modo particular, e
as artes modernas, de modo geral, precisam se livrar. Sua perspectiva, olhar que elege uma ideia de ‘novo’
e que o emoldura, não consegue ver, a princípio, no velho /novo teatro, outras formas de potência.

Lembro, entretanto, que o cineasta manteve uma postura crítica ante sua obra e pensamento e chega
a associar, à sua pretensão de que todas as artes deveriam se aposentar após o surgimento do cinema,
a uma “presunção da juventude” (EISENSTEIN, 2002, p. 172). A ambiguidade de sua relação com o
teatro aparece como um microcosmo de uma tensão histórica/estética entre o teatro e o cinema. Um
milímetro de chão, em um território muito mais amplo e mais complexo.

REFERÊNCIAS

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BARTHES, Roland. Lo Obvio Y Lo obtuso: Imágenes, gestos, voces. Barcelona; Buenos Aires: Paidós Comunica-
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Acesso em: 02 jul. 2014.
DELEUZE, Gilles. A imagen-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
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______. Realização. In: EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro, Zahar, 2002.
______. Sobre a estrutura das coisas. In: EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro, Zahar, 2002.
______. Through theater to cinema. In: EISENSTEIN, Sergei. Film form: essays in film theory. Trad. Jay Leyda.
Nova York e Londres: Harvest/HBJ Books, 1977.
EVREINOV, Nicolai. El teatro y la vida. Buenos Aires: Leviatã, 1956.
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PARDO, Ana Lúcia (Org.). A teatralidade do humano. São Paulo: Edições SESC-SP, 2011.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
PICON-VALLIN, Béatrice. Le cinema, rival, partenaire ou instrument du théâtre meyerholdien? In: AMIARD-
CHEVREL, Claudine (Responsable). Théâtre et cinéma anéss vingt. Tome I. Équipe “Théâtre moderne”de L’UPR
12 DU C.N.R.S. France: [s.n.],1990.

454
Ver * Sentir * Fazer:
ações educativas e processo
de ensino/aprendizagem em arte
Paulo Sérgio das Neves Souza/ Adriele Cristine Silva da Silva

1. DE TEMPO EM TEMPO CAMINHOS QUE SE ABREM

As origens das manifestações artísticas estão diretamente ligadas à própria história da evolução huma-
na: seus feitos, suas batalhas, suas derrotas, suas conquistas, seu papel na sociedade. E as origens dos
ensinamentos artísticos e de seus processos educativos sistematizados ocorreram e ocorrem em ins-
tituições educacionais organizadas. É “[...] algo relativamente recente na história da humanidade”157.

Os conhecimentos e entendimentos adquiridos com esse processo perpassam também por várias
instituições ativas na sociedade que cada vez mais contribuem para com os diálogos que se abrem em
ações de inclusão e desenvolvimento humano, bem como em constituições de alfabetização educativa,
cultural, social, artístico/estética, inclusiva e emancipatória do homem. São as escolas, as fundações e
institutos culturais, os museus, as diversas organizações educacionais, contribuindo para que as ma-
nifestações artísticas estabeleçam diferentes formas de comunicação, de ensino e de interpretação li-
gadas à vida do homem em sociedade, em constantes transformações, pois a movência social faz com
que estejamos sempre passando por caminhos que nos levam a depararmos com novas descobertas.

Nesse caminho do conhecimento, quando utilizamos processos de ensino-aprendizagem através da


Arte, da História da Arte, do Patrimonial Cultural e do contexto social, acredita-se que homens, mu-
lheres, adolescentes e crianças desenvolvem suas capacidades de abstração onde a mente consegue
selecionar, identificar, analisar, sintetizar, politizar etc. É uma necessidade vital que vai aparecendo,
pois “O desenvolvimento das faculdades mentais abstratas está ligado às atividades práticas, que cons-
tituem a base não só das Artes, como também da Lógica, da Ciência, do Método Científico” 158.

Cada um que estuda ou produz uma pintura, um desenho, escultura ou qualquer outra obra de arte
tem conceito formado sobre ela, e tantas vezes conceituando a partir de sua vivência. É a perpetuação

157. OZINSKI, 2002, p. 11.


158. BUORO, 1996, p. 21.

455
do conhecimento através dos tempos. Desta forma, caminhando pelo saber de que a arte é uma ma-
nifestação que acompanha o homem de maneira social e cultural desde os primórdios da civilização
recebendo estruturas e formas de pensamentos no decorrer de cada tempo, espaço e cultura do mo-
mento é sabido que a linguagem artística sempre contribuirá para o desenvolvimento e ampliação do
conhecimento humano, de sua educação, de seu ensino/aprendizagem e de sua compreensão sobre
seu meio.

Acreditamos que o papel da arte na educação e no processo de ensino e aprendizagem de educadores


e docentes é também para conceber melhor relação com o seu meio e lavá-los à amplitude de outros
universos, tornando-os mais criativos e críticos para com a sua realidade, transformando-a.

Ao utilizar a arte como linguagem de comunicação e de expressão o estudante aflora seus sentimentos
e desejos deixando sua personalidade à amostra tornando-se um ser despreocupado com julgamen-
tos pré-estabelecidos se deparando com um espaço que é destinado ao ato de se conhecer, de relacio-
namento, de crescimento e de conhecimento do outro. “É nesse sentido que podemos vislumbrar toda
a importância que a compreensão da arte pode ter no ensino escolar”159.

Nesse caminho, a escola pode tomar para sim não apenas seu tradicional papel em ensinar a ler e
escrever dentro do espaço de sala de aula, mas contribuir para que seus aprendentes construam ou-
tros conhecimentos. A professora Maria do Livramento160 discutiu essa questão de forma muito sábia
quando do desenvolvimento do projeto. “[...] eu entendo que a educação ela ultrapassa o muro da
escola. Ela precisa quebrar essa barreira de que aluno para aprender ele só tem que estar dentro da
escola com o professor reproduzindo conhecimentos”.

Ana Mae Barbosa (1994) contribui com essa discussão, afirmando que o ensino da Arte não é apenas
um conhecimento que tenha um caráter educacional básico no contexto escolar, mas ensino indis-
pensável à educação de alunos que contribuem ou contribuirão na construção de seu país. “Arte
é cognição, é profissão, é uma forma diferente da palavra para interpretar o mundo, a realidade, o
imaginário, e é conteúdo”161.

Desenvolver um processo de educação e de ensino/aprendizagem sem arte e sem o educador em Arte im-
possibilita que o docente desenvolva integralmente sua inteligência sem desenvolver, também, seu pen-
samento divergente, visual, corporal, sonoro e o desenvolvimento presentacional caracterizador da arte.

A pretensão de uma educação visual, não somente intelectual, mas também humanizadora, consiste
em colocar as claras que a arte é indispensável para o desenvolvimento da percepção e da imaginação,
captando “[...] a realidade circundante e desenvolver a capacidade criadora necessária à modificação
desta realidade”162.

159. BUORO, 1996, p. 33.


160. Pedagoga. É Coordenadora Pedagógica da Unidade Santo Antônio. Entrevista concedida em 13/12/2013, quando da visita de alunos
da referida Unidade, na Exposição Traços Locais, de Geraldo Teixeira e Ruma de Albuquerque, no Museu da UFPA.
161. BARBOSA, 1994, p. 04.
162. BARBOSA, 1994, p. 05.

456
A educação através da Arte é um dos primordiais caminhos que podemos percorrer a fim de me-
lhorarmos nossa realidade, nosso bairro, lugar, bem como nosso desenvolvimento humano e nossa
alfabetização cultural. Um aprendizado bem informado, contextualizado, consciente, comprometido
altera e melhora a educação em Arte.

A arte na educação e no seu ensino leva os docentes a desenvolverem sua identidade cultural, contri-
buindo de forma significativa a torná-los seres politicamente pensantes dotados de capacidade crítica
e análise, percebendo e conhecendo melhor o meio o qual estão inseridos. “[...] a arte capacita um ho-
mem e uma mulher a não ser um estranho em seu meio-ambiente nem um estrangeiro no seu próprio
país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence”163.

Contudo, além dessa capacidade que a arte e o ensino dela têm em melhorar a qualidade da apren-
dizagem do aluno, é preciso, e é de fundamental importância, uma preocupação na forma de como a
Arte está sendo ensinada e de como seus conhecimentos estão sendo concebidos por docentes ou por
qualquer outro indivíduo na sociedade.

Aulas dinâmicas que se estabeleçam entre teoria e prática, a fim de dar ao educando encantos e co-
nhecimentos nas atividades educativas, dialogando com a afabilidade do lugar e das pessoas que nele
estão estabelecendo afetivos processos de mediação. Nesse sentido, teremos constituição de interação,
de troca, de cooperação e olhares mútuos entre professor e aluno.

Gisa Piscoque e Mirian Celeste (2012) dizem que a trama que permeia a prática da mediação cultural
é construída a partir do olhar de cada um sobre esse território, pois faz com que o indivíduo, neste
caso o professor de Arte, vá construindo passagens que “[...] provoquem e ampliem o [com]tato com
a arte e a cultura, trilhadas com suas sandálias de professor andarilhos”164.

As autoras, ainda vão mais adiante ao colocarem que as ações que permeiam a mediação cultural
perpassam por situações e atuações diferentes dependendo de cada lugar, de cada espaço, de cada
mediador e do indivíduo envolvido.

Contudo, os olhares, as linguagens, as leituras e os encantamentos165 que percorrem os caminhos


diversos que consistem a mediação cultural perpassam também por questões de ludicidade onde o
professor estabeleça ações ligadas à realidade do aluno numa fusão entre o assunto proposto em rela-
ção ao cotidiano desse discente a tornar-se um ser humano mais atuante desenvolvendo criatividade,
imaginação e realizando descobertas, e a interação com a arte e com outras áreas de conhecimento.

É necessária a interação com o conjunto escolar. Com isso, o aluno não é o único beneficiado, mas todos
aqueles que estão a sua volta. O aprendente alcança experiências de mundo desenvolvendo possibili-
dades em pesquisar, dialogar, expressar-se com o outro e com esse mundo que lhe trás conhecimentos.

163. BARBOSA, 1998, p. 16.


164. MARTINS; PISCOQUE, 2012, P. 07.
165. Olhares, Linguagens, Leituras e Encantamentos foi tema, em 2011, da 10ª Mostra de Saberes da Secretaria Municipal de Educação de
Belém – SEMEC – coordenada pelos professores de Artes Visuais Dionelpho Cunha Júnior, Paulo Souza e Walter Gomes.

457
A arte transforma o mundo, pois arte é magia, é conhecimento, é cultura e é composição. Arte é
benefício para as capacidades criadoras do aluno. O professor que compreende isso estabelece uma
relação entre os objetivos de aprendizagem dos educandos com possibilidades de novos métodos de
ensino despertando processos de interação entre todos, pois tal situação permite obter conhecimento
ampliado levando a transformação cultural do aprendente, bem como ao aumento de seu desenvolvi-
mento humano e de sua inclusão social.

Este artigo é parte das atividades de mediação, bem como de ações educativas e processos de aprendi-
zagens em arte desenvolvidas para alunos do ensino fundamental da cidade de Belém como resultado
do projeto de Divulgação/Mediação contemplado pela 12ª Edição de Bolsa de Criação, Experimen-
tação, Pesquisa e Divulgação Artística do Instituto de Artes do Pará – 2013. As atividades educativas
que foram realizadas nas Unidades Pedagógicas onde esses alunos estudam, no Espaço Cultural Man-
gal das Garças e no Museu da Universidade Federal do Pará, durante a exposição Traços Locais, dos
artistas plásticos Geraldo Teixeira e Ruma de Albuquerque, ambos paraenses e moradores na cidade
de Belém. Foram utilizadas como organismos educativos e de constituição político/social obras de
arte desses artistas, além de informações sobre suas trajetórias artísticas no campo da História da
Arte Paraense.

Muitos dos alunos que participaram desse projeto visitaram um museu pela primeira vez, e isso é
muito importante, não somente para nós professores, alunos e artistas que participaram do projeto,
mas para as famílias desses estudantes, bem como para a escola onde estudam, suas comunidades e a
sociedade escolar.

Estabelecer acesso aos bens artísticos e culturais é contribuir com o fortalecimento das competências
intelectuais, com as capacidades visuais e com as percepções estéticas de meninas e meninos que es-
tudam, moram e brincam na região insular de Belém.

O campo do ensino não formal se faz de fundamental importância na formação intelectual e social
do indivíduo para o seu desenvolvimento e sua cidadania, estabelecendo delicadeza para com o ou-
tro, bem como no desenvolvimento de padrões estéticos e socioculturais. É “[...] o reconhecimento e
aceitação da diversidade cultural e suas diferenças, para a prática da não violência em todas as esferas
da vida etc”166.

Essas questões perpassam não somente pelo campo da mediação cultural, mas pelos caminhos da rela-
ção entre culturas, do local para o global. E isso é necessário para que percebamos a diversidade de con-
tribuição que o ensino de arte nos espaços não formais de educação possa vir dinamizar o ensino escolar
formal. Não vivemos isolados. Vivemos constantemente cercados por uma diversidade de informações,
de imagens, de sonoridades, corporeidade, de movimentos culturais encontrados no corpo da cidade
que precisam ser trabalhadas na educação, inclusive no contexto das escolas ribeirinhas167.

166. GOHN, 2011, p. 11.


167. Aqui vamos estabelecer que o termo ribeirinho, utilizado por nós moradores continentais, pois as pessoas que nascem, moram e
estudam na Região Insular não se consideram ribeiros nem tampouco estão somente na beira dos rios, diz de pessoas que estão nas comu-
nidades insulares, bem como por terem um modo de vida próprio, de ‘ilhéu amazônida’. Ver Educação nas Ilhas de Belém: travessias e
desafios por entre culturas e aprendizagens, 2011, p. 17.

458
Adriele Silva168 entende que os processos educacionais não ocorrerem somente no contexto escolar
sistematizado, dentro das salas de aulas, nem tampouco fora delas, “[...] mas acontece exatamente no
constante diálogo entre espaços de educação formal e educação não-formal”169.

A realização do projeto nas Unidades Educacionais, para nós, consiste na certeza de poder descrever
o Ver * Sentir * Fazer como roda de conversa entre alunos, obras de arte, professores e artistas con-
tribuindo com o aprendizado dos estudantes da Região das Ilhas, num constante diálogo entre idas e
vindas realizadas nos espaços culturais e no contexto escolar.

O encontro entre os alunos que participaram do projeto com as variadas obras de arte dos artistas
Geraldo Teixeira e Ruma de Albuquerque, abaixo especificado, consistiu num momento ímpar para a
vida dessas crianças, pois o contato direto com arte representa um caminho de mão dupla no contexto
de seus aprendizados levando-os a perceber o outro e se ver no outro e vice-versa.

Imagem 1. Grupo de
alunos da UP Santo
Antônio em visita ao
Espaço Cultural Mangal
das Garças -
Foto: Adriele Silva,
2013.

Com as atividades, fomos percebemos que esses educandos começaram a “viajar” para outros territó-
rios até então desconhecidos para eles, mas que também tem rabetas e tem marés; tem jardins amazô-
nicos que enfeitam as casas de madeira onde os primeiros raios de sol entram por suas frestas, devido
à ripa de madeira ter caído; tem peixes e frutos com novas paisagens; tem pessoas que respeitam suas
realidades. Como diz Mirian Celeste: “É na felicidade das brincadeiras, viajando para a lua ou para
lugares longínquos, vivemos a atitude de quem faz expedições e conhece o mundo, com todo o corpo,
vigilante às novas descobertas e ao reconhecimento do que já se conhece170.

168. É professora efetiva de Arte Visuais da Rede Municipal de Ensino de Belém atuando nas três Unidades Pedagógicas onde o projeto
foi desenvolvido utilizando o mesmo como parte de sua proposta de plano de curso aliado ao Projeto Político Pedagógicos das Unidades.
169. SILVA, 2013, p. 01. Mimeo.
170. MARTINS, 2012, p. 09.

459
Com deslocamentos como esses, podemos proporcionar à vida de muitas crianças percepções outras
sobre sua cultural levando-as a entender a cultura do outro. Os espaços culturais são ambientes de
educação que o professor de Arte, bem como todos os professores, deve estabelecer íntima relação a
fim de levar mais conhecimento aos seus aprendentes, bem como aumenta a sua própria alfabetização
cultural e intelectual para que possa cada vez mais desenvolver aulas que façam com que seus alunos
viagem para outros territórios. Esse contato direto com a arte representa para a vida dessas crianças
um momento ímpar no desenvolvimento de suas capacidades. Sejam motoras, intelectuais, sociais,
artísticas, estéticas, lúdicas ou culturais.

2. RODAS DE CONVERSAS/EXPERIÊNCIAS NAS ILHAS.

A educação não acontece apenas dentro das salas de aulas nem unicamente fora delas, mas acontece
exatamente no constante diálogo entre espaços de educação formal e educação não formal. Busca-
mos, a partir dessa certeza, descrever um pouco do projeto “Ver, Sentir, Fazer” que traça um diálogo
de obras e artistas com estudantes das ilhas sul de Belém em um constante movimento de idas e vin-
das entre espaços de educação não formal (atelieres de artistas, espaços culturais e museus) e a sala de
aula no seu espaço de educação formal.

Imagem 2. Professora Adriele


Silva com da UP São José em vi-
sita ao Espaço Cultural Mangal
das Garças - Foto: Paulo Souza,
2013.

Para tal, consideramos que educação é um direito de todo sujeito garantido em lei e convencionado
pela Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) condiciona a responsabilidade do cumprimento desse direito à família, à comunidade em
geral e ao poder público. Dentro desse contexto é necessário frisar que a educação deve acontecer ao
longo de toda a vida na constante relação entre essas esferas sociais e as instituições que a represen-
tam. Trazendo à tona, portanto, a devida importância aos percursos necessários e ocorridos entre a
educação formal e a não formal aliadas à qualidade de vida.

[...] a educação não-formal é fundamental, para a formação para a cidadania, para o exercício da
civilidade no convívio com o outro e na utilização de padrões éticos, para o reconhecimento e acei-

460
tação da diversidade cultural e suas diferenças, para a prática da não violência em todas as esferas da
vida etc 171.

A educação formal, por sua vez, desde que surge, está inserida na sociedade pela demanda de instruir,
educar, orientar a criança que ganhou o status de criança. Segundo Ana Angélica Albano Moreira
(2009, p. 55), justamente “Com o aparecimento do sentimento da infância surge também à necessida-
de de educá-la. A escola surge assim da necessidade de separar e educar a criança”.

Consideremos, com isso, que a escola também muda de acordo com a sociedade em que está inserida,
pois “A escola não é uma estrutura eterna funcionando da mesma forma sob qualquer regime: é mol-
dada sempre pelo todo de que participa”172.

Nossa sociedade ainda vive um processo de mecanização das diferentes instituições, inclusive as de
educação formal que atendem plenamente as demandas do regime capitalista a qual somos parte.
Nesse processo de capitalização da própria escola – enquanto instituição – fomos nos tornando cada
vez mais individualizados e cheios de espaços reservados. A escola por si só já é um espaço reservado
com muitas outras reservas dentro de si, essas correspondem às disciplinas. São tantos os caminhos
que somente entram na escola que criar condições para que haja diálogo com outros espaços de for-
mação torna-se muito difícil, mas estamos aprendendo a lidar com esse fluxo de necessidades e de
possibilidades da educação de modo a transformar isso em projetos executáveis.

Dentro desse campo maior que é a educação encontramos a educação visual que é igualmente trans-
disciplinar e potencializadora de percepções criativas tanto para solução de problemas quanto para
situação/atuação em meio ao espaço que se ocupa. Levemos aqui em consideração que nossa socie-
dade é majoritariamente visual, portanto que precisamos assumir os seus códigos e aprender a lê-los.
Entendendo ainda que quem direcione essa aprendizagem precisa fazê-lo sem manipulá-lo como
defende Paulo Freire e Sérgio Guimarães sobre o projeto Angicos 173.

[...] dizem que o esforço da leitura da realidade através da codificação, e, portanto, da descodificação
das codificações que representavam um pedaço da realidade, era uma leitura manipuladoramente
dirigida. Ora, Dirigida sim, pois não há educação sem intencionalidade, sem diretividade. Manipula-
dora nunca. [...] mas defender uma posição com que se sonha, antes mesmo de chegar ao educando,
é absolutamente legítimo.

Somos sujeitos condicionados, mas não determinados, diz Paulo Freire (1996, 19), portanto a Histó-
ria é tempo de possibilidade e não de determinismo. Se as possibilidades na vida são um caminho, na
educação elas são múltiplas e quase um norte para toda atividade.

171. GOHN, 2011, P. 11


172. Ver SNYDERS, G. Escola, classe e luta de classes. Lisboa: Moraes,1977 apud MOREIRA, Ana Angélica Albano. O espaço do dese-
nho: a educação do educador. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
173. FREIRE; GUIMARÃES, 1987, p. 26. Ver capítulo 8 da parte I do livro – “Aprendendo com a própria história” – no qual Freire e
Guimarães conversam sobre as críticas que surgiram ao projeto Angicos e as situações políticas que transformaram o projeto em uma
experiência breve, mas marcante.

461
Diante dessa tentativa em estabelecer um diálogo entre a escola e outros espaços de educação soma-
mos o cotidiano da sala de aula na disciplina de Artes em três Unidades Pedagógicas situadas nas
ilhas sul de Belém com a vontade e possibilidade de ser parte de uma bolsa de pesquisa em mediação
cultural de Paulo Souza...

As primeiras atividades planejadas buscavam, acima de tudo, essas construções de viveres coletivos.
Mesmo sem conseguir ainda perceber totalmente a complexidade dos diferentes conteúdos articu-
lados ao longo dos dias de trabalho, fui descobrindo métodos estratégicos de ação para cada turma,
cada ciclo de aprendizado.

Portanto, para chegar ao ponto de incitar os estudantes dos Ciclos I e II do ensino fundamental a
expressar e saber comunicar-se em artes visuais mantendo uma atitude de busca pessoal e/ou cole-
tiva, articulando a percepção, a imaginação, a emoção, a sensibilidade e a reflexão ao realizar e fruir
produções artísticas tivemos que perceber e trabalhar com os primeiros, principalmente, exercícios
corporais, exercícios de crescimento/fortalecimento da imaginação criativa, exercícios de projeção e
percepção pelo outro para a construção de uma solidariedade social que tem potencial para melho-
rar a autoconfiança as relações de cooperação, respeito, diálogo e valorização das diversas escolhas e
possibilidades de decodificação e de criação em arte e em vida.

Para o Ciclo II, tivemos que apresentar a investigação de materiais, a possibilidade de expressar, repre-
sentar ideias, emoções, sensações por meio da articulação de poéticas pessoais, desenvolvendo tra-
balhos individuais e grupais que tomam a organização, o registro e a documentação de informações
sobre as linguagens artísticas de modo a aprender a relacionar suas próprias experiências pessoais
capazes de criar, interpretar e apreciar a arte.

Entendemos que os resultados mais efetivos ainda irão por vir, mas é perceptível o processo em anda-
mento que tem melhorado a motivação em conhecer artistas, conceitos e técnicas artísticas, quando
os pegam de surpresa ao depará-los e fazê-los aceitar que tudo em arte está no dia a dia. Mas que o
valor dado a esse dia a dia vai torná-lo tanto vida quanto arte.

Quanto ao Projeto Político Pedagógico e a forma que ele se encaixa ou é pensado dentro do planeja-
mento das atividades da disciplina vemos que são possíveis justamente a partir das contextualizações
histórico/sociais de cada atividade e a constante relação feita com a realidade complexidade cidadã/
humana dos estudantes.

Desse modo foi trabalhado o que Morin considera:

Cabe a educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espécie humana não apague a idéia
de diversidade e que a da sua diversidade não apague a da unidade. [...] É a unidade humana que
traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua
unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a
multiplicidade do uno 174.

174. MORIN, 2004, p. 55.

462
Portanto, estimular a leitura e produção visual a partir da relação entre a realidade do estudante e a
realidade de cada produção/produtor apresentada como materialização de um conceito é o caminho
para trabalhar as individualidades e complexidades envolvidas nessa relação entre o conteúdo a ser
executado/aprendido e o conteúdo e ritmo de aprendizado de cada estudante ao qual dedicamos
constantes esforços.

3. MARIA DO LIVRAMENTO AVIZ175

A educação perpassa por vários espaços que vai da comunidade à sociedade em geral, e eu acho fun-
damental que a gente possa estar proporcionando a essas crianças ribeirinhas essa oportunidade do
contato direto com a arte.

Por quê? São crianças que estão assim, a meu ver, muito a margem da sociedade. Porque elas estão,
apesar de tão próximas de Belém, muito à margem desse desenvolvimento, do envolvimento com a
arte, com a cultura. Elas acabam convivendo numa relação mais direta com a natureza, com os rios,
com as águas, com os barcos, com o mato como eles chamam.

O mato é a reserva de onde elas tiram a sua forma de subsistência, seja da água ou da floresta, mas
eles precisam também desse contato com as outras formas de conhecimento, e dentre elas, a arte, que
é a forma mais direta como a criança mais se expressa no dia a dia. Ela consegue fazer uma leitura da
realidade a partir desse contexto da expressão da arte, dos seus desenhos. E o contato direto com a
arte aqui nessa exposição no Museu da UFPA nos representa entender que o papel da escola não é só
ensinar a ler e escrever dentro de uma sala de aula, mas dar oportunidade para que a criança possa
conhecer esses outros conhecimentos que vão influir no seu desenvolvimento humano e intelectual.

Isso ocorre a partir do ato de desenhar, de rabiscar, de contornar a partir da sua própria realidade,
porque ela vai desenhar a casa, ela vai desenhar a família. As crianças ribeirinhas vão desenhar o açai-
zeiro, a rabeta, e é imprescindível para elas. Hoje, eu tenho essa leitura de como é distante ainda essa
realidade ribeirinha para nós, e como é fundamental para eles mostrar para a gente que eles existem
através daquilo que eles sabem e que eles conhecem da sua própria realidade. Quando eles vão dese-
nhar, a primeira coisa que eles querem desenhar é a rabeta, o açaizeiro.

O rio é a rua! O rio é a rua! As pontes, os trapiches, a quebra da maré. A gente vai aprendendo essa
linguagem que é a quebra da maré. Quando a maré entra na terra. A maré lançante. Então assim, é um
aprendizado que quem está do outro lado da cidade não conhece.

Na minha leitura, logo que eu cheguei lá, as ilhas são invisíveis os olhos de quem mora em Belém, na
área urbana. Aí, a gente fala da educação no campo como se fosse algo que estivesse muito distante da
gente, e quando a educação no campo está logo aqui. A 20 minutos de lancha a gente, talvez menos, a
gente está lá na educação do campo, que é a educação ribeirinha também.

175. Entrevista concedida em 13/12/2013, no Museu da Universidade Federal do Pará, durante visita à Exposição Traços Locais. A entre-
vista foi gravada em vídeo.

463
Existem vários campos. Não é um campo. Existem vários campos também, e a gente precisa ver essa
diversidade, mas eu entendo que a educação ultrapassa o muro da escola. Ela precisa quebrar essa
barreira de que aluno para aprender só tem que estar dentro da escola com o professor, reproduzindo
conhecimentos.

Na verdade, o conhecimento ele é... Carlos Brandão diz assim: o professor é aponte. Ele precisa des-
pertar na criança a curiosidade; e o Freire diz assim: a leitura da palavra precede a leitura da escrita.
Porque é a través dessa leitura de mundo que a gente vai compreender a realidade e vai ter acesso aos
novos conhecimentos.

4. POR ONDE A RABETA NAVEGOU

A partir do recorte da produção artística de dois artistas paraenses, desenvolvemos atividades de


experimentações estéticas a alunos do ensino fundamental da região das ilhas de Belém, levan-
do-os a visitarem museus, ateliers dos artistas, espaços culturais onde os mesmos possuem obras
de arte expostas. Também foram apresentadas aos alunos questões políticas muito importantes
que são aliadas a questões de afetividade, além de toda preocupação com as questões estéticas
que dizem da realidade cultural dos alunos presentes nas obras apresentadas. De alguma forma
ou outra os artistas acabam por devolver para essas comunidades o que eles retiram para compor
suas obras. Seja em espaço museal, seja através da divulgação da obra a partir de imagens, seja
a partir de qualquer outro tipo de exposição. Devolvem ou como informação de afetividade ou
como matéria.

Nessas conversas, buscamos estabelecer diálogos de circularidade marcados por valores civilizatórios.
Valores que perpassam por diversas culturas que respeitam sua oralidade, corporeidade, religiosida-
de, musicalidade, cooperação mútua. Memórias e territórios marcados pelos tempos das águas que
banham suas casas, suas “ruas”, suas escolas e seus quintais encontrados nas obras de arte dos artistas.
Foi a partir dessas informações e através de rodas de conversas marcadas pelo tempo e pela subje-
tividade dos alunos que cada um realizou suas atividades, seus desenhos, suas ludicidades acompa-
nhadas de concepções artístico/estéticas, sem nos preocuparmos com o que muitos defendem de boa
ou acertada leitura e releitura de obra de arte. Aqui, se buscou, antes de qualquer coisa, que o aluno
percebesse a marca de sua cultura nas obras dos artistas, bem como que estabelecessem comunicação
com as mesmas, ressignificando-as ou não.

A conversa ocorrida entre os artistas Geraldo Teixeira e Ruma de Albuquerque com os alunos das
UP’s Combu, Santo Antônio e São José, seja através de algumas de suas obras de arte ou de imagens
delas, ou quando de visitas desses estudantes no Museu da UFPA na exposição Traços Locais desses
dois artistas, consistiu não somente inseri-los a bens culturais produzidos na área continental, mas
também para que percebessem que esses bens culturais muito dizem de suas realidades num constan-
te diálogo entre afetividade e respeito mútuo; e entre arte, ensino e aprendizado.

Geraldo é um artista que frequenta estaleiros, que navega pelas águas da artesania pescando matéria e
alimentando sonhos. Existem tempos para tudo isso. Nesse tempo do Geraldo existe uma delicadeza
ao navegar. Existe na obra, seja ela propriamente uma rabeta, seja um jardim ou uma escultura. De-

464
licadeza que também vem atrelada na matéria que pega de embarcações que já não têm sua utilidade
primeira: a de navegar, mas que trás consigo parte de sua engrenagem levando-o a preocupar-se com
a movimentação da obra, com outra possibilidade de engrenagem.

Imagem 3. Geraldo Teixeira, Ruma Albuquerque e Professora Adriele Silva com alunos durante montagem da exposição
Traços Locais no Museu da UFPA. Foto: Paulo Souza/2013.

Nesses vários tempos de marés, o artista busca também nas casas ribeirinhas outras informações
para suas composições. Dialoga com a ripa de madeira que já não existe mais, que acaba de cair
deixando passar o vento que vem do rio, a luz solar que adentrar cedo por entre as frestas invadindo
as casas com seus jardins, com suas varandas, com seus trapiches banhados pelo rio, pelos tempos
das marés.

Ruma estabelece vários diálogos entre os lances e relances das marés. Com os tempos da maré, da
embarcação. Diz de um tempo de maré cheia, de maré vazante, e essa afetividade com esses tempos
de maré, com esses movimentos do rio, dos furos, do córrego, das coisas que possivelmente acon-
tecem por essas águas são transformadas. O artista materializa, converte esse efêmero, o transitó-
rio em matéria. Busca nessa subjetividade, nesse impalpável material a matéria para compor suas
obras.

Investigação encontrada também nas casas ribeirinhas. Nas prateleiras forradas com papel re-
cortado encontramos o assunto que permeia algumas de suas obras. Recortes que também têm
diálogo direto com a maré, com a estrela que guia o navegador, com as cores das embarcações.
A sutileza de tudo isso materializado em suas obras que muitas vezes perpassa por questões de
religiosidade, das volutas barrocas que se confundem com as formas os movimentos das águas
ribeirinhas.

465
Imagem 4. Alunas na Exposição Traços Locais. Obra: Diálogos das marés. Ruma de Albuquerque. Foto: Paulo Souza/2013.

Imagem 5. Alunos com seus pais durante a exposição Traços Locais no Museu da UFPA. Foto: Paulo Souza/2013.

As Unidades Pedagógicas onde o trabalho foi desenvolvido estão situadas nas ilhas sul de Belém. A
UP Combu e UP Santo Antônio estão localizadas na Ilha do Combu, e a UP São José está estabele-
cida na Ilha Grande. A Unidade Pedagógica Combu, situada no Igarapé Combu, entre o Rio Guamá
e o Furo São Benedito, foi criada no ano de 2000, vinculada institucionalmente à Fundação Eidorfe
Moreira – Escola Bosque. Posteriormente, a unidade passa a ser administrado pela Escola Municipal
Silvio Nascimento, localizada no bairro Condor, na área continental de Belém. A Unidade Santo
Antônio foi construída entre os anos de 1989 e 1990 pela administração do município de Acará 176,

176. O município de Acará faz parte da microrregião de Tomé-Açu, sendo fundado em função das explorações portuguesas na Amazônia.
Originalmente o município era conhecido como São José de Acará. Ver http://www.acara.pa.gov.br/.

466
ainda como centro comunitário, mas, pouco tempo depois, foi fechada por falta de alunos. Situada no
igarapé do Piriquitaquara, na Ilha do Combu, em 2006, sob a administração do município de Belém, a
Unidade é reaberta no mesmo espaço, sendo que, em 2008, no mesmo local onde funcionava o antigo
centro comunitário, a mesma é construída.

Localizada na Ilha Paulo da Cunha Grande, conhecida como Ilha Grande, a Unidade Pedagógica São
José era também administrada pelo município de Acará. No ano de 2002, devido às várias solicitações
da comunidade, a Prefeitura de Belém constrói a Unidade, e a Ilha Grande passa à jurisdição de Be-
lém. Todas as unidades atendem suas comunidades com ensino formal nas modalidades de Educação
Infantil e Ensino Fundamental nos Ciclos de Formação I e II.

A organização curricular da Rede Municipal de Ensino de Belém para o Ensino Fundamental se ba-
seia na concepção dos Ciclos de Formação. Essa organização do trabalho educativo, que não coaduna
com o sistema seriado de educação. Essa organização é estruturada da seguinte maneira177: Ciclo de
Formação I – 6, 7 e 8 anos de idade; Ciclo de Formação II – 9 e 10 anos de idade; Ciclo de Formação
III – 11 e 12 anos de idade; Ciclo de Formação IV – 13 e 14 anos de idade.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. O baile das quatro artes. Brasília: Martins, 1975.
AVIZ, Maria do Livramento. Experiência educativa nas ilhas. Entrevista realizada em 13 de dezembro de 2013
no Museu da UFPA. Belém, 2013. (Transcrição de áudio).
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da Arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1994.
______. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: C / Arte, 2008.
BUORO. Anamelia Bueno. O olhar em construção: uma experiência de ensino da arte na escola. São Paulo:
Cortez, 1996.
FERRAZ, Maria Heloisa Correa Toledo & FUSARI, Maria Felismina de Resende e. Arte na educação escolar. São
Paulo: Cortez, 1993.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo; GUIMARÃENS, Sérgio. Aprendendo com a própria história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GOHN, Maria Glória. Educação não formal e cultura política: impactos sobre o associativismo do terceiro setor.
São Paulo: Cortez Editora, 2011.
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para professores andarilhos na cultura. São
Paulo: Intermeios, 2012.
MOREIRA, Ana Angélica Albano. O espaço do desenho: a educação do educador. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2004.
OSINSKI, Dulce. Arte, história e ensino: uma trajetória. São Paulo: Cortez, 2000.
______. Educação nas Ilhas de Belém: travessias e desafios curriculares por entre culturas e aprendizados. Be-
lém: SEMEC, 2011.
SILVA, Adriele Silva da. Experiência nas ilhas. Belém, dezembro/2013. (Mimeo).

177. De acordo com as Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental Ciclos I e II da Rede Municipal de Educação de Belém, 2012, p. 14.

467
Arte, processo de criação e avaliação:
uma experiência triangular no
Colégio da Polícia Militar do Ceará
Debora Frota Chagas/ Roberta Bernardo da Silva

1. NA ESCOLA TEM ARTISTA? TEM SIM SENHOR!!

– Atenção, pelotão, Sentido! – Cobrir. – Sentido. – Direita, volver. – Apresentar armas. – Firme. –
Marcar passo. – Sentido. – Descansar. Silêncio, alunos. – Tem alguém cansado? – Não senhor, aqui
não tem cansaço, temos energia, é o primeiro ano o melhor da companhia. – Barriga pra dentro,
peito pra fora, dedos unidos, mão espalmada. – Solicitamos à aluna coronel para dar início a soleni-
dade. – Atenção, pelotão, Sentido! – 1, 2, 3, 4: CPM é um barato; 4, 3, 2, 1: mais não é pra qualquer
um. – Fora de forma, marche!

Esses comandos e frases fazem parte do cotidiano dos estudantes do Colégio da Polícia Militar Gene-
ral Edgard Facó (CPMGEF)178, instituição de educação básica, integrante da estrutura da Secretaria
de Segurança Pública e Defesa Social, conveniada à Secretaria de Educação do Estado e parceira na
realização desta pesquisa, onde desde 2012, componho o quadro de professores, ministrando a disci-
plina de Arte-Educação, em turmas do Ensino Fundamental e Médio.

Em 2013, após um ano de adaptação com o regime educacional militar e refletindo sobre o lema da
escola, “Aqui, aprende-se com disciplina”, inicio, no segundo semestre, um grupo de pesquisa em
teatro com vinte estudantes do ensino médio, pesquisando o caos e o acaso. A partir de diálogos,
questionamentos, privilégios e contravenções de diversas proposições artísticas pedagógicas, a in-
vestigação extracurricular, a partir de poéticas artísticas, produziu uma ação performática intitulada
“O que é isso?”, composta por quatro cenas independentes, caóticas e aleatórias. O espetáculo contou
com apresentações no ambiente escolar do CPMGEF e em equipamentos culturais da cidade, como o
Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno, a Caixa Cultural e o CUCA Barra.

A realização teve em sua pretensão inicial ir de confronto às metodologias pedagógicas da escola, mas
sem desrespeitá-las, mesmo consciente da ruptura de forma transgressora com o conceito de discipli-

178. Sigla comumente utilizada por estudantes e professores em referência a escola.

468
na e ordem projetado pelos agentes escolares-militares. A linguagem do teatro era (e ainda é) vista
como “movimento proporcionador de desordem no espaço escolar, deslocando os alunos para um
espaço de instabilidade e inquietude”179, o que, de certo modo, traz como reflexão pedagógica na,
da e em, arte, que a proposição como prática contemporânea de ensino-aprendizagem se tornou
um ato criador e “libertador”180 para os estudantes. Uma ação onde o aprender e o produzir arte
vem a ser um processo intrinsecamente vivo, não se tratando de explicar ou apresentar certezas,
mas de propor abertura de espaços e agenciamentos para a troca de experiências, onde experienciar
a cena produz, por si, aprendizagem. Uma atuação, buscando, dentre outros pontos, um caminho
para encontros e desencontros do ser humano com o mundo. Uma ação de criação na qual as duas
áreas, arte e educação, são mescladas de tal forma que não se possa bifurcá-las ou sequenciá-las,
mas se possa derivar uma experiência que não se sabe onde inicia ou finaliza, ...artístico-pedagó-
gico-artístico…

Imagem 1. “O que é isso?” Experimento 2013. Foto: Debora Frota.

Nos anos seguintes, o grupo de teatro passa a contar, aproximadamente, com 60 estudantes e, dada a
repercussão dos processos de criação, foi necessário constituir um arcabouço de rendimentos que retor-
nasse de forma quantitativa e oficialmente, índices escolares. Passo a utilizar instrumentos cartográficos
e autoavaliativos como estratégias de registro e como forma (subjetiva) de demonstração oficial para a
escola as impressões dos estudantes, arquivando graficamente os sentimentos, as percepções, os entu-
siasmos e as necessidades de um grupo que ansiava por mais experiências em arte no espaço escolar.
Embora esses instrumentos de avaliação fossem suficientes naquele momento, cada vez mais me depa-
rava com antigas questões: Arte se avalia? Como avaliar a arte? Como avaliar em arte?

As questões que cercavam o modus operandi de avaliar não ficaram apenas nas atividades extracur-
riculares. Como avaliar a aprendizagem dos estudantes nas atividades curriculares? Como avaliar
o nível de “preparo” em conteúdo de Arte dos estudantes que estão sendo direcionados ao ENEM?
Como uma coleta de dados quantitativos, como a nota de uma prova objetiva, pode ser fiel ao inter-
pretar um processo de aprendizagem? Que mecanismos podem ser utilizados para que a avaliação de
aprendizagem em Arte seja eficiente?

179. Comentário de um monitor (policial militar) ao assistir uma aula de teatro na escola.
180. Este termo é utilizado de forma simbólica, pois pelos relatos muitos estudantes consideram as regras aplicadas na escola como uma
forma de aprisionamento.

469
Imagem 02. 1º dia
de oficina.
Foto: Debora
Frota. 2015.

Diante dessas inquietudes e do discorrido, a presente investigação tem como desafio propor uma
metodologia para os processos de criação e que reflitam avaliações da aprendizagem em Arte para
as atividades curriculares e extracurriculares dos estudantes do Colégio da Polícia Militar do Ceará.
Nessa perspectiva, a pergunta que norteia a investigação é: a partir dos processos de criação em Arte,
como avaliar os resultados obtidos?

Compreendendo que o processo de avaliação está ligado diretamente ao processo de ensino-aprendi-


zagem, uma vez que as escolhas dos conteúdos, da metodologia e dos critérios de avaliação não estão
desassociados uns dos outros e ao refletir sobre avaliar o educando, tenho a oportunidade de me
avaliar, de refletir sobre meu próprio seguimento de educadora, repensando minha conduta enquanto
mediadora no processo de conhecimento, pois tanto estudantes quanto professor estão envolvidos,
efetivamente, nesse decurso.

2. NA ESCOLA TEM PESQUISA? TEM SIM SENHOR!!

Três trilhas em meu percurso estão bem definidas até o momento nesse processo: ser educadora, ser
artista e ser pesquisadora. Na vertente da educação, são ponderadas zonas da experiência, buscando
uma área marcante no universo dos estudantes e do ambiente escolar, propondo um processo que tra-
te do educando como sujeito particip(ativo) e autônomo, com suas experiências postas em evidência,
contribuindo cada vez mais para uma construção crítica e reflexiva na coletividade.

Como artista, a partir de poéticas do acaso e do caos, a interpretação confronta a representação na


busca de um ficcional, não ficção. Uma pesquisa que possa entrelaçar várias áreas, na qual o atra-
vessamento das linguagens artísticas produz uma diversidade de possibilidades. Uma investigação
que encontra na autobiográfica dos estudantes, diversos caminhos e resultados possíveis, onde os
depoimentos de caráter testemunhal sobre as questões automobilizadoras se aliam à dramaturgia dos
desejos. Territórios que permeiam o campo da realidade, da ficção e da não ficção.

Efetivar processos de criação artística, utilizando o caos em uma escola de educação militar, possi-
bilita desenvolver uma sequência de experimentos e descobertas que transcende à simples produção

470
escolar em arte. Torna viável o desenvolvimento inventivo do autoconhecimento para uma criação
sem prescrição. Uma pesquisa teórico-prática que contribui para o fortalecimento de uma experi-
mentação que não nega o já existente e estabelecido, a ordem e a determinação, mas se valem delas
com a segurança de quem busca uma reestruturação na forma de conceber um processo artístico e,
principalmente, de perceber o mundo. É um momento de deslocamento, de desordenação e de re-
construção que confronta a percepção em face do esclarecimento e do distanciamento, no limite do
reconhecimento do sujeito.

Já enquanto pesquisadora, escolher práticas não convencionais, como forma de orientar e avaliar os
processos de criação e estar concentrada nos instrumentos de avaliação que serão recursos para a
reflexão de um amplo processo, envolve muito mais do que avaliar quantitativa ou até mesmo, quali-
tativamente um sujeito. Interrogar, constantemente, como avaliar faz parte de um percurso de revisão
e reinvenção de práticas, que considero significativo para a educação.

O discurso do artista/pesquisador/docente é repleto de beleza e perfeição. Um profissional que ao


mesmo tempo tem como prioridade produzir processos artísticos, formular e realizar projetos e se
ater a metodologias pedagógicas para o ensino e aprendizagem é um “agente motriz” na escola. Mas
seria efetivamente possível um profissional atuar triplamente?

O primeiro ponto a ser considerado é no tocante ao pesquisador, onde tanto na prática artística como
na escola, sua atuação é intrínseca. Todo artista ou professor deve pesquisar, ter um objeto de estudo,
um objetivo, uma justificativa e metodologias. Interrogo nesse ponto se o trinômio não seria redun-
dante, pois pensando em uma ação ativa e de qualidade, todo artista e todo professor tem, natural-
mente, a pesquisa em sua prática.

Uma segunda questão está na ordem da conceituação de “artista”. Para alguns, sua atuação geralmente
deve ser na e para a cidade, sendo preciso tempo e dedicação para produzir: pesquisar, ensaiar, apre-
sentar, viajar. Com uma vasta produção noturna, ser artista é visto como um suspiro poético de uma
necessidade pessoal e intransferível de ser. Mas como ser artista e atuar na escola assim?

A atual conjuntura sócio-político-cultural encontrada nas escolas públicas de nossa cidade e o dis-
curso do professor da escola no dia mantendo o artista da cidade na noite, acarretam profissionais
insatisfeitos e muitas vezes cansados pela carga horária exaustiva de aulas por semana, com turmas
abarrotadas de alunos e uma infraestrutura inadequada para aulas práticas. Questiono, assim, se, na
prática, há, realmente, uma máxima potência de produtividade nessa tríplice área.

Percebo que na prática de muitos colegas de profissão a atuação do trinômio artista/pesquisador/


docente é impossibilitada por diversos fatores e que os primeiros binômios de Dal Farra estão mais
próximos da realidade encontrada em nossa cidade.

Atuar produtivamente na escola como docente não requer apenas ministrar aula. Requer muito tem-
po extra para “viver a escola”. O ambiente escolar conta com uma comunidade inteira – professores,
gestores, funcionários, pais e alunos – e para atuar nesse espaço é preciso uma dedicação que está a
quem da dimensão física, rodeia a esfera do afetivo, principalmente para o professor de arte, que além

471
de ser normalmente “o melhor professor do mundo”, “pai”, “mãe” e “psicólogo”, ainda é visto de forma
equivocada como o “decorador de ambientes”, o “animador de festas” e o “produtor de ‘dinâmicas legais’”.

Para quem inicia a profissão, talvez não haja obstáculo e somente críticas ao modelo cansado existen-
te, mas reflito sobre as práticas dos profissionais com dez ou vinte anos de atuação, pois são estes que
ainda constroem as bases de nossa educação.

Com esse panorama que parece desanimador e até pessimista, disponho, a partir dessa proposta de
experimentação, de um ajustamento para se perceber a possível existência de um artista/pesquisa-
dor/docente na escola: a produção de um projeto na, da e para a escola, com uma produção artística
vinculada à pedagógica e a pedagógica à artística, sendo para o propositor uma espécie de projeto de
vida, considerando-se a sua integral dedicação.

Minha prática no CPMGEF se apresenta como um projeto triplo em ação. Uma criação artística,
proposta a partir de uma pesquisa de linguagem, tendo como um dos objetivos a produção de conhe-
cimento de um grupo de alunos da escola. Uma obra que sai das quatro paredes da escola e conhece a
cidade, fazendo, ainda, a cidade conhecê-la em suas apresentações181. Uma pesquisa que apresenta em
congressos científicos o universo de uma produção em arte em um ambiente escolar militar, gerando
curiosidades e espantos182. Um processo/produto(?) disparador de reflexões, pensamentos críticos,
sujeitos protagonistas e autônomos em sua história de vida. É uma ação de uma artista/pesquisa-
dor/docente. Mesmo que o encontro desses três movimentos tenha ocorrido por acaso, é facilmente
percebido a possibilidade de uma ação tríplice na escola, embora questões acerca da estrutura sócio-
-política-cultural devam ser discutidas. Talvez com uma mudança nas políticas de incentivo à Cultura
e Arte na educação básica, o profissional artista/pesquisador/docente possa vir a ser uma realidade
mais constante nas escolas públicas, possibilitando encontros, discussões, reflexões e produções artís-
ticas na comunidade escolar. Afinal, uma atuação, mesmo que gratuitamente voluntária em qualquer
segmento profissional, não demanda um tempo-duração perene, tendo seu prazo de encerramento
fadado ao acontecimento.

3. A ESCOLA O QUE É QUE É?

Por que ensinar teatro? Dança? Música? Artes Visuais? Para quê? Que inteligências são percebidas
a partir da cena? Que percepção ativada na cena se relaciona com a vida cotidiana dos estudantes?
Como verificar o desempenho do educando e identificar suas dificuldades? Como testar e medir os
resultados obtidos através dos processos de criação em Arte? Estas indagações fazem parte do motor
da investigação, em confronto com questões mais gerais relativas ao processo de criação e de apren-
dizagem em Arte no ensino formal.

Para compreender discussões dessa natureza, esta investigação relaciona Arte como experiência e
Educação como processos de criação, fomentando reflexões sobre sua importância na docência, bem

181. Referência as três apresentações em importantes espaços culturais da cidade: Teatro Universitário, Caixa Cultural e CUCA Barra.
182. Em 2014, apresentei a pesquisa Corpo-indisciplinado na VII Jornada Latino-Americana de Estudos Teatrais, realizada dias 18 e 19
de Agosto, em Blumenau-SC.

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como suas implicações em atividades artísticas direcionadas para a educação formal, com abordagem
de conteúdos específicos que visam dar condições para construir um repertório de reflexões, em diá-
logo com avaliações de aprendizagem do campo teórico-prático construído em sala.

Enfocando principalmente no papel da Arte no ensino médio, são abordados, dentre outros, tópicos
de cognição e inteligências, aspectos de transformação pessoal, a partir das experiências, generali-
zação da pedagogia da convivência, para além do âmbito artístico, como suas especificidades que os
parâmetros curriculares apontam para o aprendizado em artes, o currículo e a avaliação.

Assim, a proposta revê a estrutura tradicional de avaliar, concordando quando Hoffmann (2007, p.
20-21) afirma que o olhar do professor ao avaliar “tende a centra-se em critérios próprios e rígidos,
absolutos, incapaz sequer de uma aproximação com o pensar da criança, do jovem ou do adulto, dos
seus valores ou experiências”.

Dessa forma, busco um processo mais transparente, tanto para o educando quanto para mim, com
critérios de avaliação específicos e contextualizados, que dialoguem com a realidade do CPMGEF,
assim como quando o autor diz que:

O desafio é justamente redimensionar essa formação, ultrapassando a análise histórica e a crítica ao


processo classificatório importante em termos de compreensão de realidade, e aprofundando estudos
sobre concepção teórica e metodológicas de uma avaliação contínua e qualitativa, em cursos de for-
mação de professores, sem censura de discutir a complexa realidade educacional de nossas escolas.
(HOFFMANN, 2007 p. 71)

Nessa perspectiva, avaliar é como se diz no teatro “está disponível ao jogo”, onde a leitura de realidade
do educador está em constante replanejar.

Durante muito tempo, a tradição dos processos de ensino e aprendizagem deveriam seguir uma con-
cepção com bases sólidas e ordenadas, como em uma fórmula matemática de Fibonacci (1189-1250).
Essa concepção de “aprendizagem” como um modo sequencial de saberes que cresce de forma orde-
nada, em uma lógica crescente, do simples ao complexo, é denominada de forma arborescente.

Para Deleuze (1925-1995) e Guatarri (1930-1992), o conhecimento não é algo pronto, que deva ser
direcionado ou encaminhado a alguém. Em sua argumentação, os autores utilizam o termo “rizoma”
enquanto metáfora para os pensamentos moventes, construídos em rede, sem uma unidade ou se-
quencialidade, mas sim multiplicidade e complexidade, afirmando que “não existem pontos ou po-
sições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, existem somente linhas” (1995,
p.17). Para eles, constroem-se saberes ao se vivenciar situações cotidianas, que nos permitem, em
dado momento, tomarmos consciência desses saberes. Ideias não são dadas, mas criadas, e estão sem-
pre em movimento, para serem novamente criadas e recriadas.

Considerar saberes de forma determinística, como única verdade, cria situações sem movimento e
instabilidade. Aprender e ensinar arte deve vir a ser um processo vivo, que se desenvolve no encontro
com teorias, produções artísticas e vivências culturais, criando um espaço para conversa, troca de

473
ideias e experiências. É estabelecer com o cotidiano uma relação próxima ao sentido de experiência
de John Dewey em sua obra A arte como experiência (2010). Na acepção de Dewey, uma verdadeira
experiência ocorre na interação ativa do indivíduo com os acontecimentos de seu mundo. Ao invés
da negação aos desejos e ao caos, resulta de um processo que agrega valores e significados passados
com os acontecimentos presentes, movido pela interação entre o fazer e o receber, dialogando entre
ação, consequência e percepção.

A verdadeira “experiência”, é dotada de qualidade estética, que, de acordo com Dewey, está sob o mes-
mo padrão de uma obra de arte. Tal “experiência” se opõe à simples reprodução, ao mecanicismo, à
repetição arbitraria, à inexistência de objetivo, e é integrada pela atuação coletiva da prática.

Inspirada em John Dewey, Sumaya Mattar Moraes fundamenta sua pesquisa sobre a aquisição de
conhecimento artístico pela prática, pelo “fazer”, no “ensino prático reflexivo capaz de vincular as
dimensões teórica e prática”, colaborando para a valorização do “potencial da aprendizagem por meio
da prática e dos elementos que dela participam” (MORAES, 2007). Moraes aborda uma aprendizagem
realizada pelo reconhecimento da atuação simultânea, coletiva e dialética entre conhecimento acu-
mulado e ação, portanto entre reflexão e prática, enquanto realizamos, refletimos, aprendemos, pois
revemos ideias estabelecidas, preconcebidas. Mas, para isso, é necessário prestar atenção nas ações
reflexivas decorrentes da prática, manter o olhar “ativo”, atento e curioso, imprimindo as relações do
entorno e a qualidade estética de uma “verdadeira experiência” coletiva.

Nesse aspecto, o pensamento inicial deste trabalho como pesquisa em teatro, propondo várias expe-
rimentações a um grupo de estudantes da educação básica, a fim de investigar questões envoltas ao
processo criativo, partindo do pensamento contemporâneo de arte, e principalmente no tocante a
aspectos de criação e de reflexão como prática performática, dilui-se no decorrer do processo e a fun-
ção de apenas propositora toma outro corpo, passando a compartilhar com os alunos as diretrizes de
criação, valorizando suas iniciativas e sua autonomia. Assim, a pesquisa, além de artística, passa a ser
pedagógica, com um trabalho reflexivo, atento à prática e ao contexto escolar, buscando compreender
os motivos dos problemas, valorizando os resultados, tentando desmistificar a preocupação do “en-
tender”, onde, ao final, o conjunto de ações performativas produzidas coletivamente possa proporcio-
nar um lugar de reflexão na comunidade escolar e, antes de tudo, formar sujeitos críticos, autônomos
e protagonistas em suas possibilidades de escolha.

Este percurso convoca a um exercício voltado, muitas vezes, mais para a capacidade de inventar e
reinventar o mundo do que de reconhecê-lo. Como diz Kastrup (2010), é uma experiência percebi-
da como um saber-fazer, um fazer que resulta do saber, com base na construção do conhecimento
como fruto das multideterminações sociais que configuram o campo perceptivo. É um movimento
concentrado na experiência, na observação de pistas e de signos do processo em curso, uma forma
de experiência que alcança a dimensão estética. Deste modo, a pesquisa traz para o ambiente escolar
referenciais de uma pesquisa-ação, como uma investigação participativa que busca uma produção
coletiva de subjetividade, de forma a singularizar as experiências dos alunos e não a generalizá-las.

Esses sujeitos “libertos” no processo, muitas vezes aglutinando-se, outras justapondo-se, situam-se
enquanto aluno propositor artístico e aluno estudante da escola, ambos cidadãos do mundo, que vi-

474
venciam essa prática criativa intensamente. Definitivamente, marcada em suas vidas e condicionada
a valores e procedimentos histórico-sociais, provocando mais paixões coletivas a partir da compre-
ensão de arte, este processo, é um ato social coletivo, considerado, segundo Vigotski (1999), que o
coletivo não está apenas na existência de uma multiplicidade, mas “onde há apenas um homem e suas
emoções pessoais”. “Por isso, quando a arte realiza a catarse e arrasta para esse fogo purificador as co-
moções mais íntimas e mais vitalmente importantes de uma alma individual, o seu efeito é um efeito
social” (VIGOTSKI, 1999, p. 315).

Para o aluno-artista, assim, como a própria definição sugere, o trabalho proporciona uma discussão
sobre os conceitos enraizados da arte e o enfrentamento a um processo criativo que passa por infini-
tas possibilidades, onde a cada apresentação um novo resultado é impresso, não consolidando nunca
como uma obra fechada, possibilitando que seja reformulada a cada nova investigação.

Em relação aos alunos-estudantes, o processo funciona como uma ação educativa de incentivo
ao desenvolvimento de questões cognitivas, aproximando-os de experiências estéticas e políticas
relacionadas à ampliação de uma percepção geral do meio social. Segundo Luckesi (1986), que
acredita no dever de diagnosticar e incluir o educando nos mais variados meios, no curso de uma
aprendizagem satisfatória, integrando todas as suas experiências de vida, torna-se necessário, por-
tanto, considerar que a produção criadora do aluno como arte espontânea é reflexo de sentimento,
curiosidade, liberdade e criatividade tão peculiar de cada um, identificando que podem ser raros
os momentos nos quais conseguimos dissociar a vida da arte – ou arte da própria vida. Ou talvez
que não seja nem raro. Na verdade, que é quase impossível. Pois, a arte tem a sua essência tão pu-
ramente sensível e humana, que é difícil dizer o momento em que não respiramos ou bebemos arte
no nosso dia a dia.

Uma terceira relação, aluno militar artista, é percebida em meio às proposições de rompimento
dessas criações contemporâneas no âmbito escolar. Criticar potencialmente de modo artístico al-
gumas regras da escola, consideradas por muitos como arbitrárias, e proporcionar debates ousa-
dos acerca dessa transgressão poética, traz para os sujeitos uma potente autonomia, propriedade
e liberdade nos discursos. Os alunos saem da passividade e se tornam ativos contraventores da
constituição ordenada.

Portanto, a respeito do caráter formativo de um processo criativo em teatro na escola, não apenas
no fator artístico, mas estético, poético, político e pedagógico, percebe-se que os resultados são
alcançados, principalmente no tocante ao protagonismo crítico e reflexivo dos estudantes.

Por fim, cabe agora aos alunos-atores-militares lidarem com as novas perspectivas e as possibilidades
das cenas contemporâneas, mostrando que um trabalho que rompe com o abismo entre academia,
cidade e escola, potencializa uma educação esteticamente de qualidade e proporciona uma renovação
nos processos de ensino da arte. E a mim, reprocessar e continuar a produção na escola e na cidade,
buscando mais incentivos e acreditando que operando o pensamento de uma maneira diferenciada,
de maneira inquieta, na pulsão da transformação e no ato de provocar também serei provocada, exer-
cendo sempre o movimento, perguntando “A escola o que é que é?”

475
REFERÊNCIAS

BARBOSA, A. M. John Dewey e o ensino de arte no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocações e dialogismo. São Paulo: HUCITEC, 2010.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
HOFFMANN, Jussara. Avaliação: mito & desafio: uma perspectiva construtiva. 11. ed. Porto Alegre: Educação
e Realidade, 1993.
KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição.
Campinas: Papirus, 1999.
LUCKESI, Cipriano. Avaliação da aprendizagem escolar. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
RANCIÉRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.

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Lugares-ilha: sobre aprendizagem
como processo artístico
Cláudia Leão/ Adriele Silva da Silva

1. VIAGENS E PROCESSOS DE APRENDIZADO ARTÍSTICO

Luas e Sois (meses e dias) são viajantes da eternidade. O anos que vêm e se vão são viajantes também.
Os que passam a vida a bordo de navios ou envelhecem montados a cavalo estão sempre de viagem,
seu lar se encontra ali, onde as viagens os levam. [...] tudo o que via me convidava a viajar, e estava
tão possuído pelos deuses que não podia dominar meus pensamentos. Os espíritos dos caminhos me
faziam sinais [...] (BASHÔ apud LEMINSKI, 2013, p. 85).

O poeta acreditava e sentia as viagens para além do ato de traçar um percurso e segui-lo para chegar
a um lugar. Viagens para ele era viver viagens, vinculadas à experiência de relações de vivências en-
trelaçadas com o que estava ao seu redor. Para Bashô, as palavras mais importantes de um repertório,
simples e extremamente sofisticado, eram: tabi, viagem e yumê, sonho. As viagens são sonhos consti-
tuindo as passagens. Outra palavra importante era o Dó, uma tradução para os caminhos, que tem o
sentido muito mais completo que o dos nossos caminhos. Dó, são práticas para experimentar o que
pode posteriormente se tornar visível em ações, em gestos. Suponho que seja importante saber sobre
a experiência de estar junto e viajar, para que pensemos as viagens como processos de criação, de vi-
vências entrelaçadas em (per)cursos, em Dó (caminhos) feitos de barcos pelos rios de uma Amazônia
Insular, e, assim, falaremos de atravessamentos a Lugares-Ilha.

2. NOS LUGARES-ILHAS, ATRAVESSAR É SER ATRAVESSADO

Transitar por sobre lugares-ilha em processo de ir e voltar, de ir e ir. Ilhas não são, necessariamente,
lugares de isolamento. Ilhar-se não requer distanciamento, ou incomunicabilidade. Estar ilhado pode
estar na condição de estar em confluência, em fluxo entre terra e a água, entre o seco e molhado, entre
o perto e longe, e, dessa maneira, talvez, permitir-se estar a deriva para realizar travessias. Para atra-
vessar é necessário se deixar atravessar. Partir as ondas, abrir fendas e transpassar; da experiência de
estar ali, dispor-se ao lugar. Olhar o horizonte e saber que não há do outro lado um outro lado. Estar
ilhado, é ser contornado por água, como se não houvesse a diferença entre a ilha e continente. E o
atravessamento pode ser conduzido internamente no interior do próprio lugar, quando cruzamos os
furos que atravessam faixa de terra como flechas que cortam.

477
Os lugares-ilha podem ser o deslocamento, ou apenas, parte do processo de constituição de um lugar
de pensamento e de procedimentos para criação como: lugares afetivos, lugares de troca lugares de
experiência de encontros e desencontros, de vínculos, de reconstrução ou reconhecimento para, tam-
bém, fazer cortes. São lugares de distanciamento e de proximidade, de isolamento e pertencimento,
lugares de deriva e de esgarçamento, onde possamos expandir territórios de sentidos.

Os lugares-ilha são os lugares para entrecruzamento, atravessar. Lugares para penetrar nos ambientes
poroso, e, dessa maneira, cria contato entre corpos viventes que se misturam a nós. Atravessar para
esses territórios são, para este trabalho, tentativas de se incorporar e se apropriar estranhamente.
Deleuze aponta duas naturezas de ilhas: as continentais, acidentais ou derivadas, são as que, em eras
anteriores, foram separadas do continente, surgem de fratura de uma quebra, de uma desarticulação;
as segundas são as ilhas oceânicas, são, segundo ele, de natureza essencial, por surgirem de erupções
vulcânicas, trazendo em si, um movimento violento que vem de baixo; outras são constituídas por
organismos vivos, os corais, essas são ilhas oceânicas, elas surgem e somem, permanecem para então
serem interligadas. Qual seria, então, a natureza das nossas ilhas que se partem, derivam, deslocam,
mudam de lugar, algumas surgem, não pela repartição do solo, mas por um acúmulo de vegetação
desgarrada, como as aningas ou aturizal. Elas vão formando um emaranhado dessa vegetação que
favorece a uma sedimentação aluvional, ao mesmo tempo, outras espécies, também são trazidas pelas
águas, expandindo as ilhotas que surgem. Esse movimento cria condições para que sementes que
correm pela água e se juntem a essa superfície, como o caso das palmeiras próprias de igapó, como
o açaí, cresçam. A medida que essas ilhas se expandem, ocupam espaços antes ocupados por água,
estreitando o rio, criando, assim, uma nova paisagem. Corpos em ambiente duplamente derivado em
deslocamentos e reconstituição contínuos, assim é a natureza que nos constitui.

3. ENTRE AMBIENTES, PAISAGEM E VIAGENS COMO PROCESSOS ARTÍSTICOS

Para voltar, porém, era necessário fazer uma outra rota, mais desconhecida, imprevisível. Assim, ini-
ciamos ciclos de viagens. Do que, como processo de experimentação, chamei de “artistagens”, que
nada mais são que brincadeiras despretensiosas, exercícios que podem dar certo, ou não, mas que,
com certeza, serão processos de um aprendizado intuitivo.

Propus, como extensão de duas disciplinas de Laboratório de Fotografia, viagens para outra ilha, Co-
tijuba. Essa experiência iniciava com uma hora de travessia de barco, e, durante a travessia, conversas
sobre a vida, trabalhos e amores; cozinhar para comermos juntos; banho no rio; dormir pendurados
nas redes e todos amontoados em um pátio de uma casa emprestada de um amigo. Voltamos a Coti-
juba três vezes, até a ação final. Era no meio da tarde, quando iniciamos um ciclo de acontecimentos
despretensiosos, chamado: “nas ilhas: artistagens e processos, Cotijuba”. Todos eles aconteceriam em
duas praias, na casa e no bondinho. Depois da montagem de exercícios mais simples com fotografia,
seguimos para a praia da Fleixeira, uma praia cheia de pedras escuras, misturadas à água barrenta
do rio. Ali foi a convergência dos exercícios mais simples, porque, talvez, fossem despretensiosos e
mais complexos, porque era uma série de ações continuadas. Uma linha transparente foi atada e nela
ficou pendurada uma folha seca que fazia um barulho. Esse som delicado e insistente poderia ser a
chamada para um transe sutil. As pessoas caminhavam, outras pintavam seu rosto e ficavam andando
sobre as pedras, outros; buracos eram abertos na areia; uma bandeira tremulava; garrafas soltas no

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rio, entrar na agua até sumir no horizonte; uma fogueira, lanternas de afogados, uma pedra arrastada
é jogada no rio; músicas para dançar, jogo de bola, vôlei noturno, imagens projetadas sobre o lençol
atado no meio da praia, uma festa.

Imagem 1. Convite virtual do evento Imagem 2. Performance de alunos dentro do rio, Ilha de
Cotijuba.

4. NA ILHA MURICI OU QUANDO RETORNAR É POSSÍVEL

As viagens lembram uma história contada pelo antropólogo japonês, Ryuta Imafuku. Ele contou, em
uma das suas aulas, uma experiência sobre aprender. Ele, estrangeiramente, segue para ilhas, disposto
a viver a desmontagem para um outro aprendizado, retirando a carga do conhecimento preconcebi-
do, preestabelecido, imposto pelo pensamento funcionalista e formatado, para apenas aprender com
os insulanos. Parte dessa vivência está em seu artigo Ocupação visual nas ilhas: imagem e violência no
Japão pós-guerra. Imafuku, a partir das imagens do fotógrafo Shomei Tomatso, relata sobre as relações
entre as imagens realizadas antes e depois da guerra e o sentido delas. Mas nos traz, de maneira extre-
mamente sensível, uma situação não muito particular e não muito distante de nós. Ele nos apresenta
um pequeno relato sobre autonomia, beleza, pequenez e dignidade dos insulados do arquipélago de
Okinawa, e do monstro que ocupa esse lugar:

As ilhas do sul são belas e pequenas. Sua beleza tornou seus habitantes gentis e dignos, e sua peque-
nez reforçou o senso de autonomia e coesão desses insulanos. A beleza e a pequenez das ilhas têm
constituído um bem inestimável, tornando o povo que as habita capaz de manter seu auto-respeito
e de nutrir sua aguda consciência do mundo que o cerca. Ao mesmo tempo, entretanto, a beleza e a
pequenez tem disseminado as sementes de infelicidade e desventura sobre as ilhas, porque o dono
dessas ilhas, o Governo Nacional sediado na Grande Ilha do Norte, tem redefinido sem piedade as
pequenas e belas ilhas em termos de sua utilidade para o Estado. A beleza das ilhas foi maltratada
pela indústria, que as explorou de um modo capitalista, tentando estabelecer um monopólio, e sua
pequenez criou a justificativa inconsciente para que o Estado rebaixe a importância social da terra.
Além disso, uma vez que as ilhas parecem uma série de pequenos pontos na periferia sul da nação, o
Estado arrogante desonrosamente pensou que o exercício do poder público – não importa qual seja
sua natureza – nessa pequena área minimizaria seu efeito na sociedade como um todo. Desse modo,
a grande e feia Ilha do Norte tem continuado a dominar física e espiritualmente as belas e pequenas
ilhas. Agora, no entanto, as Ilhas do Sul estão cheias de inquietação. O golpe nas emoções ocultas
dos insulanos obrigou-os a repelir os esforços para perpetuar a longa história de dominação. Ele os

479
fez resistir à apropriação física e espiritual das ilhas pelo Estado, e atacar veementemente o compor-
tamento enganador do monstro, que o Estado se gabava de haver domesticado. (IMAFUKU, 2000).

Acredito que esse relato é muito semelhante à situação vivida aqui na Amazônia, onde a proximidade
do mostro é também muito forte. Então, me pergunto: Como passar incólume à uma história? E para
responder, parafraseio o meu mestre japonês e transcrevo as palavras de Imafuku como minhas: “[...]
sei que o tempo e o lugar que vivenciei, senti, compreendi mal, super ou subestimei, ainda existem
em mim, e simplesmente acredito em seu permanente compromisso vital com meu cotidiano.” (IMA-
FUKU, 2000).

Assim, eu escrevo sobre a desimportância e a potência delicada e sensível das populações tradicionais
que vivem na beira dos rios. Não é por ser nascida aqui, somente, mas porque não terei como me
desfazer do que me liga a esse lugar, do que me vincula a esse tempo, à história que nos margeia e em
constatar o quanto ainda estamos à margem da nossa própria história nesse lugar chamado Amazônia.

Era de manhãzinha, quando saímos do rio Xingu para entrar no pequeno rio Tucuruí e chegar ao porto
de Vitória do Xingu. A expectativa da chegada era grande, mas ainda não sabia o que encontrar. Segui-
mos andando no sol, carregadas da bagagem, até chegar à casa da mulher que nos receberia para passar
umas horas e seguir viagem até Altamira. Ela não estava em sua casa, estava em uma recente ocupação,
bem próxima dali, localizada do outro lado da PA. Em nossa direção, correu a menina de dois anos. Zila
e sua família, vivem atualmente, em uma invasão na periferia de Vitória do Xingu. Eles vivem uma casa
construída em um pedaço de terra emprestado da sobrinha. Ela e seus filhos construíram a casa que
vem sendo arrumada aos pouco, ainda que houvesse previsão, nos próximos dias, para mais mudança.
Zila e os seus estão de passagem, eles vivem na incerteza do lugar onde seria possível viver de novo. São
quase um ano e meio desde quando eles saíram do lugar onde viviam na ilha Murici, na beira da água
do Rio Xingu. Localizada a cerca de 50 km abaixo da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a
ilha recebia, de imediato, todo o impacto das bombas e de toda a transformação proporcionada inescru-
pulosamente pela construção do mostro construído no meio de um lugar chamado Volta Grande, um
gigantesco labirinto de ilhas, misturados aos pedrais, praias e imensa parte de floresta ainda virgem no
rio Xingu. A água havia se tornado imprópria para beber e lhes dar o alimento. Zila conta que os anzóis
que jogava n’água para pescar, em pouco tempo, eram enterrados na barrenta e suja que se tornou a água
do Xingu. A alta concentração de resíduos e pedras, lama, produzidas pelas bombas, também espantava
os peixes. A água já estava imprópria para a mínima utilização do uso doméstico. Ainda que resistissem,
porque não havia para onde ir, eles foram expulsos da ilha quando ela começou, “imprevisivelmente”, a
alagar. A transferência da família aconteceu de maneira muito violenta para quem não poderia ter o que
deixar para trás, que é essencialmente saber viver perto da água. Zila é expulsa da ilha pela impossibili-
dade que se tornou em viver sobre a pressão de morrerem afogados, sem amparo e sem socorro de uma
súbita enchente que poderia ocorrer a qualquer hora do dia e da noite. Era mais seguro partir.

Para quem vivia na beira do rio, Zila e seus filhos têm que aprender, na indignidade da periferia de Vi-
tória do Xingu, a viver sem água, sem alimento, sem luz, sem independência e autonomia, e recome-
çar tudo. Depois da retirada brusca, Zila não mais voltou à sua ilha. Naquela noite em que passamos
com eles, conversamos sentadas no banco que ficava em frente à sua casa. Eu perguntei a ela o que era
morar longe do rio. Ela respondeu apenas: “nunca mais quis ir ver o rio”.

480
Em julho de 2015, saímos muito cedo de Vitória do Xingu, pegamos o ônibus para chegar até Altamira,
pois lá, iríamos em uma embarcação entrar na Volta Grande do Xingu e chegar até sua ilha. Quase qua-
tro horas de viagem, vimos os rastros de destruição, as ilhas queimadas, casas abandonadas, máquinas
no meio do rio e outra derrubando árvores imensas. Vagarosamente, atravessamos o gigantesco pedral,
uma área que possivelmente irá ficar submerso quando a UHE Belo Monte começar a funcionar.

Imagem 3. Ilha Murici, Volta Grande


Xingu.

A casa de Zila fica quase na ponta da ilha, rodeada por pés de murici e mais quatro buritizeiros. O rio
é gigante e de tarde fica rodeado de aura dourada. Mas o rio é verde. Entramos na casa e a marca de até
aonde água atingiu ficou marcada na parede de madeira. Ela procurava encontrar o que havia deixado,
sem se lembrar o que havia deixado, mas tudo ali lhe era muito familiar. A cama, o colchão, a mesa, o
telhado, a porta arrancada, o barro incrustado no chão. O mato estava alto. Limpamos e arrumamos
a casa, capinamos. Ela e a casa estavam vivas de novo, era o seu lugar. Tomamos banho no rio, assim
como foi dele que veio a comida e a água para beber. De noite, muitas bombas estouravam, eram da
UHE. Também de noite, luz longe nunca se apaga, é o monstro de cimento montado no meio do rio.

Para finalizar, gostaria de tecer um comentário sobre nós: aquele que vive intensamente arrodeado ou
entremeado por rios. Ele nunca vai pensar que vive sobre uma paisagem, segundo as convenções de
uma natureza onírica imposta segundo cânone europeu. Paisagem Amazônica não é onírica, possu-
ímos a natureza selvagem, inquietante, suada e úmida. Não contemplamos a paisagem. Aqui o verbo
é outro: esperar, é estar para. Espera à beira do rio, no porto, é para esperar o outro que vai chegar ou
que vai partir, já que, essas são parte das ações cotidianas de quem vive as operações de deslocamento
diárias entre uma localidade e outra. Atravessar o rio é necessidade de acesso para manutenção do
barco, do filho que adoece, ou vai para a escola; ou para a venda do açaí e pescado. Essas ações cor-
riqueiras e intencionalidades da vida cotidiana. O rio é meio de sobreviver, é a via de acesso, a rua,
a avenida, meio de entrar em contato e ser. Aqui, ninguém ficará olhando o rio e floresta ao longe,
contemplativamente, como se estivesse mirando através da janela da paisagem.

Deste modo, contemplar é uma ação reducionista, de visualidade e visibilidade de quem está fora,
sem competência ao permeável. Para o filósofo japonês Tetsuro Watsuji, o corpo humano não carrega

481
somente o seu passado, para ele, há uma necessidade de relações entre ambiente, tempo e história
juntos, entrecruzados no nosso corpo. Para nós, é fundamental a dinâmica entre se unir e se separa.
Desse modo, paisagem é o prolongamento do nosso corpo, somos nossos ambientes e por tudo aquilo
que o atravessa quando nos dispomos afetados, a contaminação. Para Watsuji, a paisagem é um meio
de acesso à nossa existência, que está além da relação de temporalidade, transcendendo e descobrindo
em si e no outro uma forma de pertencimento, dessa maneira que tomemos a consciência do nosso
próprio corpo e nossa vida.

5. CONT_ATO

Na busca por compreender caminhos, trajetos e as relações que se estabelecem entre o processo de
criação de uma artista e o processo de criação de crianças em fase de escolarização básica, desenha-
mos, juntas, a artista e a professora, um plano de ação que compreendesse tanto o currículo escolar
obrigatório quanto os conteúdos, habilidades e competências transversais que acreditávamos neces-
sários ao desenvolvimento das crianças.

Partimos da compreensão da pele como membrana que nos conecta aos outros e ao próprio ambiente.
Essa pele como parte importante daquilo que temos dentro de nós e que nos oferece o contato com
muito do que está fora. Passamos pela ideia e observação das marcas que carregamos. Marcas nos
pés, nas mãos, os sinais, as cicatrizes, as ferroadas de insetos e as diferentes cores de pele, para, então,
buscamos a relação dessas marcas com os mapas que constituem nossa relação com o mundo, até che-
garmos no conceito de linha do horizonte e paisagem. Fez-se então a complexidade da poesia. “[...]
nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio” (ROSA,
1994, p. 413).

Usamos Fitas de Moebius183 para desenhar paisagens sem início ou fim. Usamos fotografias para com-
por histórias dentro e fora do quadro. Usamos o contato do ouvido de um com o peito aberto de
outro para ver sons, desenhando a trajetória da batida de pequenos corações. Ou seja, música que foi
desenhada em linhas.

Todas experiências vividas com muitas trocas, muito afeto, e dias, às vezes de alegria, outras vezes de
tensão e a maioria das vezes de satisfação, por fazer uma atividade que motiva pelo desafio de conti-
nuamente tentar facilitar diferentes modos de ver e conhecer o mundo ao redor.

No fim do primeiro semestre letivo, tínhamos tantas coisas a expor que se tornou difícil decidir. Seja
pelo espaço que não temos, pelo material que poderia ser retomado mais tarde ou simplesmente
pelo recorte daquilo que poderia dizer do trabalho de um semestre letivo. Decidimos (as crianças e a
professora) então, usar o trabalho que começou com as imagens fotográficas da artista Cláudia Leão,
quando, em um bate-papo, ela falou de seu processo de criação com as crianças e depois distribuiu
muitas imagens para que cada uma escolhesse uma e que, nessa imagem recebida, estes iriam, agora,
“completar a fotografia”. Era um convite a contar histórias do imaginário infantil e também ribeirinho.

183. Fita de Moebius ou Fita de Möbius é uma superfície não orientável com apenas um lado. Deve seu nome à August Ferdinand Möbius,
alemão que a estudou em 1858.

482
As aulas seguiram, mas a vontade de continuar com um material tão importante persistiu. Então, ago-
ra que já tínhamos pequenos quadros de 10 x 15 cm, porque não ampliá-los? Foi então que todos co-
lamos nossas imagens em uma superfície de papel sulfite184, para pensarmos além do enquadramento
original. Que outras imagens haveriam se eu ampliasse a janela da fotografia?

Assumindo o conceito de “linha do horizonte” e de contato, remontamos aquelas muitas paisagens em


uma única que atravessou todas as paredes da escola. Nossa linha do horizonte ficou exposta durante
as três semanas finais das aulas. E das muitas coisas que deveriam ir, foram. Os dias de sol e umidade
que tingiram a exposição, a partir do contato aquoso, oferecendo um ar de desvelar outras camadas
contidas na superfície. Fomos todos convidados a perceber, como Georges Didi-Huberman (2009, p.
69), quando defende que,

Há de se escolher como se quer conhecer: se se quer a perspectiva da visão (“objetiva”), então, há


que se afasta, não tocar; ou se se quer o contato (carnal), então o objeto do conhecimento se torna
uma matéria que nos envolve, nos desapega de nós mesmos, não nos satisfaz com qualquer certeza
positiva.

6. ATRAVESS[ANDO]

Outro momento do trabalho consistia em planejar, construir o educativo da exposição Atlas, Pele
e Paisagem – fluxos de viagem na Amazônia insular, da artista Claudia Leão. Já me sentia cobaia da
minha própria experiência, pois, desde o momento que a proposta é lançada e aceita, desejei ser
a professora que, a partir daquelas referências, iria desenvolver diferentes atividades que tratassem
também do que nem sabíamos como seria materializado quando se tornasse exposição. Um desafio
de atravessamento de instituições e de um tempo mais alargado.

No contexto da exposição, permitimo-nos ser quatro parceiros aprendentes e ensinantes. Quatro pes-
soas que precisavam atravessar o rio. Éramos parte de um projeto de ser e pensar a paisagem dos rios,
mas a partir da perspectiva de quem pertence à própria paisagem, como a artista Claudia Leão (05,
2014) define

Quem vive intensamente arrodeado ou entremeado por rios, nunca vai pensar que vive sobre uma
paisagem, segundo as convenções de uma natureza on��������������������������������������������
������������������������������������������
rica imposta. N����������������������������
��������������������������
o possu��������������������
������������������
mos a natureza on��
í-
rica, possuímos a natureza selvagem. Não contemplamos a paisagem. Aqui o verbo é outro:esperar.

Nesse contexto, esperamos o tempo do encantamento, do mergulho nas águas barrentas, do laçar fios
seguros na agulha e que o destino atravessava tecidos carregados de outras energias e que se somariam
aquela nova experiência.

Apresenta-se e aceita-se, entre os parceiros, a possibilidade/necessidade de novos encontros para es-


tudar, para tirar dúvidas, para comer e, principalmente, para estar juntos. Desejamos compartilhar
ideias e práticas e conseguimos. Iniciamos entendendo o contexto em que a exposição estava surgin-

184. Tamanho A4.

483
do, suas implicações políticas, seu financiamento, a trajetória da artista, os possíveis resultados, os
tipos de público, as atividades pedagógicas, os materiais necessários, o espaço cultural que abrigava
o projeto etc. Muitos tópicos que a cada novo encontro se multiplicavam em novas dúvidas matrizes
da proposta educativa.

REFERÊNCIAS

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Monte provoca tragédia social em Altamira. Ministério Público Federal – Procuradoria da república no Pará,
05 jun. 2015. Disponível em: <http://www.prpa.mpf. mp.br/remocao-forcada-de-ribeirinhos-por-belo-monte-
-provoca-tragedia-social-em-altamira>.
CASTRO, Eduardo Viveiros de e DANOWSKI, Déborah. Diálogos sobre o fim do Mundo. Entrevista. Disponí-
vel em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/29/opinion/ 1412000283_ 365191.html>. Acesso em: 30 maio
2015.
CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Martim Claret, 2006.
DIDI-HUBERMANM, Georges. Ser crânio. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2009.
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www.cisc.org.br/portal/index.php/pt/biblioteca/finish/17-imafuku-ryuta/54-a-ocupacao-visual-nas-ilhas-
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LEÃO, Cláudia. Pequenos atlas sobre águas, superfícies e peles: paisagem nos lugares-ilha e o percurso da via-
gem. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PESQUISADORES EM ARTES
PLÁSTICAS, 23., 2014, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2014.
LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz de Sousa, Bashô, Jesus e Trótski – 4 Biografias – Paulo Leminski. São Paulo:
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MOREIRA, Eidorf. Ideias para um concepção geográfica da vida. Belém: H. Barra, 1960.
PAPAVERO, Nelson et al (Orgs.). O novo éden: a fauna da Amazônia brasileira nos relatos de viajante e cronistas
desde a descoberta do Rio Amazonas por Piazón (1500) até o Tratado de Santo Idelfonso. (1777). Belém: Museu
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ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa: volume II. Rio
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Brasil, 2001.
WATSUJI, Tetsuro. Antropologia del paisaje: clima, cultura e ambientes. Trad. Juan Masia y Anselmo Mataix.
Salamanca: Ediciones Sigueme S.A.U., 2006.

484
O relato de uma experiência: a ação
mediação cultural –
formação do espectador no Teatro
Sesc-Senac Pelourinho, em Salvador (BA)
Poliana Bicalho

INTRODUÇÃO

Esta escrita185 é o relato de experiência sobre a ação Mediação Cultural - Formação de Espectado-
res ocorrida no Teatro SESC-SENAC Pelourinho – TSSP, unidade do Serviço Social do Comér-
cio (SESC Bahia), na cidade de Salvador, no período de 2013 a 2015186. Mediante este recorte,
buscamos problematizar o âmbito da formação de espectadores para as artes cênicas na referida
cidade a partir do campo teórico-metodológico da mediação cultural/teatral, que compreende
não apenas os “procedimentos artísticos e pedagógicos propostos diretamente aos espectadores
iniciantes, mas abordam a formação de espectadores como uma questão que abrange as diversas
etapas do evento teatral, desde a concepção artística até sua recepção pelo público” (DESGRAN-
GES, 2003, p. 65).

Acreditamos que a aproximação dos sujeitos ao universo das linguagens artísticas deva ocorrer numa
perspectiva de estímulo à produção, apreciação e reflexão desses espectadores, potencializando a
constituição da cidadania cultural desses sujeitos (OLIVEIRA, 2011). Nesse sentido, a formação de
espectadores não consiste apenas na doação de ingressos de espetáculos, é preciso tornar mais eficaz
esta importante vivência cultural, na sua dimensão artístico-pedagógica, buscando minimizar barrei-
ras linguísticas e físicas (DESGRANGES, 2003). Assim, esta escrita está norteada pela questão: como
ocorre a aplicabilidade da metodologia da mediação cultural no edifício teatral?

Nessa explanação, teremos como ponto central os públicos para as artes cênicas entendidos como
sujeitos de pleno direito à cultura. Segundo Teixeira Coelho (1997), não existe “público” da arte e
sim “públicos” da arte, pois as pessoas possuem diferenciados processos de recepção da obra. Para

185. Este relato é um fragmento do texto da minha dissertação de mestrado intitulada: O edifício teatral como espaço artístico-pedagógico:
a práxis da mediação cultural no Teatro SESC - SENAC Pelourinho, defendida no dia 31 de março de 2016, em Salvador-Bahia.
186. Poliana Lima Bicalho integrou o quadro de funcionários da instituição no período de agosto de 2013 a junho de 2015.

485
ele, a tríade do que podemos chamar de “direito à cultura” é composta pela participação da vida
cultural, das conquistas científicas e tecnológicas, e pelo direito moral e material à propriedade in-
telectual (COELHO, 2011).

1. O ESPAÇO DA AÇÃO

O Teatro SESC-SENAC Pelourinho, localizado no Pelourinho, em Salvador, é composto por dois


ambientes de encenação: o Teatro de Arena, com cerca de 300 lugares, e a Sala Principal, com 220
lugares, além de um pequeno foyer. Possui uma programação ininterrupta, de segunda-feira a sábado,
geralmente com ingressos que variam entre a gratuidade e R$ 40,00 (quarenta reais). Essa unidade
atualmente possui cerca de 30 profissionais contratados. O espaço187 foi

[...] inaugurado em 1975, ano de restauração dos casarões que formam o Complexo Turístico Sesc-
-Senac Pelourinho, o Teatro possui duas salas: uma com palco no formato italiano e a outra semi-
-Arena. Após uma ampla reforma em parceria com o Governo do Estado, o espaço foi reinaugurado
em 1998, com uma nova infraestrutura, que inclui hall, bilheteria, área administrativa, foyer, café bar,
camarins e iluminação cênica. A política de ação do SESC está baseada no desenvolvimento artístico
local, ao disponibilizar pautas e apoiar projetos culturais e na democratização do acesso à cultura,
ao proporcionar o contato com atividades culturais e educativas que contribuam para o crescimento
pessoal e social dos comerciários e dependentes, e do público em geral. (SESC, 2015).

Cabe esclarecer que, ao longo dos 17 anos em que permaneceu sob a gestão da produtora cultural
Ana Paolilo, o TSSP sempre incorporou na sua prática ações de formação de plateia, mas que nunca
foram sistematizadas. Além disso, nem sempre a instituição contou com profissional específico para
a função, da mesma forma que jamais utilizou a nomenclatura mediador cultural.

Também se faz importante esclarecer que a equipe da mediação cultural dispunha de apenas uma
profissional responsável diretamente pela ação da Mediação Cultural – Formação do Espectador188:
a autora que vos escreve. Diante desta dificuldade, uma estratégia para a condução do trabalho foi
o envolvimento de outros profissionais do teatro, que, a partir das suas funções, contribuíram na
execução desta experiência aqui registrada. Esta ação gerou relação de pertencimento e afeto entre
estes sujeitos e o fazer mediador, o que foi de suma importância para a continuação desta prática, no
referido espaço.

O trabalho desenvolvido foi dividido em três etapas. A primeira foi a etapa de Sensibilização – tanto
da instituição, quanto do educador e do educando – e houve uma busca ao estímulo à criação pela
proposição de exercícios que possam contribuir com o contato estético que o aluno terá. Foi impor-
tante nesta fase o trabalho de contextualização proposto aos alunos sobre o universo do espetáculo.
Para tanto, foram desenvolvidos materiais para contribuir com esta prática. A segunda etapa foi a
Apreciação do Espetáculo, em geral seguida de bate-papo mediado pela equipe do Teatro SESC-SE-

187. Para melhor conhecimento desse espaço, acessar a página online do SESC-Bahia, disponível em: <http://www.sescbahia.com.br>.
Pagina consultada em 02 de fevereiro de 2016.
188. Registramos ainda que esta atividade se chama, inicialmente, Mediação Cultural – Atividades Formativas e que no primeiro semestre
de 2015 passa a chamar Mediação Cultural – Formação do Espectador, nome que se mantém até o momento da escrita desta dissertação.

486
NAC Pelourinho. O terceiro momento foi o da Reverberação, no qual o grupo pode compartilhar as
impressões, sensações e conteúdos dessa vivência. Além disso, há uma avaliação do trajeto. Para o
autor Ney Wendell Oliveira Cunha (2011), principal referência desta práxis,

[...] estes sistemas de mediação criaram atividades que vão desde a preparação do público para o que
se vai ver, seguindo-se de acompanhamento pedagógico, durante a visitação, e, após, outras ações de
produção artística ou teórica dão conta do entendimento ou das sensações experienciadas. (OLIVEI-
RA, 2011, p. 33-34).

É importante sinalizar que, apesar da organização das etapas seguir um percurso, ele nem sempre
ocorreu conforme previsto nos interessou uma escuta atenta às demandas dos públicos, do que a
reprodução de uma fórmula estanque de mediação teatral.

2. ETAPA DE SENSIBILIZAÇÃO

A essência desta etapa consiste em tornar parceiros o educador e a instituição educativa da ação de
mediação cultural. Assim, ter um mailing de escolas (públicas ou privadas) ou de instituições do ter-
ceiro setor não é determinante para se obter o êxito numa ação de mediação cultural. Citamos como
motivo principal a volatilidade dos dados, pois estas listas ficam facilmente defasadas, seja pela troca
do gestor escolar ou do desligamento do educador de referência da instituição. É preciso uma cons-
tante tarefa de ampliação da rede de instituição e de manutenção do diálogo. E sobretudo, criação de
vínculos de confiança e troca. Neste sentido, destaco que,

[...] nas relações estético-conceituais estabelecidas na pesquisa, o indivíduo, no caso, é o professor


que vive na pele os efeitos de seu ofício, adquirindo marcas e cicatrizes da experiência cotidiana.
Cada professor, ao chegar a um dos encontros está recoberto por sua pele, no caso, uma metáfora de
um sistema de defesa, uma verdadeira casca, endurecida pela realidade. A nosso ver, qualquer ação
de formação contínua de educadores busca, de alguma maneira, penetrar por essa casca e atingir o
interno (a alma?) (ORLOSKI apud BARBOSA; COUTINHO, 2009, p. 207).

Desta forma, pensamos algumas ações de aproximação do Teatro SESC-SENAC Pelourinho com este
público, a partir do fortalecimento da imagem da unidade como um espaço artístico-pedagógico. Um
dos procedimentos adotados foi a criação de um canal de comunicação (e-mail) e sua divulgação jun-
to ao material produzido pelo teatro (programas, anúncios em jornais, guia mensal, internet). Aqui
registra-se a importância das técnicas de comunicação do teatro, Martina Argôlo e Larissa Lemos,
por entenderam a importância da ação, apesar das limitações existentes, devido às diretrizes do SESC
Bahia, a exemplo da inexistência de uma home page do TSSP.

Contudo, apenas mais recentemente – maio de 2015 – a ação passa a ter uma logomarca, defi-
nida especificamente pela gestão do espaço e pela equipe de comunicação. A seguir, lâmina do
guia distribuído no mês de maio de 2015. Tiragem: 12 mil. Apesar da importância da identida-
de visual da ação, ela não reflete o conceito que a balizou inicialmente e mostra, a nosso ver, o
entendimento reducionista que a gestão do espaço tem do trabalho, com a supervalorização da
fruição artística.

487
Figura 01. Material gráfico: guia, criado e disponibilizado pelo Teatro SESC-
SENAC Pelourinho, em maio de 2015.

Neste caminho, a aplicação de um instrumento de cadastro intitulado Ficha de reconhecimento da


instituição nos oferecia subsídios. Não era apenas um mecanismo de cadastro com dados básicos –
nome do responsável, endereço, telefone – mas era, sobretudo, uma forma de identificação do público
que ao qual atende e de saber qual era o contato da instituição com a área das artes cênicas. Neste
levantamento, o educador foi convidado a responder questões tais como: Qual a frequência na apre-
ciação artística? Como se dava a preparação do grupo para a fruição estética (pré e pós-espetáculo)?
Quais as dificuldades de acesso ao TSSP? Sugestões à equipe formativa do teatro? Este instrumento foi
fundamental para a escuta do grupo e para a otimização da ação no teatro. Até maio de 2015, 88 ins-
tituições foram cadastradas no teatro, buscando-se, assim, atender prioritariamente a estas primeiras,
mas também atendemos outras instituições que depois entravam em contato conosco especificamen-
te para a fruição de uma atividade.

A partir das informações levantadas, nos deparamos com a necessidade de lançar olhares particu-
larizados as necessidades destas instituições, que buscamos atender na medida do possível. Neste
sentido, registro do desejo da educadora Ana Cristina, do Colégio Estadual Francisco da Conceição
Menezes em “oferecer ações na própria escola que dessem suporte a atividades artísticas”. Ou ainda, o
pedido da coordenadora pedagógica Alda Cruz, da Escola Santa Edwiges em “Visitar as unidades es-
colares que solicitasse esta equipe”. Aqui identificamos um grande entrave na ação da Mediação Cultu-
ral – Formação do Espectador do TSSP, pois as ações de Sensibilização no formato in loco, ocorriam de
forma escassa, mantidas pelo interesse do educador e da técnica cultural. Esclarecemos: havia ausên-
cia de orçamento para o desenvolvimento de ações sistematizadas, conforme declarações da gestora
do teatro, que impossibilitava a realização de oficinas artísticas nas escolas, a partir da contratação de
artistas, ou ainda de visitas nas escolas/projetos pela ausência de funcionários do teatro para a função.

Contudo, destacamos ações realizadas, em algumas instituições, a exemplo, junto aos Centros Inter-
disciplinares - CENINT e o Centro Estadual de Educação Profissional da Bahia - CEEPBA, locali-
zados próximo a Feira de São Joaquim, a participação da mediadora num Encontro de Educadores,
com o objetivo de esclarecer aos demais educadores dos centros o trabalho realizado pelo TSSP e a
importância da fruição estética contextualizada. No trabalho contamos com a participação de 12 pro-
fessores, e para Olenêva Sanches, principal articuladora da ação, essa atividade “alimentou esperanças

488
e deixou diversas expectativas”189. Este trabalho gerou a participação de Danila Maia, atual mediadora
do TSSP, no I Sarau de Poesia e Leituras com Roda de Conversa Arte e Cultura na Educação, em ou-
tubro de 2015, na mesma instituição, fortalecendo ainda mais esta rede.

Também houve a participação, no ano de 2014, da apreciação de montagem teatral, realizada pelos
alunos do Projeto Semente de Ciência - AVSI Nordeste, localizado no bairro da Liberdade, atendendo
cerca de 180 jovens de 14 a 24 anos (2013/2014), após os mesmos terem realizadas Visitas Mediadas
no TSSP. Em e-mail trocado com a educadora Milena Nunes, ela coloca: “A apresentação começa às
9h:30min. Se trata da primeira apresentação artística feita por eles, muitas conquistas, mas tudo ainda
muito amador, mas ainda assim acredito que será bonito”. Após a fruição estética, ela nos encaminha
um retorno sobre a nossa presença no evento, no dia 26 de fevereiro de 2014,

Tento te escrever a dois dias para agradecer a sua presença e pedir desculpas por não poder recep-
cioná-la como gostaria. A correria foi grande e estávamos todos envolvidos nisso. Desculpa, mas
MUITO OBRIGADA PELA PRESENÇA. Foi tudo novo também para nós, nunca tínhamos feito um
evento assim. Vamos nos organizar para a programação de vocês. (NUNES, 2014, p. 1)

Durante a programação do projeto Viva Teatro! Viva o Circo! 2015, foram realizadas duas Oficinas de
Construção de Fantoches, para crianças de 08 a 12 anos, ministradas por Rubenval Menezes e Eliete
Teles, educadores da ONG Ereotá, localizado em Itinga, Lauro de Freitas e também instituição inte-
grante da rede de Mediação Cultural – Formação do Espectador. Conforme plano de curso da oficina,
ela teve por objetivo “disseminar a arte do teatro de bonecos, estimular a criatividade e sensibilizar as
crianças para a consciência ambiental a partir de reaproveitamento de materiais que seriam jogados
no meio ambiente”190. O destaque que damos a esta experiência é oriundo das pouquíssimas opor-
tunidades que houve ao longo da Mediação Cultural – Formação do Espectador, na qual os grupos
mediados foram vistos na sua capacidade também criadora, que ao mesmo tempo estão em processo
de aprendizado, também possuem saberes que podem ser compartilhados.

Imagem 01. Crianças


do Centro Teatral Boca
de Cena em foto final
mostrando os fantoches
confeccionados. Foto:
Larissa Lemos.

189. Disponível em: <http://centrosinterdisciplinares.blogspot.com.br/>. Acesso em: 08 fev. 2016.


190. Disponível em: <http://www.pequenopolisba.com.br/site/recreacao-infantil/oficina-infantil-de-construcao-de-fantoche/>. Acesso em:
08 fev. 2016.

489
Deste modo, uma das oficinas atendeu exclusivamente crianças do Centro Teatral Boca de Cena, da
comunidade do Uruguai. Importante destacar a mobilização dos educadores deste grupo para trazer
as 20 crianças ao teatro para participar da oficina e assistir ao espetáculo Barrinho, o menino de barro
(direção Fernanda Paquelet), sob coordenação do professor Raimundo Moura. Neste caso, tivemos a
efetiva atividade de Sensibilização do público.

Um dos pontos chaves da etapa de Sensibilização foi reconhecer o potencial deste educador como
público vivenciador (OLIVEIRA, 2011) e, neste caso, também falamos de educadores. Assim, na gra-
de de programação projeto Viva Teatro! Viva o Circo! 2015, foi realizada a Oficina de Contação de
História, ministrada por Meran Vargens, com carga-horária de 16h, que atendeu exclusivamente edu-
cadores (50% da rede de instituições cadastradas e 50 % de outros educadores interessados), com 20
vagas, tendo uma expressiva procura.

O campo da mediação cultural envolve uma pluralidade de atores da cadeia produtiva da arte, sendo
uma oportunidade para a construção da autonomia destes sujeitos: público e artista. É difícil men-
surar os resultados, pois eles estão no âmbito do subjetivo. Contudo, nesta práxis, percebemos que
o trabalho sistemático é capaz de gerar vínculos e minimizar muitas vezes as ‘experiências negativas’
que instituições e educadores já tiveram ao serem convidados para assistirem alguma obra artística.
Esta negatividade das experiências, por vezes, são oriundas de um cancelamento da programação,
sem aviso prévio ou mesmo a não adequação do espetáculo para a faixa etária do público.

Por isso, no percurso pedagógico da etapa de Sensibilização, foi fundamental que o educador pudes-
se ter acesso às informações das obras, para que, junto com o mediador cultural, ele possa avaliar a
pertinência desta fruição estética para o grupo, além de tempo hábil para a organização interna da
instituição. Não obstante, havia a incompatibilidade de tempo entre a montagem da grade de pro-
gramação destes eventos e o tempo para que o mediador cultural pudesse comunicar às instituições.
Assim, tínhamos como estratégia, a princípio, o envio de um e-mail, 40 dias antes, comunicando à
instituição sobre o projeto de uma forma mais genérica. A programação definitiva era enviada cerca
de 20 dias antes do evento.

Nesta etapa, os instrumentos desenvolvidos foram: Ofício Convite– carta oficializando para a instituição
a realização da atividade, esclarecendo os procedimentos e prazos; Carta ao Educador - orientações pe-
dagógicas esclarecendo o percurso da mediação cultural, junto ao grupo e Ficha do Espetáculo. Buscou-
-se, ainda, indicar jogos teatrais (Viola Spolin) e Jogos Dramáticos (Ingrid Koudela) que pudessem ser
aplicados antes ou depois da apreciação estética, além de outros exercícios. Infelizmente, apesar de todo
este percurso, nem todos os educadores tinham a preocupação de sensibilizar o grupo, e, por vezes, che-
gavam educandos, sobretudo crianças, que desconheciam até mesmo o nome do espetáculo que iram
assistir. Esta realidade foi diagnosticada principalmente com mediados de escolas particulares.

Um instrumento de trabalho importante nesta etapa seria o caderno de exercícios. Mas, não foi possí-
vel desenvolvê-lo para todos os espetáculos que integrassem a programação do teatro, dado o tempo
de fechamento da grade de programação e o tempo hábil para contactar as instituições. O instru-
mento do caderno de exercícios visava criar um procedimento uníssono, no primeiro momento do
desenvolvimento da ação Mediação cultural – formação do espectador:

490
O caderno de espetáculo traz atividades com um diferencial metodológico que colocam um novo
tratamento para com o público e valoriza-o como cidadão cultural. Por exemplo, os professores das
escolas que irão assistir ao espetáculo, têm acesso a um caderno de mediação cultural com ativida-
des que podem feitas no pré-espetáculo, durante o espetáculo e pós-espetáculo. Normalmente, é
um conjunto de exercícios artísticos ligados à estética contemporânea e que poderão ser facilmente
aplicados pelo professor em sala de aula. Com este caderno, o aprender a ser público é experienciado
pela prática artística. É um convite ao professor para apreciar, produzir e pesquisar os saberes das
artes cênicas e abrir novos campos criativos aos seus alunos. (OLIVEIRA, 2011, p. 116)

Apesar das críticas a este tipo de material, pois ele pode, de certa forma, restringir a ação do educa-
dor, a partir de um roteiro pré-definido, acreditamos que, ao contrário, ele pode ser um estimulador,
principalmente quando falamos de professores que não são de artes. Além de ser um material que já
colabora com a construção de repertório dos educadores. Contamos, com a participação efetiva de
professores de diversas áreas, além de coordenadores pedagógicos. O educador ainda recebeu a Ficha
do Espetáculo com informações básicas, dia, horário, local, sinopse, histórico da companhia, temas
transversais e links de pesquisa, além de imagens da obra. Buscou-se ainda viabilizar que os materiais
de divulgação dos projetos chegassem às instituições, mas nem sempre era possível pela localização
das mesmas e das dificuldades de logística para esta distribuição. O depoimento da educadora Lêda
Mercedes pontua a importância da sensibilização no processo da fruição estética:

O nível de atenção e interpretação da história apresentado pelas crianças foi satisfatório, levando em
conta a faixa etária delas. Contudo, notou-se que o conhecimento prévio que as crianças tinham da
história, pois fora trabalhada antecipadamente em sala de aula, foi fundamental para a compreensão
do enredo, pois a linguagem textual estava além da capacidade vocabular e de abstração deles. Apesar
disto, toda a experiência foi extremamente proveitosa e gerou repercussões bastante positivas nos
educandos. Até hoje cantam trechos das músicas e imitam os personagens da história (em especial,
o gato). (MERCEDES, 2014)

O trabalho desenvolvido junto à instituição da professora Lêda Mercedes foi bastante emblemático,
dado a pouca idade das crianças (3 a 5 anos), visto que se tratava de uma creche e pouquíssimas vezes
oferecemos programações de teatro/dança que atendessem crianças de menos de 6 anos. Por isso, ha-
via um constante diálogo para que as crianças fossem sensibilizadas e a fruição estética ocorresse de
forma tranquila para todos, mesmo sabendo que as obras não eram suficientemente adequadas para
este público. E aqui cabe um diagnóstico: a escassez de produções infantis locais, sobretudo na área
da dança, voltada para esta faixa etária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao relatarmos a experiência do Teatro SESC-SENAC Pelourinho, falamos a partir do contexto teatral


de uma cidade cujas experiências são ainda tímidas e pouco sistematizadas. Assim, este relato busca
o compartilhamento de uma prática ainda em formação, e que, por isso mesmo, é suscetível a erros,
acertos e readequações, muito embora seja pioneira na tentativa de adentrar em outros terrenos,
buscando dialogar com os desejos de um público oriundo de instituições educativas formais e não
formais – que não era o seu público prioritariamente, mas que passa a lhe interessar enquanto espaço
artístico-pedagógico.

491
É importante sinalizarmos que Todos os profissionais envolvidos na cadeia produtiva das artes – ar-
tistas, gestores, produtores, mediadores – possuem a sua responsabilidade na criação de estratégias
de ampliação do ‘pequeno círculo de iniciados’ (BRECHT apud KOUDELA, 2007). É neste contexto,
que o campo teórico-metodológico da mediação cultural, no Brasil, amplia e estabelece o seu fazer,
buscando minimizar as barreiras físicas e linguísticas (DESGRANGES, 2003) que separam espec-
tadores das obras artísticas. Para nós, a constituição deste espectador passou pelo entendimento de
que é necessário compreendê-lo como sujeito do direito e, portanto, é preciso fortalecer a cidadania
cultural de crianças, jovens, adultos e idosos.

REFERÊNCIAS

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______. Direito cultural no século XXI: expectativa e complexidade. Revista Observatório Itaú Cultural (OIC),
São Paulo, n. 11, p. 06-14, jan./abr. 2011.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Editora HUCITEC, 2003.
KOUDELA, Ingrid. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.
NUNES, Milena. [E-mail] 26 fev. 2014, s.l. [para] BICALHO, Poliana, Salvador, 1 f. Agradece a presença e se
desculpa por não recepcionar o grupo da maneira que gostaria.
OLIVEIRA, Ney Wendell. A Mediação Teatral na formação de público: o projeto Cuida Bem de Mim na Bahia e
as experiências artístico-pedagógicas nas instituições culturais do Québec. 2011. 230 f. Tese (Doutorado em Ar-
tes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
ORLOSKI, Erick. Diálogos e reflexões com educadores: a instituição cultural como potencialidade de formação
docente. In: BARBOSA, A. M.; COUTINHO, R. G. Arte/Educação como mediação cultural e social. São Paulo:
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SESC – Serviço Social do Comércio. Programação do Teatro Sesc-Senac Pelourinho. Salvador: SESC-Bahia, 2015.
Disponível em: < http://www.sescbahia.com.br/Pageview. aspx ?pagina=sesc-teatro-pelourinho>. Acesso em: 9
mar. 2016.

492
A experiência do teatro em casa
e a pedagogia do espectador
Rodrigo Carvalho Marques Dourado

A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador,


a casa permite sonhar em paz.
Gaston Bachelard

1. PORTA DE ENTRADA

Em 11 de abril de 2014, meu apartamento, que fica numa região comercial do centro do Recife e ao
lado do Teatro do Parque (Casa de Espetáculos municipal de 1.100 lugares, erguida em 1915 e fechada
para reforma desde 2010), transformou-se em espaço cênico para a estreia do espetáculo “Complexo
de Cumbuca”. O solo, protagonizado pelo ator-performer Rodrigo Cavalcanti, vinha sendo constru-
ído há meses, dentro do projeto de Pesquisa Artística Vozes Contemporâneas, realizado pelo grupo
que dirijo, o Teatro de Fronteira, com o objetivo de investigar procedimentos criativos relacionando
à produção de vocalidades cênicas à noção de voz como representação política, instrumento de em-
poderamento.

Por ocasião da pesquisa, o ator paulista Rodolfo Lima, fundador do Teatro do Indivíduo, veio à cidade
com um de seus solos, “Réquiem para um Rapaz triste”, e participou de uma tarde de intensas trocas
com os integrantes do Teatro de Fronteira. Eu havia conhecido o performer em Salvador, durante o
período de meu Doutoramento (2010), e, naquela cidade, tive notícia de que Lima realizara diversas
apresentações de seus solos em apartamentos de artistas baianos, sem que eu tivesse, no entanto, a
oportunidade de assisti-lo. Ainda assim, sua proposta de ocupar espaços domiciliares me provocou e
permaneceu registrada em minhas referências como potência performativa a explorar em trabalhos
futuros. Ao ter contato com os experimentos em construção no Vozes Contemporâneas, Lima sugeriu
que aqueles exercícios nos dariam ótima oportunidade para explorar o espaço do apartamento como
espaço teatral e, dessa forma, a ideia se materializou.

“Complexo de Cumbuca” fez duas apresentações na sala de minha casa, preservada em seu formato
original, com mobiliário disposto, espectadores acomodados no sofá e em cadeiras da mesa de jantar,
luz doméstica, uso de monitor de televisão e computador. Havia entre sete e dez espectadores em cada

493
apresentação. De início, o objetivo da ocupação era prático, considerando o fato de o grupo não pos-
suir sede própria para apresentar seus experimentos. Mas a intenção era também simbólico-drama-
túrgica, uma vez que o solo tratava das vivências de um jovem gay na grande cidade e julgávamos que
o apartamento se constituía numa importante personagem, com suas dimensões minúsculas (60 m2),
remetendo ao isolamento e à clausura, típicos dos moradores dos grandes centros. A isso, somava-se
ainda o fato de o apartamento estar situado numa região de forte presença homossexual, o bairro da
Boa Vista, local de grande sociabilidade gay e onde se encontra a maioria dos estabelecimentos volta-
da para o público LGBT (Boates, bares, etc.) da cidade.

Por fim, e não menos importante, uma grande e produtiva contradição se impunha em cena: o fato
de estarmos ao lado do Teatro do Parque. Essa tradicional casa de espetáculos vem sendo alvo de
um intenso debate entre a classe artística e a Prefeitura da Cidade do Recife e foi tomada como
emblema do descaso do poder público com a atividade teatral recifense. Morador do mesmo apar-
tamento, desde 2005, e frequentador daquele cine-teatro, desde, pelo menos, 1994, sou testemunha
da importância desse equipamento para a vida cultural da cidade. Além de sua relevância histórica
e patrimonial, o Parque é a “casa” da Banda Sinfônica do Recife, que oferecia concertos regulares
e gratuitos para a população; promovia também uma relevante ação em cinema, com ingressos a
preços módicos e programação de títulos nacionais, em sua maioria; recebia frequentemente shows
de cantores populares, acolhia festivais de teatro, cinema e música, e mantinha uma pauta regular
para espetáculos locais e de fora.

Cerrado para uma reforma desde 2010, o Teatro não abriu mais suas portas, graças a uma controversa
e interminável obra sem prazo de conclusão. Isso levou a classe artística da cidade a realizar inúmeros
protestos, alertando ainda para a situação de outros teatros municipais, como o Barreto Júnior e o
Centro Apolo-Hermilo, ambos em situação de abandono.

Vivendo o cotidiano do bairro da Boa Vista e sendo um artista em atividade no Recife, sei da impor-
tância fundamental do Parque para os moradores da região e da cidade, para os comerciantes, para
o mercado informal, para os estudantes, para os profissionais liberais, para os que buscam cultura e
entretenimento de acesso irrestrito, para o meio-ambiente (tendo em vista a grande área verde de
seus jardins), para a segurança da área (haja vista o fluxo de pedestres e carros no local que sua pro-
gramação traz), para a paisagem arquitetônica, para o turismo e a memória do município. Portanto,
vivenciei de perto os impactos causados por seu fechamento em todas essas frentes, trazendo grande
degradação para a área.

Por isso, ao ocupar meu apartamento como espaço teatral, minha intenção era também a de suprir
essa vacância, essa carência, apontar, a partir das janelas de minha casa, para o vazio deixado pelo Te-
atro do Parque e para os absurdos das políticas públicas de cultura, que fecham “casas” de espetáculos
e impedem os artistas de escoar sua produção. Mais que um experimento estético, a ocupação era um
grito de protesto, uma forma de resistência, uma maneira de reinventar as relações entre o teatro e a
cidade, entre o teatro e o público, entre o teatro e o bairro da Boa Vista. Mesmo sabendo da absoluta
incapacidade de suprir essa carência, o mais importante em nossa ação era o gesto, ressaltar a conti-
guidade entre minha casa e o teatro, marcar posição, como se disséssemos: aqui, de uma forma ou de
outro, há Teatro e ele é nossa “casa”.

494
Após os primeiros e exitosos experimentos com “Complexo de Cumbuca”, o Teatro de Fronteira se
dedicou à finalização de outro solo, fruto da Pesquisa Vozes Contemporâneas, de nome “SoloDiva”.
O grupo também se concentrou na tradução e criação da Leitura Dramática de “O Caso Laramie”, a
partir do original americano “The Laramie Project”. Esses trabalhos voltaram a ocupar o espaço do
meu apartamento, ao longo do mês de agosto de 2014, desta feita, numa ação que chamamos de A(P)
TO 205, em referência ao ATO teatral, ao ATO político, à abreviação da palavra apartamento e ao
número da unidade em que resido, 205.

Na oportunidade, lançamos o selo de Projeto Fora da Lei, para marcar a carência de políticas públicas
para teatro e o fato da ação não ser subsidiada por nenhuma lei de incentivo à cultura. Realizamos
14 apresentações para um público estimado em 280 pessoas, sem preço de ingresso definido, traba-
lhando com a ideia de contribuição espontânea do espectador, que, ao fim da apresentação, decidia o
quanto pagaria pela experiência. Os recursos eram revertidos para a manutenção dos experimentos.

Por fim, no mês de setembro do mesmo ano, o Teatro de Fronteira estreou sua quarta experiência
em espaço domiciliar, o solo “Na Beira”, seguindo a linha de pesquisa com performance autobio-
gráfica e no espaço do apartamento. Dessa vez, a ação tomou lugar em outro edifício, também
no Bairro da Boa Vista, na residência do performer Plínio Maciel. A experiência trouxe algumas
mudanças e agregou outros sentidos à investigação, tendo em vista o fato de a casa ser a morada do
performer, que constrói a cena a partir de fragmentos de sua vida e, portanto, cercado da própria
memória espacial e simbólica do seu lar. O solo realizou mais de três temporadas no apartamento
de Maciel, estendendo-se até o ano de 2015, antes de iniciar uma itinerância por outras residências,
num projeto intitulado Roda Teatro na Minha Casa, e antes de seguir carreira por teatros e espaços
alternativos do Recife.

Após a ação inicial do Teatro de Fronteira, outros artistas da cidade deram seguimento a um forte mo-
vimento de teatro em domicílios, que gerou cinco grupos teatrais, dez experimentos cênicos e ocupou
diversas casas e apartamentos, transbordando ainda para outros espaços alternativos. Dedicamo-nos,
a partir de agora, a compreender a diversidade dessa produção.

2. POR TODOS OS CÔMODOS

Ao longo do ano de 2014, várias iniciativas de Teatro em Casa mobilizaram a cena teatral recifen-
se. Dentre elas, o Teatro de Quinta, da Cia. Maravilhas, era um projeto que relacionava Literatura e
Cena, tomando o ambiente doméstico como espaço de investigação performativa. Capitaneada pela
arte-educadora Márcia Cruz, que abriu sua casa na Vila Santo Antônio, um conjunto arquitetônico
singular no centro do Recife, a ação gerou seis experimentos, todos a partir da escrita de autores
pernambucanos, tendo o conto como fonte literária por excelência. Um grupo de atores convidados,
e dirigido por Cruz, selecionava os textos a trabalhar e punha-se a traduzir em dramaturgia cênica a
obra de cada escritor.

Pelo Teatro de Quinta passaram os autores Cleyton Cabral, Flávia Gomes, Flávia de Gusmão, Cícero
Belmar, Luciano Pontes e Adrienne Myrtes. Desses trabalhos, nascidos em edições mensais ou bimes-
trais, seguiram carreira “BON’@PP” (Gusmão), “(In)Cômodos” (Belmar) e “O Mundo de Dentro”

495
(Myrtes). Os outros sequer chegaram a receber um título, restringindo-se às apresentações de sua
edição. Há que se ressaltar que o foco deste projeto era, sobretudo, a difusão da literatura pernambu-
cana, tendo os autores como protagonistas de sua iniciativa.

Ainda assim, a inquietação de cada grupo de artistas que se constituía, a diversidade do material
literário e a disposição em investigar possibilidades criativas dentro do espaço doméstico geraram
momentos de grande inventividade performativa. Cruz explorou todos os ambientes de sua casa,
desde a sala de estar, ao banheiro, passando pela cozinha, pelos quartos e pelo quintal. Em alguns
experimentos, essa exploração se mostrou excessiva, impedindo o aprofundamento das situações e
dos pequenos fragmentos criados em cada ambiente. Em outros trabalhos, criaram-se atmosferas
de grande densidade, sejam elas mais ligadas ao sagrado-ritualístico ou ao cômico-festivo.

As cenas foram erguidas dentro de um espectro estético e temático bastante amplo, desde a ironia
feminina e de classe média urbana de “BON’@PP” (sugerida pela obra de Gusmão), ao trato sobre a
loucura, que resultou em experimento de cariz surrealista, como “O Mundo de Dentro” (a partir da
obra de Myrtes), chegando ao hipernaturalismo de “(In)Cômodos” (inspirado na escrita de Belmar),
com seus personagens envoltos em indagações sobre a vida afetiva. De toda sorte, apesar de romper
com o espaço teatral convencional e utilizar, como matriz, textos literários não pensados original-
mente para a cena, os experimentos do Teatro de Quinta preservavam as mediações da ficção e das
personagens no contato com os espectadores.

Desde início, sua idealizadora ressaltou o caráter político da ação: “É uma ação de resistência contra
o torpor em relação à cultura” (CRUZ, 2014), e promoveu uma campanha de valoração dos trabalhos
de forma livre pela plateia. No entanto, após enfrentar problemas condominiais, o Teatro de Quinta
passou a ser itinerante, o que acabou por estimular outros artistas, espaços culturais e indivíduos
comuns a fomentar e receber os experimentos, enriquecendo e ampliando o mapa do Teatro em Casa
no Recife e Região Metropolitana.

Dentre os trabalhos resultantes do Teatro de Quinta, “(In)Cômodos” acabou por ganhar independên-
cia, dando origem ao Grupo 4 no Ato, que realizou temporadas regulares do espetáculo na Casa Ou-
trora, residência e loja de antiguidades do ator e diretor Jorge Clésio, situada à Rua da Glória, região
de grande relevância patrimonial para compreender o processo de ocupação do bairro da Boa Vista e
da cidade do Recife, porém, em estado de abandono na atualidade. Ao arrendar um casarão no local
e transformá-lo em espaço cênico, Clésio se agregou ao esforço de outros moradores em reabilitar a
área através de intervenções culturais.

Antes de ceder sua casa a outras ações de Teatro Domiciliar, ele próprio havia realizado dois experi-
mentos cênicos domiciliares: “Da Paz” (Texto de Marcelino Freire) e “Mulher Independente” (a partir
dos escritos de Simone de Beauvoir). Os solos, interpretados por Luciana Pontual e Hilda Torres,
aconteciam, respectivamente, na cozinha e no quarto de sua residência. No primeiro, uma moradora
da periferia, que perdeu o filho para a violência urbana, reclama da onda de paz que toma o discurso
da classe média brasileira; no segundo, uma mulher reflete sobre a condição feminina a partir da
intimidade de sua alcova. Assim como o trabalho do Teatro de Quinta, a direção de Clésio utilizava
as convenções do texto, da ficção e da personagem, mas ressaltava as particularidades do ambiente,

496
trabalhando com luz alternativa e enfatizando o papel do mobiliário e da estrutura física da casa na
criação de uma atmosfera hipernaturalista.

Também na Casa Outrora, estreou o espetáculo “Deixa Ser Eu”, com dramaturgia e direção de Mar-
celo Oliveira, trabalho que dá origem ao Grupo Hazzô. Nascido para o espaço domiciliar, o experi-
mento pretender dar voz a figuras marginalizadas do bairro da Boa Vista, como uma travesti e uma
vendedora de flores. Sua linguagem cênica preserva a busca por um hipernaturalismo das atuações,
pela intimidade e proximidade com a plateia, pela valorização do caráter simbólico do ambiente do-
méstico, mas preserva a audiência em lugar de passividade e mantém as camadas da ficção e da per-
sonagem na relação com o público.

Para fechar esse mapeamento provisório, julgo importante citar os trabalhos dos grupos Cena @ff
e Teatro do Sótão, ambos surgidos a partir da agitação dos coletivos de Teatro em Casa. O primeiro
realizou o espetáculo “Acontece enquanto você não quer ver”, com dramaturgia e encenação de Daniel
Barros e Fábio Calamy, e minha supervisão cênica. Já o segundo lançou o trabalho “Eu gosto mesmo
de pezinho de galinha, porque eu como a carninha e limpo o dente com a unhinha”, com dramaturgia
de Eric Valença, que também atuava ao lado de Nínive Caldas. Apresentados inicialmente em apar-
tamentos da zona central do Recife, esses experimentos tinham em comum o desejo de fotografar
personagens marginalizados da cidade.

No primeiro, o clima dominante era de terror e suspense, ao abordar episódios de violência extraídos do
noticiário jornalístico; no segundo, imperava a verve jocosa e paródica, com figuras tão diversas como
um Pastor Evangélico, uma Prostituta e seu empregado Homossexual. Esses experimentos também
transbordaram os espaços iniciais, migrando para locais alternativos, trabalharam com retorno finan-
ceiro baseado na contribuição espontânea da plateia e mantiveram as convenções da ficção e da perso-
nagem, ora trabalhando com a exposição da teatralidade, ora investindo num hipernaturalismo cênico.

Em janeiro de 2015, boa parte desses coletivos artísticos se organizou politicamente e promoveu uma
Mostra de Teatro em Casa como parte integrante da programação do Festival Internacional de Artes
Cênicas de Pernambuco: Janeiro de Grandes Espetáculos. O objetivo era dar visibilidade ao movimento
e agregar maior público e, para marcar a ação, escrevi uma espécie de manifesto, que foi publicado na
Revista/Programa do Festival. Nele, eu convocava o pensamento de Bachelard (1988) para ajudar a
pensar as relações entre o Teatro e a Casa, dizendo:

Bachelard, em sua Poética do Espaço, fala de uma “Casa Onírica” e de um “Sonhador do Lar”, dizendo:
“Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um
verdadeiro cosmos”. Casa e Teatro são espaços em que se criam e imaginam mundos, espaços em que
se conhece, pelo sonho, o mundo. Nesse sentido, o Teatro em Casa parece recuperar essa teatralidade
primeva, da criança que transfigura o doméstico, que sonha outras realidades, que brinca de transfor-
mar sua casa em outra. Como “centro de sonhos”, a casa é mais do que paredes, portas, piso e telhado,
ela é a memória de um teatro que nasce com o homem e o faz criar mundos. (DOURADO, 2015, p.11)

Bastante exitosa, a Mostra contou ainda com uma roda de diálogo sobre as experiências de Teatro em
Casa, que continuam reverberando na cidade do Recife desde então e que mantiveram vivo o movi-
mento teatral da cidade nos anos de 2014 e 2015, período de perdas para a classe, tanto no tocante à

497
questão dos espaços cênicos, quanto na redução dos incentivos públicos oriundos da prefeitura da ci-
dade, bem como na interrupção dos canais de diálogo com essa última e no anúncio do encerramento
de ações fundamentais como o Festival Recife do Teatro Nacional.

Porém, como bem anotou o pesquisador Alexandre Figueirôa, o movimento contemporâneo de Tea-
tro em Casa, no Recife, é apenas mais um capítulo de uma longa história:

A prática não é nova. Nos anos 1960 e 70, por exemplo, período de muita movimentação nas artes
visuais e cênicas com os “happenings” e as performances, era comum eventos artísticos saírem dos
teatros e galerias e ocuparem ambientes diversos, inclusive as residências e ateliês dos artistas envol-
vidos nas ações. [...] Esse tipo de intervenção artística também é registrado em locais com governos
intolerantes e períodos de repressão política. [...] No Brasil, nos tempos da ditadura militar, reuniões
domésticas transformavam-se em saraus onde era possível fazer críticas e questionamentos que não
eram bem vistos pelos militares. (FIGUEIRÔA, 2014)

História cujo ponto de aproximação mais imediato está, segundo ele, nos anos 1990:

No Recife, no início dos anos 1990, o crítico de arte e poeta Paulo Azevedo Chaves abriu os por-
tões de sua casa na rua Amélia, nos Aflitos, para exposições de artes plásticas, lançamento de livros
e montagens teatrais. Uma versão de A Tempestade, de Shakespeare, foi encenada lá com direção
de Marco Camarotti e As Criadas, de Jean Genet, por William Sant’anna. No lançamento do livro Os
Ritos da Perversão, de sua própria autoria, a sala da Casa Azul, como Chaves denominava seu espaço,
foi palco de um recital acompanhado por uma atuação de rapazes cuja performance dialogava com
os poemas da obra. (FIGUEIRÔA, 2014)

Nesse sentido, julgamos relevante mapear, ainda que brevemente, manifestações do gênero em outras
partes do mundo e do Brasil, a fim de melhor refletir sobre as experiências pernambucanas, seus sen-
tidos políticos e impactos sobre o espectador.

3. A CASA É O MUNDO

Desde o início dos anos 1980, no Canadá, uma corrente artística e performática, chamada de Neo-
ísmo, promove os Apartment Festivals, ou Festivais de Apartamento, que acontecem nas residências
de artistas interessados em performar ou abrir seus lares para performers. As intervenções visam a
romper com os padrões de arte e consumo, influenciadas que são pelo Futurismo, Dadaísmo, pelo
Fluxus e pelo Punk, e não atendem a um programa fechado, celebrando as formas abertas e anárqui-
cas. Esses festivais aconteceram em diversos países, como Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Itália
e França e influenciaram a criação dos Festivais de Apartamento, no Brasil, a partir do ano de 2007.
(CASTANHEIRA, 2011)

Esses festivais chegaram à sua décima quinta edição em 2015, tendo como base a região do interior de
São Paulo e interior do Paraná, e preservando o formato aberto e celebratório proposto pelos neoístas:

São exemplos de performances que se organizam principalmente através da internet. Sua premissa é
realizar-se nas casas de artistas que estejam dispostos a abrigá-los, e acontecem sem que haja cura-

498
doria: a seleção dos trabalhos é feita segundo a ordem de inscritos e de acordo com o número de
trabalhos comportados pelo local de sua realização. (CASTANHEIRA, 2011, p.03)

Sua ação, a exemplo do que ocorreu no Recife, é transitória, mas contribui para criar algum sentido
de abrigo temporário para os artistas, como coloca Fernandes (2011, p. 96):

Uma casa cedida/selecionada é fixada temporariamente como um centro. Através dos mecanismos
de interatividade do ciberespaço é organizada uma “pose” que torna essa casa um “em-casa”, onde
será possível “performar”, romper o cotidiano, experienciar, eclodir ovos. Depois, se abandona esse
ponto para retornar ao clamor do caos, às suas múltiplas exigências, porém com uma diferença: a
consciência de um possível abrigo, ainda que frágil e incerto, onde potencialmente se poderá retor-
nar. O festival abre um espaço, gera uma diferença, mas não se pode existir em definitivo no ritorne-
lo ou este deixará de sê-lo. É preciso retornar ao caos.

No Brasil, ainda acontecem os festivais Home Theatre, que toma lugar em diversas favelas e bairros
do Rio de Janeiro desde 2013; e, em 2016, surgiu em São Paulo a Mostra de Teatro em Residências de
Paraisópolis. De grandes dimensões, o Home Theatre possui várias mostras, como Cenas em Casa e
Casa-Cena-Vida, recebe artistas de várias regiões do Brasil, detona processos de criação e já ocupou,
ao longo de suas quatro edições, mais de 130 residências cariocas, havendo se expandido ainda para
a Inglaterra e a África do Sul. Boa parte dos processos realizados ao longo do HT tem caráter docu-
mental, investigando a vida de moradores que abrem suas residências e devolvendo para eles excertos
de suas trajetórias teatralizados pelos artistas, cabendo aos anfitriões convidar amigos e vizinhos para
acompanhar o evento teatral. Esse caráter mobilizador liga-se diretamente à proposta política do
Festival, a de descentralizar a atividade cultural e problematizar as relações centro-periferia numa
metrópole de tamanha complexidade e desequilíbrio social como o RJ.

Anotamos a existência do Grupo Teatro D’Appartamento, criado em 2006 na Itália, por Sandro Dieli,
e, atualmente, em atividade em Barcelona, Espanha. Sua proposta se assemelha àquelas já por nós
descritas, seja a de recuperar a proximidade entre artistas e público, seja a de retomar a essência do ato
teatral, seja a de estimular possibilidades dentro do jogo cênico, seja a de se manifestar politicamente
contra o atual estado da arte teatral, como afirma seu fundador:

Eu sou partidário do público, mas os teatros estão fechando e talvez seja necessário buscar outros
espaços porque a cultura não pode morrer. O Teatro d’Appartamento transfere a responsabilidade de
contribuir para a sobrevivência da cultura ao anfitrião, que é quem decide abrir sua casa. Além disso,
fazer teatro num espaço tão íntimo, onde atores e público respiram o mesmo ar, tem o encanto de
um ritual quase sagrado. [...] nossa intenção não é só artística, mas também política. Queremos que
o teatro entre na vida das pessoas191. (DIELI, 2013)

No mundo Anglófono, destacamos a experiência recente (2014) da Chalk Repertory Theatre, que
diante dos valores astronômicos dos aluguéis de teatros na cidade de Los Angeles (EUA), decidiu
criar sua própria mostra em espaço alternativo, tomando um edifício comercial de luxo no centro
financeiro daquela cidade, e propondo a dramaturgos a criação de cenas curtas, em um ato, relacio-

191. Tradução nossa.

499
nando a questão da moradia e da mudança de paisagem da metrópole. As cenas eram criadas para
os pavimentos vazios do prédio, agregando atores, dramaturgos e diretores num longo e intenso en-
saio de oito horas antes da chegada da plateia. O público podia assistir a várias peças no mesmo dia,
passeando pelos pavimentos, e era provocado a retornar para assistir aos trabalhos remanescentes.
(RADEN, 2014)

4. PARA O ESPECTADOR, UM “VOLTE SEMPRE”

Se, como afirma Desgranges (2002, p. 222-223):

As profundas alterações no modo de vida trazidas pela contemporaneidade colocam em cheque as


proposições artísticas modernas e requisitam aos artistas de teatro novos procedimentos estéticos,
em consonância com a percepção e a sensibilidade do espectador dos nossos dias, solicitando a
elaboração de propostas artísticas que se posicionem frente ao horizonte de expectativa do receptor
contemporâneo, que apresenta feições particulares.

Não se pode negar que o Movimento de Teatro em Casa recentemente encampado no Recife, cuidou
de retirar o público de seu lugar de conforto, na tentativa de reinventar as relações entre plateia e tea-
tro. Se as outrora chamadas “casas de espetáculos” não nos convidam mais, fecharam-se aos artistas, a
situação nos impele a uma resposta e ela vem nesta forma: no abrir dos nossos espaços de intimidade,
fragilidade e vulnerabilidade.

A casa, enfim, nos protege de um panorama desolador e devolve o teatro à sua condição mais artesa-
nal, transformando em metáfora e poesia aquilo que nos cerca no cotidiano, expondo para a plateia
não somente a intimidade do artista, do lar, mas da linguagem que se constrói do mínimo, que trans-
muta e nos incita à invenção permanente. Ele é resposta, tentativa de (re)invenção das relações entre
o Teatro, a Cidade e o Espectador.

Nesse sentido, a ação possui incontornável natureza educativa, pois

O caráter estético, reflexivo, do fato artístico está diretamente relacionado com a sua proposição dia-
lógica, com a efetiva participação do receptor enquanto co-criador do evento, e aqui está inscrito o
caráter educacional da experiência artística. Qualquer análise do aspecto pedagógico do teatro, por-
tanto, não pode estar desvinculada da própria busca do sentido desta arte, da sua capacidade de dar
conta da experiência de seu tempo, tendo em vista, como foi dito, que a sua possibilidade pedagógica
inscreve-se em sua própria viabilidade estética. (DESGRANGES, 2002, p. 226).

Dessa forma, o público é chamado para uma aventura, a adentrar um espaço desconhecido e já cheio
de história. A vagar por pelos (des)centros da cidade e penetrar em ambientes cada vez mais cerrados
ao outro. A se acomodar em nossos sofás, poltronas, bancos. Reinventa-se, assim, uma relação de
confiança e amizade com a plateia, de horizontalidade, e o olho no olho se (re)estabelece. O espaço
íntimo, por fim, torna-se público. A mais absoluta verdade é que a plateia tem sido grande parceira
desta empreitada e é com orgulho que voltamos a repetir o velho jargão teatral: “Hoje, tivemos Casa
Cheia!”, agora num sentido absolutamente literal.

500
REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Padua Donesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
CASTANHEIRA, Ludmila de Almeida. A performance como ação midiática: os (não) limites entre arte e comu-
nicação. 2011. 108f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Programa de Estudos Pós-Gradua-
dos em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
CRUZ, Márcia. O novo teatro em casa no Recife: Depoimento. Revista Online O Grito, Entrevista concedida a Ale-
xandre Figueirôa, 28 maio 2014. Disponível em: <http ://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2014/05/28/
teatro-em-casa-recife/>. Acesso em: 10 maio 2016.
DESGRANGES, Flávio. O espectador e a contemporaneidade: perspectivas pedagógicas. Sala Preta (USP), São
Paulo, v. 2, n. 2, p. 221-228, 2002.
DIELI, Sandro. Tenemos que volver a contar historias alrededor del fuego: Depoimento.. El Periódico, Entrevis-
ta concedida a Gemma Tramullas, 02 fev. 2013. Disponível em: <http://www.elperiodico.com/es/noticias/opi-
nion/sandro-dieli-tenemos-que-volver-contar-historias-alrededor-del-fuego-2308702>. Acesso em: 09 maio
2016.
DOURADO, Rodrigo. O teatro, nossa morada. In: FERRAZ, Leidson (Ed.). Revista/Programa do 21º. Janeiro de
Grandes Espetáculos: Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco. Recife: JGE, 2015.
FERNANDES, Rodrigo Emanoel. Políticas e poéticas das fotografias do festival de apartamento: entre evidências
e devires. 2011. 132f. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni-
versidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.
FIGUEIRÔA, Alexandre. O novo teatro em casa no Recife. Revista Online O Grito, 28 maio 2014. Disponível
em: <http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2014/05 /28/teatro-em-casa-recife/>. Acesso em: 10 maio
2016.
RADEN, Bill. When There’s a Theater Festival in your apartment building. LA Weekly, 08 out. 2014. Disponí-
vel em: <ttp://www.laweekly.com/arts/when-theres-a-theater-festival-in-your-apartment-building-5130903>.
Acesso em: 09 dez. 2015.

501
O artista educador e a mediação
propositora de experiências
Sara Vasconcelos Cruz/ Robson Xavier da Costa

INTRODUÇÃO

Os picos das montanhas não flutuam no ar sem sustentação,


tampouco se apóiam na terra. Eles são a terra.
John Dewey, 2010, p. 60

Ao longo da história da civilização, a Arte foi concebida como um produto separado da experiência
humana, como se uma escultura ou uma pintura, por exemplo, fosse Arte apenas pelo uso das téc-
nicas. A Arte Contemporânea retomou a questão central sobre a relação entre Arte x Experiência;
trouxe a possibilidade de retomarmos a discussão sobre a arte ir além do produto em si, mas sim a
relação que esse estabelece com e na experiência humana.

Um exemplo dessa relação é a obra do artista contemporâneo brasileiro Hélio Oiticica, particular-
mente os “parangolés”. Esta obra só existe mediante a incorporação do objeto, ou seja, a partir do mo-
mento em que ele é vestido, torna-se parte do próprio corpo de quem o experiencia. Não faz sentido
uma exposição convencional desses objetos em vitrines, araras e/ou módulos ou em qualquer suporte
expográfico convencional, que não permita a experiência corpo-objeto, que vai além do visual.

Outros artistas podem ser citados, como exemplos dessa relação: Lygia Clark, Ligia Pape, Tehching
Hsieh, Marina Abramovic e Donna Conlon. Essa última realizou no Museu de Arte Contemporânea
do Ceará, em 2009, uma instalação chamada “Febre” (figura 1), onde o visitante era convidado a en-
trar em uma sala de paredes pretas e luz infravermelha, que deixava a temperatura do ambiente muito
quente e, em seguida, em uma sala branca, onde a temperatura era muito baixa. O que podemos
perceber, nessa descrição, é que o que realmente consiste na obra de arte, nesse caso, é a relação da
sensação térmica com o corpo, não as salas em si. Talvez por estar tão ligada à própria vida, ao corpo
e às experiências, a Arte Contemporânea seja tida, comumente, como algo difícil de compreender. A
compreensão exige desvios.

502
Figura 1. “Fever”, Donna Conlon
Foto: divulgação (CDAMC)

É perfeitamente possível nos comprazermos com as flores, em sua forma colorida e sua fragrância
delicada, sem nenhum conhecimento teórico das plantas. Mas quando alguém se propõe a compre-
ender [grifo do autor] o florescimento das plantas tem o compromisso de descobrir algo sobre as
interações do solo, do ar, da água e do sol que condicionam seu crescimento (DEWEY, 2010, p. 61).

Compreender a experiência estética gerada a partir da obra de arte exige desvios para relações mul-
tissensoriais. É preciso perceber além do olhar. O corpo e vivencia a experiência. O desvio também é
importante ainda para o Ensino da Arte.

Esse ensaio tem por objetivo travar um diálogo sobre Arte, experiência e ensino, a partir dos escri-
tos de John Dewey e Jorge Larrosa Bondía. Partindo da definição de experiência estética de Dewey,
buscamos situar o museu como lugar da experiência e da mediação como propositora dessa, questio-
nando também o espaço de criação da mediação ao reconhecer o seu potencial artístico, refletido no
artista-educador.

1. EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Por ser a realização de um organismo em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas,


a experiência é a arte em estado germinal
John Dewey, 2010, p. 84

A experiência acontece na relação que o ser humano estabelece com o meio em que vive e, a partir
da qual, passa a conhecer, é modificado por ela e o modifica, em um processo contínuo de retroali-
mentação. Jorge Larrosa Bondía (2002) questiona o sentido de “experiência” a partir do significado
da palavra em várias línguas. Em português, inglês e italiano, experiência pode ser traduzida como
“o que nos acontece”; já em espanhol, “o que nos passa”; e, em francês, “o que nos chega”. Assim,
antes de tudo, a experiência exige do sujeito que vivencia uma posição de abertura para o novo.

O sujeito da experiência se relaciona tanto com o espaço onde tem lugar os acontecimentos, quanto
se mostra como um território sensível de passagem, definido pelo autor como “[...] um sujeito que

503
perde seus poderes precisamente porque aquilo que faz experiência dele se apodera” (BONDÍA, 2002,
p. 25). O sujeito da experiência está entregue às relações.

A experiência é, então, determinada por nossas vivências, pela capacidade que temos de atribuir sig-
nificados às relações estabelecidas com o meio. Para John Dewey, a experiência relaciona o que foi
vivido e nos prepara para o futuro. Ela se dá, portanto, no tempo presente. O sujeito que vivencia a
experiência é capaz de, na relação que estabelece com o seu meio, transformar-se e transformá-lo.

O tempo da experiência é, portanto, o momento presente. Para que algo nos toque, chegue até nós,
para que nos aconteça, é preciso interromper os automatismos e nos transferirmos para o “aqui e
agora”. É esse rompimento que nos gera estranhamento e nos traz para o presente. Acostumados que
estamos a ver, por exemplo, somos capazes de passar por um mesmo lugar diariamente e, justo por
estarmos habituados, seus detalhes podem passar despercebidos.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrup-
ção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para
olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar [...] dar-se
tempo e espaço (BONDÍA, 2002, p. 24).

Imagine que, todos os dias, uma pessoa faça o mesmo trajeto. O caminho não está presente, ele é um
entre: entre o ponto de partida e o de chegada. A pessoa não escolheu aquele trajeto por uma razão
outra além da prática: precisa chegar a um determinado lugar. Agora imaginemos que, em um dia
específico, durante seu trajeto, a pessoa perceba que um dos muros no caminho foi pintado por um
artista. Aquela pintura não estava ali no passado e o estranhamento em ver algo novo no caminho ha-
bitual faz com que a pessoa desacelere seu passo, olhe, estranhe. Esse estranhamento traz a percepção
do momento presente, o do estar no trajeto.

Assim, a pessoa em questão se torna um “território da experiência”, pois se abre para o desconhecido.
Mas tudo isso só é possível mediante um desequilíbrio, um momento de desconforto que, ao gerar
conflito, traz a busca pelo equilíbrio. É nessa busca que se constrói a experiência.

A experiência, na medida em que é experiência, consiste na acentuação da vitalidade. Em vez de sig-


nificar um encerrar-se em sentimentos e sensações privados, significa uma troca ativa e alerta com
o mundo; em seu auge, significa uma interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos e
acontecimentos (DEWEY, 2010, p. 83).

Entretanto, é preciso ressaltar que, para afetar, o desequilíbrio e o equilíbrio devem existir igualmente.
Segundo Dewey, há dois tipos de situações possíveis onde a experiência estética não aconteceria: um
mundo em constante perturbação ou em um mundo perfeitamente equilibrado. No primeiro caso,
o repouso não existiria e, assim, a busca infindável pelo equilíbrio tenderia ao cansaço por não se
direcionar a um desfecho. Já em um mundo totalmente equilibrado, “sono e vigília não poderiam
ser distinguidos” (DEWEY, 2010, p. 80). Assim, é possível afirmar que precisamos das tensões para
apreciarmos as soluções. “Pelo fato de o mundo real, este em que vivemos, ser uma combinação de
movimentos e culminação, de rupturas e reencontros, a experiência do ser vivo é passível de uma
qualidade estética” (DEWEY, 2010, p. 80).

504
A experiência ocorre com a interação do ser vivo com o ambiente e é inerente à vida. Sendo assim,
continuamente vivenciamos experiências. O que diferencia uma experiência comum de uma expe-
riência singular, porém, é que a última faz seu percurso até o desfecho e se conclui de modo que seu
encerramento tenha sido construído ao longo de sua vivência, e não interrompido por elementos
externos. A conclusão não é uma coisa distinta do processo de experiência, é, como afirma Dewey, a
“consumação de um movimento” (DEWEY, 2010, p. 133) e, portanto, é construída durante o percurso.

2. PROPOSIÇÕES: MEDIAÇÃO SENSORIAL E ARTISTA-EDUCADOR

Nada que o homem já tenha alcançado pelo mais alto voo do pensamento,
ou que tenha penetrado por um minucioso discernimento,
é tão intrinsecamente tal que não possa se tornar o coração e o cerne dos sentidos.
John Dewey, 2010, p. 100.

Esta colocação de Dewey revela muito sobre a nossa compreensão da mediação enquanto processo
educativo e também como processo de criação artística e proposição poética. Mediar não se resume a
transmitir informações, mas se define sim como a construção constante de um diálogo entre o público
e a obra. Mediar é “criar um problema”, questionar-se sempre sobre o que se olha e ampliar essa visão.

A experiência educativa precisa ser afetiva, ou seja, precisa afetar, tocar os sujeitos para que seja trans-
formadora. As experiências em Arte são experiências estéticas, compreendidas como transformado-
ras, capazes de potencializar nossas relações com os contextos em que estamos inseridos. Para tanto,
é preciso gerar afetações, desequilíbrios.

No que tange especificamente à mediação em museus, é possível identificar um esforço constante


presente nas pesquisas recentes da área, de desmitificar o museu enquanto espaço sacralizado, que
gera distância e, por tanto, dificulta as experiências prazerosas. Segundo Dewey, “o crescimento do
capitalismo foi uma influência poderosa no desenvolvimento do museu como o lar adequado para as
obras de arte, assim como na produção da ideia de que elas são separadas da vida comum” (DEWEY,
2010, p. 67). Se a experiência precisa “tocar” o sujeito da experiência, acontecer nele mesmo, então a
distância entre o que se vive e a Obra de Arte impediria a experiência estética. Como se o cotidiano
nada pudesse oferecer de artístico. Todavia, os objetos expostos nos museus são parte do que nós so-
mos e construímos cotidianamente, desde utensílios domésticos de séculos passados até descobertas
científicas. O museu precisa se aproximar das experiências sensoriais.

Talvez, uma das maiores dificuldades da educação e, especificamente, da educação em museus, seja o
desafio constante de gerar afetações e estranhamentos para, então, gerar experiências estéticas. Uma
mediação que se propõe a causar estranhamentos, a desequilibrar, deve trabalhar com o sensorial.
Sobre isso, Dewey ressalta:

O “sentido” abarca uma vasta gama de conteúdos: o sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato e
o sentimental, junto com o sensual. Inclui quase tudo, desde o choque físico e emocional cru até o
sentido em si – ou seja, o significado das coisas presentes na experiência imediata. Cada termo se
refere a uma fase a aspecto reais da vida de uma criatura orgânica, tal como a vida ocorre através dos
órgãos sensoriais (DEWEY, 2010, p. 88).

505
O deslocamento para o momento presente, o momento da experiência, dá-se de forma física e com-
preende desde o deslocar-se até o museu como o retorno à casa. É com os sentidos que o indivíduo
participa diretamente do mundo. A mediação sensorial se propõe a ampliar olhares, a explorar dife-
rentes formas de percepção. Definitivamente, uma obra que percebemos com os olhos não é a mesma
que percebemos com as mãos. Por sua vez, elementos da obra podem ser trabalhados nos demais
sentidos, considerando a compreensão global do corpo.

O mediador propõe deslocamentos propícios à experiência estética, e o faz a partir do visitante, a par-
tir do seu sentir, do seu corpo. Segundo Dewey, “a experiência é o resultado, o sinal e a recompensa
da interação entre organismo vivo e meio que, quando plenamente realizada, é uma transformação
da intenção em participação e comunicação” (DEWEY, 2010, p. 88). O artista-educador se vale de
desequilíbrios para, a partir do encontro com as soluções desses, gerar novos questionamentos.

As proposições do educador durante uma mediação precisam despertar os sentidos do público de


modo a promover uma aproximação mais íntima com as obras expostas, algo sentido no próprio cor-
po. O educador, ao propor experiências de estranhamento, amplia o campo de afetação do espectador,
colocando seu corpo como lugar da experiência.

O educador então seria o indivíduo cuja poética é o ato de criação na mediação. Ser artista-educador
é, portanto, estar tão ligado à Arte e à Educação, que essas se confundem em suas ações e somam seus
potenciais.

A experiência estética, precisa de fechamentos, de soluções. Nossa proposta é, portanto, que o público
possa refletir a vivência experimentada na visitação até encontrar desfechos para as suas indagações.
O equilíbrio só é possível em movimento e, portanto, mediante a relação com o desequilíbrio.

O desequilíbrio proposto na mediação de Arte pode encontrar seu deslocamento não apenas na or-
dem temporal da visita, mas também na ordem de padrão espacial, onde o corpo do visitante possa
ser o lugar de experiência. A busca por relacionar o corpo e a obra, pela incorporação, é causada pelo
desequilíbrio. É o desvio e, portanto, a busca pelo caminho, pela estabilidade, que nos afeta. Sendo
assim, a mediação também deve propor desequilíbrios. Cabe ao educador “desviar”, propor novos
olhares. O olhar confortável não percebe, assiste. A mediação que desequilibra o visitante é que traz a
busca pela estabilidade. É nessa busca que se dá a experiência estética.

Para Larrosa, o “sujeito da experiência é sobretudo, um espaço onde tem lugar os acontecimentos”
(BONDÍA, 2002, p. 24), esse lugar pode ser o próprio corpo de quem visita a exposição. Propomos,
então, uma mediação em corda-bamba (equilíbrio e desequilíbrio), onde a experiência estética per-
passa o corpo do visitante e é vivida por seus sentidos, é orgânica.

Ao visitar uma exposição, o sujeito se desloca do seu espaço comum (casa, trabalho, escola...) e rompe
com seu cotidiano no museu. Esse rompimento, por si só, já gera um desequilíbrio. Ocorre que, até
para esses rompimentos, criamos determinados padrões: “não pode tocar”, “não pode falar alto”, “o
que o artista quis dizer?”, “por onde começa a exposição?”, são falas comuns dentro do espaço exposi-
tivo e nos remetem a comportamentos esperados.

506
Para Dewey, esses comportamentos “esperados” são desvios em direções opostas à experiência estética;
segundo o autor, “os inimigos do estético não são o prático nem o intelectual, são a monotonia, a desa-
tenção para com as pendências, a submissão às convenções na prática e no procedimento intelectual”
(DEWEY, 2010, p. 117). O mediador tem, então, a difícil tarefa de romper com esses hábitos, a tarefa da
corda-bamba: como desequilibrar esses comportamentos, a fim de gerar experiências estéticas?

Numa visita mediada à exposição Caminhos e Percursos, do artista cearense Hélio Rola, em cartaz no
Sobrado Dr. José Lourenço192, em Fortaleza (CE), no ano de 2012, a mediadora193 propôs a um grupo
de crianças que andasse devagar, o máximo possível, como astronautas na lua – já que era um mo-
mento da exposição que mostrava obras mais ligadas à tecnologia e ao futurismo, assuntos que Hélio
Rola abordava durante o período retratado. Ainda no Sobrado, outra mediação que podemos citar
como exemplo se deu durante a exposição Afetos urbanos, quando a educadora propôs aos especta-
dores que, durante toda a visita, permanecessem descalços.

Em João Pessoa, Paraíba, citamos dois exemplos, o primeiro, a exposição “Afetos Roubados no Tem-
po”, com curadoria de Viga Gordilho e co-curadoria de Robson Xavier194, exposta no mezanino do
Espaço Cultural José Lins do Rêgo, durante o XII Festival Nacional de Arte (FENART), no ano de
2008. Idealizada pela curadora como uma mostra itinerante e processual, com a participação de 730
artistas visuais de quatro continentes, exposta em vários estados brasileiros e no exterior, objetivando
promover a integração multicultural por meio do diálogo entre as obras. A mostra consiste em tra-
balhos de pequenos formatos dispostos em ilhas com estruturas circulares penduradas, por fios, no
teto. O público teve acesso tátil a todas as obras expostas e podia entrar literalmente nos conjuntos das
obras expostas, algumas apresentavam sons, texturas e cheiros diferenciados, essa foi uma das poucas
exposições, no Estado da Paraíba, com interação física total do público (Figura 02).

Figura 2. Interação do público com obras - Afetos Roubados no Tempo em João Pessoa – PB.
Fotos: Mônica Câmara, 2008.

192. Espaço cultural de Fortaleza. Construído na segunda metade do século XIX, o Sobrado é um prédio tomba-
do pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e expõe periodicamente a produção de artistas deste e outros
estados.
193. As experiências aqui narradas são parte da pesquisa de mestrado da autora.
194. Ver artigo: DA COSTA, Robson Xavier, et. al. No tempo dos afetos roubados: experiência de montagem, monitoria e relação público/
obra como educação em artes visuais. Disponível em: http://www.anpap.org.br/ anais/2009/pdf/ceav/robson_xavier.
pdf. Acesso em: 13.05.2016.

507
A segunda experiência, foi a mediação desenvolvida pela equipe do educativo do Laboratório de
Artes Visuais Aplicadas e Integrativas (LAVAIs), do Departamento de Artes Visuais (DAV), da Uni-
versidade Federal da Paraíba (UFPB), durante a “Exposição Todos os Bichos”, e sob curadoria de
Robson Xavier, realizada no Casarão 34, no ano de 2013, quando desenvolvemos atividades sensoriais
com o público a partir das obras expostas. No centro do espaço expositivo foi definido um perímetro
quadrado, demarcado por fitas adesivas no piso195, ladeado por colunas, onde penduramos tecidos
coloridos. Neste espaço, o público foi convidado a vivenciar experiências com os olhos vendados,
ouvindo músicas, pisando em superfícies com diversas texturas, tocando objetos que produziam sons
e tinham texturas e cheiros diferenciados. As atividades sensoriais foram aplicadas pelos mediadores
durante todo o período da exposição.

Nas situações citadas, por mais simples que sejam as proposições, há um deslocamento do sujeito
para uma situação diferente da que seu corpo está habituado. Esse deslocamento traz o visitante para
o momento presente e causa o estranhamento, que pode conduzi-lo à experiência estética.

Todavia, é importante que o artista-educador, ao propor experiências, na sua empolgação, não super-
lote o visitante de informações e sensações, pois o momento de contemplação é de suma importância
para a concretização do desfecho, e também para a experiência estética. O visitante precisa estar
aberto ao novo para que a experiência aconteça, mas deve também ser capaz de relacionar o momen-
to presente com o que já vivenciou. Esse momento de contemplação é solitário e é responsável pela
“decantação” do conhecimento. É quando as informações estabelecem um equilíbrio tal que possam
ser utilizadas a posteriori.

A mediação pode ser, então, propositora de experiências estéticas e, assim, de ações artísticas e cria-
doras. Sobre o que é próprio do artístico e do estético, concordamos com Dewey, quando ele destaca
que “o ‘artístico’ se refere primordialmente ao ato de produção, e ‘estético’, ao de percepção e prazer, a
inexistência de um termo que designe o conjunto dos dois é lamentável” (DEWEY, 2010, p. 125). Isso
porque separar as duas concepções pode nos levar a supor que a arte se resuma ao processo de criação
material e à percepção ao prazer da experiência, como se essa não pudesse ser, em si, um ato criativo e
como se o ato de criação não tivesse uma potencialidade estética. Sobre a relação entre o fazer e a sua
potencialidade artística, Dewey exalta:

O fazer ou o criar é artístico quando o resultado percebido é de tal natureza que suas qualidades,
tal como percebidas, controlam a questão da produção. O ato de produzir, quando norteado pela
intenção de criar algo que seja desfrutado na experiência imediata da percepção, tem qualidades que
faltam à atividade espontânea ou não controlada. O artista, ao trabalhar, incorpora em si a atitude do
espectador (DEWEY, 2010, p. 128).

Desse modo, se o artista incorpora em si a atitude do espectador ao perceber sua obra, o espectador
também incorpora em si uma atitude artística ao artista, de acordo com suas vivências e com as suas
experiências estéticas, de forma a contribuir para o ato criador. O sujeito tanto é modificado pela obra

195. A ideia inicial foi criar uma caixa de areia onde o público entrasse descalço com os olhos vendados, no entanto, devido ao prédio
ser tombado pelo patrimônio histórico, não foi possível utilizar o sobrepeso da areia sobre o piso e optamos por demarcar a área com fita
adesiva preta e amarela e utilizar os objetos sobre uma lona, diminuindo o impacto.

508
como a modifica. Segundo Dewey, “em uma enfática experiência artístico-estética, a relação é tão
estreita que controla ao mesmo tempo o fazer e a percepção” (DEWEY, 2010, p. 130).

O educador, como mediador desse processo, passa também por essas modificações, esses estranha-
mentos capazes de gerar experiências estéticas que vão além do produto convencionado como Arte.
A mediação revela, então, a experiência artístico-estética do artista-educador.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Barbosa (2001), foi o pós-modernismo que fez reviver o interesse acadêmico sobre a obra de
John Dewey. Diversos livros foram publicados em todo o mundo, a partir do final da década de 1990,
reavaliando a contribuição do filósofo Norte Americano para os mais diversos campos do saber, indo
muito além da pedagogia e da arte, influenciando campos como o da filosofia, da ética e do feminis-
mo. Sua importância para a construção dos saberes contemporâneos reflete sua preocupação com o
que chamamos de condição pós-moderna. A recusa de Dewey da concepção da “história como mo-
mento” e sua defesa da condição social, bem como, do pragmatismo associado à teoria dos saberes,
foram concepções revolucionárias. “A ideia sustentada por Dewey, de que julgamentos não podem
existir em separado dos contextos nos quais o questionamento tem lugar, ilumina a pedagogia pós-
-moderna” (BARBOSA, 2001, p. 19).

Ao nos debruçarmos sobre o livro “Art as experience”, um dos últimos livros de Dewey, publicado
quando o autor tinha 75 anos, correspondendo à visão ampliada do autor em relação à concepção de
Arte, diferenciando alguns de seus livros anteriores que defendiam o uso do desenho de observação
e um olhar para a natureza como processos para o desenvolvimento da aprendizagem artística; neste
emblemático livro, a “experiência” pode ser entendida como processo de experimentação criativa,
como modo de expressão da criação humana, consequentemente como recriação da realidade, de-
monstrando uma concepção diferenciada em relação ao conceito de Arte naturalista ou realista para
uma nova abordagem centrada na expressão e experiência. Segundo Barbosa:

O paradoxo é que Art as experience [Arte como experiência, Martins Fontes, 2010] é o livro mais
complexo de Dewey e o menos estudado, provavelmente por ter sido publicado quando o escritor já
velho, afastado da mídia, não tinha um prestígio público tão evidente quanto antes. Talvez isso tenha
sido bom para essa obra em especial (BARBOSA, 2001, p. 24).

Nas mediações citadas nas exposições realizadas em Fortaleza – em 2012: “Caminhos e Percursos” e
“Afetos Urbanos” – e em João Pessoa – “Afetos Roubados no Tempo - 2008” e “Todos os Bichos - 2013”
– a mediação foi tratada como espaço de experiência e experimentação. O público teve acesso a pro-
cessos de interação com as obras pouco comuns nas exposições apresentadas até a atualidade nas duas
cidades, onde predomina, nos equipamentos culturais, a perspectiva do espectador passivo, do público
que apenas olha as obras e raramente as toca, cheira, manipula ou interage de qualquer outra maneira.

Se, para Dewey (2010), é a experiência que torna algo significativo para quem interage, podemos in-
ferir, a partir das experiências citadas, que o público apreende de maneira mais intensa a proposição
das obras e seus conteúdos a partir dos processos de experimentação. Durante a pesquisa de campo

509
para a tese de doutorado do Prof. Robson Xavier, no Inhotim, em Minas Gerais, o público citou como
uma das mais importantes obras visitadas e que gostaria de voltar a visitar, a “Galeria Cosmococas”,
de Hélio Oiticica, que compreende cinco salas com intensas experiências interativas, nas quais é obri-
gatória na entrada retirar os sapatos e é possível mergulhar em uma piscina, pular em colchões de ar
com balões soltos na sala, deitar em colchões, em redes, manipular módulos geométricos de espuma,
etc., enquanto assiste à exibição de vídeos com imagens diversas cobertas por linhas de cocaína, ou-
vindo músicas.

Nas exposições realizadas em Fortaleza e em João Pessoa, citadas neste artigo, embora as obras ex-
postas nem sempre pudessem ser manipuladas, a mediação se voltou para a possibilidade do desen-
volvimento de experiências multissensoriais, táteis, olfativas, sonoras e visuais. A mediação sensorial
possibilita a apreensão não só dos conteúdos e visualidades das obras, mas, principalmente, da inte-
ração visceral com a experiência da arte.

Este trabalho demonstra que é possível fazer mediação multissensorial utilizando materiais e práticas
simples, por meio de vivências experimentais, o que pode ser uma saída para a maior interação do
público com as exposições na maioria dos equipamentos culturais do Nordeste brasileiro, que nem
sempre têm possibilidades de investir em recursos onerosos, como maquetes táteis, placas em relevo
e áudio guias, utilizados nos grandes museus.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o ensino de arte no Brasil. 8. Ed. São Paulo: Cortez, 2001.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação,
2002.
CRUZ, S. V. Mala dos sentidos: mediação inclusiva no Sobrado Dr. José Lourenço. 2013. Monografia (Especiali-
zação em Educação Inclusiva) - Centro de Educação, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013.
DA COSTA, Robson Xavier. Percepção ambiental em museus paisagem de arte contemporânea: a legibilidade dos
museus Inhotim/Brasil e Serralves/Portugal avaliada pelo público/visitante. 2014. Tese (Doutorado) Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.
DEWEY, John. Arte como experiência. Trad. Vera Ribeiro. Coleção Todas as Artes. São Paulo: Martins Fontes,
2010.

510
Saberes e fazeres: trajetória
artística na vida de uma professora
Maria Betânia e Silva

E ntender como e quais experiências artísticas foram vivenciadas por uma professora196 de arte
durante sua trajetória de vida foi o objetivo principal desse texto. A investigação se debruçou sobre
uma professora que atuou na docência197, por 20 anos, no Colégio Dom Bosco, zona norte da cidade
do Recife. Algumas de suas vivências na família, no círculo social e, posteriormente, no profissional
serão aqui apresentadas. Esses dados são primordiais para compreender os saberes-fazeres na atuação
docente que recebem influências do trajeto percorrido e, sobretudo, contribuem para o registro his-
tórico do ensino e o entendimento sobre o processo de escolarização da arte.

No estudo198, verificamos que experiências vivenciadas no seio familiar, escolar e nas relações cons-
truídas com outros sujeitos, possivelmente, influenciaram na escolha e atuação profissional docente.
Para Carvalho (2005), o estabelecimento das relações dos professores com os alunos pode estar dire-
tamente relacionado às experiências familiares, pois parte dos saberes de que lança mão os professo-
res, para estabelecer empatia e uma percepção integral de seus alunos, podem ter sido desenvolvidos
ao longo de suas experiências no interior da própria família.

Nos processos de incorporação-interiorização-internalização das experiências sociais, apresentados


por Lahire, e definidos por ele como ‘disposições sociais’, a criança, o adolescente e o adulto incor-
poram hábitos corporais, cognitivos, avaliadores, apreciativos, isto é, maneiras de fazer, de pensar, de
sentir e de dizer adaptadas, e, às vezes, limitadas, a contextos sociais específicos. Interiorizam modos
de ação, de interação, de reação, de apreciação, de orientação, de percepção, de categorização etc.,
entrando pouco a pouco nas relações sociais de interdependência199. Quem incorpora disposições

196. Para preservar a identidade da professora estudada não utilizaremos seu nome.
197. A professora selecionada para este estudo trabalhou diretamente com o ensino de música e canto orfeônico e educação artística. No
caso pernambucano, o termo educação artística já fazia parte do currículo escolar desde a década de 1960.
198. Ver Silva (2010).
199. Para Norbert Elias (1994) os seres humanos estão ligados, uns aos outros, por formas específicas de dependência recíprocas, o que ele
determina como figuração, ou seja, uma formação social de dimensões variáveis. Essas dependências variam de acordo com a complexi-
dade de cada sociedade, portanto, quanto mais complexas forem as funções e a divisão do trabalho em uma sociedade, por exemplo, mais
fortes serão as relações de interdependência.

511
sociais, hábitos, maneiras de ver, de sentir, de agir, apropria-se dos gestos, dos raciocínios práticos ou
teóricos, das maneiras de dizer e de sentir etc., em função do que já é, isto é, em função do seu estoque
de hábitos incorporados durante suas experiências sociais anteriores (LAHIRE, 2002).

A acumulação do capital cultural200 exige uma incorporação que pressupõe um trabalho de incul-
cação e de assimilação: custa tempo. O trabalho de aquisição é um trabalho sobre si mesmo e não
é transmitido instantaneamente. Para Bourdieu (2007), o trabalho mais oculto e determinante dos
investimentos educativos é a transmissão doméstica.

Diversos foram os significativos registros e lembranças, apontados pela professora, que ficaram mar-
cados em sua memória. Momentos de contato e vivência com experiências artísticas em sua família,
que apontam sentimentos de intenso bem-estar, prazer e alegria, e que foram relembrados com sinais
de saudosismo e satisfação. Sejam experiências com a música, com a dança, seja com o teatro, com
atividades manuais. Assim, ela nos contou:

Ah, sim! Mamãe e papai sempre (ênfase acentuada) gostavam muito de música, de dançar, de ir pra
festas, pros bailes, de levar a gente pra dançar, mas, não era como obrigação de você estudar. Como
eu gostava muito de música, eu ainda aprendi, fui pra uma escola de piano, ainda estudei uns três
anos (professora do Colégio Dom Bosco).

Relembrando com detalhes, expressões de orgulho e satisfação, suas experiências com música na
escola em que estudou, ela relatou:

[...] quando eu cheguei no colégio Santa Maria, eu fui pra lá no 1° ano ginasial, e lá eles tinham um
coral muito bonito (ênfase) e elas ensinavam música, ensinavam instrumento, ensinavam violino,
violão, flauta, piano. (...) aí, eu cantava no coral [...]. Então, ela (a professora de música) fez uma
prova, naquela época tinha música, era do currículo, e eu fui muito bem na prova (...). Ela mandava a
gente copiar música, mas, eu copiava música com tanta facilidade e tão perfeito que ela mandava que
eu fizesse (...) naquela época não tinha xerox, como hoje a gente tem, então, ela mandava eu copiar
as músicas e mandava pra Alemanha as minhas cópias. Ela fez um grupo de música, um conjunto
musical (...) tinha um coral, tinha as meninas que tocavam acordeom, as meninas que tocavam pia-
no, as meninas que tocavam violino e as meninas que tocavam violão. Aí, ela começou um conjunto
de flauta (...). Aí, ela disse, no 3° ano ginasial, ela me chamou e perguntou se eu não queria entrar
no conjunto de flauta (...). Aí, ela disse você quer entrar nesse conjunto? Quero. Mas, as meninas
pagavam uma taxa pra estudar flauta e eu como era muito danada e copiava muita música pra ela, ela
disse que essa taxa eu não pagava, mas, ela disse que eu tinha que comprar a flauta. Mandou buscar a
flauta na Alemanha, ela me vendeu a flauta e eu fiquei pagando a ela e, então, eu fiz flauta (professora
do Colégio Dom Bosco).

As experiências artísticas vivenciadas no seio familiar e escolar e relembradas em seu depoimento


foram apresentadas como momentos prazerosos, ‘sem a obrigação’ de estudar, e como momentos
de participação e apreciação das mesmas. Observe-se ainda que a professora fazia parte de uma fa-

200. Sobre o capital cultural, Bourdieu diz que ele pode existir sob três formas. No estado incorporado se apresenta sob a forma de disposi-
ções duráveis no organismo. No estado objetivado, sob a forma de bens culturais. No estado institucionalizado, sob a forma do certificado
escolar.

512
mília pertencente a um poder aquisitivo médio, pelas práticas socioculturais que tinha acesso e pela
possibilidade de estudar um instrumento clássico, o piano, nos anos 40 do século XX. Além disso, o
Colégio Santa Maria, em que a professora estudou, era um colégio privado, de freiras alemãs, locali-
zado no interior do estado de Pernambuco, na cidade de Timbaúba, onde a clientela, em sua grande
maioria, era proveniente das camadas sociais médias e altas. Outro dado a ser destacado é a ênfase
dada ao ensino da música e do canto centrado no clássico, a prática constante da cópia de partituras
e do repertório que era estudado.

Ah! Era! No Santa Maria? Era freira, freira alemã minha filha! Era clássico (ênfase acentuada) no
duro! Não tinha música popular não ou folclore (...). Santa Maria não se ouvia música popular não,
nem de longe (ênfase acentuada)! Na aula de música era clássico (ênfase) o tempo todo! Eu adorava,
sempre gostei (professora do Colégio Dom Bosco).

De acordo com os depoimentos, a educação do gosto, a educação dos sentidos, a formação do próprio
entendimento do que era considerado arte, através das práticas vividas, indicam que o saber docente
foi se constituindo e se construindo durante o percurso da vida, desde sua infância e adolescência. As
redes de relações estabelecidas, ao longo do tempo, indicam a abertura de caminhos que, provavel-
mente, também contribuíram para suas atuações profissionais relacionadas à arte.

Assim, a convivência com pessoas que viabilizaram experiências, realização de cursos, contatos com
materiais diversificados e o acesso na vida adulta a espetáculos de teatro, música, exposições, cinema,
apontam a importância e contribuições dessa teia de relações na própria formação docente. Além dis-
so, as experiências vivenciadas contribuíram também para a incorporação de hábitos e de disposições
sociais no processo de formação de seu modo de compreensão, de sua maneira de fazer, de pensar,
de interagir, de reagir e de apreciar as diferentes experiências artísticas. Em seu depoimento, ela apre-
sentou o estabelecimento da rede de relações como momento importante de sua juventude e de sua
própria formação profissional. É possível, ainda, perceber que o capital cultural e social docente se
refletiu com as experiências vividas e através das relações construídas que trouxeram características e
influências específicas para o ensino da arte veiculado por ela na escola estudada.

A escolha de uma profissão e uma carreira profissional pode trazer consigo uma série de influências
adquiridas no decorrer das experiências de vida de cada indivíduo. Por vezes, com o passar do tempo
e a leitura do passado que cada um faz de sua própria história, essas experiências podem ser revividas
de diferentes modos. Nos depoimentos coletados, foram destacados alguns espaços de formação que
apareceram com bastante evidência em seu percurso de formação e de experiência profissional. Um
desses lugares, desde os anos 40 do século XX, exerceu um papel significativo, no caso pernambuca-
no, de formação, articulação, organização dos profissionais que trabalhavam com arte ou disciplinas
relacionadas ao ensino de arte na escola.

A professora cursou a Escola Normal. Foi aluna interna do Colégio Rural Normal Santa Maria, em
Timbaúba. Ao longo de sua atuação profissional, buscou espaços de orientação e formação, além da
realização de cursos, participação em congressos e trocas de experiências com outros profissionais
que contribuíssem na sua formação profissional. “Eu fui da primeira turma de pedagógico do se-
gundo ciclo, em Timbaúba, e lá a gente tinha muita música (ênfase) e eu estudava flauta e música em

513
geral” (professora do Colégio Dom Bosco). Trabalhou na Divisão de Extensão Cultural e Artística
(DECA)201 antes de ir atuar como professora no Colégio Dom Bosco. Observamos que a DECA foi
um espaço formador na trajetória profissional dessa professora e isso foi posto em evidência durante
seu depoimento.

[...] no DECA eu fiz um curso e nesse curso de música a minha diretora da seção de música me
botou como professora interina de música. [...] tinha muita coisa lá dentro do DECA e eu era do
departamento de música porque eu fui trabalhar lá por causa de dona Lurdinha. [...] Eu era de lá e os
professores de lá eram muito bons! (ênfase acentuada). [...] Eu trabalhava como professora primária
no interior. [...] eu fui muitas vezes no Departamento de Cultura, eu fiz muito cursinho lá [...] de
recreação [...] e via o que é que tava acontecendo [...] o Departamento de Cultura preparava muito
essas festinhas de São João, preparava todas as festas, as festinhas do ano [...] o Departamento de
Cultura sempre preparou. [...] Então, sempre tinha um cursozinho no mês de outubro, novembro [...]
era assim. O Departamento de Cultura foi, realmente (ênfase), o preparador (ênfase) de professores!
Então, eu tinha um material muito rico, eu sempre tive muito material (professora do Colégio Dom
Bosco).

A mesma professora enfatizou o esforço realizado, em seu cotidiano, para poder ampliar sua forma-
ção, e destacou a realização do curso de música, feito na DECA, que a habilitou e a preparou para a
docência de música na escola.

(...) Aí, eu ensinava em Paulista202, você veja que loucura, de sete às dez e meia numa classe de alfa-
betização. De dez e meia, eu nem saía da escola, a uma e meia eu tinha o jardim da infância. À uma
e meia eu subia correndo porque a minha aula era ali, na Fernandes Vieira, e eu vinha de Paulista,
saía de uma e meia porque a aula começava de duas horas. (...) quando dava um pouquinho antes
de uma e meia, eu já arrumava minha bolsa, já deixava tudo pronto, minha colega tomava conta dos
meus alunos que era pra saída (...) e eu saía correndo pra frente da escola porque a lotação passava
na frente da escola. Eu atravessava voando (ênfase), tomava a primeira lotação20311 que passava, os
motoristas das lotações já conheciam a gente. (...) sabe aonde eu saltava? No treze de maio. Ali no
Palácio, na universidade de direito, eu descia ali e vinha por ali, (...) eu vinha voando, você sabe uma
pessoa voar? Assim, voando ti, ti, ti (...) pra chegar às duas horas que eu tinha aula de duas horas de
música diariamente e eu vinha diariamente. Aí, eu fiz o curso todinho, era solfejo, música, teoria,
tudinho, eu tinha. Eu fiz um curso mesmo de música pra ensinar música no ensino primário, era pra
ensinar música no ensino primário, música e canto orfeônico. Porque quando você faz música, você
faz o instrumento e o que eu sabia era flauta. Aí, ela me botou, dona Lurdinha me matriculou, (...)
disse você quer ir? Eu disse quero. Eu vinha de Paulista e ia todo dia, todo dia. O curso era de duas as
cinco, três horas por dia. E eu estudava todo dia, todo dia. Todo dia a gente (...) você sabe a prática é
tudo na vida, né? Eu ensinava no curso primário música porque eu tinha a preparação lá no Depar-
tamento de Cultura (...) eu fiz o curso lá (professora do Colégio Dom Bosco).

201. O espaço nasceu como uma Divisão de Extensão Cultural e Artística. Com o decorrer do tempo ele passou
a ser chamado de Departamento de Extensão Cultural e Artística ou Departamento de Cultura, por isso o uso
do masculino.
202. Paulista é um município que fica a aproximadamente 20 km de Recife.
203. No meio de transporte, citado pela professora, é provável que a locomoção chegasse a 40 ou 50 minutos até o centro da cidade, no
período abordado. Após esse percurso, seu tempo de caminhada até o local da aula de música devia durar em torno de 15 ou 20 minutos.

514
Ao enfatizar a importância da prática em seu percurso de formação, a professora destaca o que Tardif
(2005) chama de o ‘saber-fazer’ do professor, que tem uma origem social patente. O autor diz que os
saberes oriundos da experiência de trabalho cotidiana parecem se constituir no alicerce da prática e
da competência profissionais, pois essa experiência é para o professor a condição para a aquisição e
produção de seus próprios saberes profissionais. Para Tardif, o saber do professor provém não só da
família do professor, mas também da escola que o formou, de sua cultura pessoal, provém dos pares,
dos cursos etc.

Essa ênfase na formação pela prática tem sido constatada internacionalmente não só pelos professores
primários, mas também pelos de outros níveis da educação básica. Além disso, a troca de experiências
com outros colegas, seja nos corredores, seja na própria organização de atividades a serem desenvol-
vidas na escola, também é destacada como fonte de aprendizado (CARVALHO, 2005).

A formação superior da professora do Colégio Dom Bosco era em Pedagogia. Na coleta dos depoi-
mentos, buscamos identificar, também, se a atuação no ensino de arte na escola foi uma escolha dela,
justamente, para entender por que e como ela se tornou professora de arte. Nesse caso, as expectativas
profissionais eram outras, pois ela não pensava em ensinar arte ou disciplinas relacionadas à arte.
Assim, disse-nos:

[...] Agora, quando eu cheguei aqui em Recife que eu fui fazer o vestibular, eu queria fazer Letras
porque eu queria ensinar inglês porque eu gostava muito de inglês. Mas, o curso de inglês, o curso de
Letras não tinha à noite, só tinha Pedagogia à noite, só tinha Pedagogia. Aí, como eu gostava de ma-
temática, eu disse, eu vou fazer Pedagogia [...] não tinha curso de matemática aqui na universidade.
Então, quem fazia Pedagogia podia ensinar matemática no ensino secundário. Aí, eu disse vou fazer
Pedagogia, aí eu fui (professora do Colégio Dom Bosco).

Observe-se que para ela não havia expectativa inicial de ensinar arte. Porém, no início de seus percur-
sos de formação profissional, as oportunidades de trabalho e o contato com pessoas que contribuíram
para o encaminhamento desse trajeto possibilitaram o direcionamento e, posteriormente, a escolha
dela para lecionar arte ou disciplinas relacionadas à arte na escola.

Há de se observar que, àquela época, o diploma do curso normal garantia também o direito da docên-
cia nas disciplinas de canto, educação física e artes, como afirmou Peixoto (2005).

Nesse estudo, também pudemos perceber que a formação da professora se deu em espaços de formação
que possibilitaram auxílio, apoio, aprendizagem e troca contínua de experiências para enriquecer o tra-
balho pedagógico e enfrentar os desafios da prática e do cotidiano escolar. A professora ainda pontuou
atuações profissionais que a mesma teve, como momentos importantes em seus processos de formação.
Vários exemplos, em seu depoimento, foram citados sobre as diversas experiências adquiridas.

Eu trabalhava como professora primária no interior. Trabalhei em Vicência, trabalhei em Paulista. [...)]
Eu trabalhei no Colégio Santa Maria, aquele de Boa Viagem, quando eu comecei a minha vida profis-
sional foi lá no Santa Maria eu ensinava no jardim da infância. Fui pro interior, fui pra Vicência [...]
também não trabalhei com música, eu trabalhei com recreação, ensinei jardim da infância, depois uma
1ª série, depois exame de admissão preparando, né? Eu vivia na casa paroquial e não tinha o que fazer.

515
Então, ensinava o dia inteiro e no domingo eu fazia, trabalhava com as moças pobres dos arredores,
[...] na parte social, né? Então, eu comecei a trabalhar com elas sábado e domingo trabalhava com essas
moças recreação, canto, trabalhava nos jogos, trabalhava com elas educação física [...] eu nunca fui de
educação física, mas, trabalhava com elas exercícios, trabalhava porque no interior você faz tudo, não
é? Então, eu era de tudo, trabalhei de tudo. [...] trabalhei em várias escolas do Estado e eu já trabalhava
no Departamento de Cultura do Estado. [...] fui trabalhar (no Dom Bosco) depois da inauguração que
foi em 1967. [...] Aí, comecei só com música lá [...] (professora do Colégio Dom Bosco).

Além disso, ela indicou a problemática da ausência de profissionais na escola com as mudanças de
currículo e como a escola tentava solucionar esses problemas.

[...] eu só ensinava música e depois com essa confusão de mudar currículo, tirar currículo, bota cur-
rículo, essas mudanças no currículo, então, eu fiquei com uma deficiência na minha carga horária.
[...] fiquei ensinando, como eu era professora de Pedagogia e eu tinha direito de ensinar outra maté-
ria, [...] fiquei ensinando história porque tava faltando professora de história. Faltou uma professora
de inglês, eu tinha um curso de inglês, aí, eu fiquei com umas aulinhas de Inglês. Depois, eu saí deixei
tudo e fiquei no Laboratório de Apoio Didático, o LAD [...] era um laboratório onde eu fazia toda a
parte com alunos e com os professores, dando apoio didático. Eu passava filmes, slides, fazia dese-
nho, álbum seriado, toda a parte didática eu trabalhava lá no Dom Bosco, fiquei trabalhando. Eu já
trabalhava na FACHO, na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, depois eu entrei na Católica
(professora do Colégio Dom Bosco).

Por um lado, as diferentes atuações profissionais contribuíram para a formação da professora e o seu
saber-fazer. Por outro, a dinamicidade da vida escolar, as mudanças no currículo, com o acréscimo de
disciplinas e outras funções, representavam desafios a enfrentar, conflitos a superar e novos processos
de aprendizagem a vivenciar. De toda forma, os transtornos e inconvenientes obrigavam a professora
a se adequar à nova sistemática de trabalho para viabilizar o funcionamento das atividades escolares
cotidianas. De acordo com Tardif (2005), a própria experiência de trabalho engloba a reflexividade,
retomada, reprodução, reiteração daquilo que se sabe naquilo que se sabe fazer, a fim de produzir sua
própria prática profissional.

Ao tratarmos da participação em eventos, congressos ou cursos de formação continuada, a professora


apontou para a dificuldade de acesso e participação aos que existiam, mas em grande parte os que
ela teve acesso foram os cursos oferecidos pela DECA, uma vez que ela trabalhou lá antes de ir para
a escola estudada. Assim, perguntamos se o Estado possibilitava a participação nos congressos que
existiam na época, e ela respondeu:

Não. A gente ia porque queria. Eles botavam os professores, como a universidade faz. A universidade
quase não tem todo ano, eles não fazem? Junta todos os professores. Mas, foi muito pouco [...] aqui
em Recife que eu tenha assistido foram poucos. Agora, tá havendo muito que eu sempre recebo o fol-
der de congresso, sempre tô recebendo, vez ou outra eu recebo, mas sempre pra universitário, sempre
pra professor universitário, que sempre teve, né, pra professor universitário sempre tem (professora
do Colégio Dom Bosco).

A professora tinha a formação no curso pedagógico, mas por que, então, ela passou a ensinar discipli-
na relacionada ao ensino de arte? Uma das respostas a essa questão está no fato da garantia do direito

516
dado, àquela época, da docência de disciplinas como canto, educação física e artes aos que tinham
o diploma do curso normal. Outro dado se refere à autonomia dada à direção da escola na escolha
de seu quadro docente, que possibilitou a escolha dessa professora que trabalhava anteriormente na
DECA, um dos espaços de formação apontados. Conforme o depoimento, seus trabalhos na DECA
consistiam em ir nas diversas escolas do Estado para preparar e organizar as festas escolares no de-
correr do ano letivo. Dessa forma, após ter organizado e realizado uma festa escolar no Colégio Dom
Bosco, nos anos iniciais de sua fundação, ela foi convidada pela diretora a fazer parte do quadro de
professores do Colégio, assumindo as disciplinas de música e canto orfeônico e educação artística.

Os cursos superiores de Licenciatura em Educação Artística nasceram nos primeiros anos da déca-
da de 1970 no Brasil204, conforme os dados apresentados pelo IBGE. No ano de 1979, ocorreu um
crescimento significativo desses cursos, pois no intervalo de seis anos, 30 novos cursos nasceram nas
universidades brasileiras e 49 cursos em estabelecimentos isolados, ou seja, 79 cursos a mais. Assim,
de 161 cursos, em 1973, o número passou para 240 cursos, em 1979, isto é, um crescimento de 33%
em seis anos. O Brasil, naquele período, possuía um total de 4.398 cursos nas diversas áreas de co-
nhecimento nas universidades e nos estabelecimentos isolados. 240 deles eram de arte, ou seja, uma
representação de 5,45% do total. No entanto, mesmo com 79 cursos a mais, no ano de 1979, ainda
era visível a desigualdade na distribuição dos mesmos nas regiões brasileiras. O Norte possuía apenas
um curso, o Nordeste com 28, o Sudeste com 154, o Centro-oeste com 8 e o Sul com 49, reforçando
a desigualdade entres as regiões brasileiras e o acesso ao ensino superior no campo, também, da arte.

Um dos motivos também para o crescimento do nascimento desses cursos foi provocado pela Refor-
ma Educacional de 1971, que tornou obrigatório, em todo o território nacional, o ensino da educação
artística nos currículos escolares. Além disso, aquela reforma trouxe consigo a ampliação do número
de matrículas na escola pública, mas os recursos materiais e humanos continuavam escassos. Logo, a
superlotação dos prédios escolares e a ‘otimização’ do trabalho docente foram afetados diretamente. O
período também acentuou a concentração de renda no país e a inflação, obrigando muitos professores
a dobrarem ou triplicarem sua jornada de trabalho por conta do achatamento salarial e a proletariza-
ção da profissão docente. A professora entrevistada comentou:

[...] a gente tinha um horário diferente era de sete e meia às onze e meia; de uma e meia às cinco. Depois
mudou teve aquele horário intermediário, não sabe? Que era de sete às dez e meia; de dez e meia a uma
e meia. Aquele horário intermediário, aquilo desmantelou tudo no colégio porque a gente ficava num
horário atrás do outro. Então, você não tinha [...] muito tempo livre [...]. Porque você tinha de sete às
dez e meia; de dez e meia a uma e meia; de uma e meia as cinco, aí, já chegava o turno da noite. Era terrí-
vel! (ênfase). Era terrível [...]! Mas, a gente passou por poucas e boas com esses horários intermediários.
Era o horário da fome, né? O horário da fome (professora do Colégio Dom Bosco).

O depoimento evidencia a saturação da professora, as condições de trabalho que deveria enfrentar e


conviver cotidianamente. Além do mais, a mudança de horários, que desestruturou a organização da
escola e sua rotina, necessitava de outra organização. O fato é que a sobrecarga de trabalho docente se

204. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Nasceu em 1934, mas o nome atual data de 1938. Tem como principais funções a
produção, análise, coordenação e consolidação de informações estatísticas e geográficas, a estruturação e implantação de um sistema de
informações ambientais e a coordenação dos sistemas estatísticos e cartográficos nacionais. Ver www.ibge.gov.br

517
acentuou, como enfatizou a professora no depoimento dado. Nessas condições, pode-se afirmar que
houve um aumento quantitativo de acesso à escola pública, mas em quais condições qualitativas isso
se deu são aspectos a serem investigados e aprofundados por outros estudos.

Para Tardif (2005) as fases de transformação, de continuidade, de ruptura, as inúmeras mudanças que
marcam a trajetória profissional fazem parte também da construção do saber docente, que ele chama
de temporal. Logo, mesmo com todas as dificuldades que os professores tiveram que enfrentar e se
adaptar com o novo currículo e a nova organização do cotidiano escolar, essas foram experiências que
contribuíram também para a estruturação e construção do saber docente.

O tempo de trabalho que a professora permaneceu na escola estudada se concentrou em 20 anos,


trabalhando, assim, em dois ou três turnos. É significativo observar a quantidade de turmas que ela
lecionava, pois, semanalmente, possuía entre 15 e 23 turmas, cada uma com 35 ou 45 alunos. Quando
nos referimos aos materiais de pesquisa para apoio pedagógico utilizado, ela nos relata:

[...] eu já tinha feito curso no Rio e quando eu cheguei trouxe um manancial de livros [...] muito bom
e eu comecei a colocar em ordem aquilo que eu aprendi [...]. Então, a gente aproveitava os modelos
que saíam nas revistas, nos livros e, então, a gente aproveitava e cada um criava uma coisa. Os ba-
lõezinhos cada menino criava uma coisa. Os meninos criavam, são criativos e a gente aproveitava o
que eles tinham de criativo e aproveitava na ornamentação. [...] danças, não, dança a gente sempre
fazia lá pelo Departamento. [...] Nós éramos obrigadas a ensinar os hinos. O Hino Nacional, o Hino
da Bandeira, o Hino de Pernambuco, o Hino da República. Eu levava muito cantigas de roda, música
popular, no mês de maio era música religiosa e em dezembro as músicas natalinas (professora do
Colégio Dom Bosco).

Enfim, a professora entrevistada registrou que seu material de apoio pedagógico foi sendo construído
ao longo da vida e da carreira profissional. Este foi adquirido nos espaços de formação frequentados,
em jornais, revistas, livros, nos espetáculos e concertos assistidos, nas viagens realizadas etc.

O que apresentamos indica que a professora entrevistada, que atuou diretamente com arte ou disciplinas
relacionadas ao ensino da arte na escola, vivenciou, em sua infância, experiências artísticas na família
e na escola que contribuíram em sua atuação profissional. Além disso, as relações construídas e estabe-
lecidas em seu percurso individual proporcionaram a abertura de caminhos e indicações para o desen-
volvimento de uma atividade profissional relacionada ao campo da arte e, especificamente, na escola.
Podemos afirmar ainda que as diferentes atuações profissionais ampliaram o leque de conhecimento e
de experiências que contribuíram em seu saber-fazer pedagógico. As primeiras experiências artísticas
vividas no interior da família, a convivência com outras pessoas que participavam de formações no cam-
po da música e usufruíam dos eventos culturais na cidade, o estímulo recebido na escola, a frequência
a concertos musicais e cinema foram alguns dos elementos que contribuíram para a formação artística
pessoal. Além disso, a participação em cursos, palestras, promovidos por espaços de formação voltados
ao professor, e as experiências da prática cotidiana em sala de aula e na escola foram apresentados como
colaboradores na estruturação e na própria organização do trabalho pedagógico com arte.

Os dados da nossa pesquisa revelam, no entanto, que os conteúdos escolares nem sempre têm ori-
gem no saber científico que, segundo Bittencourt (2003), deve ser constantemente incorporado pelos

518
agentes educacionais, pois é o saber científico que legitima as disciplinas escolares. Esta afirmação não
pode ser direcionada ao ensino de arte, particularmente, no período estudado, porque os primeiros
cursos de pós-graduação no campo da Arte, no caso brasileiro, começaram a surgir no final da década
de 1980. Além disso, a arte é uma disciplina diferente das outras, porque não trata só do pensamento
lógico, mas rompe com ele. Utiliza o pensamento abstrato, trabalha com os aspectos cognitivos, as
emoções, os sentidos e sensações. Não envolve só a mente, mas também todo o corpo. Ela não se
restringe apenas à medição, à verificação, à comprovação, à repetição, que são aspectos próprios do
saber logos, mas extrapola essas características. Particularmente, por esses e outros motivos, a arte foi,
quase sempre, considerada como uma disciplina menos prestigiada no currículo, por não ser possível
enquadrá-la, unicamente, no saber científico. Além disso, por ela abordar diversos outros aspectos
que fazem parte da constituição do ser humano, a escola, desde, pelo menos a época moderna, optou
por enfatizar e estabelecer diferentes ‘status’ entre os saberes que compunham o currículo escolar,
escanteando aqueles que ‘fugiam’ aos padrões denominados de ‘ciência’.

A pesquisa também revela que a escola é um espaço de socialização de elementos dos saberes acumu-
lados na humanidade e aprendidos nas trajetórias dos indivíduos que estão em constante dinâmica.
Mas, não é só isso. A escola é um lugar social, que tem espaços e tempos específicos, formas de orga-
nização, programas, atividades e materiais que lhes são próprios. Ela é também produtora de saberes
que lhes são próprios e somente nela é possível conhecê-los, aprendê-los, vivenciá-los.

Podemos dizer, para o caso da arte aqui estudado, que é preciso, também, registrar que outro campo
de produção de arte foi identificado, outra arte, que é especificamente escolar, que não pode ser gene-
ralizada e nem uniformizada.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Disciplinas escolares: história e pesquisa. In: OLIVEIRA, Marcus Au-
rélio Taborda de; RANZI, Serlei Maria Fischer (Orgs.). História das disciplinas escolares no Brasil: contribuições
para o debate. Bragança Paulista: EDUSF, 2003, p.9-38.
BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (Orgs.).
Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 2007.
CARVALHO, Marília Pinto de. Gênero na análise sociológica do trabalho docente: um palco de imagens. In:
PEIXOTO, Ana Maria Casasanta; PASSOS, Mauro (Orgs.). A escola e seus atores: educação e profissão docente.
Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p.89-114.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
LAHIRE, Bernard. Homem Plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.
PEIXOTO, Ana Maria Casasanta. Magistério: idas-e-vindas de uma profissão – Minas Gerais (1889-1970). In:
PEIXOTO, Ana Maria Casasanta; PASSOS, Mauro (Orgs.). A escola e seus atores: educação e profissão docente.
Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p.13-28.
SILVA, M. B. e. Escolarizações da arte: dos anos 60 aos 80 do século XX (Recife, Pernambuco). 2010. 256 f. Tese
(Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social, Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Trad. Francisco Pereira. Petrópolis/RJ: Vozes, 2005.

519
A Importância da formação
dos educadores da Galeria
Janete Costa para a exposição
“Arcaico Contemporâneo - 50 Anos
De Pintura” e seus desdobramentos
Luana da Silva Rito

INTRODUÇÃO

Para que uma exposição das mais diversas linguagens artísticas aconteça, é necessário um período
de pré-produção. Também é necessário outro período onde a produção é efetivamente realizada
– vinda desde a curadoria à montagem do projeto expográfico – e em algum ponto culmina no
planejamento das ações educativas. Por vezes, o educativo, embora visto como o cartão de visita da
instituição, é deixado à margem ou por último nessas fases de produção. Porém, são os mediadores
que vão passar a maior parte do tempo na exposição, durante o período que ela estiver aberta ao
público.

O planejamento das ações educativas deve perpassar do período da concepção ao período de mon-
tagem da exposição. Estas ações se fundam e se estruturam com a participação efetiva da equipe de
mediadores neste processo. Quanto a isso, Ana Mae (2008, p. 98) corrobora que: “Hoje, a aspiração
dos arte/educadores é influir positivamente no desenvolvimento cultural dos estudantes por meio do
conhecimento de arte que inclui a potencialização da recepção crítica e a produção”.

Por outro lado, o processo de formação dos educadores para as exposições parece ser interrompido
com o final das mesmas, trazendo-nos à tona refletir sobre o que fica para o educador após a des-
montagem e readequação do espaço expositivo. Será que tal formação acaba ali? E foi numa discus-
são, levantada a partir dessas inquietações, que parte do Educativo da Galeria Janete Costa passou a
conjecturar possibilidades de produções acadêmicas acerca das experiências vivenciadas dentro da
instituição no período entre exposições.

Porém, nem sempre houve a preocupação de se planejar ações para recepcionar o público nos espaços
expositivos. Sabendo que, atualmente, em algumas instituições culturais nem mesmo há um setor

520
educativo, foi fundamental o apoio da gestão do espaço quanto à iniciativa dos educadores em suas
ações. Segundo Barbosa (2008, p. 103), “[...] No Brasil antes do lema de “prioridade social”, muitos
museus recusavam-se a sistematizar um setor educativo”. Ainda para Barbosa (2008, p. 104), “os cura-
dores, até então deuses dos museus, começaram a cortejar os setores educativos para fazer projetos
conjuntos e, assim, aproveitar as gordas verbas para educação”.

Diante de um convite para mediar uma mostra de arte e tecnologia, a equipe de educadores se viu
com apenas três dias para conhecer as produções artísticas e se preparar para recepcionar os visitan-
tes. Hoje, vejo que esse formato de mediação não é efetivo. Neste momento, estávamos apenas re-
produzindo um discurso curatorial, “um discurso diretivo, informativo e reprodutor (COUTINHO,
2007, p. 56)”, além de claramente não se tratar de uma ação educativa, e sim, de uma reprodução me-
cânica e submissa, onde muitas vezes o educador sequer compreende o que está sendo reproduzido,
uma vez que não houve tempo suficiente para aprofundar as pesquisas necessárias para a elaboração
de uma mediação com êxito.

O termo mediação cultural ainda é pouco compreendido mesmo pelos atuantes da área. Conforme
Coutinho (2007, p. 56),

A orientação da mediação cultural é fundada sobre a vontade de restituir ao público e de com-


partilhar com eles um patrimônio cultural comum, ou seja, artístico, arquitetônico, histórico etc.
Fundada também no desejo de acesso à cultura por todos. Nesse sentido, a visita tem um fim
essencialmente educativo, para aprender a ler e apreciar as obras, a compreender a história ou a
conhecer seu próprio patrimônio. Ela também pode ser orientada para experiência estética, vi-
sando aí a um enriquecimento cultural, pessoal, que ajuda a constituir um indivíduo cultivado.
(COUTINHO, 2007, p. 56).

A partir disso, iniciei as pesquisas sobre mediação cultural, em paralelo à reunião de material dispo-
nível da exposição “Arcaico Contemporâneo – 50 anos de pintura”, do artista Urian Agria de Souza, o
qual contribuiu de modo significativo para a pesquisa.

Através do acesso ao material didático existente na Galeria Janete Costa, pudemos reunir bibliogra-
fia para iniciar esta pesquisa. Após a leitura de alguns textos sobre mediação, relatos de experiência,
começamos então a esboçar aquilo que, de fato, culminaria no trabalho de conclusão de curso. A sala
de leitura da galeria se encontra em processo de formação, entretanto, já possui um pequeno acervo,
onde é possível ampliar os estudos sobre mediação cultural e exposições e é disponível para o uso dos
educadores da instituição.

Para realizar esta pesquisa, utilizamos levantamento de dados e bibliografia, como por exemplo, os
catálogos da exposição em questão. Durante o desenvolvimento deste trabalho, tivemos acesso aos
questionários respondidos pelo público visitante, que foram aplicados durante a exposição “Arcaico
Contemporâneo – 50 anos de pintura”; o livro de registros; entrevista com o coordenador do Educati-
vo da Galeria Janete Costa e diversas fotos foram disponibilizadas – tanto pelos próprios educadores
como pela gestão da galeria – para compor o trabalho.

521
1. ARCAICO CONTEMPORÂNEO

Após um hiato de 18 anos sem expor na cidade do Recife e juntamente com o intuito de comemorar
seus 50 anos de trabalho, o artista Urian Agria de Souza apresenta a sua exposição individual “Arcaico
Contemporâneo – 50 anos de pintura”, na Galeria Janete Costa, situada no Parque Dona Lindu, bairro
de Boa Viagem. A mostra esteve aberta ao público do dia 12 de março de 2014 a 27 de abril do mesmo
ano, ocupando o térreo da galeria, uma área de 962,10 m².

A mostra, de curadoria de Piedade Grinberg, foi composta por desenhos, telas e peças de pintura acrí-
lica, além de contar com a exibição de um documentário sobre a vida e obra de Urian – que também
contribuiu na escolha das obras expostas. Durante o tempo de exposição, a “Arcaico Contemporâneo”
recebeu em torno de três mil visitantes espontâneos, dos mais diversos estados brasileiros e 10 visitas
agendadas por escolas, organizações não governamentais e universidades. Nos finais de semana, eram
oferecidas oficinas de desenho e figuração, ministradas pelo Educativo da Galeria e até mesmo pelo
próprio artista, que esteve presente em todas as quartas-feiras, sábados e domingos.

2. O EDUCATIVO GALERIANO205

O setor educativo da Galeria Janete Costa é formado por uma equipe de oito estagiários, contratados
pela Prefeitura da Cidade do Recife que, junto ao Coordenador Carlito Person (atualmente, 2016, não
está mais à frente do setor), realizam desde o atendimento ao público, através de mediações culturais,
a aplicações de oficinas e produção de material educativo.

A Galeria Janete Costa recebe estudantes universitários a partir do terceiro período da graduação e
permanece com os mesmos até dois anos, tempo máximo permitido, conforme a Lei de Estágio nº
11.788/2008. A premissa básica das contratações dos educadores parte da pretensão de formar um
educativo plural, um time de estagiários graduandos de áreas diversas, vinculados a cursos de ensino
superior e de diferentes instituições, que possuam interesse nas mais diversas linguagens dentro da
Arte Contemporânea – temática que norteia a galeria – e em mediação cultural. Quanto mais diversi-
ficado o Educativo, mais versátil ele se torna e desenvolve a capacidade de produzir diferentes olhares
partindo de um mesmo viés.

3. FORMAÇÕES PARA OS EDUCADORES

É importante ressaltar a importância que as instituições culturais contribuírem para a formação aca-
dêmica e profissional dos seus funcionários. Reuniões que promovam não só a discussão do ambiente
de trabalho, mas que formem e fortaleçam o intelecto daqueles que diariamente estão a contribuir
para o seu funcionamento, como sugere Coutinho (2009, p. 10).

Neste ponto, vamos atentar à capacitação dos educadores: a Galeria Janete Costa costuma promover
encontros de formação para seus estagiários não apenas dentro da instituição, mas também em par-
ceria com outros educativos e até mesmo chega a abrir tais atividades para o público em geral.

205. Por se tratar de uma galeria, os educadores do espaço resolveram se apropriar do termo “galeriano” a fim de identificar a equipe.

522
Segundo Cayo Honorato (2013, p. 02), não é interessante discutir apenas sobre as obras, artista e ex-
posição; e sim, incentivar capacitações que visem desenvolver, também, outras competências, outros
saberes nos educadores. E sendo o Educativo Galeriano um educativo – grupo ou equipe – formado
por profissionais de diferentes áreas, esse momento de formação se torna uma chance de troca, cons-
trução de ideias e aprendizados diversos.

Um procedimento comumente exercitado dentro do Educativo da Galeria Janete Costa é o de um


educador mais experiente mediar outro educador recém-chegado, a fim de ampliar reflexões acerca
das mostras, o que Coutinho (2008, p. 9) nomeia de “processo de aprendizagem prático por acompa-
nhamento”. Quando esse acompanhamento é entendido como uma possibilidade de formação “pode
ser um momento de troca entre todos os agentes envolvidos.”.

Ao engajar os educadores no processo de formação além de estimular seu comprometimento com o


trabalho e com o próprio processo de formação, reforçam-se as complementaridades das formações
iniciais em direção a um processo interdisciplinar de formação. (COUTINHO, 2008, p. 11).

Outra ação comum proposta pela gestão é que cada educador traga para os demais uma atividade
de formação, podendo ser tanto ligada à exposição que estiver aberta ao público no momento, como
trazer um pouco de projetos de trabalho paralelos, atividades relacionadas ao seu curso de graduação
ou experiências pessoais.

4. PLANEJAMENTO DE AÇÕES EDUCATIVAS PARA A EXPOSIÇÃO “ARCAICO CONTEMPORÂNEO”

As semanas que antecederam a abertura da exposição “Arcaico Contemporâneo” serviram para pre-
parar o educativo e planejar as estratégias e caminhos possíveis para a mediação dentro da mostra.

Os educadores puderam presenciar a montagem e trocar ideias com Eduardo Souza e a Art. Monta,
os responsáveis pelo projeto expográfico; puderam conversar com o Urian e fazer uma visitação à
mostra, mediado pelo próprio artista; além dos dias de intensas pesquisas e discussões na pretensão
de elaborar um projeto de mediação para a exposição.

É importante enfatizar que esse projeto educativo não se tratava de um guia obrigatório que deveria
ser utilizado nas mediações a fim de guiar as visitas, e sim, norteamentos e inquietações que os edu-
cadores poderiam trazer para o público e desenvolvê-las de acordo com o visitante e a abordagem
escolhida pelo próprio educador. Não era um guia de como satisfazer o público visitante da exposição
ou do espaço, mas caminhos que pudessem inquietá-lo, estimulá-lo a refletir sobre suas origens, seu
repertório como pessoa.

A ideia central dos encontros do planejamento do projeto educativo para “Arcaico Contemporâneo” é
semelhante a uma proposição feita por Jorge Menna Barreto, em seu texto “A sobrevivência do espan-
to” (2014), onde ele propõe ações que reverberem na saída de um público participador da obra, e não
apenas um espectador da exposição; diferente de modelos de mediação onde o educador se restringe
a reproduzir um discurso pautado em curiosidades do artista e das obras. Coutinho (2009, p. 172)
comenta esse tipo de mediação unilateral da seguinte forma:

523
Esse modelo de mediação, se assim se pode qualificar como tal ação, pressupõe um discurso unila-
teral e legitimador que afirma e confirma o lugar da obra e de seu autor – o artista – no mundo da
arte [...] Esse dispositivo de comunicação unilateral é uma herança dos sistemas elitistas excludentes,
que desconsideram uma possível autonomia de observação dos sujeitos que se veem diante das obras
obrigados a seguir com o olhar as indicações do guia (COUTINHO, 2009, p. 172).

Além de pensar nesse projeto para a mediação dos visitantes, os educadores puderam, junto ao artista,
elaborar uma oficina de desenho, que foi aplicada com os alunos das escolas visitantes e com o público
espontâneo nos finais de semana.

5. INTER-RELAÇÕES DESENVOLVIDAS ENTRE EDUCADORES, PÚBLICO E ARTISTA

As ações educativas realizadas dentro de uma instituição cultural se dão, principalmente, através da
mediação cultural. O educador assume o papel de mediador e se torna aquele que irá fomentar os
diálogos entre arte e público; é a ponte entre a instituição e o público; é aquele que irá construir junto
ao visitante uma experiência estética e crítica acerca do que está sendo exposto.

Cabe ao mediador trazer para a visita uma mediação crítica, um discurso onde é possível dar auto-
nomia de interpretação ao visitante, não esquecendo que cada sujeito possui uma carga de repertório
pessoal que influencia diretamente na recepção da obra. O mediador precisa trazer à tona questões
que possam ampliar as reflexões do visitante, assim como diz Coutinho (2009, p.177):

[...] as questões propostas pelo mediador devem procurar fazer que os intérpretes possam testar suas
hipóteses e confrontar seus pontos de vista, garantindo espaço de expressão de suas ideias e confir-
mando sua capacidade e sua autonomia interpretativa (COUTINHO, 2009, p. 177).

Tais questões não devem servir com o intuito de chegarmos a uma resposta fechada ao final da con-
versa, pelo contrário, conduzir a visita ao ponto de o visitante sair do espaço expositivo com as in-
quietações à flor da pele, ou até mesmo insatisfeito com o que viu e ouviu, ativará o desejo de querer
saber mais, aguçará seu senso crítico e o fará buscar por respostas para suas reflexões, seja com outras
pessoas, na internet, outro educador e até fazê-lo visitar novamente a exposição, a fim de digerir a ex-
periência anterior “insatisfeita”, transformando-o, então, num visitante “participador da obra”, como
aponta Barreto (2014, n.p.).

Durante a exposição “Arcaico Contemporâneo – 50 anos de pintura”, o público se fez presente e


participador da obra. Conforme os questionários respondidos, houve uma aceitação positiva da
mostra e os visitantes que frequentaram a Galeria Janete Costa aos finais de semana ainda pude-
ram participar de oficinas de desenho junto aos educadores do espaço e ao artista Urian Agria de
Souza.

É importante lembrar o planejamento que foi feito pelo Educativo para a realização das atividades
propostas com o público e por meio de capacitações que giraram em torno de três fases principais:
a ampliação de repertório cultural, a fase de proposição de ideias e a fase de prática para construção
das ações educativas.

524
A fase de ampliação de repertório cultural se dá nas discussões póstumas às leituras propostas pela
gestão ou pelo próprio educativo, além da possibilidade de apreciação de obras referencias na Arte
Moderna e Contemporânea. A fase de proposição de ideias é um momento de construção colabora-
tiva; cada educador tem a oportunidade de contribuir com suas subjetividades e habilidades para a
criação dos projetos educativos de cada mostra. E por fim, a fase prática das ações é consequente do
encontro entre educativo e público. Sem esse contato não é possível gerar a mediação, nem tampouco
abrir possibilidades de diálogos e construção de novos percursos.

Através das respostas dos questionários aplicados no público, puderam-se observar os visitantes men-
cionando os educadores como profissionais solícitos e simpáticos, e que conseguiram, com êxito, de-
senvolver um diálogo junto ao visitante, sem imposição de valores, embora alguns tenham preferido
visitar sem o acompanhamento de um educador, a fim de interpretar a próprio modo, sem interfe-
rência externa.

Quando o artista se torna presente durante todo o tempo de exposição aberta ao público, é ainda mais
forte a possibilidade de estreitar os laços entre o Educativo e o artista, pois é na convivência que a
experiência se fará presente.

Como afirma Barbosa (1984, p. 160), “todo grande artista é intrinsecamente um educador”, e foi assim
que Urian se mostrou diante do Educativo Galeriano: um grande educador. Urian esteve presente nos
encontros de planejamento das ações educativas para a exposição, contou sua história, falou de suas
técnicas, seu processo criativo e deu total liberdade ao educativo para criar seus projetos de oficinas e
propostas para a mediação diante dos mais diversos públicos.

O intuito de Urian foi formar um Educativo autônomo durante sua exposição. Para isso, estimulou,
junto à gestão da Galeria Janete Costa, os educadores, a fim de torná-los educadores propositores.
Mas que sujeito é este? Que educador é este propositor? Lima (2009, p. 76) aponta as seguintes atua-
ções comuns a esse sujeito propositor: “[...] sujeito ou ação que desorganiza, embaralha, altera reali-
dades diferentes – de questões provocativas entre o trabalho do artista e o público”. Era esse educador
que Urian queria trabalhando na “Arcaico Contemporâneo – 50 anos de pintura”.

Além de estar presente na produção, o artista acompanhou a exposição junto ao público. Urian esteve
na galeria todas as quartas e aos finais de semana, acompanhando as visitas e também dialogando com
os educadores, a fim de ampliar o repertório cultural de ambas as partes. Os laços estabelecidos entre o
artista e o Educativo foram estreitos, ao ponto de os educadores sentirem falta da presença dos artistas em
outros momentos, durante as suas exposições. Este detalhe suscitou o levantamento de discussões em tor-
no de questionamentos que giraram em torno de proposições, como: por que é tão importante a presença
do artista no espaço expositivo? Ou, como indaga Cayo Honorato (2014, p.4), “De que modo educar se
torna ou continua sendo uma prática artística?” E não podemos deixar de mencionar que essa relação
desenvolvida entre os Educadores x Público e Educadores x Urian fortaleceu o Educativo a ponto de edu-
cadores, por exemplo, aplicarem novamente semelhantes abordagens a visitantes em outras exposições.
Passaram a conceber o planejamento das ações educativas de modo colaborativo em projetos pós-mostra.
Ou seja, aquilo que foi construído durante a “Arcaico Contemporâneo – 50 anos de pintura” reverberou
nos mediadores a ponto de fazê-los utilizar as experiências vivenciadas e absolvidas em outras atividades.

525
Comumente, os artistas acompanham a produção da exposição, os processos de montagem, e, após
a vernissage, poucos ficam para acompanhar a exposição junto ao público. Urian, como já foi men-
cionado acima, esteve presente e próximo do educativo durante todo o tempo de exposição aberta ao
público. Ele buscava a resposta dos visitantes sobre a mostra, ali, face a face. Em alguns casos, não se
identificava como o artista, em primeiro momento. Em outros, já era facilmente reconhecido – uma
vez que a mostra exibia um documentário com Urian narrando sua trajetória como ser humano per-
tencente ao universo e como artista – pelos espectadores, minutos depois de iniciar a visita.

Lima (2009, p. 67) comenta esta interação entre artista e público, esse encontro ímpar onde o visitante
tem a possibilidade de dialogar diretamente com o artista. É um momento onde ambos se permitem
“ampliarem seu repertório através do diálogo e da troca”. Além de receber o visitante espontâneo,
todas as visitas agendadas puderam contar com a presença do Urian e em algumas delas, foi o pró-
prio quem aplicou a Oficina de Desenho, como quando a Galeria Janete Costa recebeu os jovens da
Biblioteca Comunitária Caranguejo Tabaiares.

Ainda analisando os questionários respondidos por visitantes da exposição, foi possível perceber que
o uso de cores suaves nas obras trouxe uma resposta do público – quase que unânime – de refletir
nas percepções do espectador. A sensação de bem-estar, nostalgia e ligação com a natureza foram as
respostas mais citadas quando o questionário perguntava sobre as sensações consequentes da expe-
riência estética visual dentro da mostra. Assim como também foi muito relatado a possibilidade de
sentir a tranquilidade do artista através de suas pinceladas.

Sem dúvidas, a presença de Urian na instituição estreitou os laços não apenas com os educadores, mas
também, com o seu público e refletindo na avaliação positiva da exposição realizada pelos visitantes,
de onde 96% do público saiu satisfeito da Galeria após visita à exposição “Arcaico Contemporâneo –
50 anos de pintura”.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da produção deste trabalho, foi possível refletir sobre a importância da formação dos edu-
cadores da Galeria Janete Costa, partindo das experiências vivenciadas durante a exposição “Arcaico
Contemporâneo – 50 anos de pintura”, do artista UrianAgria de Souza.

Dentro da pesquisa, pudemos perceber as relações desenvolvidas entre o Educativo e o artista, o


que de fato pode ficar para os educadores após o término das exposições, uma vez que não só as
relações construídas estiveram em evidência, mas também os conhecimentos compartilhados entre
os envolvidos, que puderam ampliar seu repertório devido às experiências vivenciadas dentro da
instituição.

As formações, a interação com o público, o artista entre os próprios mediadores trouxeram gran-
de contribuição para a equipe da Galeria Janete Costa. As experiências ali vivenciadas trouxeram
tantas inquietações que refletiram num posicionamento propositor por parte do Educativo, a pon-
to de, numa discussão sobre a formação dos educadores, os próprios tiveram a oportunidade de
sugerir – alguns até mesmo a executar – ações educativas para o grupo e também para o público.

526
O apoio da gestão da instituição em projetos oriundos do Educativo traz segurança e autonomia
para o grupo, o que facilita o desenvolvimento do trabalho; sem deixar de lado, a pré-disposição dos
coordenadores em auxiliar nesse processo criativo, o que acarreta em maiores trocas e também cons-
truções de novos conhecimentos.

Seria interessante que fosse realizado um estudo de público da Galeria Janete Costa, uma vez que
a mesma se localiza dentro de um parque e em frente à praia. Essas duas últimas, muitas vezes, são
a prioridade de quem passa pelo local. E diferente de outras instituições que recebem muitos gru-
pos escolares agendados, apesar de ter agendamentos, 80% dos visitantes são parte de um público
espontâneo. E que novas experiências dentro do Educativo Galeriano possam ser narradas e ana-
lisadas em formatos acadêmicos ou até mesmo informais, com o intuito de perpetuar as vivências
educativas.

No mais, foi de grande importância para nossa formação pessoal, acadêmica e profissional ter
participado, como educadora, na mostra do Urian, assim como ter passado dezoito meses dentro
da instituição, podendo colocar em prática o que aprendi em diferentes ações dentro e fora da
galeria.

REFERÊNCIAS

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acertos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 156-163.
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527
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PINHEIRO, Anderson (Org.). Diálogos entre Arte e Público: caderno de textos. Recife: Fundação de Cultura
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OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. 2. ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2008.
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RITO, Luana S. Reflexão e desdobramentos: a formação dos educadores da Galeria Janete Costa para a
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(Licenciatura em Artes Visuais) - Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2015.

528
Fertilização e fortalecimento
da árvore da arte: reflexões sobre
o convívio do professor de arte
com elementos artísticos
Geisiane Nogueira Rocha/ Juciene dos Santos Pimentel/
Milena Guedes A. Rocha/ Ana Cláudia O. Freitas

A semente é o ponto de partida para o nascimento de uma árvore. Se cultivada, desenvolver-se-á


uma planta nova que germinará e produzirá frutos. Desse modo, nasceu em meio a discussões fortes
inquietações referentes ao ensino da arte e, aos poucos, esse trabalho foi se edificando e tomando forma.

Sabe-se que a arte está entrelaçada a diversas áreas do saber, mas nem sempre é percebida. O desenvol-
vimento da sensibilidade e da capacidade perceptiva se encontra atrelada ao exercício de convivência
com os elementos artísticos. Essa prática pode ser exercitada, por exemplo, por meio da frequência a
espaços culturais, ou pela apreciação de objetos, telas e espetáculos artísticos, e ainda, através do que
o indivíduo consegue visualizar quando observa o mundo que o cerca.

Com base nisso, questiona-se: será que os professores que ministram essas aulas gostam e convivem
com arte? Nesse sentido, objetiva-se olhar a arte numa perspectiva sensível e constatar o convívio
que o professor de arte tem com os espaços culturais do município. Afinal, como o professor poderá
despertar o gosto do aluno pela arte se o próprio não tiver um convívio com ela?

É por estas indagações que este trabalho foi construído, especialmente a partir do princípio de que
é difícil despertar o interesse pela arte se não houver convívio com ela. Reconhece-se que há uma
desvalorização da arte e dos fazeres artísticos na sociedade; entretanto, se houvesse um olhar atento,
talvez essa situação se alterasse. Para isso, precisaríamos de mais pessoas que acreditassem na neces-
sidade da arte para o desenvolvimento sensível da humanidade, e essa formação deveria ou poderia
ter seu berço na escola. Novamente, revela-se pertinente indagar: se o professor não acreditar na arte,
como propagá-la como objeto de estudo, respeito e convívio?

Seguindo a ilustração por nós proposta desde o título: [...] “a árvore da arte”, após plantar a semente esta
criará meios para o crescimento, fixação e nutrição da planta – as raízes. Na raiz, concentram-se os sais
minerais que contribuem para o crescimento saudável da planta, por meio dela a planta é sustentada.

529
Como fonte de sustento, este trabalho se encontra fundamentado em uma pesquisa de campo, por
meio da abordagem qualitativa, embasado em Minayo (2008). Partindo desse pressuposto, optou-se
por fazer um estudo de campo, onde se investigou o professor de arte e a convivência que mantém
com os elementos artísticos206.

Uma planta precisa de um solo para ser cultivada; neste caso, foram selecionadas como solos as três
maiores instituições de ensino da sede do município de Guanambi - BA, em 2014, que oferecem o
Ensino Fundamental I, seguindo como critério de escolha a quantidade de alunos matriculados em
cada escola. Como critério de seleção de amostra, destacaram-se, entre os professores que ministram
aulas de arte, os 7 efetivos. O número total de professores nessas instituições soma 17, entre efetivos e
contratados pelo Regime Especial de Direito Administrativo (REDA) da prefeitura local. Ressalta-se
que os professores entrevistados trabalham na educação há mais de 15 anos, apresentam formação em
Pedagogia e tiveram aulas de arte durante a graduação.

Como instrumento de coleta de dados utilizou-se o diário de campo, entrevista semiestruturada e


gravada. O tratamento dos dados foi feito por meio da análise de conteúdo.

1. CAULE: DA EXISTÊNCIA À DISSEMINAÇÃO

A cultura que cerca os indivíduos é uma espécie de condição vital para a existência artística. É ela a res-
ponsável pela condução da arte na sociedade, e, assim como o caule conduz os nutrientes da raiz até as
folhas, as atividades humanas contribuem para o direcionamento da arte na vida da própria sociedade.

A arte é representada por um vasto campo de imaginação, produção, percepção e sentimentos que
foram, por sua vez, proporcionados através de pinturas, utensílios, esculturas, entre outras, desde o
período paleolítico. Por todos os lugares existe algo relacionado à arte, nos quais, por meio da percep-
ção sensível, ela se revela.

Para compreender a questão da sensibilidade, Feitosa (1997) almeja pensar a arte de modo que ela
desperte o sensível, a percepção e a descoberta da influência mútua e livre no fazer artístico. Partin-
do dessa vertente, é indispensável serem fomentadas no ser humano tais finalidades. Sabe-se que as
produções humanas, desde os primórdios, foram consideradas arte, mas convém esclarecer que o
desenvolvimento da consciência artística requer, como afirma Osinski (2001, p. 100), “o refinamento
da sensibilidade e o fortalecimento da capacidade de autoexpressão”, que vem do conhecimento e do
convívio. Nessa mesma visão, Feitosa (1997) relata que a emoção é a “matriz básica” das relações entre
os indivíduos e que o sentimento colabora para enxergar o mundo de outra forma – não mediada pela
palavra, mas sim pela experiência daquilo que o ser humano sente e expressa.

2. GALHOS: CONVÍVIO COM A ARTE – ESTENDENDO POSSIBILIDADES

Os galhos são partes de uma planta, e, de acordo com o crescimento da mesma, vão se ramificando,
transformando, revelando tamanhos e espessuras diferentes; embelezam, fortalecem e protegem a

206. Trata-se neste trabalho como elementos artísticos a convivência com a dança, teatro, música, museus, cinema, shows, exposições, etc.

530
planta de fenômenos naturais que possam danificá-la. Na arte, os galhos, a partir de seu crescimento,
possibilitam novas mudas para multiplicação e carecem de atenção, percepção, sensibilidade e visibi-
lidade, tanto no ambiente educacional quanto no meio informal, isto é, na família, na comunidade e
nos espaços sociais, para que surjam mais ramificações e se multipliquem.

A partir da convivência do indivíduo com determinada experiência e informação, torna-se mais ins-
tigante o interesse e encantamento. Reforça-se, assim, o propósito da arte, enquanto formadora do
olhar sensível e perceptivo, de buscar desenvolver esse encantamento, possibilitando, antes de tudo, o
“gostar”, “admirar” e “conhecer a arte”.

A não frequência aos ambientes que contêm arte pode ser justificada, em hipótese, pelo fato de que
muitas vezes esse contato não seja apresentado e divulgado nas instituições educacionais de maneira
a despertar o prazer/encanto. Por outro lado, e não menos importante, o fato de serem escassas as
manifestações de arte para a sociedade, torna-se um agravante na questão de abrangência, ou seja,
atividades artísticas estão localizadas fora do alcance de todos, nos grandes centros, e inclusive o edu-
cador, muitas vezes, não tem o acesso a essa cultura artística, ou, se houver o acesso, outro fator ainda
mais grave se instala no desinteresse de muitos e o não envolvimento como a arte enquanto objeto ar-
tístico. O não envolvimento com as obras artísticas, muitas vezes, parte do próprio educador que não
tem a convivência com a arte, e isto poderá dificultar a inter-relação com a arte enquanto disciplina, e
o despertar do interesse dos alunos. Sobre isso, Martins (1998, p.129) assegura: “É do entusiasmo do
educador que nasce o brilho dos olhos dos aprendizes”.

O indivíduo aprende a gostar daquilo que lhe é ofertado cotidianamente, com a finalidade de esti-
mulá-lo. Desse modo, Duarte Jr. (1991) discorre que a nossa mente é seletiva, e selecionamos, como
aprendizado, somente aquilo que para nós se torna importante, ou seja, o que não representa valor e
não compreendemos como essencial na vida é esquecido. Logo, a arte, sendo valorizada e reconheci-
da, transforma-se em uma ferramenta essencial na vida da sociedade e dos educadores e, consequen-
temente, dos educandos.

Os espaços culturais207 são elementos constitutivos para o conhecimento e apreciação da arte, tor-
nando-se, assim, essencial a frequência desses espaços pelos indivíduos. Salienta-se que na cidade
de Guanambi - BA, onde a pesquisa foi realizada, encontram-se alguns espaços culturais208 des-
tinados à divulgação da arte, como o Memorial Casa de Dona Dedé209, Fundação Joaquim Dias
Guimarães210, Casa do Escritor211, Centro Cultural212. Outros meios disponíveis para frequência

207. Locais vinculados à visibilidade da arte, como os museus, os teatros, galerias, exposições, cinemas, entre outros, cuja função é articu-
lar a maior aproximação das artes para com a sociedade.
208. Todas as informações dos espaços culturais citados foram concedidas por meio de conversas informais com os coordenadores dos
locais.
209. Antigo casarão do século XIX, mantendo a preservação do projeto arquitetônico original, bem como os objetos, móveis, untensílios,
quadros, documentos históricos os quais preservam a história da cidade.
210. Museu que não possui sede própria e apresenta um vasto acervo cultural sobre a história de Guanambi.
211. Museu particular, sem fins lucrativos que preserva a história de vida do escritor guanambiense Domingos Antônio Teixeira – Teixei-
rinha – bem como sua trajetória política e literária.
212. Inaugurado em 2006, o teatro da cidade.

531
são os shows que acontecem na praça pública do município e os que ocorrem em locais fechados,
como o Spaço Brasil e o Parque de Exposições, que realizam, frequentemente, eventos de diversas
modalidades e estilos.

Considera-se que a convivência com essas formas artísticas poderá possibilitar a produção da sensi-
bilidade e da percepção. A arte, quando cultivada nos espaços culturais, transforma-se em um palco
de manifestação do pensamento artístico e estético, essenciais nas inter-relações estabelecidas entre
a arte e a sociedade. Osinski (2001, p. 97) expõe que a “arte deveria significar uma atitude em relação
à própria existência, a expressão tangível de nossos sentimentos e emoções”. Assim, o sentido das
manifestações artísticas é promover e despertar o sentimento emotivo ao contemplar as obras. Por
isso, na escola, a arte não poderia ser tratada de forma diferente, pois a arte só é arte quando tem um
sentido, um porquê.

Nesse sentido, os profissionais da educação podem despertar um olhar mais acentuado para com a
arte. Eles são os condutores do ensino de arte nas instituições escolares, e o que aqui se pretende dis-
cutir é como cada professor, enquanto sujeito social, relaciona-se com a arte, como eles percebem e
convivem com a arte em seu cotidiano.

A arte, assim como as plantas, também precisa de um conjunto de recursos que lhe assegure se desen-
volver em meio à educação. E o acesso da arte na educação vem sendo assegurado ao longo dos anos
nos textos das leis que regem a educação nacional, a exemplo da LDB, que, desde 61, abre espaço para a
arte nos currículos escolares, mesmo que de forma, por vezes, equivocada, nos abre portas de reflexão
e avanços, como o proposto na LDB vigente, que torna a arte “componente curricular obrigatório, nos
diversos níveis da educação básica” em seu Art. 26. A partir desse momento, a arte adquire o status
de componente curricular e passa a ter seus conteúdos específicos de estudo. Vale ressaltar ainda que
outros documentos, como os PCN, Diretrizes Curriculares e Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil também tratam a arte com sua devida importância no desenvolvimento humano.

Duarte Jr (1991, p. 84) discorre que “não precisamos mais de fórmulas e receitas educacionais – pre-
cisamos sim é de um comprometimento humano, pessoal, valorativo, com a educação e a Nação”.
Isso nos aponta para a necessidade de comprometimento dos estabelecimentos educacionais, dos
professores e de toda comunidade para com a arte-educação. Partindo destes pressupostos, podemos
estabelecer um paralelo entre a lei e o que diz Duarte Jr. (1991): Se temos toda a receita, por que não
acertamos fazer? Se as Leis que regem o ensino da arte direcionam os professores em sala de aula,
então o que falta para que essa disciplina se torne valorizada?

3. FOLHAS: MANUTENÇÃO DOS DADOS – ANÁLISE

As folhas de uma árvore são responsáveis pela respiração e transpiração de uma planta, contribuem
para o processo chamado fotossíntese e são responsáveis pela fabricação do alimento que auxilia o
crescimento da planta. Assim, na busca por essa mesma essência de alimento e vida, essa pesquisa
procurou identificar o convívio que o professor de arte do Ensino Fundamental I, de três escolas
municipais da cidade de Guanambi – BA, tem com a arte em seu dia a dia. Para isso, foram feitas
entrevistas, a fim de buscar respostas que atendessem ao nosso objetivo.

532
Quando questionados sobre o porquê de lecionarem a disciplina de arte, as respostas de seis profes-
soras esclareceram que não foi por escolha, mas sim por direcionamento da instituição. Apenas uma
afirmou trabalhar com a disciplina por opção, mas confessou que, inicialmente, não soube lidar com
o trabalho em sala, inclusive utilizando, nessa época, as aulas de arte para alfabetizar os alunos, com
fins meramente pedagógicos. A professora justifica sua fala, dizendo: “[...] eu pensei na possibilidade
de trabalhar arte depois que eu conseguisse alfabetizar os alunos [...] mas não é desprezando a maté-
ria, eu queria primeiro ensinar os meninos ler e escrever, para depois começar!”

Essa fala nos traz dois aspectos diferentes: de um lado, percebe-se a importância que a educadora dá
à alfabetização de seus alunos, sendo essa uma prática positiva, e, por outro, ela abre mão de ensinar
a arte, por pensar que primeiro se deve alfabetizar e depois iniciar o trabalho artístico em sala. Nesse
sentido, Duarte Jr. (1991, p. 44) aponta que “a arte não procura transmitir significados conceituais,
mas dar expressão ao sentir”. O ensino de arte não exige que o aluno seja alfabetizado. Aprendê-la não
requer apenas conhecimentos técnicos e conceituais fundamentados em palavras. O saber ler e escre-
ver é, sem dúvida, essencial no processo educativo, mas a arte vai muito além: trata-se de sentimento,
expressão, que visa despertar a imaginação do aluno.

Em continuação aos questionamentos, perguntou-se sobre a convivência com arte. Das sete professo-
ras entrevistadas, duas relacionaram o convívio ao que ensinam durante as aulas. Uma apontou que a
arte auxilia no “pensar e no educar”, e a outra que “trabalha de acordo o momento [...] vai pesquisando
pra trabalhar”. Quando questionadas sobre a busca por leituras de arte, as professoras disseram ler
apenas quando pesquisam para planejar suas aulas.

A convivência está relacionada desde os elementos que nos cercam àqueles que exigem maior envolvi-
mento e participação. Oliveira e Garcez (2003) esclarecem que estamos cercados por arte em todos os
momentos, os objetos que nos cercam possuem formas e cores que expressam os elementos artísticos.
O convívio demonstra interesse, significa que o gosto incentiva a busca pela aproximação, pelo co-
nhecimento. O indivíduo convive com aquilo com o qual consegue estabelecer relação de sentimento,
conforme aponta Martins (1998, p. 80), quando diz que “[...] você seleciona o que toca você”. Logo,
as professoras acima não demonstraram estabelecer relação de busca pelo conhecimento em arte e só
procuram algo quando precisam planejar suas aulas, demonstrando uma concepção lacunada sobre a
relação de convivência com os elementos artísticos.

As demais professoras foram mais precisas em suas respostas. Uma afirmou não conviver muito, mas
soube reconhecer que, em seu cotidiano, existem elementos artísticos presentes. O mesmo pensa-
mento apresentou a outra professora, quando acrescentou que sua convivência com arte se faz ainda
por meio de leituras e reportagens sobre o assunto. A quinta professora ainda destacou que o próprio
trabalho corporal – a dança, o canto e também o fato de produzir pinturas em tecidos é o seu modo
de conviver com a arte. A sexta professora disse: “razoavelmente, quando saio da cidade”. Já a última
entrevistada esclareceu: “quando viajo, eu visito museus, eu vejo exposições... a arte sempre me insti-
gou, sempre me chamou a atenção”.

Nota-se que as professoras demonstram ter alguma convivência com arte, todavia essas revelações,
em outros questionamentos, parecem contraditórias. No caso da última entrevistada, quando per-

533
guntado sobre sua frequência a museus, teatro e cinema, ela responde que foi apenas uma vez a museu
e já faz bastante tempo, além disso, afirmou nunca ter ido a teatro e cinema e no que se refere a expo-
sições de pinturas cita apenas uma que assistiu no próprio município. Percebe-se que ela não tem o
hábito de fazer visitas aos espaços artísticos, o que demonstra que ela não convive, de fato, com arte,
conforme explanado em sua fala anterior.

Ainda sobre essas questões acerca da frequência aos espaços artísticos, as demais professoras dis-
seram ir ao teatro e cinema somente quando viajam. Tiveram, inclusive, dificuldades em citar
exemplos dos espetáculos, afirmando terem esquecido. Quanto ao museu, das seis professoras,
cinco disseram que conhecem e visitam quando viajam, somente uma, diz: “Nunca fui. Só conheço
pela televisão”. Ao serem interrogadas se vão a shows, todas relataram que costumam ir casual-
mente.

Com relação à exposição de pinturas, todas falaram que já assistiram, no entanto, quatro par-
ticipantes não recordam o nome do artista e do local de exposição. Apenas três se lembram, e,
coincidentemente, a exposição foi de uma artista local. Essa lembrança talvez se justifique pelo
fato de terem observado a obra artística com olhar perceptível e sensível, a ponto de se sentirem
comovidas com o objeto artístico. Martins (1998, p. 75) diz que, “quando estamos diante de uma
obra de arte, a recriamos em nós. A contemplação de uma produção artística nunca é passiva, algo
de nós penetra a obra ao mesmo tempo em que somos por ela invadidos e despertados para novas
sensibilidades”.

Uma das queixas feitas pelas professoras foi justamente em relação aos poucos espaços culturais pre-
sentes na cidade de Guanambi. Entre os espaços citados, no que se refere à frequência, todas já vi-
sitaram o Centro Cultural, porém, foram a trabalho, levar os alunos para assistir a peças teatrais
relacionadas aos conteúdos trabalhados em sala de aula, e, em sua maioria, não se recordam do que
assistiram. O mesmo ocorre com o Memorial Casa de Dona Dedé, todas já visitaram, mas não a lazer,
e sim com fins pedagógicos. Quanto à Fundação Joaquim Dias Guimarães, cinco professoras disseram
não conhecer, o que revela a pouca convivência com os espaços presentes no município. Nota-se que,
ao passo que elas questionam a ausência de possibilidade de convívio, suas falas evidenciam que não
existe relação de convivência com os espaços existentes.

O conviver auxilia no processo de percepção e desenvolve hábitos de interação. Martins (1998, p.


117) esclarece que “[...] o ser humano é a soma de suas percepções singulares, únicas. O estar atento
ao mundo é um constante despertar. O homem percebe quando se torna consciente de suas próprias
impressões”. Diante disso, a percepção é uma característica de um bom observador, e, à medida que a
convivência com a arte se intensifica, o indivíduo começa a perceber informações, formas e conteúdos
intrínsecos de uma obra, despertando-se para a arte em si. Segundo Oliveira e Garcez (2003), esse
despertar é amplo, abstendo-se do estar preso a uma arte apenas consagrada e atendo-se à observação
cotidiana.

Diante das considerações alcançadas, notou-se que as educadoras não se relacionam frequentemente
com a arte. Embora esclareçam ter visitado alguns espaços que consideram conter arte, suas falas
comprovam o pouco envolvimento com os elementos artísticos.

534
4. COLHENDO OS FRUTOS: CONCLUSÃO

A arte é de suma relevância para a sociedade. Ela existe desde os primórdios e por isso não se pode
dizer que os indivíduos não convivem com arte, pois ela se mostra presente o tempo todo ao nosso
redor. Na verdade, compreende-se que o que falta é a percepção, a capacidade de aprender a observar
e assim ver aquilo que nos cerca, o que é desenvolvido pela sensibilidade.

No corpo do trabalho, como respaldo teórico, utilizaram-se obras tidas como antigas pela academia.
Esses autores abordam o sentido e a importância da arte, apontando direcionamentos para sua disse-
minação na educação. Tais obras foram utilizadas intencionalmente a fim de evidenciar que, mesmo
depois de vários anos, seus conceitos ainda são extremamente relevantes, de forma a contribuir para
a arte na educação. As leituras e estudos ratificaram a necessidade do ensino de arte e suas contribui-
ções para o indivíduo.

Diante disso, a pesquisa se atentou para o convívio que o professor de arte tem com a arte, acreditando
ser a convivência um caminho facilitador do processo de educação em arte. Esclarece-se que a convi-
vência é o meio pelo qual os professores se relacionam com arte, pensando não ser possível ministrar
aula de arte sem manter relação com seus elementos, como, por exemplo, os espaços culturais.

Em relação à convivência aos espaços culturais existentes no município, ficou nítido que, apesar de
serem poucos, não são frequentados pelas professoras como deveria acontecer. Assim, evidenciou-se
que as professoras não têm afinidade com essas vivências e nem estabelecem relações de convivência
com esses espaços culturais.

Percebeu-se que as professoras só realizam leituras sobre artes quando planejam as aulas, o que nos
leva à comprovação de que elas geralmente não buscam por esse conhecimento para além da sala de
aula, ilustrando mais uma vez pouca convivência com o prazer estético possibilitado pela arte. Assim,
conclui-se que é necessário que educadores tenham convívio com a arte, posto que essa convivência
torna possível aprimorar a sua prática pedagógica.

Essa tão solicitada e necessária convivência com os elementos artísticos permite construir um sólido
conhecimento que proporcionará a apreciação da arte. Faz-se necessária, nessa perspectiva, a busca
pela consolidação dessas vivências e frequência dos educadores nos espaços culturais onde são ofere-
cidas as manifestações culturais em arte. É oportuno considerar o fato de os espaços culturais serem
limitados no município de Guanambi-BA, entretanto, embora limite, não impede o contato do pro-
fessor com a arte e nem justifica a quase nula convivência dos educadores de arte. Constatou-se que,
quando há oportunidades nos espaços locais, as educadoras somente cumprem um planejamento
didático, e não se envolvem com os espaços pela valorização e apreciação da arte enquanto produtora
de conhecimento pessoal e ampliador do próprio fazer pedagógico.

É fundamental destacar, nessa discussão, que o educador de arte deve manter a convivência com os
elementos artísticos e os espaços culturais, para conhecer, compreender e admirar a arte. Para que o
professor ensine de forma a contemplar o real sentido da arte enquanto disciplina, é indispensável
que saiba a importância que ela representa. Por isso, sugere-se que o profissional deva frequentar

535
ambientes favoráveis ao convívio com a arte, bem como envolver o aluno na percepção sensível que
a arte proporciona.

Acredita-se também que, para que a arte seja valorizada, é necessário que a valorização inicie pelos
profissionais de educação. Sendo a escola um espaço construtor de opinião e o professor um ícone
extremamente importante no papel de educar, é preciso que haja um trabalho de autoeducação e prá-
ticas pedagógicas que disseminem o valor da arte para a formação integral do indivíduo que aprende
continuamente e que busca se realizar enquanto ser humano.

Retomando a metáfora da planta, que, de maneira sugestiva e artística, acompanhou o presente estu-
do, trazemos à guisa de conclusão a necessidade de se fertilizar esse solo e fortalecer a árvore da arte,
enquanto disciplina, e isso envolve comprometimento das instituições e dos envolvidos nos processos
de educação, e mais ainda enquanto espaço de aprendizagem, de sensibilização e de transformação do
olhar para o vislumbre de um mundo mais significativo e quiçá mais bonito.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Lei n° 9394, de 20 dez. 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 248, Seção 1, p. 1-9, 23 dez. 1996. Disponível em: <http://portal.
mec.gov.br/arquivos/pdf/idb.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2014.
DUARTE JÚNIOR; João Francisco. Por que Arte-Educação? 6. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991.
FEITOSA, Ana Paula Carvalho Cruz. Brincadeira divina: O ensino da arte nos cursos de pedagogia da UNEB.
1997. 107 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Uni-
versidade Federal da Bahia, Salvador, 1997.
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa; GUERRA, M. Terezinha Telles. Didática do ensino de arte: a
língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998.
MYNAYIO, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2008.
OLIVEIRA, Jô; GARCEZ, Lucília. Explicando a arte: uma iniciação para entender e apreciar as artes visuais. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2003.
OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Arte, história e ensino: uma trajetória. São Paulo: Cortez, 2001.

536
(Rap)ensando a discussão
sobre direitos sexuais e direitos
reprodutivos no movimento hip hop
Jaileila de Araújo Menezes/ Dandara Maria Oniilari Ferreira da Silva

INTRODUÇÃO

O hip hop, como movimento social, cultural e político, nasce nos Estados Unidos, no início dos anos 70
(setenta), mais especificamente em bairros periféricos, como Brooklyn. Seu surgimento teve como um
dos objetivos a diminuição da violência entre as gangues de bairros rivais a partir da arte, seja essa em
forma de danças, músicas ou pinturas. O movimento hip hop é composto por 4 (quatro) elementos, sen-
do eles o rap e a discotecagem, que, costumeiramente, andam entrelaçados e fazem o caráter musical do
movimento; o break, elemento dançante; e o graffiti, elemento relacionado às artes visuais. Essas expres-
sões artísticas são perpassadas pelo aspecto nomeado conhecimento, também conhecido como quinto
elemento do movimento. É o conhecimento que traz ao hip hop o caráter de politização via denúncia da
realidade de injustiça social que marca a vida de moradores das periferias dos grandes centros urbanos.

O presente trabalho tem como foco o elemento Rap, em inglês a sigla das palavras Rhythm And Po-
etry (ritmo e poesia). A produção de rap ao longo dos anos tem se mostrado uma alternativa para
os jovens, que, a partir dessa, podem traçar um caminho oposto ao da violência e da marginalidade
(Dayrell, 2002). Trata-se da construção de músicas a partir de rimas e “é utilizado como expressão ju-
venil e como protesto, especialmente a partir de seu encontro com a luta pelos direitos civis e políticos
dos negros” (MENEZES, 2010, p. 458).

Procuramos fazer uma discussão que pudesse ligar os aspectos acerca dos direitos sexuais e dos di-
reitos reprodutivos ao Rap, de modo a perceber como o elemento mencionado vem abordando essas
temáticas. Tomando o hip hop como um movimento de contestação a tipos de discursos classistas e
racistas, tratar dos aspectos relacionados a sexismo, homofobia, feminismo, machismo, heteronorma-
tividade, erotização, dentre outros acabou por nos trazer uma espécie de lacuna no que concerne a
posicionamentos dos hip hoppers frente ao combate às opressões de sexo/gênero.

Ao pensar da falta de discussões qualificadas acerca de temáticas relacionadas à sexualidade no mo-


vimento hip hop, podemos nos remeter ao que Foucault (1999) chamou de Tabu do objeto. Tal ex-

537
pressão está relacionada a procedimentos de interdições que acabam por moldar nossos discursos, à
medida que advogam pelo silêncio (tabu do objeto); nem tudo pode ser falado em qualquer ocasião
(ritual da circunstância) e sobre determinados assuntos, apenas algumas pessoas estão aptas a tratar
(direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala).

No que concerne aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos, tomaremo-nos, respectivamente,
como “o direito a viver a sexualidade com prazer, o direito à liberdade e autonomia no exercício res-
ponsável da sexualidade” e “o direito a tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, co-
erção ou violência” (QUADROS & MENEZES, 2009, p.119-120). Os dois campos, embora distintos,
como é possível notar, fazem-se entrelaçados, tendo em vista que sexualidade e reprodução dizem da
diversidade de diferentes maneiras quanto ao uso do corpo e seus efeitos sociais. É preciso lembrar
também que ambos os direitos se encontram no âmbito do que temos enquanto direitos humanos.
Sendo assim, faz-se necessário que para além de existir teoricamente, esses sejam assegurados de
maneira efetiva.

Ambos os campos também são frutos de lutas feministas, tendo o campo dos direitos reprodutivos
sido reconhecido, segundo Tonelli (2004), na I Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1968,
em Teerã. Para além, Ávila (2003) traz que após a conquista dos direitos reprodutivos, a luta por di-
reitos sexuais ganha apoio, também, dos movimentos de gays e lésbicas.

A presente pesquisa vem de modo a suscitar o debate acerca dos direitos sexuais e dos direitos repro-
dutivos com os jovens e as jovens hip hoppers. A ideia é que, a partir dessa e de outras iniciativas que
levem os/as jovens à reflexão, os aspectos de desigualdade de gênero que permeiam o hip hop pos-
sam ser problematizados, de modo a inspirar a construção de relações mais igualitárias, tanto dentro
quanto fora do movimento, no cotidiano de cada um.

1. METODOLOGIA

A pesquisa em questão é qualitativa, logo nosso interesse pela análise minuciosa dos dados obtidos.
Dialogamos com o campo das pesquisas de inspiração feminista, o que nos envolve diretamente com
a possibilidade de mudança social ao fazer pesquisa, além dos comprometimentos éticos e políticos
que esse fazer apresenta. Na metodologia em questão, postulados como “neutralidade” e “universa-
lidade” são criticados por promoverem compreensões limitadas sobre as relações de poder e seus
efeitos (BANDEIRA, 2008, p. 213).

Os sujeitos da pesquisa eram praticantes do elemento Rap e foram selecionados a partir de suas pro-
duções musicais. O entrevistado 1 estava com 31 anos e, além de trabalhar como cantor de Rap, era
tatuador – iniciou no rap a partir das batalhas de free style, há cerca de 4 (quatro) anos; O entrevistado
2 estava com 25 anos, com ensino médio completo e trabalhava como cantor de rap. Estava no movi-
mento hip hop há sete anos e trouxe que os raps que compõe são críticas aos problemas sociais de seu
cotidiano; A entrevistada 3 estava com 24 anos e vinculada ao movimento desde os 15 anos. Contou-
-nos que, a princípio, era apenas consumidora de rap, mas, com o passar dos tempos, aconteceu de
começar a escrever letras.

538
A coleta dos dados aconteceu, então, a partir de dois roteiros de entrevista, ambos de caráter semies-
truturado, sendo que no primeiro abordamos as temáticas acerca dos direitos sexuais e reprodutivos
e no segundo roteiro focamos em letras de rap compostas pelos respectivos entrevistados.

Também compuseram os dados que foram analisados, letras de rap da coletânea chamada Hip hop
mandando fechado em saúde e sexualidade, resultante de um seminário sobre sexualidade, ocorrido
em 2005, no Rio de Janeiro, e, em 2006, em Pernambuco, especificamente na cidade de Caruaru. O
CD foi encontrado na internet para download gratuito, e, a partir da transcrição de todas as letras,
algumas passaram pelo procedimento de análise.

O modelo de análise utilizado foi a Análise Crítica do Discurso (ACD), “um tipo de investigação
analítica discursiva que estuda principalmente o modo de como o abuso de poder, a dominação e a
desigualdade são representados, reproduzidos e combatidos por textos orais e escritos no contexto
social e político” (VAN DIJK, 2008, p. 113). A ACD vê o discurso enquanto prática social, de modo
que um dos objetivos desse método de análise é “conscientizar os falantes da importância das práticas
discursivas incrementando, assim, aquilo que foi chamado de ‘a consciência crítica do uso linguís-
tico’” (ROJO, 2004, p. 208). Assim, utilizando tal modelo de análise, buscou-se entender e explicar,
tanto pelo material coletado nas entrevistas quanto pelas letras de rap que passaram pelo momento
da análise, como as desigualdades de gênero e seus rebatimentos nos campos dos direitos sexuais e
dos direitos reprodutivos se constroem e se mantém no movimento, além de fazer com que os jovens
possam vir a repensar suas práticas.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

2.1. Análise Crítica do Discurso das letras de rap selecionadas

A partir da coletânea Hip hop mandando fechado em saúde e sexualidade, foram selecionadas 3 (três)
letras para passar pelo procedimento da ACD. Todas as faixas da coletânea estão relacionadas ao campo
dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, seja focando em abortamento, violência sexual, den-
tre outros aspectos. As letras selecionadas foram “Relato”, “Decisão” e “Prevenção”. Tomando as letras
em questão e o modelo de análise, problematizaremos os discursos a partir do que Fairclough (2001)
chamou de concepção tridimensional do discurso: como prática textual, onde se focaliza os materiais
linguísticos acionados nas letras para se montar a história; prática discursiva, considerando que todo
discurso é produzido em determinado tempo e espaço, adaptando-se a uma espécie de regulação social;
e prática social, embora moldado por uma ordem social, o discurso não é unicamente passivo, e acaba
também incidindo sobre essa, de modo a questioná-la. Enfatizaremos os dois últimos aspectos.

A primeira letra trabalhada se chama “Relato” e versa a respeito do drama de uma mulher que optou
pelo abortamento de um feto. Segundo Ventura (2009), de acordo com o código penal, tal ato não
consiste em crime contra a lei apenas quando a gravidez for decorrência de um estupro ou quando
acarretar em riscos para a vida da gestante.

O termo abortamento, segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), é o procedi-


mento técnico de interrupção da gestação antes de 20-22 semanas ou com peso fetal inferior a 500g.

539
É dito precoce quando ocorre até 12 semanas e tardio entre 13 e 20-22 semanas de gestação. Aborto,
nessa definição, é o produto do abortamento. (VENTURA, 2009, p. 144-145).

A música traz o respeito da decisão da mulher pelo aborto ao mesmo tempo em que mostra o senti-
mento de culpa que domina a mulher protagonista após tal evento. Em diversos momentos, o discur-
so cristão religioso é exaltado, como se vê no trecho seguinte: “Olhava o crucifixo na parede e pedia
perdão/Estou sendo castigada pela má ação”. Além da súplica por um perdão divino, que a mulher
diz ter conseguido ao final da letra: “Meio que se Deus me condenasse de fato/Hoje não estaria aqui
dando meu relato”.

O rap em questão é escrito em primeira pessoa, trazendo a voz ativa da mulher que protagoniza a
música, ou seja, trata-se da rapper inserida em sua própria narrativa. Essa mulher, tomada de culpa,
devido à realização do aborto, coloca-se como agente do que aconteceu (“Jogada ao abandono pelo
aborto que eu fiz”), tornando-se, assim, narradora e protagonista. O caráter explícito de agentividade
não se repete no que concerne à causalidade do evento. O porquê de a mulher ter optado pelo aborto
não aparece de maneira direta, no entanto, pode ser inferido em determinado trecho: “O prazer falou
mais alto que a consciência/ E nessa, sobrou pra mim o preço da consequência/ Desesperada e só,
tomei a providência”. O abandono sofrido parece ter sido uma das causa da decisão pelo aborto, tendo
em vista que, ao que é indicado na letra, essa mulher necessitaria lidar com a gravidez e a criação do
filho sem amparo de terceiros. Tal fato nos leva a um próximo aspecto trabalhado dentro da transitivi-
dade aspecto gramatical que nos possibilita trabalhar em cima da voz escolhida para o texto (ativa ou
passiva), de modo a pensar o que essa pode estar significando, no que concerne aos efeitos ideológicos
e políticos do discurso. Quem haveria abandonado a protagonista de modo que essa tenha precisado
escolher o caminho do aborto ainda que a religião a qual ela se mostra ligada condene tal ato (“Se
eu morrer aqui foi porque mereci/ Na fé em que fui criada não há espaço pra mim”)? Não é trazido
ao longo da letra se esse abandono se dá por parte do homem que a teria engravidado, da família, do
governo, dentre outros.

Refletir a respeito do abandono ao qual a jovem foi submetida traz de uma possível fragilidade no que
concerne às suas relações sociais. Fragilizada e só, a opção pelo aborto pareceu a solução na época,
embora a letra siga demonstrando sempre uma contradição entre o ato de abortar e o castigo religioso
que pode vir de tal. A protagonista da letra se mostra dividida entre a autonomia sobre seu corpo e a
fé que professa, de modo a se mostrar inquieta com o que precisou fazer. Em simultaneidade a essa
inquietude, faz-se presente na letra o apoio à luta feminista a favor da descriminalização do aborto,
que parece ser impedida pela existência de uma sociedade religiosa que vê nesse a privação da vida de
um ser humano. Tomando a laicidade do estado, faz-se pertinente ressaltar que a proibição a respeito
da realização de abortos não deveria vir a partir de questões religiosas, onde parece estar embasada a
lei de proibição do mesmo.

Ainda que se mostre temente a Deus e à religião, ao longo da letra, a narradora traz alguns trechos
carregados de um discurso denunciativo acerca da criminalização do aborto, como “A ficha médica
virou boletim de ocorrência/ A ré no tribunal pedindo clemência”, ou quando diz que “Nem todas
sobrevivem para ter o que contar/ Até quando a igreja e o estado isso vai ignorar?”. No caso dos úl-
timos versos, existe o caráter de cobrança em cima das instituições Estado e Igreja, que são trazidas

540
como quem deteria em mãos a possibilidade da descriminalização do aborto, e, como consequência,
a segurança médica para as mulheres que viessem a optar por tal prática, de modo a que essas não se
coloquem em risco de vida ao se verem obrigadas a realizar práticas clandestinas, como no caso da
narrativa analisada.

A partir da análise, o que se pode inferir da letra é que o discurso mostrado ao longo da narrativa,
ainda que se posicione de modo à legalização do aborto, é o tempo todo perpassado pelas angústias
cristãs-religiosas da personagem, que crê ter sido perdoada por Deus, mas ainda assim se culpa pelo
ocorrido.

A letra seguinte se chama “Decisão” e também é cantada por uma mulher. O rap em questão versa
sobre o direito de decidir quando os assuntos em pauta estão relacionados ao corpo de cada um.
De modo que essa decisão possa ocorrer da melhor maneira possível, a letra traz que essas decisões
necessitam ser pautadas em informações, para que, assim, a melhor escolha possa ser feita. As vozes
verbais predominantes na letra são a terceira e a primeira pessoa do plural, no entanto, em alguns mo-
mentos, entram em cena, também, a primeira e a segunda pessoa do singular: “Meu corpo e sexo, só
eu sei como melhor trato, me sinto só com o descaso” e “Você tem o direito, decisão sem preconceito”,
respectivamente. Assim, percebe-se que não temos a vocalista entrelaçada na narrativa o tempo todo,
como se deu na letra anterior.

A partir da análise da letra, foi possível nos depararmos com alguns discursos hegemônicos sobre
as consequências da gravidez não planejada (“Filhos não planejados causam grande frustração”).
Sobre o trecho em destaque, faz-se pertinente atentar para a diferença entre uma gravidez não
planejada e uma gravidez não desejada, sendo a primeira um momento de surpresa, no entanto de
aceitação, ao passo que na segunda, a ideia da gravidez não é bem-vinda. No entanto, encontramos
também um discurso contra-hegemônico e que é diretamente ligado ao campo dos direitos repro-
dutivos, sendo a temática desse a discussão pró direito de decidir a respeito de um abortamento:
“Aborto ilegal acontece você querendo ou não, O caminho ideal é a prevenção, Mas se acontecer
não pode haver condenação” / “Crime e castigo no cordão do seu umbigo, Não querer é um direito,
ombro amigo é preciso”.

Ainda no campo dos direitos, a letra chama a atenção: “Precisamos lutar, melhorar toda condição,
Estado democrático de direitos é a solução, Você tem o direito, você tem o direito”. O trecho aponta
para uma necessidade de que, através da democracia, possam se reivindicar e conquistar direitos que
vêm sendo negados às mulheres, principalmente por existirem, mas não poderem ser exercidos de
maneira efetiva. O campo dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos pode servir de exemplo
para tanto, tendo que os mesmos, embora existentes, mostram-se mais difíceis de serem exercidos, já
que não se costuma conversar sobre eles, e como é trazido na letra “sem discussão não existe decisão”.

A terceira letra alvo de análise se chama “Prevenção”. Essa narra um discurso pró livre vivência da
sexualidade por parte de jovens homens e jovens mulheres, desde que essa vivência se dê lado a lado,
com informações acerca de DSTs e métodos contraceptivos. Nessa mesma letra, encontramos, tam-
bém, como nas outras, um discurso a favor da descriminalização do aborto, temática forte quando o
assunto é direito reprodutivo.

541
“Prevenção”, cantada por duas rappers mulheres, traz diversos versos em que alerta os/as jovens acerca
de sua vivência da sexualidade, de modo a ressaltar as consequências negativas que o não uso de mé-
todos contraceptivos pode vir a acarretar (“A coisa é séria falo do vírus maléfico, HIV pode infectar
você” / “Gravidez não planejada, DST, HIV, Se der bobeira o próximo será você”). O discurso soa
forte e traz que uma vivência irresponsável, no que diz respeito ao uso de preservativos, pode resultar
em danos na vida do/da jovem. Assim, no caso da letra, apela-se para a conscientização a partir de
determinados mecanismos punitivos que podem vir a ocorrer. Essa punição por uma vivência sexual
desregrada acaba se mostrando atrelada à falta de informação sobre temáticas relacionadas à sexua-
lidade: “Parceiros desprevenidos situação de risco/ Mas infelizmente na escola não se aprende sobre
isso”. As cantoras do rap seguem sobre isso, fazendo um apelo ao governo e chamando a atenção sobre
essa falta de educação sexual. Faz-se importante perceber, também, no trecho a seguir, o recorte de
classe que surge, de modo a ressaltar que o problema da falta de informação afeta, de modo mais gra-
ve, jovens de periferias do que em jovens de classes abastadas: “Quero chamar a atenção humildemen-
te/ Para um órgão público de saúde competente/ As favelas correspondem o maior índice de pessoas
injustiçadas/ Sobre o risco de falta de informação/ Pela DST/ Convido quem quiser ver”.

Tomando outro trecho é possível destacar, também, num recorte de gênero explícito por parte das
autoras: “O direito de gestar, conceber e parir/ Não acontecem com os homens, eles não estão nem
aí”. A partir disso, pode-se problematizar as consequências da gravidez e maternidade na vida das
mulheres, o que é fortemente influenciada pela eficácia do discurso da “sensibilidade” feminina para
os cuidados do lar e da prole. O combate a essa desigualdade de gênero ainda continua extremamente
atual, dado o efeito do discurso da cisão público/privado e da operação dos códigos de masculinida-
de/feminilidade.

Por fim, tomando não só as 3 (três) músicas aqui analisadas, mas o restante do CD escolhido, que
também fez parte do corpus da pesquisa, foi possível perceber nas letras uma positivação à vivência
da sexualidade por parte dos/das jovens, além de uma preocupação intensa com a gravidez das jovens
e com o uso de métodos contraceptivos. As referências ao direito de escolha sobre o aborto também
se fizeram presentes de maneira intensa, podendo ser percebido que a coletânea em questão entrelaça
e serve como voz dentro do movimento para a explicitação de aspectos relacionados ao campo dos
direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.

2.2. Análise Crítica do Discurso das entrevistas realizadas

A linha de ACD a ser seguida nesse ponto será a da “prática social” (FAIRCLOUGH, 2001), já expli-
cada anteriormente. Dentro da análise, problematizaremos as relações de poder contidas no discurso,
no que concerne à nossa temática de direitos sexuais e direitos reprodutivos, abordando temáticas
como misoginia, homofobia, reprodução, dentre outras.

Como já foi mencionado, discussões de caráter formativo, que envolvam o campo dos direitos re-
produtivos ou sexuais, são pouco exploradas dentro do movimento. A entrevistada 3, por exemplo,
traz-nos: “já li coisas sobre gênero, sexualidade, mas não que foi o hip hop que me trouxe isso”. Sabe-
-se, no entanto, que tal silenciamento não é exclusividade do movimento hip hop. Há um conjunto de
práticas que nos impede de discutir tal assunto de maneira mais aberta, pensando não apenas o hip

542
hop, mas um contexto macro. Um dos resultados da não discussão sobre o tema se enxerga na perpe-
tuação de valores para as vivências sexuais, em articulação com questões de gênero.

O rap, elemento trabalhado aqui, ainda que conteste desigualdades de raça, de território, ou de classe
social, por exemplo, não costuma apresentar letras que contestem as desigualdades de gênero. O en-
trevistado 2 nos traz: “eu canto muito como forma de fazer as pessoas abrirem os olhos pras desigual-
dades que elas vivem”, mas, o mesmo, ao se ver questionado sobre temáticas que possam adentrar na
discussão sobre as desigualdades acerca dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, deixou claro
que não costumava abordar tais assuntos.

Interpelada a respeito da pertinência da discussão sobre sexualidade no contexto movimento hip hop
e do rap, a entrevistada 3 alega:

[...] seria importante mas no rap isso não é viável. Não seria uma música comercial. O povo não tá
interessado em fazer esse tipo de música. Yabas (grupo de rap do qual a jovem participa) mesmo tem
uma letra, que eu comecei e não terminei, mas já tem um bom pedaço. E aí fala sobre doenças sexu-
almente transmissíveis, fala de anticoncepcionais, de altas coisas, mas tipo, eu nunca cantei. Num é
uma coisa muito viável. É informativo, é mas tipo a galera não compraria um cd assim. E tipo pode
até rolar de comprar se tiver uma faixa, no máximo duas, né, porque o povo não tá interessado nisso.
Não sei se a fase da idade... Mas não estão.

Ampliando com os entrevistados e a entrevistada a discussão acerca da asseguração a respeito da


livre vivência da sexualidade por parte dos presentes no movimento, adentramos na questão da ho-
mossexualidade, de modo a refletir sobre como esse aspecto vem sendo observado no movimento.
Se a possibilidade de desqualificação das produções das mulheres é uma realidade precisa, tratando-
-se da homossexualidade, esse aspecto se torna ainda mais forte, como nos retrata a entrevistada 3,
ao relembrar a única vez em que se deparou com um homem homossexual interessado em se tornar
rapper:

Aí ele disse que ficou espantado pelo apoio da gente, aí eu: “por quê?” ele: “não, porque eu sou gay.”
Eu: “meu filho, a gente tá falando de cantar rap., cada um da pra quem quiser, a hora que quiser...”
Mas a gente alertou ele em relação aos meninos, que iam avacalhar. As letras dele podiam ser boas
quanto fosse, mas por ser gay não serve. A gente conversou com ele sobre isso, mas ele disse que já
passou por tanta coisa e que seria uma fase que ele poderia enfrentar. A gente conversou numa boa
mas não tivemos noticias dele.

O entrevistado 1, após declarar que considera a cena hip hop homofóbica, levanta uma hipótese para
tanto: “Porque o rap e o rapper, a imagem do rapper, como eu posso explicar... É muito machão. É
muito machão, é machista e chega a ser nojento”.

No entanto, precisa ser ressaltado que, embora a homossexualidade seja um motivo para desqualificar
as produções, seja de rap, ou de qualquer elemento, existe uma forma de vivência homossexual que
não será alvo de crítica por parte dos homens que compõe o movimento, sendo essa a homossexua-
lidade feminina. Assim, a relação entre duas mulheres, acaba adquirindo significados eróticos dentro
do movimento hip hop e sendo alvo de músicas que estimulam e elogiam a prática.

543
Vê, alguns acham massa homossexuais lésbicas. Lésbica é massa. Acham bonito e tal... Mas eles não
fazem uma musica... Por exemplo, tem uma música agora de Diomedes que é Elas gostam delas, mas
porque eles não fazem uma música chamada Eles gostam deles, tá ligada? Aí bota lá uma capa, luxúria
e pá, mulher se pegando. Mas isso aí, ele não tá pensando na causa, ele tá pensando na calça [aponta
pra área do flash de sua calça]. Ele tá pensando nele. Não tô criticando ele. Ele é meu amigo, a gente
conversa... mas acho que hoje, pra fazer música assim, quer falar de amor livre, mas livre pra quem?
Livre pra você pegar todas? Aí não, meu véi. (Entrevistado 1)

O entrevistado em questão, ao questionar a valoração atribuída à homossexualidade feminina como


forma de satisfazer práticas sexuais dos homens que cercam o possível casal lésbico, coloca-nos em
ligação com a liberdade sexual, pauta do movimento feminista. É preciso estar atento para o fato de
que essa liberdade sexual feminina não deve ser concebida enquanto um benefício para que os ho-
mens usufruam de tal, mas como uma maneira de as mulheres se fazerem autônomas em relação às
suas escolhas de parceiros ou parceiras sexuais, dentre outros aspectos.

Sobre a participação das jovens mulheres, destacamos que elas ainda passam por alguns tipos de
empecilhos em relação às suas vivências, que vão desde sua vida sexual, como traz a entrevistada 3,
ao relatar o fim de um relacionamento com um jovem hip hopper (“Aí ele disse: “vê se tu não dá pra
qualquer um.” Aí eu disse: “ Lógico que eu não vou dar pra qualquer um, eu vou dar pra quem eu
quiser. É diferente.”), até a forma como optam por se vestirem:

Só que acontece também, muitas vezes, na questão do machismo... A mulher, muitas vezes, não todas
as mulheres, mas algumas mulheres contribuem para esse comportamento. Porque assim, a pessoa
pode se vestir da maneira que quiser. Não tenho pudor quanto a nada disso. Mas tipo, tem mulher
que dá condição pra cara cafajeste, tá ligada? (Entrevistado 3).

Deparamo-nos nas duas situações, ligadas à modelos de controle à sexualidade da mulher, seja a par-
tir do ato sexual, ou a partir da maneira como essas se vestem. A já mencionada escassez de debates
sobre o assunto e a naturalidade como os discursos são pronunciados nos levam a perceber que “as
ideologias construídas nas convenções podem ser mais ou menos naturalizadas e automatizadas, e as
pessoas podem achar difícil compreender que suas práticas normais poderiam ter investimentos ide-
ológicos específicos” (FAICLOUGH, 2001, p. 120). Tal fato dificulta ainda mais qualquer tipo de ação
que possa trabalhar em cima desse aspecto, de modo a buscar a equidade de gênero, no que concerne
ao livre exercer de direitos sexuais e de direitos reprodutivos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O hip hop, embora seja um movimento questionador de desigualdades raciais e sociais, ainda se
mostra muito relutante em adicionar à sua agenda de discussões aspectos que se relacionem com as
desigualdades de gênero, tomando como mote principal direitos sexuais, direitos reprodutivos e os
parâmetros que os compõe. Ainda assim, é possível encontrar focos pontuais de locais onde tais temá-
ticas podem ser discutidas, sendo esses espaços que servem tanto para a manutenção da participação
da mulher no hip hop, quanto para a quebra de paradigmas que colocam a mulher enquanto sujeito
subalternizado e de menor potencial na produção prática dos elementos que compõem o movimento.

544
Dentro do elemento rap, foi possível perceber o quão carente de produções culturais que almejam a
igualdade de gênero se encontra a cena local. É necessário que iniciativas que despertem nos jovens a
necessidade de produzir materiais a esse respeito sejam geradas, de modo a uma possível garantia do
respeito aos seus direitos sexuais e direitos reprodutivos.

REFERÊNCIAS

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Rio de Janeiro, v. 19, supl. 2, 2003.
BANDEIRA, Lourdes. A contribuição da crítica feminista à ciência. Revista Estudos Feministas, Florianópolis,
v. 16, n.1, p. 207-228, 2008.
DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p.
117-136, 2002.
FAIRCLOUGH, Norman. Teoria social do discurso. In: FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
MENEZES, Jaileila Araújo & COSTA, Monica Rodrigues. Desafios para a pesquisa: o campo-tema movimento
hip-hop. Psicologia& Sociedade, v. 22, n 3, p. 457-465, 2010.
VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008
VENTURA, Miriam. Direitos Reprodutivos no Brasil /1. Direitos Humanos 2. Direitos Reprodutivos 3. Repro-
dução Humana. Brasília (DF): [s.n.], 2009.
QUADROS, M; MENEZES, J. A abordagem de direitos sexuais e direitos reprodutivos na escola. In: SCOTT, R.
P.; LEWIS, L.; QUADROS, M. Gênero, diversidade e desigualdades na Educação. Interpretações e reflexões para
a formação docente. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009, pp.117-141.
TONELLI, Maria Juracy Figueiras. Direitos sexuais e reprodutivos: algumas considerações para auxiliar a pen-
sar o lugar da psicologia e sua produção teórica sobre a adolescência. Psicol. Soc. [online], v.16, n.1, p 151-160,
2004. ISSN 1807-0310.

545
Nuance do nordeste no ritmo
do hip-hop: uma narrativa
da prática coletiva que buscou
a valorização cultural através da dança
Amanda Fernandes dos Santos

E sta comunicação se trata das experiências obtidas com a participação criativa e de palco na co-
reografia “Nuance”, apresentada no Festival de Dança de Teresina, em 2015, vencedora na categoria
dança urbana avançada do referido festival.

Figura 1. Grupo de
dança e teatro “Co-
nexão Street”. Cria-
dores de “Nuance”

546
Atualmente os grupos de hip-hop têm fortalecido ainda mais algumas das principais características
deste estilo. Diria até que os dançarinos adeptos desta modalidade procuram se identificar tão exage-
radamente uns com os outros, que deixam de observar que nesta atitude poderá haver, em certa me-
dida, uma perda na identidade do próprio estilo. Podemos identificar esta caracterização exacerbada
principalmente nos figurinos apresentados por seus dançarinos. Como por exemplo, calças e camisas
largas com letras no estilo norte-americano ou camisetas de basquete, tênis de determinadas marcas,
bonés, bandanas amarradas na perna, cintura, pescoço ou na cabeça, enfim, tudo isso são caracterís-
ticas marcantes deste estilo de dança que, ao som de um rapper americano com muitos beats e graves,
nasce um modo de apresentação do hip hop.

A partir disso, observamos que o hip-hop se revela bastante uniforme no sentido da massificação do
estilo por meio da utilização destes produtos. O que percebemos é que a mídia pode ser uma das
causas desta uniformização, pois, na comercialização destes produtos ligados a este estilo de dança,
os meios de comunicação revelam uma constante preocupação voltada mais para os valores lucrativos
do que para os valores culturais existentes no âmbito do hip hop. Refletindo sobre isso, começamos a
nos questionar se para dançar hip-hop tínhamos que nos moldar ao estilo berço das danças urbanas,
proveniente dos Estados Unidos. Então discutimos sobre várias questões neste sentido, por exemplo,
por que tínhamos que esquecer nossa cultura para representar outra? Seria possível haver alguma
relação entre as duas culturas em nossa exibição? De que maneira poderíamos apresentar um estilo
de dança estrangeira sem perder nossa identidade cultural? E assim fomos percebendo a importância
de mostrar a música nordestina nos palcos do Brasil por meio da dança urbana.

De modo que, toda essa riqueza cultural encontrada na dança de rua, unida à musicalidade nordes-
tina nos serviu de inspiração suficiente para darmos início à criação de “Nuance”. A autora, Katia
Canton, apresenta-nos a ideia de identidade elaborada pelo autor Stuart Hall em sua obra A identi-
dade cultural na pós-modernidade. Modestamente, vejo na ideia de Identidade citada abaixo algo de
semelhante ao que propomos em nossa coreografia:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unifi-
cadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas...
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à me-
dida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por
uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2009, p. 16-17).

Katia comenta que o sociólogo Stuart Hall destaca em sua obra que, com esta identidade contempo-
rânea surgida com a globalização, tornou-se variável, ou seja, há uma constante transformação com
relação às formas pelas quais somos representados nos sistemas culturais que nos rodeiam (CAN-
TON, 2009, p. 15).

A dançarina Isabel Marques foi outra autora que encontramos orientação teórica no processo criativo
de nossa coreografia. Basicamente, pesquisamos sobre o processo coreográfico definido por esta au-
tora, que é mestra em dança, doutora em educação e coreógrafa. Este processo contribuiu significati-

547
vamente para a criação da coreografia “Nuance”, o que nos facilitou bastante a montagem da mesma.
Segundo Isabel, tal processo consiste em:

Escolha do tema; Escolha da música (compreensão rítmica); Criação de movimentos simples e inclu-
sivos; Experimentar o movimento executando com diferentes qualidades expressivas (Laban213); Ex-
plorar as amplitudes dos movimentos; Explorar a percepção das possibilidades do espaço da dança
(profundidade, lateralidade, níveis de movimento, planos, direções, distância); Explorar os recursos co-
reográficos: uníssono, contraste simultâneo, canon, antífono/responsorial, rondo; Estimular a vivência
de personagens, corporificando o sentido da dança e exercitando a postura cênica. (MARQUES, 1997).

Utilizando os passos sugeridos no processo coreográfico de Isabel Marques, fizemos a montagem da


performance de “Nuance”. Após decidir tema e selecionar as músicas, partimos para a criação de mo-
vimentos do tipo “simples e inclusivos”. E foi a partir dessa simplicidade de movimentos que surgiu o
nome Nuance. Percebemos, assim, que esta ideia expressava também a naturalidade do nordestino, a
humildade que trazemos, por fim, a nuance dos detalhes. Os passos coreográficos utilizados são, em
grande maioria, das bases do hip hop e algumas variações de estilos dentro da dança urbana (Popping,
House, Ragga e etc.), nada muito elaborado, com saltos complexos. Afinal de contas, “o último grau
de sofisticação é a simplicidade”, já dizia Leonardo Da Vinci.

Para destacar a ideia de valorização cultural nordestina, pesquisamos sobre canções brasileiras, es-
tudando as letras e analisando a musicalidade que melhor se encaixava na proposta. Para fortalecer
esta ideia, acrescentamos um repentista declamando o poema Aos Críticos, de Rogaciano Leite214, o
qual trata de uma crítica aos preconceitos acerca do sertão. A escolha deste poema nos possibilitou
mostrar que, assim como no Nordeste, “o histórico da dança de rua também é repleto de questões pre-
conceituosas, sendo muitas vezes considerada uma expressão de dança marginalizada, relacionada à
violência” (LAUXEN; ISSE, 2009, p. 72).

As músicas escolhidas para “Nuance” foram “Anjos”, do Rappa; “Boa Noite”, da Karol Conka; e “Desa-
bafo”, do Marcel D2. Há também um solo de sanfona acompanhando um leve forró na sonoplastia da
coreografia, sem deixar de lado os beats do hip-hop, que são de extrema importância para fazer uma
ligação contagiante entre essas batidas culturais. Pois, como destacou (ALMEIDA JÚNIOR, 2008),
citado por Patrícia Lauxen no artigo Contextos da dança de rua: Um pouco de História e práticas do-
centes, é, por intermédio da utilização de músicas com batidas fortes e contagiantes, que o dançarino
é estimulado a se entregar de corpo e alma à dança, expressando seus sentimentos, desejos e anseios
através dos movimentos de seu corpo. Este pensamento resume adequadamente o resultado do ritmo
empolgante apresentado em “Nuance”.

Ainda como parte constituinte deste processo coreográfico, estudamos um pouco das técnicas apre-
sentadas por Rudolf Laban, e, como sugerido em suas considerações coreográficas, tudo foi experi-

213. Rudolf von Laban, considerado por muitos como “o mestre do movimento”, foi bailarino, coreógrafo, arquiteto e estudioso do movi-
mento humano, o qual desenvolveu um método pensando na melhora do desenvolvimento global das pessoas. Método este, conhecido por
Coreologia, que serviu e serve de inspiração para muitos profissionais que se utilizam do movimento, como ferramenta de trabalho. Disponível
em: <http://www.uscs.edu.br/simposio_congresso/congressoic/trabalhos.php?id=0382&area=Biol%F3gicas>.
Acesso em: 07 jun. 2016.
214. Poeta e jornalista brasileiro.

548
mentado com diferentes qualidades expressivas: os movimentos básicos realizados em maior ampli-
tude e com muita energia, testes de movimento com corpo, repetições e buscamos explorar diferentes
direções. Houve também um estudo do espaço na intenção de formar alguns desenhos coreográficos,
aproveitando diferentes níveis e planos, deixando o ambiente em um fluxo mais dinâmico. Utiliza-
mos, também, técnicas como canon e responsarial.

Quanto ao figurino, rompemos com o estereótipo de calças largas, bonés e bandanas, e seguimos uma
linha mais simples. Utilizamos um colete de cor bege sobreposto de fuxicos e estopa colorida na parte
superior do ombro até peito. As dançarinas usaram shorts e os dançarinos, calças jeans.

No mundo contemporâneo, voltando-nos mais especificadamente para a arte contemporânea, o obje-


to de arte para ser legitimado como obra de arte precisa não só existir, não só ser produzido, mas tam-
bém é necessário que se tenha um argumento, um conteúdo transcrito e fundamentado. Assim como
a socióloga francesa Nathalie Heinich argumenta em sua tese Práticas da Arte Contemporânea: uma
abordagem pragmática a um novo artístico (2014)¸ que a obra de arte vai além da sua materialidade
produzida, pois segundo esta socióloga a arte necessita de uma extensão, ou seja, de uma produção
discursiva. Neste sentido, Nathalie aponta que:

Uma obra de arte contemporânea quase nunca existe sem um texto, assinado ou não, escrito pelo
próprio artista ou, melhor ainda, por um especialista – por um crítico ou curador. Exatamente da
mesma forma com o contexto se tornou parte da obra, o discurso sobre a obra se tornou parte da
proposta artística. É por isto que hoje as escolas de arte – pelo menos na França – incluem em sua
agenda pedagógica também a mestria do discurso, como, por exemplo, “Ser capaz de falar sobre sua
obra e de construir um texto em torno dela”. (HEINICH, 2014, p. 379).

Figura 2. Imagem após premiação


do grupo no Festival de Dança de
Teresina
(1ª lugar na categoria Danças
urbanas avançadas).

Então, com base no argumento de Heinich, socióloga e especialista em arte, foi evidenciada a necessi-
dade de se produzir o relato de experiência como conclusão de nossa composição artística. Marcando
o registro não só em vídeo, onde é possível enxergar apenas a resultado do processo, mas também

549
como texto, revelando todo o procedimento coreográfico, no qual procuramos destacar o que se foi
estudado, fundamentando, analisado, e como os pontos chaves foram decididos coletivamente. Além
do vídeo como um exemplar do resultado de nosso desempenho, guardamos conosco os comentários
dos jurados com as devidas notas que recebemos naquela noite.

O Festival de Dança de Teresina tem filiação com o Passo de Arte (Produtora de competições de
dança em sete estados do Brasil), que tem como diretora a bailarina Marisa Pivetta, a qual, além de
estar envolvida na direção do Passo de Arte, atua como jurada nas competições. A segunda jurada
oficial do evento é a bailarina, premiada internacionalmente, Toshie Kobayashi. Esta, é uma bailarina
reconhecida como um dos maiores e mais respeitados nomes da dança clássica brasileira, e que, assim
como Marisa Pivetta, é responsável pela seleção de bailarinos para o Passo de Arte e o YAGPBRASIL.
Segue abaixo os registros fotográficos das fichas técnicas da avaliação e julgamento que ambas as ju-
radas fizeram pela apresentação da coreografia “Nuance”.

Figura 3. Registro fotográfico da ficha técnica da jurada Figura 4. Registro fotográfico da ficha técnica da jurada
Toshie Kobayashi Marisa Pivetta

Assim, consideramos que a experiência vivida neste trabalho foi bastante enriquecedora, em todos os
aspectos, desde a criação até a apresentação de “Nuance”. E, após criação desta performance, segui-
mos a trajetória de resultados, começando pela apresentação, que aconteceu no dia 17 de outubro de
2015, na 19º edição do Festival de Dança de Teresina, conquistando o primeiro lugar, juntamente com
a seleção para a 24º Competição de Dança Internacional “Passo de Arte”, que acontecerá na cidade de
São Paulo- SP, em Julho de 2016.

Ainda como resultado deste trabalho, podemos dizer que nos sentimos realizados por produzirmos
algo diferente e ao mesmo tempo pessoal, por se tratar de nossa cultura de raiz.

550
Destacamos, ainda, que a união de uma cultura a qual nos identificamos e adquirimos como parte de
nosso trabalho, foi-nos gratificante e realizador, enquanto artistas, ou simplesmente como aprendizes.
O reconhecimento dos jurados e do público neste processo também foi de grande importância, pois
nos trouxe um retorno motivador para continuarmos trabalhando com mais engajamento para a prá-
tica de estudos e pesquisas sobre a dança.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA JUNIOR, Cláudio Rubens de. Street Dance. Jornal Anutsen, 2008. Disponível em: <http://www.
anutsen.com.br/portal/html/modules.php?name=News&file=article&sid= 6>.
CANTON, Katia. Corpo, identidade e erotismo. São Paulo: Editora WMF; Martins Fontes, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. In: CANTON, Katia. Corpo, identidade e erotismo.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 16-17.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.
11. ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2006.
HEINICH, Nathalie. Práticas da arte contemporânea: Uma abordagem pragmática a um novo paradigma artís-
tico. Tradução de Markus Hediger. Sociologia&Antropologia, Rio de Janeiro, v. 4. n. 2, p. 373-390, out. 2014. Dis-
ponível em: <http://revistappgsa.ifcs.ufrj.br/wp-content/ uploads/ 2015/05/4-ano4-v04n02_nathalie-heinich.
pdf>.
LAUXEN, Patrícia; ISSE, Silvane Fensterseifer. Contextos
��������������������������������������������������������������
da dança de rua: um pouco de História e práticas do-
centes. Revista Destaques Acadêmicos, CCHJ/Univates, Lajeado, a. 1, n. 2, p. 69-78, 2009. Disponível em: <http://
www.univates.br/revistas/index.php/destaques/arti cle/ viewFile/515/372>. Acesso em: 03 maio 2016.
MARQUES, Isabel A. Dançando na Escola. Revista MOTRIZ, UNIESP, Tupã/SP, v. 3, n. 1, p. 20-28, Junho/1997.
Disponível em: <http://www.esefap.edu.br/downloads/biblioteca/dan cando -na-escola-1254151985.pdf>.

551
Juventude, gênero e hip hop:
reflexões sobre arte e identidade
a partir de jovens mulheres rappers
Maria Natália Matias Rodrigues/ Jaileila de Araújo Menezes

INTRODUÇÃO

As questões levantadas no presente trabalho fazem parte de pesquisa realizada no âmbito do curso
de mestrado em Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco, onde buscamos discutir sobre
a vivência de jovens mulheres Rappers de Recife no que se refere às questões de juventude e gênero.
Para a presente discussão, enfatizaremos como o Movimento Hip Hop traz importantes mudanças
para a vida dessas jovens mulheres, o que indica que o engajamento artístico proporciona elementos
significativos para a construção de suas identidades.

Para estudar jovens mulheres, acessamos o Movimento Hip Hop por entendermos esse como um
movimento articulador de vivências juvenis; e, dentro dele, escolhemos trabalhar com o elemento
Rap. O Movimento Hip Hop, a música Rap e toda a arte engajada que envolve esse cenário possibilita
visibilidade para uma juventude que tem sido comumente marginalizada e excluída. Marília Spósito
(2000) indica que, entre as novas formas de participação social juvenil, a música Rap tem estado em
destaque, possibilitando a construção de identidades comuns, linguagens e códigos, formando gru-
pos e produzindo novas formas de compreensão da realidade.

Consideramos que, apesar de pouco visibilizadas, nas letras de Rap e nos eventos da cultura Hip Hop,
as mulheres têm estado presentes dentro do movimento, não só como consumidoras da cultura Hip
Hop, como acompanhantes dos homens participantes, mas trabalhando efetivamente na realização de
eventos e na produção dos elementos ligados ao Movimento, como Rappers, grafiteiras e/ou Bgirls e
contribuindo para a produção político-cultural do Hip Hop.

Nesse sentido, o estudo realizado é relevante por contribuir para as discussões sobre juventude e
gênero, a partir da vivência de jovens mulheres ligadas ao Movimento Hip Hop, pensando nos marca-
dores sociais e nos atravessamentos com relação à participação social via produção cultural.

552
1. SOBRE A JUVENTUDE HIP HOP

Pensar o campo da juventude como heterogêneo, implica também considerar as especificidades das
vivências juvenis. No presente estudo, optamos por dois recortes, um relacionado ao estilo de vida
juvenil, nesse caso, o Movimento Hip Hop; e o outro relacionado à categoria gênero, focando em mu-
lheres ligadas ao Movimento Hip Hop. Além desses dois, podemos ainda apontar um terceiro recorte
que é o elemento Rap. Assim, estudamos a juventude a partir de jovens mulheres Rappers.

Significativa parcela de jovens engajados politicamente se organiza em grupos e passa a identificar a


territorialidade das periferias urbanas como uma importante dimensão de seu reconhecimento so-
cial, o que colabora para uma compreensão crítica sobre suas condições de existência. No caso do Hip
Hop, a produção cultura via os elementos break, graffiti, e a expressão musical do Rap está perpassada
pelos valores de contestação e resistência à realidade de desigualdade social que marca a vida dos/das
jovens nos territórios de periferia (SOUSA, 2003).

O Movimento Hip Hop tem origem entre as décadas de 60 e 70 (do século XX), nos EUA, formado
principalmente por jovens negros e latinos. Esses jovens misturaram alguns estilos musicais e forma-
ram um movimento que incorpora expressões corporais e artísticas, que contém os elementos: Rap
(letra), break (dança), DJ (batida), graffiti (expressão plástica) e o conhecimento (elemento político).
Sob a influência do movimento negro da década de 1960 e da cultura de rua, o movimento Hip Hop se
constituiu como alternativa para os jovens das periferias, caracterizando-se como uma manifestação
político-cultural (COSTA & MENEZES, 2009).

Os ganhos da participação nesse movimento político-cultural nos levam a pensar em como as jovens
se beneficiam dos aprendizados ético-políticos para produzir transformações em suas próprias vidas
e na de sua comunidade (COSTA & MENEZES, 2009). Daí nosso interesse em investigar também
os projetos de vida das jovens, considerando aspectos de sua participação no Movimento Hip Hop
naquilo que informam sobre sua condição de juventude circunscrita a um campo de possibilidades
presente, mas também abertura de oportunidades para a construção de planos de futuro referencia-
dos nos aprendizados ético-políticos proporcionados por sua participação no Movimento Hip Hop.

2. PRESENÇA FEMININA NO HIP HOP

O Hip Hop é um movimento construído por práticas juvenis inseridas no espaço da rua. Não se apre-
senta apenas como uma proposta estética, mas principalmente enquanto arte engajada (SILVA, 1999).
O Hip Hop, enquanto movimento inserido no espaço da rua, coloca tensionamentos para a partici-
pação das jovens. Podemos pensar que participando do movimento ela sai do espaço privado da casa
e passa a frequentar mais o espaço público da rua, rompendo com a dicotomia público (masculino)/
privado (feminino).

Ocorre que romper com a barreira público/privado é, por si só, um desafio. No geral, a entrada em
um movimento de rua, eminentemente masculino, é dificultada pela própria família, que não vê com
bons olhos a inserção da jovem nesse contexto cultural. Não podemos deixar de considerar que a pre-
sença nas ruas das grandes cidades, marcadas pela violência, de fato, ameaça ainda mais as mulheres

553
por conta da cultura de violação sexual aos corpos femininos. De acordo com Lavinas (1997), não há
liberdade de circular na cidade para a grande maioria das jovens, “porque ‘desacompanhadas à noite
são mal vistas’ e ‘são mais ameaçadas por assaltos’. O tema da fragilidade física e da vulnerabilidade
sexual torna a alimentar essas respostas” (p. 37).

Quando as jovens conseguem ingressar no universo Hip Hop, a dicotomia público/privado no interior
do movimento exige enfrentamentos cotidianos, pois as ordens morais de sexo/gênero se presentifi-
cam das mais variadas formas: desigualdade de condições para participação em eventos e na ocupa-
ção de cargos de liderança, hegemonia dos códigos de honra masculinos, exercendo controle sobre
a entrada e a saída das jovens, bem como o controle sobre seus corpos, desvalorização da produção
cultural delas e, por vezes, estabelecimento de moedas de troca (favores sexuais) para a transmissão
das técnicas dos elementos, entre outros desafios (MENEZES & SOUZA, 2011). No caso das jovens
que escrevem letras de Rap, elas expressam questões sobre suas próprias vivências, tornando público
o que até então seria do âmbito privado, na tentativa de politizar questões existenciais relativas à con-
dição de ser mulher em uma sociedade hegemonicamente machista (MATSUNAGA, 2008).

De maneira geral, o Hip Hop se afirma como um movimento misto, no qual participam tanto homens
quanto mulheres, no entanto, configura-se como um espaço de reprodução da hegemonia masculina
existente na sociedade (FREIRE, 2010). Apesar disso, o movimento também pode se configurar como
um espaço de visibilidade e participação política das mulheres, que pode ser pensado e discutido
através do elemento Rap, entendendo-o como uma importante via de acesso à vivência das jovens
mulheres Rappers.

Partimos da hipótese de que a participação no Movimento Hip Hop e, mais especificamente, a par-
ticipação no elemento Rap abre possibilidades para que as jovens visibilizem questões de juventude
e gênero vividas por elas. Apostamos que as letras de Rap são uma das formas de as jovens mulheres
falarem de suas experiências, suas situações de vida e, assim, assumirem autoria sobre suas vozes e
vidas. Estudar as letras de Rap de jovens mulheres se torna relevante pela possibilidade de dar voz
a essas jovens, valorizando o pensamento e a experiência delas. Corroboramos com Rose (1994), ao
afirmar que através de suas letras as Rappers podem desafiar os discursos da esfera pública, particu-
larmente, os relacionados às questões de gênero.

3. METODOLOGIA

No contexto dessa investigação, utilizamos a abordagem qualitativa, que tem se firmado em pesquisas
no campo das Ciências Sociais e Humanas. Para Minayo e Sanches (1993), a abordagem qualitativa
entende a realidade social como um mundo de significados passível de investigação, sendo a lingua-
gem a matéria-prima dessa abordagem. Além disso, permite uma aproximação entre investigador/a
e participantes da pesquisa. Dentro do contexto da pesquisa qualitativa, optamos por utilizar uma
abordagem de inspiração feminista.

Foram utilizados diferentes instrumentos para a construção das informações: a observação regis-
trada em diário de campo de eventos do Movimento Hip Hop realizados na cidade de Recife, em
Pernambuco; entrevistas semiestruturadas com quatro jovens mulheres e análise de dez letras de Rap,

554
corroborando, assim, com os princípios de pluralidade metodológica das pesquisas qualitativas de
inspiração feminista.

O trabalho de coleta de dados em campo foi realizado durante os anos de 2011 e 2012. Todo o corpus
da pesquisa traz questões sobre juventude e gênero, que pretendemos discutir a partir dos objetivos
propostos na presente investigação. Especificamente, objetivamos: conhecer e problematizar a vi-
vência de jovens mulheres que praticam o elemento Rap naquilo que informam sobre marcadores
sociais de classe e gênero na circunscrição de suas vivências; analisar em uma perspectiva temporal
as repercussões da entrada no movimento hip hop para jovens mulheres, considerando o campo das
possibilidades subjetivas, políticas e culturais desse contexto; e examinar o conteúdo expresso na
produção musical (Rap) das jovens mulheres, naquilo que informa sobre as questões pertinentes às
suas experiências.

As pesquisas de inspiração feminista têm contribuído para a transformação social, o engajamento


político e dar voz aos sujeitos pesquisados, tematizando as desigualdades sociais. Foi a partir desses
pressupostos que procuramos trabalhar na presente pesquisa. Partimos da compreensão de que a vida
de cada um dos sujeitos é atravessada por diversos marcadores sociais que os posicionam na socieda-
de, no estabelecimento de suas relações sociais e na construção de suas vivências.

A vida das participantes dessa pesquisa não poderia ser diferente. Ser jovem, ser mulher, ser Ra-
pper, participar de um movimento político-cultural, ser pobre, ser negra, ser branca, ser moradora
de periferia, entre outros marcadores sociais, fazem parte da constituição de sua identidade. As
participantes diretas dessa pesquisa são quatro jovens mulheres, com idades entre 18 e 29 anos,
envolvidas no contexto do Movimento Hip Hop da Região Metropolitana do Recife, vinculadas ao
elemento Rap.

Nos discursos das mulheres entrevistadas, podemos perceber alguns marcadores que atravessam suas
vidas e as implicações que esses trazem nas suas escolhas, na construção de seus projetos de vida e nas
suas expectativas de futuro. Circular e produzir cultura em espaços predominantemente masculinos
como o Movimento Hip Hop parece não ser uma tarefa fácil, uma vez que algumas dificuldades se
apresentam em função das relações de gênero como campo expressivo das relações de poder.

4. QUESTÕES DE GÊNERO - SER MULHER NO HIP HOP

O Movimento Hip Hop tem sido caracterizado como um Movimento predominantemente masculino.
Há concordância entre as entrevistadas no que diz respeito não só à predominância quantitativa dos
homens, mas também à predominância de valores machistas dentro do Movimento Hip Hop. Esse
discurso de dominação masculina, implicitamente, acaba dando uma ideia de que até mesmo a entra-
da e a participação das mulheres só aconteceram porque foram permitidas pelos homens.

O discurso hegemônico que controla a presença das mulheres nos espaços públicos impõe perigos à
circulação das mulheres na rua, duvida da sua capacidade de realização das mesmas atividades que
os homens, regula a sexualidade feminina, diz que roupas as mulheres podem ou não podem usar e
impõe diversas dificuldades para a participação em movimentos, como o Hip Hop.

555
As participantes percebem as desigualdades de gênero, em certa medida, as questionam e até as iro-
nizam. No entanto, esses discursos hegemônicos de superioridade masculina são vistos com certa
naturalidade pelas participantes, o que acaba diminuindo as possibilidades de ações para mudança.
Há um discurso compartilhado de que a inserção das mulheres no Hip Hop ocorre através dos ho-
mens, ou por um interesse afetivo-sexual ou porque são companheiras/irmãs/amigas de homens que
já participam do Hip Hop.

Percebemos o quanto o discurso hegemônico fica enraizado nas falas das participantes. Spivak (2010),
ao discutir a condição de subalternidade, indica-nos que a representação do subalterno está atraves-
sada pela hierarquia dominante, ou seja, o discurso dominante fica enraizado na consciência do mais
fraco. Nesse sentido, podemos pensar o quanto os discursos e ações dessas mulheres são influencia-
dos pelas hierarquias machistas de nossa sociedade.

As dificuldades para permanência das mulheres no movimento parecem ser muitas e aliar outras ati-
vidades laborais com as atividades relacionadas à participação no movimento, como ensaios, shows,
participação em eventos também parece não ser fácil. Mesmo com as dificuldades, todas as entrevis-
tadas indicam que, de alguma, forma querem que o Hip Hop permaneça em suas vidas.

A participação feminina no Movimento tem aumentado e, atualmente, há uma mudança com relação
ao modo como as mulheres têm se apresentado. Elas têm reafirmado uma estética feminina através
das roupas (em oposição à estética masculina), têm reivindicado espaços de participação em eventos
e estão mais cientes das desigualdades de gênero que vivenciam, embora o enfrentamento às mesmas
ainda seja incipiente.

Duas entrevistadas indicam que, após um tempo de participação no movimento, perceberam que
algumas coisas elas só iriam conseguir se reivindicassem, se reclamassem e isso acabou fazendo com
que elas não fossem bem vistas por muitas pessoas dentro do Movimento. Parece-nos que a parti-
cipação feminina é bem-vinda e até incentivada pelos homens, desde que elas não questionem as
desigualdades de gênero, não ocupem espaços de liderança e destaque e não desafiem os discursos
hegemônicos relacionados ao gênero.

De forma geral, podemos perceber, através das entrevistadas, que a participação das mulheres no Hip
Hop, e especificamente no Rap, tem acontecido e crescido nos últimos anos, no entanto as dificuldades
para a participação e permanência delas são maiores quando comparadas às dificuldades vivenciadas
pelos homens. A relação entre homens e mulheres parece ser boa, até o momento em que as mulheres co-
meçam a questionar as relações desiguais, lutam pelos mesmos espaços de participação, adquirem certa
posição de destaque e liderança pela atividade que desenvolvem. A questão da regulação da sexualidade
feminina aparece bastante, tanto com relação ao número de relacionamentos afetivos que podem ter den-
tro do movimento, quanto à exibição do seu corpo no palco, que roupas podem ou não podem utilizar.

Refletimos que a inserção em um Movimento político-cultural, como o Hip Hop, aliada às questões de
pobreza, preconceito racial e desigualdades de gênero, possibilitou que as jovens mulheres construíssem
um olhar crítico sobre a situação de desigualdade na qual vivem e utilizassem o Rap para falar dessas
questões. No entanto, a incidência dos discursos hegemônicos faz com que, em algumas situações, elas

556
recorram “a letra” dos discursos dominantes, ora naturalizando as desigualdades de gênero, ora adotan-
do os princípios machistas para se autoafirmar ou mesmo avaliar o trabalho de outras mulheres.

5. O RAP PRODUZIDO POR MULHERES

Ao discutir as diferenças entre a escrita feminina e a escrita masculina, Richard (2002) argumenta que
quando não se considera questões de gênero na escrita, comumente, reforça-se o poder estabelecido
que considera a masculinidade como universal. Corroboramos com a autora que devemos levar em
conta as especificidades de uma escrita produzida por mulheres. Entendemos que a marca de gênero
na escrita se coloca como lugar de desafio e questionamentos de hegemonias discursivas. Essa marca
não diz de um modo homogêneo de escrita feminina, mas refere-se à presença das mulheres em um
contexto predominantemente masculino.

Essa discussão sobre a escrita feminina nos leva a pensar sobre o Rap produzido por mulheres e como
esse tipo de Rap tem se colocado no lugar de diferença com relação ao Rap produzido por homens. De
forma geral, todas as entrevistadas indicaram que o Rap é muito presente em suas vidas: tranquiliza,
instiga, traz novas ideias e aprendizados.

Com relação à temática dessas letras, uma das entrevistadas relata que fala sobre sentimentos diver-
sos, no geral, gosta muito de escrever sobre a vida, não a realidade, mas a sua visão – a mais positiva
possível – sobre a vida. Gosta mais dessa parte poética, do que da realidade. E, através das letras,
acredita ter a possibilidade de transformar a vida de quem escuta. Duas entrevistadas contam que a
maioria das músicas que fizeram são situações vivenciadas por elas, que aconteceram ao seu redor,
que já sentiram na pele ou que viram.

As entrevistadas contam que muitas pessoas depois que escutam as músicas vêm conversar com elas,
relatando que também vivenciaram situações como as descritas nas letras. Assim, apostamos que as
letras de Rap é uma das formas de as jovens mulheres falarem de suas experiências, suas situações de
vida e, assim, assumirem autoria sobre suas vozes e vidas. A música Rap pode se apresentar como ins-
trumento político de uma juventude excluída, dando visibilidade e poder de voz (ANDRADE, 1999).

Nas letras, podemos perceber, de forma geral, que todas as composições do álbum analisado trazem
debates sobre questões sociais que são atuais e importantes, e que como tais, parecem ser significa-
tivas nas vivências das Rappers e refletem tanto uma experiência pessoal quanto uma experiência
compartilhada por um coletivo.

As letras analisadas compõem um CD (composto por dez faixas musicais) de um grupo formado por
duas mulheres. O produto foi lançado em 2011, no Pátio de São Pedro, espaço de referência para as
expressões da cultura negra, localizado no centro da cidade do Recife. De forma geral, no processo de
análise, após transcrição e leitura flutuante das letras, estabelecemos eixos temáticos de discussão, a
partir dos objetivos específicos da pesquisa.

É interessante notar que na maioria das letras, em sete delas, os versos são escritos em primeira pessoa
e, ainda que a letra não esteja necessariamente falando da vida da Rapper, ao escrevê-la, ela parece

557
incorporar o personagem da história contada e escrever com as palavras dele. Entre os temas pre-
sentes nas letras, podemos destacar dois que parecem ser mais significativos, uma vez que aparecem
repetidas vezes em diferentes letras: gênero e raça. As questões de raça podem ser entendidas através
da forte relação do movimento Hip Hop com o movimento negro.

No que se refere às questões de gênero, a temática da mulher perpassa a maioria das letras e as mu-
lheres aparecem de diferentes formas: mulher apaixonada, mulher que luta por diminuição das desi-
gualdades de gênero, mulher-mãe, mulher vítima de violências de gênero.

As temáticas trabalhadas nas letras nos fazem refletir sobre o modo de como as mulheres utilizam sua
produção para falar de suas experiências, levando-nos a pensar se essa não seria a principal caracte-
rística de uma escrita feminina. Nesse contexto, os marcadores sociais – classe, raça, gênero, geração
– presentes em suas vidas terão bastante espaço em suas composições.

Assim, podemos concluir, enfatizando que, como nos indica Barreto (2004), o Rap é uma importante
via de acesso aos sentidos que essas jovens atribuem às suas vidas. Como podemos perceber nas letras
analisadas, são trazidas questões fundamentais para o entendimento da vivência dessas jovens e do
envolvimento em torno do movimento Hip Hop.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse cenário, percebemos o Movimento Hip Hop como um movimento articulador de vivências
juvenis; no caso de nossas jovens mulheres, ele é uma referência, é responsável por mudanças signifi-
cativas em suas vidas, tem sido um veículo potencializador de ações de mudanças sociais e elemento
que contribui para a construção de suas identidades.

Para essas jovens, o Movimento Hip Hop se adjetiva como vida, como aquilo que elas necessitam para
viver, no entanto, ficam muito divididas entre o desejo de dedicação ao movimento e aos elementos, em
especial o Rap e o fato de não conseguirem viver dessa arte. A produção cultural via Rap não tem sido
um trabalho que as remunere o suficiente para pagar despesas da vida cotidiana e então elas precisam de
outro trabalho para sobreviver. Nesse cenário, elas vivem no limite entre o viver e o sobreviver.

A presença das mulheres no movimento tem desestabilizado a dicotomia público/privado; as ques-


tões de gênero se apresentam como pontos de tensão entre os participantes do Movimento, uma
vez que, por ser um movimento caracterizado como da rua, causa estranhamento a participação das
mulheres, já que a elas foi historicamente destinado o espaço privado do lar. Além disso, no contexto
do Movimento, as mulheres não são apenas público receptor, mas são ativas produtoras culturais que
contribuem de forma significativa para a construção da cultura Hip Hop.

As questões levantadas na construção desta pesquisa visibilizam nossas reflexões sobre as expressões
do poder, das desigualdades e opressões presentes na nossa sociedade. Pautada pelo compromisso
ético-político, entendemos que tais reflexões contribuem para pensarmos sobre como nossa socieda-
de tem se estruturado e quais possibilidades e limites têm circunscrito a vivência de jovens mulheres
Rappers.

558
REFERÊNCIAS

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559
O ensino de arte e a festa popular
Edite Colares

INTRODUÇÃO

Discutir e entender o universo da festa popular e o processo de decadência pelo qual passa hoje suas
manifestações na vida comunitária, buscando uma articulação possível com o ensino de arte, é a
intenção primeira deste estudo. Toda mudança no caráter da festa acompanha as alterações que a
sociedade vem passando no sentido da sua racionalização técnica, informatização e virtualidade nos
intercâmbios atuais.

Os instrumentos e as técnicas modificaram o modo de o homem se relacionar, e diferenciam enor-


memente as pessoas com base no poder econômico ou de origem de classe. Hoje, cada vez mais, os
pobres são mais pobres e os ricos mais ricos, e este fosso social distingue e segrega em guetos grupos
sociais distintos. Mesmo as festas comunitárias vão, aos poucos, modificando-se e assumindo uma
feição econômica e comercial.

A indústria cultural absorve a essência da arte popular e a padroniza, oferecendo produtos para dife-
rentes faixas de mercado. Produtos mais elaborados para uma elite, e um produto, para o trabalhador,
simplificado e apelativo, voltado para as camadas menos aquinhoadas.

Este avanço da estandardização da cultura, transformando-a em estímulo aos nossos instintos, desu-
manizando-nos, não é recente: ganha espaço há décadas. Em Tempos Cruzados: um estudo interpre-
tativo da cultura portuguesa, Silva, já na década de 1990 do século XX, alertava sobre a privatização
de atividades, aliada às transformações nos modos técnicos e culturais como base da decadência,
generalizante, das festas de trabalho, das desfolhadas, das vidimas, etc. (1994, p. 463).

Em Fortaleza, no Ceará, os festejos de São João se padronizaram e se desenraizaram. Os aspectos mais


tradicionais destas manifestações, desde os alimentos, passando por adereços e, em especial, o figuri-
no, estilizaram-se, perdendo elementos fundamentais de identificação destes festejos.

Seja pelo poder público ou privado, a espetacularização da festa, por si só, já é superficializadora e
converte tudo em mercadoria.

560
As músicas, letras e melodias se simplificam, tornando-se repetitivas. A regressão do gosto musical
proposto por Adorno é aqui claramente perceptiva. As músicas de São João eram bem diferentes das
que são hoje veiculadas, e o refinamento musical de uma Asa Branca humilha, digamos assim, uma
Assim você me mata. A diferença é gritante. Aos nossos jovens, é imposto, pela mídia, um padrão
musical empobrecido e quase pornofônico. Assim como a imagem das festas populares brasileiras são
exportadas, dando uma visão destorcida de nossas manifestações populares, homogeneizando tudo,
como presenciamos inúmeras vezes no Porto-PT, na noite de São João, quando ouvimos, repetidas
vezes, o hino à mediocridade, cantado por Michel Teló: “Assim Você me Mata”.

É um produto global. Ouve-se aqui e em Portugal. É o produto exportação da indústria cultural bra-
sileira. Que lástima! Há um produto artístico-cultural brasileiro imensamente rico que, muitas vezes,
não nos chega pela mídia. Além de práticas alternativas de criação cultural feitas em ONGs, institutos
e outros, que só chegam a poucos.

Mesmo havendo um ato de resistência, que faz instituições de cultura irem movimentando ações inver-
sas, a indústria cultural e a perda de patrimônio cultural avançam a passos largos. Apenas como registro,
referimo-nos agora ao aluá, bebida típica de festejos juninos cearense, que quase não se encontra mais,
hoje, nas festas de São João. Assim, no Porto, os alhos-porros, que eram usados como bênçãos para a
população, também não são mais vistos em abundância, como eram antigamente. Estas perdas são,
algumas vezes, irreparáveis para o patrimônio. Porém, assistimos a uma resistência de pessoas e institui-
ções preocupadas com a manutenção e salvaguarda do patrimônio imaterial. Pudemos encontrar alguns
exemplos, como é o caso da festa em Valongo-PT, as Bugiadas, que vêm se fortalecendo nos últimos
anos, por iniciativa de pesquisadores e do poder público municipal. Outro caso que registramos foi o
resgate dos Diabos, em Bragança, incentivado pela Sociedade da Máscara Ibérica.

Ressaltamos, assim, a importância das instituições educativas e culturais de se imbuírem da tarefa


de transmissão cultural às novas gerações de nossos festejos e seu multifacetário papel sociocultural,
reunindo elementos religiosos, alimentares, de trabalho, celebrativos e de coesão comunitária.

Destacamos dois aspectos da maior relevância para este estudo da festa, que são: o processo criativo
que a festa evoca e a sua dimensão utópica, própria dos que buscam a revolução das mentalidades.
O estímulo à criatividade, proporcionado pela festa, é evidente, pois não acontece sem a iniciativa de
seus organizadores que mobilizam toda uma comunidade no sentido de celebrar diferentes motivos,
mas que são unificadores da coletividade. Todas as linguagens artísticas estão, aqui, envolvidas, pois
são através das danças, músicas, atuações e visualidades que se expressam os sentidos da festa.

O senso de coletividade e a colaboração mútua tornam possíveis, sempre com beleza e maestria, repre-
sentar o conjunto das criatividades, imaginações e habilidades das pessoas de dada comunidade ao ex-
pressar as diferentes temáticas motivadoras da festa. Independentemente de sua motivação, o processo
criativo da festa tem sempre um componente lúdico e, ao mesmo tempo, conflituoso. Lúdico, porque, na
estética da festa, o riso e a brincadeira são indispensáveis, já que a inventividade expressiva da festa pas-
sa, invariavelmente, pela brincadeira, pelo bom-humor, pela pilhéria, pelo sarcasmo da população. Farta
da exploração e da opressão, sobra-lhe ridicularizar os donos do poder que não mais a engana. Sempre
está presente uma manifestação de indignação criativa contra o poder instituído na festa popular.

561
Estão implícitos à festa popular, o caráter classista das sociedades e o espaço que ela representa de
liberação dos grilhões da opressão e da contestação de valores ultrapassados. Vendo desta forma, é
perfeitamente perceptivo, como afirma Pierre Sanchis (1992, p. 27), que “o popular faz sempre refe-
rência a uma oposição que lhe é estrutural”. A criatividade coletiva da festa popular, corporificada no
movimento das ruas, opõe-se, em forma e conteúdo, aos produtos promovidos pela indústria cultural.
Esta força-motriz da festa, que a faz promover invenções e criações na música, dança, teatro e artes
visuais, gerando manifestação viva da cultura de um povo que se reúne para celebrar, transverter,
modificar o que já parece estabelecido, detém um nível histórico de necessária permanência. Esta
constatação nos faz apontar para a festa popular como patrimônio imaterial da humanidade, que deve
ser transmitido pela escola.

Indubitavelmente, como afirma Pierre Sanchis, “a festa tende a tornar-se impossível nas sociedades
que são as nossas”. A sociedade, baseadas na organização e na maximização da produção e do lucro,
caminha no sentido contrário ao da festa, enquanto expressão comum de uma coletividade. É cultu-
ralmente inverso ao proposto pelo universo da festa coletiva, comunitária que exala comunhão.

É interessante tocar na palavra comunhão, que nos remete ao preceito cristão e, portanto, direciona
a religiosidade, para a Igreja católica, o que não é uma verdade absoluta, mas é uma predominância
nas festas comunitárias. Embora muitos temas sejam religiosos, a festa tem um caráter contestatório,
profano, que lhe é inerente, que faz o religioso aqui, também, ser transgressor. Um bom exemplo é o
elo entre o profano e o religioso, na Festa do Pau da Bandeira, em Barbalha no Ceará. O que nos leva
a crer que, mesmo a festa religiosa, alimenta uma dimensão revolucionária.

É importante perceber que a festa é refratária aos sistemas constituídos, forçando a ruptura, a mudan-
ça a ela inerentes. O poder contraideológico da festa, de se manifestar contra a ordem dominante, é
necessário ao perceber que nas festas há relações de poder, material ou simbólico, que estruturam a
sociedade capitalista que visa a domesticação dos dominados. A festa popular é um importante mo-
bilizador social da classe subalterna que nada interessa ao status quo.

O ápice da festa popular, na realidade, está em pôr em jogo questões fundamentais que nos fazem
pensar a respeito deste objeto empírico, um tanto restrito, mas que problematiza o monopólio da in-
dústria cultural e da mídia, assim como toda forma de poder, mesmo o da Igreja, na procura de uma
situação coletiva de abertura expansiva ao novo, ao feliz, à participação.

1. A ESPETACULARIZAÇÃO DAS TRADIÇÕES NA FESTA DE SÃO JOÃO

A reflexão que trazemos aqui, funda-se não só em estudos bibliográfico dos autores que abordaram o
tema, mas em pesquisa de campo que realizamos numa comparação entre a festa de São João vivenciada
no Porto, em Portugal, e em Fortaleza, no Brasil. No Porto, os festejos joaninos são considerados pela
população em geral os mais tradicionais e são ansiosamente aguardados. Nessa festa, o Porto vê radica-
do o mais importante momento de celebração da vida comunitária, e as ruas da cidade são tomadas por
todos. É uma noite, 23 de junho, na qual se mantém vigília, pois o foguetório não deixa a cidade dormir.
Assim, tal manifestação mantém, ainda hoje, práticas que estão enraizadas no passado, entendidas como
fruição coletiva de uma ação cultural que alimenta a identidade e o patrimônio cultural desse povo.

562
Mas, ao contrário do que a maioria das pessoas possa pensar, os fundamentos de tal prática popular
têm origem naturalística anteriores, como afirma Coelho (1993), quando diz que “os costumes popu-
lares têm suas raízes nos velhos cultos naturalísticos” (p. 274). Dessa maneira, práticas como, acender
fogueiras, que ainda se pode assistir nas comemorações a São João, bem como o costume de pular
fogueiras, remontam à crença ancestral de que assim se obtém influências benéficas sobre a saúde e
se esconjuram malefícios.

Na noite de São João, as pessoas ficam fora de casa até alta madrugada, segundo Coelho (1993), “a fim
de apanhar as orvalhadas, isto é, o orvalho sagrado desta noite que dá vida para longos anos...” (p. 311).
Isso faz parte desse conjunto de tradições que se perde nas brumas do tempo e que dá sentido à vida.

É essencial perceber que as festas, ditas hoje religiosas, têm origem nas manifestações relativas ao
vínculo do homem à natureza. É caso das festas joaninas, que estabelecem relação com o solstício de
verão, pois que, nas chamas da fogueira, evidencia-se o íntimo laço que as ligam ao símbolo de origem
representativo do sol, já presente nos cultos pagãos.

2. CASCATAS

A cascata é um artesanato incrível, do ponto de vista plástico e simbólico. Por um lado, realiza
a criação de peças dos santos João, Antônio e Pedro. Por outro, descreve, materialmente, a vida
cotidiana em miniatura, reproduzindo situações de cortejo joanino. O cortejo é representado com
o uso de diversos materiais que também compõem a peça que miniaturiza uma procissão a Santo
Antônio, São João e São Pedro. A cascata é uma representação de cortejos e rusgas, que eram práti-
cas celebrativas comuns, antigamente, em todo Portugal. Os cortejos são caminhadas em devoção
ao santo, seguindo-se de andor, neste caso de Santo Antônio, São João e São Pedro. É ocasião de
festa, que envolve muitos símbolos da vida coletiva. No caso da festa religiosa, a fé é um compo-
nente fortíssimo na formação do fato festivo. Mas há todo um conjunto de relações e contradições,
como a oposição religiosa frente ao universo profano, entrelaçando-se para abranger as demandas
de dada sociedade.

Para entender um pouco mais sobre a criação de cascatas na prática festiva de São João, entrevistamos
um artesão, no dia 14/06/2013 – o Sr. Felipe Oliveira – que há muito confecciona cascatas na cidade
do Porto. Marcamos com o senhor Felipe Oliveira na Junta de Freguesia de Campanhã. Ao chegar,
logo ao entrar no hall, encontramos uma enorme cascata feita pelo senhor Felipe, que nos convidou
para uma sala de estar, onde realizamos uma entrevista semiestruturada.

Ao indagar: 1. O que são cascatas? Obtive a seguinte definição:

São miniaturas de cortejos de São João (São Pedro e Santo Antônio) que representam a passagem dos
santos pelo Porto. Já é uma tradição muito antiga que ressalta os santos populares. Outra tradição que
as cascatas representam são as rusgas, que são cortejos nos quais as comunidades carregam máscaras
e imagens dos santos com brincadeiras festivas.

Então, quisemos saber: 2. Como se preserva esta tradição?

563
Quanto a preservação isso acontece passando de pai para filho, meus bisavós já faziam cascatas.
Também a prefeitura, através da câmara, realiza um concurso de cascata, onde as pessoas realizam
cascatas e concorrem entre si. Os concursos da câmara já acontecem desde a época dos meus bisavós.
A câmara constitui um júri que classifica as cascatas premiando os três primeiros lugares em duas
categorias: maiores de 15 anos e menores de 15 anos. Há também concursos de montras, que são
cascatas expostas em vitrines, e de quadras populares dedicadas a São João. Na noite de São João, as
quadras são publicadas no Diário de Notícias com a divulgação da classificação.

Quis saber: 3. A escola participa, atualmente, destas tradições? “As escolas, nos últimos anos, não têm
participado do concurso ou na realização das cascatas em virtude do final do ano letivo”.

Repete-se aqui, na festa de São João, o que percebemos também em outras manifestações: a au-
sência da escola numa participação e preservação de saberes que constituem a identidade cultural.
O fato de acontecer no período de férias, parece-nos irrelevante, uma vez que esta participação já
aconteceu, pois, para preparar quadras, fazer modelagem ou outras criações com motivo festivo
de São João, pode-se fazer bem antes. Ir elaborando e participando de forma mais efetiva na vida
comunitária.

O período joanino no Porto é muito rico em manifestações do universo tradicional. Outra tradição
observamos ao passar pelas ruas, pois se encontram, nas calçadas, muitas pessoas vendendo man-
jericos em pequenos jarrinhos. Uma planta que tem uma forma arredondada e de suave olor. É de
conhecimento geral que não se deve cheirá-la diretamente e, sim, colocar as mãos nas folhas para, en-
tão, aspirar-lhe o perfume impregnado na pele das mãos. Neste período, são acompanhados de uma
plaquinha que vem fincada na terra com uma quadra em homenagem a São João. Como exemplo,
podemos citar a seguinte:

Anda o povo contente


Com o manjerico na mão
É uma imensa alegria
Na noite de São João.

Também, flanando pelas vias, é comum encontrar cascatas nas vitrines das lojas, miniaturas belíssi-
mas da procissão a São João, por todo o centro comercial.

Na véspera de São João, a cidade do Porto se engalana toda e espera ansiosamente o ponto alto da
festa, que são os fogos de artifício. À meia-noite, dá-se o foguetório na ribeira e parece que toda
cidade vai assisti-lo. São inúmeras pessoas caminhando pela ribeira, trazendo à mão alho-porro
ou martelinhos de plásticos para baterem na cabeça uns dos outros (hoje, os martelinhos subs-
tituem, quase na totalidade, os ramos de alho-porro e ervas santas que eram usados tipicamente
para abençoar ou livrar do mal as pessoas, como que para abençoá-las). Caminham de um lado
para o outro e muitas churrasqueiras são postas nas ruas para assar sardinhas, o que também faz
parte da tradição. Em muitos lugares da cidade, as pessoas montam caixas de som, ouvem música
e dançam em grupos de amigos. Também são levantados palcos, em pontos estratégicos da cida-
de, onde se apresentam artistas locais, bem como dançam em muitos pontos da cidade ao som de
conjuntos musicais.

564
Em relação ao tipo de música que se ouve, esta, na maioria das vezes, não tem nada de tradicional,
pois se ouvem músicas produzidas pela indústria cultural e de qualidade artística duvidosa, que os
portugueses chamam de música pimba.

3. FESTA DE SÃO JOÃO EM FORTALEZA

A festa junina no nordeste do Brasil e, em especial, no Ceará, é muito intensa e envolvente. O Santo
Antônio do Pau da Bandeira, no Crato, por exemplo, é uma manifestação de fé no Santo, que é re-
presentado no empenho para localizar o maior tronco de árvore a ser carregado pelas ruas da cidade.

Os ritmos são forró, marchas e o baião, embalados ao som das sanfonas e triângulos, originalmen-
te, mas, nos dias atuais, violas e guitarras, dentre outros instrumentos, começam a se integrar nesta
musicalidade nordestina. A diluição da prática tradicional encontra toda uma oferta oposta com os
ritmos elétricos da indústria cultural. O que hoje prolifera em Fortaleza são os festivais de quadrilhas.

Há décadas, interditar ruas e fazer festas de São João comunitárias eram situações comuns, que hoje
já quase não se verificam, a não ser em bairros bem periféricos da cidade. A grande urbe em que se
transformou Fortaleza, com seu intenso problema de locomoção, impede que as ruas possam ser
utilizadas como palco de brincadeiras e festas comunitárias. O modelo de urbanização vertical e de
condomínios fechados também não favorece o convívio aberto.

Por outro lado, as escolas já pouco promovem festas de São João. Os casamentos matutos já quase não
são realizados, como representação e, nos festivais, as danças tornaram-se paródias de si mesmas. As
roupas são muito estilizadas, conferindo um ar de artificialidade inerente à moda e à indústria cultural.

Exacerbam-se nos brilhos e adereços, destacando características que não são próprias do homem do
campo, ao qual procuram simbolizar. Antigamente, bastavam uma sanfona, um triângulo e uma za-
bumba e já se tinha o suficiente para um bom arraial: festa junina até não acabar. Noites que transcor-
rem em plena alegria, onde se saboreia pratos típicos deste nordeste brasileiro, sofrido, porém, alegre.
Alegria, sim, do alimento e da fartura de sabores, de petiscos de milho, tapiocas, bolos, grudes etc. A
fartura à mesa é bem característico deste festejo.

No entanto, a festa de São João comunitária se rendeu aos imperativos do mercado e o patrocínio
de festivais homogeneízam a produção de quadrilhas, já muito estilizadas, e para apresentação a um
público curioso. No formato de espetáculo, os trechos teatrais reduziram-se ou desapareceram para
se adequarem à montagem do espetáculo.

As roupas são custeadas pelos próprios participantes das quadrilhas que se preparam para con-
correrem entre si. Um quê de competitividade, no lugar da solidariedade, domina o espírito dos
festivais. Recentemente, em alguns dias de junho de 2014, assistimos ao festival do Dragão do Mar,
Centro de Arte e Cultura. A plateia, sentada, assiste a todas as quadrilhas. Completamente dife-
rente desse perfil é viver um São João numa dada comunidade do Ceará. Presenciar uma festa de
São João numa comunidade é apreciar uma mesa farta e um espaço para o forró autêntico, num
verdadeiro arraial.

565
O nosso forró, mantido no gênero autêntico, tem como base a sanfona, acompanhada de triângulo
e do zabumba, e uma música temática que canta as dificuldades da vida no sertão nordestino. Luiz
Gonzaga, seu maior expoente, cantava como ninguém as agruras, as alegrias, a paixão pelo sertão,
terra seca, mas temperada. Como expressa em Asa Branca:

Quando olhei a terra ardendo


Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu
Porque tamanha judiação.

Estas práticas do homem do interior, de cantar sua terra, suas tristezas e alegrias, já se ouvem cada
vez menos. Porque esta é uma realidade de populações carentes, sem poder aquisitivo, não gera lucro,
não interessa. A experiência da vivência coletiva de festas na comunidade não se adéqua ao modelo
das indústrias de entretenimento. São festas pequenas, onde se encontra uma coletividade, unida para
festejar a colheita e dar graças a São João.

A dinâmica do mercado exige grande público, padroniza gostos, mentalidades e comportamentos,


com o único intuito de mais e mais vender entradas, CDs e variados produtos, distorcendo, na própria
raiz, o sentido cerimonioso e festivo do bem cultural, oferecendo uma festa em tamanho gigantesco,
mas na qual ninguém se reconhece. Os festivais são uma modalidade desses formatos comerciais de
agenciamento da festa e que hoje assumem, prioritariamente, a manutenção das quadrilhas juninas
em Fortaleza como um produto mais comercial. Esta constatação e conclusão se devem ao resultado
de entrevistas com professores de Fortaleza, nas quais todos se referem aos festivais promovidos nos
bairros.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O observador mais atento dar-se-á conta da alteração do caráter da festa que, pouco a pouco, deixa de
representar a vida comunitária, e passa a explorar o divertimento como produto de mercado. A cul-
tura do entretenimento, da diversão mediática são a tônica nos dias de hoje, enquanto prática festiva.
Fica cada vez mais difícil encontrar festas de São João autênticas, nos moldes da comunidade reunida.
À normatização, à padronização foi suprimindo a festa comunitária em festivais de quadrilhas, foi ao
que se reduziram as manifestações juninas em Fortaleza, reduziram parte significativa dos festejos.
Os costumes de brincadeiras, como a representação do casamento, os balões, as fogueiras, os pratos
típicos e muitas outras facetas desta comemoração vão, aos poucos, se diluindo.

No Porto ou em Fortaleza, os festejos de São João se revestem de uma roupagem do divertimento sem
pretensões a nada mais enraizado. Lá, substituem-se os alhos-porros por martelinhos plásticos, des-
virtuando o sentido e transformando tudo em mercadoria; aqui as quadrilhas são produtos culturais
prontos a serem consumidos por um ávido mercado.

Em Portugal, no entanto, notamos uma preocupação com o patrimônio cultural e a memória, bas-
tante significativa. Os concursos de quadras, de cascatas e a unanimidade da festa, com foguetório, na
noite de São João, são algumas das estratégias de manutenção desta tradição pela cidade.

566
Em Fortaleza, a nossa diminuta valorização da cultura e da arte se manifesta em uma despreocupação
dos setores responsáveis pela manutenção do patrimônio cultural. No ano de 2014, não notamos ne-
nhuma intervenção na rotina urbana, com atividades relativas às festas juninas, a não ser os festivais
de quadrilha. É deprimente constatar que não há envolvimento sério dos responsáveis por manter
nosso patrimônio imaterial.

Mesmo a festa de São João, a mais tradicional, não é suficientemente valorizada para ganhar o status
de conteúdo escolar, já que não houve grandes referências pelas escolas, a não ser cedendo espaços
físicos para ensaios de quadrilhas de festival.

Enche-nos de pesar este desrespeito aos bens culturais que nos unem, mantendo uma cidade com
elementos unificadores, com vínculos, com identidade. Vemos, em Fortaleza, uma cidade que sofre
de um desenlace das pessoas com a comunidade. Parece que não a vemos como nossa, mas como
terra de ninguém.

Como já afirmamos anteriormente, a festa popular tradicional não é um produto comercial suficien-
temente atraente para a indústria do entretenimento, nem para o poder público, do ponto de vista
político/eleitoral. Está integrado ao desejo de cultura e arte das populações. Além de as pessoas se tor-
narem cada vez mais individualistas na sociedade atual, há aspectos que, conjuntamente, justificam
um esvaziamento dos festejos de São João.

Como nos ensina Adorno, em Dialética do Esclarecimento: “A maldição do progresso irrefreável é a


irrefreável regressão” (1947, p. 20). Quanto mais sofisticada uma sociedade, mais empobrecida se tor-
nam suas vivências e maior o isolamento da sua coletividade, pois a indústria da diversão transforma
a todos em meros e passivos consumidores acríticos.

O princípio da diversão é exatamente um estado de letargia, que nos anestesia do esforço do trabalho
e, portanto, destrói tudo que seja mais que entretenimento. O espectador não atende a nenhum inte-
resse próprio ou comunitário, mas tão somente absorve o que é oferecido, sendo o lazer uma negação
da sua essência humana e de sua capacidade criativa.

A complexa sociedade capitalista, que se pretende global, prescreve, como numa medicação paliativa,
doses de prazer fraudulento a amortecer nossa capacidade criativa e a verdadeira alegria que a cultura
pode proporcionar, enquanto prática de resistência à homogeneização e desenraizamento, função
inevitável do processo artístico e cultural de refletir sobre a limitação do real, numa projeção utópica
de um mundo solidário e criativo.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013.
______. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
COELHO, Adolfo. Festas, costumes e outros materiais para uma Etnologia de Portugal. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1993.

567
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade Pessoal. Oeiras/PT: Celta Editora, 1997.
LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo. Uma radiografia do nosso tempo e de nossa cultura. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2013.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.
SANCHIS, Pierre. Arraial: Festa de um povo. As romarias portuguesas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.
SILVA, Augusto Santos. Tempos cruzados – um Estudo Interpretativo da Cultura Popular. Porto/PT: Edições
Afrontamento, 1994.

568
Comes e contos: um resgate
da sinestesia culinária
Gabriela Borba de Lima/ Thiago Luiz de Souza e Silva

INTRODUÇÃO

Durante a Segunda Guerra Mundial, inicia-se um processo que marca para sempre o hábito alimentar
do ocidente e do mundo – a industrialização de alimentos – a fim de agilizar e aumentar a durabilidade
da produção para suprir os campos de batalha. As mulheres, responsáveis pela gestão do lar, começam
a trabalhar fora de casa. Assim, têm menos tempo para cozinhar. Desta forma, os alimentos precisavam
ser de preparo rápido, fato que levou as pessoas a consumirem cada vez mais produtos industrializados.

Mais do que um momento para saciar uma necessidade biológica, o comer deve ser pensado como
algo prazeroso tanto para quem o elabora quanto para quem o consome. Esse prazer nos leva a pen-
sar a alimentação de maneira lúdica e formativa, como memória coletiva, que nos transporta para a
primeira infância, onde a comida era também brinquedo. Se existe brinquedo, existe brincadeira. E o
que é o brincar se não a primeira forma que encontramos de aprender sobre o mundo? As definições
que hora trazemos cotejam com as defendidas por Sanny Rosa, onde ela fala que, “Por todo seu poten-
cial criativo e pela abertura que proporciona à exploração do real como um campo de possibilidades
do viver e do conhecer é que podemos afirmar, sem medo de incorrer em erro, que brincar é coisa
séria!” (ROSA, 2010. p. 54).

Acreditamos que o brincar, como forma de expressão desse potencial criativo, acompanha-nos (ou
deveria) durante toda a nossa vida. Ao longo do tempo, adotamos outros nomes para estes momen-
tos, num esforço de negar a brincadeira como parte da vida adulta.

Além disso, pautados no discurso de Gilberto Freyre no Manifesto Regionalista de 1926, onde “[...]
toda essa tradição está em declínio ou, pelo menos, em crise, no Nordeste. E uma cozinha em crise
significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se” (FREYRE, 1955), e na
ideia de consumo sustentável ao pensar numa melhoria da qualidade de vida, discutiu-se a retomada
da tradição alimentar, transmitida oralmente, capaz de despertar sensações e lembranças. Para que
pudéssemos, assim, compreender além dos saberes da produção alimentar: pensar nas características
humanas e artísticas dentro dessa cozinha.

569
Ao perceber a carência dessa cozinha tradicional, o “Comes e Contos” foi pensado como um projeto
educativo que visa associar o acervo bibliográfico e iconográfico do Instituto Ricardo Brennand ao
resgate da cultura da cozinha através de sabores, contos e debates sócio-históricos.

1 SELF-SERVICE PAJÉ

No mês de setembro de 2015, sobre a regência do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus), realizou-se
a “9ª Primavera de Museus”, cujo tema foi “Museus e Memórias Indígenas”.

Para esta edição, foram convidados, sobre a tutoria da Professora Dr.ª Rozélia Bezerra, alunos da dis-
ciplina de “História da Alimentação no Brasil”, do curso de Bacharelado em Gastronomia e Segurança
Alimentar, e da disciplina de “Laboratório de Humanidades: encontros e debates para a formação do
professor de História”, do curso de Licenciatura em História, ambos da UFRPE (Universidade Federal
Rural de Pernambuco). Além destes, foram recebidos quatro participantes do “VegFest Brasil 2015”,
realizado na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), no mesmo período em que aconteceram
as atividades da 9ª Primavera de Museus no IRB (Instituto Ricardo Brennand). Ao total, estiveram
presentes cerca de cinquenta participantes.

Figura 1. Acolhimento dos participantes no auditório do IRB


Fonte: Arquivo Ação Educativa / IRB

Começamos com uma breve apresentação do projeto no auditório da Pinacoteca do IRB. Em seguida,
os participantes foram conduzidos até o acesso externo da Biblioteca, onde, convidados a sentar em
esteiras de palha sobre a grama do jardim, formaram uma roda para ouvir a primeira história, “O
comprador de Sonhos” (MATOS, 2009. p. 11), da tradição oral mexicana, que fala de como um índio
das serras mexicanas, Agapito, fez voltar a brotar o milho na sua aldeia.

570
Figura 2. Thiago Luiz
contando a história
“O Comprador de
Sonhos”.
Fonte: Arquivo Ação
Educativa / IRB

Posteriormente, foi trazido para a roda o debate sobre as funções das ervas. Quando se pensa na
“unidade funcional, valendo, englobadamente, a nutrição”, Câmara Cascudo (1967, p. 140), fala-se
do alimento e da tentativa de evitar doenças por contágio através da água insalubre, por vezes rica
em determinado tipos de “minérios” causadores de cálculos, e que se torna remédio, através do seu
cozimento com frutos, folhas, caules e raízes, como citado em Von Martius (1934).

Versados no desafio de promover algo diferente ao se tratar de alimentação indígena, pensamos em


uma abordagem líquida, já que

A sede é mais mortal do que a fome. Sem comida, você poderia sobreviver por algumas semanas,
mas sem bebida teria sorte se durasse alguns dias. Somente o ato de respirar é mais importante. Há
dezenas de milhares de anos, os primeiros homens, que circulavam em pequenos bandos, tinham de
ficar perto de rios, correntes e lagos a fim de garantir um suprimento adequado de água fresca, já que
não havia um modo prático de armazenar ou carregar a água. A sua disponibilidade restringiu e de-
terminou o progresso da humanidade. Desde então, as bebidas continuaram a moldar nossa história.
(STANDAGE, 2005. p. 9).

E no caso das ervas, possuem duplo papel: O de condimentar os moquéns215, para preservar o ali-
mento, afinal, até a chegada dos europeus, não se usava sal nem açúcar, só ervas e, no máximo, mel de
abelhas; e o de remédio, com a infusão em água quente (chá) e com o preparo de unguentos216.

215. Grelha de paus sobre a brasa para colocar peixe ou carne para assar ou secar.
216. Medicamento utilizado sob a forma de papa, extraído de plantas, gorduras animais ou resíduos minerais, que se aplica sobre alguma
parte do corpo dolorida ou inflamada.

571
Ao pensar no uso de ervas como remédio, automaticamente nos vêm à mente duas imagens: a de um
ancião, fonte de conhecimento adquirido ao longo da vida, e um Xamã, mistura de médico e feiticeiro
tribal, cuja

[...] tarefa é convocar espíritos capazes erradicar o mal. Para isso ele passa por um treinamento longo
e rigoroso, com prolongada abstinência sexual e alimentar, aprende as canções xamanísticas e utiliza
plantas com substâncias alucinógenas que são chamarizes para os espíritos capazes de combater a
doença. (SCLIAR, 2002. p. 14-15)

No Brasil indígena, ambas as figuras convergem na imagem do Pajé, cuja função é tanto conduzir
rituais da aldeia quanto os ensinar aos mais novos, tudo através da oralidade e da prática cotidiana.

Figura 3. Xamã mostra objeto supostamente retirado do corpo


de uma pessoa doente e que era – supostamente – a causa de seu
sofrimento.217.
Fonte: Moacyr Scliar (2002, p.15)218.

Mas nem só os nativos eram dominantes nas práticas mágicas e conhecimentos da medicina natural;
os africanos, junto com os mestiços, foram os grandes curandeiros do Brasil colonial, com seus

[...] Chás, mezinhas, rezas, feitiços, benzeduras, procedimentos rituais, interdições variadas faziam
parte das curas que eram – inutilmente, como se pode imaginar – coibidas pela Inquisição. A ascen-
dência dos feiticeiros sobre os pacientes traduzia-se em poderoso efeito psicológico, que sem dúvida
explicava muitas curas. [...] Bons resultados obtidos com um ritual garantiam o prestígio do sacerdo-
te, ou do curandeiro, ou do feiticeiro – mesmo porque representavam, não raro, a única esperança de
tratamento. (SCLIAR, 2002, p. 16-17).

Dessa forma, fica claro o nome da ação ser “Self-Service Pajé”, por trazer a figura desse conhecedor de
ervas curativas que eram utilizadas em casos de doenças, mas sem esquecer de enaltecer a experiência
ancestral, que é a prática da cozinha, transmitida por gerações através da oralidade.

217. Na sua fase mágico-religiosa a medicina utiliza, às vezes sem o saber, o componente de sugestão para a cura de doenças
218. SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002, p.15.

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Ao dar continuidade no cronograma da ação, foi contada a segunda história, “A lenda do Alecrim”,
da tradição oral cristã, que narra como o Alecrim ganhou, como agradecimento de Nossa Senhora,
flores azuis e o odor característico da planta. Para introduzir a lenda, cantamos a música “Alecrim
Dourado”, de domínio público, com a participação do historiador e músico Wheldson Marques, que
destacamos abaixo.

Alecrim, alecrim dourado


Que nasceu no campo
Sem ser semeado
Foi meu amor
Que me disse assim
Que a flor do campo é o alecrim
Alecrim, alecrim miúdo
Que nasceu no campo
Perfumando tudo
Foi meu amor
Que me disse assim
Que a flor do campo é o alecrim
Alecrim, alecrim aos molhos
Por causa de ti
Choram os meus olhos
Foi meu amor
Que me disse assim
Que a flor do campo é o alecrim219

Figura 4. Roda de
debate e canção do
“Alecrim Dourado”.
Fonte: Arquivo Ação
Educativa / IRB

219. ALECRIM DOURADO. Cantigas Populares. Letras, 2013. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/ cantigas-populares/1428335/>

573
Após a segunda história, inspirados num projeto criado pelo grupo Opavivará para o CCBB (Centro
Cultural Banco do Brasil) – Rio de Janeiro – chamado “Self-Service Pajé”220, promovemos uma degus-
tação de chás, onde cada participante recebeu um cardápio-bula, contendo a origem (quando possí-
vel); as indicações e contraindicações encontrados no livro “História Natural do Brasil”, de Guilherme
Piso e Georg Marcgrave, edição de 1948. Distribuímos sachês vazios para que escolhessem quais ervas
pôr na sua infusão, dentre elas Hibisco, Camomila, Canela, Guaco, Alecrim, Hortelã, Erva Cidreira,
Erva Doce, Gengibre e Alcaçuz.

Figura 5. Mesa de ervas para infusão.


Fonte: Arquivo Ação Educativa / IRB

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso projeto visou a sensibilização sobre o fazer culinário. Sentir ao invés de apenas engolir o ali-
mento. Perceber os odores, texturas, cores, sabores. Deixar-se invadir pelo prazer que é saborear nossa
comida. No mais, foi perceptível que o aprofundamento nesses conhecimentos sobre o funcionamen-
to do corpo e como ele está ligado a natureza nos deu base para falar sobre como é importante prestar
atenção no que é ingerido e como é ingerido.

Durante a pesquisa sobre o tema “Museus e memórias indígenas”, no que se refere à alimentação (e
narrativas sobre), percebemos quão escassa é a literatura acerca da prática culinária indígena brasi-
leira. Encontramos textos, fragmentos e indicativos que, de forma geral, são muito superficiais, não
apenas no que se refere à alimentação, mas sobre as muitas outras práticas culturais. Acreditamos que,
em parte, isso se deve a todo o processo de aculturação das etnias indígenas ao longo do processo de
colonização e formação da sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil: cardápio indígena, dieta africana, ementa por-
tuguesa. V. 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. 401 p. (Brasil Através dos Textos, 323).

220. Sobre o Opavivará e o dispositivo relacional Self-Service Pajé ver: http://www.opavivara.com.br/

574
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista de 1926. [S. l.]: MEC. Serviço de Documentação, 1955. 54 p. (Os
Cadernos de Cultura, 80).
MATOS, Gislayne Avelar; SORSY, Inno. O ofício do contador de histórias: Perguntas e respostas, exercícios prá-
ticos e um repertório para encantar. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
PISO, Guilherme. História Natural do Brasil. Trad. Alexandre Correia. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1948. 434 p.
ROSA, Sanny S. da. Brincar, Conhecer e Ensinar. São Paulo: Cortez, 1998. (Coleção Questões de Nossa Época).
SCLIAR. Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.
STANDAGE, Tom. História do mundo em 6 copos. Trad. Antonio Braga. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
VON MARTIUS, Carlos Friedr. Phil. Natureza, doenças, medicina e remedios dos indios brasileiros (1844).
Coleção: Brasiliana - Vol. 154 - Biblioteca Pedagógica Brasileira - Série V. São Paulo: Companhia Editora Na-
cional, 1939.

575
De ponto em ponto aumento
um conto: o ensino de artes
em pontos de cultura do território
de identidade Portal do Sertão na Bahia
Lívia Castro de Lacerda

A pesquisa se destinou a investigar as abordagens de ensino de arte propostas por organizações do


Terceiro Setor que se tornaram Pontos de Cultura, pertencentes ao Território de Identidade Portal do
Sertão, interior da Bahia.

A nomenclatura Pontos de Cultura foi adotada para ONGs, outras instituições e coletivos contem-
plados por um edital público, de mesmo nome, que, através de convênios firmados com o Ministério
da Cultura e/ou Secretarias de Cultura Estaduais, tiveram suas ações multiplicadas. Segundo Célio
Turino (2009), seu idealizador, o Estado determinava o quanto poderia oferecer e os grupos sociais
definiam, a partir de seu ponto de vista e necessidades, como aplicariam os recursos.

Os Pontos de Cultura vêm realizando propostas inovadoras em busca de alternativas para solucionar
problemas sociais, como os que excluem crianças e jovens de uma perspectiva de vida igualitária.

São objetos de estudo desta pesquisa os seguintes Pontos de Cultura do Portal do Sertão: a Cooperati-
va de Teatro para a Infância e Juventude da Bahia, localizada em Feira de Santana; a ONG Pé de Arte,
Cultura e Educação (PACE), em São Gonçalo dos Campos, e o Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Santa Bárbara, em Santa Bárbara.

Trazer à luz como se dá o processo educativo em arte no Terceiro Setor se faz necessário para a melhor
compreensão dos profissionais de educação, principalmente para aqueles que atuam exclusivamente
nos ambientes formais, sejam nas escolas ou nas universidades. As ONGs podem contribuir com a
educação formal, como também a educação formal pode apoiar o trabalho das ONGs. Conhecer
como o ensino de arte, oferecido por elas, pode contribuir no equilíbrio, na vida de crianças e jovens
em situação de exclusão social, é uma maneira de apontar caminhos alternativos para a crise da edu-
cação nos ambientes formais, como aponta Barbosa.

As minhas mais recentes pesquisas têm comprovado que o ensino da Arte de melhor qualidade não
está nas Escolas, mas nas Organizações Não Governamentais - ONGs, que buscam a reconstrução

576
social de crianças e adolescentes, principalmente nas ONGs comunitárias. No Brasil, todas as ONGs,
que têm obtido sucesso na ação com os excluídos, esquecidos ou desprivilegiados da sociedade, estão
trabalhando com Arte e até vêm ensinando às escolas formais a lição da Arte como caminho para
recuperar o que há de humano no ser humano. (BARBOSA, 2009, p.2)

A maioria dos Pontos de Cultura do Portal do Sertão da Bahia atende a crianças e a jovens pertencen-
tes a famílias de baixa renda, que vivem sob situação de risco, e têm pouco acesso a bens culturais or-
ganizados, como museus, cinema, exposições de arte, concertos musicais, entre outros, como também
não possuem aula de artes na educação formal. Para a pesquisadora Lívia Marques Carvalho (2008),
a sociedade civil vem-se articulando em busca de soluções dos problemas sociais, desenvolvendo
metodologia própria para atender demandas específicas, as quais o Estado não consegue interferir,
atendendo às necessidades de determinados grupos.

Desta maneira, estudar as instituições e suas abordagens educativas em arte se faz necessário, para que
se possa conhecer e disseminar as estratégias adotadas para a superação dos conflitos sociais. Estudar
o ambiente educativo das instituições do Terceiro Setor poderá contribuir para a ampliação das dis-
cussões e propostas, apresentando caminhos para o enfrentamento da crise educacional oriunda de
problemas sociais em que o país está imerso, como também poderá contribuir na transformação de
realidades socioculturais e individuais daqueles inseridos no processo educativo.

1. PONTO A PONTO: CONHECENDO LINGUAGENS, AMBIENTES E MÉTODOS.

Os três Pontos de Cultura do Portal do Sertão estudados desenvolveram projetos com diferentes ati-
vidades artístico-culturais. São elas: artes cênicas, artes visuais, artes circenses, costura, artesanato,
cultura digital e música. O teatro é a única linguagem que se encontra presente e atuante nas três
instituições, ganhando novas modalidades teatrais a cada trabalho, adotando bonecos de diferentes
tipos, tamanhos e técnicas de manipulação, dialogando com palhaços e números circenses.

Os métodos investigados dos três espaços educativos estudados são baseados em propostas reconhe-
cidas internacionalmente como a de Stanislávski, Viola Spolin, Paulo Freire, Ana Mae Barbosa, como
também são criadas e adaptadas a partir da realidade do educando. Sobre a metodologia dos espaços
não formais, Gohn afirma:

O método nasce a partir da problematização da vida cotidiana; os conteúdos emergem a partir


dos temas que se colocam como necessidades, carências, desafios, obstáculos ou ações empreen-
dedoras a serem realizadas; os conteúdos não são dados a priori. São construídos no processo. O
método passa pela sistematização dos modos de agir e de pensar o mundo que circunda as pes-
soas... Há metodologias, em suma, que precisam ser desenvolvidas, codificadas, ainda que com
alto grau de provisoriedade, pois o dinamismo, a mudança, o movimento da realidade, segundo o
desenrolar dos acontecimentos, são as marcas que singularizam a educação não formal. (GOHN,
2010, p. 46-47).

Trilla (2008) acredita que a educação não formal tem maior flexibilidade quando se refere à metodo-
logia:

577
[...] a educação não formal, por situar-se fora do sistema de ensino regrado, desfruta de uma série de
características que facilitam certas tendências metodológicas. O fato de não ter de seguir nenhum
currículo padronizado e imposto, as poucas normas legais e administrativas que recaem sobre ela
(calendário escolar, titulação dos docentes etc.), seu caráter não obrigatório, e por aí afora, tudo isso
facilita a possibilidade de métodos e estruturas organizacionais muito mais abertas (e, geralmente,
mais flexíveis, participativas e adaptáveis aos usuários concretos e às necessidades específicas) que
aquelas que costumam imperar no sistema educacional formal. (TRILLA, 2008, p. 42).

Nas entrevistas realizadas na PACE, foi percebida a preferência de uma proposta de ensino contextu-
alista, pautada na vida do educando em seu meio e seu tempo, sendo possível observar que, em algu-
mas oficinas, como artes visuais e violão, por exemplo, os educadores dialogam com outras culturas,
outros espaços e outras tendências educativas.

As atividades da PACE acontecem em uma casa alugada pela instituição, com estilo arquitetônico ec-
lético, com influência da Art Déco. A oficina de artes visuais teve sua proposta modificada com o pro-
cesso de desenvolvimento da instituição. Durante anos, os conteúdos de arte visual permaneceram
ligados às temáticas afro-brasileiras e indígenas, uma necessidade devido à ausência desta temática
na educação formal.

Após uma inquietação vivenciada por mim, durante a disciplina Cultura Visual: as visualidades no
Ensino das Artes Visuais, que cursei como aluna especial no PPGAV221, percebi que o ensino de artes
visuais da PACE precisava vivenciar novas experiências, ultrapassar fronteiras culturais. Desta per-
cepção, comecei a dividir estas reflexões com a educadora Andréa Lopes, ministrante da oficina de
artes visuais. Estava na hora de promover cruzamentos, novos diálogos, interferências propositais
na percepção visual e na postura dos educandos em relação ao seu cotidiano. A intenção era romper
com estereótipos educativos, que estabelecem regras e normas hegemônicas, como, por exemplo,
desconstruir a imagem de que para os socialmente desfavorecidos deve-se oferecer arte popular, e
para as elites, arte erudita.

Richter (2003, p. 193) afirma que: “A educação intercultural [...] significa a existência integral do su-
jeito, que se apropria de si mesmo (a) ao aproximar-se da sua e de outras culturas”. Foi a partir desta
perspectiva que a oficina de artes visuais começou a desenvolver, nos dois últimos anos, em 2013 e
2014, o projeto pedagógico Identidade Cultural. Além de propiciar atividades práticas, leituras diver-
sas, a oficina levou os educandos a conhecer os artistas da cidade e incluiu, em seu repertório visual,
obras e artistas clássicos, contemporâneos, de diferentes esferas sociais, gêneros, épocas e origens.

As atividades da CTIJB se dividem em diferentes espaços em Feira de Santana, as oficinas de teatro e


circo do Ponto de Cultura acontecem no Centro Cultural Amélio Amorim.

Geovane Mascarenhas, enquanto professor da oficina de teatro, levou os jovens aprendizes para assis-
tir espetáculos em circos pequenos instalados em Feira de Santana, para participaram de um festival
internacional de circo na Chapada Diamantina, Bahia, e viram um espetáculo do Cirque du Soleil em

221. Programa Associado de pós-graduação em Artes Visuais das Universidades Federais da Paraíba e Pernambuco.

578
Salvador. A oficina de teatro não estava apenas focada nas técnicas e métodos teatrais, além de pro-
porcionar aos educandos uma aproximação das duas linguagens.

Sobre os métodos utilizados em sua oficina, Geovane diz misturar algumas técnicas de Stanislavski, o
teatro físico de Grotowski, o improviso de Viola Spolin e a biomecânica de Meyerhold. Esta proposta
está em sintonia com o palhaço e os números circenses quando o que se deseja é atingir a comunica-
ção corporal mais que verbal, menos texto e mais imagem para comunicar o que se deseja. O educa-
dor ressalta a importância dos aprendizados teatrais para a construção dos espetáculos produzidos
pelos educandos e jovens multiplicadores:

Acho que a oficina de teatro foi imprescindível pelo trabalho físico que desenvolvi de interpretação. Se
eles hoje fazem um trabalho de teatro e circo, esta parte de interpretação foi importantíssima para eles
estarem hoje desenvolvendo todo um espetáculo diferenciado. Eles criam histórias, o espetáculo tem
um enredo, eles interpretam personagens naquele momento que estão fazendo os números de circo.
E tem alguns deles que entraram em dois grupos de teatro que eu dirijo. (MASCARENHAS, 2015).

As atividades do Ponto de Cultura se iniciaram na sede do STRSB, que fica em uma casa de esquina
no centro da cidade e com o tempo foi estendida para comunidades da zona rural. Eram oferecidas
oficinas de artesanato, capoeira, inclusão digital e teatro de bonecos.

As oficinas de artesanato aconteceram apenas na sede do sindicato, oferecidas por duas educadoras,
em momentos diferentes. Diana Souza, uma das educadoras, descreve em detalhes as etapas das ofici-
nas de biscuit e pintura que ela ministrou, explicando como elaborava seu planejamento, materiais e
técnicas utilizadas. Em relação à sua prática na oficina de pintura, a educadora comenta:

Na oficina de pintura inicialmente trabalhava com os alunos as cores primarias e secundárias no


tecido, com manuseio de pincéis, desenvolvendo as habilidades individuais. Nas aulas seguintes fo-
ram distribuídos os tecidos onde foram trabalhados, gradativamente, pinturas manuais com pincel,
utilização de moldes vazados e pinturas com pulverização, seguindo sempre o cronograma do pla-
nejamento. No encerramento de cada oficina foi feito uma exposição dos produtos elaborados pelos
alunos, aberto aos familiares e comunidade. (SOUZA, 2015).

A discrição acima demonstra que, apesar de a ministrante não possuir formação acadêmica em artes
visuais, tinha sua oficina organizada com etapas bem definidas, desde o planejamento da aula, seguin-
do cronograma do projeto, até culminar com uma exposição. Seu depoimento atesta o cuidado em
socializar os grupos de participantes, que tinham entre 10 e 67 anos de idade, no primeiro momento
da oficina, preocupando-se, sobretudo, em ensinar as primeiras noções de cores e misturas, conferin-
do aos participantes habilidades motoras e maior destreza com os materiais de trabalho.

Diana conta sobre suas impressões com a oficina e de como percebe a arte em projetos educativo-
-culturais:

O que mais gostava no projeto era ver o desenvolvimento das habilidades dos alunos, muitos não
acreditavam no seu potencial. O que não gostava era quando alguns alunos desistiam por medo
de tentar... A arte possibilita a demonstração de potencialidades, criatividade e inclusão social das

579
pessoas e das comunidades mais afastadas dos centros urbanos, fazendo com que a cultura local seja
perpetuada por diversas gerações. (SOUZA, 2015).

Carvalho, ao estudar ONGs que realizam atividades artísticas, conclui:

Na maioria destas instituições, a arte não é tomada somente como um meio de educação, mas como
educação em si mesma. Por meio da educação estética, pretende-se propiciar o desenvolvimento
integral (afetivo, cognitivo, integral e espiritual) dos educandos, proporcionar o aprendizado técnico
e teórico, com vistas, inclusive, a uma possível profissionalização daqueles que assim o desejarem,
além de fornecer subsídios que permitem democratizar o acesso à arte e aos bens culturais. (CAR-
VALHO, 2008, p.30).

A oficina de teatro de bonecos oferecida por Evandro Nery acontecia na sede do STRSB e também na
comunidade Sítio das Flores. Evandro, durante a entrevista, diz realizar em sua oficina apenas ativi-
dades práticas, ensinando a confecção do boneco e sua manipulação.

John Dewey, filósofo da educação, reconheceu o valor da aprendizagem pela prática, sua obra inspi-
rou muitos arte-educadores no Brasil. Para Dewey, o conhecimento poderia ser construído através do
aprender fazendo, não estando restrito exclusivamente às atividades do intelecto. Barbosa comenta como
Dewey compreendia a arte. “A arte, para Dewey, participa ativamente de modo difuso e penetrante na
organização das energias e recursos da estrutura de qualquer experiência” (BARBOSA, 2011, p. 158).

Evandro, apesar de preferir realizar sua oficina com atividades práticas, tem como inspiração o traba-
lho de pesquisadores ligados ao teatro e ao teatro de bonecos:

Trabalho com o teatro de bonecos há anos. Minha oficina é prática. Faço teatro de bonecos mas
utilizo técnicas de teatro. Facilita bastante o trabalho de concentração e de manipulação de bonecos,
os alunos precisam ter noção de teatro para utilizar o boneco, para dar vida o boneco. Tem aqueles
que usam só o teatro de bonecos, mas eu gosto de fazer essa junção. Para preparar minhas aulas uso
o livro de Manual de Criatividade de Eugênia Millet e Paulo Dourado e os exercícios de Viola Spolin,
Jogos Teatrais. Uso também o livro de Ana Maria Amaral, Teatro de Formas Animadas, como referên-
cia ao teatro de bonecos. (NERY, 2015).

A obra de Ana Maria Amaral, professora do curso de Artes Cênica da USP e pesquisadora do teatro
de animação e teatro de bonecos no Brasil, aborda uma diversidade de técnicas e grupos de teatro
destes gêneros, faz uma síntese da história do teatro de animação no Brasil e no Mundo. Por fazer
uso de bibliografia específica, o educador busca aprimorar sua prática educativa, conhecendo outros
universos teatrais para enriquecer seu próprio trabalho.

Um dos momentos mais lúdicos e de maior aprendizado, observado em sua prática, é quando o edu-
cador realiza uma pequena apresentação com seus bonecos. Naquele momento, as crianças se entre-
garam à brincadeira, ao jogo teatral, interagindo com o espetáculo, respondendo às falas do boneco,
provocando sensações. Os educandos passam de meros espectadores para coadjuvantes, aprendendo
de forma prazerosa como é fazer teatro de bonecos. Sobre sua aula no Ponto de Cultura, Evandro diz:
“Gostava de dar aulas, de ensinar a manipulação, de fazer improvisação com bonecos” (NERY, 2015).

580
Ao observar a oficina, fica claro como é sua maneira de educar/aprender, como lida com os apren-
dizes, respeitando o tempo de cada criança e evidenciando a ludicidade infantil. Utiliza-se do en-
cantamento que o boneco produz para passar conhecimentos da técnica de animação, fazendo com
que o educando participe, contribua e construa sua própria narrativa cênica, de forma prazerosa e
divertida.

Segundo Duarte Júnior, a arte para a criança exerce outro papel além da experiência estética:

A atividade artística, no mundo infantil, adquire características lúdicas, isto é, tem o sentido de jogo
em que a ação em si é mais significante que o produto final conseguido. [...] Em primeiro lugar, a
atividade artística da criança apresenta o sentido de organização de suas experiências. Desenhando,
pintando, esculpindo, jogando papeis dramáticos, etc., a criança seleciona os aspectos de suas expe-
riências que ela vê como importantes, articulando-os e integrando-os num todo significativo... A arte
é importante para a criança. É importante para seus processos de pensamento, para seu desenvolvi-
mento perceptual e emocional, para sua crescente conscientização social e para seu desenvolvimento
criador. (DUARTE JR., 1981, p. 102).

Apesar de o educador citar autores conhecidos do universo teatral, sua prática tem uma maneira pró-
pria, um ritmo outro, com objetivos diferentes. Ele usa recursos semelhantes aos dos Jogos Teatrais,
adaptados para as necessidades do teatro de boneco, explorando, sobretudo, brincadeiras e exercícios
específicos para braços, mãos, dedos e voz, instrumentos corporais fundamentais que dão vivacidade
à manipulação do boneco.

Evandro vem formando jovens e adolescentes na arte do teatro de bonecos, envolvendo-os nos espe-
táculos, que os auxiliam nas oficinas, proporcionando aos aprendizes experimentar novo horizonte
artístico, educativo e profissional, na tentativa de ver a continuidade de seu trabalho através deles.
Alguns deles continuam a realizar apresentações e oficinas na comunidade Sítio das Flores, sob a
orientação de Evandro.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após um período de escuta, aprendizado, investigação e reflexão, a pesquisa provocou um olhar


diferenciado, instigando discussões que envolvem o ensino de arte em Pontos de Cultura, contri-
buindo para uma melhor compreensão do ensino/aprendizado em espaços não formais de edu-
cação.

Ao estudar estes espaços de educação construídos ou potencializados a partir do Ponto de Cultura,


e que institucionalmente são uma ONG, uma cooperativa e um sindicato, foi possível identificar
a multiplicidade e as particularidades de cada proposta em relação ao ensino de arte. O intuito de
cada Ponto de Cultura estudado era atender os desejos e anseios mais urgentes de cada público e
local.

Uma das fragilidades percebidas nas propostas educativas estudadas é a possibilidade de uma descon-
tinuidade, por mais necessárias que sejam as práticas ou tragam resultados significativos, a exemplo
do encerramento dos convênios com a SECULT. Os anos de financiamento do Ponto de Cultura

581
trouxeram uma melhor infraestrutura dos espaços e de materiais, mantiveram salários, garantiram
mobilidade, trocas de informações, parcerias, geraram aprendizados e know-how aos gestores, coor-
denadores, educadores e educandos. Após a finalização dos convênios, as oficinas de artes oferecidas
nos três Pontos de Cultura estão sujeitas a sofrerem adaptação, a ter carga horária diminuída, serem
suspensas ou até deixarem de existir.

O potencial destas instituições está no encontro das diferentes metodologias do ensino de artes,
investigadas durante a pesquisa. Dentre as oficinas investigadas, foi possível constatar a utilização
de recursos didáticos com base teórica e prática oriunda de métodos conhecidos. Estes métodos
sofreram adaptações para que pudessem atingir objetivos exclusivos daquele contexto social e da-
quele público-alvo, como foi observado na oficina de teatro da CTIJB, na oficina de artes visuais
da PACE e na oficina de boneco do STRSB. Também foi identificada uma metodologia própria,
construída a partir do aprender fazendo, da prática diária, da reflexão sobre o erro e o acerto, da
percepção e da solução dos problemas enfrentados durante o ensino/aprendizado. Os métodos
identificados, portanto, são resultados do percurso dos diferentes educadores, alguns com baga-
gem acadêmica, outros com aprendizados gerados pelo fazer cotidiano e terceiros que viveram
ambas as experiências.

A importância deste estudo é poder, diante do panorama apresentado, colaborar com a difusão de
métodos e propostas inovadoras do ensino de artes vivenciadas em espaços não formais, locais pouco
explorados por pesquisas científicas e por estudantes que ingressam nas Licenciaturas de Artes. Mui-
tos passam pelas graduações sem vivenciar uma prática neste campo educativo, deixando de conhecer
diferentes maneiras de ensinar/aprender arte a partir de uma experiência pautada nas necessidades
dos educandos e seus locais de origem. É preciso impulsionar novas pesquisas em busca de outros
pontos de vista, adentrando, indagando, reavaliando, conferindo, desfazendo preconceitos sobre
os espaços de educação não formal, aprendendo/ensinado sobre a arte-educação que é oferecida às
crianças, adolescentes e jovens que convivem nestes ambientes.

Diante da urgência de alternativas para enfrentar os conflitos vividos na educação, os três Pontos
de Cultura do Portal do Sertão se tornam um alento. Fomentar o estudo destas instituições permite
a continuidade desta pesquisa, dando visibilidade a este campo educativo, contribuindo e comple-
mentando a educação formal. Como ensinar arte, cultivando a brincadeira, o respeito da oralidade
e dos saberes tradicionais? Como escutar educandos e a comunidade para a construção de uma
prática democrática? Qual o papel da arte no reequilíbrio na vida dos educandos que transitam
por estes espaços? São perguntas que continuam a ser feitas e anseiam provocar novas jornadas
investigativas.

A pesquisa sobre o ensino de artes nos três Pontos de Cultura do Portal do Sertão não cumpriu me-
ramente um papel investigativo, científico ou qualitativo: ela evidenciou que o ensinar/aprender artes
nestas instituições cumpre diferentes papéis, sendo um dos mais relevantes a reconstrução social. A
arte-educação oferecida nestes espaços extrapola as discussões sobre teorias e métodos. O ensino de
arte nos Pontos de Cultura aponta trilhas não convencionais para se chegar a locais inusitados reple-
tos de questões, de incertezas e imprevisibilidades necessárias para continuar impulsionando uma
prática dialógica, mutante, atenta ao seu meio e ao seu tempo.

582
REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: dos anos 80 e novos tempos. 7. ed. rev. São Paulo: Perspec-
tiva, 2009.
______. Processo civilizatório e reconstrução social através da arte. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL PRO-
CESSO CIVILIZADOR. 12., Recife, 2009. Anais... Londrina, UEL, 2009. Disponível em: <http://www.uel.br/
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CARVALHO, Lívia Marques. O ensino de artes em ONGs. São Paulo: Editora Cortez, 2008.

DUARTE, João Francisco Jr. Fundamentos Estéticos da Educação. Minas Gerais: Cortez, Universidade de Uber-
lândia, 1981.
______. Por que arte-educação? 22. ed. São Paulo: Papirus, 2012.
GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos
sociais. São Paulo: Cortez, 2010.
RICHTER, Ivone Mendes. Interculturalidade e estética do cotidiano no ensino das artes visuais. Campinas: Mer-
cado das Letras, 2003.
TURINO, Célio. Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.
TRILLA, Jaume; GHANEM, Elie; ARANTES, Valéria Amorim (Orgs.). Educação formal e não formal: pontos e
contrapontos. São Paulo: Summus, 2008.

583
O mundo perfeito: teatro educativo
contra a islamofobia
Valdirene Ferreira

INTRODUÇÃO

É sabível: há algum tempo que a Internet deixou de ser apenas uma ferramenta tecnológica, para ser
uma janela para o mundo. Assim sendo, quando as fotos e vídeos dos conflitos na Faixa de Gaza e
Guerra da Síria começaram a invadir as redes sociais, um sentimento de indignação fez com que o
meu olhar de educadora se voltasse para essa terrível situação, na qual um número cada vez maior de
muçulmanos estava sendo morto, sem que houvesse a intervenção efetiva de organismos internacio-
nais criados para momentos como aquele. A pergunta era: O que estava sendo feito para acabar com
os conflitos? Afinal, eram inocentes, civis, em sua maioria crianças, vítimas de uma guerra produzida
por grupos terroristas ou paramilitares separatistas, por quem o mundo nutria, sem sombra de dú-
vida, unânime repulsa por suas práticas de violência e torturas extremas. Uma angústia ainda maior
foi gerada ao saber que o Estado Islâmico ameaçava queimar vinte crianças iraquianas no deserto.
A foto que divulgava o iminente crime circulou pelo twitter por dias, mas nenhuma informação era
veiculada na TV: vinte crianças dentro de uma cela, no meio do deserto, sendo ameaçadas com fogo.
A tentativa de saber sobre o fato através das redes sociais foi inútil, até que um iraquiano, tuitando,
segundo ele, em meio à guerra, respondeu-me dizendo: “Não se preocupe. O Mundo não quer saber
do Iraque”. Ao levar essas questões para os alunos-atores participantes do projeto de teatro educati-
vo, em Guarulhos, São Paulo, percebi a problemática: eles demonstraram, apesar de sensibilizados,
não ter interesse sobre o que ocorria com o Oriente Médio e a Palestina, e ainda, demonstraram ter
aversão sobre o assunto. A relevância do tema pressupôs ter duas razões muito significativas: a isla-
mofobia e a presença árabe na região, acrescidos em número, cada vez mais expressivo, com a chegada
de refugiados à cidade aeroportuária: 475, entre palestinos e sírios, que através da exposição de suas
histórias em meios de comunicação local, denunciavam a urgente necessidade de ajuda humanitária.
(ONG Livro Aberto, 2015)222.

A questão principal a ser respondida era: Por que motivo havia esse sentimento de inimizade? “A TV
diz que os árabes são fanáticos, e isso causa medo”, responderam quase que unânimes. Era como se

222. Fonte: ONG Livro Aberto (Núcleo Islâmico). Guarulhos, São Paulo, 2015.

584
falassem nas entrelinhas: “Disseram-nos que os terroristas são muçulmanos; e que os muçulmanos
são árabes, logo, concluímos que TODOS OS TERRORISTAS SÃO MUÇULMANOS E ÁRABES!”
O grupo formado por quarenta pessoas, na faixa etária de doze a vinte e cinco anos, e de um idoso
de sessenta anos, cidadãos comuns, moradores da comunidade local, mas que, apesar de compre-
enderem bem o que era ser excluído, não estavam percebendo que estavam sendo preconceituosos
também. Promovi e mediei, então, uma série de conversas em roda, orientando o link de vídeos, do-
cumentários e reportagens – o único material mais acessível a eles. A abordagem pretendeu explicar,
ainda que em pequenos recortes filosóficos, a ação ideológica da mídia, o posicionamento político e
separatista de alguns governos, e também salientar as características do oprimido, de acordo com o
pensamento de Paulo Freire e de Augusto Boal. No estágio seguinte, nós, alunos-atores e educadora,
construímos uma conscientização grupal interna e depois externa sobre a islamofobia. Através da
montagem da peça “O Mundo Perfeito”, todos aprendemos que uma pequena ação, ainda que anô-
nima, pode reverberar no coletivo: com as apresentações, uma tonelada de alimentos foi arrecadada,
contribuindo na manutenção de oitenta famílias de refugiados assistidos pela ONG Livro Aberto.

Nos capítulos a seguir, procurei desenvolver os pontos interpelados durante o processo descrito acima.
A Máscara do Medo (Primeiro Capítulo) aponta, resumidamente, o surgimento da Organização das
Nações Unidas (ONU), sua participação nas causas que dizem respeito aos Direitos Humanos; traz
também a questão da fobia a grupos étnicos, em particular aos árabes e à sua jihad, guerra santa. A
Máscara da Mídia e da Verdade (Segundo Capítulo), fala sobre a inversão de coisas que, segundo o pen-
samento hegeliano, atua nos discursos ideológicos, além de apontar, através do exemplo americano nos
casos Watergate e Vietnam, a tomada de posição quanto a lados da notícia que as empresas jornalísticas
tomam de acordo com os seus interesses políticos. Em A Máscara do Amor: Aylan (Terceiro Capítulo)
a reflexão proposta diz respeito às escolhas dos fatos e imagens a serem propagados pela mídia, aliada à
internet. Em A Máscara do Teatro (Quarto Capítulo), são apresentados os pontos principais do Teatro
do Oprimido que foram a linha mestra para a conclusão do trabalho. Nas Considerações Finais, faço um
relato da apropriação da liberdade e fraternidade que contagiou a todos durante esse processo. Uma
marca de amor impressa pela arte e pela produção de um bem, não somente cultural, mas humanitário,
realizado por todos: educadora, alunos-atores, projeto, comunidade guarulhense e comunidade árabe.

Figura 1
Foto: Reuters 223

223. Reuters é uma agência de notícias britânica, com sede em Londres. Disponível em: www.br.reuters.com.

585
CAPÍTULO 1 – A MÁSCARA DO MEDO.

O medo, na mitologia, era Fobos, irmão de Deimos, o terror. Ambos eram filhos de Afrodite, deusa
do amor e de Ares, o deus da guerra. Uma constituição familiar bem perturbadora, diga-se de pas-
sagem, mas que traduz o caos estabelecido nos relacionamentos entre as pessoas, e numa dimen-
são maior, entre as nações. Nelson Mandela já dizia que “Ninguém nasce odiando outra pessoa
pela cor de sua pele, ou de sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e
se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar”. (STENGEL, 2010) O ódio é um sentimen-
to destrutivo, infringe todas leis, estabelecendo as suas próprias, e em seu nome foram cometidos
genocídios, abusos, torturas e terrorismo ao longo dos séculos. Uma geração vai, e outra vem, mas
o ódio entre etnias, gêneros e religiões parece ser uma constante nos tópicos da nossa história.
Foi o ódio o principal elemento que produziu as grandes guerras e os mais sangrentos conflitos
mundiais.

Diante de um quadro tão catastrófico das relações humanas, e na tentativa de promover a permanên-
cia da paz, em 24 de outubro de 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU). Uma das
suas ações mais conhecidas foi a redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),
adotada pela ONU em 10 de dezembro de 1948. O documento é a base da luta universal contra a
opressão e a discriminação, defende a igualdade e a dignidade das pessoas e reconhece que os direitos
humanos e as liberdades fundamentais devem ser aplicados a cada cidadão do planeta. Ao longo de
sua existência, até a atualidade, o desenvolvimento de programas de assistência e de apoio humanitá-
rio, o progresso social de ajuda aos refugiados e às vítimas da fome, pobreza, AIDS, ou de flagelos da
natureza tem sido suas principais prioridades.

Praticamente quase todas as nações do mundo fazem parte das Nações Unidas, são ao todo 192 países
- membros. A sua sede atual é na cidade de Nova Iorque, onde estão cincos dos seis órgãos principais,
como: a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho
de Tutela e o Secretariado. O sexto órgão, a Corte Internacional de Justiça, é localizada em Haia, na
Holanda (ONU Brasil, 2009)224.

Como primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos está a questão da dignidade
e afirma que todos os homens nascem livres: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade” (ONU, 1948). A palavra fraternidade quer dizer: irmandade; união entre
irmãos; relaciona, dessa forma, que todos os povos são uma só família e devem viver em união. É
importante salientar o fato de que a DUDH, composta de trinta artigos, serviu como base para os
dois tratados sobre direitos humanos da ONU: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PEDROSO, 2005)225, os quais
favoreceram a ampliação dos debates internacionais sobre a perseguição política em todo o mundo.

224. http://www.dudh.org.br/declaracao/
225. PEDROSO, R. C. (2005). 10 de Dezembro de 1948 - A Declaração Universal dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia Editora
Nacional.

586
Um exemplo disso foi a Conferência de Durban, na África do Sul, acontecida no início desse século
(2001), na qual a xenofobia e o racismo foram o tema principal.

Porém, ainda que caminhos estejam sendo desbravados no campo da diplomacia entre as nações, é
com certo descrédito que alguns setores ativistas declaram que o combate à discriminação racial não
foi alcançado e que, segundo José Augusto Lindgren Alves �����������������������������������������
(ALVES, 2000)����������������������������
, atual embaixador brasilei-
ro na Sófia, Bulgária “um número incontável de seres humanos continua, até o presente momento, a
serem vítimas de várias formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”.
Entre essas vítimas estão os muçulmanos. O motivo se deve “pela violência arbitrária, dirigida a in-
divíduos caracterizados pelo pertencimento a uma coletividade determinada, [...] constituem uma
forma de desumanização do humano, sejam os alvos inocentes ou culpados”.226

O medo tem sido a justificativa para o ataque xenofóbico. Xenofobia, termo advindo da psicologia,
designa uma doença: o medo patológico ou a aversão irracional a estrangeiros, sem motivos justificá-
veis. No campo ideológico, acrescenta-se a esse significado, a discriminação e a violência física susten-
tada por um discurso nacionalista e de superioridade racial. Nesse grupo também está a islamofobia
(EUMC, 2014)227, ou medo desmedido ao islamismo. Na realidade, “Islã” é uma palavra árabe que
significa “submissão” ou “rendição” e se refere àqueles que obedecem a “Alá”, o Deus dos muçulmanos,
ou aquele que segue a fé Islâmica. “Alcorão” ou “Corão” é o livro sagrado do Islamismo e Maomé é o
seu profeta. Em uma análise a respeito das políticas anti-islã realizada por alguns governos na atua-
lidade, Silva (2006) avalia que “deve ser considerada perigosa esse tipo de política, visto que cada vez
mais o povo do mundo desenvolvido aceitou o discurso de que os muçulmanos são inimigos, ou seja,
devem ser eliminados”.

Não há como saber ou quantificar se foi o atentado às torres gêmeas (World Trade Center), ocor-
rido no dia 11 de setembro de 2001, o estopim para a perseguição desencadeada contra os árabes
no mundo. Contudo, desde então, um assombro tomou conta das nações diante de tão audaciosa
investida, e não são raras as ocasiões em que no contexto das matérias jornalísticas, quando o
Islamismo é citado, palavras como “terrorista” e “jihadista” são acrescentadas, direta ou indire-
tamente. Jihad é um termo que significa “luta”, “esforço” ou empenho; implica mais uma luta
interna com o objetivo de melhorar o próprio indivíduo ou o mundo à sua volta. Diz respeito ao
desenvolvimento espiritual: o esforço pessoal e introspectivo para controlar seus impulsos, sua ira
e perdoar os pecados em nome de Alá, é considerado para os muçulmanos a maior jihad. Já os
grupos extremistas usam métodos violentos para transmitirem as suas ideias, e isso se contrapõe
ao Islamismo.

Outro ponto importante a ser levantado é o de que o terrorismo não tem sua origem no Alcorão,
assim como a Inquisição não teve a sua origem na Bíblia. O IRA (Exército Republicano Irlandês,
1960), por exemplo, é uma organização terrorista católica da Irlanda do Norte; o ETA (Pátria
Basca e Liberdade, 1959), grupo de origem basca, ocupante das áreas da Espanha e da França, e

226. ALVES, J. A. (2012). É preciso salvar os direitos Humanos! Lua Nova , 51-53.
227. EUMC. (01 de 10 de 2014). Dicionário Informal. Acesso em 05 de 03 de 2016, disponível em Dicionário Informal: http://www.
dicionarioinformal.com.br/significado/islamofobia/8242/.

587
a Supremacia Branca (EUA, 1996), paramilitares americanos de extrema direita. Na mesma linha
de extremismo está o Movimento Sionista que atua em território palestino e em Israel. Todos são
chamados de terroristas, porém, nenhuma definição de terrorismo obteve aprovação universal.
Segundo as leis norte-americanas (Código dos Estados Unidos, artigo 2656f), o termo pode se re-
ferir à motivação política, no âmbito internacional, pode significar uma ação que envolva muitos
cidadãos ou o território de mais de um país. Já o termo “grupo terrorista” significa qualquer grupo
que pratique terrorismo internacional, ou tenha subgrupos significativos que pratiquem terroris-
mo internacional. Grupos como Irmandade Muçulmana (1924), Fatah (1959), Jihad – islâmica
(Palestina, 1970). Hezzbolah (Líbano, 1982), Al Qaeda (1989), Hamás (Palestina, 1990), Taliban
(Palestina, 1994), Boko Haram (2002), e mais atualmente o Estado Islâmico (Iraque, 2004)228, têm
em comum a resistência aos efeitos da globalização e à ocidentalização dos países onde atuam; são
todos eles capazes de matar indiscriminadamente homens, mulheres e crianças de qualquer região
do planeta, de qualquer nacionalidade, até mesmo da sua própria, destruindo cidades, patrimô-
nios históricos e nações inteiras. Ativamente, entretanto, eles se movem em contextos históricos
totalmente distintos.

CAPÍTULO 2 – AS MÁSCARAS DA MÍDIA E DA VERDADE.

No artigo “A Produção da Imparcialidade – A Construção do Discurso Universal a partir da Pers-


pectiva Jornalística” (BIROLI e MIGUEL, 2009, p.59), os autores apresentam que “a neutralidade,
imparcialidade, objetividade do jornalismo ainda é a pretensa capacidade de expor o mundo ‘tal
qual é’ a seus leitores, ouvintes e expectadores”. A noção de imparcialidade, segundo eles, ganha
uma roupagem mais complexa na obra do filósofo estadunidense John Rawls (apud BIROLI e MI-
GUEL), que postula o conceito de justiça intrinsecamente ligada ao da imparcialidade: “Fica claro
que a imparcialidade, entendida como ausência de posição social, é um requisito para a construção
de um entendimento válido da justiça”. A isenção e a imparcialidade são as bases de uma boa ma-
téria, mas “à medida que a competição entre as organizações noticiosas se intensificou, as notícias
modificaram-se na forma e no conteúdo, no sentido do entretenimento” (PATTERSON, 2003).
A imprensa já era uma preocupação de Max Weber no início do século XX. Dizia ele que “hoje
em dia, a imprensa é necessariamente uma empresa capitalista e privada”. De uma forma geral, as
emissoras de TV e a mídia impressa são empresas privadas que sobrevivem de patrocinadores e
possuem linha editorial firmadas em seus princípios ideológicos e mercadológicos, os quais deter-
minam o conteúdo difundido por elas. “O seu objetivo não é difundir aquilo que governos, igrejas,
grupos econômicos ou políticos desejam contar, [...] mas aquilo que o cidadão quer e tem o direito
de saber, o que não necessariamente coincide com o que os outros querem contar”. (BUCCI, 2000,
p.42). A maneira como a mídia minou a imagem do Estado americano “como promotor do bem
comum” nos casos Watergate e Guerra do Vietnam, na segunda metade do século XX, exemplifica
a citação de Bucci. Essa atitude foi um indicador de que a imprensa poderia escolher um lado da
notícia, abrindo um precedente único para outros jornalistas agirem de igual maneira. Adorno e
Horkheimer declaram que as estruturas ideológicas, os meios de comunicação de massa, compre-

228. JUNGMANN, M. Entenda o histórico e atuação dos grupos islâmicos em atuação no mundo. EBC Agência Brasil. 27 jan. 2015. Dis-
ponível em: <www.agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-01/entenda-o-historico-e-o-perfil-dos-gru>. Acesso em: 03 maio
2016.

588
endem “uma proposta de alienação, diversão ou mesmo a desorientação sem permitir a reflexão so-
bre as coisas”. Os dois autores destacam também que a “indústria cultural tem um objetivo: chegar
aos seus consumidores a partir da venda”. Por essa razão, pode - se dizer que “a indústria cultural
vai buscar legitimar tudo isso a partir de uma ideologia que, é uma falsa consciência ou uma in-
versão da realidade”. Essa definição consiste em dizer que “as ‘inversões’ obscurecem o verdadeiro
caráter das coisas” (CHAUÍ, 1980).

Mas o que é a realidade? A filosofia diz que realidade é o conjunto das coisas existentes, como tam-
bém, as relações que elas têm entre si. Segundo Platão, o observável pelos sentidos não é nada mais
que o reflexo da verdadeira realidade, que consiste no universo das ideias e apara Para Hegel, o real é
racional e o racional é real. A discussão sobre a realidade é infindável entre os filósofos. Ela é objetiva
ou abstrata? Há somente uma realidade ou mais de uma? Seja qual for a definição que a ela possa
ser dada, a ética deve estar intrínseca. E é nesse pormenor que a verdade está inserida. Mas de qual
verdade estamos falando: da minha, do outro, ou daquela que realmente descreve o fato? Para Niet-
zsche a verdade é um ponto de vista. Ele não define nem aceita definição da verdade, porque diz que
não se pode alcançar uma certeza sobre isso. De acordo com esse pensamento, há uma brecha, pela
qual a ideologia adentra e tem a possibilidade de inverter a realidade segundo os interesses de quem
a manipule.

CAPÍTULO 3 - A MÁSCARA DO AMOR: AYLAN.

Para a Psicologia, as fobias não são congênitas. Esse sentimento é gerado no ser humano através da
cultura, do discurso ideológico e do terror. Como foi discutido no capítulo anterior, o discurso ide-
ológico molda pensamentos e produz comportamentos sistemáticos à sua persuasão. Em seu livro
Linguagem e Persuasão, Adilson Citelli define o ato de persuadir como sinônimo de “submeter, daí
sua vertente autoritária. Quem persuade leva o outro à aceitação de uma dada ideia” (2002, p.13).
Esse fenômeno pôde ser visto logo após a queda das torres gêmeas: massificação do tema terrorismo
na TV (Serie 24 horas), filmes e documentários nos cinemas, e mais recentemente com o atentado
ocorrido em Paris, por sugestão do Facebook, rede social, as fotos do perfil dos seus usuários pode-
riam ter como fundo a bandeira da França. Segundo Mikhail Bakhtin (1929-1930), “a disseminação
de uma ideologia não se faz apenas através da linguagem, mas também dos signos que são estabelecidos
em sociedade”. (BAHKTIN, 1969)229. A aceitação da bandeira em suas fotos de perfil foi expressiva e
provocou as mais variadas críticas. Semelhantemente, a morte do menino sírio Aylan Kurdi, três anos,
morto por afogamento. O seu corpo apareceu numa praia da Turquia, ao lado de seus irmãos também
mortos, entre tantas outras crianças, de igual modo, mortas. No entanto, foi a sua imagem que se tor-
nou o símbolo do flagelo dos refugiados. Quem determinou que fosse assim? Por que parecemos estar
sempre olhando para o lugar em que a mídia determine que seja olhado? Agindo assim, formulamos
conceitos parciais, incompletos e tendenciosos, porque estamos debaixo de uma ideologia que deter-
mina a nossa forma de pensar, tal qual o mito da caverna de Platão. O que precisamos fazer então?
Precisamos sair da caverna.

229. Apud: SILVA, R. (2009). Linguagem e ideologia: embates teóricos. Linguagem em Dis(curso) , 158-159.

589
Figura 2
Fonte: Kanarbase230

CAPÍTULO 4 – A MÁSCARA DO TEATRO.

Escrevo na integra o trecho do livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, de Augusto Boal:

Este livro procura mostrar que todo o teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as
atividades do homem, e o teatro é uma delas. Os que pretendem separar o teatro da política preten-
dem conduzir-nos ao erro – e essa é uma atitude política. Neste livro pretendo igualmente oferecer
algumas provas de que o teatro é uma arma. Uma arma muito eficiente. Por isso é necessário lutar
por ele. Por isso as classes dominantes permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo
como instrumento de dominação. Ao fazê-lo modificam o próprio conceito de “teatro”. Mas o teatro
pode igualmente ser uma arma de liberação. Para isso é necessário criar novas formas teatrais cor-
respondentes. É preciso transformar.

A intrínseca relação do teatro com a política, segundo Boal, foi o pilar da construção desse trabalho por-
que entendemos que o homem, assim como dizia Aristóteles, é um ser político por natureza. Através das
bases do Teatro do Oprimido (BOAL, 1991) e de uma Educação Libertadora (FREIRE, (PATTO, 1997)),
o fazer pedagógico permitiria aos oprimidos a capacidade de perceber, refletir e se expressar no mun-
do. “Augusto Boal construiu uma trajetória artístico-educativa de fortalecimento das potencialidades
dos sujeitos em seus atos de criação estética, reflexão e conscientização política” (CANDA, 2012). Esse
fortalecimento foi visível durante o processo de construção do O Mundo Perfeito: conforme as cenas
iam sendo levantadas, junto com as movimentações corporais, a apropriação da dramaturgia redigida
fruto das ideias debatidas por todos, deixou de ser apenas falas decoradas para serem o espelho de suas
convicções contra o preconceito. De igual modo, quando a fala de Freire que diz “quando a educação
não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”, promove a queda das máscaras sociais, e aponta
novos caminhos para a minha relação com o outro. Quando os alunos-atores se viram também como
opressores, destruíram o discurso preconceituoso e se permitiram a um novo sentimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o material físico e humano, levantado e compartilhado, só tenho a agradecer pela experiên-
cia vivida. Sei que o sentimento foi de todos, porque as lágrimas confirmaram isso por várias vezes.

230, Disponível em: kanarbasecartoon.com (KANAR, 2014).

590
Educar também é pacificar, unir, construir, vivenciar e tantos outros verbos que a meu ver são sinôni-
mos. A latência de um trabalho está em todo o processo, a conclusão dele serve como matéria prima
para outros temas, outras trilhas, outras rodas.

Figura 3
Foto: Vanda Martins231

REFERÊNCIAS

ADRIAN, N. Cultura de massa ou indústria cultural. São Paulo: Editora Escala, 2008.
ALVES, J. A. Os Direitos Humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2002.
______. É preciso salvar os Direitos Humanos! [s.l.]: Editora Lua Nova, 2002.
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991.
BOAVENTURA, A. Guarulhos Web. Disponível em: <http://www.guarulhosweb.com.br/>. Acesso em: 10 mar. 2016.
BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CHAUÍ, M. O que é Ideologia? São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
CITELLI, A. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2002.
EUMC. Dicionário Informal, 01 out. 2014. Disponível em: <http://www.dicionarioinformal. com.br/significa-
do/islamofobia/8242/>. Acesso em: 05 mar. 2016.
FONSECA, Virginia Pradelina da Silveira. A contribuição de Max weber para os Estudos de Jornalismo: um en-
saio teórico-metodológico. Disponível em: <www.seer.ufrgs.br/intexto/ article/download/58506/35519>. Acesso
em: 05 maio 2015.

231. Fonte: Teatro na Comunidade. Disponível em: WWW.teatronacomunidade.com.br

591
JUNGMANN, M. Entenda o histórico e atuação dos grupos islâmicos em atuação no Mundo. EBC Agência
Brasil, 27 jan. 2015. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/ internacional/noticia/2015-01/entenda-
-o-historico-e-o-perfil-dos-grupos-islamicos-em-atuacao-no>. Acesso em: 03 maio 2016.
KANAR. Ilustração. État Du Monde État d’être, 02 jan. 2014. Disponível em: <http://etat-du-monde-etat-d-etre.
net/du-reste/presse-libre/allegorie-de-la-caverne-de-platon-ettempsactuels>. Acesso em: 03 out. 2015.
ONU. Declaração e Programa de ação Adotados na Conferência Mundial de Combate ao racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Brasília, DF: ONU, 2014.
______. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: UNESCO, 1948.
PATTO, M. Introdução à psicologia escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
PEDROSO, R. C. 10 de Dezembro de 1948 - A Declaração Universal dos Direitos Humanos. São Paulo: Compa-
nhia Editora Nacional, 2005.
REUTERS. Agência de Notícias. Disponível em: <http://br.reuters.com/news/world>. Acesso em: 02 fev. 2015.
ROSSI, Michele; RAMIRES, Mario Marques. A Imparcialidade como conceito de qualidade jornalística. Comu-
nicação & Mercado, UNIGRAM, Dourados, p. 78, Jan./Jul. 2013.
SILVA, F. C. O Direito Penal do Inimigo e a islamofobia nos Estados. Rio de Janeiro: Periódicos CAPES, 2016.
SILVA, R. Linguagem e ideologia: embates teóricos. Linguagem em Dis(curso), p. 158-159, 2009,.
TEATRO na comunidade. Guarulhos/SP. Foto. Disponível em: <https://picasaweb.google.
com/101751001467603297911/OMundoPerfeitoAdamastor>. Acesso em: 12 maio 2016.

592
Arte-Educação como fonte
de dignidade humana na velhice:
um estudo de caso
Kizz de Brito Barretto

INTRODUÇÃO

A educação dos idosos tornou-se uma questão relevante já no século 15, quando o filólogo e advoga-
do polonês Szymon Marycki se debruçou inicialmente sobre o tema. Séculos depois, em 1956, pela
primeira vez, o termo “geragógico” foi utilizado para designar uma pedagogia para os idosos (ZYCH,
1992, p. 31-35). Se hoje, academicamente, propugnar uma educação gerontológica já não nos causa
estranheza, ainda subsiste uma forte resistência ao desenvolvimento de práticas geragógicas verdadei-
ramente emancipatórias, direcionadas especialmente para o senescente, que de fato reconheçam o
valor dos idosos e os seus direitos.

No presente estudo de caso, nosso olhar se centralizou precisamente sobre a atividade arte-educativa
de uma pessoa longeva como forma de descortinar se o ensino e a aprendizagem da arte afetam a
experiência de dignidade dela atuando sobre a própria compreensão que ela possui do seu valor hu-
mano. Para tanto, partimos do entendimento que a:

Arte-educação não significa o treino para alguém se tornar um artista, não significa a aprendizagem
de uma técnica, num dado ramo das artes. Antes, quer significar uma educação que tenha a arte
como uma de suas principais aliadas. Uma educação que permita uma maior sensibilidade para
com o mundo que cerca cada um de nós. (DUARTE JÚNIOR, 1991, p. 12, grifos nossos).

Mundo que nos cerca e se incorpora à interioridade de cada ser humano para além das pressões que
a pluralidade das inter-relações sociais e culturais realiza sobre cada um de nós. Apesar de empreen-
dermos uma incursão não exauriente e de caráter não generalizador, centrando-nos, portanto, sobre o
universo particular do sujeito observado, essa abordagem apresenta relevância por sinalizar – em sua
singularidade – a potência da ressignificação humana contida na experiência do ensino e da aprendi-
zagem da arte (no caso, arte têxtil e origami).

Ademais disso, principia um debate salutar que se contrapõe à forte resistência social ao conceito
de “educabilidade” do idosos que identifica a velhice predominantemente como uma etapa de “di-

593
ficuldades, declínio das competências físicas e cognitivas e sentimentos gerais de tristeza e solidão”
(FERREIRA, 2007, p. 147), obstaculizando, e muito, o desenvolvimento de mais espaços voltados ao
ensino e à aprendizagem da arte para idosos no Brasil.

Para termos uma ideia, somente na década de 1960 e na década de 1970, ganham destaque o
desenvolvimento de atividades para os idosos nos serviços sociais. E, apenas anos depois desse
fato, ocorrerá a recepção do idoso no espaço universitário, por intermédio das Universidades
Abertas à Terceira Idade (na USP, UNATI). Tratam-se de representações fáticas de uma conquis-
ta tardia do direito humano à educação pelo gerontino, direito humano que sempre subsistirá
pelo homem e para o homem; principalmente na maturidade. Por isso mesmo, as Professoras
Meire Cachioni e Anita L. Neri aduzem que existem quatro modelos educacionais voltados para
o idoso, a saber:

O primeiro dos modelos é o da rejeição, abordagem que se fundamenta numa visão negativa da
velhice. [...] Considera a educação destinada aos idosos como um investimento desnecessário. [...]
O segundo modelo é o de serviços sociais. Ele une à educação à ideia de justiça social e vê os ser-
viços educativos para adultos maduros e idosos como um “remédio” que se traduz em ofertas de
entretenimento, lazer e contatos sociais a um público injustiçado e sem muitas possibilidades. [...] O
terceiro modelo concentra-se sobre os conceitos de participação e atividade, negando a passividade
e à segregação dos modelos anteriores. Nessa concepção, a educação se define como meio de manu-
tenção das habilidades e das experiências dos idosos para que possam intervir nos problemas da so-
ciedade, por meio de programas educacionais organizados para eles e por eles. [...] O quarto modelo
fundamenta-se na ideia de auto-realização e educação permanente, com o reconhecimento dos
valores inerentes aos idosos, dos seus direitos e de suas oportunidades (CACHIONI; Neri, 2004,
p. 30-31, grifos nossos).

Aliás, é fato que “o resgate da cidadania das pessoas idosas é um dos compromissos que a sociedade
deve ter” (MARTINS, 2001, p. 60), todavia a compreensão de que a pessoa longeva carrega consigo
direitos inerentes à condição humana não pode querer limitar (seja formal seja materialmente) esse
rol de direitos a um grupo selecionado de forma ardilosa para entregar menos a quem precisa de “tan-
to quanto” ou “mais” – como se à míngua do respeito à condição humana que o idoso possui, alguns
poucos direitos sociais já lhe bastassem.

Para refletirmos a arte-educação na maturidade – com o objetivo de compreender a repercussão dos


processos arte-educativos sobre a dignidade humana da senescente observada, não poderemos perder
de vista a percepção de que a arte continua a ser – em si mesma – um instrumento de transcendência.
Quando Herbert Read propôs, na década de 1940232, uma educação através da arte, percebeu – de
logo – que a:

Art is one of those things which, like air or soil, is everywhere about us, but which we rarely stop
to consider. For art is not just something we find in museums and art galleries, or in old cities like

232. Aliás, o trabalho de Herbert Read foi notadamente marcado pelo contexto da Segunda Guerra Mundial. A noção de educação através
da arte desse autor (e posteriormente de educacão para a paz) emergem justamente nessa conjuntura beligerante; sobre a qual historicamen-
te consolidar-se-á a necessidade de uma agenda mundial para a proteção dos Direitos Humanos (culminando na criação da ONU em 1945).

594
Florence or Rome. Art, however we may define it, is present in everything we make to please our
senses233. (READ, 1956, p. 15).

Mas, não somente ao deleite dos nossos sentidos se destina a arte-educação, haja vista que seria te-
merário vislumbrar qualquer que seja o processo educativo ou de formação, inclusive no ensino e
na aprendizagem da arte, sem atentar ao profundo potencial emancipatório que ele possui. Nesse
contexto, são absolutamente indispensáveis as considerações de Theodor Adorno, embora não vis-
lumbremos a emancipação do mesmo modo que ele. Conforme o próprio Adorno:

É bastante conhecida a minha concordância com a crítica ao conceito de modelo ideal (Leitbild).
[...] Em relação a esta questão, gostaria apenas de atentar a um momento específico no conceito de
modelo ideal, o da heteronomia, o momento autoritário, o que é imposto a partir do exterior. Nele
existe algo de usurpatório. É de se perguntar de onde alguém se considera no direito de decidir a
respeito da orientação da educação dos outros. As condições – provenientes do mesmo plano de lin-
guagem e de pensamento ou de não pensamento – em geral também correspondem a este modo de
pensar. Encontram-se em contradição com a ideia de um homem autônomo, emancipado, conforme
a formulação definitiva de Kant na exigência de que os homens tenham que se libertar de sua auto-
-inculpável menoridade.
A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evi-
dentemente, não assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de mode-
lar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos,
cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consci-
ência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido dizer
assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas
operar conforme seu conceito demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser
imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado. (ADORNO, 2003, p. 141-142, grifos
nossos).

Vale ressaltar que tais questões não podem ser afastadas de um estudo que se proponha a verificar
o quanto o ensino e a aprendizagem da arte afeta a experiência de dignidade humana da senhora
“D.” Não é sem razão que Adorno aduz firmemente que “O que estamos discutindo aqui não pode
ser relacionado ao colégio ou à universidade a partir de fórmulas consagradas, mas sim ao con-
junto da estrutura educacional, da pre-school-education até a formação para idosos. (ADORNO,
p. 151).

A velhice como inadequação social já foi o norte de incontáveis políticas públicas no que tange ao
idoso do ocidente. A emergência das instituições de longa permanência de séculos atrás (nem sem-
pre alertas à condição humana do idoso) aponta para um problema fulcral enfrentado por aqueles
que envelheceram e que subsiste nos nossos dias: a dificuldade de reconhecimento pela alteridade
da compreensão de que a dignidade do homem não finda nem se reduz com o avanço etário nem se
circunscreve a uma mera questão de saúde. O presente trabalho objetiva verificar como o ensino e a

233. A arte é uma daquelas coisas que, como ar ou no solo, está em toda parte sobre nós, mas que raramente paramos para considerar. Por
arte não consideramos apenas algo que encontramos em museus e galerias de arte, ou em cidades antigas como Florença ou Roma. Arte,
no entanto, podemos defini-la como algo presente em tudo o que fazemos para agradar os nossos sentidos.

595
aprendizagem do bordado macramé234 (arte em tecido) vem afetando a experiência de dignidade da
senhora D.

1. MATERIAIS E MÉTODOS

1.1. Casuística

A senhora D. foi escolhida por conveniência para participar do presente estudo. Trata-se de pessoa
humana cujas iniciais são D. A., do sexo feminino, com 73 anos de idade, do lar, e participa da oficina
de macramé uma vez por semana num Centro de Convivência de Idosos em São Paulo-SP, cidade
onde também reside com a família. Tem o ensino primário como grau de escolaridade e começou a
realizar atividades arte-educativas objetivando promover constante estimulação da memória e das
funções cognitivas.

Inicialmente, promovemos as devidas explicações sobre o estudo e os seus propósitos para a partici-
pante, de modo que, após visível interesse, ela pôde ofertar aquiescência com a coleta dos dados por
meio do Termo de Livre Consentimento Esclarecido. Passamos então à realização da entrevista com
uso de um gravador de voz, após um período de observação participante da senhora D. durante a
realização das atividades de ensino e aprendizagem da arte na oficina de bordado.

A senhora D. elucidou, entretanto, que já havia participado como aluna em outra oficina de arte no
mesmo centro de convivência, qual seja: a oficina de dobradura do papel (curso de formação em ori-
gami). Ela se matriculou, portanto, somente depois na oficina de bordado que frequenta atualmente.

A entrevistada se afirmou motivada pela curiosidade e pelo desejo de se inserir em um conjunto de


novas práticas. E, perguntada sobre a própria representação da dignidade, a senhora D. afirmou que
“é uma coisa que você traz com você que você não consegue nem explicar ela direito”. Indagada se as
atividades de ensino e aprendizagem da arte que realizou no passado e que empreendia atualmente
repercutiam sobre a experiência de dignidade que possuía, a entrevistada afirmou com visível entu-
siasmo:

– Ah, Sim! Sem dúvida. Tanto pra o meu valor como o valor das pessoas que estão comigo aqui. Por-
que nós fazemos dessa terapia uma brincadeira, uma união, então não tem coisa melhor. Toda vez
que eu passo aqui... são horas nossas mesmo. Você esquece de casa, de tudo mesmo. (...) Te chama
tanto a atenção pra fazer os pontinhos que você esquece do resto.

Com efeito, questionada se ao realizar as mencionadas atividades arte-educativas, a senhora D. já


havia se sentido valorizada como pessoa humana e em razão dos trabalhos plásticos que criou, ela
aduziu:

234. De acordo com Alberto B. Sousa, “as rendas e bordados são trabalhos artísticos efectuados manualmente com agulha e linha. A dife-
rença entre a renda e o bordado é que esta se sobrepõe a um fundo existente de tecido, enquanto a primeira se executa apenas com o fio,
criando seu próprio fundo.” No macramé, “pendura-se horizontalmente um pau ou uma ripa de madeira (...) atando-lhe os fios com que
se vai trabalhar (...). A seguir, entrançam-se e dão-se nós com os fios, entrecendo-os conforme melhor aprouver [...].” (SOUSA, 2003, p.
317-318).

596
– [...] hoje, eu trouxe meus paninhos aqui e todo mundo me valorizou. Então, não é só a gente; os ou-
tros que dão pra gente, então a gente engrandece. [...] Porque só você fazendo e mostrando e a pessoa
não falar nada. Você fala: bom, acho que não tá tão bom. É pra você e pra os outros!

A senhora D. preconizou a relevância da partilha no decorrer do contexto do ensino e da aprendiza-


gem da arte no qual se encontrava inserida e ressaltou não temer o erro ou mesmo qualquer crítica
aos trabalhos desenvolvidos quando desempenhava suas atividades. De acordo com a entrevistada:

– [...] se eu erro, eu desmancho. É o que eu falei pra você235... pode fazer pra você pegar o gostinho.
E mesmo que você fizesse certo ou errado, eu iria pedir desculpas pra você depois e desmanchar,
porque o meu ponto perto do seu é diferente.

Além disso, declarou nunca ter sido ou se sentido desvalorizada como pessoa humana na conjuntura
das atividades de ensino e aprendizagem da arte, seja na instituição em que está matriculada, seja no
centro do seu corpo familiar.

Indagada se o macramé e o origami acabam valorizando também as diferenças de cada ser humano, a
senhora D. defendeu que tais práticas destacam positivamente “a diferença de cada um, o jeito. Cada
um vai ter o seu jeito de fazer. Você não vai pegar o meu jeito. Você vai criar o seu jeito de se mostrar”.
A entrevistada também afirmou que, ao realizar as atividades arte-educativas, sentia-se extremamen-
te “– Orgulhosa comigo, porque estou aprendendo na idade em que eu estou. Eu vim e consegui,
então isso é um orgulho pra mim”.

Os dados discursivos obtidos na confluência dessa entrevista, somados aqueles oriundos da obser-
vação participante (registrada pela tomada de notas) foram dispostos em duas categorias básicas, a
saber: perfil da senhora D. e afetação da dignidade pela arte-educação. Promovida a categorização,
submetemos os nós aos cruzamentos necessários para possibilitar a análise de conteúdo com utiliza-
ção do software de apoio à pesquisa qualitativa (Nvivo), a fim de auxiliar na interpretação do corpo de
referências coletado – partindo da nossa única fonte (por se tratar de um estudo de caso).

Após todo o exposto, realizamos a análise de conteúdo dos trechos da entrevista (reunidos em suas
categorias e subcategorias), dentro da proposta de Laurence Bardin que a compreende “como un
conjunto de técnicas de análisis de las comunicaciones utilizando procedimientos sistemáticos y ob-
jetivos de descripción del contenido de los mensajes” (BARDIN, 2002, p. 29).

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A categorização do discurso da senhora D. possibilitou maior compreensão dos sentimentos associa-


dos às suas práticas arte-educativas. Verificamos explicitamente a existência de uma afetação positiva
da experiência de dignidade da idosa quando realiza atualmente atividades na oficina de bordado e
quando desenvolveu a técnica de dobradura de papel na oficina de origami – em um período anterior
à realização desse estudo de caso.

235. Hora em que a entrevistada nos permitiu continuar um trabalho dela para termos a nossa própria experiência.

597
Tanto é assim que sequer identificamos na entrevista a emergência de sentimentos negativos vincu-
lados ao contexto do ensino e da aprendizagem da arte pelo senhora D., algo de rápida percepção ao
consultarmos a tabela abaixo:

Tabela 1 – Número de referências no discurso da senhora D.

Como a dignidade da senhora D. é afetada pela arte-educação? Número de referências


1) de forma negativa 0
2) de forma neutra 0
3) de forma positiva 6

Se analisarmos a cobertura textual dos trechos categorizados da entrevista, também perceberemos


profunda predominância de um sentimento muito positivo – por parte da senhora D. – no que tange
às atividades arte-educativas realizadas e não somente com relação aos benefícios cognitivos que mo-
tivaram a entrevistada a iniciar o contato com o ensino e a aprendizagem da arte.

Tabela 2 – Cobertura das referências indicativas dos sentimentos positivos


da senhora D.

Referências codificadas indicativas dos sentimentos


Cobertura do trecho no discurso analisado
positivos da senhora D. ante as atividades arte-educativas
Você esquece de casa, de tudo mesmo. 1,53% Cobertura
[...] porque dá mais calma, mais paciência... 1,66% Cobertura
Tá vendo aí. É isso que eu te falei: a troca! 1,86% Cobertura
[...] eu trouxe meus paninhos aqui e todo mundo me
valorizou... 2,28% Cobertura
A diferença de cada um, o jeito. Cada um vai ter o seu jeito
de fazer. Você não vai pegar o meu jeito. Você vai criar o 6,05% Cobertura
seu jeito de se mostrar.
Orgulhosa comigo, porque estou aprendendo na idade em
que eu estou. Eu vim e consegui, então isso é um orgulho 4,93% Cobertura
pra mim.

Considerando o teor da fala da própria senhora D., como a dignidade humana dela é afetada pela
arte-educação? Podemos perceber, inclusive pela presença evidente de um elevado senso de autorre-
alização (cumulado ao respeito da diversidade), que o ensino e a aprendizagem da arte afetaram de
uma maneira extremamente positiva a experiência de dignidade da entrevistada tanto pela valoriza-
ção da sua humanidade como pela partilha do sensível (que marca as trocas arte-educativas).

Dentro desse contexto, evidentemente já há no Brasil significativas obras e trabalhos promovendo


uma importante conjunção entre a arte e o direito ou mesmo trazendo à lume singularidades dessa
relação. Ocorre, entretanto, que, em grande medida, esses trabalhos se concentram muito mais sobre
o aspecto normativo do direito em relação à arte ou na contribuição das noções da arte e da estética
para o direito.

598
Como observa Rubén Dalmau no artigo Arte, derecho y derecho al arte, a preocupação do direito
tem sido muito mais regulatória do que protetiva (DALMAU, 2014, p.36), não se desconsiderando
aqui que, na regulação, existe também proteção. A grande questão é verificarmos se, além dessas
visões, é possível vislumbrarmos a arte-educação como um dos sustentáculos da condição huma-
na da senhora D., mesmo dentro de um recorte do particular em que se constitui esse estudo de
caso. Apenas para termos uma ideia importância desse tema, na Escola de Comunicações e Artes
(ano de 2005), Giovani Salmeron já se dedicou, em monografia de conclusão de curso, sobre as
oficinas de arte, tomando-lhes como fontes restauradoras da dignidade, do conhecimento e da
sensibilidade.

O nosso primeiro problema reside no fato de que a dignidade não é mensurável tão facilmente. Mas,
ao contrário do que muitos propugnam, já existem inclusive protocolos validados para aferição pelo
menos da dignidade atribuída por parte do idoso, cuja utilização vem se confirmando cada vez mais
no meio científico como uma frutífera possibilidade para avaliação da eficácia das intervenções com
idosos e exploração da relevância dessa atribuição de dignidade (JACELON; CHOI, 2014, p. 2150-
2160).

Ocorre, mesmo assim, que a complexidade do conceito de dignidade não se esgota aí e continua
sendo enfrentada e sentida não apenas pela filosofia (vocacionada a fabricar definições), mas por
todos nós também, de tal forma que, se perscrutarmos o que é dignidade, é possível que surjam
diferentes respostas e é bem provável que, por mais diversas que sejam, elas gravitem no entorno
da órbita da dignidade (acoplando-se a ela) sem, contudo, cingi-la como um todo. Poderíamos
dizer que a dignidade é esponja de absorção incalculável deitada sobre um manancial que não tem
fim. De tal sorte que, quando cremos encontrar um sentido que lhe abarque em plenitude, já nos
fazemos atrasados para o que ela se tornou. Daí por que escolhemos promover um recorte aqui
sobre o caso da senhora D. para verificar se a arte-educação afeta a dignidade dela e, sobretudo,
considerando que os:

[...] debates around the meaning of dignity and entitlements or services are part of a wider concern
over the status of the aged in modern societies. There are some who believe that age-based entitle-
ments today express a stereotypical view of the elderly (as needy, dependent, vulnerable): an outdated
“failure model” of aging which ought to give way to treatment in keeping with the empirical diversity
and heterogeneity of the aged as a group. Similarly, there are those who argue that the treatment of
elders under a rule-governed framework of public welfare inevitably fails to take account of - that
is, to show respect for – individual needs and differences. Here to, the argument strikes a familiar
chord. Under a regime bureaucracy, it is said, people are treated as objects: that is, disrespectful and
in violation of their dignity236 (DISCH; DOBROFF; MOODY, 1998, p. 22).

236. [...] debates em torno do significado da dignidade e dos direitos ou serviços fazem parte de uma preocupação mais ampla sobre status
da velhice nas sociedades modernas. Há alguns que acreditam que os direitos baseados na idade hoje expressam uma visão estereotipada
dos idosos (como carente, dependente e vulnerável): um “modelo fracassado” e desatualizado do envelhecimento que deve dar lugar a um
tratamento de acordo com a diversidade empírica e a heterogeneidade dos idosos como um grupo. Da mesma forma, existem aqueles que
argumentam que o tratamento de pessoas idosas no âmbito de uma agenda de governo tomada por regras de bem-estar social, inevitavel-
mente, falha por deixar de levar em conta que é preciso mostrar respeito pelas necessidades e diferenças individuais. Aqui esse argumento
golpeia uma questão fundamental. Sob um regime de burocracia, diz-se que as pessoas são tratadas como objetos: isto é, de forma desres-
peitosa e em violação de sua dignidade. (Tradução nossa).

599
Aliás, viola a dignidade da pessoa humana que envelheceu não somente a desconsideração das idios-
sincrasias que assinalam a senectude, particularizando-a em sua própria diversidade, mas também o
fornecimento limitado de espaços para o exercício de direitos primordiais – a exemplo do direito à
arte-educação. Nesse tocante, e considerando que o ensino e a aprendizagem da arte também se en-
cartam entre os direitos humanos:

[...] há de ser definitivamente afastada a equivocada noção de que uma classe de direitos (a dos di-
reitos civis e políticos) merece inteiro reconhecimento e respeito, enquanto outra classe de direitos
(a dos direitos sociais, econômicos e culturais), ao revés, não merece qualquer observância. Pela
ótica normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos sociais,
econômicos e culturais não são direitos legais. A ideia de não racionalidade dos direitos sociais é me-
ramente ideológica e não científica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acioná-
veis, exigíveis e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como
direitos e não como caridade, generosidade ou compaixão. (Piovesan, 2006, p. 19).

Por maiores que sejam os esforços, não raras vezes dos próprios Estados, para o convencimento co-
letivo de que os direitos sociais, econômicos e culturais podem sofrer adiamento indefinido para sua
concretização, o ensino e a aprendizagem da arte, enquanto direito humano, não são negociáveis nem
quando nos faltam outros direitos igualmente humanos apregoados como essenciais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos, com o estudo de caso da senhora D., que a arte-educação afetou positivamente a sua
experiência de dignidade, proporcionando-lhe um sentido de autorrealização profundamente pode-
roso que não congela a experiência do ensino e da aprendizagem da arte por essa pessoa humana sob
um corpo mais ou menos definido de ganhos exclusivamente terapêuticos ou lúdicos (embora eles de
fato possam ocorrer) nem reduz a potencialidade de vivência arte-educativa a um mero conjunto de
práticas pedagógicas preestabelecidas.

Para a senhora D., arte-educação é fonte de dignidade humana. Mormente, levando em consideração
a receptividade da arte que, nos processos de ensino e aprendizagem, não diferencia nem estigmatiza
na origem, mas acolhe e ressignifica o humano em suas particularidades, revelando-lhe nas suas fei-
ções mais essenciais – através de uma fala diferenciada e diferenciadora.

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600
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601
A xilogravura inserida
nos processos de ensino de arte:
ensino fundamental II
Juscélio de Holanda Cavalcanti/ Gustavo Henrique da Silva Pereira

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa faz um recorte da minha experiência como professor temporário da rede estadual de
Educação do Ceará, que foi influenciada pela minha prática enquanto estudante do Curso de Licen-
ciatura em Artes Visuais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).
Desde o primeiro contato com a xilogravura, identifiquei-me com essa manifestação milenar. A partir
dessa relação de afinidade e experiência com a gravura em madeira, escolhi-a como meu objeto de
estudo e, assim, incorporei-a na minha práxis de professor.

Como poderemos transformar a escola pública neste lugar “ideal” para tais realizações? Como trans-
formar as aulas de Arte atraentes para o aluno? Eis, o grande desafio identificado pelo professor/
artista/pesquisador. Como uma pesquisa em ensino de Artes Visuais que, conforme Pimentel (2006,
p. 311) “é aquela cuja ênfase está no processo de ensino de Arte, seus fundamentos e as reflexões so-
bre eles, sua prática e sua reflexão sobre ela”, a práxis foi determinante para que o objeto de estudo se
constituísse num referencial para a pesquisa que esteve em constante processo. Como os alunos do 6º
ano da Escola de Ensino Fundamental e Médio Santa Luzia percebem/compreendem o objeto artísti-
co gravura? Sendo assim, para responder esta pergunta de partida, organizei meu plano de aula para
atividades em sala de aula em seis encontros, estabelecendo metas para cada um deles.

Optamos pela pesquisa-ação, pois esta é uma forma de investigação in loco em que há por parte do
investigador não apenas o interesse de investigar algo, mas também de transformar. “O processo de
pesquisa é realizado com avaliações e discussões no grupo tanto para redirecionar os planos, quanto
para partilhar o conhecimento entre os envolvidos” (Matos e Vieira, 2002. p. 48). Ressaltamos ainda
que esta pesquisa possui cunho qualitativo.

Este trabalho tem como fontes bibliográficas sobre o ensino da arte: Barbosa, 2010; Ferraz & Fusari,
2010; sobre xilogravura: Costella, 1984; Herskovits, 1986; e metodologia Matos & Vieira, 2002, dentre
outros que auxiliaram na contextualização do objeto e sua problemática.

602
Na primeira seção do presente trabalho, abordamos brevemente a gravura do ponto de vista histórico
e a Literatura de Cordel como porta de entrada para a compreensão da xilogravura por parte dos
alunos. A segunda seção trata da arte educação e a introdução da gravura no ensino. A terceira seção
faz uma breve abordagem sobre a metodologia, o público alvo e as atividades desenvolvidas nos seis
encontros que ocorreram. Por fim as considerações finais e referências.

1. A XILOGRAVURA UTILIZADA COMO MEIO DE APRENDIZAGEM NO ENSINO DE ARTE

1.1. Um pouco da história da xilogravura

A xilogravura teve sua origem na China onde, inicialmente, gravavam seus ideogramas com estiletes
em finas tiras de bambu, possivelmente este tenha sido um dos motivos que induziu os chineses a es-
crevem verticalmente, de cima para baixo. Mais adiante, a partir do século V, iniciaram a estampagem
com selos e carimbos sobre papel (Figura 1). “Depois disso, foi um passo relativamente pequeno para
a invenção de tipos móveis que, ao contrário do que se acredita, quatrocentos anos antes da invenção
de Gutemberg” (HERSKOVITS, 2005, p. 91).

Figura 1. Carimbos chineses


Fonte: http://www.mmm.org.br/index.php?p=8&c=1160&pa=pf&pf=511

A primeira grande tiragem de uma xilogravura, entretanto, foi feita no Japão, quando a imperatriz
Shotoku mandou imprimir um milhão de cópias de um talismã budista para distribuir para a popu-
lação. Percebe-se, portanto, que a xilogravura nasceu como forma de multiplicação de uma imagem
e não como arte.

Também na Europa, a popularização da xilogravura, ocorreu a partir da Renascença, apesar de


estar vinculada às imagens e não às letras, não tinha qualquer objetivo estético sendo “documentos
de fé que evoluíram, da inscrição de pequenos textos contendo o nome do santo [...] até os textos
tabulares, em que imagem e letra eram gravados na mesma matriz” (HERSKOVITS, 2005, p. 99).

Segundo Costella (1984, p. 75), “a xilografia encontrou seu maior e mais brilhante momento, como
atividade puramente artística, na primeira metade do Século XX”. Esse apogeu teve como promotores
principais o Fauvismo francês e o Expressionismo alemão. Segundo o mesmo autor (1984, p. 79), a
xilogravura como técnica favoreceu tais movimentos, pois, como diz:

603
Sem dúvida, o Fauvismo e o Expressionismo Alemão encontraram na xilogravura uma de suas
principais formas de expressão. Valorizaram-na e a elevaram ao seu mais brilhante momento. Em
nenhuma outra ocasião a xilogravura esteve de modo tão marcante associada a uma corrente ar-
tística.

Figura 2. MUNCH. “Head to Head”,


xilogravura colorida, 50 x 35cm, 1918.
Fonte: http://dailymodalisboa.blogspot.com.
br/2013/2/a-arte-de-edvard-munch-em-exi-
bicao-no.html

Apenas no século XX, depois da invenção dos processos litográficos e fotomecânicos, passando, no
século XIX, pela descoberta da gravura Ukiyo-e, no Japão, que, no ocidente veio a tomar o status de
arte. Dentre os mais conhecidos, foram Gauguin e Munch os primeiros a fazer experiências com a
xilogravura (Figura 2).

1.2. A xilogravura na literatura de cordel

Leandro Gomes de Barros (1865-1918) é reconhecido como o primeiro grande poeta de cordel, tendo
suas publicações difundidas pelos estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará.
Joseph Luyten calcula que no Brasil circularam mais de 20.000 livretos de poesias populares (COS-
TELLA, 1984, p. 94).

Os principais grupos de gravura popular estão em Juazeiro do Norte, no Ceará cujos nomes princi-
pais são Walderedo Gonçalves, Abrão Batista, Mestre Noza e Stélio Diniz. Além do grupo de Caruaru,
em Pernambuco, que reúne Dila, José Costa Leite, J. Borges e Francisco Amaro.

A xilogravura nordestina alcançou projeção internacional, sobretudo, depois que Robert Morem editou,
em 1965, uma coleção de catorze gravuras representando a Via Sacra gravada por Mestre Noza.

De acordo com José Neistein (1981, p. 111): “Os folhetos são hoje objeto de estudo acadêmico, bem
como, fonte de renovação poética, musical, da narrativa e das artes visuais no Brasil, num setor muito
representativo dos criadores em nível erudito”. Uma fonte de pesquisa sobre a Xilogravura encontra-
-se no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará – MAUC, criado pelo reitor Antonio Martins
Filho, caririense e ex-tipógrafo.

604
Na literatura de cordel, o texto se apresenta em versos com rimas, alguns poemas são ilustrados com
xilogravuras, o mesmo estilo de gravura usado nas capas. As estrofes237 mais comuns são as de dez,
sete, seis ou quatro versos. Segue uma estrofe de cordel como exemplo.

Quadra
A briga do sabão com o sabonete
O sabonete cheiroso,
Bonitinho e perfumado;
Ele ouviu alguns rumores
Que o deixou encabulado.
Autor: Izaías Gomes de Assis238

Os autores recitam esses versos de forma melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola, além de
fazerem as leituras ou declamações muito empolgadas e animadas para conquistar os possíveis com-
pradores.

2. A XILOGRAVURA NO CONTEXTO ESCOLAR

2.1. A Caracterização da pesquisa

Esta seção consiste na definição das estratégias que foram utilizadas para levar a xilogravura ao con-
texto educacional. Antevendo a realização deste trabalho, durante a graduação, foi possível ministrar
oficinas de gravuras em várias escolas, as quais fui lotado como professor substituto da rede estadual
no Ensino Fundamental II e Médio, além de Ensino Infantil em uma escola da rede privada.

Uma ferramenta que utilizamos para realização deste trabalho foi a pesquisa de campo. Nosso interesse
foi buscar os significados da arte, na linguagem da xilogravura, mais precisamente com alunos do 6º
ano do ensino fundamental da Escola Estadual Santa Luzia. A ida à escola tornou-se primordial para
verificarmos, na prática, se a xilogravura desperta algum significado e interesse para o ensino de Arte.

Para responder à pergunta de partida da pesquisa seria necessário observarmos professores e alunos.
Acompanhá-los em sala de aula, na tentativa de conhecer como é desenvolvido o processo de ensino-
-aprendizagem nas aulas teóricas e práticas de Arte na Escola Santa Luzia. O propósito foi descobrir-
mos as opiniões, reações, entendimento e sentimentos dos alunos sobre o tema da pesquisa.

Ao procurar por uma escola para aplicação da pesquisa, observamos que as escolas particulares, em
que houve a visita, não ofereciam a disciplina Arte em seu currículo no ensino fundamental e médio.
Fato esse que contraria a Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB: “O
ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica,
de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (Cap. 2, art. 26, § 2º).
Por estes motivos, escolhemos uma instituição pública de educação para a realização desta pesqui-

237. Estrofe é um grupo de versos que apresentam, comumente, sentido completo, o mesmo que estância. Existem vários tipos de estrofes,
no cordel as mais usadas são: quadra (que caiu em desuso), sextilha, setilha e décima.

238. Disponível em: http://cordeldobrasil.com.br/v1/aprenda-fazer-um-cordel/ Acesso em 13/04/2014.

605
sa. A escola Santa Luzia recebe alunos das comunidades de seu entorno, como as comunidades da
Graviola, Baixa Pau, Poço da Draga, Praia de Iracema e Campo do América, além de bairros mais
distantes como Caça e Pesca, Serviluz, Mucuripe, Varjota, entre outros.

2.2. A gravura e sua inserção no contexto escolar

Essa postura, pautada na Proposta Triangular, desenvolvida a partir do final dos anos 70 do século
XX, postula o ensino da Arte como uma forma de integração entre o fazer artístico do aluno e o fazer
artístico da sociedade.

Até pouco tempo, a gravura não era pensada no ensino da arte para a educação básica. Primeiro por-
que as práticas de ensino de arte não davam ênfase ao fazer artístico. Em segundo, devido ao fato de
que os materiais tradicionais, como goivas, canivetes e pontas secas, são inadequados para o manu-
seio por crianças. Além disso, pela dificuldade de aquisição das ferramentas necessárias para a prática
dessas atividades em sala de aula.

Hoje, entretanto, num mundo em que o pensamento está voltado para o reaproveitamento de toda
sorte de produtos descartáveis, percebeu-se que muito daquilo que, costumeiramente, era colocado
no lixo, como pedaços de papelão e bandejas de poliestireno expandido - conhecido como isopor -
pode ser usado no ensino da arte, particularmente na introdução ao ensino da gravura.

As aulas de campo, através da visita aos diversos equipamentos culturais em nossa cidade, possibilita-
ram que os alunos tivessem oportunidade de conhecer as obras de grandes artistas. A visita à expo-
sição de Rubem Grilo na Caixa Cultural, que comemorou o Centenário de Luiz Gonzaga, no Dragão
do Mar, contribuiu para introduzir a gravura no universo dos estudantes.

Ao usar objetos normalmente descartados, como as bandejas de isopor, em sala de aula, é possível
evidenciar “a importância de novas práticas pedagógicas para o desenvolvimento cultural, levando o
aluno a ter uma diferente percepção do mundo que o rodeia”, como fez a professora Solange Bonato239
em relato ao Arte na Escola.

Percebemos, então, que a gravura é uma técnica que surpreende, devido às incontáveis possibi-
lidades que a encerra, como a artística e a didática. As formas de mostrá-la, também, podem se
desdobrar, como na Série Cinematográfica, que remete ao cinema. Diante desse grande potencial, a
abordagem da xilogravura em sala de aula se tornou relevante e acessível à compreensão dos estu-
dantes, portanto, escolhemos como conteúdo para o trabalho em sala de aula no Estágio III.

239. Artigo: Uso de materiais alternativos para experiências de gravura. Solange Bonato (Graduada em Ed. Artística com habilitação em
Artes Plásticas pela Universidade do Oeste de SC, (UNOESC-XXE) e Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior, pela
Faculdade Iguaçu ESAP- Inst. de Est. Avançados e Pós-Graduação). Resumo: apresenta um relato de ensino-aprendizagem referente a
uma experiência na disciplina de arte com alunos do ensino fundamental. Tal atividade foi baseada no estudo de gravura e uso de materiais
alternativos para a prática de gravura em sala de aula. Disponível em: BONATO, Solange. Uso de materiais alternativos para experiências
de gravura: relato de experiência para o programa Arte na Escola. Disponível em: <http://www.artenaescola.org.br/sala_relatos_artigo.
php?id=599>. Acesso em: 13 abr. 2014.

606
2.3. A arte inserida nos processos de ensino aprendizagem de alunos do nível fundamental: a
proposta triangular (1977)

A proposta triangular de Barbosa (1991) propõe os seguintes tópicos, a saber:

• Conhecer a arte: que resulta do conhecimento de sua história, possibilitando o entendimento de


que ela se dá num contexto, tempo e espaço onde se situam as obras.
• Apreciar arte: em que analisa a obra de arte, objetivando desenvolver a habilidade de ver e descobrir
as qualidades da obra de arte e do mundo visual que cerca o apreciador.
• Fazer arte: desenvolver a criação de imagens expressivas.

Na proposta triangular de Barbosa (2010), como afirma a autora, há que se formar professores espe-
cializados no ensino de artes. O professor precisa conhecer essas teorias para que possa tornar signi-
ficativo o processo ensino-aprendizagem.

3. ETAPAS DE CAMINHO CONSTRUÍDO

3.1. A regência

Antes de adentrar as considerações sobre a aplicação do projeto em sala de aula, é relevante falar algo
sobre a recente relação com a docência.

A Licenciatura na prática de sala de aula é a junção de três fatores, na qual o professor tem que ar-
ticular. Manter a atenção dos alunos (e isso depende do seu nível de conhecimento sobre o assunto
abordado). Ser capaz de interagir com o grupo. Lidar com conflitos. Dar aulas vai além do domínio
de um conteúdo, pois exige do professor as qualidades citadas acima, que vão muito além do conhe-
cimento da disciplina.

Para alcançar tais estratégias foi necessário incorporar, na prática da docência, o planejamento prévio
das aulas de arte para ter o domínio do conteúdo e do tempo de cada atividade realizada. Além da
observação do trabalho de professores mais experientes.

3.2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A APLICAÇÃO DA XILOGRAVURA NO ENSINO


DE ARTE NAS SÉRIES INICIAIS.

A aplicação da pesquisa foi possível porque a escola forneceu as condições necessárias, proporcionan-
do o êxito da mesma. Forneceu computador, data-show, lápis, papel A4 e tinta guache. O restante do
material ficou sob a responsabilidade do professor-estagiário.

1º Encontro

O que é xilogravura? Foi com esta pergunta que começamos nossa primeira aula sobre o nosso objeto
de pesquisa. Como esperado, os alunos não conseguiram responder a pergunta, porém, após uma
pequena explicação, os mesmos, começaram a demonstrar o que conheciam sobre o assunto, como

607
levamos vários exemplares de folhetos de literatura de cordel, as coisas foram clareando sobre o tema.
Distribuímos entre eles os exemplares de cordel, enquanto preparávamos o data-show para exibição
do curta de animação de Ítalo Cajueiro: A moça que dançou depois de morta. Narrativa baseada em
uma história de cordel de J. Borges, renomado artista popular, e produzida inteiramente com xilogra-
vuras originais do próprio autor.

O vídeo tornou a aula mais atraente e os alunos acompanharam a história com muita atenção e des-
contração. Percebemos, então, que o vídeo é um instrumento muito importante no processo de ensi-
no-aprendizagem em sala de aula.

Durante esta primeira aula sobre xilogravura, aproveitamos para apresentar aos alunos nossa produ-
ção artística e materiais como goivas, rolos para entintamento, lixas e colheres de pau.

Além das imagens que circularam nas mãos dos alunos, algumas matrizes em madeira foram
mostradas no decorrer da aula. Perguntas “como se faz isso?”, “quando vamos fazer?”, referindo-
-se às imagens de xilogravuras que circulavam entre eles. Outras perguntas como essas foram
surgindo, ao final da aula, passei uma tarefa, pedi aos alunos que pesquisassem sobre J. Borges e
sua obra.

2º Encontro

Fomos recebidos com entusiasmo pelos alunos e professora. Logo surgiu a pergunta “vai ter vídeo?”
Distribuímos algumas gravuras e matrizes para que os alunos se familiarizassem com o material de
pesquisa. Exibimos através do PowerPoint as biografias dos artistas J. Borges e Gilvan Samico (Vide
figura 4 e 5).

Figura 3. J. Borges, Moça roubada, xilogravura, Figura 4. Gilvan Samico, O sagrado (1997), xilogravura 56x81 cm.
40x30 cm. Fonte:http://rwarquitetura.blogspot.com.br/2013/11neuronios-
Fonte: http://etudeslusophonesparis4.blogspot.com. -as-xilogravuras-de-gilvan
br/2012 /10/um-dedo-de-prosa-com-j-borges.html

As opiniões sobre os trabalhos dos artistas exibidos em sala foram variadas, as comparações não
podiam deixar de existir. A obra de J. Borges parece com desenho animado e tem um traço muito
infantil, dizia um. O de Gilvan Samico é mais caprichado! Falava outro.

608
3º Encontro

Eles olhavam curiosamente e sentiam a textura do relevo com as mãos, pareciam surpresos e felizes,
ao entender, o processo de formação do relevo. A comparação com os objetos do dia a dia é inevitável.
“Professor, a xilogravura é um carimbão?”, foi a afirmação de um dos alunos. Aproveitei para distri-
buir carimbos, almofadas e papel para que eles usassem.

O entusiasmo foi tanto, que por um momento, hesitei que rasgassem as gravuras, eles queriam ver
tudo, e não só ver, mas tocar as matrizes e a impressões e perceber na própria impressão, que ela tam-
bém produzia uma textura e brilho diferente. Além da oportunidade de entrarem em contato direto
com impressões originais e os materiais utilizados para realização da xilogravura, em um segundo
momento foram realizadas leituras, feitas a partir de imagens, que fazem parte da história da gravura,
além das minhas próprias gravuras.

Durante a aula teórica deixamos que os alunos pegassem nas goivas, individualmente, olhassem com
cuidado, para não se machucarem. Ao final da aula pedimos que trouxessem um desenho para con-
fecção das matrizes para os trabalhos em gravuras.

4º Encontro

Como sempre, alguns alunos não trouxeram o desenho que pedi na aula anterior e distribui folhas de
papel A4 para que fizessem na aula. Comecei falando sobre uns dos erros mais comuns, o de espelha-
mento, inversão do desenho quando impresso, que ocorreram nas outras aulas de xilogravura.

Alguns alunos também ocorreram no mesmo erro quando tentavam reproduzir o próprio nome. Ao
observarem a impressão e os “erros”, os próprios alunos entenderam melhor como funcionava o pro-
cesso, durante a segunda tentativa alguns corrigiram com uma maior facilidade. Para que tal erro não
se repetisse, utilizamos o papel carbono para decalcar e transferir a imagem invertida para o isopor
“matriz”. Apesar do atraso pelo fato de que alguns alunos fizeram seus desenhos na sala e devido a
quantidade de alunos na turma que são 38, conseguimos transferir os desenhos para as bandejas de
isopor e vários terminaram seus trabalhos, faltando agora só a impressão.

Ao final da aula solicitamos que alguns alunos trouxessem, para próxima aula, colheres de pau para a
prática da atividade final, a impressão dos trabalhos.

5º Encontro

Chegando a sala de aula, os alunos estavam ansiosos para a realização da impressão de seus trabalhos.
Mais uma vez poucos trouxeram as colheres de pau que solicitamos na aula anterior. Como a sala de
aula teria que ser adaptada para realizarmos tal tarefa, perdemos alguns minutos arrumando as me-
sas, cobrindo-as com jornal e prendendo com fita crepe.

Selecionamos alguns ajudantes para nos auxiliar na impressão dos trabalhos, já que além do tempo
reduzido, contávamos com uma turma numerosa e precisávamos disciplinar as atividades com ordem
e eficiência. Assim mesmo, não imprimimos todos os trabalhos, ficando para a próxima aula.

609
6º Encontro

Com a sala pronta, reiniciamos os trabalhos de impressão. Apesar da tentativa de organização, alguns
problemas ocorreram, como já era de se esperar em uma turma que não tinha nenhuma experiência
com o fazer artístico.

Os alunos relataram que não tinham nenhum interesse nas aulas de Artes, alguns disseram “a gente
só faz escrever. Arte, arte mesmo a gente não fez, só quando o tio começou a ensinar”. Com isso per-
cebemos a importância do ler imagens, contextualizar história da arte e o fazer artístico, pois, a partir
do momento que o aluno passa por somente uma dessas experiências, a mesma acaba se tornando
enfadonha, repetitiva.

Sem a interação do aluno com o conteúdo, há dificuldade para a compreensão da arte. Tais aspec-
tos nos mostra a importância do artista-professor, pois como um professor que não tem experiên-
cia ou vivência artística poderia transmitir e entender os seus alunos? Terminamos as atividades
com a exposição dos trabalhos. Foi possível perceber a satisfação dos alunos com os resultados
obtidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que tange a investigação proposta: como os alunos do 6º ano da Escola de Ensino Fundamental
e Médio Santa Luzia percebem/compreendem o objeto artístico gravura? Constatei que uma aula
por semana com apenas 50 minutos de duração, é muito difícil trabalhar propostas satisfatórias para
desenvolver estratégias educacionais que operam na compreensão crítica das diversas manifestações
artísticas.

Apresentar a xilogravura através da Abordagem triangular proporcionou aos alunos uma experiência
inédita, a utilização de vídeos, a prática artística através do fazer artístico foram ações que os alunos
não estavam acostumados, apesar de dispor destes recursos, já que os professores que ministram
Artes nas escolas, apesar da boa intenção e da improvisação não conseguem desenvolver o interesse
dos alunos.

Acredito que consegui desenvolver meus objetivos do Projeto Pedagógico e estes tiveram resultados
positivos, criando propostas em que os alunos puderam vivenciar e experimentar situações em que
utilizaram as práticas de xilogravura e transformaram sua visão e percepção por meio dos mesmos.
Este estudo teórico sobre os conceitos trabalhados e sobre a necessidade de proporcionar uma apren-
dizagem significativa, contribuiu para a elaboração e execução de um projeto educativo satisfatório,
atendendo ao objetivo inicial.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no ensino da arte: anos 80 e novos tempos. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BORGES. José Francisco. José Francisco Borges: Depoimento [setembro 2005]. Entrevistadores: Claudilaine
Lima e Sandra Guedes. 2005. Entrevista concedida para o artigo, O Reino Mágico da Xilo (gravura).

610
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Brasília: MEC/SEF,1997, v. 6 – Arte.
COSTELLA, Antônio. Introdução à gravura e história da xilogravura. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira,
1984.
FERRAZ, Maria Heloísa Corrêa de Toledo; FUSARI, Maria F. de Rezende e. Metodologia do ensino de Arte. São
Paulo: Ed. Cortez, 2010.
HERSKOVITS, Anico. Xilogravura arte e técnica. Porto Alegre/RS: Tchê! Editora Ltda., 1986.
MATOS, Kelma Socorro Lopes; VIEIRA, Sofia Lerche. Pesquisa: o prazer de conhecer. In: MATOS, Kelma So-
corro Lopes; VIEIRA, Sofia Lerche. Pesquisa Educacional: o prazer de conhecer. Fortaleza: Edições Demócrito
Rocha/UECE, 2002.
NEISTEIN, José. Feitura das artes. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1981.
PIMENTEL, L. G. O ensino da arte e sua pesquisa. In: NAZARIO, Luiz & FRANÇA, Patrícia (Orgs.). Concep-
ções contemporâneas da arte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

611
Cor LinhAção: o estudo da cor
como experiência educativa
no contexto escolar
Edilania Vívian Silva dos Santos/
Cristiane Aparecida Romão da Silva/
Francisco Luiz Fernando Silva

INTRODUÇÃO

Neste artigo, relataremos o processo vivenciado no PIBID do Curso de Licenciatura em Artes Visuais
da Universidade Regional do Cariri – URCA. O programa existe desde 2012, coordenado por Fábio
José Rodrigues da Costa, líder do grupo de pesquisa e coordenador, e Vanessa Raquel Lambert de
Souza, que ingressou recentemente no programa como coordenadora, em substituição à professora
Ana Cláudia Lopes de Assunção. O projeto conta com 36 bolsistas, atende quatro escolas de Ensino
Fundamental e Médio da rede pública de ensino da cidade de Juazeiro do Norte, localizada no interior
do Ceará.

No decorrer do ano de 2015, a Escola E.F.M. Prefeito Antônio Conserva Feitosa passa a ser uma das
escolas contempladas com o projeto da CAPES, o PIBID/ URCA, recebendo as seguintes propostas
de atividades: Do desenho à animação, Experiment Art e Cor LinhAção.

O programa PIBID/Artes Visuais realiza intervenções educativas no âmbito escolar, através de ofi-
cinas ministradas no contraturno das aulas, que objetivam educar e suscitar o prazer pela arte. No
planejamento do PIBID/Artes Visuais, fomos orientados a organizar grupos de trabalhos, agrupados
por linguagens, a saber: Experiment Art; Cor LinhAção; Toy Art; Do desenho à Animação.

O grupo Cor LinhAção é composto por Vívian Santos (Mediadora), Cristiane Romão, Luiz Fernando
Silva, Andréa Sobreira, Gabriel Cezar, Rildo de Araújo e Adriana Bonfim. A aluna Jeanni Cordeiro
teve a sua participação como voluntária dentro do projeto, com o intuito de ampliar o seu campo de
conhecimento na docência. Os encontros para planejamento das oficinas ocorrem semanalmente,
após a reunião com os coordenadores. A dinâmica ocorre da seguinte maneira: toda semana uma
dupla de bolsistas pibidianos do Cor LinhAção organizam um plano de aula e apresentam para o
grupo. Este exercício permite a troca de saberes entre componentes do grupo que são de semestres

612
diferentes. Como o plano de aula é executando primeiramente entre os pibidianos, para após ser apli-
cado nas oficinas, partimos para contexto escolar com mais propriedade e segurança sobre atividade
a ser realizada.

1. EXPERIMENTO REALIZADO COM OS DOCENTES DE LINGUAGENS E CÓDIGOS

Esta vivência foi provocada pelos coordenadores do PIBID/Arte Visuais, vislumbrando a importância
do diálogo entre professores formados e professores em formação, que dirigem as aulas de artes. Tais
professores ministram a disciplina de artes na Escola Antônio Conserva. Na escola, só há um profes-
sor formado na área de artes visuais pela URCA, o professor Jaildo, que acompanha o PIBID/artes vi-
suais. O intuito de se fazer o encontro foi mostrar como são planejadas as oficinas e poder apresentar,
de melhor maneira quem são os bolsistas com suas oficinas.

Imagem 1. Planejamento com os professores da escola.


Fonte: Jeanni Cordeiro

Esta atividade foi mediada pelas bolsistas Vívian Santos, Cristiane Romão e a aluna voluntária Jeanni
Cordeiro Barros, com a supervisão do tutor Jaildo Oliveira. A dinâmica desta atividade se deu da se-
guinte maneira: apresentamos imagens das obras dos artistas modernistas Piet Mondrian e Joan Mirò,
a fim de estudar as cores primárias e secundárias e os elementos da visualidade presentes em suas
obras. Durante a apresentação das obras, instigamos os professores a realizar a leitura das imagens
e, em seguida, propomos um exercício. O objetivo da proposta era construir paisagens especiais, ex-
plorando formas e cores primárias e secundárias, tendo como referencial os artistas apresentados. No
campo da experimentação, trabalhamos com a técnica da colagem, utilizando papel duplex colorido,
e, como suporte, utilizamos papel de gramatura 60 no tamanho A4.

A Participação dos bolsistas no planejamento na área de Linguagens e Códigos foi um momento sin-
gular de troca, onde compartilhamos a importância do fazer artístico contextualizado e evidenciamos
como a experimentação/fazer artístico pode ser um veículo para construção de narrativas.

613
2. ESTUDO DOS ELEMENTOS DAS VISUALIDADES

A construção da história humana tem como documento o registro do homem desde as antigas pintu-
ras rupestres nas cavernas até as mais atuais imagens no formato digital. A partir deste pensamento,
apontamos a importância da leitura de imagens no contexto escolar. As Artes Visuais através do es-
tudo dos Elementos da Visualidade, possibilita ferramentas para o conhecimento de códigos e para
realização desta leitura.

Um dos campos fundamentais de estudo para Artes Visuais começa com o estudo dos Elementos da
Visualidade, pois seu sistema de códigos oferece subsídios para realização da “leitura de imagem”.
Esta atividade que narraremos foi idealizada pela dupla Andréa Sobreira e Gabriel Cézar, pibianos do
grupo Cor LinhAção. Eles tomaram como referência imagens de algumas obras do artista brasileiro
Cláudio Tozzi. A primeira formação desse artista é em Arquitetura, o que influência consideravel-
mente no seu fazer artístico. As imagens apresentadas nessa atividade fazem parte da série Arquitetu-
ra Imaginária (imagem 2), produzidas a partir do conhecimento do artista em arquitetura, onde ele
explora as formas geométricas e as cores no campo da pintura e serigrafia.

Cláudio Tozzi (imagem 3) é um artista contemporâneo, que começou a sua produção inspirado na
Pop Art240 dos anos 60 e nas Histórias em Quadrinhos. Utiliza a técnica da serigrafia para produzir
trabalhos abordando a temáticas política e urbana.

Imagem 2. Imagem da série: Arquitetura ima-


ginária 1998, do artista Cláudio Tozzi
Fonte: Google imagens

240. Pop Art: é movimento artístico surgido na década de 60 na Inglaterra, mas que alcançou sua maturidade na década de 80 em Nova
York. O nome desta escola estético-artística coube ao crítico britânico Lawrence Alloway (1926 - 1990) sendo uma das primeiras, e mais
famosas imagens relacionadas ao estilo - que de alguma maneira se tornou paradigma deste a colagem de Richard Hamilton (1922 - 2011).

614
Cláudio Tozzi foi o primeiro artista apresentado na oficina Cor LinhAção no âmbito escolar. Tal es-
colha se justifica pela a maneira que Tozzi explorou a Arte Urbana massificada, na série que citamos
anteriormente, e pela forma que explorou as cores, formas e volume no plano bidimensional.

Iniciamos esta atividade, realizando a leitura de imagem dos trabalhos da série citada anteriormente,
e, em seguida, partimos para campo da experimentação. No processo, procuramos fazer conexões
com a Arte Urbana vista nos espaços de Juazeiro do Norte – Ceará. Não trabalhamos com serigrafia,
mas com colagens, utilizando papel tamanho A4 de gramatura 60 como suporte, e, para composição,
utilizamos folhas duplex coloridas (imagem 4).

Imagem 3. Cláudio Tozzi, 1944 Imagem 4. Experimento realizado na oficina Cor LinhAção mediada por Vi-
Fonte: Google imagens vian Santos, Cristiane Romão e Luiz Fernando na E. E. F. Antônio Conserva.
Fonte: Cristiane Romão

O resultado deste primeiro encontro foi satisfatório, já que os alunos se envolveram no processo,
elaboraram composições com temas relacionados às problemáticas de sua condição enquanto ado-
lescente e outros temas de seu cotidiano. Após a experimentação, conversamos com os participantes
sobre o processo vivido e a relação que faziam com as imagens dos trabalhos do artista apresentado.

3. ESTUDANDO AS CORES COMPLEMENTARES –


O FILME COMO OBJETO DE ANÁLISE VISUAL E POÉTICA

Com o advento da globalização, diariamente, somos bombardeados por imagens em diversas mídias
e suportes. Aplicativos, como whatsapp, e redes sociais, como facebook, fazem parte da cultura visual
juvenil juazeirense. No decorrer da oficina, observamos o grande interesse dos alunos pelas mídias
audiovisuais, então resolvemos oferecer subsídios que colaborassem para a alfabetização visual, a
partir da destas linguagens. Neste encontro, continuamos com o estudo das cores, com foco nas co-
res complementares. Apresentamos como objeto de estudo o filme O Fabuloso Destino de Amelie
Poulain (2002), do diretor Jean-Pierre Jeunet (Imagem 5). Nesta obra, é narrada a história de Amelie
Poulain, interpretada pela atriz Audrey Tautou, uma jovem moça inocente, que, após uma infância de
solidão, resolve solucionar os problemas das pessoas. Nesta empreitada de resolver a vida de terceiros,
encontra uma solução para sua vida. O filme apresenta uma paleta de cores vibrantes, onde se desta-

615
cam as cores vermelho, verde e amarelo. Tais cores foram inspiradas nas pinturas do artista brasileiro
Juarez Machado (1941).

Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido científico do termo, assim
como se analisa, por exemplo, a composição química da água, decompô-lo em seus elementos cons-
titutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não
se percebem isoladamente “a olho nu”, pois é tomado pela totalidade. (VANOYE, 1994, p.15).

Tomando como referência a abordagem triangular desenvolvida pela pesquisadora Ana Mae Bar-
bosa, mediamos a atividade da seguinte maneira: após a exibição do filme, realizamos uma roda de
conversa, onde os alunos compartilharam a sua crítica sobre o roteiro do filme, e sobre a presença do
elemento da visualidade e da cor. Durante a exibição, instigávamos os alunos a realizarem suas leitu-
ras, e para nossa satisfação eles rapidamente identificaram nas cenas a presença do contraste de cores.

Imagem 5. Cenas do filme O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2002). Na imagem a esquerda quadros de autoria de
Juarez Machado nas laterais da cama. A direita cena com os contrastes das cores vermelho e azul.
Fonte: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2015/05/21/quadros-de-pintor-brasileiro-inspiraramcores- vibrantes-de-
-amelie-poulain.htm#fotoNav=9

Também apresentamos imagens e realizamos a leitura visual dos trabalhos do artista Juarez Machado,
que inspirou a paleta de cores do Filme de Amelie. Juarez retrata cenas de cotidiano, explorando a cor
com tons fechados. Após a leitura do filme e das imagens do trabalho do artista citado anteriormente,
partimos para o campo da experimentação.

Imagem 6. Pinturas idealizadas pelos alunos da oficina.


Fonte: Vívian Santos

616
Imagem 7. Pintura idealizada por uma aluna da oficina.
Fonte: Vívian Santos

Trabalhando com o conceito de memória visual, e tendo como inspiração o filme e os trabalhos de
Juarez Machado, solicitamos aos alunos que buscassem em suas memórias recordações de lugares
que estiveram durante a semana e que gostariam de protagonizá-los. Após a escolha deste local, re-
cordamos o experimento desenvolvido, tendo como referência o artista Claudio Tozzi – Arquitetura
imaginária – e orientamos os alunos a representarem este lugar (Imagem 6), trazendo cores comple-
mentares que representassem a cor que os alunos julgassem como representadora daquele espaço,
daquele momento, daquela emoção. Na maioria das pinturas, predominaram as cores quentes. Após a
conclusão do exercício, os alunos compartilharam o cenário da história, porém não revelaram os fatos
que ocorreram naquelas paisagens, apenas declararam que a prevalência das cores quentes comunica
a intensidade das emoções que viveram naquele espaço.

Eva Heller, no livro Psicologia das Cores (2012), apresenta o significado das cores dentro de algumas
culturas, revelando que o elemento da visualidade cor possui infinitos significados, que esta constru-
ção será de acordo com a cultura a qual esta inserida. Para exemplificar, tomemos como exemplo a
artista japonesa Tomie Ohtake (1913-2015). Numa entrevista concedida ao Globo, ela disse: “quando
saí do navio, olhei para o céu e senti cheiro de amarelo. Ali, gostei do Brasil”. Seguindo esta linha de
raciocínio, as cores utilizadas para interpretar o lugar e os acontecimentos que ocorreram com os
alunos estão bem representadas em seu contexto, são verídicas, pois foram representadas a partir da
história de vida daqueles sujeito com aquela cor. Somos um mundo de cores em constante constru-
ção, onde cada um possui uma paleta particular para colorir sua história.

4. VISITANDO A EXPOSIÇÃO “VAGINA, ORAI POR NOBIS”

Uma outra vivência oferecida aos alunos foi uma visita a uma exposição de arte. Com a devida auto-
rização dos pais e da escola, levamos os alunos à exposição presente na galeria do SESC - Juazeiro do
Norte, CE (Imagem 7). A artista Larissa Rachel Gomes Silva, também graduanda em Artes Visuais na
Universidade Regional do Cariri (URCA), traz em sua exposição “Vagina, Orai Pro Nobis” questões
sobre a mulher na sociedade. Convidamos a própria Rachel para se fazer presente no encontro, para
assim promovermos um diálogo entre a artista, obra e público. Esta vivência também foi possível com
as outras escolas, onde alguns dos colegas do PIBID levaram suas turmas.

617
A temática que a exposição traz é algo muito recorrente no contexto social em que nos encontramos.
Onde a mulher é sujeita à submissão, opressão, preconceitos... Traz, através da arte, a autobiografia, a
reflexão histórico-social e uma discussão política-pedagógica. Apresenta uma possibilidade de traba-
lhar temas dentro da escola e reconhecer os aspectos educativos no espaço de educação não formal.
Segundo Araújo (2006):

A apresentação interdisciplinar de temas, é o primeiro motivo que comumente leva os professores a


incentivar a visitação à museus, seguido da interação com o cotidiano dos estudantes e, por fim, da
possibilidade de ampliação cultural proporcionada pela visita. (ARAÚJO, 2006, p. 01).

Os espaços expositivos também possibilitam a ampliação e o desenvolvimento da fruição artística. Con-


sideramos que a visitação a tais espaços complementa a educação formal, uma vez que contribui para
a formação da bagagem cognitiva e imagética dos alunos. Podemos, então, evidenciar, junto aos alunos
visitantes da galeria, a importância de conhecer os fundamentos da arte e suas histórias, para que, den-
tro da galeria do SESC ou em qualquer outro espaço que abrigue produções artísticas, possam ler uma
obra e então, com orientação do professor, voltem à sala de aula para o “fruir”, ou seja, o “fazer artístico”.

Imagem 8. Momento da visita a


exposição.
Fonte: Verônica Leite

Percebe-se, também, que as exposições trazem diversas possibilidades de favorecer à produção de


significados, construindo ou desconstruindo-os, questionando e revisitando conceitos, e sugere uma
experiência que “está virtualmente relacionada a outros sistemas de atividade humana que podem ser
convocados no processo de significação” (MARTINEZ, 2007, p. 385), assim, além de educação visual,
as exposições possibilitam uma educação social.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola é uma das instâncias sociais mais importantes e significativas para a análise e mediação das
práticas sociais, pois esta abre espaços para que se possa refletir de forma crítica sobre os modos de
agir diante da sociedade. O PIBID garante um fortalecimento na formação de seus licenciandos e de
professores da rede pública de ensino básico da região do Cariri cearense, refletindo a importância

618
de nós, professores em formação inicial, estarmos inseridos no cotidiano escolar, oportunizando-nos
a “começar a olhar, ver e analisar as escolas existentes com olhos não mais de alunos, mas de futuros
professores [...] é um passo na tentativa de colaborar com a construção da identidade dos professores”
(PIMENTA, 2008, p. 28).

A arte não deve ser vista como exclusividade de uma cultura específica ou grupo social que se carac-
teriza pela criação artística individual e espontânea oriundo do uso de técnicas artísticas, mas deve
ser encarada como fruto de diferentes práticas e relações sociais, inclusive podendo ser representante
em determinado momento histórico. Diante disso, não podemos “isolar” a arte das demais atividades
sociais e humanas, já que ela tem total influência no sujeito e cidadão sócio-histórico. Deve-se realizar
as atividades referentes à pesquisa e prática docente nas artes visuais dentro das escolas, buscando
conexões com outros espaços educativos.

Alfabetizar, no seu amplo sentido, é ensinar a ler. Ler, podemos considerar que é compreender e
entender o mundo que nos cerca. Ler um texto, uma imagem, uma música, uma representação te-
atral também é alfabetizar. Compartilhar conhecimentos nas artes significa alfabetizar visualmente,
e isso nos integra ao nosso contexto, à nossa cultura. A realização destas vivências permitiu ampliar
aprendizagens, experiências e descobertas adquiridas ao longo deste processo de construção de co-
nhecimento em Artes visuais. Espera-se que o texto possa contribuir para que os professores de arte
reflitam sobre a importância da alfabetização visual por meio da leitura de imagem na sala de aula, e
as conexões com espaços não formais.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, H. M. M. Memória e produção de saberes em espaços educativos não-formais. Disponível em: <http://
www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Helena%20Maria %20 Marques %20Araujo.pdf>.
Acesso em: 04 out. 2015.
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da Arte: anos 1980 e nos tempos. 7. ed. Rev. São Paulo: Perspectiva,
2009.
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007.
MARTINEZ, Elisa de Souza. Textos efêmeros, leituras duradouras: a História da Arte como um projeto curato-
rial. In: COLÓQUIO DO COMITÊ BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 26., 2007, Belo Horizonte. Anais...
Belo Horizonte: C/Arte, 2007
PIMENTA, Selma Garrido (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
O GLOBO. Morre a artista plástica Tomie Ohtake aos 101 anos. O Globo, Cultura, Artes Visuais, 12 fev. 2016.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/artesvisuais/morre-artista-plastica-tomie-ohtake-aos-101-
-anos-15318283>. Acesso em: 04 out. 2015.
PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. São Paulo: Ed. SENAC, 2009.

619
O poema épico e as diferenças
de gênero da poesia
Moisés Monteiro de Melo Neto

P osicionar-se criticamente diante de certas obras é desafio constante dos professores, dos críticos e
também do leitor comum. Épica, dramática ou lírica a fantasia criativa é enigma de quase impossível
compreensão absoluta. O projeto do autor se divide entre as regras e ruptura, estando a liberdade cria-
tiva quase sempre sendo colocada em cotejo com a arquitextualidade e sob a observação de severas
teorias de cunho imobilista ou talvez discricionário. A obra épica dos antigos, por exemplo, tem sido
alvo de inúmeros estudos, assim como a poesia sentimental dos românticos em seus variados vieses.
Mas teriam a estrutura e a forma do poema épico sido vasculhadas à exaustão? Nunca um tópico as-
sim poderia se esgotar em suas possibilidades de interpretação e representatividade. Hegel, no início
do século XIX, analisou ações e circunstâncias que envolvem uma nação e uma época ali retratadas
artisticamente: o espírito nacional, a organização das instituições, enquanto Schiller tratou de comen-
tar a poesia ingênua e sentimental. Não é só o conteúdo, mas também a visão de mundo ali inscrita
(que estampa a esfera na qual tais obras se movimentam) que merecem especial atenção destes autores
(que se debruçam no estudo de vários poemas).

Alguns críticos apontam diferenças quanto aos termos: a palavra épica seria utilizada enquanto gênero
narrativo, já epopeia seria o poema heroico, pertencente ao gênero épico (aqui seriam incluídos, tam-
bém, o romance, o conto e a novela, que, mesmo não sendo epopeias, tiveram ali sua origem).

Ao tratar da filosofia em relação à épica, Hegel nota que a epopeia transcende à simples glorificação
de um povo no seu apogeu. É mais o contato do homem com o universo o que parece ser ressaltado.
Uma compreensão do Cosmos.

A poesia, presente em todas as civilizações, tem conteúdo espiritual e trata de acontecimentos, senti-
mentos, ações e paixões. Para Hegel, o que importa, além da estrutura da poética, é a análise dialética
(tanto na épica quanto na lírica), no que trata da relação entre vida social e poesia. Observando a arte
enquanto fenômeno histórico, surgem as figuras (espiritualidade e idealidade) e o pathos (no desti-
no). Entendendo arte dentro de um processo, clássica, simbólica ou romântica, e tratando-a como a
exterioridade sensível captada pela intuição, como interioridade, Hegel analisa através da filosofia (na

620
medida em que esta intersecciona a objetividade da arte e a subjetividade da religião e aponta a maté-
ria espiritual como necessária para o filosofar, numa superioridade do espírito em relação à natureza)
e coloca a liberdade do espírito em cotejo com a harmonia do belo e a tensão (do destino). Surge a
contradição: a beleza artística, feita para e pelo homem é contraposta à natural. Hegel aponta a supe-
rioridade do belo artístico, na medida em que a natureza está em nível de não-liberdade.

Nas contradições próprias da vida (entre liberdade e necessidade), gerar-se-ia o belo na arte (resultado
do trabalho espiritual). A obra de arte se mostrando livre superaria, assim, a natureza, inclusive a morte,
podendo conservar (ou não) o sensível ou o natural, em evolução para o espiritual. Nesta idealização do
sensível através da arte simbólica (ainda pré-arte, por sua aproximação com o natural), haveria também
a tentativa de representar a amplitude da vida, do mundo através do anseio por símbolos da totalidade.
A passagem para uma forma clássica implicaria na harmonia entre forma e conteúdo, sendo a epopeia a
manifestação estética de individualidade ética, que não se confunde com o individualismo.

II

Mantendo-se no centro do pensamento, a poesia capta a universalidade espiritual quando busca a


unidade interior de tudo, mas deve fazê-lo com soltura e uma aparente autonomia diante do pen-
samento do outro, da aparição, da existência natural, na medida em que no seu fluxo o conteúdo
espiritual conquista uma existência exterior. E qual seria a subsistência material deste “modo de exte-
riorização”? Tem-se, por exemplo, o conceito de sonoridade exercitado na poesia.

Buscaremos agora traçar um paralelo entre a poesia épica, a sentimental e ingênua, usando como base
a estética de Hegel, no que trata do épico, e as observações de Schiller, no seu ensaio Poesia Ingênua
e Sentimental.

Nos rapsodos que às vezes cantavam de cor, mecanicamente, em única medida de verso, um aconte-
cimento “acabado em si mesmo”, já se controlava a autoexpressão do sujeito. Instalava-se para o leitor
a ação em sua luta e desenlace. O homem vivo era ele mesmo o material desta exteriorização. Nesta
música plástica, da posição corporal e do movimento, o Epos, isto é, a palavra, o discurso, transforma-
va até mesmo a lenda em texto (exibindo seu conteúdo substancial em direção à consciência de quem
o recebia, extraindo do acontecimento o caráter universal e apontando pontos particulares, a epopeia
mais simples ressaltava o mundo concreto e a riqueza dos fenômenos mutáveis, como nos antigos
epigramas, inscrições em objetos e monumentos.

A epopeia foi se aprimorando e eliminando a duplicidade dos objetos, incluindo enunciados éticos,
apontando deveres na existência humana na sabedoria compartilhada. Mas isso tudo, mesmo se dan-
do sem a finalidade da comoção, ainda não é o épico no sentido mais clássico, como abordado por
Hegel, um todo maior, a espécie épica que queremos discutir, contrapondo-a ao lirismo sentimental.
Um estreito entrelaçamento de poesia e efetividade foi conseguido nos poemas didático-filosóficos,
ao tratar do transitório e do eterno, com certa grandiosidade e potência.

Ao contrário dos gregos, a poesia indiana, no que trata da cosmogonia, perder-se-ia em divagações,
que deveriam ser evitadas na poesia épica. O luxo, a glória, a inverdade fantástica, a confusão que

621
permeiam as epopeias indianas, a mitologia exposta epicamente em grande parte, fazem do registro
uma ponte entre o religioso e o poético. Mas mesmo na sua graça impressionante, o oscilar entre o
humano e o divino e episódios que parecem acrescentados posteriormente, sugerem mais querer
ensinar a moral e a prudência do que exibir o caráter nacional de um povo. Também nos judeus, no
Antigo Testamento, predomina algo que difere do caráter épico: o interesse em si religioso. Entre os
persas e os árabes, mesmo antes do período maometano, as obras não apresentam o tom épico que
Hegel consideraria adequado, faltando-lhes a firmeza da configuração individual, o sopro da vitalida-
de imediata, necessários à grande epopeia nacional, a articulação e a unidade estão soltas, não tratando
da seriedade do destino de modo contundente como Homero o fez.

No que vimos até agora, o tom épico não implica na epopeia em toda a sua amplitude, na sua cone-
xão com o mundo, na objetividade em relação ao espírito de um povo em sua totalidade (religião,
existência, política, lar, carências e satisfação), na presença viva do seu espírito. O que é exposto na
epopeia, em objetividade real, é a sequência exterior. Surge ali, acabado poeticamente, um todo em
si mesmo orgânico, em calma objetiva, a consciência de um povo, e não um livro religioso, que falta
aos gregos, por exemplo. Um povo que já construiu sua própria cultura seria representado na epopeia
através da literatura que não se deteria na ocupação com o interior do indivíduo e sim desvendaria
circunstâncias exteriores, extrapolando a simples nacionalidade poética e atingindo a consciência
representadora cheia de vitalidade própria, fruto de grandes transformações.

Os gregos superaram influências, como as egípcias e da Ásia Menor; os romanos tiveram que lidar
com a herança grega, mas a poesia épica só se realizou em plenitude na consciência da força de um
povo e através de um só indivíduo: o poeta que produz o texto “coletivo” e expressa sua necessidade
mais elevada, a honra, os feitos, o modo de ser da sua gente, desaparecendo dentro do seu “objeto”,
e isso não significa dispensar seu estilo pessoal. Não é o mundo interior do sujeito que é poetizado,
mas as questões fundamentais que envolvem sua produção espiritual, consciência e autoconsciência
efetivas e singulares, dentro do estado nacional.

O mundo universal se apresenta, na epopeia, através de um acontecimento, em determinada época,


mesmo que se invoquem outros períodos e outros planos. Através da epopeia surge assim uma nação
inteira, sem a subjetividade excessiva dos indivíduos, nem indo de encontro à paixão e ao modo de
pensar individuais. Afastando-se do idílico, mas ainda sustentando uma conexão viva com a natureza,
mesmo sem se deter muito nestas cenas. Em tais poemas os heróis não se esquivam de tarefas como
preparar comida, servir vinho, e as executam com prazer. São apresentadas também as vidas dos su-
bordinados e representações de outros povos.

Quanto a outros autores, Hegel aponta os anjos e demônios em a Divina Comédia como fora da
objetividade alcançada por Homero. Neste, o lado natural se funde ao espiritual para executar fins
práticos, faltando também no texto de Dante a fundamental guerra entre nações estrangeiras, como
há em Camões. Hegel faz o elogio a Tasso em seu Jerusalém libertada: a unidade, o desdobramento,
o acabamento, mas ressalta que lhe falta a “originalidade” que o colocaria como livro fundamental de
toda uma nação. Em relação a Os Lusíadas, apesar do patriotismo, da unidade epicamente acabada,
vitalidade das descrições, faz-se sentir uma cisão entre o objeto nacional e uma formação artística
emprestada dos antigos. Já no Cid (1140), o amor, o casamento, o orgulho familiar, o domínio dos

622
reis, o conteúdo elevado, as cenas humanas em desdobramentos de dias gloriosos, fazem do poema
um exemplo do que há de mais belo, num único todo, em relação à poesia épica.

A objetividade épica não significa mero descritivismo. O acontecimento se dá no entrecruzamento


do lado interior com a realidade exterior, do mundo natural e espiritual, neste conjunto o mundo da
vontade é apreendido. A ação, mesmo reconduzida ao caráter interior, não impede o lado exterior de
adquirir o seu direito indiviso. O acontecer da ação na natureza concreta chegaria assim à vitalidade
poética expressa pelo autor épico que também de forma única, elege o seu herói. O próprio aconteci-
mento também exige unidade e não o despedaçamento em situações isoladas ou exibição de fantasia
como vivência (introduzindo na obra objetiva mais do que é permitido).

Em Homero, a recordação e a fala, memória e discurso, traduziriam também verdade e realidade


poética interior. O sofrimento dos indivíduos, o acontecer da ação, tudo se move diante do leitor. A
epopeia apresenta “homens totais” em suas qualidades humanas e nacionais. Indivíduos que reúnem
o que poderia ficar disperso em relação ao caráter da nação. A beleza, a grandiosidade, a liberdade que
estes indivíduos apresentam, unem-se à sua coragem diante do destino dos acontecimentos. “A epo-
peia não tem de descrever uma ação como ação, e sim como um acontecimento”, ensina Hegel (2004,
p. 115), e o destino é feito no agir conjunto de potências, nos eventos. Deuses e homens em Homero,
por exemplo, têm, na relação poética, uma autonomia recíproca nem os deuses são rebaixados à abs-
tração nem os mortais a meros servos obedientes. Sobre os primeiros paira, no dizer de Hegel (2004,
p. 119), uma “luz mágica entre a poesia e a efetividade”.

Ainda segundo Hegel (2004, p. 123), na poesia lírica, a forma do interior “exclui de si a ampla in-
tuitibilidade da realidade exterior”, já na epopeia, a “efetividade nacional abrangente, sobre a qual a
nação se baseia, igualmente conquistam um lugar o interior bem como o exterior” (Ibid., p. 123). Em
amplitude de conteúdo e forma, diferente da poesia sentimental que concentra tudo o que “apreende
na intimidade de sentimento ou dilui na universalidade concentrada da reflexão” (Ibid., p. 121), no
épico a existência independe dos lados particulares e volta-se para o exterior (lado a lado: o caráter e a
necessidade exterior, com a mesma força). Hegel cita como exemplo de sobriedade épica os discursos
de Aquiles (por Pátroclo) e o de Hécuba (por Heitor) dentro da Ilíada, comoventes não só pelo lírico
embutido, mas principalmente pelo seu modo épico.

A épica estaria ligada a épocas originárias de uma nação enquanto a lírica pode ser produzida em
todos os períodos do desenvolvimento. Um mero acontecimento, uma ação, quando narrada epica-
mente assume a forma de um evento, diferente do idílio onde o homem é exposto em sua inocência,
ou ainda no romance burguês do início do século XIX, no seu conflito entre a poesia do coração, a
“prosa oposta das relações” e a contingência de circunstâncias externas.

III

Na subjetividade do criar e do configurar espirituais, a exteriorização de si na poesia lírica, nota-se


um afastamento da coisalidade da arte épica. “O domínio cego da paixão reside na sua unidade turva
destituída de consciência com o ânimo inteiro”, sugere Hegel (2004, p. 156). Este objetivar-se primeiro
do coração se abre para a expressão de si mesmo, eis a tarefa da poesia lírica e sua diferença em rela-

623
ção à épica, que tem a necessidade de ouvir a coisa (sache): destacar o objeto. Na lírica o conteúdo não
é o desenvolvimento de uma ação objetiva em sua conexão com o reino mundano. O sujeito singular
singulariza a situação, em seu juízo subjetivo e mesmo no que tange à expressão da vida nacional, o po-
ema lírico se limita a certa visão particular. A essencialidade nesta poesia lírica se faz mais profunda e o
sujeito que se expressa torna-se ele mesmo, também, conteúdo e o todo começa pelo coração do poeta.

Deve-se destacar aqui que se a epopeia se utiliza de passagens líricas, o contrário também não é im-
provável. O que não significa que na lírica o foco seja a descrição e a ilustração do acontecimento real.
O poeta lírico ao expressar sua melancolia, serenidade ou até o fervor patriótico, não faz do evento o
ponto central, e sim como isto se reflete no seu ser: conteúdo épico, tratamento lírico. Ele utiliza-se
da situação para expressar a si mesmo, sua interioridade. Não é a coletividade, mas o sujeito que se
mostra em sua paixão particular, em pleno arbítrio do desejo e do prazer, originalidade, o conteú-
do do seu peito humano onde lateja a arte em busca de expressão plena, peculiar. A lírica autêntica
não se obriga a ter os acontecimentos exteriores como ponto de partida, ao contrário: busca em si o
estímulo e o conteúdo, ao passo que ao poeta épico serve de conteúdo o herói estranho, seus feitos e
acontecimentos.

No que trata da poesia popular, Hegel ressalta que “não é um indivíduo singular que se torna co-
nhecível [...] e sim um sentimento popular” (2004, p. 169) que ele traz em si. Tal “frescor destituído
de reflexão” pode até apresentar a “selvageria” das “nações semi-rudes”, o trivial, o horrível. Daí a
expressão total do espírito não poder ficar preso ao conteúdo, ou modo de expressão destas can-
ções originalmente populares. Deve ao contrário expressar o máximo que o feito humano é capaz de
abordar em si enquanto expressão do seu espírito (numa posição mais elevada) e ser capaz de levar à
autoconsciência livre, ao pensamento filosófico, à abstração, com clareza, sistematicamente, como às
vezes o faz Schiller, ocultando explicações didáticas também.

Em relação à lírica, Schiller aponta a poesia ingênua, a exemplo da grega antiga, e a do poeta moderno
sentimental, representado por ele. Tal integração com a natureza (ingênuo) representaria o que há de
mais caro, a perfeição, enquanto a sentimental procuraria essa natureza. Mas há de se levar em conta
que os gregos estavam cercados de um ambiente privilegiado, uma arte idealizadora, uma “idealida-
de perfeita” que vigorava nesta poesia. Diante do peso desta antiguidade clássica da Grécia, Schiller,
em parte, elaborou o seu ideal, não como cópia, mas traçando uma peculiar analogia. Demarcando
espaço para o que chamou de modernidade literária, em cotejo com o ideal grego, onde latejava a
unicidade com a natureza. Em Schiller, havendo a reflexão, o sentimento da natureza, há também
o espelho revitalizado do homem uno consigo mesmo almejando a felicidade no sentimento de ser
humano. O sentir naturalmente dos gregos em contraponto com o sentir o natural em Schiller. O de-
saparecimento de tal natureza como experiência é recompensada pelo seu ressurgimento no mundo
poético e os poetas seriam seus guardiões, vingadores, testemunhas. Os sentimentais voltam assim
à natureza pelo caminho da liberdade e da razão. Schiller, em relação à poesia grega antiga, salienta
as condições do período e tenta produzir no seu próprio tempo a harmonia em si mesmo enquanto
poeta. Numa Alemanha, ainda não unificada, ele lê os gregos e reflete. No seu íntimo o poeta traça,
enquanto sentimental, um panorama distanciado daquele das conquistas pela guerra ultramarina,
como na Ilíada. O mundo universaliza-se no ser diante da própria felicidade de uma alma livre que se
integra à natureza para fortalecer-se na dignidade, no princípio ético e moral.

624
Diante do homem, para Schiller, estariam as opções: enfurecer-se contra a malícia ou rir dos acasos e
confusões mundanas. À inocência perdida na infância, ele não propõe um retorno ao que é infantil e
sim uma sobriedade adulta de retomada da integração (com a natureza) cheia de força e vigor (como
se dá com as belezas naturais) como os gregos fizeram.

A poesia schilleriana propõe-se como sentimental, mas não como uma degeneração do classicismo.
Registra a perda da harmonia com a natureza, que o homem (moral) ainda teria (ou deveria ter) como
modelo de felicidade diante de alguns males da cultura (que traz no bojo o afastamento do que seria
“natural”). Propõe que o poeta encontre, ao contrário do épico, dentro de si a saída.

A remissão ao modelo de representação dos artigos gregos se dá na ânsia por felicidade e liberdade
perdida. Schiller apresenta nostalgia da antiga perfeição (natureza como superior à arte, à mimesis)
e propõe uma poesia que parecesse brotar da própria natureza. O autor, cheio deste ideal sublime do
resgate da unidade perdida se reencontraria na poesia sem artifícios e proporia à cultura uma reto-
mada da integração com as forças naturais. O poeta moderno, então, se recuperaria do afastamento,
e, tentaria “ser” plenamente, guiando os outros, proporcionando um ambiente diferente do épico,
através da expressão do que há de mais sublime e atemporal.

No poema épico grego os homens são representados como rígidos até diante até das divindades tor-
nadas conhecidas. Aparam-se as arestas entre o espírito e o corpo, e a ação é sugerida enquanto traje
bem talhado da alma. Coagula-se em “aço purpúreo o sangue que lhes brota”, forja-se em “couraça,
para que suas feridas permaneçam eternamente ocultas e seus gestos de heroísmo tornem-se o para-
digma do verdadeiro e futuro heroísmo”, como afirma Lukács (2000, p. 27).

Este patamar da cultura grega vem atravessando milênios e superando em intensidade tantas ou-
tras obras de vários povos (segundo Hegel), em inversão de topografia transcendental, a tratar
do amor, família, Estado. E dentro desta poesia épica bem elaborada está também o afastamento
dos abismos, um mundo acabado e perfeito. Enquanto outros autores, através do tempo, segundo
o mesmo Lukács, tiveram de “cavar abismos intransponíveis entre o conhecer e o fazer, entre a
alma e a estrutura, entre o eu e o mundo, e permitir que na outra margem do abismo, toda a subs-
tancialidade se dissipasse em reflexão” (p. 30-31). No mundo de hoje, de maior complexidade do
que o dos gregos antigos, que suprime o sentido de totalidade, fragmenta-se cada vez mais o elo
com a natureza, enquanto modelo ansiado por Schiller. Platão desmascarou o herói épico (em sua
imanência à vida) e iluminou o perigo sombrio por ele vencido. Buscou-se depois, através de várias
épocas, um mundo “abarcável” com a vista, onde o abismo perderia (aparentemente) o perigo das
profundezas, o incompreensível é trazido à visão como em São Tomás. Mas a desilusão romântica
do século XVIII, seguida pelo apelo à vitalidade encontrada na natureza, fez o poeta perceber o fim
da epopeia. Surgiu em seu lugar o romance.

“O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade (...) é dada de modo evidente [...] [porém]
a imanência do sentido à vida tornou-se problemática” (LUKÁCS, p. 55). A totalidade extensiva da
vida, sugerida pelos gregos que tinham o empirismo em seu fundamento, vai dar lugar, na poesia, à
transcendência lírica, margeando o utópico. Em Homero o transcendente mesclava-se à existência
terrena, era imanente, o herói estava ligado à realidade histórica e não ao seu arquétipo, sujeito e ob-

625
jeto não coincidiam. O sujeito, em contemplação muda, era o homem comum da existência cotidiana.
Já no idílio o que se vê são os contornos de brandura, isolamento diante de tempestade.

Por sua vez a poesia dramática reuniu em si a objetividade (da epopeia) e o princípio subjetivo (da lírica)
colocando em presença imediata a ação em si mesma acabada, decisiva, efetiva, demonstrando colisões
entre o interior dos indivíduos e o exterior, em exposição cênica. Em cena estariam a intuição imediata,
as paixões e personagens colidentes (ações e reações) em apreensão poética enquanto expressão me-
diadora (dos princípios épicos e líricos) onde o acontecimento, o atuar, o agir não se desfazem em puro
lirismo (em oposição ao exterior), mas em realização (exterior) diante de determinadas circunstâncias
cênicas (enredamento, colisões) até um desenlace (que não pode ser meramente lírico), onde é gerada
uma proposta de reflexão sobre caráter, fins particulares. O si-mesmo volitivo dos personagens torna-se
(nesta poesia dramática) exterior (“aparição exterior”) e é mostrada a ação como ação, o caráter enquan-
to (o seu) agir. Deixa-se fluir o “pathos impulsionador” em cada um dos que agem (surgindo de modo
oposto, fins distintos), entrando em conflito (existência oferecida à ação e posta em movimento), exibin-
do lutas e destinos humanos, suas intrigas, oposições. E, no reconhecimento das potências imperantes,
o poeta dramático não deveria ficar simplesmente preso à tessitura lírica, na medida em que há que se
exercitar a dissolução da unilateralidade das potências (que se autonomizam nos indivíduos). Parece
óbvio que tal autor deve ter conhecimento das técnicas e necessidades do teatro (unidade da ação, por
exemplo). “A ação dramática reside essencialmente num agir colidente”, enfatiza Hegel, “os indivíduos
introduziram todo o seu querer e ser em seu empreendimento” (2004, p. 208).

Ao buscar auxílio, complemento, em várias outras artes, a representação teatral é a execução de uma
partitura e tudo deve ser bem orquestrado. A voz, o atuar e a encenação exigem cálculo e prepara-
ção, não é o leitor solitário (da lírica e da épica) o que o autor teatral aguarda (simplesmente, textos
dramáticos são para encenação): é um espectador. Tal autor precisa de “mãos e gargantas estranhas”
(HEGEL, p. 229) dos atores, eles são como instrumentos (utilizados pelo escritor). Às vezes estarão
nos gestos o que poderia, noutro contexto, ser descrito por palavras (em outros gêneros), o exterior
sensível, e agora são efeitos teatrais.

O modo de desdobramento da poesia dramática se distingue da lírica e da épica. Sua progressão,


abrangência, divisão em cenas (e atos, às vezes), a pouca utilização da descrição (fundamental na
épica), a busca da naturalidade, a dicção enfrentam o juízo imediato do público, a presença viva deste
(que deve ser pensada na elaboração do texto). O modo de pensar é levado diante dos olhos do con-
sumidor (em público). Não é a exposição dos personagens e sim a ação, que advém a partir daí, que
interessa mais. Na épica o poeta é narrador, mas no teatro, o público exige a consumação, as atitudes.

REFERÊNCIAS

HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. V. 4. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de. Macedo. Rio de Janeiro: Editora 34,
2000.
SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.

626
Os encontros, a poesia e o
percurso ou, a descoberta
“da inutilidade como conceito útil
a uma sobrevivência criativa”241*
Ana Paula Lourenço de Sá/ Andrêza de Lima Alves

O conceito de Educação pela Arte é objeto de reflexão sobre o qual, desde o início do século XX,
vem se debruçando um conjunto renomado de pedagogos, filósofos e historiadores em Portugal. Mas
é, somente a partir de meados do século passado (por volta da década de 60), que este número cresce
exponencialmente, graças aos grupos de jovens formados e/ou vividos nos idos da ditadura de Sala-
zar, da Guerra de Angola e do 25 de abril. E é neste momento de Colisão e de Coalizão entre valores
sociais, expectativas de vida e projetos de futuro que o conceito de arte como modo e prática peda-
gógica para todas as áreas do conhecimento ganha especial vigor e expressão, fazendo-se presente
na ordem do dia para diversos grupos, “na emergência de novos valores e conceitos”, como dizia Dr.
Arquimedes da Silva Santos, em sua Psicopedagogia da Expressão Artística.

Obviamente, este contexto de ebulição, de alternância de necessidades, de transformação e de urgên-


cia no agora não foram uma prerrogativa lusitana. Por toda a Europa, eclodiam focos de pensamento
e experimentos que primavam pela valorização do indivíduo, do potencial criador e criativo da arte e
da sua infinda natureza pedagógica.

É este momento de transformação social, econômico e ideológico que gera um campo fértil para a
produção de uma série de escritos e de práticas por todos os continentes. Produto da reflexão a cerca
dos destinos da educação, do papel das partes envolvidas no processo pedagógico, dos meios e modos
utilizados na escola, mas, especialmente, de que aprendizagem se estava falando, para qual sociedade.
Na perspectiva de uma escola que esteja atenta ao indivíduo e às suas particularidades, o ortopeda-
gogo, tradutor e fotógrafo lusitano, Luís Vasco Goucha, diz que o sistema de ensino perdeu o rumo
do humano, pois não abre espaço para que o elemento primordial de nossa humanidade floresça.
Segundo ele, o homem

241. * Título da conferência apresentada por Luís Vasco Goucha integrando as Jornadas de Reflexão, promovidas pelo Bando Teatro O
Bando em maio de 2006, posteriormente publicada em livro de mesmo título.

627
[...] é o único ser capaz de produzir coisas inúteis; nenhum outro ser vivo se pode dar a esse luxo
sob pena de morte e por isso seremos sempre os únicos a ter o prezar dessas criações; não podemos
ignorar esse prazer apesar de todos nos quererem convencer do contrário; atingimos a inteligência
nessas produções pelo prazer que sentimos muitas vezes sem querer apenas pelo prazer que sentimos
muitas vezes sem querer apenas pelo prazer que desencadeamos; a sensação de prazer é o motor de-
cisivo das nossas acções mais do que a felicidade que não se sabe bem em que consiste […]242.

Ante esta afirmação, ele discorre sobre como a nossa sociedade mais e mais se distancia desse princípio
que distingue nossa humanidade e de como as artes, e em especial o Teatro, nos leva a uma via de sentido
contrário, pois movimenta valores e cria demandas que extrapolam o imediatismo e a imposição social,
segundo a qual precisamos apenas trabalhar muito, para ter dinheiro e comprar coisas.

Para ele, a arte religa o humano ao estado contemplativo, à reflexão, à “preguiça”, diz que a escola de hoje
deveria ser uma escola “das artes com afectos, um local de vida solidária virada para uma formação de
espectadores activos e críticos desta sociedade de espetáculo […]”243, que, se a escola fosse regida mais
pelo estímulo ao impulso criativo e menos pela necessidade de apresentar resultados, ela poderia

[...] ser uma alternativa de luta contra o conformismo e a resignação (…) e ter um papel determinan-
te e libertador ao promover, para além de uma cidadania completa, um contacto com todas as artes;
artes que permitissem as expressões individuais onde pudessem exaltar conceitos nobres a preguiça,
o ócio, o dormir, como formas de actividade criativa; pois um idiota preguiçoso, será sempre um
idiota, mas alguém que reflecte acerca do mundo em que vive e “perde tempo” desta maneira, não
pratica preguiça mas reflexão; quanto mais preguiçosos formos mais tempo teremos para reflectir e
isto constitui uma ameaça para o sistema político das nossas sociedades ocidentais [...]244.

Em seu texto, Luís Vasco discorre ainda sobre o tempo que damos às coisas, sobre a necessidade cria-
tiva e a contemplação, como gatilhos de transformação ética e social, e aponta o ato criativo do teatro
de pesquisa como bom exemplo a ser absorvido pelo sistema de ensino.

Luís Vasco é um dos representantes do MEM (Movimento da Escola Moderna), em Portugal e, em


1977 (a serviço do então Ministério da Educação e Investigação Científica português), foi um dos
responsáveis pela implementação do ensino inclusivo nas escolas do país, desenvolvendo programas
e dando apoio aos técnicos e aos professores destacados em centros de acolhimento de crianças com
déficit cognitivo. Seus textos, de um modo geral, apontam os artistas (e mais ainda os que, além da
criação estética, desenvolvem um trabalho de arte-educação) como ponto estrutural para uma peda-
gogia de potencial transformador, pois diz estar nas artes o centro necessário para o desenvolvimento
do indivíduo e, através dele, da sociedade na qual vive.

Não por acaso, Luís é colaborador permanente da Comuna Teatro de Pesquisa, uma das Companhias
mais longevas da história do teatro ocidental e que, sob orientação de João Mota, desenvolveu um
dos experimentos mais intensos em arte-educação, já realizado por um grupo de teatro, a Casa da

242. Trecho da conferência da inutilidade como conceito útil a uma sobrevivência criativa de Luís Vasco Goucha.
243. Trecho da conferência da inutilidade como conceito útil a uma sobrevivência criativa de Luís Vasco Goucha.
244. Trecho da conferência da inutilidade como conceito útil a uma sobrevivência criativa de Luís Vasco Goucha.

628
Criança da Comuna (1978-1981), um trabalho que tinha na experiência vivencial toda a base para a
construção de conhecimento.

Mas quem são João Mota e a Comuna Teatro de Pesquisa? O que foi a casa da Criança? E onde esta-
mos nós nesta história?

1. JOÃO MOTA E A COMUNA TEATRO DE PESQUISA

João Mota é um criador de muita importância para o cenário artístico e pedagógico das Artes C����
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ni-
cas, não só em Portugal, mas no mundo. Além de ter trabalhado com Peter Brook, desenvolveu, por
si, uma brilhante trajetória dedicada �������������������������������������������������������������
à investigação
�����������������������������������������������������������
teatral. Foi um dos convocados pelo Dr. Arqui-
medes da Silva Santos para a equipe de criação que lançaria as bases da Escola Superior de Educação
pela Arte; foi o proponente da reforma do ensino artístico da Escola Superior de Teatro e Cinema de
Lisboa (fazendo parte do conselho diretivo da instituição durante anos); foi diretor do Teatro Na-
cional D. Maria II, entre 2011 e 2014, além de ser um ícone para as Artes Cênicas em nosso tempo,
considerado um dos grandes encenadores do teatro contemporâneo.

Fundada em 1º de maio de 1972 pelo encenador João Mota, juntamente com Manuela de Freitas, Car-
los Paulo, Melim Teixeira e Francisco Pestana, todos egressos do Teatro Laboratório de Lisboa (após
o sucesso de OS BONECREIROS, dirigido por João Mota em 1971), a Comuna Teatro de Pesquisa
surge como resposta ao desejo de levar mais longe a aventura de um teatro coletivo, no qual os seus
integrantes devem assumir a total responsabilidade pelo trabalho em todos os aspectos que ele abarca.
O grupo, depois de migrar por alguns espaços alternativos de Lisboa (como a antiga cervejaria Por-
tugália), passou a ocupar sua atual sede, em 1975, um casarão na Praça de Espanha. De lá pra cá, em
paralelo com a criação de espetáculos – mais de 100 montagens para crianças, jovens e adultos, com
foco em textos clássicos e contemporâneos do teatro universal, com especial ênfase na dramaturgia
lusófona, apresentando ao público os grandes autores, os textos censurados pela ditadura e os jovens
dramaturgos – o grupo realiza ações de educação estética, cursos de teatro, exposições, concertos,
debates, além do projeto a “Palavra dos Poetas”.

Desde 1973 a Comuna participa dos principais festivais de teatro do mundo. Nas décadas de 1970 e
1980, torna-se um dos grupos de referência do teatro mundial contemporâneo, recebendo, inclusive,
atores estrangeiros para integrar sua equipe.

O grupo alcançou prestí������������������������������������������������������������������������


gio internacional ������������������������������������������������������
único dentro do cenário português, sendo também a com-
panhia que mais vezes percorreu Portugal com espetáculos; foi o pioneiro nas Campanhas de Dina-
mização Cultural do MFA, em 1974 e 1975, levando os seus trabalhos a locais onde nunca haviam
chegado antes, e tem participado dos principais festivais do país.

Independente do financiamento estatal, por ideologia – o primeiro subsídio da companhia só veio


anos depois de sua fundação, através da Fundação Calouste Gulbenkian – e fiel aos pressupostos do
manifesto que publicou em 1972, e apesar dos governos, ministros, políticas culturais, modas e tele-
visões, a COMUNA orgulha-se de estar viva e de continuar a ser um espaço permanente de pesquisa
de um teatro vivo, de uma dramaturgia de ruptura, do nascimento e crescimento de novos atores e

629
autores, um laboratório permanente em consonância com um público que os conhece há tr��������
������
s gera-
ções e que sabe que cada vez que vai à “Casa Cor-de-Rosa” é para partilhar um espaço que também lhe
pertence, uma vez que a história do Grupo se confunde com a de Lisboa. Filosofia Godot-Comuna.

2. A COMPANHIA CIRCO GODOT DE TEATRO

Fundada h�������������������������������������������������������������������������������������������
á 05 anos, no Recife, por artistas brasileiros e italianos, a Companhia Circo Godot de Tea-
tro investiga as fronteiras entre Teatro, Circo, Dança e Formas Animadas.

“Circo Godot”, o primeiro trabalho estreou nas ruas da Grécia em 2010. Nele, uma versão de Lucky e
Pozzo, personagens de Samuel Beckett, eram pretexto para cenas divertidas e cheias de reviravoltas.
Em 2011, a segunda montagem teve estreia no circuito de Festivais di Strada - Artisti Vacanti, na
It������������������������������������������������������������������������������������������������������
ália: “Besteiras” é fruto da pesquisa sobre o Giullare, artista medieval polivalente, que, munido ape-
nas de uma mala com assessórios, concentrava em si os recursos para o entretenimento de plateias em
praças, feiras e castelos. Com Prêmio Funarte Myriam Muniz de Teatro/2011, a Companhia monta o
terceiro espetáculo, “Le Petit: Grandezas do Ser”. Estreado em 2013, no Recife (unindo teatro, circo e
animação de objetos), o trabalho apresenta as relações entre Le Petit e sua amada rosa e é um marco
no trabalho de pesquisa da Companhia, por voltar nossa atenção à acessibilidade. Além do trabalho
artístico, o grupo também realiza projetos pedagógicos em teatro e circo. Os integrantes do grupo
também compõem a grade de cursos de formação para atores no Recife e promovem iniciação ao
circo de crianças e adolescentes na região de Marche (IT). Do início de suas atividades, em 2010, até
hoje, os espetáculos da Companhia vêm integrando, regularmente, a programação de festas, feiras e
festivais na Grécia, Tunísia, Croácia, Itália e Brasil.

A cada novo trabalho, o grupo procura se reinventar e dar passos mais largos em busca de territórios
desconhecidos que coloquem as certezas à prova, pois acredita que a renovação, o apuro estético e a
formação só sã��������������������������������������������������������������������������������������
o poss��������������������������������������������������������������������������������
íveis graças ao trabalho continuado e ao intercâ��������������������������������
mbio de id����������������������
eias, práticas e sabe-
res. E é esta inquietação, somada ao fato de que somos uma companhia formada por indivíduos que
são a um só tempo artistas e educadores, que nos levou, em 2015, rumo à Comuna Teatro de Pesquisa
e à experiência vivencial de 3 meses transformadores de encaminhamentos, abordagens e entendi-
mentos.

3. GODOT E COMUNA: DUAS PERSPECTIVAS

O principal traço de afinidade estética entre o trabalho realizado pela Comuna Teatro de Pesquisa e a
Companhia Circo Godot de Teatro é a verticalidade da investigação em sala de ensaios. Os dois núcle-
os se fundamentam no permanente questionamento dos pressupostos estéticos comumente aceitos,
o que estimula a pesquisa cênica e a busca por respostas (se é que elas existem) que não estão dadas
de pronto.

O pensamento zen, não linear, complexo, está na base desse Ethos. É na fratura exposta de nossas
convicções que se encontra a possibilidade de descobrir conexões novas, garimpadas por baixo das
superfícies, o que pode fazer com que níveis mais complexos/ dialéticos da realidade venham à tona.
Isto solicita observação apurada, reinvenção constante, desmantelamento de padrões, desejo por fazer

630
aparecer outras dimensões estranhas, incertas, dialéticas, musicais da realidade, o que nem sempre
gera espetáculos palatáveis ao gosto comum, mas possibilita que a abertura, o imprevisível, estimulem
o aparecimento de uma cena, um jogo prenhe de vida, de presença, estimulante.

O interessante é que espetáculos como Bão Preto e A Dança da Morte possam ser tão díspares, tão
distintos, mesmo gestados pelo mesmo grupo, pelo mesmo encenador, que, mantendo-se em estado
pleno de abertura frente ao mundo, assine as obras com uma não-assinatura, dotado de um estilo, que
é, na verdade, um “��������������������������������������������������������������������������������
n�������������������������������������������������������������������������������
ão ter estilo”, o que dá autonomia para que cada novo espetáculo seja surpreen-
dentemente novo.

O grupo brasileiro igualmente tem como alvo esta não assinatura. Deseja criar novas significações e
colocar em evidência os embates políticos e sociais, sem abrir mão de uma experiê��������������������
ncia formal art�����
���
sti-
ca inusitada, tal como percebido no Circo Godot (espetáculo de circo-teatro livremente inspirado em
Pozzo e Lucky, personagens de Esperando Godot, de Samuel Beckett).

Também Le Petit: Grandezas do ser, concebido a partir de uma leitura bem particular da personagem
mais conhecida de Exupéry, teve uma recepção acalorada por parte do público, mas dificuldades com
a cr���������������������������������������������������������������������������������������������
tica local, que n�����������������������������������������������������������������������������
ão concordou pelas opções pouco ortodoxas do grupo, nas relaçõ���������������
es ������������
“interpesso-
ais” entre o Principezinho e a Rosa.

Outra afinidade é a visada literária que serve de mote para as montagens dos grupos português e
brasileiro. A Comuna, ao longo de sua existência, tem optado por montagens que levam ao palco tex-
tos da literatura dramática universal; e o Circo Godot tem se inspirado em textos dramáticos (e não
dramáticos) para fazer as transcrições.

Ambas as poéticas, enfim, manifestam uma crença de que é necessário colocar o dedo na ferida da
humanidade para lembrá-la de que é preciso mudanças, que devem começar em cada pessoa, pois a
transformação não deve ser esperada que venha de fora, mas de dentro de cada ser.

4. A EXPERIÊNCIA DO INTERCÂMBIO

O processo de residência artística – agosto a outubro de 2015 – foi bastante transformador, à medida
que nos propôs questionamentos sobre nossa produção artística, no âmbito das premissas filosóficas
de nosso grupo e das dinâmicas de criação, produção, distribuição e fomento existentes no Brasil,
em nossa cidade, em contraponto às realidades verificadas em Portugal e nas dinâmicas dos grupos
observados. Embora nosso foco tenha sido a Comuna Teatro de Pesquisa, durante a estada em Lisboa
tivemos acesso a outros grupos – O Bando, A Barraca, Mala Voadora, Meridional, Teatro do Vestido,
Teatro Experimental de Sintra e Montagens oficiais do Teatro do Maria II. Este contato amplo com
uma realidade distinta, permite também compreender de outra forma nossa própria realidade, com-
parando vantagens e desvantagens entre os dois contextos. Para pontuar alguns exemplos: a ampla
existência de editais públicos – para criação, ocupação de espaços, circulação – que nós temos, bem
como uma diversificada oferta de espaços e equipamentos culturais disponíveis, mediante pleito ou
por concorrência, ou ainda, na realidade portuguesa, a duração curta das temporadas e a intensa ro-
tatividade de oferta de espetáculos pelos grupos, sem esquecer as distinções de processos criativos e

631
as redes de criação estabelecidas, com espetáculos produzidos em pouco tempo, contando com uma
vasta oferta de textos dramáticos escritos contemporaneamente, de modo a estabelecer uma espécie
de filiação entre escritores dramaturgos e grupos de teatro que dão vazão a tais produções.

Foi bastante denso, vez que fizemos uma imersão no cotidiano da Comuna Teatro de Pesquisa e
de seus participantes. Em detalhes: no primeiro mês, durante um período de aproximadamente
20 dias, moramos com o encenador João Mota, o eixo central do grupo, que nos recebeu durante
suas férias, em uma casa de campo. Como a região é fora de zona urbana, o acesso à comunica-
ção via internet, telefonia celular, bem como os transportes são restritos, proporcionando, assim,
experiências pautadas no convívio e na interação direta, tanto com nosso cicerone, quanto com
pessoas do seu círculo de amizade, prestadores de serviço e colaboradores diversos. Desta forma,
nosso primeiro contato com os portugueses se deu a partir de atividades desvinculadas ao fazer
teatral ou à criação artística. Os momentos de refeição foram potencializados como momentos de
diálogo, onde pudemos compreender um pouco sobre a visão de mundo do João Mota e sobre sua
experiência de vida artística com mais de 50 anos, a partir de relatos, para os quais fomos plateia
privilegiada e exclusiva, a maior parte das vezes. Desse modo, vivenciamos uma aprendizagem fora
do padrão – a partir do cotidiano, em rodas de conversa, em tempo integral, sem nenhum objeti-
vo preestabelecido que visasse a um desenvolvimento de competências, tampouco verificável por
meio de avaliações – que, sem dúvida alguma, nos permitiu a ampliação do nosso olhar sobre arte,
cultura, teatro, ensino e aprendizagem.

Na estada em Lisboa, passamos a conviver com os trabalhadores da Comuna, acompanhando en-


saios, temporadas, montagens, festas, comemorações, reuniões, o cotidiano de produção e gerência
do grupo, oficinas, projetos de arte-educação, como se nós também fôssemos parte daquele coletivo,
sem nenhuma restrição de acesso ou ocultação de informações. Desta imersão, estabelecemos possi-
bilidade futura de trabalho entre as duas companhias, e propusemos algumas intervenções a respeito
de mecanismos de fomento e captação de recursos, a partir das estratégias que vivenciamos em nossa
realidade local.

5. EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM NÃO TRADICIONAL

Um dos recursos que o João Mota utiliza para ensinar e encenar é realizar perguntas e levar o aprendiz
ou o ator a propor suas próprias perguntas, sempre questionando as motivações – os porquês –, as
identidades – quem –, os fatos – o que. Além do seu relato a respeito deste recurso, pudemos verifi-
car, na prática, durante os ensaios e montagens de novos espetáculos, e no cotidiano das oficinas, por
ocasião dos exercícios, improvisações e esquetes.

Estar atento, presente, perceptivo e receptivo é a base do trabalho pensante do ator. É uma vivência do
próprio João, antes mesmo de ser uma estratégia pedagógica.

A Comuna, como grupo, desde a sua origem, carrega uma forte noção de pertencimento e de com-
promisso com a cidade e com os indivíduos que a formam. Como coletivo, posiciona-se em defesa
da arte e da alfabetização estética como fator primordial para a formação de pessoas comprometidas
com o outro, com o seu lugar e com o mundo que habitam. Mas só tivemos dimensão da amplitude

632
deste gesto e de como a experiência por nós vivenciada fazia parte de algo maior, no sentido do posi-
cionamento ético e político do grupo no sentido da arte e da função social do artista, quando tivemos
acesso aos arquivo que guardam a documentação de todas as suas realizações ao longo dos últimos
44 anos. E foi seguindo no trilho de uma companhia de teatro que aposta todas as fichas na arte como
instrumento de libertação do indivíduo e na arte-educação como caminho formal para o desenvol-
vimento real de uma nova sociedade, que chegamos aos relatos sobre a Casa da Criança da Comuna,
projeto realizado em parceria coma Fundação Gulbenkian teve início em 1978.

6. A CASA DA CRIANÇA DA COMUNA

Uma aventura de alfabetização estética que tem início ainda nos idos de 1971, no momento da R��e-
forma Veiga Simão (Reforma do Ensino das Artes, que aconteceu em Portugal), quando João Mota é
convidado pela���������������������������������������������������������������������������������
Dr.ª Madalena Perdig������������������������������������������������������������
ão para integrar o corpo docente da Escola de Teatro do Con-
servatório de Artes. O convite é motivado pelo interesse de Madalena em proporcionar aos alunos
do conservatório o contato com as novas práticas desenvolvidas por João Mota a da sua vivência e
formação com Peter Brook, no Centre Internacional de Recherche Thèàtral.

Neste período (1970/1971), paralelamente ao conservatório, João Mota integra o corpo docente da
Escola-Piloto de Formação de Educadores pela Arte. Ao longo do funcionamento da escola, ele irá
ministrar a disciplina de Expressão Dramática, orientando todo o seu trabalhos técnico na disciplina
pelo conceito de jogo.

João Mota acompanhou todo o projeto e processo de construção da escola com o Dr. Arquimedes da
Silva Santos (uma de suas maiores referências educativas) e quando o projeto da Escola Superior de
Educação pela Arte foi arquivado pelo Ministério da Educação ele guarda consigo o novo instrumen-
tal relacionado à prática pedagógica desenvolvido pela escola, no que tange à diferença entre ação e
fundamentação e à necessidade constante de sistematizar a experiência empírica, voltando a aplicar
estas bases quando da implantação da Casa da Criança da Comuna. Projeto desenvolvido entre 1978 e
1981, o qual contemplava tanto as atividades de caráter expressivo, espetáculos, animações e oficinas,
quanto funcionava como um espaço pedagógico de intervenção educativa direta, além de apresentar
forte cunho social.

Ao longo de 3 anos, a Casa da Criança funcionou com o horário estendido para crianças que viviam
no Bairro de Lata (uma favela que ficava nos arredores da Praça de Espanha), num momento em que
o ensino em Portugal passava por grande crise.

O projeto tencionava dar lugar a uma escola das “Artes com A��������������������������������������
fectos��������������������������������
”, assim, além de entrar em con-
tato com a Escola de Artes (música, teatro, dança, artes plásticas…), na qual liberavam seu potencial
criador e expressivo, as crianças eram acolhidas pela Escola dos Afeto, onde recebiam atenção para
suas demandas mais prementes, tais como refeições, banho, reforço escolar, acompanhamento psi-
cológico, esportes, lazer e eram empoderadas em sua autoestima, desenvolvendo hábitos de higiene
pessoal, de cuidado consigo e com o seu entorno, bem como de trato com o outro nas mais diversas
situações (à mesa, em exposições de arte, no parque, na piscina, no teatro… e em outros tantos lugares
para os quais eram levadas constantemente).

633
A casa da criança da Comuna foi uma experiência vivencial de arte-educação, na qual todos os in-
divíduos que integravam aquele microcosmos eram tratados como iguais, estimulados ao respeito
mútuo e à reconstrução coletiva do seu entorno e talvez seja um dos mais radicais exemplos do poder
transformador da arte e das potencialidades do ensino liberto das amarras da escola formal em ter-
ritório lusitano.

Uma Casa da Criança da Comuna em pocket (guardadas as proporções) foi que vivenciamos ao
longo dos nossos 03 meses de imersão. Lá, também, nós, além de entrar em contato com a Escola de
Artes (Luís Vasco e João Mota nos levaram, cada um a seu tempo, em visitas a museus, espetáculos
de teatro, cursos, visitas a cidades, lugares escondidos, livrarias, músicas, passeios de trem, comidas,
cheiros e bebidas em rotas não turísticas que nos deram alguma dimensão sobre a amplidão imagética
daquele lugar tão pequeno), fomos acolhidos pela Escola dos Afeto. Eles nos ajudaram em tudo que
precisamos, nos abriram suas casas, mostraram sem resguardo ou ressalva o funcionamento do seu
espaço, as suas dinâmicas de criação, de produção de cotidiano, nos convidaram a estar com eles em
cena, nos abriram suas salas de ensaio, suas dúvidas e suas certezas, tratando-nos como iguais, como
artistas criadores e educadores, sem sofismas ou meias verdades, mas por acreditarem que a arte li-
berta e se faz urgente que o sentimento artístico circule, pois, como diz Luís Vasco, em seu texto que
aqui reverenciamos,

[...] cada vez é mais difícil encontrar com quem partilhar um olhar do céu de estrelas, a leitura
de um livro em que nos enrolamos com as personagens e perdemos a noção de que estamos a ler
descolamos da realidade; partilhar sem limites a conversa com alguém em que eu ser eu e o outro
ele mesmo para, com urgência, podermos cultivar a inteligência de forma a nunca deixar morrer a
revolta […].245

A Comuna nos mostrou, na vida, sem que nos déssemos conta, num primeiro momento, de que
“aquilo era aula”, que é possível e viável estender o sentido de educação para fora das paredes da
escola, formar sem amarras e a partir do mundo. Esta experiência reafirma em nós a certeza de que
reconhecer e validar na vida curricular da criança e do adolescente para além daqueles que estão na
escola é um ponto crucial para uma nova escola com mais “ARTE e AFECTOS”.

REFERÊNCIAS

COMUNA Teatro de Pesquisa. 25 anos: 1972 - 1997. Coordenação: Cecília Sousa, Álvaro Correia, Manuela
Couto, Margarida Wellenkamp. Comuna Teatro de Pesquisa / Peres Artes Gráficas: Lisboa, 1998. (Catálogo)
GOUCHA, Luís Vasco. Da inutilidade como conceito útil a uma sobrevivência criativa. Conferência. Disponível
em: <https://sites.google.com/site/agoragaia/opiniao-artigos>. Acesso: 25 abr. 2016.
VASQUES, Eugénia. João Mota, o pedagogo teatral: metodologia e criação. Lisboa: Edições Colibri/Instituto
Politécnico de Lisboa, 2006. (Colecção Caminhos do Conhecimento - Artes).

245. Trecho da conferência da inutilidade como conceito útil a uma sobrevivência criativa de Luís Vasco Goucha.

634
Um descortinamento
da singularidade humana sob
a perspectiva da valorização do ser
Mercia Paulino Nicolau da Silva

A época das Luzes revelou o interesse por mudanças, no intuito de propiciar à humanidade a
construção do seu futuro de maneira autônoma. O resultado foi a eclosão do movimento intelectual
e cultural conhecido como Iluminismo. Assinalado pelas ideias ilustradas, tal evento ocasionou, no
século XVIII, as revoluções nas colônias que ambicionavam melhorias nos aspectos sociais, econô-
micos e culturais.

Todavia, a razão e a ciência são amplamente contestadas pelo motivo que, em lugar de promoverem
o progresso, conceberam, em centúrias posteriores, novas formas de dominações baseadas nos prin-
cípios ideológicos do colonialismo europeu. Uma das explicações para isso seria a própria condição
humana, pois como o ser apresenta-se disposto de liberdade, essa o orienta, consequentemente, à
realização de bons ou de maus princípios: “é próprio do homem ser dotado de uma certa liberdade
que lhe permite trocar-se e trocar de mundo e é essa liberdade que o leva a fazer tanto o bem quanto
o mal” (TODOROV, 2008, p. 26). O livre-alvedrio, portanto, conduz o homem à realização de atos
devidamente justos, e também de ações hostis, como consequência da própria circunstância humana.

Outra justificativa, de acordo com o teórico, seria o progresso científico que com o intuito de provocar
avanços principiou sérios resultados imprevisíveis, como ocorreu, por exemplo, com a fissão nuclear.
Os cientistas que descobriram o processo dessa composição não poderiam imaginar o horror que
sobreveio à Hiroshima e Nagasaki. Com isso, compreende-se que uma crença linear no indivíduo,
bem como nos avanços científicos e tecnológicos, torna-se insignificante, pois responde a estímulos
complexos e que podem apresentar resultados desarmoniosos.

Sob essa perspectiva, alguns conceitos universais decorrentes da Revolução Francesa parecem con-
trapor-se às suas causas. O princípio de Igualdade, por exemplo, conduz a um pensamento unitário
e sugere um certo universalismo. Assim, pensar em uma integralidade baseada em um objetivo co-
mum gera uma concepção total e genérica. De igual modo, pode-se considerar os outros temas como
a Liberdade e a Fraternidade. Considera-se que a liberdade decorre de um pensamento racional que
visa as relações interpessoais. Assim, não seria movida apenas por um impulso, mas por uma escolha

635
racional que validaria o próximo (KAWAUCHE, 2014). No entanto, essa mesma liberdade revela-se,
de certa forma, inconsonante com o sistema governamental reformador e esclarecido, pois o mesmo
priva a liberdade alheia em favorecimento de outra predominante que detém o poder. Inclusive, es-
sas ações também são observadas entre as classes sociais nas quais algumas detêm os privilégios de
outras. Por conseguinte, esses parâmetros, quando aplicados, transparecem uma divergência, uma
contradição, porque o próprio século XVIII é traçado por oposições as quais resultaram em revoltas.
Um período no qual se pleiteou por um progresso no campo científico e econômico, mas que ainda
se constatou uma inflexibilidade movida por ações intolerantes.

É um período de expansão econômica e de decadência, de propagação de novidades científicas e


de firme persistência das ortodoxias, de grandes mudanças na ordem social e urbana e de violentos
conflitos derivados dessas transformações (CORDIVIOLA, 2010, p. 16).

Nesse dissonante contexto, atesta-se que orientar uma análise de forma genérica implicaria em alguns
argumentos vulneráveis e ideais desconexos que, por sua vez, produziriam novos métodos de con-
troles e regulações. À vista disso, é necessário compreender o ideal ilustrado como constituído por
práticas coloniais vinculadas a um projeto científico que culminou na construção do sistema-mundo
moderno, define Castro-Gómez (2005). O discurso colonial legitimou-se com a ciência moderna e
concebeu o imaginário científico da Ilustração. Ainda é importante salientar que as propostas formu-
ladas pelas Luzes não foram de todo satisfeitas porque todo o pensamento não é uno, e sim, complexo,
múltiplo, como declara Todorov (2008). Mesmo com a autonomia e com o conhecimento racional, a
vontade humana encontra-se norteada pela finalidade das ações. O homem, mesmo sendo um ser au-
tônomo, dispõe-se da capacidade de se posicionar ou não na condição de seu semelhante, e usufruir
ou não de exclusivo ego.

Por sua vez, destaca-se que a autonomia não corresponde à autossuficiência, ambas são totalmente
distintas. Para dar continuidade à sua natureza, o homem depende do meio social em que vive e sem
o qual os seres não seriam humanos. E essa legítima compreensão de essência e de plenitude advém
da sua relação com o próximo, através de uma cordialidade, de um respeito: “O próprio sentimento
de existir (...) provém da interação com os outros. Todo ser humano é acometido de uma insuficiência
congênita, de uma incompletude, à qual busca preencher” (TODOROV, 2008, p. 53). Portanto, a auto-
nomia consente que o homem seja autor consciente de suas escolhas e decisões, acolhendo-o comple-
tamente tal como se apresenta e não como deveria ser. Isso expressa perceber os seres tal como são em
sua inumerável diversidade, tanto de uma pessoa para outra quanto residentes de um lugar a outro.

Dessa maneira, é pertinente complementar que, por determinados momentos, alguns impasses sociais
provocam inquietações. E ainda é plausível afirmar que não poucos momentos, quase que diários, al-
guns sujeitos se descobrem desassossegados. São instantes particulares, flagrantes incompreensíveis
que a existência apresenta. Momentos inéditos com algo significativo a ofertar. No entanto, também
ocorrem determinadas circunstâncias incompreensíveis do acaso, desde um silêncio inquieto a reali-
zações taciturnas, as quais se buscam compreender com o amparo de algo, de um único instrumento,
e com o qual se discute questões universais. É possível ouvir atentamente os sons das suas palavras.
Nomeiam-no de livro, o qual, dentre algumas definições, seria “uma reunião de folhas impressas
presas por um lado e enfeixadas ou montadas em capa” (FERREIRA, 2008, p. 520). Uma reunião de

636
folhas presas. Ou melhor, reitera-se que estão presas para uma função: a de desprender, tornar livre,
liberar o conhecimento de quem o lê. Uma compilação não só de folhas, mas de letras que, associa-
das, formam uma voz prazerosa e compreensível para aquele que a interpreta. Uma linguagem que
surge bradando melodiosamente das anotações. Um rumor que grita em direção ao interior humano
inspirando-o. Uma voz autorizada a transportar à reflexão do cotidiano. Um som que conduz a uma
viagem desassossegada de emoções.

E é assim que se apresenta o Livro do Desassossego de Fernando Antônio Nogueira Pessoa, um dos
mais importantes escritores do Modernismo em Portugal. Nasceu em Lisboa, no dia 13 de junho de
1888 e ficou órfão de pai em 1893. Sua mãe se casou novamente em 1895 com um militar que exercia
atividades consulares em Durban, África do Sul. Por essa razão, a família se mudou para esse país e
lá Fernando Pessoa teve contato com a língua inglesa. Ele permaneceu na África do Sul por dez anos
quando retornou a Portugal em 1905. No ano seguinte se matriculou no Curso Superior de Letras em
Lisboa. Entre 1910 a 1915 contribuiu com a revista A Águia. Em 1915, a publicação da Revista Orpheu
apontou para o início do Modernismo Português e realizou uma divulgação trimestral de literatura.
Em 30 de novembro de 1935, Fernando Pessoa morreu prejudicado por uma crise hepática, causada
pelo consumo excessivo de bebida alcoólica.

Pessoa criou outras vidas. Para assinar algumas de suas obras, usou o seu próprio nome (ortônimo)
e em outras utilizou heterônimos. Trata de uma designação diferente do pseudônimo que é definido
pela apropriação de um nome fictício, suposto. Segundo Nogueira (2007), o termo pseudônimo con-
siste em uma nomeação artística bastante antiga na literatura, típica do romantismo e que se estende
até os nossos dias, sendo comumente utilizada na música e no cinema. Sua característica é permitir
ao autor a reduplicação de si mesmo para tornar-se um intérprete no campo discursivo e, assim, estar
protegido dos pareceres públicos. Ademais, o escritor português concedeu aos seus poemas não ape-
nas nomes autorais, mas também histórias de vidas: “Além de criar nomes artísticos para os poemas
que escrevia, Pessoa deu-lhes cosmovisões, estilos de época, biografias” (NOGUEIRA, 2007, p. 184).

Heterônimo, portanto, refere-se a outra personalidade, com outro nome, outra individualidade, outra
identidade. Com características físicas, culturais e ideológicas diferentes do criador; portanto, o hete-
rônimo tem descrições vivenciais. Fernando Pessoa criou muitos heterônimos, dentre eles, destacam-
-se Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, além de vários outros semi-heterônimos como
Bernardo Soares.

Muito se questiona à causa que motivou o poeta a criar os heterônimos. Nicola & Infante (1995) res-
saltam que o escritor lusitano tinha uma intenção de representar a nação portuguesa, em suas várias
faces, incluindo as descrições físicas, a formação cultural e os preceitos ideológicos de cada cidadão.
Assim, Fernando Pessoa pode apresentar em suas obras o camponês, o médico monarquista exilado,
o engenheiro naval, o burguês que trabalha como guarda-livros, entre outros.

Sendo nós portugueses convém saber o que somos. O bom português é várias pessoas. Nunca me
sinto tão portuguesamente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por haver (NICOLA &
INFANTE, 1995, p. 21).

637
Outra possível explicação seria o da linguagem textual. Com ela, o escritor português consegue im-
pressionar, comover com o uso das suas palavras. Assim, aproxima-se dos leitores, utilizando a lín-
gua em seus vários tipos poéticos: “gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são
para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas” (PESSOA apud NICOLA &
INFANTE, 1995, p. 91). Octávio Paz (1971) também destaca a criação dos heterônimos que consa-
graram o poeta.

Pessoa, su primer lector, no dudó de su realidad. Reis y Campos dijeron lo que quizá él nunca ha-
bría dicho. Al contradecirlo, lo expresaron; al expresarlo, lo obligaron a inventarse. Escribimos para
ser lo que somos o para ser aquello que no somos. En uno o en otro caso, nos buscamos a nosotros
mismos. Y si tenemos la suerte de encontrarnos -señal de creación- descubriremos que somos un
desconocido. Siempre el otro, siempre él, inseparable, ajeno, con tu cara y la mía, tú siempre conmigo
y siempre solo (PAZ, 1971).

O Livro do Desassossego, portanto, foi escrito por Bernardo Soares, um ajudante de guarda-livros, semi-
-heterônimo que, como afirma o organizador da publicação da terceira edição da obra, Richard Zenith
(2009), não se consistia em uma réplica do escritor, mas em um ser de pouca personalidade. A produção
encontra-se disposta em fragmentos que se articulam em prosa e que permitem ao leitor a apreciação de
cada um, sem seguir uma ordem linear. Inclusive, essa foi a maneira que o poeta encontrou para refletir
o estado de seu íntimo. Em uma carta encaminhada a Armando Cortes-Rodrigues, Pessoa explica: “O
meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas
tudo são fragmentos, fragmentos, fragmentos” (PESSOA apud ZENITH, 2009, p. 09).

Através da referida obra, tornou-se viável refletir em algumas considerações sociais, tais como a re-
levância da singularidade do ser. Dessa maneira, tudo se iniciou com uma inquietação. Vale salientar
que esse desassossego não é algo imperfeito, que prostra um indivíduo, que paralisa um ser. Mas
que, também, desencadeia reflexões e ações: “Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como
sempre tenho sido, sozinho como sempre serei” (PESSOA, 2009, p. 45). Em indefiníveis momentos,
o desassossego conduz o ser humano a compor. O oposto do sossego também não resulta em um
total pessimismo, na crença que tudo resultará no pior, porque “ser pessimista é tomar qualquer coisa
como trágico, e essa atitude é um exagero e um incômodo” (PESSOA, 2009, p. 42). Assim, a sensação
inquietante pode motivar a realização de sonhos ao encher os dias vazios em desconfortáveis inspi-
rações de desejos.

Ainda se destaca, como efeito de tal intranquilidade, a crítica à época vigente. Na obra, é perceptível
um juízo censurador à ideologia moderna, ao sistema moderno onde tudo gira em torno da razão.
Vale salientar que a razão é necessária, mas, quando isolada, no intuito de encontrar preceitos indivi-
duais, não compartilhados, não funciona. Entretanto, o autor se caracteriza como um homem ético,
pois não se conformou à tradição da época no intuito de valorizar a singularidade humana, a liber-
dade do ser: “Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade” (PESSOA,
2009, p. 66).

Existe, ainda, o perigo da homogeneização ao evitar a peculiaridade de cada indivíduo, da incompa-


rável singularidade dos povos e do seu valor, pois existem seres únicos, especiais. O respeito à vida,

638
à liberdade, orienta um outro caminho: o de seguir em direção oposta às ideias massificadoras e aos
estereótipos que aprisionam. E isso é o que move o indivíduo a considerar os seus semelhantes: “Só
no amor ou no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma” (PES-
SOA, 2009, p. 319). Os reconhecimentos da singularidade de cada ser, o não individualismo, buscam
o sentido da valorização do outro, do humano. Todorov (1999) complementa que a admiração frente
à singularidade do ignoto, a estranheza diante da essência da distinção do ser é o que delimita o con-
ceito da alteridade.

É possível compreender o outro em relação a si, como um grupo social ou como uma comunidade
que expressam uma cultura e um idioma desconhecidos, com os quais cada um revela o seu mundo e
manifesta-se como uma entidade particular. Através da relação com o outro é possível averiguar que
surge uma comunicação sem recorrer a rejeições. Em uma relação com outrem é essencial que exista
uma aproximação que se direciona do eu ao outro e não o limita ao si, mas constitui-se de um rela-
cionamento ponderado, um vínculo em que o outro permaneça com sua própria característica única
que dimana em uma relação ética: “ver o outro como humano e igual ao mesmo tempo” (TODOROV,
1999, p. 91).

Da relação com o outrem é imprescindível um direcionamento do eu para o outro sem limitar ao


si. Ou seja, trata-se de um vínculo em que o outro permanece com suas inatas características, pois
“um indivíduo é outro para outro” (LÉVINAS, 2010, p. 215). O outro não existe para que um se so-
breponha a ele munido do insuportável desejo de poder que é possuidor da inata condição humana.
Contudo, o próximo se apresenta para construir a própria humanidade do eu e para que ele mesmo
reconheça a essência humana em cada um dos seres. Além disso, a consciência de respeito pelo hu-
mano desencadeia-se a partir da percepção do outro: “Sempre me tem preocupado, naquelas horas
ocasionais de desprendimento em que tomamos consciência de nós mesmos como indivíduos que
somos outros para outros” (PESSOA, 2009, p. 319).

O individualismo, a competividade, a satisfação das necessidades particulares são características


presentes na sociedade atual. E o são totalmente opostos à alteridade, ao respeito ao próximo,
ao valor do outro. Ao seu exame, tornou-se possível verificar formas de dominação, exploração
e discriminação cada vez mais impetuosas que implicam na deliberada polarização da sociedade
nos dias vigentes. Como vetores atuantes no mundo social moderno, o desenvolvimento científico-
-tecnológico produziu um patamar de nova ordem de consumo e de acúmulo de bens justificados
por necessidades subjetivas e particulares. Conforme Quijano (2007), trata-se do capitalismo co-
lonial/moderno. Dessa forma, o sociólogo complementa que tal dominação de poder não produz
liberdades civis. Pelo contrário, motivada pelo anseio de lucros e à serviço do capital, a escravidão
encontra-se em re-expansão.

Em contrapartida, uma das alternativas para solucionar esse impasse, seria acrescentar mais recursos
à produção de conhecimento, à memória histórica e ao imaginário social fomentando, assim, a refle-
xão desse controle e dando espaço a um novo acesso intelectual. A educação aplicaria a consciência
autônoma em refletir sobre os usos dos elementos naturais e culturais a fim de alcançar uma instrução
social ativa (BOMFIM, 2005). Entende-se que toda a dilatação de um pensamento é amparada por
uma reunião de aspirações necessárias e produzida pelo saber insaciável, na ânsia pelo estudar, desco-

639
brir, analisar. A revelação de novas esferas, de caminhos vigentes corresponderá a uma tenra vontade
de conhecer. E essa instrução provocará novas curiosidades, que estimulará verdadeiros desejos subs-
tanciais, não ao predomínio, mas ao progresso.

Assim, efetivar a liberdade dos seres humanos, seria “entregá-los à posse da própria inteligência”
(BOMFIM, 2005, p. 368), as quais proporcionariam expressões de solidariedade e resultariam na
produção do bem-estar social, em uma sociedade democrática e emancipada. Desse modo, inicia-se
um processo de des/colonialidade, ou melhor, de emancipação do capitalismo descobrindo, nesse
dinamismo, formas originais de uma livre existência, autônomas da dominação e da discriminação,
utilizando-se dos recursos tecnológicos para produzir valores necessários, aumentando a distribuição
de serviços e confluindo em um corpo social democrático.

Nessa busca pela valorização do próximo, do humano, como também, do espaço em que ele vive, é
possível verificar o reconhecimento da singularidade de cada ser, o não individualismo, a aceitação
do outro com especial acolhida e sem irredutível tolerância. “O homem de sensibilidade justa e recta
razão, se se acha preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la”
(PESSOA, 2009, p. 176). E, assim, o ser humano é também capaz de constatar o outro em si, e o eu em
um outro, sujeitos comuns e ainda diferentes. Não se trata de um elemento homogêneo, pois é pos-
sível encontrar outros em si; como também não se considera a si mesmo totalmente distinto de tudo
que lhe é exterior, visto que, de modo similar, cada um é eu e outro (TODOROV, 1999).

É, portanto, no diálogo que a concórdia atua, que conflitos se esvaecem e que o recíproco entendi-
mento é fundamentado. É na comunicação com o outro que se reconhece a qualidade de um indi-
víduo e a sua particularidade, distinta, e comparável a si mesmo, à essência do humano, à natureza
do ser: “Ora, é falando ao outro (não dando-lhe ordens, mas dialogando com ele), e somente então,
que reconheço nele uma qualidade de sujeito, comparável ao que eu mesmo sou” (TODOROV, 1999,
p. 157). Desenvolver uma comunicação, um diálogo como uma oportunidade de conhecimento de
outrem e, por conseguinte, de si mesmo. Verifica-se, portanto, um modo de conhecer o outro com
responsabilidade: “Relação com outrem, enquanto tal, e não relação com o outro já reduzido ao mes-
mo, ao ‘aparentado’ ao meu” (LÉVINAS, 2010, p. 212).

Para Todorov (1999), o homem apresenta uma premência de comunicação com o mundo que lhe ro-
deia e com o próximo. A linguagem, nessas circunstâncias, manifesta-se como um meio de revelação
e de conhecimento. Uma locução que não reduz os seres ao nível de objetos sob um olhar egocêntrico,
mas que os considera como sujeitos, e atribui-lhes apreço e valia. Verifica-se, portanto, a linguagem
como um meio de conhecer um indivíduo. No decurso dessa consciência é que se inicia a percepção
de que existe um outro e que um torna-se outro para o outro. É aceitável o despontar de um valor pelo
outrem e pela sua cultura, pois o idioma também é um meio de aproximação entre os seres e direciona
a um entendimento e conhecimento.

Essa inquietação, esse desassossego, essa sensível crítica à intolerância alheia são características pre-
sentes na obra apresentada. Uma crítica de valores, visando uma reformulação do mundo, o respeito
à vida, à liberdade, à singularidade, sem colonizar, sem hierarquizar, sem despencar no estereótipo.
Observar o outro na sua diferença, na sua particularidade e reconsiderar a sua subjetividade, os seus

640
sentimentos e os seus sofrimentos de maneira a não reduzi-lo ao mais cruel individualismo dos pró-
prios interesses, são aspectos fundamentais da expressão humana e palpitantes pensamentos no Livro
do Desassossego (2009).

O texto literário salienta a necessidade de interrogar o mundo e também se relaciona com a história
social da humanidade, a partir de uma abordagem crítica social. Além de entrever uma compreensão
da responsabilidade do eu pelo outro e de sua singularidade, sem vistas a homogeneizar o particular,
sem o uso de excessos sobre as exceções. Uma obra que se inicia com um sensível desassossego do seu
autor e que, consequentemente, repercute no outro.

REFERÊNCIAS

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CASTRO-GÓMEZ, SANTIAGO. La hybris del punto cero: Ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada
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LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: Ensaios sobre alteridade. Trad. Pergentino Pivatto et al. 5. Ed. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2010.
NICOLA, José; INFANTE, Ulisses. Fernando Pessoa. São Paulo: Scipione, 1995.
NOGUEIRA, Lucila. Contra o primado da pseudonímia no estudo da poesia de Fernando pessoa. In: PAIVA,
José Rodrigues; FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo (Orgs.). Em Pessoa. Recife: Editora Universitária, 2007,
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PAZ, Octavio. Fernando Pessoa: El desconocido de sí mismo. Disponível em: <http://www.con-versiones.com/
nota0319.htm>. Acesso em: 16 abr. 2016.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. 3. Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
QUIJANO, Aníbal. Des/colonialidad del poder: el horizonte alternativo. Observatorio Latinoamericano de Ge-
opolítica. Lima, 2007. Disponível em: <http://alainet.org/active/24123 &lang=es>. Acesso em: 02 maio 2016.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moi. São Paulo: Mar-
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______. O espírito das Luzes. Trad. Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Barcarolla, 2008.
ZENITH, Richard (Org.). Prólogo. In: PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. 3. Reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.

641
Inclinações artísticas influenciando
em práticas pedagógicas: análise de
intervenção pedagógica com idosos
João Feliciano de Souza Neto/ Pedro Rodrigues Pereira da Silva

INTRODUÇÃO

Conforme o currículo da Licenciatura em Teatro de uma Instituição de Ensino Superior, os alunos de-
vem vivenciar estágios em diferentes campos do ensino do teatro: instituições formais de ensino regu-
lar (escolas públicas e privadas) e espaços não formais (ONGs, projetos sociais e etc.). Para vivenciar
esses estágios, são oferecidas, aos licenciandos, disciplinas que abrangem os conteúdos equivalentes
às metodologias específicas para o ensino do teatro nesses contextos.

No ano de 2015, alguns tiveram a oportunidade de realizar seus estágios num cursolo, podendo, as-
sim, trabalhar metodologias de ensino para um determinado grupo de idosos. Nesse ano, aproxima-
damente vinte e cinco alunas foram atendidas pelo curso, que tem como objetivo principal promover
a educação de idosos, numa perspectiva de humanização, com base na linguagem teatral.

Graça Melo afirma que a proposta do curso “é trabalhar na perspectiva da humanização do ser huma-
no, do mundo onde vivemos” (MELO, 2013, p. 8). As aulas aconteceram semanalmente, nas segun-
das-feiras, das 9h00 às 11h00, no Centro de Educação da IES. No ano em questão, o curso contou,
apenas, com a presença de alunas nas aulas, evidenciando a pouca procura de homens idosos.

Por se tratar de um grupo que está junto há pelo menos três anos, a relação das idosas com a lingua-
gem teatral já se estabelece de forma bem consciente, embora alguns conceitos ainda lhes pareçam
distantes. O curso representa uma grande importância na vida das senhoras, que valorizam o trabalho
realizado e se interessam em produzir exercícios cênicos para serem mostrados a um possível público.

A construção do exercício cênico contou com a utilização das memórias das alunas. No primeiro se-
mestre, as alunas escreveram algumas de suas histórias, focando na infância e nas brincadeiras recor-
rentes nessa fase da vida. Na segunda etapa do trabalho, na qual os estagiários assumiram o planeja-
mento e a regência das aulas no curso, essas histórias foram utilizadas como mote de criação de cenas,
explorando momentos de narração e de dramatização do material produzido no semestre anterior.

642
As aulas aconteceram no próprio Centro de Educação, em salas que, à primeira vista, podem ser con-
sideradas não adequadas para um trabalho de construção cênica. Tivemos, então, mais um desafio: o
de nos relacionar com salas pequenas, cheias de carteiras, não ventiladas e que, por vezes, não davam
o suporte adequado para as alunas. Decidimos integrar, ao trabalho, essas dificuldades, planejando
aulas que pudéssemos nos relacionar com os objetos encontrados em sala, e com as limitações do
próprio espaço e das próprias alunas.

Criamos um espetáculo simples, que evidenciava as brincadeiras e jogos presentes durante todo o
processo, e que traziam, de forma descontraída e bem-humorada, objetos rotineiros, como por exem-
plo: carteiras, garrafas de água, folhas de papel, utensílios domésticos, sacolas plásticas e etc.

1. INCLINAÇÕES ARTÍSTICAS INFLUENCIANDO EM PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Os estagiários decidiram desenvolver suas práticas pedagógicas no curso, relacionando suas vivên-
cias artísticas com o trabalho realizado com as idosas. Com base no estágio de observação feito no
primeiro semestre, foram percebidos possíveis problemas que dificultariam o processo de criação
cênica com o referido grupo, embora esse tivesse sempre em evidência o desejo de apresentar um
trabalho teatral para o público, ao final do curso. Visando diminuir essas dificuldades, foi decidido,
então, utilizar de potenciais artísticos inerentes de cada estagiário para nossas intervenções peda-
gógicas.

Percebeu-se, no referido grupo de idosas, uma recorrente dispersão pelo uso da palavra em momen-
tos de prática das aulas, impedindo que se estabeleça uma presença total dos sentidos. As palavras
tomavam conta do espaço e traziam, para o grupo, energias de fora, dispersando uma tentativa de
conquista de energia criativa. O silêncio não representava, para algumas delas, uma forte possibilida-
de de criação. “O homem gosta de produzir sons para se lembrar de que não está só. [...] Temendo a
morte como ninguém antes dele a temera, o homem moderno evita o silêncio para nutrir sua fantasia
de vida eterna. (SCHAFER, 2011, p. 354).

Foi então que nós, que temos um interesse de investigação sonora em nossas práticas artísticas, de-
cidimos levar essa investigação, também, para o processo de criação com as idosas. Como atores em
formação, percebemos a importância da conscientização das sonoridades e do silêncio como material
de construção cênica, no que diz respeito ao trabalho do ator.

Para se alcançar o estado da criação, da vivência artística, é necessário um processo de passagem.


Vários métodos são estudados e são aplicados em diferentes grupos para que sejam acordados os sen-
tidos, instalando a atenção e a presença, abandonando, assim, a energia de uma rotina que não serve
para o trabalho teatral.

Dentro dessa energia que a rotina estabelece e nos envolve (muitas vezes imperceptível, não
consciente), encontra-se uma espécie de ruído. “Ruído é qualquer som que interfere. É o destrui-
dor do que queremos ouvir” (SCHAFER, 1991). Esse ruído gera atrito e gera faísca nas relações,
impedindo que uma “liga” se estabeleça no grupo, sendo essa “liga” um dos passos no caminho
para a criação.

643
Por mais que uns alcancem mais rapidamente um estado de concentração, a lei do contágio acaba que
por imperar, sendo o ruído mais fácil/tendencial de penetrar o silêncio e tomar conta do espaço. Mas,
ao contrário, o som deve encher-se de silêncio. Schafer define silêncio como:

[...] a característica mais cheia de possibilidades na música. Mesmo quando cai depois de um som,
reverbera com o que foi esse som e essa reverberação continua até que outro som o desaloje ou ele se
perca na memória. [...] O homem gosta de fazer sons e rodear-se com eles. Silêncio é o resultado da
rejeição da personalidade humana. O homem teme a ausência de som como teme a ausência de vida.
(SCHAFER, 1991, p. 71).

Evitar o uso da palavra permite que outras formas de comunicar se estabeleçam (vale considerar
que muitas vezes tem palavra e, em contrapartida, não tem comunicação). O não uso da palavra
nos interessou no processo com as idosas, ao menos num primeiro momento, como, por exemplo,
um aquecer, justamente para auxiliar em um estado de atenção, possivelmente vivenciado pelas
alunas.

Outro estagiário, tem dentro de suas vivências artísticas um interesse maior pela conscientização pelo
movimento, aliando teatralidade à corporeidade, aproximando-se do que podemos chamar de um
ator-bailarino. Esse interesse artístico interferiu fortemente na sua prática pedagógica com as idosas,
gerando um interesse pela percepção dos movimentos realizados pelas alunas, algo que outra colega
pôde também desenvolver junto às idosas, pois a estagiária tem como investigação artística o estudo
do gesto, focando na máscara do clown.

Os limites físicos são bem diagnosticados, porém, por meio deles, possibilidades podem ser traba-
lhadas. Um interesse que nos moveu perpassou a consciência desses movimentos realizados ou não
realizados por conta de um limite físico ou por uma escolha pessoal.

Essas aptidões artísticas de cada estagiário, apontadas nos parágrafos anteriores, interferiram no
planejamento das atividades realizadas com as idosas e auxiliaram na criação artística desse grupo,
que teve contato com esses artistas-pedagogos que estavam usando suas potencialidades a serviço
de uma construção cênica coletiva, e a serviço de um tema delimitado no projeto de intervenção
pedagógica.

O tema do projeto de intervenção foi “Corpo que brinca: (Re)descobrindo memórias”, e os trabalhos
com sonoridades, com o silêncio como potencializador de criações e com a conscientização pelo mo-
vimento estavam totalmente ligados à esse tema.

2. CORPO QUE BRINCA: RESULTADOS DO PROCESSO

Partimos, então, para o trabalho de regência com as alunas. Além de as alunas terem contato com
experiências e interesses artísticos de cada estagiário, pudemos perceber, ao longo do processo, o
interesse das idosas com relação ao teatro. Buscamos, por meio de nossos interesses, dialogar com os
interesses das alunas.

644
O diálogo é a condição básica para o desenvolvimento da consciência crítica do ser humano enquanto
pessoa/sujeito. Através de uma prática educativa dialógica são criadas as condições concretas para
que os interlocutores possam alcançar níveis qualitativamente diferentes de conscientização crítica de
si e de sua realidade objetiva e subjetiva. (MELO, 2007, p. 90).

Fomos pela via negativa, com relação a um trabalho que habitualmente é realizado com idosas, de-
cidimos não valorizar o uso de um texto dramático, ou de textos não dramáticos, visando diminuir
nelas a ideia de que fazer teatro é declamar poesias ou grandes “falas”. Pelo fato de nossas experiências
artísticas terem como característica um caráter processual de criação por meio de jogos, decidimos
trabalhar com as alunas dessa maneira, possibilitando para elas um novo olhar com relação ao fazer
teatral.

Valorizamos, ao máximo, a ideia de que deveríamos apresentar algum produto ao final do curso, jus-
tamente por percebermos, como artistas de teatro, o quão importante é o momento de encontro, o ser
presente para outros indivíduos. Acreditamos que “a essência do teatro reside num mistério chamado
‘momento presente’” (BROOK, 2005, p. 68).

O espetáculo realizado no final do curso, no ano de 2015, foi o reflexo de improvisações e experimen-
tações que as alunas realizaram ao longo do semestre, e foi intitulado como “Corpo que Brinca”. Fize-
mos, então, uma seleção de jogos e de cenas construídas por elas, com base nas brincadeiras infantis
que elas relataram ou expuseram ao longo do ano. O que ficou evidenciado foi o corpo de cada uma
brincando, sem nenhum apelo para que elas retornassem a um corpo jovem ou infantil, elas brinca-
vam de fazer teatro, revelando seus limites e suas possibilidades.

Pelo fato de os quatro estagiários terem interesse no trabalho do ator como essencial para o fazer
teatral, valorizamos no processo a ideia de que todo material cênico produzido pelas alunas seria,
de alguma forma, valorizado. Mostramos, no espetáculo, alunas-atrizes brincando de fazer tea-
tro. Numa espécie de metateatralidade, evidenciamos o trabalho do ator exposto pelas alunas, que
também queriam mostrar o quanto, para elas, o fazer teatral é importante. Como afirma Copeau,
o trabalho do ator é de extrema importância para uma sociedade e exige muito do indivíduo que
o exerce:

No entanto é uma profissão que os homens desprezam. Eles a consideram perigosa. Eles a associam
com a imoralidade, e a condenam por seu mistério. Essa atitude farisaica, que as tolerâncias sociais
mais extremas não eliminaram, reflete uma ideia profunda. É que o ator faz uma coisa proibida: re-
presenta a sua humanidade e brinca com ela. (COPEAU, 2013, p.162)

Queríamos brincar com nossas humanidades, com a nossa arte, com a humanidade de nossas alunas,
e com a arte delas, e com isso gerar a reflexão de todos que, de alguma forma, tiveram contato com o
trabalho.

Nossas práticas artísticas fora da sala de aula interferiram fortemente em nossa montagem. Participa-
mos do espetáculo, e pudemos perceber o quanto ele representava para cada aluna, pois o sentido de
autoria estava presente em cada uma delas e em nós também.

645
Podemos intuir que todo fazer teatral é puramente pedagógico, e em um processo em que o professor
se integra com o seu lado artístico, revelando-se principalmente como artista, faz com que cada alu-
no se sinta artista também, inserido em um processo de criação e de autoria. Segundo Graça Melo,
“O teatro não é apenas um sistema de signos que serve para comunicar, mas é principalmente um
processo de interação, ato constituinte de significação, ação/reflexão/ação – práxis humana” (MELO,
2007, p. 84).

Em uma turma de teatro para idosos, é de extrema importância que cada indivíduo se reconheça
como criador, autor de uma obra que será mostrada para outros indivíduos. O processo de criação
teatral com idosos passa a ser um processo de visibilizar indivíduos que, perante a uma sociedade
excludente, são indivíduos invisíveis.

Por meio do trabalho realizado com as alunas do curso no ano de 2015, as experiências artísticas dos
estagiários, que regeram o processo de construção do espetáculo “Corpo que Brinca”, misturaram-se
com o trabalho pedagógico, fazendo com que ideias, já formalizadas com relação ao fazer teatral,
fossem problematizadas por meio das alunas.

O trabalho de criação cênica nesse curso, utilizando-se de potenciais artísticos de cada estagiário,
serviu também para que pudéssemos flexibilizar os nossos saberes, e que, dentro de uma prática pe-
dagógica, escolhas fossem tomadas. A percepção de que determinadas práticas artísticas, utilizadas
em determinados grupos, podem não ser interessantes com outros grupos, devido a inúmeros fatores
que a lida na sala de aula revela, é um aspecto que vivenciamos neste processo.

Estar aberto para perceber que determinadas práticas metodológicas podem não funcionar, frente a
um objetivo traçado para uma determinada turma, é uma aptidão que todo professor deve considerar.
Freire aponta que a dialogicidade é fruto de humildade no saber agir:

Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. A pronúncia do mundo, com que os homens
o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante. O diálogo, como encontro dos homens
para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus polos (ou um deles) perdem a humildade. Como
posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim? (FREIRE,
1987, p. 46).

Numa prática artística, a dialogicidade deve ser elemento constante para que o sentimento de autoria
esteja em todos os envolvidos. Isto é, nos professores, que assumiram o papel de artistas; nos alunos,
que também assumiram o papel de artistas; e nos espectadores, que possibilitam, principalmente no
teatro, a realização cênica.

REFERÊNCIAS

BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. 4. ed. Trad. Antônio Mercado. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
COPEAU, Jaques. Apelos. Trad. José Ronaldo Faleiro. São Paulo: Perspectiva, 2013.

646
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imaginação e percepção de si mesmo. Trad. Daisy A. C. de Souza. São Paulo: Summus, 1977.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MELO, Maria G. V. de. O ensino e a aprendizagem da linguagem teatral na EJA: princípios norteadores. In:
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SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991.
______. A afinação do mundo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 2011.

647
Educação musical na 3ª idade -
música e demais processos artísticos
para as saúdes social, motora, emocional
e cognitiva
Marcelo Caires Luz

1. O IDOSO NA CONTEMPORANEIDADE

Em meio a múltiplas divergências e intermináveis discussões que envolvem crenças, mitos, dogmas
religiosos à parte e consideráveis estigmas sociais e antropológicos da velhice246, a magia de se viven-
ciar a 3a idade nesse início do século XXI pode representar algo fundamentalmente interessante: o
pertencimento a uma camada social que nunca lutou tanto pelos seus direitos, alcançando reconhe-
cimento legal e social, a fim de promover uma forte ampliação dos direitos, produtos e serviços es-
pecificamente desenhados a essa etapa da vida. Tratando dos estigmas negativos da velhice, Miranda
(2014, pag. 7) expõe que:

Percebem-se atitudes sociais em relação à velhice predominantemente negativas, resultantes de falsas


crenças a respeito da capacidade dos velhos em relação ao trabalho, ao aprendizado e à adaptação a
novas situações. Os estereótipos levam à discriminação e, por sua vez, afetam a qualidade de vida e
o bem-estar de quem se encontra em situação de exclusão. Não surpreende que o imaginário social
exponha o preconceito entre gerações, conferindo aos jovens qualidades associadas à força e à agili-
dade e, aos velhos, atributos como carências, fragilidade e passividade.

Afinal, trata-se do “Tempo de Viver”, como intitulou Isquierdo (2003) em sua obra; um tempo que o
Cronos – tempo medido pelo relógio, calendário ou rotina, dentro de um determinado limite – não
mais tanto importa; um tempo que pouco significa; que não mais deturpa o sentido do caminhar.

Assim, o foco agora é no Kairós – aspecto qualitativo do tempo; momento certo; oportuno; experi-
ências que precisam ser saboreadas com plena significância; sem correria ou qualquer forma de “au-
tomatismo”. E este pode ser um tempo em que o resgate da autoestima e de sonhos guardados desde

246. “O conhecimento da existência de um modelo social amplo e geral de velho, presente no imaginário social, que se constrói pela con-
traposição à identidade de jovem, levou-nos a pensar sobre questões relativas à construção da identidade do idoso e de como esta mesma
identidade é sentida e vivida por aqueles indivíduos classificados como velhos” (MERCADANTE, 2003, p. 56).

648
a mais tenra infância ou ao longo do amadurecimento, podem e devem ser resgatados sem rodeios,
porque é chegada a hora de se viver intensamente as últimas etapas da vida247.

Então, vale-se uma 3a idade viva, ativa, autônoma, independente, cheia de brilho, de feitos e refeitos; algo
como, nesse momento, reinventar toda a experiência vivenciada ao longo de uma vida de muitas histó-
rias e estórias. Esse é o idoso contemporâneo: ressignifica o modelo social de velhice do último século,
surpreende a cada dia com seu dinamismo e a alegria de longeviver, e assim constrói o árduo processo da
longevidade. E assim, “o sentido de um bom envelhecer deve estar aliado a valores como pertencimento
e sociabilidade, uma via para combater preconceitos que interferem ou anulam as possibilidades dos
idosos de aprimorar a aprendizagem e desenvolver novas habilidades” (MIRANDA, 2014, p. 7).

Desse modo, nesse novo momento e focado que “a otimização cognitiva é uma atividade terapêutica
fundamentada na teoria Life-Span da psicologia (BALTES, 1987), que comporta a noção do desenvol-
vimento humano ao longo do ciclo vital, em termos de potencialidades e limites” (LEÃO et al, 2014,
p. 60) encontramos, portanto, a prática e a aprendizagem da música nessa faixa etária que planejada
como uma atividade interdisciplinar com outros processos artísticos, tais como jogos dramáticos, a
dança e o canto, confere ao idoso da atualidade uma ferramenta de incríveis descobertas e reinvenção
da velhice248 no sentido de ampliar suas habilidades, criar ou aderir a uma nova identidade, e assim
promover uma retomada do desenvolvimento das faculdades humanas essenciais para uma vida mais
longa, plena e autônoma.

2. O PORQUÊ DA EDUCAÇÃO MUSICAL NA 3ª IDADE?

Não é mais novidade que no Brasil de hoje a população com idade superior a 60 anos cresce significa-
tivamente, e que esse fato é alvo de atenção de profissionais das ciências humanas, sociais e da saúde,
que, inquietos, buscam o desenvolvimento de uma compreensão técnica mais ampla com o objetivo de
ampliar práticas que fomentem a autonomia na velhice e, portanto, uma qualidade de vida tão desejada.

Desse modo, em decorrência das atuais perspectivas de envelhecimento populacional denso e em


espelho aos países já envelhecidos como França, Itália, Portugal, Espanha, entre outros, pesquisas
em Gerontologia e Geriatria fortalecem no aprofundamento e na especialização dos processos. Nesse
sentido, alguns centros científicos ao redor do mundo se concentram na investigação do sistêmico
processo de senescência e, como uma de suas vertentes, o desenvolvimento do ser humano na velhi-
ce, suas capacidades e habilidades inatas ou não, e seus entrelaçamentos com aspectos econômico-
-sociais, motores, emocionais e cognitivos.

Por outro lado, assistimos em nossa sociedade a variadas iniciativas que realizam programas de inte-
gração social da população idosa. Um público que, na sua maioria, é composto por aposentados ou
pensionistas, geralmente classificados como pessoas carentes e portadoras de múltiplos desafios, den-

247. Considerem-se aqui as pesquisas de apontamento das médias atuais da expectativa de vida do homem.
248. “O mito da velhice como etapa negativa se baseia em pressupostos incertos. A maioria dos idosos não tem limitações, nem suas
vidas são negativas e dependentes […] A velhice se constitui uma etapa vital que pode ter elementos de desenvolvimento pessoal, embora
este desenvolvimento vá em direção contrária aos valores predominantes na sociedade atual: força, trabalho, poder econômico e político”
(MORAGAS, 1997, p. 24).

649
tre eles, a condição de isolamento, abandono, tristeza e discriminação social; vítimas também de um
estigma social impiedoso, mítico e constituído por falsas verdades de que chegar ou estar na velhice é,
necessariamente, portar um quadro físico, cognitivo e orgânico largamente depreciado.

Enfim, trabalhar com o idoso da atualidade, e do ponto de vista biopsicossocial, requer uma visão
“holística”, interdisciplinar e multiprofissional destes sujeitos e do sistêmico processo de senescên-
cia. Assim, faz-se necessário relacionar a educação musical com outras áreas, necessárias para uma
melhor compreensão e atuação docente com essa faixa etária, tais como: a Fisiologia, a Psicologia, a
Sociologia, agregar elementos da Antropologia Social, da Nutrição e outras que se fizerem necessárias
e pertinentes, a fim de promover uma sustentação instrumental às atividades desenvolvidas.

3. MÚSICA E EDUCAÇÃO MUSICAL NA 3ª IDADE

Com pesquisas na área que contribuem nas transformações de correntes pedagógicas fundamentais
ao movimento de renovação e seus pedagogos nos últimos 50 anos (Zoltán Kodály, Edgar Willems,
Carl Orff, Martenot, Suzuki, Émile Jaques-Dalcroze, Hans Joachim Koellreutter, Raymond Murray
Schafer etc), a Educação Musical se transforma e consolida num processo contínuo, com múltiplas
faces e possibilidades na formação, manutenção ou transformação do indivíduo no mais amplo dos
aspectos sociais, motores, emocionais e cognitivos.

Por outro lado e, tratando-se da necessidade profissional de se conhecer as múltiplas metodologias em


educação musical para um desenvolvimento “crítico, criativo e pessoal”, Penna (2001, p. 20) discorre
sobre as alternativas metodológicas que multiplicam a profissionalização da área e salienta que “o conhe-
cimento, análise e avaliação de propostas existentes de pedagogia musical podem sustentar uma reapro-
priação (…)”. Ao professor cabe ainda “construir um arsenal de alternativas metodológicas, enquanto
opções que lhe permitam ajustar flexivelmente sua prática, conforme a necessidade” (Ibid., p. 20).

Eis aqui, portanto, uma educação musical que não objetiva a formação de instrumentistas virtuoses,
mas, sim, detêm-se a preparar os participantes adultos idosos da atualidade para uma etapa de expe-
riências e conquistas, sem exageros mecanicistas, exaustão, traumas pedagógicos e, sobretudo, no que
diz respeito ao desenvolvimento humano, seja ele na faixa etária que for.

Assim, estudar música na 3a idade, como retrata Luz (2008), trata-se de um processo de construção
do conhecimento musical, tal como determina Rocha (1990, p. 22): “música antes do instrumento;
vida antes da perfeição”, cujo principal objetivo concentra-se no despertar e no desenvolvimento do
gosto pela Música e, portanto, no acesso à iniciação e alfabetização da Linguagem Musical no mais
amplo dos sentidos. É feita através de atividades lúdicas (sob a regência “Willemsiana” do viver, sentir
e pensar) que foquem desenvolver e ou aperfeiçoar a percepção auditiva, a capacidade criativa e a
imaginação; a coordenação motora, a memorização, a socialização, a expressão corporal, a percepção,
o raciocínio espacial etc.

Dessa forma, como registra França (2009, p. 3), “aula de música não é [somente] aula de sons [orga-
nizados]. Aula de música é aula de música e por meio da música”; e assim, com a linguagem sonora
entrelaçada a outros processos artísticos (dança, teatro, artes plásticas e visuais), pode-se desenvolver

650
e cuidar das saúdes Social, Motora, Emocional e Cognitiva dos indivíduos. Ou seja, é a Música para a
(re) construção do “Ser”; do berçário à maturidade.

Enfim, compreendo que aqui fica um importante recado a nós, educadores musicais, responsáveis
pela manutenção e pelo despertar dessas faculdades em nossos alunos adultos maduros e idosos: nos-
so maior desafio é o de encontrar um equilíbrio entre técnica e ritual249 para que as aulas de música
foquem em nossos espaços pedagógicos250 o prazer que a linguagem sonora proporciona no dia a dia
de nossos alunos.

4. ASPECTOS SINTÉTICOS INSTITUCIONAIS DO SESC

Historicamente, o termo Terceira Idade surgiu na França, na década de 60, quando a política de ensi-
no desse país, preocupada com essa população, promoveu junto às universidades, atividades culturais
tais como: canto coral, teatro, artesanatos manuais, jogos etc., com a intenção de reabilitá-los social-
mente, impedindo uma futura marginalização e desprestígio dessa faixa etária. Desde 1963, no Brasil,
o Sesc-SP foi o pioneiro na implantação de programas voltados para pessoas idosas, baseados na
experiência francesa e na Teoria da Atividade em Gerontologia251. Anos depois, em 1977, esta mesma
instituição fundou a “EATI – Escola Aberta para a Terceira Idade”. (VERAS, 1997). Tratando da ori-
gem do Sesc, Antonio Oliveira Santos – Presidente do Conselho Nacional (2006, p.5), menciona que:

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do Brasil a partir de


uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos ao seu progresso. Assim como ao Sesc
cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir o entendimento acerca dessa realidade,
dos conceitos e questões fundamentais para o país e das políticas públicas e formas diversas de pro-
mover o bem-estar coletivo.

Atualmente, no Serviço Social do Comércio, o trabalho realizado com essa demanda organiza-se pelas
diretrizes definidas pelo Departamento Nacional – Rio de Janeiro, devidamente registradas no Mó-
dulo Político do TSI – Trabalho Social de Idosos (2009), o que revela uma considerável preocupação e
orientação institucional ao cuidar das práticas direcionadas a esse seguimento.

5. APRESENTAÇÃO DO TRABALHO

O projeto Oficina Intergeracional de Educação Musical na 3a idade: Música e outros processos artísticos
para a manutenção das Saúdes Social, Motora, Emocional e Cognitiva trata-se de uma atividade com
grupo de adultos maduros e idosos, no geral, em boas condições de saúde, que acontece em encontros
semanais que visam promover, entre outras questões, a socialização e a prática da música dentro de
um processo de sensibilização e iniciação à linguagem musical.

249. Entendo aqui por ritual: um conjunto de ações que movem o grupo numa mesma dimensão do sentir e do reagir.
250. Nesse sentido FREIRE (1996, p. 109) menciona que “o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente lido, interpretado,
escrito e reescrito”.
251. Essa teoria foi a que influenciou os movimentos sociais de idosos e que orientou a proposição do lazer e da educação não formal como
veículos privilegiados para a promoção de seu bem-estar. Também considera que ao envelhecer, o indivíduo depara-se com as mudanças
relacionadas às condições anatômicas, psicológicas e de saúde, típicas dessa etapa da vida, mas, suas necessidades psicológicas e sociais
permanecem as mesmas de antes. (SIQUEIRA, 2001).

651
Para a admissão no grupo desta atividade não é realizado nenhum teste de habilidade específica ou
qualquer outro procedimento excludente. Para participar, basta o indivíduo realizar um procedimen-
to de anamnese junto ao departamento de idosos do Sesc252 e então matricular-se em uma ou mais
atividades desenhadas pelos departamentos a esse segmento.

É relevante destacar que o caráter intergeracional do trabalho concretiza-se no contato dos idosos com
os monitores/facilitadores diretos das ações pertencentes a outras faixas etárias, além dos dirigentes
institucionais do Sesc Regional AC (Direção Regional, Direção de Programas Sociais, Coordenação
do TSI – Trabalho Social de Idosos e seus estagiários). Além disso, as atividades musicais permitem a
participação de pessoas em outras faixas etárias – familiares dos participantes: filhos, netos, bisnetos e
ainda cuidadores ou amigos de uma forma geral – o que torna a experiência rica em múltiplos aspec-
tos como a coeducação entre gerações e a quebra de paradigmas necessários para se estabelecer uma
troca permanente de valores socioculturais entre as diferentes faixas etárias. Nesse sentido, Ferrigno
(2006, p. 69) registra sua pesquisa no projeto “Gerações”, realizado no Sesc/SP, e declara que:

A transmissão de conhecimentos dos mais velhos aos mais jovens (…) é mais perceptível. O con-
trário, ou seja, a educação dos mais idosos por pessoas jovens, além de não valorizada, é, por vezes,
despercebida. No entanto, os depoimentos recolhidos em nossa pesquisa são significativos e nos
mostram diversos conteúdos que crianças e adolescentes repassam aos adultos (…)

6. DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO

Para a efetiva prática musical, escolhi um repertório de canções pedagógicas, tradicionais, regionais,
religiosas e folclóricas, adequadas ao trabalho educacional e de comunicação corporal, envolvendo
atividades ligadas às habilidades física, criativa, cênica, expressiva, sonora e, numa visão mais ampla,
artística dos participantes. Houve uma intensificação das atividades rítmicas e auditivas, o que possi-
bilitou uma prática instrumental individual e coletiva, realizada também com a flauta doce e instru-
mentos de percussão (bandinha rítmica, instrumental ORFF e outros construídos artesanalmente).
Além disso, dançar também fez parte das atividades, o que convidou os participantes para uma escuta
sensível de forma prática, lúdica, prazerosa e, por fim, intelectual, especialmente no autoconhecimen-
to físico funcional.

Além de um melhor desempenho da memória, as atividades também potencializaram o contato com


os sentidos, ampliando, em muito, a percepção dos participantes dos detalhes pessoais e do mundo à
sua volta, no tocante da visão espacial ampla, periférica e do raciocínio espacial. E assim, todas essas
questões configuram o método de trabalho, tal como configura Penna (2012, p. 20), ao afirmar que:

(…) a escolher um método e utilizá-lo de forma flexível, procurando adaptá-lo à faixa etária de nos-
sos alunos ou atualizando seu repertório [...] tais propostas pedagógicas carregam uma concepção
de mundo, uma concepção de música; selecionam e organizam conteúdos, propondo procedimentos
para abordá-los. Cabe, portanto, verificar se são compatíveis com a concepção de música [e educação
musical] que defendemos, se os conteúdos que trabalham são aqueles que priorizamos.

252. Procedimento que é realizado por um técnico especializado em Gerontologia Social e avalia as condições física e social, além do
quadro funcional do idoso.

652
7. OBJETIVOS DAS ATIVIDADES

Relevantes fatores definem os parâmetros socioeducativos e da saúde cognitiva, o que compõem ob-
jetivos e justifica o trabalho de prática e aprendizagem musical na terceira idade253, a saber:

• Proporcionar uma experiência musical vivencial, significativa e prazerosa, além de beneficiar os


participantes nas atividades social, motora, emocional e cognitiva.
• Proporcionar uma interação prática e reflexiva com outras linguagens artísticas, como o teatro, a
dança, as artes plásticas e o cinema, além de refletir sobre os processos artísticos e sua funcionalidade
para a formação/ recuperação do “Ser”.
• Trabalhar “divertimentos” com sons, ritmos e música, envolvendo o trabalho corporal com foco no
funcional e as habilidades vocais.
• Intensificar atividades rítmicas e auditivas, o que possibilita uma prática instrumental individual e
coletiva, realizada com a flauta doce e variados instrumentos de percussão (podem-se realizar algu-
mas aulas de construção de instrumentos a partir do reaproveitamento de materiais alternativos, tais
como: sucatas, latinhas de refrigerantes, cabos de vassouras danificadas etc.).
• Potencializar o contato com os sentidos; ampliar a percepção dos detalhes do mundo à sua volta
(visão periférica e entorno espacial).
• Realizar atividades musicais com repertório de canções pedagógicas, tradicionais, regionais, fol-
clóricas e religiosas, se for o caso; adequar esse repertório ao trabalho educacional e de comu-
nicação corporal, envolvendo atividades ligadas às capacidades plásticas, expressivas, sonoras e
artísticas.
• Fornecer conhecimentos técnicos que estimulem a criatividade e facilitem a expressão, atuando em
bloqueios socioculturais que geralmente impedem manifestações comportamentais mais espontâ-
neas.
• Abrandar excessos de autocrítica – padrões preestabelecidos de conduta e rigidez.
• Melhorar a qualidade de vida e o quadro geral da saúde, uma vez que essa proposta promove um
equilíbrio biopsicossocia, gerando também: descontração, espontaneidade e alegria, favorecendo a
comunicação e o biorritmo, entre outros aspectos.
• Resgatar e ampliar a autoestima individual e do grupo; sensibilizar o apoio da família, o que contri-
buirá para uma valorização do Self de cada participante.
• Proporcionar a descoberta e o desenvolvimento de uma identidade artística, além da quebra de
mitos e estigmas socialmente entrelaçados ao processo da velhice.
• Proporcionar a troca de múltiplas experiências intergeracionais, tanto dos mais velhos para com os
mais jovens, como vice e versa.
• Levar os integrantes a refletirem sobre questões de integração social e comportamental. (AZAM-
BUJA, 1995).

8. RESULTADOS

Os apontamentos abaixo organizam alguns dos resultados preliminares observados e, com isso, am-
pliam-se expectativas para o desenho de atividades com essa faixa etária. Para registro e análise dos

253. É importante esclarecer que em momento algum esse projeto objetivou o desenvolvimento virtuosístico em suas práticas; o foco do
trabalho concentra-se em atividades que persigam a sensibilização e a iniciação à linguagem musical com qualidade, no sentido de valo-
rizar o idoso e suas possibilidades.

653
dados, utilizou-se a técnica de observação participativa254. Convém também citar que “uma revisão
da literatura científica sobre treino cognitivo com idosos saudáveis permite identificar que, cada vez
mais, estudos avaliam essa questão e os resultados demonstram seus benefícios em relação à melhoria
no desempenho nesse aspecto” (LEÃO et al, 2014, p. 61). Dessa forma, com o desenvolvimento das
atividades, observou-se:

• A potencialização do bem-estar e da qualidade de vida do idoso, além do resgate da estima e identidade


pessoal, estimulando aspectos como orientação viso espacial, consciência corporal – controle funcional
e executivo de funções físicas básicas, percepção e ação de lateralidade, atenção, concentração, memória,
raciocínio, formação de conceitos, expressão não verbal, criação de imagens mentais, entre outras.
• Desenvolveu-se o canto e conhecimentos elementares de técnica vocal aplicada de forma prática e
conceitual com interpretação, dinamismo, expressão e criatividade (trabalho cênico vocal).
• Ao cantar, promoveram-se melhoras na condição respiratória, na dicção, ressonância, articulação,
flexibilidade, extensão e projeção vocal, além de resgatar a tonicidade da musculatura facial, essencial
para a fala e, portanto, para uma boa comunicação.
• Construiu-se, por meio de aulas práticas expositivas, conhecimentos elementares de sensibilização,
apreciação e iniciação à Música, ao Teatro, à Dança e às Artes Plásticas.
• Conseguiu-se tocar a flauta doce como instrumento principal, além de outros instrumentos de
percussão, tais como: a bandinha rítmica e outros não industrializados (artesanais).
(Re) desenvolveu-se a coordenação motora fina, em especial, a das mãos, geralmente muito afetada
pela demência física natural e subjetiva na velhice.
• Sabe-se que aprender música trata-se de uma atividade emocional, motora e cognitiva intensa. Assim,
observou-se que as propostas contribuíram na estabilização dos níveis naturais de demência cognitiva
– presente subjetivamente no processo de envelhecimento – permitindo, em muitos dos casos, que hou-
vesse, em diferentes níveis, a reversão do quadro inicial255, especialmente na memória e seus subsistemas.
• Ampliou-se a capacidade do imaginário, do raciocínio lógico-matemático e da atenção seletiva.
• Resgatou-se o raciocínio e a orientação espacial, além da visão periférica (resgatando o campo de
visão).
• Resgatou-se o trabalho das memórias: espacial, operacional e desenvolveu-se a memória musical.

Além disso, pôde-se observar que os idosos desse trabalho apresentaram uma significativa amplia-
ção/resgate do padrão cognitivo e afetivo. Vale pontuar que as atividades foram lúdicas, porém, não
técnico virtuosísticas. Cantar, dançar, tocar, criar, atuar, interpretar, improvisar, experimentar, pes-
quisar, estudar e classificar foram regências pontuais e constitutivas dessa proposta que se consolidou
como uma ação extremamente superior a uma simples atividade de canto coral256.

254. A escolha desse recurso justifica-se por sua adequação aos objetivos desta atividade/pesquisa e pelo seu significado, conforme aponta
Richardson (1999, p. 261), “na observação participante, o observador não é apenas um espectador do fato que está sendo estudado, ele se
coloca na posição e ao nível dos outros elementos humanos que compõem o fenômeno a ser observado”. Nesse mesmo sentido, Chizzotti
(2001, p. 90) menciona também que “a observação direta ou participante é obtida por meio do contato direto do pesquisador com o fenô-
meno observado, para recolher as ações dos atores em seu contexto natural, a partir de sua perspectiva e seus pontos de vista”.
255. Define-se aqui apenas um estudo preliminar dos dados. Faz-se necessário o aprofundamento com instrumentos da Psicologia Cog-
nitiva e da Neurociência para definição pontual desse estudo o que indica a possibilidade de uma pesquisa mais ampla com “critérios
de participação sustentados por instrumentos de avaliação do estado psicológico e do funcionamento cognitivo, conforme recomenda a
literatura científica referenciada” (LEÃO et al, 2014, p. 71).
256. Refiro-me aqui apenas ao modelo de atividade inerte, letárgico, em que os participantes são acondicionados em cadeiras e submetidos
a exaustivas repetições melódicas, o que subdimensiona a capacidade de raciocínio do idoso contemporâneo. Sei que atualmente muitos
dos regentes de corais já apresentam propostas que ressignificam tal modelo, mas essa criticada ainda é a mais usada quando se realiza
atividades com grupos de adultos maduros e idosos.

654
REFERÊNCIAS

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ZIMERMAN, Guite I. Velhice: aspectos biopsicosociais. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

655
Da necessidade de arte/educação
para a terceira idade: uma experiência
na extensão universitária
Rosali Natalie da Silva Gouveia

INTRODUÇÃO

O Projeto Quimera: Oficina de Artes Visuais para a Terceira Idade foi uma ação extensionista ideali-
zada por uma equipe de graduandas e professoras da Licenciatura em Artes Visuais, orientadas pela
professora Vitória Amaral, co-orientadas pela professora Irani Garbuglio e projeto patrocinado pelo
Edital UFPE e Políticas Culturais, no período de janeiro a abril de 2013. O principal objetivo desta
ação consistiu em aproximar os cidadãos e cidadãs da terceira idade à Universidade Federal de Per-
nambuco, democratizando o acesso às Instituições de Ensino Superior Públicas, além de propiciar o
direito previsto na lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003: o acesso gratuito ao conhecimento de arte,
lazer e cultura. “Art. 20. O idoso tem direito a educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos,
produtos e serviços que respeitem sua peculiar condição de idade”.

Os movimentos pontuais da História da Arte e do Design, aliados à leitura de imagens e ensino das
técnicas básicas de desenho, pintura e gravura, utilizando a consagrada Abordagem Triangular, de
Ana Mae Barbosa, fizeram o diferencial para aprovação da Oficina no edital Cultura, Artes, Patrimô-
nio e Economia Criativa da PROEXT-UFPE. As aulas ocorreram durante quatro horas por semana,
para duas turmas, uma na sexta-feira à tarde e outra aos sábados de manhã, cada qual com uma aluna
do oitavo período da graduação em Artes Visuais na regência, supervisão direta da professora Irani
Garbuglio e orientação da professora Vitória Amaral.

O programa foi estruturado em torno de três movimentos da História do Design que tiveram relação
direta com a História da Arte, seja originando-se de movimentos artísticos, como o Arts and Crafts
(que teve origem na Irmandade Pré-Rafaelita), (ou)tendo membros que compartilhavam de ligações
aos movimentos artísticos e ao design, como Gustav Klimt, Dante Gabriel Rossetti, William Morris
entre outros nomes de grande importância. A ideia era de trazer a reflexão sobre a importância da
Arte no cotidiano e onde podemos achá-la, além de pensar sobre o que é design e quais suas seme-
lhanças ou diferenças no campo das Artes Visuais, apoiado nas rodas de debate em sala de aula, na

656
pesquisa individual de cada estudante, chegando ao momento em que alguns estudantes começaram
a trazer seus próprios textos para ler em sala.

1. MARCO TEÓRICO

A ideia inicial de criar o projeto Quimera para o edital do DEC/IAC veio da observação do desejo de
minha mãe de querer fazer um curso de Artes durante toda sua vida, e sempre aparecerem percalços
que faziam seu desejo ser posto na gaveta. Comecei a observar que muitas pessoas, como minha mãe
e da mesma faixa etária dela, haviam dedicado suas vidas a trabalhar em áreas distantes de seu amor
pela Arte por diversos fatores. Comecei a montar o projeto para atender às necessidades de pessoas
que, como minha mãe, estavam na Terceira Idade e que, por motivos diversos, foram levados a deixar
seu desejo por Arte se tornar uma Quimera.

A formulação do conteúdo foi estabelecida a partir de alguns pontos necessários para obter a aprova-
ção do projeto pelo edital e, ao mesmo tempo, poder ter uma abrangência razoável de conteúdo e um
encadeamento de técnicas com materiais atóxicos e de fácil acesso, a fim de possibilitar a continuida-
de da produção artística após o fim do curso.

Logo, a Quimera do curso é justamente um objetivo a ser vencido, praticando a Arte como forma de
transformar o desejo do passado numa realização. O curso foi construído com base na Abordagem
Triangular de Ana Mae Barbosa, que, atualmente, predomina no ensino de Artes no Brasil, e que con-
siste na triade do LER-CONTEXTUALIZAR-PRODUZIR, tendo sido desenvolvida em 1987, a partir
da necessidade de uma sistematização das aulas de Artes em escolas.

Metodologia é feita pelo professor e de propostas a escola já está cheia. O que pensei foi em algo que
pudesse ser construído coletivamente. A abordagem é muito flexível, pode ser feita de várias manei-
ras. Contextualizar é importante porque situa a obra no tempo, e o aluno entende melhor a época na
qual ela foi criada. Arte não vem só de dentro, nós assimilamos o que vemos e, a partir daí, somos
influenciados na maneira de expressar o mundo - esse é o momento da apreciação artística. E o fazer
artístico é a hora da criação, que não tem a ver com cópia. O ensino que privilegia a repetição e a
cópia acaba sendo esquecido. Cabe ao professor interferir a favor do aluno, para estimular a criativi-
dade. (BARBOSA, 2012).

A Arte no curso foi vista através da prática artística (do desenho, da pintura em aquarela e da gravura
em monotipia), somadas aos conteúdos da história de três movimentos que fizeram parte da origem
do Design Gráfico (segunda área de formação minha e de Aline Évora) e que tiveram influências da
Arte produzida na época, com artistas plásticos (como Dante Gabriel Rossetti e William Morris) sen-
do os primeiros a trabalhar o pensamento no produto com função utilitária e estética.

Toda esta carga preciosa de conhecimento foi levada para ser vista e pensada pela Terceira Idade
como forma, antes de tudo, de garantir seus direitos estabelecidos pela constituição: de acesso à cul-
tura, lazer e conhecimento, valorizando os cidadãos e cidadãs da Terceira Idade; cujo número vem
aumentando exponencialmente, segundo pesquisas da OMS, em 2005, cujos dados apontam para o
fato que, em 2050, um quinto da população mundial estará na Terceira Idade, e, em 2025, o Brasil será
o sexto país em quantidade de idosos, segundo esta mesma pesquisa.

657
Ou seja, os dados nos revelam que a população idosa mundial tende a aumentar em proporção. Mas
qual estrutura estamos oferecendo para estes cidadãos terem qualidade de vida e direitos garantidos?
É preocupante observar que a faixa etária que está se tornando um das mais numerosas no planeta
seja uma das maiores vítimas de violência e do preconceito.

Quando se olha mais profundamente o problema social da violência contra os idosos, observam-se
duas dimensões muito fortes que convivem. Uma coletiva e que conforma o imaginário popular,
constituindo uma visão negativa do envelhecimento. A sociedade reproduz e mantém a ideia de
que a pessoa vale o quanto produz e o quanto ganha, e por isso, os mais velhos, fora do mercado de
trabalho e quase sempre ganhando uma pequena aposentadoria, podem ser descartados: são consi-
deráveis inúteis ou peso morto. (MINAYO, 2001, p. 5).

Ou seja, por uma construção social da ideia de Terceira Idade, quem se encontra dentro desta faixa
etária sofre com a discriminação, muito mais do que com os efeitos biológicos do tempo. Em países
desenvolvidos, temos já, há algum tempo, uma preocupação de desenvolver políticas inclusivas à Ter-
ceira Idade e medidas educativas para a população saber conviver e respeitar esta faixa etária. No en-
tanto, “Os países desenvolvidos envelheceram devagar e tiveram tempo para se preparar, mas o Brasil
está dando saltos muito grandes e tem uma organização insuficiente para dar conta deste contingente
de idosos” (SANTOS, 2013, n.p.).

Os estudos empreendidos sobre Terceira Idade e sua construção social, além das estatísticas go-
vernamentais, mostrou uma necessidade de pensar em Arte/Educação para a Terceira Idade, na
extensão universitária, como forma de democratizar o conhecimento, permitindo aos nossos alu-
nos alcançar a realização pessoal e aprendizado através do estudo da Arte em sua teoria e prática,
num espaço público provido com materiais e professores preparados pelo curso de Artes Visuais
da UFPE.

A difusão do conhecimento em Arte com a comunidade do entorno da Academia se mostra como


uma forma de diálogo produtiva, que permite à população ter acesso ao conhecimento e a profissio-
nais produzidos pela Universidade Pública, na qual eles investiram enquanto cidadãos pagadores de
impostos.

Constitui de fundamental importância abrir a Universidade Pública para os cidadãos e cidadãs da


Terceira Idade, como forma de torná-la verdadeiramente acessível e igualitária, colocando as capaci-
dades e potencialidades do idoso focadas numa prática que o integra intelectual e socialmente, numa
fase da vida em que a tendência apontada pelos estudos é o isolamento.

O isolamento por parte dos idosos é um aspecto social muito comum nessa fase da vida, onde esses
indivíduos por estar com sua autoestima comprometida, devido o ambiente em que ele vive e as
pessoas com as quais convive desconhecem ou desconsideram o envelhecimento, a partir daí surgem
cobranças familiares e sociais, e a pessoa antes ativa, participativa, contribuinte, é isolada. (VONO
apud LIMA, 2010, p. 11).

Foi observado, na fala dos estudantes do curso Quimera, que o acesso à Arte foi um alvo de interesse
desde a juventude, porém questões como família e emprego os impediram de seguir suas inclinações

658
para a área da Arte, sendo, agora, na Terceira Idade, o momento de realizar aquilo que não puderam
durante a mocidade.

2. METODOLOGIA

A Metodologia de ensino de Arte para a Terceira Idade utilizada no presente projeto foi funda-
mentada na Abordagem Triangular, de Ana Mae Barbosa, formando um programa de aulas em 10
encontros semanais, nas sextas-feiras à tarde, e aos sábados pela manhã, com Rosali Gouveia, nas
quais nossos objetivos, além de levar o conhecimento sobre a História da Arte/Design e a Técnica
Artística, foi o de suscitar o questionamento sobre o que é Arte, o que é Design e o que é Artesana-
to, conceituados sobre o pensamento de COLI (1995) e Azevedo (1988), debatendo sobre quais as
diferenças e semelhanças entre estas áreas de conhecimento, onde encontramos cada uma delas em
nosso cotidiano, em especial, a importância que a Arte, de uma forma geral, tem para a humanidade,
enquanto necessidade (FISCHER, 1987).

Pensamos o planejamento das aulas, de forma que nossos estudantes pudessem refletir através das
aulas expositivas, leituras de texto e rodas de diálogo em sala de aula, inclusive sendo a roda de
diálogos um dos momentos mais expressivos do encontro, pois, neles, era perceptível a realização
através da fala e da troca de pontos de vista. Mesmo alguns, sentindo-se tímidos de início, após certo
tempo também entraram nos debates e participaram de forma satisfatória, enriquecendo o processo
educativo.

Os conteúdos ministrados foram organizados numa hierarquia cronológica. O curso foi dividido em
módulos, cada um versando sobre um movimento (Arts And Crafts, Art Nouveau e Art Déco), obser-
vando os principais artistas participantes deles, as ideias que defendiam e seu legado para a história.
Outra parte fundamental da metodologia utilizada nas aulas foi a produção artística inspirada pe-
los movimentos e a leitura de imagens de produtos, peças gráficas e obras de Arte, comparando o
momento e ideais da época com os dias atuais. Os debates em sala de aula foram ricos e bastante
estimulantes, já que uma das principais características observadas nos estudantes da Terceira Idade
é que eles são muito participativos e têm sempre algo a dizer, contribuindo para a aula fluir de forma
dinâmica e interessante.

Foi planejado a exposição de imagens e vídeos em sala de aula, porém, dada a impossibilidade de
obter o projetor aos sábados, terminamos por ficar sem este recurso didático, que foi substituído
pela impressão de material gráfico com imagens de obras, peças gráficas e produtos, o que teve
o aspecto positivo de os alunos poderem tocar nas imagens, olhá-las mais de perto, estimulando
o tocar, o observar por outros ângulos, entre várias possibilidades que um material concreto
oferece.

Nosso curso foi planejado para 10 aulas, em que os estudantes se dedicaram na prática e no estudo
da Arte, demonstrando que os discentes de Terceira Idade encaram o aprender arte com prazer,
buscando aprender ao máximo com o professor. Percebe-se, também, que, enquanto crianças e ado-
lescentes demonstram rivalidade e disputa de poder em sala de aula, os estudantes idosos trabalham
em um clima de compartilhamento e cooperação.

659
3. O PROCESSO METODOLÓGICO EM CADA MÓDULO

31. Módulo 1: Movimento Arts And Crafts e Técnicas de Desenho

No primeiro módulo, atuamos com aulas expositivas, rodas de diálogo sobre o contexto histórico em
que surgiu o Arts and Crafts na Inglaterra, os movimentos artísticos da época, os principais artistas
do movimento pré-rafaelita, que influenciou diretamente o Arts and Crafts, suas obras e motivações
para desenvolver seu trabalho.

Debatemos em aula sobre os bens de consumo no design, fundamentados no pensamento de William


Morris, fundador do movimento Arts and Crafts, com a ideia de proporcionar, à população, bens
produzidos de forma artesanal, agregados, de valor estético, em pequena escala de produção e com
preços acessíveis: um contraponto à produção em larga escala industrial dos bens de consumo da in-
dústria de massa nos dias atuais. Comparamos a qualidade e o valor estético entre essas duas catego-
rias de produtos de consumo e a adequação ou não destes aos diversos tipos de pessoas, assim como
a interferência que estes consumos proporcionam socialmente.

Como a Abordagem Triangular, não só prima pela observação do conteúdo histórico e leitura de
imagens relacionadas, nossos alunos trabalharam no primeiro módulo com o desenho, como base
para produzirem obras contextualizadas com o Arts and Crafts. Apresentamos a eles as noções bási-
cas de estampa, módulo, supermódulo e sub-módulo, conceitos ligados ao design, utilizados para a
produção de malhas gráficas. Num segundo momento, cada estudante foi convidado a desenvolver
a própria malha, com base em elementos florais, como uma releitura do movimento Arts and Crafts.
Assim, como trabalhamos incisivamente a leitura de imagens, fazendo comparações da Arte Me-
dieval, que inspirou o Arts and Crafts com as imagens de Dante Gabriel Rosseti, J. D. Waterhouse e
William Morris.

Figura 1. À esquerda uma pintura de J. D. Waterhouse, e à direita uma imagem no detalhe de um livro, por Konrad von
Altstetten, o GroßeHeidelberger Liederhandschrift (Codex Manesse). Zürich (1305-1340).

660
Figura 2. Temos aqui um comparativo entre a Anunciação (1855), de Dante Gabriel Rossetti, e A Anunciação (1434), de Fra
Angélico, pintor renascentista.

Figura 3. Os trabalhos de Geoffrey Chaucer por William Morris e Iluminuras numa Bíblia do século XV.

3.2. Módulo 2: Movimento Art Nouveau e Aquarela

No segundo módulo do curso, buscamos, no movimento Art Nouveau, a sequência histórica do Arts
and Crafts, a base para nossas aulas. Os primeiros movimentos da História do Design foram direta-
mente influênciados pela segunda fase da Revolução Industrial (1860 - 1945), conhecida, também,
como Revolução Tecnológica, que teve foco nos processos industriais de grande porte e sua automa-
tização, além de ter influenciado a distinção entre os processos de design (projetos para a indústria de
reprodução em massa) e processos artísticos.

Artistas como Gustav Klimt, Toulouse-lautrec e Alphonse Mucha foram abordados junto com suas
obras, além de termos trazido imagens de obras na área de design de jóias (Rene Lalique) e design
de movéis (Emile Garré), além da arquitetura de Antoni Gaudí, como material para leitura de ima-
gens e base para as releituras produzidas através da pintura em aquarela. Associamos ao conteúdo

661
noções de teoria da cor e de como aplicá-la na Arte e da influência que as cores têm na pintura,
publicidade e design.

A pintura com tinta aquarela deixou a maioria dos estudantes mais à vontade para produzir. Al-
guns alegaram que o desenho era demasiadamente difícil e que a pintura era mais expressiva e abria
mais possibilidades. Visivelmente, os estudantes se sentiram estimulados ao aumento da produção
de obras, tendo sido mencionado, por alguns deles, como o melhor momento do curso, na avaliação
entregue no fim do curso.

Neste segundo módulo, iniciamos os trabalhos com o livro do artista, que por definição é:

Os livros de artista são livros produzidos por artistas, na sua maioria para manuseio direto, assim
possibilitando uma aproximação física, tátil e visual com a produção artística. Os livros de artista são
sempre edições especiais, podendo o artista fazer edição de exemplar único ou múltiplos exemplares.
Os livros de artista são espaços de criação, onde se exploram vários tipos de narrativas, são locais
privilegiados para experiências plásticas, no livro de artista é possível fazer uso de várias linguagens
poéticas (artes visuais, poesia, literatura...) somando e criando interligações de tempo e espaço, tem-
po e movimento. É de extrema importância o desenho das palavras, as palavras como imagens, as
imagens como palavras, com igual relevância poética. (LUCAS, 2012).

Os livros de artista foram feitos a partir de Técnicas de Encadernação, aprendidas no curso de Design
Gráfico do IFPE. Eles foram entregues a todos os alunos e utilizados para acompanhar a evolução dos
estudantes com seus exercícios artísticos em casa e o desenvolvimento da poética de cada um deles.

Um dos aspectos interessantes observados neste módulo foi o uso da litografia (uma técnica de im-
pressão do domínio das belas artes), na impressão de cartazes, rótulos e embalagens, de forma quase
artesanal, inclusive mostrando exemplos de rótulos e embalagens trabalhadas em cima de técnicas
artesanais, em Pernambuco, através do livro Imagens Comerciais de Pernambuco: Ensaios dos Efê-
meros da Guaianases (CAMPELLO, 2011).

Realizamos diálogos sobre a diferença entre o papel e o trabalho do designer e do artista, assim como
da importância social do trabalho de cada um destes profissionais. Expomos, também, a questão da
necessidade de Arte que acompanha a humanidade em seu cotidiano, seja através de produtos da
Cultura de Massa ou da Cultura Erudita. Discutimos, também, sobre o conceito de Arte e a reproduti-
bilidade, de Walter Benjamin, sobre a aura sagrada da obra de Arte, levando-os a raciocionar sobre as
interseções e diferenças entre as formas de Arte na contemporaneidade e nos movimentos estudados.
Pois o objetivo do curso não é apenas trabalhar a técnica, mas conduzir os estudantes a um pensar
sobre Arte, conhecer sua história e traçar relações entre os movimentos e o tempo presente.

3.3. Módulo 3: Art Déco e Monotipia

O movimento Art Déco foi alvo do último módulo do curso, ao qual associamos a experimentação e
a aprendizagem de um tipo de gravura chamada Monotipia, que foi escolhida por poder ser utilizada
com materiais atóxicos (tinta guache e acetato) e de baixo custo, que podem ser encontrados facil-
mente e usados em casa, pois uma das nossas preocupações foi justamente de trabalhar com materiais

662
e suportes acessíveis, que os estudantes pudessem se manter, praticando mesmo após o fim do curso.
Dos três movimentos propostos para estudo histórico, o Art Déco se encontra no período entre guer-
ras, durando de 1925 a 1939, sendo conhecido como “estilo de 20”. Tendo como principal diferencial
dos dois movimentos estudados anteriormente, o foco no luxo, na ostentação, na velocidade, tendo
bebido muito das vanguardas Futurista e Cubista.

A expressão deste movimento se manifestou com força na arquitetura, inclusive no Brasil, onde temos
como exemplos o edifício-sede da Biblioteca Mário Andrade e o antigo estádio do Pacaembu. Outros
exemplos da aplicação da estética Art Déco, pode ser visto no Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e no
Monumento às Bandeiras, em São Paulo.

Nas Artes Visuais, temos artistas como o pintor pernambucano Vicente do Rêgo Monteiro (com
obras como Atirador de Arco, Leda e o Cisne e Os Frades Franciscanos), que foi professor da Escola
de Belas Artes de Pernambuco, e o escultor Victor Brecheret ((que produziu o Monumento às Ban-
deiras, além de obras como Graça, Depois do Banho e Índio).

Exploramos debates sobre os resquícios que encontramos nos dias atuais da estética Art Déco, como
o Teatro Barreto Júnior, a Igreja do Cristo Rei, em Pesqueira-PE; mostramos imagens de prédios
como o Kings’ City High School, na Califórnia, e o The Chrisler Building, em Nova Iorque, ambos
nos E.U.A.; apresentamos, também, imagens de cartazes publicitários, e algumas telas de Tamara de
Lempicka.

A produção artística neste módulo ficou por conta da Monotipia, sendo trabalhada com adição e
subtração de elementos, como pedaços de estopa, barbante e molde vazado feito de radiografias anti-
gas. Os alunos da turma dos sábados sentiram dificuldade de se soltar com a técnica e, como este era
o mais curto dos três módulos, ficou a dúvida se houve uma real dificuldade de se expressar ou se o
tempo dedicado a técnica foi muito curto (3 aulas).

4. RESULTADOS

Houve um total de 26 alunos inscritos no Projeto, sendo 13 na turma das sextas-feiras à tarde e 13
na turma dos sábados pela manhã, que contou com 3 acompanhantes de alunos presentes no atelier.

De início, foram disponibilizadas 15 vagas por turma, no entanto, como as inscrições eram feitas
única e exclusivamente via internet, ocorreu uma perda de possíveis alunos, pois observamos que
maioria dos estudantes de Terceira Idade ainda veem o uso do computador e internet como um desa-
fio, geralmente ficando na dependência de filhos e netos para acessar tais meios.

Trabalhando com idosos, devemos ficar tranquilos quanto à rotatividade nessa faixa etária de estu-
dante, pois acontecem fatos inesperados, principalmente de doenças. No total geral de educandos,
dos 26 inscritos, houve uma estudante que nunca veio ao atelier, nem respondeu aos e-mails de
contato. Dos que frequentaram, apenas 13 discentes (5 da turma das sextas-feiras e 8 da turma
dos sábados) concluíram o curso, por se manterem frequentando as aulas com presença igual ou
superior a 75%.

663
Dos desistentes, na turma dos sábados, tivemos 3 desistências por motivos de saúde, 1 por motivos
de deslocamento (morava longe do campus e dependia de terceiros para ser trazida ao curso) e 1 que
não prestou maiores esclarecimentos.

Os alunos foram avaliados conforme o progresso de sua expressão artística: realização, aprendiza-
do e desenvolvimento dentro das atividades propostas, conforme suas potencialidades. A dedicação
observada no realizar as tarefas, o cuidado com a finalização do trabalho, o interesse no conteúdo e
participação em aula foram itens também observados na avaliação do estudante da Oficina.

A meta estabelecida de proporcionar um espaço de estudo e prática de Artes Visuais para a Terceira
Idade no Centro de Artes e Comunicação da UFPE foi atingida com a conclusão este projeto. Durante
3 meses, foram oferecidos, de forma gratuita, material artístico (tintas, lápis, papéis especiais, cader-
nos), através do patrocínio do Edital de Cultura: Patrimônio, Artes e Economia Criativa 2012-2013 da
PROEXT/DEC/IAC, num ambiente de um atelier com toda assistência necessária, tendo duas profes-
soras por turma à disposição, avaliando e prestando assistência aos discentes do curso, o que gerou um
envolvimento forte das turmas, proporcionando uma atividade que elevou a autoestima dos idosos,
promovendo seus trabalhos através de uma exposição bem aceita dentro do meio acadêmico, onde cada
um, à sua forma, expressou seus sentimentos de satisfação e alegria, incluindo uma das estudantes que
escreveu um livro para as professoras, que, inclusive, foi citado no texto da exposição; outros educandos
se manifestaram, provendo lanche para as aulas, dando presentes, escrevendo em seus livros de artista
ou verbalmente agradecendo pela oportunidade de poder exercer suas potencialidades e de aprender
dentro de um ambiente qualificado como o da Universidade Federal de Pernambuco.

Figura 4. Trabalhos do início do módulo de pintura, à esquerda, e os do final do curso, à direita, dos seguintes estudantes,
por ordem de aparição: Lindaci Aquino e Carmen Torres.

664
A autoestima e o sentimento de importância dos estudantes foram extremamente tocados, principal-
mente com a exposição na Galeria Capibaribe, da UFPE, que foi formada de seus melhores trabalhos,
durante três meses de aprendizagem e produção artística, abnegação e trabalho árduo, tendo seus
trabalhos mais expressivos que correspondiam à proposta das aulas expostas, contando com cinco
produções de cada estudante, um total de oitenta, das duas turmas, na Galeria Capibaribe, sendo
expostas de 15 a 26 de abril de 2013.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentro do ambiente da UFPE, na área de Artes Visuais, o projeto Quimera é uma iniciativa pioneira
na Arte/Educação na extensão da UFPE, contando com a exposição, elaboração de artigos e aulas
gratuitas para idosos do Recife. Consideramos que esse projeto é apenas um começo para a discus-
são da Arte/educação focada no idoso e, quem sabe, de um dia possibilitar uma disciplina que possa
visibilizar o aprendizado para o acompanhamento da expressão plástica da Terceira Idade e das po-
tencialidades encontradas nos estudantes idosos, como sujeitos capazes de grandes avanços para essa
faixa etária.

Nossa equipe pretende continuar e expandir o projeto de arte/educação para a Terceira Idade, agre-
gando novos pesquisadores e ampliando o alcance das oficinas, com isso a integração dos cidadãos e
cidadãs de Terceira Idade na Universidade e na sociedade como pessoas produtivas, apresentando o
que esses estudantes podem oferecer com suas experiências de vida, observações e produção artística.

A educação qualitativa para todos e todas em nosso país ainda é um alvo distante, que demandará
tempo e trabalho duro de toda sociedade, nas mais diversas camadas, em busca da melhoria da qua-
lidade de vida e humanização, como antídoto às mazelas sociais e econômicas em que nosso país se
encontra.

Trabalhar com educação é uma grande responsabilidade. Cabe a nós, educadores, pensarmos a cada
dia como podemos incluir e envolver toda a sociedade no processo educativo como uma forma de
diálogo em busca de uma comunidade. País melhor, mundo melhor para todos e todas.

É um desafio educar a sociedade para olhar o idoso com outros olhos, mais sensíveis às suas necessi-
dades, num patamar de igualdade, onde todos possam escutar e serem ouvidos. Os idosos estão numa
fase da existência humana tão normal e natural como a adolescência, infância ou vida adulta, com
necessidades e pontos fortes, tal qual as outras etapas. É necessário respeito, que haja respeito mútuo
entre as pessoas, para criar uma sociedade melhor, e mais aberta à faixa etária que, em 2050, será um
percentual predominante da população mundial.

REFERÊNCIAS

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AZEVEDO, Wilson. O que é design. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
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____________. (Org.). Arte/Contemporânea: consonâncias internacionais. 2. Ed. São Paulo: Cortez Editora,
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BARRETO CAMPELLO, S.; ARAGÃO, I. R. (Orgs.). Imagens comerciais de Pernambuco: ensaios sobre os efê-
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BENÉVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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ponível em: <http://redeglobo.globo.com/globoeducacao/noticia/2012/06/ abordagem-triangular-25-anos-de-
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LUCAS, Constança. Livros de artista. Disponível em: <http://livrosdeartista.blogspot. com.br/>. Acesso em: 15
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MALDONADO, Tomás. Design industrial. Lisboa: Edições 70, 2006.
MINAYO, Maria Cecília. Violência contra Idosos: o avesso do respeito à experiência e a sabedoria. 2. ed. Brasília:
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SANTOS, Adair. Aumento da expectativa de vida acarretaem impactos ao Brasil. ABC Domingo. Disponível
em: <http://www.jornalnh.com.br/pais-do-futuro/443347/aumento-da-expectativa-de-vida-acarreta-em-im-
pactos-ao-brasil.html>. Acesso em: 06 jan. 2013.
WEISZFLOG.Walter. Dicionário Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1998

666
Aproximaciones a la infancia:
una mirada desde el juego
Patricia Pérez Morales/ Giselle Tur Porres/
Alejandra Manena Vilanova Buendía

E l título de esta comunicación expresa la motivación por acercarnos a la comprensión de la infan-


cia a través de mirar el juego. Nos preguntamos a qué juegan los niños, cómo juegan, en dónde jue-
gan y con qué juegan. Interrogantes que surgen de la experiencia de observación en una institución
educativa del Ecuador, caracterizada por ser intercultural y bilingüe. A través de experiencias donde
acuden estudiantes en prácticas pre-profesionales, llamó la atención la manera cómo el juego es ob-
servado; al respecto hicimos un señalamiento para que las estudiantes se detuvieran ante lo que hací-
an los niños en la institución, a la hora de su receso y los tiempos establecidos para este fin. Se observó
con curiosidad desde las apreciaciones de las estudiantes que la gran mayoría se dedicaban a comer,
pero bajo pocas interacciones entre ellos, y que de la misma manera en el uso de los espacios de la
institución destinados para este fin (espacios abiertos, al aire libre) no se generaban acciones lúdicas.

Los diálogos y conversaciones con las estudiantes mostraron que estos aspectos parecían estar aso-
ciados al tiempo y las maneras como la institución determinaba el receso. Afirmaciones escuchadas
y recogidas por las estudiantes, muestran algunas percepciones que tienen sobre él docentes y auto-
ridades. Al respecto, llamó la atención esta situación: “Se acabó el tiempo del recreo”. Las estudiantes,
asombradas comentaron que los niños y niñas les dijeron: “Ahora vamos a las clases” y que cuando
ellas les preguntaron: “¿Cuánto tiempo hay de receso?”, ellos contestaron: “Sólo tenemos 20 minutos
para comer”.

Así pues, esta pequeña observación con la que nuestras estudiantes se han visto confrontadas en sus
prácticas, fue la que nos llevó a replantear el acercamiento que las mismas podían tener hacia el grupo
de niños y niñas de los niveles de inicial y primero de básica, para indagar sobre las relaciones entre
juego, infancia e interculturalidad.

Con este preámbulo, compartiremos en este texto, algunas reflexiones teóricas que las autoras han
conjugado para mostrar un acercamiento a los rasgos de una infancia contextualizada en una realidad
concreta, es decir una infancia con características propias permeada por un territorio mayoritaria-
mente indígena, en el que se dan procesos de socialización a través del español y el kichwa.

667
El juego en el espacio abierto de la escuela y de la comunidad delineó trayectos teóricos, metodo-
lógicos e interpretativos que proponen rupturas con las miradas y las prácticas tradicionales de la
comprensión sobre infancia, juego e interculturalidad.

Proponemos entonces en esta reflexión, la relación entre infancia, juego e interculturalidad, anudán-
dolas desde el juego, para tejer imbricaciones entre las tres categorías. Para lograrlo no pretendemos
hacer un recuento de perspectivas teórico-conceptuales de los términos, más bien apostamos abordar
los términos desde una perspectiva cultural que nos permita mostrar otras posturas y perspectivas
investigativas. Por el estado de avance de la investigación no presentamos desarrollos metodológicos
ni interpretaciones parciales.

Durante el transcurso de nuestra vida, y antes, desde el nacimiento, los seres humanos integramos
distintos grupos, desde donde introyectamos y proyectamos diversos aspectos que hacen a nuestra
identidad. Desde una perspectiva lacaniana, es a través de la mirada del otro que el sujeto puede verse
a sí mismo, en tanto la construcción de un proyecto de vida será posible, por medio del vínculo con
otros. El ser humano al nacer se inserta dentro de una trama de significantes preestablecidos, de na-
turaleza simbólica, que estructuran la realidad entre los sujetos (CHADI, 2000). La construcción de
una definición e identidad de infancia no es ajena al vínculo con los otros y el lugar desde donde se
observa y es observada. Por tanto, en esta experiencia investigativa nos acercamos a una mirada de la
infancia que se construye en el vínculo con el otro, y no intenta definirla ni atraparla en una etapa del
desarrollo de los seres humanos (adultos), sino como un estado de descubrimiento, de construcción
y de-construcción de la propia identidad del ser niño. Nos acercamos a una infancia emancipada que
nos confronta con nuestra propia identidad y nos desafía a “vivir el tiempo de la infancia” (HOYUE-
LOS, 2008).

Entonces, como recrea Vilanova (2014) en su tesis doctoral: Descender desde la Infancia: el desarrollo
y el discurso de “los niños” ante “formas otras” de conocer y vivir, no buscamos registrar y “consolidar
la imagen del ‘sujeto niño’, sino establecer la relación con la vivencia que tenemos con los mismos, ni
ellos, ni nosotros existimos allí por si solos” (VILANOVA, 2014, p.132).

Ahora bien, ¿cómo observamos la infancia? La observación implica el mirar, además de los otros
sentidos, se observa con el cuerpo, con el tacto, el olfato, el gusto… porque la infancia no se construye
desde un concepto y definición estática de una etapa de la vida y desarrollo pautada por el mundo
adulto…la infancia y su identidad se construye y de-construye en cada descubrir un mundo nuevo
que se presenta ante los niños, que se explora y experimenta con todos los sentidos. El registro cor-
poral se convierte en figura, convirtiéndose en parte de la observación de lo que acontece. Si tenemos
en cuenta el hecho de que nuestra presencia adulta establece ciertas modificaciones a la comprensión
de la infancia, comenzaremos a auto-observarnos al mismo tiempo que observamos a los niños y
nos modificamos con ellos, no exentos de subjetividad, la infancia se presenta ante nuestros ojos de
adultos como parte de nuestro pasado, o quizás en algunos viva aún en ese niño interior que se intenta
día a día recuperar, investigando y explorando aquello que asombra, que se quiere conocer, disfrutar
y a veces comprender. Es importante pensar nuestra implicancia y subjetividad en la observación de
la infancia y en cómo nos posicionamos ante ella. Si reflexionamos sobre ese nuestro proceso, nos
daremos cuenta que implica una serie de rupturas y discontinuidades. En la medida en que observo

668
la infancia, modifico su construcción e identidad y a su vez soy modificado y de-construido en ese
vínculo.

El derecho de la infancia a ser lo que es, una persona, tenga la edad que tenga, es aquello a lo que
se refería (…) Janusz Korczak: El Derecho de la infancia a vivir el presente, su presente. La infancia
no es una simple preparación para la vida adulta, para el futuro. Aceptar que la infancia tiene un
presente es de las cuestiones más difíciles de reconocer y practicar, pues exige una nueva manera de
dirigirnos a ella. (BALAGUER, 2012, p. 3).

El pensar la infancia como presente nos habilita infinitas posibilidades de aprender y reflexionar, sin
imposición externa. Mediante la puesta en juego del cuerpo, los sentidos, el lenguaje y la acción se
estimulan formas distintas de comunicación, habilitantes de la participación activa e integración de
saberes a través de la propia experiencia del jugar.

Por lo anterior, entendemos infancia como posibilidad de ser y estar en un tiempo determinado, como
condición de vida que ultrapasa el anquilosamiento del Ser en una periodicidad o etapa preestablecida
por los parámetros sociales y disciplinares y, como experiencia vital, creadora, imaginativa, lúdica y
autónoma. La infancia, desde esta perspectiva crea y se re-crea a través de la acción y a su vez, la mis-
ma es juego que invade el sentido mismo de su existencia.

Al entender infancia desde esta perspectiva, nos encontramos ante la complejidad de la complicidad
que la misma establece con el juego. Cuando hablamos de juego, llevamos la acción a la definición,
de entrada el acto de jugar es negado por las teorías del desarrollo que buscan de manera intangible
posicionar un pensamiento estructural sostenido en un “logocéntrismo” que organiza y clasifica las
acciones por fuera de la calidad y la calidez de lo lúdico.

El “homo ludens” (HUIZINGA, 2005) queda supeditado a poder convertirse en un homo sapiens, la
acción de jugar queda supeditada a la comprensión de una etapa evolutiva, de tal manera que jugar es
una acción inferior y como tal es una acción de la infancia, jugar es un acto valorado porque permite
desarrollo, porque como tal responde a los intereses de quienes buscan que el juego sea tan solo una
acción a superar y superable.

Pero… Y si el juego tiene otro lugar, si el juego desborda esa condición de etapa, ese despreciable e
ínfimo lugar evolutivo… ¿Y si el juego encuentra un lugar en la acción y los cuerpos, en sus relaciones
y en su explosión afectiva y relacional, y si el juego puede tener un lugar en la “semiopraxis de los
cuerpos” (GROSSO, 2009) que hablan desde esas “formas otras” (VILANOVA, 2014) de hacer y vivir
desde la infancia, donde lo que prevalece es una acción cultural, más que una de orden evolutivo?

Esta inquietante pregunta atiende las maneras como nos relacionarnos con las acciones y con la infan-
cia. Esta pregunta cobra vida cuando tratamos de acerarnos al juego y a tantas acciones que transitan
en “los llamados niños” (VILANOVA, 2014). Sin embargo, en manos de expertos lo convierten en
objeto de estudio y el acto de jugar entra en una condición de fase y clasificación. Porque “el deseo
desesperado por clasificar y la persistente taxonomización de la ciencia y de la vida, muestran el te-
mor que tiene un tipo de conocimiento dominante en perder el orden y la jerarquía preestablecida de
poder” (FOUCAULT, 1982).

669
En términos de Foucault y en medio de nuestra reflexión, se podría decir que lo que se busca es esta-
blecer unas pautas para poder generar un control del juego, es mejor identificar cada momento para
que nada se escape del tintero y si así ocurre, lo volvemos a reinterpretar para que nuevamente quede
en EL lugar en el cual interesa que se mantenga.

Quizás a eso se debe que cuando se habla de juego se piensa en acciones que pertenecen a la infancia,
de esa manera se inserta en el mismo cajón a la infancia y al juego y se les ubica en uno de los peldaños
inferiores del desarrollo.

Sin embargo, las niñas y los niños no piensan en que están jugando ni definen el tipo de juego que
están haciendo, ni siquiera les interesa que hay alguien que lo está haciendo, porque si hicieran todo
lo anterior, dejarían de jugar.

La acción de jugar se escapa a este tipo de patrones, a este insistente deseo por ordenar las acciones,
porque su efecto no busca trascender sino fundirse en un descenso de emociones que permite entra-
mar relaciones y generar nuevos espacios de existencia.

Estos nuevos espacios de existencia, desde el juego y para la infancia, entran en conexión con otros
elementos inclasificables que se encuentran más en conexión con la libertad y la ritualidad.

“El Jugar encuentra un espacio de pertenencia aunque no pueda hacer del mismo un lugar de propie-
dad” (VILANOVA, 2014), porque el acto de jugar desborda el límite de la definición ingresando en
el lugar de la no palabra, de la misma manera como Marc Augé inserta el “no lugar” (AUGÉ, 2000)
como un espacio urbano de uso transitado por muchos, pero que no le pertenece a nadie, la no pala-
bra, en este caso y desde nuestra perspectiva se presenta como un espacio de acción en el que generan
encuentros que no transitan desde la acción misma de nombrar las cosas y/o clasificar las acciones.

No es necesario hablar para jugar, incluso cuando los niños y niñas juegan y dicen lo que van a hacer,
las palabras se convierten en acciones en juego y no en significación de las mismas. Por eso el jugar
es un acto de libertad, que pone en relación a muchos sin normatizar y normalizar las acciones. A
tal extremo que cuando las acciones transgreden lo aceptado, el juego se acaba, sin órdenes ni pre-
-interpretaciones.

El juego en su condición de acción se vive en y desde la infancia, los niños y las niñas “piensan-ju-
gando” (VILANOVA, 2014), pero no porque el juego se someta al efecto del pensamiento, no porque
para poder pensar haya que jugar, ni porque pensar sea un objetivo que se puede cumplir a través del
juego. Sino porque el juego en sí mismo es pensamiento, no se deslinda la acción del pensamiento, si
no que se vive lo que se piensa.

El juego se asemeja al mito, se percibe un eco de ritualidad que cobija el sentido de su acción. En tér-
minos de Kusch y desde una perspectiva antropológica en y desde América: “el mito, evidentemente
no consiste en una exposición que pueda volcarse en un texto, sino que lo que hace al mito es su
ritualidad, el mito se opera, no se relata” (KUSCH, 1978, p. 34). De igual manera que el juego actúa,
no se cuenta.

670
La condición ritual del juego atiende a su posibilidad de repetición a manera de conjuro, porque en
cada repetición pasa algo nuevo, porque no actuamos para pensar, sino que pensamos en la acción,
transformamos en la acción y en su repetición hay un sortilegio que muestra un matiz nuevo que solo
se puede percibir al momento en que se vuelve a él.

De la misa manera como la definición de juego se libera en la acción de jugar “el mito libera la radica-
lización de la palabra en el sentido que la palabra no logra sus raíces como tal, sino como lo contrario,
en tanto pierde su significado y es puro significante, o mejor dicho porque el significado no ha de ser
de esta razón sino de otra” (Kusch, 1978, p. 47).

La potencialidad del juego atiende a la capacidad que tiene para desestabilizar lo que ya está prede-
finido, predeterminado y aceptado, de alguna manera el juego es una de las acciones críticas más
relevantes de la infancia que muestra su poder transformador de la realidad, porque lo que realmente
interesa en el juego es que

[…] lo fundamentalmente importante es la dinámica de desestabilización, de tránsito: por el lugar


que ocupan los participantes, por la disposición albergante o excluyente de los mismos, por la tensión
que se produce en las relaciones de posición, en el juego del posible aparecer y desaparecer de uno o
varios de los jugadores, la orientación/desorientación, como pérdida y recuperación de las referen-
cias espaciales, el redescubrimiento de lo cotidiano, la sorpresa que se expresa en la realidad espacial
construida con la posición de los objetos… (CABANELLAS y ESLAVA, 2005, p. 110).

Esta habilidad que niños y niñas ponen ante nuestros ojos, desde el juego como evidencia de sus
maneras de vivir, es uno de los referentes de identidad al cual Malaguzzi llamó “cultura infantil”
(HOYUELOS, 2004) es decir la infancia interactúa desde sus maneras de vivir, pensar, hacer y percibir
el mundo y las cosas. De esta manera, la infancia nos muestra su condición cultural y “la complejidad
de sus relaciones” (HOYUELOS, 2015) más allá y más acá del lugar inferior que se le ha asignado a la
infancia dentro de la escala del desarrollo.

Rescatar este lugar cultural de la infancia, esta manera de vivir y proyectar la vida nos permite pensar
en nuestra relación con esa “deiferen(s)ia” (DERRIDA, 1968), esa marca de distinción que los otros
nos señalan cuando nuestras imposiciones no logran atravesar sus realidades. Y nos llevan a pensar
las maneras como buscamos establecer mediaciones, las cuales, muchas veces, buscan imponer nues-
tras maneras de pensar para colonizar el mundo de la vida de los otros.

Pensar el juego como acción cultural que pertenece a la infancia, sin acuñamientos de propiedad,
tiene como finalidad rescatar su condición relacional, llevar la inquietud al campo de la no palabra
promueve el roce intercultural, donde las acciones piensan con-tacto, porque se puede jugar sin pala-
bras, pero no sin cuerpo.

Por lo planteado hasta aquí, podemos decir que en la experiencia del juego, la infancia ejercita su vo-
luntad de descubrir en lo Otro y en el Otro lo íntimo del mundo y, por consiguiente a sí mismo. Para
Ferreira, “el gesto de su corporeidad, que se abre gradualmente, para tocar lo Otro (objeto elemental
de la naturaleza –agua, aire, tierra y fuego-, juguete creado o inventado, libro, etc., y, en el límite, el

671
Otro humano), abre los secretos de este Otro para penetrarlo, conocerlo en profundidad.” (2014,
p.136)

Por lo que jugar no es una simple actividad predeterminada, organizada y definida por el adulto, sig-
nifica según Ferreira sumergirse en su esencia [tanto de lo Otro, como materialidad y del Otro, como
alteridad], desconstruirlo y rehacerlo nuevamente, en el sueño más vigoroso del descubrimiento y, al
mismo tiempo, construcción del mundo. (2014)

Para lograr esta íntima relación entre el niño, la materia y el Otro, se requiere de un tiempo-espacio
que el juego le proporciona como instante, momento sagrado de creación y descubrimiento en la
interacción con el mundo. Tal intimidad requiere, es decir, reclama momentos de soledad, soledad
que no significa abandono, pero que invita al silencio, en otras palabras, requiere de vivir el preám-
bulo, íntimo y profundo de diálogo consigo mismo y con la materia; diálogo en el que, el cuerpo se
comunica y comunica una experiencia viva con la materialidad del mundo y, así lo expresa Ferreira
cuando señala:

La relación primordial (corporeidad y materia) en la soledad silenciosa, puede suscitar el surgimien-


to en su profundidad, examinando la sustancia de ese material, en una con-fusión con su propio lu-
gar (casa, abrigo, etc.,) o aún puede impulsarle a un paisaje donde la mano constructora o destructora
agita transformaciones (modelar el barro, construir, desmontar, remontar.). (2014, p. 144).

¿Será, por tanto, necesario en esta íntima relación y creación, llenar de palabras el espacio silencioso
con orientaciones desorientadas que interrumpen el momento más importante en la infancia?, el
juego, para indicar lo que se debe hacer, cómo se debe hacer y cuándo se debe hacer al jugar. Tal intro-
misión genera una ruptura en el ritmo del juego, fractura el encuentro y su posibilidad de mediación
con el Otro y con el mundo, obstaculizando la soledad y su silencio como experiencia fundamental.

Parece que el adulto estuviese acostumbrado a invadir los territorios solitarios de viajes, encuentros
y descaminos, (FERREIRA, 2014) creados en los juegos por los niños, creyendo su presencia como
indispensable a la hora de interpretar, clasificar, nombrar y caracterizar lo que en él sucede, olvidando
la capacidad del niño para recrear el mundo, a través de sus juegos silenciosos, cantados, hablados o
danzados.

La experiencia del juego propone un con-tacto factible a través del cuerpo y ostenta una doble con-
dición, por un lado como aquello que otorga individualidad, me constituye y me aferra como expe-
riencia en el mundo, por otro lado como membrura, membrana y juntura (FERREIRA 2014) que
otorga la posibilidad del toque, el roce con el Otro y con el mundo. Esa doble condición del juego
como experiencia despliega vivencias únicas pero a la vez compartidas, insertadas en la corporeidad
propia y del Otro.

Si no es, en este roce o con-tacto, ¿dónde más podríamos encontrar rasgos de una práctica intercultu-
ral en el juego? Acaso el lugar que ocupan los cuerpos en las creaciones de los niños en sus juegos, no
son ya un desafío al propio deseo adulto de controlar y determinar patrones culturales preestableci-
dos? La posibilidad de una experiencia intercultural en el juego nos acerca a las diversas formas de ju-

672
gar, pueden ser en algunos casos los mismos juegos, pero sus repertorios se modifican a cada instante,
la invención de los juguetes es el resultado de la interacción con el medio, -el agua, el aire, la tierra y
el fuego-, se presentan en distintas formas, unas veces en el soplido de un instrumento musical, otras
en la imitación de los sonidos de los pájaros o el viento, el agua en su trasegar que lleva los barcos de
papel, o en el agua que escurre por entre el papel, las manos y la tierra.

Entendemos una interculturalidad en el juego y en la infancia, amasada y transformada a cada ins-


tante por sus creadores, particularmente observada a través de las resistencias y los embates, que en
cada acto de jugar, los niños y niñas construyen para doblegar la voluntad adulta de esquematizarlos,
nombrarlos y jerarquizarlos, dentro de los repertorios y patrones universales de los juegos, los cantos
y las danzas. Se trata por tanto de una apuesta por la experiencia intercultural en el juego, sustentada
en la diversidad y la polifonía cultural.

REFERENCIAS

AUGÉ, M. Los no lugares espacios del anonimato. Una antropología de la sobremodernidad. Barcelona/ES: Ge-
disa, 2000.
BALAGUER, I. La educación infantil que queremos. Revista Digital de la Asociación de Maestros Rosa Sensat,
In-fan-cia latinoamericana, v. 4, p. 2-4, 2012.
CHADI, M. Redes Sociales. En el Trabajo Social. Bs. As.: Ed. Espacio, 2000.
DERRIDA, J. La Diferencia. Ed. Electrónica de Philosophia. Santiago: Escuela de. Filosofía Universidad ARCIS,
1968.
FERREIRA, M; PÉREZ, P & RUBIRA, F. Aproximaciones a la Educación Sensible. Vivencias en los Núcleos Ex-
perienciales en Astronomía y Arte-Educación. Bogotá: Idartes, 2014.
FOUCAULT, M. Vigilar y Castigas. El nacimiento de la prisión. Madrid: Siglo XXI, 1982.
GROSSO, J. L. Cuerpos del Discurso y Discurso de los Cuerpos. Nietzsche y Bajtin en nuestras relaciones inter-
culturales. Revista Latinoamericana de Estudios Sociales sobre las Emociones y los Cuerpos, Buenos Aires, n. 1, a.
1, p. 44-47, dic. 2009. Recuperado de: <www.relaces.com.ar>.
HOYUELOS, A. Los tiempos de la infancia. In. Temps per Créixer. Barcelona: Universidad Autónoma de Bar-
celona, 2008.
______. La ética en el pensamiento y la obra de Loris Malaguzzi. Barcelona: Octaedro, 2004.
HUIZINGA. J. Homo Ludens. Madrid: Ed. Alianza, 2005.
VILANOVA, M. Descender desde la Infancia: el desarrollo y el discurso de “los niños” ante “formas otras” de
conocer y vivir. 2014. 365 f. Tesis (Doctorado en Educación) - Departament de Teoria i Història de l’Educació,
Universitat de Barcelona, 2014. Recuperado de: <http://www.tdx.cat/handle/10803/288209>.

673
Bichos do parque: retomando
experiências para produzir
um novo caminho
Gilvânia Maurício Dias de Pontes

INTRODUÇÃO

A temática da “experiência” é, atualmente, muito presente nas discussões sobre educação de crianças.
Mas, o que queremos dizer quando tratamos de experiências e práticas pedagógica com crianças? Quais
os significados que atribuímos à palavra experiência? Como articulamos tais significados às nossas prá-
ticas de cuidar/educar crianças? Diante de tantos questionamentos, esse artigo busca discutir o conceito
de experiência, em autores como Dewey e Larrosa, para, em seguida, apresentar um relato da articula-
ção de experiências educativas em torno do Tema de Pesquisa “Bichos do Parque”, desenvolvido com
e por crianças de 4 a 5 anos. A organização da prática pedagógica para o desenvolvimento do tema de
pesquisa tomou com referencial a Abordagem Triangular para o ensino de artes, contemplando nas ex-
periências propostas as ações de ler/contextualizar/fazer como propostas por Barbosa (2009).

1. APONTAMENTOS SOBRE EXPERIÊNCIA

Dewey concebe a experiência como interação do sujeito com as condições que o rodeiam; desse
modo, a experiência tem um caráter prático e articula-se com a vida e com a cultura. Para o autor, o
pensamento não se desvincula das situações práticas do cotidiano; o autor relaciona pensamento e
experiência aos acontecimentos cotidianos que instigam crianças e/ou adultos à resolução de proble-
mas e à produção de conhecimentos.

A atividade humana, direcionada pela reflexão, permite o enlace entre pensamento e experiência. Na
experiência, ocorrem alterações simultâneas entre o agente do conhecimento e o que foi conhecido,
porque há modificações nas relações entre eles. Assim, agir e experimentar o conhecimento constitui
o processo de aprendizagem e, nesse esforço, o sujeito passa por transformações. Transforma a si
mesmo, o conhecimento e o meio em que atua.

Nessa concepção, experiência e educação estão relacionadas organicamente. A educação, entendida


como um fenômeno direto e particular da vida humana, é processo de reconstrução e de reorganiza-

674
ção do conhecimento que provoca o sujeito para experiências futuras. A educação é a experiência em
curso, ao mesmo tempo em que é resultado da experiência.

Diante disso, faz-se necessário pensar sobre a seleção de experiências que o educador vai reconstruir
com as crianças, porque experiência e educação não são diretamente equivalentes uma à outra; nem
toda experiência é igualmente educativa; algumas experiências podem ser deseducativas. A experiên-
cia educativa caracteriza-se por um continuum experiencial em que toda ação praticada e/ou sofrida
afeta a qualidade das experiências futuras; isso porque gera hábitos e atitudes que estarão presentes na
atuação do sujeito em experiência subsequentes.

Para Larrosa (2002), a experiência é aquilo que nos afeta, que nos toca, que produz os rumos no mo-
mento mesmo de seu acontecimento. Citando Benjamim, ele ressalta que informação não é experiên-
cia; o excesso de informação é quase uma antiexperiência; e faz a seguinte consideração:

O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa o tempo buscando informação [...] porém, com essa
obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de
“estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça. (LARROSA, 2002, p. 22, grifos do autor).

De acordo com o Larrosa, a experiência tem se tornado cada vez mais rara devido à falta de tempo e
ao excesso de trabalho. No que se refere ao tempo como impedimento da experiência, tudo ocorre de
modo muito rápido e logo é substituído. Estímulos substituem estímulos numa velocidade sem tempo
para o silêncio e para a memória em que tudo agita, excita, mas nada acontece.

A afirmação de Larrosa sobre a recepção da experiência pelo sujeito é também uma preocupação nos
textos de Dewey, quando este afirma que a experiência é percebida de forma diferente, de acordo com
o repertório de experiências anteriores do sujeito; este também pode sofrer interferências do ativis-
mo, que produz experiências superficiais ou inconclusas, ou do excesso de receptividade, caso em que
o sujeito valoriza somente o passar pelas situações sem parar para significá-las.

Larrosa sugere um olhar para a educação, observando no par experiência/sentido. Ele ressalta que as
palavras produzem sentido, criam realidades e podem funcionar como mecanismos de subjetivação.
“Tem a ver com as palavras os modos como nos colocamos diante de nós mesmos e diante dos outros
e do mundo em que vivemos” (LARROSA, 2002, p.21). Nomear, dessa forma, é práxis reflexiva sobre
o que se é, sobre o que se faz, sobre o que se pensa e sente. As palavras que nomeiam coisas tornam
presentes os modos de atuar no mundo daquele que nomeia. Dessa forma, as palavras presentificam
as relações estabelecidas e os modos de pronunciar o encontro com o outro.

2. OS SUJEITOS DA EXPERIÊNCIA

O grupo da turma 3 é constituído por 22 crianças, de 4 a 5 anos, e 3 adultos, no total de 15 meninas


e 7 meninos. Essa turma guarda uma singularidade em relação às anteriores, dado o caráter de tran-
sição que a acompanha: não são crianças tão pequenas como antes, o berçário e turma 1 e 2, nem
tão grandes como as seguintes que a escola atende – crianças de até 10 anos; já possuem uma fala
mais elaborada, estabelecendo diálogos intencionais com o outro. É uma turma bem participativa,

675
as crianças interagem dialogicamente, expressando suas opiniões em torno dos temas abordados,
seja oralmente ou através de outras linguagens. Na turma 3, geralmente, as representações através do
desenho se tornam mais figurativas, sinalizando para as formas mais realistas. As crianças dessa idade
já diferenciam a escrita do desenho, percebendo que para escrever são necessárias várias letras, e que
os nomes de objetos e pessoas podem ser escritos.

Tema de pesquisa é a metodologia adotada pela instituição em que foi realizado o trabalho, desde a
década de 1980, para articular três dimensões básicas da experiência educativa: o conhecimento já
constituído culturalmente, que se quer tornar disponível; as experiências das crianças, isto é, o con-
texto sócio cultural das crianças ou sua realidade imediata; e os aspectos vinculados à aprendizagem.

Um tema de pesquisa surge, geralmente, da curiosidade das crianças por determinado assunto. Tal
curiosidade lhe toma de corpo inteiro e ela reivindica espaços de expressão, seja na oralidade, no
desenho ou no gesto. Assim ocorreu com o primeiro tema de pesquisa da turma 3. Observamos que
as crianças estavam muito interessadas nos bichos do parque. Procuravam animaizinhos na areia,
mostravam para os colegas e professores e traziam para a sala. Perguntamos às crianças sobre qual
seria o primeiro tema de pesquisa do ano e as respostas, com exceção da sugestão de corpo humano,
dinossauros e carros, giravam em torno da citação dos nomes de pequenos animais. Em conversas
com os pais sobre esse interesse, descobrimos que as crianças já haviam estudado os bichos do parque
em turmas anteriores. Fomos em busca dos relatórios das turmas 1 e 2 e constatamos que essa turma
tivera experiências de estudos sobre: embuá, formiga, aranha, abelha e borboleta.

No levantamento das ideias iniciais sobre o tema, falamos que a turma já havia estudado alguns ani-
mais do parque, poucas crianças lembravam desses estudos. Mas, com o desenvolvimento do tema de
pesquisas, as experiências anteriores começaram a ser relembradas e ressignificadas.

Organizamos uma sequência de experiências para dar continuidade ao tema. Iniciamos com o levan-
tamento das ideias que as crianças já tinham sobre o assunto e organizamos as perguntas que surgiram
dessa lista de informações. Em seguida, coletamos animaizinhos do parque para trazer para sala e obser-
var com uma lupa. Nossa coleta resultou em: embuás, uma abelha morta, minhocas e alguns besouros.

3. IDEIAS INICIAIS

O QUE SABEMOS SOBRE OS ANIMAIS DO PARQUE?


1- A MINHOCA VIVE EMBAIXO DA TERRA.
2- TEM GATINHO NO PARQUE PARA AS PESSOAS BRINCAREM.
3- VI UM BESOURO QUE TEM OLHO E FAZ COCÔ E XIXI.
4- EU VI UMA MINHOQUINHA QUE NÃO TINHA OLHOS, SÓ BOCA. ELA
PARECE UMA LINHA DEITADA.
5- OS BICHOS DO PARQUE TÊM CORPO.
6- MINHOCA FAZ COCÔ, VIRA CASULO E VIRA BORBOLETA.
7- A LAGARTA COME FOLHA, VIRA CASULO E DEPOIS BORBOLETA, E VOA.
8- UMA MÚSICA SOBRE MINHOCAS.
9- UMA MÚSICA COM MUITOS BICHOS.
10- O TIGRE É UM ANIMAL DO PARQUE.
11- OS DINOSSAUROS NÃO VIVEM NO PARQUE, ELES MORRERAM.

676
Figura 1. Imagens das ideias iniciais.
Fonte: A Autora.

No levantamento do que as crianças sabiam sobre os bichos do parque, foram citados animais que
povoam o parque, seja de forma real ou imaginária. No parque, gatos, tigres, falcões e até dinossauros
convivem com formigas, besouros, embuás, minhocas, joaninhas e borboletas. Diante disso, estava
posto o desafio de selecionar, com as crianças, quais bichos seriam estudados. Organizamos com as
crianças uma lista das curiosidades do grupo, expressão do que queriam saber sobre o tema. Diante
dessa lista, experiências estéticas de aproximação ao tema foram propostas ao grupo.

4. OBSERVAÇÃO DOS BICHOS DO PARQUE

A experiência de observar os bichos do parque teve como objetivo elencar quais animais seriam
focalizados no tema de pesquisa. Para realiza-la foi preciso, inicialmente, tratar dos cuidados que
devemos ter no contato com os bichos. Alguns desses animais, como forma de defesa, soltam líqui-
dos que mancham a pele ou picam. Assim orientamos que as crianças deveriam usar um palito para
coletar o animal e lhe colocar em um deposito para trazer para sala. Divididas em duplas ou trios, as
crianças utilizaram estratégias variadas para executar a coleta. Escavavam a areia, procuravam perto
dos brinquedos e árvores buscam os bichos em lugares mais úmidos e etc.

677
5. OBSERVAÇÃO COM UMA LUPA

A coleta no parque nos rendeu alguns embuás, besouros, minhocas, formigas e uma abelha morta.
De posse desses exemplares, as crianças passaram a observar cada bichinho com uma lupa. Du-
rante e após a observação, descreveram oralmente o que viram e, em seguida, desenharam o que
haviam observado.

Essas experiências iniciais – levantamento do que as crianças já sabiam e identificação de animais


a serem estudados ofereceram os elementos necessário para a produção da rede temática e quadro
programático para a abordagem do tema “Bichos do Parque”, nesta turma 3. Em outras turmas, com
outras experiências, saberes e interesses, a rede temática e o quadro, certamente, seriam diferentes.

6. REDE TEMÁTICA E QUADRO PROGRAMÁTICO

678
COMO DEVE SER
COMO SE COMO É O SEU A RELAÇÃO DOS
ONDE VIVEM? O QUE COMEM?
LOCOMOVEM? CORPO? HOMENS COM
OS BICHOS?
Classificação Leitura de texto Desenho inicial de
Estudos das formas de
Observação dos dos bichos que informativos sobre como as crianças
defesa dos bichos do
bichos no parque voam e dos que se a alimentação dos percebem o corpo dos
parque
locomovem na terra bichos do parque bichos do parque

Leitura de imagens
Leitura de textos de – desenhos, vídeos
Leitura de texto
Observação dos literatura infantil e fotografias que Cuidados na coleta
sobre o habitat dos
bichos com lupa sobre a alimentação apresentam as dos bichos do parque
bichos
dos bichos do parque características físicas
dos bichos do parque

Apreciação de vídeos
Descrição Oral de Observação com lupa
Coleta de materiais sobre os bichos
como os bichos se dos bichos coletados
com a ajuda dos pais enfatizando sua
locomovem no parque do NEI
alimentação

Leitura de textos
Desenho do habitat informativos sobre as
Desenho do bicho
dos bichos características físicas
dos bichos do parque

Construção do Produção de desenho


mural com os bichos após a leitura de
do parque do NEI imagens e textos

7. CONVITE ÀS FAMÍLIAS PARA PARTICIPAR DO TEMA DE PESQUISA

Após a coleta, observação e descrição dos animaizinhos que as crianças encontraram no parque,
foi possível organizar o bilhete solicitando a busca de outros materiais junto às famílias. Atendendo
a esse convite, as crianças chegavam na sala com livros de Literatura Infantil, revista Ciência Hoje,
desenhos e outros bichos – fossem de matéria orgânica ou miniaturas em plástico. Ressaltamos o em-
penho das próprias crianças, que identificaram materiais em casa e insistiram com os pais que deter-
minado livro ou determinada imagem serviria ao estudo sobre bichos do parque. Algumas crianças,
não encontrando o material pronto, produziram seu próprio acervo sobre o tema em questão. Essa
atitude de busca demonstra a construção de autonomia desse grupo nas práticas de produção de um
estudo coletivo a partir de um tema.

A experiência com a leitura dos textos, escrita e imagens, dos livros das crianças serviram de suporte
para produção de narrativas coletivas sobre o tema. Essas narrativas foram, inicialmente, organizadas
pelos professores, a partir da fala de todas as crianças, em seguida, o texto foi digitado e voltou para
apreciação do grupo de crianças, que sempre sugeria modificações.

8. TEXTOS COLETIVOS E ILUSTRAÇÕES

Na construção de textos coletivos, as crianças expõem seus conhecimentos sobre o que está sendo es-
tudado. Nesse momento, elas dizem seus conhecimentos iniciais. Depois de pesquisar e estudar sobre

679
o tema, é retomado o texto inicial, produzindo-se novos sentidos ao texto inicial, sendo acrescentado
mais informações, retirando outras. Após a produção do texto, de forma oral e escrita, tendo a profes-
sora como escriba, as crianças são desafiadas a produzir ilustrações que representem a modalidades
textuais anteriores (oral e escrita). O novo texto, imagético, é, também, representação de suas leituras
de mundo e de seu diálogo com o conhecimento, com outras crianças e com os adultos mediadores
dessas experiências.

JOANINHAS
AS LARVAS SE TRANSFORMAM EM JOANINHAS. AS JOANINHAS TÊM ASAS EMBAIXO DA CAS-
CA DURA DELAS. ELAS PROTEGEM SUAS ASINHAS. ELAS NÃO VOAM MUITO ALTO POR CAU-
SA DA CASCA DURA. AS JOANINHAS VOAM PORQUE TÊM ASAS PARA VOAR. AS JOANINHAS
TÊM AS PATAS BEM PEQUENAS. AS BOLINHAS DAS JOANINHAS APARECEM POR CAUSA DA
CHUVA. AS JOANINHAS MORAM NAS PLANTAS, SE ALIMENTAM DE FLOR E DE PULGÕES DEI-
XANDO O RESTINHO NA PLANTA. BOTAM OVOS. AS JOANINHAS PROCURAM OS ALIMEN-
TOS PELAS ANTENAS. A CASCA DURA SERVE PARA PROTEGER DOS PREDADORES. ELAS SE
ESCONDEM NUMA FOLHA. QUANDO MATAM A JOANINHA ELA FICA ESMAGADA. AS BOLI-
NHAS DAS JOANINHAS SÃO PRETAS. AS JOANINHAS FAZEM COCÔ. A CASQUINHA DA JOANI-
NHA NÃO TEM MÁQUINA PARA MUDAR DE COR (TEXTO COLETIVO).

Figura 2. A joaninha e as larvas Figura 3. A joaninha fazendo cocô


Fonte: Acervo da Autora. Fonte: Acervo da Autora.

9. A INESPERADA METAMORFOSE DA LAGARTA

Depois de estudar uma variedade de bichos do parque, as crianças já sabiam muito sobre embuás,
joaninhas, abelhas borboletas e formigas, mas, algumas crianças ainda pensavam que o embuá ou as
minhocas se transformavam em borboletas. A oportunidade de ampliar os conhecimentos sobre a
metamorfose das borboletas surgiu inesperadamente. O jardineiro da escola estava tratando de plan-
tas atacadas por lagartas, quando coletamos duas lagartas para mostrar ao grupo. As lagartas foram
colocadas em um pote, com a tampa furada para entrar ar, e com algumas folhinhas para servir de
alimento para os bichinhos. O pote foi trazido para sala, para que as crianças observassem as lagartas.
Dias depois, dentro do pote, havia um casulo e, em uma semana, uma borboleta. A metamorfose,
em condições não tão adequadas, não era esperada pela turma e foi uma grande surpresa quando de
dentro do pote saiu voando uma borboleta.

680
Diante da transformação, as crianças demonstraram estar convencidas de que minhoca e embuá não
viram borboletas.

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um relato do primeiro trimestre de um grupo, em uma nova turma, é repleto de experiências e desco-
bertas de como conviver e vivenciar os novos desafios que se apresentam no novo ano. Esse “curioso”
grupo de crianças de 4 e 5 anos experimentou esse desafio com muita leveza. Participaram ativamente
de todas as experiências propostas e souberam propor outras tantas experiências. Expressaram oral-
mente seus conhecimentos e preferências ao vivenciarem as ações de leitura de imagens, contextuali-
zação e fazer. Demonstraram muita disposição para desvendar os mistérios da organização das ideias
oralmente, da leitura de ilustrações dos livros de literatura infantil ou textos científicos, assim como
enfrentaram os desafios da representação através do desenho. O tema de pesquisa “Bichos do Parque”
serviu de norte para essas muitas experiências com múltiplas linguagens e, nessas situações, as crian-
ças mostraram que também já entendem das práticas de produção de conhecimento.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. 7. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio
de Janeiro, n. 19, p. 20-28, jan./abril. 2002.
DEWEY, John. Arte como experiência. Trad.Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010b.
______. Experiência e educação. Trad. Renata Gaspar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010a.

681
Programa curumim Sesc São Paulo:
uma experiência da metodologia da
escola da ponte na educação não formal
Andréia Maria Ferreira Reis

1. CONHECENDO O PROGRAMA CURUMIM E O PROJETO ÂNCORA

O presente artigo tem por objetivo apresentar o trabalho que desenvolvemos no Programa Curumim
do Sesc-SP, de educação não formal, com o propósito do desenvolvimento da autonomia, crítica e
criatividade, reconhecimento das diferenças, entre outros aspectos das crianças participantes.

O Programa Curumim, existente há 29 anos, inicialmente foi pensado a partir de uma reflexão sobre
o papel do Sesc-SP com relação à sua clientela infantil. Ao longo de vários anos, o Sesc-SP desenvol-
veu inúmeros projetos destinados ao público infantil e infanto-juvenil, a partir de uma concepção não
escolar. Com vistas a consolidar esse trabalho de maneira mais sistemática, o Sesc-SP idealiza esse
Programa Integrado de Desenvolvimento Infantil.

No documento de 1986, Sesc Curumim, levando em consideração os aspectos acima, são listados
como pressupostos do Programa Curumim:

• reconhecer a criança como um ser com uma realidade existencial concreta e peculiar, que deve ser
respeitada em sua singularidade;
• admitir que o projeto não pode abstrair os valores do presente, próprios do universo infantil, e com
eles deve ser articulados;
• reconhecer o direto da criança à informação, permitindo-lhe o acesso ao conhecimento e o domí-
nio do meio em que vive;
• assumir a ludicidade como o valor básico de toda ação pedagógica.

Esses princípios se mantêm ainda hoje, pois podemos considerá-los atuais e fundamentas na forma-
ção do ser humano. No entanto, outros foram adicionados. Aliás, outro documento foi escrito em
2008, e em breve teremos um mais atualizado.

O Programa Curumim, direcionado a crianças de 7 a 12 anos, está presente em 29 unidades do estado


de São Paulo, incluindo interior, capital e litoral. De acordo com o levantamento realizado em 2015, são

682
aproximadamente 3.561 crianças matriculadas no Programa, sendo que há disponível 4002 vagas, com
128 Instrutores infanto-juvenis, nome dado aos educadores. Além do Curumim, o Sesc-SP ainda tem
outros dois programas: Espaço de Brincar, para crianças de 0 a 6 anos, e o Juventudes, para jovens de 13
a 19 anos.

Geralmente, o Programa Curumim segue um calendário semelhante ao escolar. Nossas atividades


são de março a junho e de agosto a novembro, isso se dá, porque, além do Curumim, os instrutores
participam, também, da programação da unidade: temos o programa de férias, em janeiro e julho, o
Criançada na Área, e ainda o período de planejamento e avaliação, geralmente em fevereiro e julho.
O desafio, no momento do planejamento, é realizá-lo em equipe. Na unidade de Sorocaba somos 6
educadores, mas há unidades com 8 ou mais. O Programa atende crianças de 7 a 12 anos, em dois
períodos, manhã e tarde, de terça a sexta-feira, no contraturno da escola.

Na unidade do Sesc Sorocaba, o Curumim foi implantado em 2013, sendo que a unidade foi inaugu-
rada em setembro de 2012. Durante esses 4 anos, pudemos experimentar várias possibilidades dentro
da educação não formal.

Segundo, Oeino e Ferreira (2015, p.23),

O Curumim é um programa de educação não formal que visa, num ambiente de cooperação e res-
peito mútuo, garantir espaços e tempos de brincar, criar e conviver. Seu objetivo é de proporcionar
aos participantes a construção e a vivência de um conjunto de valores e de ações lúdicas e integradas,
voltadas para a produção do desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos.

Sobre a educação não formal (PARK, 2015, 47-70), é importante entender um pouco sua trajetória. A
intenção deste artigo não é a de se aprofundar nesse tema, mas uma breve contextualização é necessária.
Primeiramente, o termo não formal foi cunhado fora do Brasil, tendo sido constituído conceitualmente
em oposição à educação formal, em um momento de crise da educação formal. No Brasil, a educação
não formal se constitui em diálogo com diversas práticas, desde filantrópicas a sociais, recreativas, cul-
turais e arte-educação. É uma área abrangente que no Brasil começou a ser utilizada nos anos de 1980
de forma discreta (inclusive com base em propostas de Paulo Freire), mas que, em 1990, ganha força.
Por sua abrangência, a educação não formal não possui um referencial específico, mas múltiplo, bem
como suas discussões, que se estendem para diferentes espaços: mídia, sociedade civil, ONGs, projetos
educacionais e assistenciais, poder público e fundações. Pode-se dizer que a educação não formal vem
construindo seu campo na prática, através do cotidiano, da oralidade e necessidade de resolução de pro-
blemas. Apesar do conceito de educação não formal estar ainda hoje em construção, as mudanças que
essa área proporciona pode ser enriquecedora, do ponto de vista da experimentação e reflexão.

2. PROJETO ÂNCORA

A proposta deste artigo é apresentar a experiência que tivemos em 2015 e no primeiro semestre deste
ano, 2016, e como influenciou em nossa prática no Programa Curumim. Essa experiência parte da
vivência que aconteceu no ano anterior, 2014. No mês de novembro, fomos (toda a equipe) à Cotia,
cidade próxima à capital onde fica o Projeto Âncora.

683
Esse Projeto funciona desde 1995, inicialmente como uma organização não governamental para de-
senvolver projetos sociais e culturais com crianças de baixa renda no contraturno da escola. Foi em
2011 que o Projeto recebeu o auxílio do educador José Pacheco, idealizador da Escola da Ponte de
Portugal. A partir daí, o Projeto Âncora tornou-se uma escola de educação básica, mas com uma
proposta diferenciada das escolas tradicionais. E assim, como a Escola da Ponte, o Projeto Âncora
atende às crianças em período integral. Com o objetivo de a criança ter a autonomia do seu próprio
aprendizado, de forma que a escola seja mais um espaço em que o processo aconteça, não o único.

Imagem 1.Visita da equipe do Sesc Sorocaba


ao Projeto Âncora.
Fonte: Lucas Lannes, [n.d.].

No Âncora, as crianças não seguem apostilas ou livros, bem como não se dispõem em sala de aula em
carteiras, como na escola tradicional. Lá eles têm tutores, com quem elaboram o plano de estudo do
dia, as disciplinas e o horário de brincar, ou seja, a criança participa da sua educação integralmente,
propondo, discutindo, partilhando com outros amigos de forma colaborativa.

A partir do conhecimento do andamento educacional do Projeto Âncora de educação formal, pu-


demos perceber que há semelhanças com relação ao Programa Curumim de educação não formal,
sobretudo no que diz respeito à autonomia, que promove a sensação e o efetivo pertencimento da
criança ao processo, a partir da escolha delas, do que querem aprender e quando querem aprender,
respeitando o tempo de aprendizado individual.

3. A TEORIA NA PRÁTICA

Desde que iniciamos o Programa Curumim, no Sesc Sorocaba, preocupávamo-nos muito com o que
e como desenvolveríamos nossas atividades, pois, apesar de a equipe, em sua maioria, vir do trabalho
com os Curumins de outras unidades, seria um novo desafio participar da implantação do Programa.
Foi preciso a sensibilidade, a objetividade, a escuta e muita paciência para desenvolvermos o trabalho
que almejávamos.

O Programa se estrutura de forma aberta. Isso nos possibilita explorar possibilidades diversas, além
da multiplicidades de linguagens: artes, meio ambiente, saúde, esportes, nutrição, tecnologia entre
outras, o que nos permite utilizar de vários vieses educacionais. O planejamento e a avaliação são

684
fundamentais, além da pesquisa e criatividade. No entanto, outro fator de suma importância é a es-
cuta das crianças, afinal é para elas e com elas que o Programa se constrói. A criança como ponto de
partida nos fez explorar metodologias diversas, até que, em 2014, ao conhecer o Projeto Âncora, nos
sentimos inspirados para um novo momento, dar ainda mais protagonismo às crianças, de forma que
elas pudessem ser propositoras de suas próprias atividades.

O feedback com relação ao nosso trabalho vem não apenas dos pais, mas sobretudo das crianças, e,
ainda, ao longo do processo, algumas delas já se destacavam, demonstrando um posicionamento pro-
tagonista, sugerindo atividades. Foi quando fizemos a pergunta a elas: o que acham de vocês serem os
educadores e proporem o que as atividades, a partir do que gostam e se sentem à vontade para com-
partilhar com os amigos? Foi quando, efetivamente, as crianças se tornaram propositoras. Explicamos
como organizar uma atividade, iniciando por descreverem a atividade a ser proposta, materiais a
serem utilizados, número de vagas, local onde será realizada. A partir daí, as oficinas foram surgindo
e, modestamente, uma ou outra criança assumiu sua atividade.

Ao final de todo ano, fazemos um feedback com os pais, individualmente. É um momento muito
importante, onde temos o retorno do nosso trabalho, além de saber um pouco mais como foi o ano
da criança, na escola, em família. O nosso combinado com os pais é um trabalho em parceria. São
muitas as angústias trazidas pelos pais e procuramos dar o apoio, como educadores, e buscar juntos a
solução para o meio do nosso trabalho. Uma das questões levantadas pelos pais foi a importância e a
necessidade de dar a seus filhos a chance de serem propositores, já que em outros espaços, segundo os
próprios pais, seus filhos nem sempre têm espaço para se posicionarem de tal maneira. Foi quando a
vontade dos pais, das crianças e nossa convergiram para o mesmo objetivo, oportunizar esse protago-
nismo. No entanto, deixamos claro que esse protagonismo iria exigir-lhes proporcionar autonomia e
que junto precisariam de responsabilidade, disciplina e compromisso. E isso foi levado muito a sério
por eles, a ponto de criarmos o projeto #curumimemação.

685
Imagem 2. Atividade de proposição e escolha
das oficinas pelas crianças, neste momento
cada propositor apresentou sua oficina.
Fonte: Fabrício Castro, [n.d.].

Neste projeto, as crianças propuseram atividades para o primeiro semestre de 2016. Todas as sextas-
-feiras eles são os educadores, com todas as responsabilidades no direcionamento da atividade, sem-
pre com a presença de pelo um de nós como apoio. A quantidade de crianças que se manifestaram nos
surpreendeu. Havia crianças mais reservadas que em outros momentos dificilmente se colocavam,
mas que agora se colocavam como propositores de oficinas. Cada criança propositora definia a quan-
tidade de vagas disponíveis em suas oficinas, que variava entre 20 e 25 vagas, todas foram preenchi-
das, alguns se inscreveram em cinco atividades. No total, tivemos 14 propostas de oficinas, algumas
elaboradas por uma criança, outras por duas ou três crianças, quando os temas se aproximavam. São
elas: Robertização de Garrafinhas, Aprenda a ser maluco – chaveiro, Aprendendo a nadar, Skate, Ofi-
cina dos Saudáveis, Iniciando Judô, Bola na cesta, Jogos com espadas, Oficina de desenho, Curumim
no Jogo do Assassino, Curumim na Dança, Criação de Jogos, Campo de Batalha, HQ Maker. Todos
os nomes das oficinas foram dadas pelas crianças, em sua maioria artística, talvez por termos pelo
menos 50% de nossas atividades na área artística, mas, de qualquer forma, eles ficaram livres para
fazerem suas escolhas.

Imagem 3. “Robertização de Garrafinha” - Curumim res-


ponsável, Vítor Bizarra.
Fonte: Maria Angélica Freitas, [n.d.].

Imagem 4.
“Oficina Judô”
– Curumim
responsável,
Renato Sato.
Fonte: Sheila
Demetrio, [n.d.].

686
A partir do processo com essas crianças, em sua maioria desde o início no Programa, em 2013, pu-
demos observar, na prática, o desenvolvimento de autonomias e protagonismos, e ainda perceber o
quão importante outras formas de educação são inspiradores para nosso trabalho. Algo importante
em nossas atividades, também, é a liberdade que temos de explorar, experimentar e propor desafios.
O potencial de impacto do Programa na vida das crianças e suas famílias é perceptível, o que, conse-
quentemente, contribui para o processo educativo de todos. Assim, verificamos o quanto o diálogo
com outras experiências educativas tona-se produtivo para nosso Programa.

REFERÊNCIAS

PARK, Margareth Bradini; FERNANDES, Renata Sieiro (Orgs.). Programa Curumim: memórias cotidianos e
representações. São Paulo: Edições Sesc, 2015.
SERVIÇO Social do Comércio. Administração Regional do Estado de São Paulo. Diretrizes Sesc Curumim. São
Paulo: Sesc-SP,1986.

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No corpo, um corpo: reflexões sobre
o “híbrido” na cena contemporânea
Jerônimo Vieira de Lima Silva/ Elias de Lima Lopes

1. O CORPO HÍBRIDO NO CONTEXTO DO DRAMA E DA PERFORMANCE –


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A existência de um corpo híbrido no contexto que aqui pretendo apresentar parte das minhas vivên-
cias entre ator e performer. Em todos os processos criativos que desenvolvi ou dos quais participei,
sempre se deram por meio de experimentações. Durante períodos de treinamentos de criação, busca-
va estabelecer contato com os mais diversos conhecimentos artísticos, no intuito de (re) dimensionar
o meu corpo para a cena. Pouco a pouco, a fusão de elementos oferecidos pelo teatro, pela dança,
pela música e pelos recursos midiáticos foram se sedimentando em mim. No início, não tinha ainda
plena consciência da importância de tantas leituras e a realização dos mais variados jogos e exercícios
corporais e vocais.

Atualmente, percebo com maior clareza a existência de um corpo que em mim habita gerado pelo
hibridismo. Neste sentido, o meu eu-artista dispõe de “técnicas” corporais e vocais para a realização
mais abrangente, em favor da minha performance. Acredito que o artista, imbuído de um profícuo
treinamento de diferentes técnicas corporais codificadas, pode desenvolver plenamente seus próprios
métodos e procedimentos à sua criação artística, contanto que isso não venha a delimitar sua criati-
vidade, nem tampouco tais técnicas representem fórmulas prontas, como uma espécie de receituário.
Um dos exemplos mais significativos à minha formação enquanto artista cênico se deu com as técni-
cas “extracotidianas” desenvolvidas pelo pesquisador teatral Eugênio Barba. Para ele,

A maneira como usamos nossos corpos na vida cotidiana é substancialmente diferente de como o
fazemos na representação. Não somos conscientes das nossas técnicas cotidianas: nós nos movemos,
sentamos, erguemos coisas, beijamos, concordamos e discordamos com gestos que acreditamos serem
naturais, mas que, de fato, são determinados culturalmente. Culturas diferentes determinam técnicas
corporais diferentes, se a pessoa caminha com ou sem sapatos, carrega coisas em sua cabeça ou com
suas mãos, beijam com os lábios ou com o nariz. O primeiro passo em descobrir quais os princípios
que governam um bios cênico, ou vida, do ator, deve ser compreender que as técnicas corporais podem
ser substituídos por técnicas extracotidianas, isto é, técnicas que não respeitam os condicionamentos
habituais do corpo. Os atores usam essas técnicas extracotidianas. (BARBA, 1995, p. 9).

688
A partir do exposto por Barba, quero ressaltar que aquilo que sempre busquei atingir durante os mais
variados ensaios que realizei, não só como ator, mas também enquanto performer e encenador, foi
potencializar as capacidades expressivas do corpo, à procura de vencer quaisquer tipos de repressão
a ele impostas. Neste sentido, o estudo sobre a pesquisa em Barba se deu neste período, em que eu
procurava a minha maneira particular de estar em cena e no mundo, numa espécie de autoafirmação
e procura de dar vez à “voz” do meu corpo. As informações contidas em sua pesquisa foi um divisor
de águas na minha vida artística.

Procurei exaustivamente pôr em prática todo aquele conhecimento que se colocava em meu caminho.
Sem dúvida, uma tarefa ambiciosa para um aprendiz a progredir. Afinal, como diria Heidegger, “o
homem é um ser inquietante que o habita”. E mesmo com minha inquietante busca, pareciam ines-
gotáveis todos os ensinamentos, todos os questionamentos, todas as dúvidas que se formulavam por
esta trajetória. Era preciso “fracturar as narrativas desse corpo” (VILELA, 1998, p.10), desconstruir as
camadas sobrepostas naquele meu corpo que, de certa maneira, dificultava o nascer de um corpo nos
“entrecuzares” do saber e das vivências, gerado por camadas que formam um corpo híbrido.

Quanto às minhas vivências com a arte da performance, elas se deram de forma significativa. Durante
o período da minha formação acadêmica em educação artística, na qual me dediquei às artes cênicas,
tive os primeiros contatos com ela. Inicialmente, tinha o entendimento equivocado que se tratava de
sketch. Só que, com o tempo, pude entender que aquilo que fazia era performance. O meu encontro
com esta linguagem foi libertador e nela pude unir conhecimentos, experimentar técnicas, dispor do
meu corpo dançante, musical e visual. Antes, só tinha a vivência do teatro convencional, no qual me
juntava a um elenco durante meses para decorar um texto, construir uma personagem e ensaiar cenas
preestabelecidas pelo diretor.

Aos poucos fui sofrendo influências e obtendo contato com os laboratórios de Grotowski, com os fun-
damentos do teatro ritual de Antonin Artaud, com o teatro dialético de Bertolt Brecht, com os jogos
desenvolvidos por Augusto Boal, dentre outros. As informações adquiridas sempre eram direciona-
das à realização de pequenas intervenções ou de performances, algumas mais elaboradas, outras mais
próximas do improviso. Vieram também outros meios que se somaram à formação do corpo híbrido
em mim (as aulas de canto lírico e o contato com variadas maneiras de fazer uso da voz; os incontáveis
momentos de apreciação de óperas, espetáculos de teatro, de dança, de circo; os tantos filmes vistos;
as prazerosas visitas a exposições, museus, centros culturais, palestras, conferências, congressos; as
horas dedicadas a leituras de livros de ficção e científicos etc.), que permearam minha formação de
ator/performer e encenador em consonância com os processos híbridos, tanto na cena quanto no meu
corpo, a qual me serviram na aplicação das personagens teatrais e nas realizações performáticas.

2. O CORPO HÍBRIDO NO TRÂNSITO ENTRE A CENA DRAMÁTICA E A PERFORMANCE

Segundo Renato Cohen, “a performance se estrutura numa linguagem ‘cênico-teatral’ e é apresentada


na forma de um mixed-media onde a tonicidade maior pode dar-se e uma linguagem ou outra, de-
pendendo da origem do artista” (2011, p. 57), seja ela mais plástica ou mais teatral. No que se refere à
questão da atuação, Cohen aponta diferenças importantes que distinguem o ator do performer. Para
ele, no teatro ilusionista importa “entrar na personagem” para torná-lo cada vez mais “real”, refor-

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çando a ficção, a ilusão. No caso da performance, acentua-se mais o instante presente, o momento da
ação, ou seja, o que acontece no tempo “real”. Neste sentido, a performance não apenas se desvincula
do caráter da representação espetacular, mas também se encontra sob outro prisma cênico, assume
sua postura transgressora.

Ao refletir sobre tal assertiva, a transgressão ocorria em todos os níveis. Se como ator apenas repro-
duzia algo já pensado e determinado pelo diretor, na performance eu era o responsável absoluto pelo
que apresentava. Não que a atividade como ator não me trouxesse satisfação, mas na performance eu
podia alcançar, com o espectador, zonas desconhecidas, ultrapassar hierarquias e paredes construídas
pela ilusão. E isso, para mim, significava atos de transgressão. As interrelações com outras artes – a
dança, a música, as artes visuais e mediáticas – somavam-se aos meus processos criativos. Todas as
reflexões filosóficas, científicas, sociológicas, antropológicas e estético-artísticas condensavam-se em
prol de novos devires performáticos. Tanto pelo viés do ator quanto do performer, o meu corpo estava
imbuído de novos traços expressivos e estéticos. As inquietações que foram tomando espaço em mim
e ganharam contornos sempre tiveram íntima ligação com a minha própria vida. As vivências e ex-
periências ocorridas neste caminho foram resultantes de todos os cruzares, de todos os vieses que se
fizeram em mim e a partir de mim, e que de alguma maneira os devolvi ao espectador pelos atalhos
da arte. E não apenas isso: ao passo que adquiria maior consciência e consistência do fenômeno hí-
brido em meu corpo artístico, era em mim mesmo que a mudança se dava, pois o movimento que se
operam entre um corpo híbrido gerado no meu próprio corpo não é senão um mesmo corpo. Eles se
fundem e se revelam entre a realidade e o ato artístico. Projeções de “corpos” do meu corpo em seus
múltiplos discursos “que tornam possível o desenho de um modo de inteligibilidade das desordens
humanas, no qual o conhecimento e a vida se implicam intrinsicamente através da paixão das passa-
gens, no lugar-corpo-símbolo” (1998, p. 15).

3. PERFORMANCE – UM BREVE PERCURSO HISTÓRICO

A performance estabelece vínculos com a quebra de paradigmas e defende a liberdade de expressão na


arte e, como diria Jorge Glusberg, “realiza uma crítica às situações da vida: a imposturas dos dramas
convencionais, o jogo de espelhos que envolvem nossas atitudes e, sobretudo, a natureza estereotipada
de nossos hábitos e ações”. Aí reside o seu ato transgressor diante de uma cultura que impõe ao corpo
suas convenções, tornando-o “alienado de si próprio”.

Quanto ao caráter de sua execução, a performance é uma arte puramente presencial, ou seja, o contato
no nível cognitivo-sensório prevalece sobre o racional, vivência que não se repete e ocorre naquele
momento único, importando, aí, muito mais o como do que o quê. Para Richard Scherchner, o mo-
mento é chamado de MultiplexCode, ou seja, aquilo que resulta de uma emissão multimídica (drama,
vídeo, imagens, sons, etc.), fazendo valer a importância daquela vivência entre performer e espectador
(1978, p. 13). Para Cohen, trata-se de uma linguagem de experimentação, destituída de compromis-
sos com a mídia, com o público ou com alguma ideologia engajada, aproximando-se muito mais da
anarquia, no que se refere ao resgate da liberdade criativa. A performance, neste sentido, visa libertar
o homem de suas amarras condicionantes, dos lugares comuns impostos pelo sistema. Devido ao
seu caráter transgressor, ela quase sempre provoca no espectador um estado de choque. Ela se coloca
enquanto arte de intervenção, que procura a transformação de quem a recebe, pois para ela não in-

690
teressa a fruição e nem ser estética. Na perspectiva de Glusberg, o que interessa fundamentalmente é
o processo de trabalho, sua sequência, aquilo que se caracteriza como seus fatores constitutivos e de
que maneira a performance se relaciona com o produto artístico. Ao espectador cabe a decodificação
dos movimentos, dos gestos, dos comportamentos, das distâncias, a fim de se colocar no tempo pró-
prio do artista. Vale ressaltar que, tanto em Cohen, quanto em Glusberg, o corpo do performer está
no centro de suas reflexões, seja este corpo em sua nudez, vestido ou nas possíveis transformações e o
trabalho desenvolvido a partir dele.

Aqui podemos citar um exemplo de desenvolvimento performático, no qual o corpo como um todo é
acionado para o acontecimento artístico. Trata-se de Jackson Pollock (2011, p. 44). Glusberg chama a
atenção para a inserção do corpo do pintor no espaço artístico. Embora o corpo não seja a obra em si,
Pollock não pinta apenas com as mãos e os braços, mas com todo o corpo, lançando-se sobre a lona.
Já o momento em que o corpo passa a ser a própria obra, vai ocorrer na bodyart. Outros processos
performáticos vão ocorrer. É ocaso da collage, a qual era utilizada na action painting, envolvendo a
colagem de imagens. Já os futuristas, dadaístas e surrealistas a utilizavam em outros contextos, e os
cubistas, através de materiais como: papéis, areia, panos, cartas e envelopes. Aqui chamamos a aten-
ção para o fato de a collage, à qual nos referimos na performance, refere-se à ideia de arte híbrida,
recorrendo à junção de elementos de várias artes na concepção de sua estrutura. Para as artes cênicas,
o termo relaciona-se não só ao processo de criação, mas também à elaboração final do espetáculo.
O mesmo pode ocorrer no performer, na medida em que ele, ao utilizar-se da ideia de hibridização,
conceberá determinados recortes do seu repertório corpóreo, vocal e visual, a fim de compor deter-
minado processo criativo.

A realização das performances em que me encontrava inserido ocorria nos mais variados espaços.
A cada situação criávamos, eu e meus amigos de cena, uma nova proposta cênica. As performances
dificilmente se repetiam, e se retomávamos alguma delas, já não se dava da mesma forma, pois eram
ressignificadas. Novos elementos cenográficos, sonoros, coreográficos, visuais e midiáticos eram inse-
ridos. As apresentações podiam ocorrer nos corredores do campus universitário, no centro da cidade
entre os transeuntes ou dentro do ônibus. Em alguns momentos, os elementos visuais predominavam.
Noutros, o corpóreo era a tônica. Nem sempre o espaço de realização da performance permitia o uso
de equipamentos eletrônicos ou a utilização de retroprojetores, por isso, criávamos cenas ou espetá-
culos alternativos, os quais podiam moldar-se a qualquer situação. Tais adversidades contribuíam no
aumento do nosso poder criativo, fazendo-nos explorar o nosso repertório adquirido nos laborató-
rios, nas oficinas, nos treinamentos e nos exaustivos ensaios.

Por trazer em sua natureza enquanto linguagem artística a hibridez, costuma-se aproximá-la muito mais
às artes plásticas. Isso se dá pelo fato de a performance oferecer à característica estática das artes plásticas
um dinamismo espacial, redimensionando-a. Neste sentido, o artista é ao mesmo tempo sujeito e objeto
de sua arte, como no caso da bodyart, por exemplo. É neste contexto que surge o performer.

Muitos artistas passaram a encarar a arte a partir das premissas da performance e da live art, a exemplo
de Isadora Duncan e Merce Cunninghan, que introduziram em seus repertórios de dança movimen-
tos e situações comuns do dia-a-dia, bem como a presença de personagens diárias em detrimento das
míticas e a presença de bailarinas fora dos padrões predefinidos pela dança. Naquele contexto, tais

691
“tipos” eram inconcebíveis na visão dos estetas. Na música, nomes como os de Satie, Stockhausen
e John Cage introduziram silêncios, ruídos e outros elementos adversos em suas obras. No caso de
Cage, ainda surge a aleatoriedade em seus “concertos”, como arte não intencional. Na literatura, temos
a escrita automática (jorros, fluxos) dos surrealistas e o fluxo vital da emoção e do pensamento de um
cidadão comum, no caso de Ulisses, de James Joyce. As modificações também surgiram nas artes cê-
nicas, que romperam com o formalismo e as convenções. A partir dos anos 1960, temos o surgimento
do happening e o teatro experimental de grupos (Living Theatre, La Mamma, dentre outros). Nas artes
plásticas, como aponta Cohen,

Esse processo de entropização é quase automático. Podemos citar todos os movimentos da arte mo-
derna (cubismo, dadaísmo, abstracionismo etc.) que guardam uma relação modificadora com o ob-
jeto representado.
É também nas artes plásticas que surge o conceito de action, painting passando pelos assemblages e
enviroments que vão desaguar na bodyart e na performance. (COHEN, 2011, p. 39).

No caso do termo entropia, presente na citação acima, significa a medida de desorganização, o au-
mento de desordem, gerando maiores graus de liberdade de criação. Quanto à live art, apesar de a
mesma buscar a aproximação entre vida e arte, por outro lado, ela diverge de qualquer movimento
que se queira “realista”, pois aí reside a morte do objeto, já que um quadro realista procura representar
o objeto da forma mais fiel possível. Portanto, a arte, na concepção da live art, entende que a obra de
arte tem vida própria e não se limita a representar qualquer objeto. Ela não é uma representação do
real, mas a reelaboração do real.

4. O ARTISTA E O ESPECTADOR – ENTRE DISTÂNCIAS E APROXIMAÇÕES

Ao levarmos em consideração o redimensionamento entre artista e espectador, provocamos a transgres-


são e proporcionamos à arte performática diferentes possibilidades de execução e concepção. De acordo
com as considerações de Jacques Rancière, quando se refere ao espectador, o mesmo procura redefinir
o conceito de espectador no intuito de emancipá-lo. Em outras palavras, necessitamos de um teatro sem
espectadores, um teatro em que o espectador deixe de submeter-se à ilusão ótica passiva provocada pelo
drama e o liberte da ignorância, da alienação. Deste modo, surge um teatro novo, no qual a ação dramá-
tica é reativada na performance. É a busca do retorno do objetivo primordial do teatro – a coletividade –,
a busca de seu sentido de assembleia, de comunidade. Por este motivo, Rancière procura resgatar aquele
ideal brechtiano de teatro em que, “os agentes do povo tomam consciência da sua situação e discutem os
seus interesses”, ou um teatro como aquele pensado por Antonin Artaud, em que se dá “o ritual purifi-
cador no qual uma coletividade é posta na plena posse das energias eu lhe são próprias”. Notemos aqui
as evidentes oposições entre o coletivo e o individual. O ato da representação e o ato da performance se
distinguem em suas intencionalidades. Se, por um lado, o teatro dramático se compromete aos apelos
da ilusão e do estado de passividade do espectador, por outro, a performance pretende desestabilizá-lo e
redimensioná-lo, a partir do momento em que visa o ideal do princípio de coletividade e a relação entre
o artista e o espectador, considerando esse espectador agente reflexivo. De acordo com Rancière:

O palco e a performance teatrais passam assim a ser uma mediação evanescente entre o mal do
espetáculo e a virtude do verdadeiro teatro. Cena e performance teatrais propõem-se ensinar aos

692
seus espectadores os meios e deixarem de ser espectadores e de se tornarem agentes de uma prática
colectiva. (RANCIÈRE, 2010, p. 15).

Mesmo diante da evidente preocupação de Rancière por uma arte que resgate seu ideal de coletivi-
dade, a performance é uma arte onde o que prepondera é o trabalho individual, bem como a inter-
venção do público ocorrer com menor intensidade do que no happening, por exemplo. Mas Rancière
anuncia uma importante indagação a respeito da relação da performance com o espectador. Para ele,
a performance não é a transmissão do saber ou do respirar do artista, pois, na lógica da emancipação,
existe, sempre, entre o mestre ignorante e o aprendiz emancipado, uma terceira coisa, algo que é es-
tranho para ambos, mas que os remete a uma verificação comum a partir do fenômeno artístico. Tal
proposição, em Rancière, pode ser compreendida como a recusa de utilizar a cena para impor uma
lição ou transmitir uma mensagem. E a partir do momento em que a performance procura “dilatar”
sua capacidade de liberdade expressiva, ao procurar romper com os “convencionalismos” do palco, a
estabelecer outras possibilidades relacionais com o espectador, a apropriar-se da rua, da cidade ou da
vida, enfim, a partir deste momento é que ocorre, segundo Rancière, a emancipação desse espectador.
E por isso mesmo, conclui, as histórias e as performances podem mudar qualquer coisa no mundo
em que vivemos. Apesar de constituir-se esta análise como algo um tanto sintética, atentemos para
o caráter de complexidade e abrangência que o consubstancia. Mesmo assim, procuramos fazer um
breve recorte dos elementos mais significativos para o referido estudo.

Ao redimensionarmos nosso olhar e partirmos do pressuposto de que o corpo resulta de cruzamentos


entre o visível e o invisível, daquilo que está em seu interior e o que está fora dele, passaremos a consi-
derá-lo não como um objeto, apenas, mas também como sujeito, como aponta Kuniichi Uno, quando
afirma que “O corpo é essa dupla realidade, ao mesmo tempo sujeito e objeto, meu exterior infinito e
meu interior como abismo sem fundo” (2014, p.41). Portanto, pressupomos não apenas a realidade apa-
rente de um corpo, mas uma multiplicidade resultante da “dobra de meu interior e de meu exterior, entre
o mundo e eu”. Essa presença corporal que transita entre realidade e ficção, a qual pertence à natureza
teatral, passa a ser o centro propulsor do artista cênico na contemporaneidade, pois é nela que as novas
propostas cênicas acontecem, pondo o drama em crise. Surgiram nomes como Bob Wilson, Tadeusz
Kantor e Pina Baush, por exemplo, que redimensionaram a cena a partir do corpo, da imagem, do mo-
vimento e de múltiplas experiências através dos recursos tecnológicos. Nisso consiste um novo olhar
teatral, em busca de ressignificar o seu passado, a fim de acomodar-se às expectativas atuais.

5. O CORPO HÍBRIDO NO PÓS-DRAMÁTICO

Atento aos novos rumos do teatro, Hans-Thies Lehmann propõe uma nova terminologia que pro-
vocará o rompimento com o drama. O seu “teatro pós-dramático” (1999) redimensiona o próprio
fazer teatral, afirmando que a cena não é mais concebida por um texto, mas a partir de múltiplas
textualidades. Lehmann não pretende negar o drama, porém percebe que o teatro “se vê impelido de
operar para além do drama, em um tempo após a configuração do paradigma do drama no teatro”.
Por isso mesmo que a cena passa a se configurar a partir de múltiplas dramaturgias, na qual o corpo
é completamente exposto e desnudado. O teatro pós-dramático entende o corpo e o processo de sua
observação como um objeto estético teatral. Consequentemente, no pós-dramático, o próprio corpo
se torna o centro propulsor da realidade e não a imitação desta. Ele representa corpos, e ao mesmo
tempo os têm como seu principal material de significação.

693
Outro fator importante é que, no teatro pós-dramático, o corpo ganha uma dimensão ritualística
multifacetada, favorecendo a pluralidade estética e semiótica, bem como infinitas leituras e interpre-
tações a partir da sua performance. Não é à toa que Lehmann busca restituir o caráter cerimonial das
primitivas manifestações cênicas. Para ele, no pós-dramático, a ação dramática é substituída, o que
caracteriza a procura do retorno dramático-cultural existente nos primórdios do teatro. Mas, “o que
se entende por cerimônia como fator do teatro pós-dramático é toda a diversidade dos procedimen-
tos de representação sem referencial, conduzidos, porém, com crescente precisão”. Como podemos
observar, o corpo em sua forma híbrida também se encontra no teatro pós-dramático, o qual resulta
da mistura entre as artes e a tecnologia.

6. A PROPÓSITO DO CSO

O corpo sem órgãos se refere a um corpo ilimitado, variado e livre de qualquer forma que o delimite;
um corpo muito mais comprometido com a noção de tempo do que com a de espaço. É um corpo
que se pretende pouco visível, mas nem por isso menos presente e sensível, ou como aponta Foucault:
“Um tal corpo vive e dá vida a um tal tempo, uma vez que, até então, estivemos tão preocupados com
o espaço e o território, assim como com as organizações e seus órgão” (2014, p.61). E tal fenômeno
pertence a uma rede móvel e instável de forças e não de formas.

O seu pensamento de Artaud está para além do teatro ocidental. Ele vai de encontro a uma cultura
linguística já sedimentada e desenvolvida em sua prática. Sua proposição transcende, indo de encon-
tro a uma nova visão de homem, de mundo e de vida. Por isso, tanto em Artaud como em Friedrich
Nietzsche estão postas em cheque a soberania do sujeito, assim como de qualquer outro poder cen-
tralizador, inclusive de Deus. Sua teoria do corpo sem órgãos contraria o pensamento cartesiano,
que discorre sobre o corpo-máquina. Se, em Descartes, o corpo é dado como extensão e pleno de
automatismos, em Artaud, tal automatismo é completamente abandonado. Outro termo utilizado por
Artaud e que extrapola o entendimento de corpo a partir de sua organicidade é o espessamento; te-
mos então, um corpo que não consiste simplesmente numa “concreção particular, numa acumulação
ou espessamento local”, como diz Uno.

O espessamento de que fala Artaud “evidencia tanto a distinção como a multiplicidade dos corpos”.
Uno ainda comenta sobre outra questão existente no universo filosófico de Artaud, que, para esta in-
vestigação, é muito importante ressaltarmos: é a ideia de “genital inato”. Quando Artaud faz uso deste
termo, ele o apresenta da seguinte maneira: “Eu sou um genital inato, ao olhar de perto, isso quer di-
zer que eu jamais me realizei […] Eu sou daqueles que para ser precisa escapar de seu inatismo”. Um
genital inato refere-se a alguém que procura um novo nascimento, desta vez por si mesmo, a fim de
excluir um inatismo. Afinal, se se é inato é que nunca se nasceu. Artaud, segundo Uno, declara, desde
o início, uma guerra singular contra os órgãos com o “corpo sem órgãos”. O que Artaud desejava era
fazer o corpo se desvencilhar da consciência de seu projeto ou do projeto de outro que tenta dominá-
-lo. Por isso, aí reside o cerne do problema:

Uma das obsessões mais fortes para Antonin Artaud era de que seu corpo não era nada além de um
autômato manipulado por Deus. Mas o que ele queria fazer não era destruir esse autômato manipula-
dor, mas se desvencilhar do autômato, de seu próprio corpo paralisado […] Os órgãos são execráveis na

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medida em que eles representam e articulam as ordens que determinam o autômato de Deus. É por isso
que Artaud comandaria a luta contra os órgãos durante toda a sua vida […] Essa guerra “para acabar
com o julgamento de Deus” é inspirada sobretudo pela questão do corpo, aquela do genital inato, do
automatismo que exclui a determinação, e não aquela que provem dos outros, que vem principalmente
das instituições e tecnologias visíveis ou invisíveis para gerar o corpo (UNO, 2012, p. 60).

As influências do pensamento Artaudiano nas concepções sobre o corpo em Gilles Deleuze e Felix
Guatarri são fundamentais. Quando defendem a ideia daquilo que chamaram de “corpo intensivo”,
partem do princípio do dramaturgo francês, em que, se o corpo não tem órgãos: o corpo é matéria
intensa, não formada e não estratificada, no qual a matéria equivale à energia; um corpo como inten-
sidade e não como um organismo determinado pelas leis da evolução natural. Portanto, o olhar de
Deleuze e Guatarri busca substituir a concepção mecânica e biológica dos corpos orgânicos pela con-
cepção cinética e dinâmica de um corpo complexo e plural de intensidades. Para ambos, o organismo
não é corpo, mas um “fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe
formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências, organizadas
para extrair trabalho útil”.

O que eles chamam de CsO (corpo sem órgãos), trata-se de um estrato do corpo, ou seja, um fenômeno
composto de acúmulos, coágulos, sedimentação, a impor-lhe forma, função, ligação, organização, dadas
através de organizações de dominação, de controle e que se apoia em determinada hierarquia de poder,
numa transcendência organizada, a fim de explorar a utilidade deste corpo. É assim que nossos órgãos
se tornam nossos inimigos. Para melhor entender tal proposição, vejamos o que diz Rafael Trindade:

A vida torna-se fraca, o desejo é canalizado, tudo trabalha pela produção, pela finalidade. Já vimos como
o desejo para Deleuze não é falta, é produção, mas o corpo, afastado daquilo que pode, perde sua capaci-
dade revolucionária e se torna doente, perde sua capacidade de criar o real para aceitar a vida medíocre
que lhe dão. A alternativa de Deleuze está em criar para si um Corpo sem Órgãos (TRINDADE, 2013).

Quando o corpo passa a ser um organismo, este ganha utilidade e é inserido na sociedade com o
intuito de realizar determinadas atividades. O desejo passa a ser manipulado, os órgãos capturados e
determinados por uma lógica capitalista. Isso ocasiona a sensação de fraqueza e infelicidade. Os ór-
gãos se tornam nossos inimigos. Por isso, Artaud passa a declarar guerra aos próprios órgãos. A vida
perde o sentido, o desejo é canalizado, importando a produção para determinados fins. Isso ocasiona
a perda da capacidade de criar o real, para aceitar a vida medíocre. Deleuze e Guatarri veem o CsO
como inimigo do organismo. O CsO pretende se livrar da organização produtiva em que foi inserido,
em busca de produzir outras realidades, contrapondo-se ao adestramento. O corpo, que se encontra-
va doente, preso à rotina anestésica, passa a se tornar intensivo com a criação do CsO. A ética vence
a moral. O corpo desperta para uma nova vida, motivada por um conjunto de sensações. O CsO
procura outras formas de viver e de se expressar, de sentir a vida; tudo que fuja à vida anestesiada e
produza intensidade. De acordo com Deleuze e Guatarri,

Seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda
suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimen-
tação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude
e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide (DELEUZE & GUATARRI, 2010).

695
Trago para o contexto das minhas preocupações no campo teatral e performático nomes como Ar-
taud, Deleuze e Guatarri, com o intuito de poder melhor refletir tais questões. Como apontei no início
deste estudo, Artaud também exerce papel importante às minha criações artísticas. O sentido ritua-
lístico e de ruptura radical às imposições de qualquer ordem de controle sobre o corpo estão no cerne
da performance, em sua gênese transgressora. Por isso mesmo, não poderia deixar de citá-lo, uma vez
que o conceito por ele empreendido, e ressignificado em Deleuze e Guatarri, consubstanciam-se em
importante investigação naquilo que entendo como corpo híbrido.

Em dado momento das minhas descobertas, deparo-me com as considerações de outro teórico sobre
o teatro e a performance. Trata-se de Matteo Bonfitto. Para ele, ambos se encontram sobre a perspec-
tiva do “entre” e tornam-se resultantes de tantos caminhos que procuram a transformação do espaço,
do tempo, dos corpos, do sentido, do mundo. Em outras palavras, afirma:

Aos atores e performers cabe investigar a condição humana, os mundos e as coisas, nossos mo-
dos de percepção, ação e relação; o trabalho diário é o de explorar e dar a conhecer “entres” a
partir de encontros consigo, com o outro, com seres ficcionais, com motes composicionais, com
programas performativos; com o espectador…com os mundos, suas histórias, forças, corpos.
(BONFITTO, 2013).

Ao seguirmos as trilhas de Bonfitto, mergulhamos mais profundamente quando ele aponta a impor-
tância que há para os estudos das artes cênicas, da performance e dos híbridos a necessária ampliação
das relações entre a cena artística e a cena acadêmica, quando da valorização do artista-pesquisador.
Mas este é outro assunto. Por ora, atentemos para alguns aspectos aqui apontados, que se tornam
fundamentais à análise desenvolvida: a preparação artística e o treinamento corporal constituinte do
trabalho do ator e do performer; o aspecto híbrido na corporeidade do artista da performance, fazen-
do confluir o encontro e o cruzamento de elementos artísticos diversos; as possibilidades discursivas
presentes no desenvolvimento das performances e nas interrelações entre performer e espectador; as
relações de poder e de emancipação aí implicadas durante o ato performático. Como exposto, outras
possibilidades podem emanar se buscarmos intersecções entre os aspectos apontados, reafirmando,
assim, a complexidade e riqueza dadas ao assunto em tela.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As referências aqui expostas ocorreram no intuito de estabelecer alguma possibilidade de diálogo


com as minhas vivências enquanto artista das artes cênicas, com a possibilidade de existência de um
corpo híbrido gerado a partir do cruzamento entre as linguagens artísticas e as novas tecnologias.
No entanto, a fim de estabelecer tal diálogo, foi-me preciso desfazer o novelo das minhas memórias
para se chegar ao cerne do meu corpo híbrido. Aqui foram apresentadas algumas experiências que
ocorreram na minha formação artística, naqueles períodos em que me confrontei com determinadas
teorias, métodos e sistemas. Nomes como os de Eugênio Barba, Jerzy Grotowski, Peter Brook, Au-
gusto Boal, Viola Spolin, dentre outros, e experimentações nos campos do teatro, da performance, da
música, da dança e da ópera, amarraram os laços dos fios, os quais se consubstanciaram em hibridis-
mos corpóreos artísticos que residem em mim. Assim, a realidade da vida e a vida da arte puderam se
refletir uma na outra, multitiplando-me.

696
A partir dos estudos de Renato Cohen, Jorge Glusberg, RoseLee Goldberg, entre outros, foi-me pos-
sível estabelecer as particularidades referentes à performance, uma vez que, busquei traçar algumas
diferenciações na utilização das técnicas corpóreas em função do trabalho do ator e do trabalho do
performer. De acordo com aquilo que expus ao longo da análise, as vivências e disposições que estabe-
leci no ato criativo dessas técnicas, métodos e estudos oferecidos por tantos encenadores, dramatur-
gos e estudiosos do teatro e da performance, tiveram trajetórias distintas. Enquanto ator, a construção
parecia muitas vezes limitadora e determinista, pelo fato de que tais conhecimentos adquiridos não
permitiam ir muito além daquilo que exigia as personagens. Por outro lado, ao deparar-me com a
linguagem da performance, tal corpo estabelecia outros parâmetros de construção artística. Agora já
não me limitava às rubricas e as determinações impostas pela personagem, mas tinha a meu dispor a
mim mesmo. Dava-se, portanto, aquele fenômeno da existência de um possível corpo híbrido gerado
em meu corpo.

Agora entendo que de nada valeria uma práxis destituída de quaisquer relações com os estudos, as
teorias e os relatos de outras experiências aqui apontadas. Por outro lado, percebo serem insuficientes
os que cá estão pelo simples fato de não caber em tão breve análise. E mesmo tantos outros conheci-
mentos se encontrar num porvir a meu caminhar, o qual, aliás, está longe de chegar ao fim. Falta-me
muito. Mas o ato de criar e doar-se na arte tem o sabor de uma peregrinação. Então, sou um peregrino.

REFERÊNCIAS

ARTAUD, A. Escritos de Antonin Artaud. Org. Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1983.
BARBA, E. & SAVARESE, N. A arte secreta do ator: Dicionário de Antropologia Teatral. São Paulo: Editora
Hucitec/Editora da Unicamp, 1995.
BONFITTO, M. Entre o ator e o performer. São Paulo: Perspectiva, 2013.
CARDIM, Neves L. Corpo. São Paulo: Editora Globo, 2009.
CYPRIANO, Adriano. Performer nitente. São Paulo: Perspectiva, 2016.
DELEUZE, G.; GUATARRI, F. O Anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Perspectiva, 2010.
COHEN, R. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.
FERNANDES, S. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FOUCAULT M. A história da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2014.
GREINER, C. O corpo: pistas para estudos interdisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
GLUSBERG, J. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2005.
PAVIS, P. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008.
QUILICI, Sydow C. O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.
TRINDADE, R. Deleuze: corpo sem órgãos. Razão inquietada, 14 abr. 2013. Disponível em: <https://razaoina-
dequada.com/2013/04/14/deleuze-corpo-sem-orgaos/>. Acesso em: 18 abr. 2016.
UNO, K. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

697
Processos interdisciplinares no
ensino/aprendizagem
do teatro na escola
Benedito José Pereira

1. A INTERDISCIPLINARIDADE: ORIGEM E SIGNIFICAÇÃO

Neste artigo, iremos tratar das categorias teóricas Interdisciplinaridade e Ensino do Teatro e de como
elas estão relacionadas na prática de ensino de teatro na escola. Trataremos disso dentro de um con-
texto pleno de inquietudes, de perplexidades, pela realidade muito complexa que vivemos, onde mui-
tas perguntas são formuladas e poucas respostas obtidas.

Com essa perspectiva, iniciaremos esse artigo, tratando da interdisciplinaridade, sua origem e sua sig-
nificação dentro do um contexto escolar positivista que tenta se modernizar, acompanhando o ritmo
imposto pela sociedade, que exige menos fronteiras na organização disciplinar das escolas.

De acordo com Morim (2002), a organização disciplinar dos processos de ensino-aprendizagem nas
instituições de ensino se deu no século XIX, com a formação das universidades, mas se desenvolveu
depois que foi dada a devida importância à pesquisa científica.

A disciplina é uma categoria que foi organizada no bojo das múltiplas áreas de ensino e de conhecimen-
to que compõem as ciências, com o objetivo de facilitar os processos de estudos, pesquisas e aprendiza-
gem, partindo sempre do fragmento para o todo. No que se refere a isso Japiassu irá afirmar que:

Por conseguinte, o que podemos entender por disciplina e por disciplinaridade é essa progressiva
exploração científica especializada numa certa área ou domínio homogêneo de estudo. Uma disci-
plina deverá, antes de tudo, estabelecer e definir suas fronteiras constituintes. Fronteiras estas que
irão determinar seus objetos materiais e formais, seus métodos e sistemas, seus conceitos e teorias
(JAPIASSU, 1976, p. 61).

A disciplina, portanto, foi adotada como uma forma de organizar as práticas pedagógicas e científicas,
delimitando o campo da ação investigativa, seu locus e objeto. Ela passou a compor um conjunto de
estratégias, para selecionar os mais diversos conhecimentos, de uma maneira ordenada e comparti-

698
mentada, entendendo-se que assim facilitaria a vida do educando, nas escolas, e os processos didáti-
cos e metodológicos do ensino e da avaliação.

Entende-se melhor o termo interdisciplinaridade a partir da compreensão do que vem a ser disci-
plina, responsável pelo desenvolvimento das ciências, assim como também do desenvolvimento do
pensamento humano. Sobre isso, Japiassu (1976) registra o seguinte:

Ora, falar de interdisciplinaridade é falar de interação de disciplinas. E disciplina, tal como enten-
demos, é usada como sinônimo de ciência, muito embora o termo “disciplina” seja mais empregado
para designar o “ensino de uma ciência”, ao passo que o termo “ciência” designa mais uma atividade
de pesquisa (p. 61).

Ratificando o que estamos afirmando, Fazenda (1998, p. 66) diz que “a indefinição sobre Interdiscipli-
naridade origina-se ainda dos equívocos sobre o conceito de disciplina”. Muitos confundem o fazer
e o pensar interdisciplinar. Entretanto, a interdisciplinaridade acontece quando se estabelece uma
relação de interação entre uma ou mais disciplinas. Essa interação se efetua com o objetivo de dar um
novo rumo ao ensino formal, pois a disciplinarização vem dificultando a aprendizagem e desestimu-
lando o desenvolvimento da inteligência, tornando difícil para o educando a resolução de problemas
e a conexão entre os fatos e conceitos estudados, como bem afirma Morim (2000, p. 45): “O parcela-
mento e a compartimentação dos saberes impedem apreender o que está tecido junto”.

É neste contexto e na busca de novos mares, novas trilhas, novas tessituras educacionais que a in-
terdisciplinaridade surge como uma opção pedagógica, indicando novos rumos em busca de uma
educação integral. Uma inovação que garante práticas e sequências didáticas mais atraentes, elegendo
o diálogo em detrimento do monólogo tão em voga nas salas de aula.

Na introdução do seu livro Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro – efetividade ou ide-


ologia, Fazenda (2002) afirma que interdisciplinaridade é muito mais que um slogan, é uma atitude
inovadora diante do conhecimento a ser construído.

Aprendemos, desde cedo, na escola, que “inter” é um prefixo de origem grega. Ele antecede o radical
de uma palavra para dar-lhe um novo sentido e que, segundo Ximenes (2001), designa reciprocidade
e posição intermediária. Enquanto “disciplina”, de acordo com Ferreira (2000), significa ordem, su-
bordinação, submissão, respeito às regras e normas estabelecidas, regulamento.

Assim, o prefixo “inter” se junta à palavra “disciplina” para formar a palavra: “interdisciplinaridade”.
Esta, derivando do termo “interdisciplinar”, acaba estabelecendo um novo conceito de prática peda-
gógica, que inova os seus processos educacionais, significando uma ação comum de estudo, investi-
gação realizada, utilizando, como base, pelo menos, duas ciências, áreas de conhecimento ou discipli-
nas, caracterizando, assim, uma prática interdisciplinar, como afirma Ximenes (2001).

De acordo com essa perspectiva, percebe-se que a união desse prefixo que nos passa a ideia “de den-
tro” se completa com o verbo “disciplinar”, trazendo o verdadeiro sentido pedagógico de formar,
informar pelo nexo dado às ações formativas, envolvendo os aprendizes entre si, entre o meio e as

699
disciplinas e/ou conhecimentos necessários ao saber não compartimentado em gavetas, que, quase
sempre, estão sob a tutela de especialistas de áreas específicas.

2. A INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO DE TEATRO: ROMPENDO A FRAGMENTAÇÃO

No entendimento de Fazenda (2002), o processo interdisciplinar propõe investigação rigorosa e pro-


funda. O seu emprego na área da Arte/Educação, no ensino de Teatro, pode resultar em uma trans-
formação da realidade que vivemos nas escolas, envolvendo todos os seus atores, principalmente
educandos e educadores, pois ela pode criar pontes para a construção de uma nova realidade. Uma
realidade que se insurge contra esta que estamos vivendo.

Dessa forma, o processo interdisciplinar deixou de ter apenas uma abordagem filosófica, sociológica
ou humanista, nos anos 1970, quando passou a ser estudado, cientificamente, no campo das Ciências
Humanas. Ele chega à nossa educação nos anos 1980, aportando no Brasil através dos estudos desen-
volvidos por Georges Gusdorf e por Jean Piaget, sendo que o primeiro autor influenciou os brasileiros
Hilton Japiassu, no campo epistemológico, e Ivani Fazenda, no campo da Educação, de acordo com
afirmações dos mesmos.

Portanto, os processos interdisciplinares, mesmo originando-se a partir da disciplina, propõem a


superação da Disciplinaridade, ou da fragmentação do saber nas áreas de estudo e pesquisa, partindo
do micro, retornando ao todo e rompendo com o limite proposto pelas disciplinas curriculares. São,
na verdade, uma estratégia pedagógica que assegura, aos educandos, competências e habilidades para
utilizar conhecimentos que lhes permitam, de uma maneira holística, desenvolver atividades, utili-
zando um conhecimento global, a partir das exigências que a sociedade contemporânea hoje nos faz.
Assim sendo, esses processos podem, de acordo com o nível de colaboração, coordenação e par-
ceria, promover uma maior interação entre sujeitos e objetos, resultando na construção de um
saber relacional, integral, unitário e totalizante.

Com esse mesmo entendimento, localizamos o seguinte conceito de outro estudioso dessa área, to-
mando como base teórica os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).

[...] a interdisciplinaridade é entendida no PCN do ensino médio como função instrumental de uti-
lizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender
um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista, a partir de uma abordagem relacional [...]
(KAVESKI, 2005, p. 128).

De acordo com os PCN, os educandos na área das Artes deverão expressar o que pensam e sentem,
de alguma forma, através das suas criações e expressões artísticas. Dessa forma, a Arte na Educação
teria o objetivo de auxiliar estes educandos a se desenvolverem, livremente, ativando a criatividade e
a cognição, desenvolvendo o pensar, o fazer e o analisar artístico, aumentando a sensibilidade, a per-
cepção, a criticidade e a imaginação.

Muitos pesquisadores, a exemplo de Ivani Fazenda, afirmam que o conceito de interdisciplinaridade ain-
da não é dominado por todos que circulam nesse território movediço. Para um melhor entendimento,

700
transcrevemos uma das suas afirmações sobre essa categoria científica: “O termo interdisciplinaridade
não possui ainda um sentido único e estável. Trata-se de um neologismo cuja significação nem sempre é
a mesma e cujo papel nem sempre é compreendido da mesma forma” (FAZENDA, 2002, p. 25).

Ela ressalta, ainda, que os preconceitos positivistas e cientificistas que dão suporte ao nosso modelo
educacional fazem com que sejam criadas, acriticamente, ilhas epistemológicas. Estas só fazem acen-
tuar o fosso social e cultural entre ricos e pobres.

Assim, podemos afirmar, com base nos estudos dessa pesquisadora e nos postulados de Japiassu
(1976), Piaget (1969; 1973; 1981), Kaveski (2005) e Morim (2007; 2011), que a categoria interdiscipli-
naridade é a interação de saberes ou de disciplinas científicas, os seus conceitos e diretrizes, a metodo-
logia aplicada a elas, os procedimentos adotados, os dados levantados e a organização do seu ensino.
Em sua obra Interdisciplinaridade: história teoria e pesquisa, Fazenda (2012), reforça a crença de que
a interdisciplinaridade é um processo muito rico, vigoroso e de longo alcance pedagógico. Contudo,
ele tem que ser exercitado, vivenciado. Ela afirma que as ciências vivem uma crise, reconhecida por
diversas escolas de pensamento, nos mais diversos países e que esta crise poderia ser enfrentada com
mais facilidade pela Interdisciplinaridade, quando afirma o seguinte:

Fala-se em crise de teorias, de modelos, de paradigmas, e o problema que resta a nós educadores é o
seguinte: É necessário estudar a problemática e a origem dessas incertezas e dúvidas para se conceber
uma educação que as enfrente. Tudo nos leva a crer que o exercício da interdisciplinaridade facilitaria
o enfrentamento dessa crise do conhecimento e das ciências, porém é necessário que se compreenda
a dinâmica vivida por essa crise, que se perceba a importância e os impasses a serem superados num
projeto que a contemple (FAZENDA, 2012, p. 14).

Em pleno século XXI, ainda convivemos com práticas didáticas que utilizam disciplinas e fragmentos
científicos ou das áreas do saber humano, gerando um conhecimento especializado que não foca no
todo, prejudicando a construção do conhecimento dentro das salas de aula das nossas escolas.

3. MODALIDADES INTERDISCIPLINARES

O termo Interdisciplinaridade, como já vimos, tem como origem a Disciplinaridade, ou seja, a relação
ou interação que se estabelece entre as disciplinas, conhecimentos ou áreas de conhecimentos e por
conta da complexidade dos níveis dessa interlocução foram criados outros termos para identificá-los.
Estes indicam os diversos níveis interdisciplinares, para diferenciar o grau de coordenação, integra-
ção, relação, colaboração, parceria e interação entre duas ou mais disciplinas.

Japiassu (1976), o introdutor dos estudos interdisciplinares em nosso país, define esses níveis, tam-
bém os denominando de acordo com os objetivos, intensidade das trocas e o grau de integração que
se estabelece entre as disciplinas. Essas denominações variam no mundo todo, porque:

O problema maior reside no próprio conceito de interdisciplinaridade. Trata-se de um conceito que


varia, não somente no nome, mas também naquilo que ele significa (conteúdo). No relatório funda-
do sobre os resultados de um Seminário sobre a Interdisciplinaridade nas Universidades, organizado
pelo CERI (Centre pour la recherche et l’innovation dans l’enseignement), com a colaboração do

701
Ministério Francês da Educação Nacional (realizado em Nice, de 7 a 12 de setembro de 1970), e
publicado pelo OCDE em 1972, com o título L’interdisciplinarité : problèmes d’enseignement et de
recherche dans les universités, e que reflete as principais tendências dos pesquisadores atuais, pode-
mos verificar a variação de nomenclatura e de conceitos (JAPIASSU, 1976, p. 77).

Com esse mesmo entendimento, Guimarães (2005) diz que não existe um consenso no que se refere
às terminologias, nomenclaturas e termos utilizados para definir esses níveis de interação e suas mo-
dalidades, pois diferentes classificações e autores são encontrados, gerando polissemia.

Tentando harmonizar as terminologias existentes, Guimarães (2005) se baseia nas definições de Ja-
piassu (1976) e Santomé (1998) para apresentar nomenclaturas que ela considera adequadas aos pro-
cessos interdisciplinares, registrando isso no seu artigo “Currículo e sociedade”, publicado na revista
Dialogia, da Universidade 9 de julho (UNINOVE), em São Paulo.

A partir dos estudos desenvolvidos por Japiassu (1976) e Guimarães (2005), passamos a apresentar
os cinco níveis ou modalidades interdisciplinares defendidos por esta autora, acrescentando a eles a
Disciplinaridade, por compreender que esta é o nível ou a modalidade 1 do processo interdisciplinar,
pois não existiria Transdisciplinaridade, se não houvesse ela para evocar a outros níveis ou modalida-
des interdisciplinares.

3.1. Disciplinaridade

De acordo com diversos autores, Disciplinaridade seria, portanto, “a exploração científica especia-
lizada de determinado domínio homogêneo de estudo, isto é, o conjunto sistemático e organizado
de conhecimentos que apresentam características próprias nos planos do ensino, da formação, dos
métodos e das matérias” (p. 72). Japiassu (1976) acrescenta, ainda, que essa exploração se dá em áreas
definidas, onde se estabelecem fronteiras que determinam seus objetos de estudo.

Único nível e objetivo único, com fronteiras


distintas, a partir da fragmentação proposta
pelo currículo escolar.

3.2. Multidisciplinaridade

Guimarães (2005) e Japiassu (1976) entendem que a Multidisciplinaridade é caracterizada pela jus-
taposição de disciplinas. Esta é bastante utilizada nas escolas, pois não explora a relação interdisci-
plinar, respeitando as caixinhas da Matriz Curricular (Mc), pois, quem ensina Português ou outras
disciplinas, como História e Matemática, por exemplo, se limita a isso, inibindo quaisquer tipos de
cooperação entre estas e outras disciplinas, conforme é apresentado no esquema abaixo.

Único nível e objetivos múltiplos, mas sem


cooperação. As disciplinas não se relacionam.
Não é realizado um processo interdisciplinar.

702
3.3. Pluridisciplinaridade

Já a Pluridisciplinaridade, que representa o nível três, implica em algum nível de interação, pela proxi-
midade e justaposição das disciplinas. Há uma troca de conhecimentos, muito embora estes conheci-
mentos estejam num mesmo patamar hierárquico, como representa o esquema que apresentaremos a
seguir. Como exemplo, podemos citar o ensino de Língua Portuguesa, usando textos teatrais e poemas.

Único nível e de objetivos múltiplos,


estabelecendo relações, com cooperação, mas
sem coordenação.

3.4. Disciplinaridade Cruzada:

A Disciplinaridade Cruzada, modalidade proposta por Guimarães (2005), tem como base uma postu-
ra de forças, porque não existe um equilíbrio na comunicação e uma disciplina tem domínio sobre as
outras. Como o ensino de Arte, utilizando o conhecimento de Língua Portuguesa e de História. Nesta
modalidade, Arte dialoga com Língua Portuguesa e com História, mas História não dialoga com Arte
e vice-versa, conforme apresentamos nesse esquema.

Único nível e objetivo com controle disciplinar


de uma disciplina sobre as outras.

3.5. Interdisciplinaridade

A Interdisciplinaridade, ao contrário da anterior, promove uma rica interação, provocada por um axioma,
ou seja, um significado ou postulado comum às disciplinas; e “implica uma vontade e compromisso de ela-
borar um contexto mais geral, no qual cada uma das disciplinas em contato é modificada e passa a depen-
der uma da outra”. (GUIMARÃES apud SANTOMÉ, 2005, p. 75), como ilustra o esquema que se segue.

Dois níveis e objetivos múltiplos, com


coordenação de nível superior e com
axiomática comum.

3.6. Transdisciplinaridade

Contudo, a Transdisciplinaridade, de acordo com essa mesma autora, “É o nível [modalidade] supe-
rior dos processos interdisciplinares, considerando objetivo e coordenação, onde desaparecem os li-
mites entre as diversas disciplinas, que se comunicam, entre si, de forma harmoniosa e se constitui um

703
sistema total que ultrapassa o plano das relações e interações entre tais disciplinas” (GUIMARÃES,
apud SANTOMÉ, 2005, p. 75). Como demonstramos nesse esquema.

Múltiplos níveis e objetivos, com


coordenação, usando finalidade geral
sobre a base de uma axiomática

Na Transdisciplinaridade identifica-se, portanto, a cooperação e o diálogo entre as disciplinas através


de ações coordenadas, em seus diversos níveis, que possuem um eixo ou elemento integrador único,
um axioma geral, que é a base para o desenvolvimento dos estudos ou pesquisas, gerando um conhe-
cimento integral.

Em seus estudos, Japiassu (1976) adota esse termo, justificando os motivos, afirmando que a Trans-
disciplinaridade representa uma integração disciplinar que ultrapassa a Interdisciplinaridade e que
vem sendo proposta no campo científico ou epistemológico, porque, de acordo com ele, representa
a coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas do sistema de ensino inovador, gerando uma
interpretação mais holística dos fatos e fenômenos estudados.

No que se refere ao objeto, às ciências, ao conhecimento, à educação e a Interdisciplinaridade, Fazenda


(2012) vem contribuir com a seguinte reflexão:

A ambiguidade própria do caráter interdisciplinar evidenciar-se-ia hoje mais na polêmica objeto e


campo das ciências, e no papel e valor do conhecimento. A dúvida conceitual ainda é quem alimenta
e direciona a discussão dos projetos interdisciplinares autênticos. Assim como a interdisciplinaridade
torna-se a grande responsável pelo movimento de redimensionamento teórico das ciências e pela
revisão dos hábitos de pesquisa, ela poderia constituir-se naquela que propugnaria novos caminhos
para a educação (FAZENDA, 2012, p. 23).

4. ARTE/EDUCAÇÃO: PRÁTICAS INOVADORAS PELA INTERAÇÃO ENTRE DISCIPLINAS,


ÁREAS DE CONHECIMENTO E LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Na área da Arte/Educação, pesquisas desenvolvidas por Ana Mae Barbosa apontam o processo in-
terdisciplinar como uma das formas de permitir uma interação maior entre a Arte, suas linguagens,
as disciplinas e outras áreas do conhecimento. Ela afirma que a abordagem contextualista “enfatiza
as consequências instrumentais da arte na educação, baseando a dinâmica interativa entre objetivos,
métodos e conteúdos na necessidade da criança” (1988, p. 54).

Ainda com relação a essa questão, essa autora afirma que a prática interdisciplinar garante a constante
reconstrução humanística necessária para responder a arguição que a pós-modernidade nos faz.

704
A interdisciplinaridade é a condição epistemológica da pós-modernidade, e a interculturalidade, a
condição política da democracia. A aliança entre essas duas condições basilares da vida, contemporâ-
neas às tecnologias flexíveis e multiplicadoras, garantirá um humanismo em constante reconstrução
para responder às imponderáveis e permanentes mudanças sociais (BARBOSA, 2010, p. 111).

Dessa forma, a interação de conteúdos vem propor uma prática interdisciplinar, que a Proposta
Triangular dessa autora já previa. Essa interação vem acontecendo, sobretudo, depois que a Arte foi
reconhecida como uma importante área de conhecimento da educação formal, sendo incluída na
grade curricular do ensino público, depois de muitos embates desenvolvidos por arte/educadores e
pelas entidades representativas da sociedade civil organizada, que lutaram para que isso acontecesse.
Enquanto área de conhecimento, a Arte vem se firmando como um porto seguro: espaço de estudos,
de pesquisa e reflexões apropriadas para dar liga ao amálgama de uma pedagogia inovadora para
Teatro, Dança, Música e Artes Visuais, principalmente para aqueles que compreendem o processo
ensino/aprendizagem, dentro de uma perspectiva que foge dos paradigmas reguladores do ensino
tradicional, incentivando a autonomia e o sentimento de pertença.

Essa autonomia vai se expandido em toda a área de atuação do educando, porque as aprendizagens e
as construções que são desenvolvidas se ampliam naturalmente, ativando a sua cognição. O educando
vai encontrando significação para os processos de aprendizagem que estão sendo vivenciados por ele,
construindo livremente conhecimentos do seu interesse, a partir das necessidades que surgirem.

Entretanto, o currículo tem se constituído em um elemento que dá suporte à prática tradicional, de


ranço positivista, na medida em que propõe e configura métodos, atividades em disciplinas e áreas que
possibilitam a geração de conhecimentos, competências e habilidades, de uma maneira fragmentada e
pouco sedutora, pois não considera a individuação e a autonomia do educando para trafegar, entre os
conteúdos escolares que para ele tenham significado, de acordo com a sua cultura e necessidades.

Contudo, a dinamização desse currículo pode desaguar em práticas pedagógicas mais arejadas, pois,
transformado, ele não será utilizado como um elemento que define e amarra conhecimentos que de-
verão ser transmitidos aos educandos.

Todavia, sem a interferência do docente na contextualização das práticas propostas, o currículo, por si
só, mesmo dinamizado, não irá possibilitar a construção do conhecimento e de uma identidade cul-
tural do educando em seu aspecto global. A respeito dessa interferência, afirma Macedo (2011, p. 26):

O fato é que professores e educadores em geral, nos seus cenários formativos, atualizam, constro-
em e dão feição ao currículo, cotidianamente, relacionalmente, tendo como seu principal objetivo a
formação de seus processos de interpretação e veiculação, daí sua inerente complexidade. Há uma
costura, uma forma de tecer a formação cuja compreensão não é possibilitada por um documento
apenas, por mais que os documentos educacionais, não só a proposta curricular, digam muito sobre
o currículo, sua concepção e prática. É nestes termos que o currículo se atualiza como um fenômeno
complexo no sentido moriniano.

O que se percebe nas escolas é que a prática de Educação Artística se desenvolve de forma incom-
pleta, esquecendo-nos na maioria das vezes dos múltiplos aspectos que essa prática deve considerar,

705
desvinculando-se, portanto do seu verdadeiro papel e o que é pior, amparada por uma interpretação
equivocada do currículo.

5. ROMPENDO AS FRONTEIRAS PELA TRANSVERSALIDADE CURRICULAR

No campo da Arte/Educação, os limites das fronteiras entre as diversas mediações e linguagens são
muito tênues, porque o ensino contemporâneo propõe conexões e interconexões que provocam fric-
ções e tensões significativas, quando se estabelecem as interlocuções nos mais diversos níveis; seja
através dos diálogos que acontecem entre as linguagens artísticas, entre outras disciplinas, ou até
entre as áreas do saber, promovendo colaboração ou parcerias firmadas nos mais diversos domínios
territoriais, para dar conta de uma aprendizagem global, porque é da natureza da contemporaneidade
o trânsito entre as diversas áreas de conhecimento.

A Arte/Educação, para manter e incentivar as artes vivas e pulsantes no fazer e construir representa-
ções do conhecimento de mundo dos educandos, expressando seus sentimentos nas escolas, necessita
desafiar os limites impostos pelo currículo, às fronteiras estabelecidas pela Disciplinaridade aos diver-
sos territórios que compõem o conhecimento humano, seja dentro de uma proposta contextualista ou
essencialista, estabelecendo relações entre as diversas disciplinas curriculares e/ou áreas de conheci-
mento. Com esse mesmo entendimento, Barbosa (2008, p. 25) afirma que:

Na escola, as artes não devem ter seu espaço específico como disciplinas no currículo, embora ensi-
nadas por meio da experiência interdisciplinar, mas também lhes cabe transitar por todo o currículo,
enriquecendo a aprendizagem de outros conhecimentos, as disciplinas e as atividades dos estudantes.
Estamos falando do que oficialmente se designou transversalidade curricular, um termo que o edu-
cador espanhol César Coll copiou para os Parâmetros Curriculares brasileiros do Currículo Nacional
da Inglaterra, o qual criou as disciplinas e temas cross-curriculum.

Essa autora afirma, também, que é preciso utilizar a Interdisciplinaridade no ensino de artes “[...] para
provocar a capacidade de estabelecer relações, assim como é recomendável introduzi-la transversal-
mente em todo o currículo provocando a imbricação de territórios e a multiplicação de interpreta-
ções” (BARBOSA, 2008, p. 26).

O espaço que se pretende nesse tempo é um espaço de liberdade e autonomia, onde os educandos se
posicionem como sujeitos de um processo interdisciplinar que dá conta de uma formação integral,
crítica e cidadã, através de uma prática dialógica, que se baseia na construção permanente do saber.
Os processos interdisciplinares podem promover um ensino/aprendizagem inovador, onde os terri-
tórios disciplinares se fundem nos seus mais diversos níveis e as diferentes culturas se aproximam,
facilitando os processos de construção de novos saberes, promovendo a autonomia e o respeito à
individuação, onde a matética se sobrepõe à didática, numa área de conhecimento que se firma en-
quanto ciência.

Assim, essa Pedagogia do Teatro, fundindo autonomia com libertação, individuação e interlocução
entre disciplinas, territórios e culturas distintas, pode cumprir o seu papel, educando o cidadão para
a vida e abrindo uma nova perspectiva para o ensino/aprendizagem de Teatro nas nossas escolas.

706
REFERÊNCIAS

BARBOSA. A. M. (Org.). A compreensão e o prazer da arte. São Paulo: SESC Vila Mariana, 1998.
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SANTOMÉ, J. T. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artes Médicas Sul
Ltda., 1998.

707
O pensamento complexo e
a interdisciplinaridade no ensino
de artes visuais em escolas
de referência no Recife
Janilson Lopes de Lima

1. QUEBRANDO O PEDESTAL

A espessura das evidências foi destruída, a tranquilidade das ignorâncias foi abalada, as alternativas
ordinárias perderam seu caráter absoluto, outras alternativas se desenham; a partir disso, o que a
autoridade ocultou, ignorou, rejeitou, sai da sombra, enquanto que o que parecia o pedestal do co-
nhecimento se quebra. (MORIN, 2011, p.18)

As palavras de Edgar Morin estimulam uma reflexão sobre a incapacidade do paradigma científico
moderno, delimitado por arcabouços conservadores, atender às urgências sociais da pós-moderni-
dade e pressupõem o surgimento de alternativas que colocam em xeque o padrão anterior guiado
pelo modelo dominante, que amarrava de forma totalitária e reducionista os saberes, arrogantemente
privilegiando uns em detrimento de outros.

Com a intenção de resolver problemas cada vez mais complexos, a trama das relações da sociedade
contemporânea vem exigindo a tessitura de um novo cenário que coloca em pé de igualdade as di-
ferentes esferas do conhecimento produzido pelo homem, (BAUMAN, 2003). Sendo assim, nossa
sociedade colapsada faz, aos poucos, emergir um novo roteiro para conduzir a performance de seus
heterogêneos atores.

Contudo, as tensões dessa mudança geram grande resistência pelo fato de propor alterações em níveis
estruturais, o que acaba abalando o status quo epistemológico conservador, que na esfera da educação
mutila os saberes e a realidade, produzindo uma cegueira que impede a percepção sistêmica mais
adequada ao tempo que estamos vivenciando.

Dessa forma, atualmente, refletir sobre a Educação e consequentemente sobre o ensino das Artes Vi-
suais pressupõe um alinhamento com esses novos parâmetros. Vista a partir deste prisma, a educação
se fundamenta em um pensamento multidimensional, reconectando os saberes antes fragmentados.

708
Este direcionamento integrativo da educação, que para essa pesquisa implica em uma lógica inter-
disciplinar, converge para a própria natureza da Arte e do seu ensino, que se articula com as mais
diversas formas do saber filosófico, histórico, social, científico e etc. (BRASIL, 1998). A partir desta
perspectiva, o ensino das Artes, e especialmente o das Artes Visuais, finalmente, pode ocupar um
lugar de destaque na formação do indivíduo, que lhe foi usurpado pelo paradigma anterior, orientado
pela ciência moderna, que não dava brecha para dúvidas, incompletudes, incertezas e subjetividades,
que são terrenos explorados pelo fazer, contextualizar e pensar artísticos.

Com bases nesta contextualização, esta pesquisa propõe uma investigação sobre as práticas dos pro-
fessores de Artes Visuais das escolas de referência em ensino Médio localizadas na cidade de Recife,
identificando e analisando suas ações interdisciplinares. E parte do seguinte questionamento: Como
as práticas docentes corroboram com o caráter complexo e interdisciplinar da arte?

Com o intuito de atender as demandas apontadas pela sociedade contemporânea, que encontram
apenas respostas/ecos insuficientes nos saberes emoldurados em atitudes disjuntivas, faz-se necessá-
rio encontrar uma maneira de lidar com este novo cenário (CAPRA, 1982). E é neste momento que se
insere o ensino da Arte (de natureza interdisciplinar), por isso a importância das ações pedagógicas
dos professores e das instituições de ensino, que se constituem como vias naturais, embora resistentes
para internalização desse paradigma emergente complexo.

A hipótese da investigação é de que, possuindo a arte um caráter essencialmente complexo, portanto


afeita as relações interdisciplinares com os mais variados campos do conhecimento, os professores
estabelecem, a partir de suas ações, relações com os diversos saberes presentes na escola. 

2. PENSANDO A PÓS-MODERNIDADE

A pesquisa está alicerçada na produção de pensadores contemporâneos, reconhecidos mundial-


mente por seus estudos nos campos epistemológicos de interesse desta investigação, como: Edgar
Morin, expoente antropólogo, filósofo e sociólogo francês, reconhecido por suas contribuições à
Teoria da Complexidade; Ana Mae Barbosa, educadora brasileira de grande prestígio, responsável
pela sistematização da Abordagem/Proposta Triangular, que foi fundamental na intelectualização
do Ensino de Arte em nosso país; Ivani Fazenda, também educadora brasileira, referência de des-
taque quando a abordagem está relacionada à Interdisciplinaridade, devido à sua vasta produção
na área.

Os autores comungam aspectos relevantes relacionados a pós-modernidade aplicados à educação, por


isso a escolha para esse estudo.

2.1. A Teoria da Complexidade e a Interdisciplinaridade

Meu propósito [...] é sensibilizar para as enormes carências de nosso pensamento, e compreender
que um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes. É tomar consciência da
patologia contemporânea do pensamento. (MORIN, 2011, p.15)

709
Para Edgar Morin, a lógica racional simplificadora, que orientou o desenvolvimento da ciência mo-
derna, sozinha não dá mais conta das exigências da contemporaneidade. O autor afirma que os pes-
quisadores orientados por esse paradigma tradicional da modernidade almejam que suas pesquisas
sejam exatas, simétricas e conclusivas, chamadas por ele de “inteligência cega” (2011, p.11). Entre-
tanto, as próprias descobertas científicas vêm exigindo um caminho em direção a uma tomada de
consciência radical, que possibilite o diálogo e a troca de informações entre os diversos saberes com
o intuito de favorecer o avanço de um conhecimento profundo.

Na realidade pragmática da vida, os conteúdos trabalhados e desenvolvidos pelos diversos saberes


não se encontram isolados, mas sim articulados. As disciplinas não existem na vida real, são apenas
uma forma de organizar os conteúdos de maneira artificial, imposta pelo ser humano. É a partir da
organização sistêmica da realidade que Morin (2001) afirma que a questão paradigmática do pensa-
mento complexo vai além de questões epistemológicas ou metodológicas, ela está indissociavelmente
relacionada a “pensar a realidade” (quadros gnoseológicos) e “a natureza da realidade” (quadros on-
tológicos). E essa realidade nada mais é que um sistema aberto, onde caos e desordem se retroalimen-
tam, onde contradições são imprescindíveis para a compreensão dos fenômenos.

Como exemplo de sistema aberto, Morin (2011) cita os sistemas vivos, cuja existência e estrutura
dependem de uma alimentação externa. Diferentemente de uma pedra ou de uma mesa, as rela-
ções de troca entre os organismos vivos e o exterior permitem que ele se mantenha em um aparente
equilíbrio, mas esse equilíbrio só é conquistado uma vez que há um fluxo externo de energia que o
alimenta, que não pertence a ele, que lhe é estrangeiro, sendo assim, o desequilíbrio alimentador é
fundamental para a manutenção da vida. Quando esse sistema se fecha, o organismo morre.

Então essa lógica de inter-relações vem exigindo a reforma necessária do pensamento que, segundo
Morin (2009), deve organizar um pensamento do contexto e do complexo. Ele afirma que o pensa-
mento contextual é aquele que busca as inter-relações entre os fenômenos e seus contextos e deste com
a escala planetária. Já o pensamento complexo está associado a uma postura que apreenda relações,
implicações múltiplas, fenômenos multidimensionais e realidades que são solidárias e conflitivas.

O autor cita três princípios que devem ajudar a pensar a complexidade: o primeiro, denominado
como dialógico, que permite manter dualidades no seio da unidade. Ele associa dois termos ao mes-
mo tempo complementares e antagônicos, como no caso da inter-relação entre ordem e desordem; O
segundo, Morin chama de princípio da recursão organizacional, que é um processo onde os produtos
e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores do que os produz, como exemplo ele cita o in-
divíduo e a reprodução, pois, uma vez que o indivíduo é produto da reprodução, ele também será um
produtor de um processo de reprodução; O terceiro princípio é o hologramático, que, por sua vez,
afirma que o todo está na parte, que está no todo (MORIN, 2011).

Conectando-se ao pensamento complexo, a interdisciplinaridade funciona como exercício um que


facilitaria o enfretamento dessa crise do conhecimento e surge na tentativa de vencer as organizações
curriculares tradicionais que evidenciam a excessiva especialização, dispondo o conhecimento em
gavetas independentes e sem comunicação com as outras, incentivando o olhar do aluno numa única,
restrita e limitada direção, desenvolvendo olhares doentes (FAZENDA, 2003).

710
Na tentativa de alicerçar o pensamento complexo em um contexto escolar, as práticas interdiscipli-
nares vêm se tornando frequentes, embora muitas vezes mal interpretadas. Uma questão primeira
encontrada em trabalhos de teóricos da interdisciplinaridade, como Ivani Fazenda, é a necessidade de
superação da dicotomia ciência/existência, pois um elemento não está distante do outro, entretanto a
busca por saberes cada vez mais específicos, motriz da ciência moderna, afastou as duas. Este distan-
ciamento justifica a dificuldade de contextualização dos conteúdos dentro dos saberes disciplinares.
Isso nos leva a pensar que qualquer atividade interdisciplinar, seja ela no universo do ensino ou da
pesquisa, requer uma imersão teórica nas discussões mais fundamentais e atuais, pois a questão da
interdisciplinaridade envolve uma reflexão profunda sobre os empecilhos vividos pela ciência atual-
mente (FAZENDA, 1998).

Ivani Fazenda (2003) afirma que é impossível construir uma única, absoluta e geral teoria da interdis-
ciplinaridade, e nesse aspecto, o que de fato é importante seria a busca ou o desvelamento do percurso
teórico pessoal de cada pesquisador. O indivíduo (professor), nesta perspectiva, é atuante e pesquisa-
dor, inquieto, inconformado e atento aos novos rumos da educação. Sua intenção é realizar uma nova
educação disposta a enfrentar as incertezas da sociedade.

Fazenda (2003) propõe um resgate da história do conhecimento e vai em direção aos saberes filo-
sóficos de Sócrates, o primeiro a considerar a dúvida. Quando Sócrates anunciava a solene frase:
Conhece-te a ti mesmo, ele propunha um conhecimento em totalidade, construído interdiscipli-
narmente. Quanto mais for percorrido o caminho em direção ao interior, mais certezas vão se
adquirindo da ignorância, da limitação e da provisoriedade. Essa busca interior gera um grande
sentimento de humildade que, para Ivani Fazenda, é um dos grandes princípios da interdiscipli-
naridade. Ao contrário de Sócrates, Descartes através de sua premissa: Penso, logo existo, reduz o
eu ao penso, limitando o conhecimento apenas ao pensar, quando, na verdade, o conhecer pode se
efetivar nas mais diversas esferas.

É importante destacar que o pensamento complexo ou a interdisciplinaridade não excluem as con-


tribuições da disciplinaridade, pois é no diálogo/confronto entre elas que se desenvolvem os sistemas
abertos e se dá o aprofundamento, a contextualização e o significado do saber.

2.2. O ensino de Artes Visuais

Acompanhando o surgimento de propostas emergentes no campo dos estudos sociais que se contra-
põem à lógica positivista, a esfera do ensino de arte também está colaborando para as mudanças de
postura, que ora são exigidas, visto que os problemas com os quais estamos nos deparando necessi-
tam de soluções mais complexas. Como afirma BARBOSA:

Precisamos de pesquisas que avaliem os melhores procedimentos para atingir os objetivos educacio-
nais de hoje, que se concentram principalmente na flexibilidade de pensar e agir, na capacidade de
elaborar em direção à melhor qualidade de vida do planeta e no aprender a aprender. (2009. p. 22)
Precisamos de arte + educação + ação e pesquisa para descobrir como nos tornamos mais eficientes
no nosso contexto educacional, desenvolvendo o desejo e a capacidade de aprender de nossas crian-
ças. (2012, p. 5)

711
Contudo, ainda é frequente a vivência dos ideais tecnicistas aplicados ao ensino de Arte em muitas esco-
las do nosso país. A herança das décadas de 1960/70 continua viva, quando, em muitas salas de aula, as
crianças, os jovens e adultos eram solicitados a realizarem atividades, cujos objetivos vazios estimulavam
apenas suas habilidades manuais. De certa forma, o ensino da Arte continua na categoria de atividade,
como foi classificado pela LDB, em 1971, diferenciando-se daquelas rotuladas como disciplinas que
possuíam objetivos, conteúdos, metodologia e métodos de avaliação (FUSARI & FERRAZ, 2001).

Sabemos que muito do esvaziamento epistemológico que se faz presente nas práticas de Arte/Edu-
cação no ensino básico de nosso país é resultado de políticas públicas que enfatizam certas áreas de
conhecimento que atendem mais depressa aos anseios de uma sociedade industrial, que necessita de
indivíduos tecnicamente adestrados e alienados.

No caminho contrário dessas práticas de alienação e adestramento está a Abordagem/ Proposta Trian-
gular, sistematizada pela educadora e teórica do ensino da Arte Ana Mae Barbosa (2012), onde se dá
a superação da dicotomia saber/existência (conteúdo/contextualização), para a qual as práticas mais
contemporâneas do ensino da Arte vêm convergindo. Esta orientação subverte a lógica conservadora
que fragmenta o saber, que o desconecta da realidade.

A Proposta Triangular está baseada nas ações do fazer-ler-contextualizar, porque julga que além do
estudo do contexto (sendo ele histórico, filosófico, social, antropológico, etc.) em que as obras de
arte são produzidas, elementos como intuição, valores morais, emoções e experiências sensoriais são
fundamentais para a construção do conhecimento, provocando a interação dos estudantes. Aprender
agora faz sentido, porque também se liga a interesses individuais. Barbosa (1998, p. 38) afirma que
“contextualizar é estabelecer relações. Neste sentido, a contextualização no processo de ensino apren-
dizagem é a porta aberta para a interdisciplinaridade”. Essa orientação de trabalho se relaciona com
as ações pós-modernas estudadas por teóricos interessados pelo paradigma emergente da atualidade.
(MORIN, 2009; NICOLESCU, 1999; PARSON, 2010)

3. A METODOLOGIA

3.1. Sujeitos e campos de pesquisa

Os sujeitos desta pesquisa compõem o quadro docente de três escolas de referência em ensino médio
(EREM) da cidade de Recife e possuem formação na área de Artes Visuais.

Estas escolas foram escolhidas por serem essencialmente orientadas por paradigmas educacionais
mais emergentes e preocupadas com a formação multidimensional do educando. Este modelo de
escola foi criado em 2008, a partir de um projeto piloto anteriormente denominado Centros de Ensi-
no Experimental, sendo o Ginásio Pernambucano (primeira escola do estado) seu ponto de partida.

As EREMs são divididas em integrais (onde os alunos cursam dez turnos por semana) e semi-inte-
grais (onde cursam oito turnos). Ademais de possuírem os mesmos componentes curriculares obri-
gatórios, semelhantes a outras escolas, sua estruturação proporciona o desenvolvimento de muitas
atividades extras e projetos de diversas naturezas, entre elas as de natureza interdisciplinar.

712
A partir de uma consulta à Unidade de Desenvolvimento Ensino (UDE) da Gerência Regional de
Educação – Recife Norte (GRE-Recife Norte), realizada em 2015, foram definidas três escolas como
campo de atuação, considerando um universo de vinte e duas. Essa escolha foi orientada seguindo os
seguintes parâmetros:

• EREM da Recife Norte (vinte e duas escolas): Local onde foram criados os primeiros Centros de
Ensino Experimental e posteriormente as EREM, portanto, escolas com mais tempo de consolidação
de suas propostas educativas.
• Escolas de tempo integral (quatorze escolas): Por sua diversidade de estruturação do currículo
e maior tempo de permanência do aluno. Possibilitando o desenvolvimento e vivência de projetos
interdisciplinares.
• Professores formados na linguagem das Artes Visuais (três escolas): uma vez que o projeto de
pesquisa investiga especificamente a prática docente de professores formados em Artes Visuais.

3.2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A abordagem qualitativa será a opção metodológica desta pesquisa, por esta vertente paradig-
mática contemplar as especificidades de nosso objeto de estudo, capturando opiniões e atitudes
explícitas dos entrevistados. Sobre o método qualitativo concordamos com MINAYO, quando
afirma que:

O método qualitativo é o que se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das
crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito
de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam. (2010, p. 57).

Para cumprir com o objetivo traçado, as seguintes etapas serão consideradas:

• Elaboração do marco teórico: considerando o objetivo deste Projeto de pesquisa, uma primeira
providência é delimitar o marco referencial a ser utilizado. Para tanto, pretende-se realizar uma re-
visão de literatura direcionada para a discussão teórica e definição conceitual dos termos “Interdis-
ciplinaridade” e “Complexidade”, cujo propósito é relacionar aos estudos sobre o “Ensino de Arte”,
permitindo esboçar um cenário pertinente ao paradigma emergente, que se faz necessário a ciência
na atualidade.
• Analise documental: Esta fase diz respeito a análise dos documentos elaborados pelas escolas e
professores selecionados, visando encontra elementos que sugerem, indiquem e proporcionem as
ações de caráter interdisciplinar, orientadas pelo Pensamento Complexo.
• Elaboração de questionário: Em seguida, pretende-se conceber um questionário que possibilite
identificar nos professores pesquisados o conhecimento dos termos “interdisciplinaridade”, “comple-
xidade” e sua importância nas práticas pedagógicas do ensino de Arte.
• Aplicação do questionário, realização de entrevistas e observação de aulas: os questionários se-
miestruturados serão aplicados à amostra selecionada. Paralelamente a sua aplicação e consoante as
respostas apresentadas, serão realizadas entrevistas e observações de aulas, a fim de captar com mais
minúcia as relações entre as narrativas e as ações.
• Análise dos dados a partir do marco teórico: Por fim, os resultados encontrados serão compa-
rados com o marco de referência para que se possa chegar a uma conclusão que atenda ao objetivo
geral deste estudo.

713
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O início da caminhada dessa pesquisa vem reforçando aspectos elencados como justificativas quando
da elaboração de seu projeto. Uma vez que seu aspecto atual revela que as relações entre o ensino das
Artes Visuais, a interdisciplinaridade e o pensamento complexo proporcionam uma trama atraente
para as pesquisas sobre educação na sociedade contemporânea, contribuindo para o debate, constru-
ção e consolidação de uma nova ciência escolar.

Estrategicamente a consciência dessa perspectiva educativa (interdisciplinaridade) pode munir os


professores de um arsenal eficiente para dar ao saber e as práticas artísticas um lugar de destaque, tão
almejado por todos os arte/educadores, na educação básica; além de poder auxiliar na elaboração de
políticas para formação continuada de professores das redes pública e privada de ensino.

Considerando o banco de teses da Capes e repositórios de universidades como os da UFPE, UFPB,


USP, UFMG, a relação entre ensino da Arte Visuais, interdisciplinaridade e pensamento complexo
são muito raras. Também foram poucos os estudos encontrados nos últimos cinco anos em anais
de congressos, como os da Associação Nacional dos Pesquisadores de Artes Plásticas (ANPAP) e
da Federação dos Arte Educadores do Brasil (FAEB). Vale ressaltar que a maior parte das pesquisas
encontradas não possuem como campo de interesse o ensino médio, bem como as relações que po-
dem ser estabelecidas entre as Artes Visuais e os demais campos de saber existentes na escola básica,
ficando restrita às relações interdisciplinares entre as linguagens artísticas (Artes Visuais/Literatura;
Artes Visuais/Teatro; Artes Visuais/Música) e o Design.

Outro destaque diz respeito à ausência (até onde foram as buscas) de pesquisa no estado de Pernam-
buco situadas no ensino médio, articulando as temáticas propostas por essa pesquisa.

Por fim, a relevância social desse trabalho diz respeito a toda sociedade contemporânea, consideran-
do a urgência de pavimentação de um caminho que viabilize a consolidação do paradigma emergente
da complexidade, através de ações interdisciplinares, que contribuam para a formação de um cidadão
atento as demandas de seu tempo.

REFERÊNCIAS

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educação contemporânea: Consonâncias internacionais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
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715
Ensino das danças tradicionais
e populares do Brasil:
notas de uma experiência
Telma César Cavalcanti

Algumas vezes pode ter sentido confrontar uma teoria com uma biografia
Eugênio Barba,1994

M inha relação como dançarina das danças tradicionais e populares iniciou quando integrei o
Grupo de Tradições Populares Prof. Théo Brandão, da Universidade Federal de Alagoas, no perío-
do em que cursava a graduação em Educação Física dessa Universidade. Na ocasião, paralelamente,
buscava minha formação como dançarina, frequentando aulas de jazz e balé clássico. Lembro que, na
época, a experiência no Grupo de Tradições Populares, para mim, era algo à parte, que não integrava
meu processo de formação em dança. Essa visão irá mudar radicalmente após o distanciamento gera-
do pela minha mudança para a cidade de São Paulo.

Buscando profissionalização na dança, fixei residência em São Paulo, durante nove anos, e fui apro-
vada em audição pública para integrar o elenco de bailarinos do projeto “A Identidade da Dança
Nacional”, coordenado pela coreógrafa Célia Gouvêa. Nesse projeto, além de atuar como intérprete-
-criadora, fui incumbida de ensinar as danças tradicionais e populares de Alagoas para o elenco de
bailarinos. Tem início assim minha relação de ensino com essas danças. Utilizando-me da metodolo-
gia tradicional de ensino em que a imitação é o recurso de transmissão do conhecimento, percebi que
os colegas de trabalho conseguiam reproduzir os movimentos em sua forma e ritmo, mas não os via
dançando o Coco, o Guerreiro, o Pastoril etc. Faltava algo que eu não conseguia, com clareza, iden-
tificar e muito menos de que maneira ensinar, enfim, não sabia de que modo e por quais caminhos
poderia levá-los a dançar aquelas danças.

É nesse período que entro em contato com a Arte do Movimento, de Rudolf Laban, através de uma
colega de elenco, a bailarina e professora de dança Elizabeth Menezes, que já está estudando Laban há
algum tempo. Resolvemos então iniciar um estudo conjunto em que pudéssemos aprofundar nossos
conhecimentos nessas áreas – danças tradicionais e Laban, e criarmos uma metodologia de ensino
própria.

716
No início, levantamos como tema central para discussão o fato de, ao escolhermos uma dança especí-
fica (nesse caso elegemos o Coco alagoano), esta se convertesse em um meio para a exploração ampla
do movimento, considerando os cinco aspectos apontados por Preston-Dunlop (1987) – corpo, ações
corporais, espaço, dinâmicas e relacionamentos e que, ao mesmo tempo, o processo de ensino levasse
ao aprendizado da dança escolhida considerando, tanto as especificidades de seus componentes de
som e movimento (repertório), quanto o conhecimento de seu contexto histórico e sócio cultural de
origem. O Coco, assim, tornar-se-ia meio e fim: fim porque objetivávamos que nossos alunos apren-
dessem a dançar o Coco; meio porque, através de seus elementos constitutivos, extraíamos recursos
para a exploração dos aspectos estruturais do movimento e para a contextualização histórico-cultural
via corpo. Articulava-se, assim, o local e o global por meio de uma abordagem da dança enquanto
“língua” e enquanto linguagem.

Uma premissa fundamental do trabalho é que em cada aula fosse criado um ambiente lúdico-festivo.
Essa perspectiva, por um lado, constituía uma tentativa de aproximar o ambiente da sala de aula do
ambiente primeiro da dança do Coco enquanto dança social e costumeira nas festas populares do
Nordeste – conforme informações encontradas nas pesquisas bibliográficas e de campo por nós reali-
zadas. Por outro lado, corroborava com o nosso ideal de construir um processo em que o aprendizado
do repertório poético-musical-coreográfico se desse de modo gradativo e particular para cada um,
em que o recurso da imitação não fosse utilizado ou se desse de maneira menos formal, e não estives-
se centrado na referência do professor. Nesse sentido, o recurso dos jogos e brincadeiras populares,
além do uso de objetos e imagens que levassem a construção do movimento, estiveram no centro do
processo de ensino e aprendizagem.

O estudo e observação das peculiaridades de cada um dos componentes do Coco e suas combinações,
articulados às noções de contexto, levaram a uma perspectiva de análise mais aprofundada sobre esta
dança. Por outro lado, a experiência empírica com as visitas a campo e o constante diálogo entre as
professoras pesquisadoras foram alimentos cruciais à criatividade sempre presente no processo de
ensino-aprendizagem, favorecendo o levantamento de estratégias didáticas que se valeram dos mais
variados recursos: o canto, os versos improvisados conforme a necessidade do momento presente na
condução da aula, objetos, instrumentos musicais, luz, fogo, argila, entre outros.

A preparação para o desenvolvimento do trabalho procurou abordar quatro aspectos básicos: a es-
colha dos procedimentos que garantissem a apreensão e a experimentação estabelecidas na proposta
do trabalho; a criação de condições adequadas para o registro do trajeto percorrido em cada uma
dessas escolhas; a garantia do espaço ao imprevisto e, por último, o desenvolvimento de avaliação e
supervisão sobre os procedimentos utilizados e aqueles a serem adotados nas próximas experiências
de aplicação. Partimos de três pressupostos básicos:

• Todo movimento tem um peso, um tempo e um espaço – esses fatores conferem-lhe características
que permeiam o universal e o particular. O processo educativo pela e da dança primará por propor-
cionar à criança a vivência da maior gama possível de variações entre as qualidades de cada fator;
• Reconhecer as qualidades e particularidades dos movimentos das danças tradicionais populares do
Brasil é um meio de conhecer a cultura através da dança;
• Propor a contextualização histórico-cultural via corpo entendendo que a experiência motriz, sen-
sorial, abre espaço e se conecta com a análise e reflexão da dança.

717
Essa trajetória realizada ao longo de quatro anos (1990-1993), em ambiente não acadêmico, obteve o
patrocínio da Fundação VITAE, por um ano, o que nos permitiu mais tempo e dedicação à pesquisa
e à sua sistematização para comunicações públicas.

Em seus quatro anos de realização, a pesquisa foi desenvolvida com alunos de diferentes classes so-
ciais e faixas etárias, em diferentes bairros da cidade de São Paulo, em oficinas com duração média
de dois meses. Além disso, trabalhamos em cursos de formação continuada para professores. Pos-
teriormente, seguimos trabalhando individualmente com grupos fixos, com possibilidade de maior
continuidade para aplicação da proposta e em tentativas de adequação da metodologia desenvolvida
à outras danças tradicionais populares, além do Coco.

Ao retornar para Maceió e mais especificamente ao iniciar meu trabalho como professora do Curso de
Licenciatura em dança da UFAL, a partir de 2007, onde assumi, dentre outras, as disciplinas Danças
das Tradições Populares do Brasil 1 e 2, inicia-se um outro momento na minha atuação docente nesse
campo, digo, no ensino das danças tradicionais e populares brasileiras. Se por um lado, tendo se pas-
sado alguns anos da experiência docente acima descrita, minhas visões sobre as propostas de Laban e
sobre as noções de cultura transformaram-se e amadureceram, por outro lado, um contexto bastante
diferenciado se me apresentava tanto em termos geográficos e histórico-culturais, quanto nos termos
dos objetivos e do público-alvo a ser atingido pelo meu trabalho.

Um dos principais aspectos que me chamou a atenção foi o distanciamento dos alunos sobre essas
danças. Para eles, assim como para mim no início de minha formação como bailarina, essas danças
compõem uma categoria à parte, que não integra o campo das artes, mas o campo do folclore. Pode-
mos localizar em seus discursos jargões que nem eles mesmos conseguem ter claro o sentido do que
falam como, por exemplo, situar essas danças como representações da nossa “essência”, ou que elas
são importantes para resgatar nossas raízes culturais. Costumo brincar com eles, perguntando-lhes de
que essência falam? Baunilha, morango ou caramelo? E de qual raiz? Macaxeira, batata-doce ou inha-
me? A partir dessa provocação, proponho a reflexão sobre o termo resgate, do quanto carrega o peso
de algo que não mais existe e que precisa ser revivido a partir de um passado remoto, e o imaginário
da raiz conota algo fixo, não passível a mudanças e atualizações. A tradição assim é vista como algo
imutável e pertencente ao passado sobre o qual paira o peso da imutabilidade. Algo distante, portanto,
do mundo contemporâneo em que vivem esses alunos.

O primeiro desafio, portanto, encontrava-se na necessidade de desconfigurar essa perspectiva


folclorizada dos alunos sobre essas danças. Relevando a importância fundamental do trabalho
realizado pelos folcloristas brasileiros e alagoanos, procuramos, entretanto, elucidar e contex-
tualizar as perspectivas desses estudiosos acerca da cultura de tradição popular. Como aponta
Vilhena (1997), o Movimento Folclórico Brasileiro257é fortemente influenciado pelos folcloristas
europeus dos séculos XVIII, estes, por sua vez, “dessedentes” diretos dos Românticos. Como
afirma Ortiz (1992),

257. Segundo Vilhena (op. cit.), os estudos do folclore no Brasil têm início por volta de 1870, sendo o período entre 1947 e 1964 o mais
fértil para o Movimento Folclórico Brasileiro. Observa que o Movimento propõe a articulação entre três pontos: “a pesquisa; a proteção do
folclore; e o aproveitamento do folclore na educação”.

718
Os Românticos são os responsáveis pela fabricação de um popular ingênuo, anônimo, espelho da
alma nacional; os folcloristas são seus continuadores, buscando no Positivismo emergente um mo-
delo para interpretá-lo. Contrários às transformações impostas pela modernidade, eles se insurgem
contra o presente industrialista das sociedades europeias e ilusoriamente tentam preservar a veraci-
dade de uma cultura ameaçada (p. 6).

Desse modo, iniciamos nosso processo de ensino localizando o termo folclore no contexto histórico-
-cultural em que ele foi gerado e sua forte influência sobre Alagoas, sendo este um dos estados de grande
representação no Movimento Folclórico Brasileiro, fato que nos leva a entender a força desse pensa-
mento incutida na sociedade alagoana258. Relacionamos essa questão com a discussão dos conceitos de
tradição e identidade, utilizando autores como Bornheim (1997), Bhabha (1998) e Hall (2003).

Um outro fator, que, a princípio, poderíamos pensar como favorável à experiência com o ensino das
danças de tradição popular na universidade em Alagoas, seria a proximidade com o campo, isto é, a
possibilidade de incluirmos, nas atividades da disciplina, as ações de visitas a grupos da tradição em
seus ambientes próprios. Contudo, os ambientes encontrados nem sempre são tão favoráveis. Já não en-
contramos mais as danças tradicionais e populares no contexto da festa em Maceió, ambiente em que os
estudantes poderiam participar mais efetivamente da experiência com o dançar. Os grupos se mantém
em torno de ensaios, cada vez mais raros, e apresentações em palcos e palanques. Quando encontramos
um ensaio, vemos que a maioria dos grupos são constituídos por pessoas idosas que, unanimemente,
reclamam da falta de adesão dos mais jovens. Por outro lado, observa-se que parte dos artistas populares,
mestres da tradição, sobretudo os que vivem e atuam na capital e são afiliados da ASFOPAL – Associa-
ção dos Folguedos Populares de Alagoas259 – absorveram o discurso folclorista. Nesse caso, muitas vezes,
fortalecendo para os alunos uma perspectiva que tentamos deslocar em nossas aulas.

Todas as discussões conceituais propostas, as vivências em sala, assim como as visitas à campo, pare-
ciam não reverberar nos alunos. Tanto no sentido de reconfigurar a visão deles sobre tradição, quanto
para que esses alunos vislumbrassem, com clareza, possibilidades de utilização dos referenciais dessas
disciplinas em suas atuações como artistas docentes.

Ao propor a vivência da dança em sala de aula, trazendo as referências da minha experiência docente
desenvolvida em São Paulo, percebia o envolvimento dos alunos na atividade, contudo, posteriormen-
te, eles pareciam incapazes de estabelecer uma relação criativa no sentido de pensar a formulação de
suas próprias aulas a partir da referência da aula ministrada por mim. O distanciamento do formato
(ou, para eles, o não formato) da aula apresentada, em relação aos modelos de aulas por eles conhe-
cidos, e a necessidade de enquadramento nos modelos padrões de planejamento pareciam gerar uma
barreira intransponível para que eles pudessem exercitar a criatividade e poder de articulação. Era
como se, durante a aula, eles se envolvessem totalmente, mas, depois, o vivido não fosse entendido
enquanto uma aula de dança. O acesso ao que era até então desconhecido, em termos metodológicos,
parecia assim apresentar certa espécie de risco, um desafio para o qual se tinha forte resistência.

258. Sobre este assunto ver DIÉGUES JÚNIOR (2012), VILHENA (1997).
259. Fundada em 1985 e dirigida durante 21 anos pelo folclorista Ranilson França, tendo como demais membros, em sua maioria, mestres
da tradição popular, a ASFOPAL configura-se como uma entidade sem fins lucrativos que tem por objetivo “a preservação, manutenção,
valorização e divulgação da cultura popular de Alagoas.” (NOVAES, 2011, P.19).

719
Dois aspectos então se destacam:

• Primeiro: a questão do ponto de vista que esses alunos, a priori, estabelecem sobre essas danças
– do mesmo modo que as danças tradicionais e populares se situam distantes de suas formações ar-
tísticas, também assim estão em relação à sua formação docente. Folclorizadas que estão, não podem
servir além do que a reificação de um passado distante;
• Segundo: o “não lugar” da proposição metodológica por mim apresentada – um planejamento de
aula que se estrutura a partir de parâmetros e princípios e em seu próprio devir, cuja circularidade
põe o professor em vulnerável estado de criação e exposto à experiência, parece instável demais para
encontrar lugar na concepção desses alunos sobre o que venha a ser uma aula de dança e a partir da
qual eles possam ancorar suas futuras atuações docentes.

Diante dessa realidade, a inquietação é grande e nos coloca, por hora, no campo das reflexões. Per-
gunto-me: como dar sentido a essas danças no currículo do Curso na direção de elas integrarem a
formação e a transformação dos nossos alunos nesse processo de graduação? Situar a dança como
linguagem e pensar a linguagem como formação e transformação (KEFALÁS, 2012) implica ver o
dançar como algo que atravessa o sujeito, “algo que me passa” (“eso que me pasa”), como propõe La-
rossa (2002, 2005), ao discutir a ideia de experiência.

Larossa (2005), tomando por base a frase supracitada, disseca cada um dos vocábulos. Aponta para os
princípios de exterioridade, alteridade e alienação a partir do vocábulo “eso”, quando diz que a experi-
ência não pode ocorrer sem algo que é exterior ao sujeito da experiência. O momento da experiência
é aquele em que o que acontece fora atravessa o sujeito. É nesse sentido que o pronome reflexivo “me”
aponta para o princípio de “reflexividade, subjetividade, transformação”. Sendo, assim, a experiência
configurada no trânsito, na simultaneidade entre exterioridade e subjetividade, “...um externo que
provoca deslocamentos, transformações, dissoluções no sujeito.” (KEFALÁS, 2012, p. 22). Quanto ao
verbo “passa”, Larossa aponta dois aspectos: o que se refere à passagem no sentido de travessia que
envolve imprevisibilidade, risco, incerteza, e o que se refere à “pasion”, à passionalidade do sujeito na
direção da experiência quase como se fosse conduzido a ela ou dela não pudesse se livrar. O sujeito da
experiência, portanto, precisa ser aberto, vulnerável, passional, receptivo e se deixar afetar.

Tomando os pressupostos de Larossa, entendo que, em um processo de formação docente, a relação


com a tradição que se dá por um sujeito aberto à experiência é uma relação em que este estará sem-
pre em estado de questionamento, querendo-se maleável e permeável. Um sujeito, portanto, que, ao
se formar, transforma. Que “não se paralisa em uma rigidez preestabelecida, ou não se coloca como
inatingível, não se sustenta em uma postura inteiramente resoluta, pronta, acabada” (KEFALAS, 2012,
p. 23). No caso dos alunos do Curso de dança da UFAL, a “rigidez preestabelecida” pela visão que
eles têm sobre as danças tradicionais e populares de seu estado parece estar tão fortemente alicerçada
culturalmente que não é possível enxergar essas danças para além de uma realidade óbvia destituída
de possibilidades de descobertas.

Percorrendo minha trajetória de ensino das danças tradicionais e populares, vejo o quanto a necessi-
dade de construir um ambiente lúdico-festivo em sala de aula refletia um esforço no sentido de abrir
espaço à experiência, ou, ao menos, favorecê-la. Na busca por estratégias de afetação do sujeito, o
jogo, a brincadeira, apresentaram-se como dispositivos para a entrega. No que consiste o jogo se não

720
o entregar-se à vulnerabilidade de transitar entre o real e o imaginário, entre o controle e o risco, à
dissolução de instâncias cotidianas, as quais nos mantemos em constante exercício do controle.

De outro modo, o jogo também viria a ser uma ferramenta colaborativa no sentido de abordarmos as
danças tradicionais em sua complexidade e não em sua obviedade. Cada dança se configura por esco-
lhas formais e espaço-temporais diante da gama de infinitas possibilidades de organização do corpo
em movimento no tempo-espaço. Seriam essas escolhas que configurariam as “línguas” da dança,
para fazer uma analogia com a linguagem verbal como nos referimos no início desse texto. A dança,
em âmbito geral, seria a linguagem que abarcaria várias “línguas” estruturadas a partir de elementos
comuns (PRESTON-DUNLOP, 1987). Esses elementos, em cada “língua”, estão selecionados e orga-
nizados de modo particular. Sabemos, ainda, que a seleção desses elementos se dá dentro de uma teia
social e histórico-cultural complexa.

Reconhecer as danças tradicionais e populares nessas dimensões pode ser um meio de perceber que
“o que pertence à nossa tradição e aparece como uma realidade óbvia pode, em vez disso, revelar-
-se como um nó de problemas inexplorados” (BARBA, 2012, p. 25). A possibilidade de reconhecer
a dança como linguagem e identificar os princípios organizativos do movimento nos permite o jogo
criativo com seus elementos estruturais ao tempo em que se encontram aportes para a localização de
aspectos identitários de uma tradição de dança. Permite, assim, uma perspectiva volátil entre perma-
nência e mudança enquanto pulsão própria do fenômeno artístico.

REFERÊNCIAS

BARBA, Eugênio. A canoa de papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hucitec, 1994.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n.
19, jan./fev./mar./abr. 2002.
BORNHEIM, Gerd et. al. Cultura brasileira: tradição, contradição. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/
Funarte, 1997.
DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. O banguê nas Alagoas: traços da influência do sistema econômico do engenho de
açúcar na vida e na cultura regional. 3. ed. Maceió: EDUFAL, 2012.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2003.
KEFALÁS, Eliana. Corpo a corpo com o texto na formação do leitor literário. Campinas: Autores Associados
(Coleção formação de professores), 2012.
______. Experiencia (y alteridade) em educación. Buenos Aires/AR: Flasco 2005. Disponível em: <http://www.
flasco.org.ar/formacion_posgrados_ contenidos.php>. Acesso em: fev. 2008.
NOVAES, J. M. M. (Org.). ASFOPAL – Associação dos Folguedos Populares de Alagoas, 25 anos brincando
sério. Maceió: Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas e GrafMarques, 2010.
ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas. São Paulo: Ed. Olho d’Agua, 1992.
PRESTON-DUNLOP, Valerie. Dance is a language, isn´t it? London: Laban Centre for Movement and Dance,
1987.

721
A abordagem triangular para o
ensino da arte no processo de estudo
da dramaturgia brasileira do século XX
Almir Tavares da Silva

INTRODUÇÃO

Este trabalho expõe um relato reflexivo de experiência com o ensino do teatro na sala de aula da
Educação Básica. Desde o período de estudo para minha formação como professor na universidade,
ouvia os conceitos sobre a ‘Abordagem triangular para o ensino da Arte’, proposta e difundida por
Ana Mae Barbosa (1996). Em todo percurso da graduação e, posteriormente, como docente, também
realizei a leitura de textos que enfatizavam a Abordagem triangular.

Percebi, por meio da leitura dos diversos trabalhos acadêmicos produzidos, que essa abordagem este-
ve muito direcionada ao ensino das artes visuais. Perguntei a mim mesmo como ela poderia ser apli-
cada ao ensino do teatro. A partir dessa indagação, realizei mais leituras em busca de conceitos que
envolvessem os termos dos vértices de um triângulo como ‘apreciação’, ‘contextualização’ e ‘produção’.
Nesse relato reflexivo da minha experiência, pesquisei sobre os termos supracitados para fundamen-
tar a sua aplicabilidade ao ensino do teatro. Conforme Caldas Aulete (2011, p. 133), a apreciação é
“[...] Concentração da atenção em algo que proporcione prazer aos sentidos ou à mente [...]”, apreciar
é observar com prazer e algo que foi apreciado pode proporcionar prazer sensorial ou estético quando
se refere às artes.

Ao analisar esse conceito, verifiquei que a apreciação, a observação, o olhar e o apreciar algo que oca-
sione um certo prazer aos sentidos poderiam ser desenvolvidos na sala de aula a partir do momento
em que os alunos estivessem em contato com uma obra teatral ao ser representada. Estendendo esse
conceito, reflito que a apreciação também ocorreu quando os integrantes de um grupo realizaram o
ato da leitura dramática. Os alunos fizeram a leitura dos personagens e mostravam reações e emoções
por meio dos diálogos que mostravam os conflitos.

Outro termo me fez verificar o seu conceito e, segundo Aulete (2011, p. 390), a contextualização é
“[...] vinculação do conhecimento à sua origem e aplicação” e contextualizar significa “[...] enten-
der, analisar ou interpretar o significado de algo levando em conta o contexto, as circunstâncias de

722
ocorrência”. Ao associar a contextualização à literatura dramática no ensino do teatro, percebo que
cada dramaturgo e sua obra teatral escrita situam-se num contexto específico. Compreender o con-
texto que o dramaturgo viveu ou o tempo e época da peça nos possibilita fazer leituras sobre o seu
posicionamento diante da sociedade, como também contribui para a aquisição de conhecimentos,
principalmente ao abordar os dramaturgos do século XX no Brasil, período que presenciou conflitos,
guerras, censura e ditadura.

A produção/fruição, conforme Aulete (2011, p. 1113) também indica “[...] atividades do processo de re-
alização de vídeos, espetáculos musicais, de artes cênicas, [...]” enquanto que fruição do verbo fruir sig-
nifica “[...] aproveitar o prazer, as oportunidades, as vantagens e desfrutar” (Ibid., p. 684). Nesse terceiro
termo que ocupa um dos vértices da Abordagem triangular, percebi que os alunos poderiam desenvol-
ver uma atividade prática com o teatro que desse prazer no momento de sua produção, como também
proporcionasse momentos de satisfação para aqueles que assumissem a posição de plateia.
Das análises e reflexões quanto aos conceitos para os três termos supracitados, percebi que, com o ensi-
no do teatro e por meio da dramaturgia, poderia desenvolver atividades de apreciação, contextualização
e produção. Então, esse trabalho foi desenvolvido com os alunos dos 1º anos do Ensino Médio na Edu-
cação Básica, aplicando a Abordagem triangular para o ensino da Arte e agora, para o ensino do Teatro.

Justifico a proposta para esse trabalho com a dramaturgia ao verificar uma problemática no meio em
que os alunos estão inseridos e a visão que eles tinham sobre aulas com as linguagens das artes visuais
e do teatro. Numa conversa diagnóstica com os alunos as aulas de Arte, eram momentos para pin-
tar, colorir desenhos para capas de provas, fazer cartazes, resolver palavras-cruzadas e, por meio de
representações teatrais, abordarem algumas datas comemorativas. Essa foi a problemática existente
conforme os relatos das experiências dos alunos antes desse processo. O que também justifica desen-
volver um trabalho sem enfocar o que ficou explícito acima, foi perceber que a área de teatro possui
seus conteúdos e assuntos próprios e que independem das datas comemorativas.

O meu objetivo geral nessa experiência foi utilizar a Abordagem triangular para o ensino da Arte no
processo de estudo da dramaturgia brasileira do século XX. Para isso, e como objetivos específicos,
foram necessários: i) apreciar a dramaturgia brasileira do século XX por meio de leituras de textos
teatrais; ii) apreciar o teatro por meio das representações dos próprios alunos; iii) contextualizar a
vida do autor e de sua dramaturgia; iv) produzir cenas de peças teatrais, possibilitando aos alunos
desenvolverem a imaginação, expressividade, criatividade, percepção e relacionamento.

1. METODOLOGIA

Por onde começar o desenvolvimento da Abordagem triangular no processo de estudo da drama-


turgia brasileira do século XX? Essa Abordagem já é conhecida no seu conceito e aplicabilidade ao
ensino das artes visuais. Direcionada ao teatro, seria necessário um método de trabalho que poderia
iniciar com a apreciação/leitura, ou por meio de uma exposição do professor ao contextualizar a obra
e o autor, ou por meio de uma apreciação à representação teatral.

Refleti que poderia iniciar por qualquer um dos pontos da Abordagem, mas preferi a apreciação
por meio da leitura das peças para depois uma contextualização/pesquisa sobre o dramaturgo e sua

723
dramaturgia. Posteriormente, houve a produção das cenas para que esse grupo fruísse no trabalho,
produzisse teatro e, ao mesmo tempo, os demais alunos como plateia, também teriam a oportunidade
para a apreciação. Portanto, considerando a Abordagem triangular o trabalho pode ser representado
visualmente da seguinte forma:

A turma foi dividida em sete grupos com cinco integrantes, que iniciaram a leitura das peças teatrais.
Como estabeleci o estudo sobre a dramaturgia do século XX, indiquei as seguintes obras e dramatur-
gos, conforme o material didático de Samira Youssef Campedelli (1996):
1 - O rei da vela, de Oswald de Andrade;
2 - Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues;
3 - A moratória, de Jorge Andrade;
4 - Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri;
5 - Liberdade, liberdade!, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel;
6 - O pagador de promessas, de Dias Gomes;
7 - De braços abertos, de Maria Adelaide Amaral.

Inicialmente, os grupos apreciavam as peças por meio da leitura. Em seguida, desenvolviam a contextua-
lização por meio das pesquisas para compreender o período vivido pelo dramaturgo e o contexto da peça.
Prosseguindo nesse método, os grupos escolhiam as cenas que seriam representadas e, a partir desse
momento, iniciei também o meu trabalho como diretor teatral, orientando os alunos na montagem. Após
as soluções encontradas para a representação teatral, o trabalho foi exibido aos outros alunos da turma.

Todo trabalho que iniciou com a leitura (apreciação), pesquisa (contextualização) e representação (pro-
dução) deveria ser mostrado na sala por meio de dois momentos: ‘apresentação’ e ‘representação’. A apre-
sentação consistia em elaborar slides no powerpoint que mostrassem a biografia do dramaturgo, contexto
histórico, suas principais obras, obras teatrais adaptadas para a televisão ou cinema e um resumo da peça
teatral indicada para representação. Tudo isso exibido aos alunos da turma por meio de projetor.

O momento da representação consistia em mostrar à turma as cenas que o grupo escolheu. Para isso,
era necessária a organização do espaço de uma sala de aula para a montagem da cenografia, ilumina-
ção, sonoplastia, adereços e também onde ficaria posicionado o projetor para o primeiro momento
da apresentação.

O tempo determinado para a apresentação e representação poderia atingir até quarenta minutos sem
interferências da turma. Os grupos estavam autorizados para chegarem ao campus no dia anterior ao

724
da apresentação, montar todo espaço para o trabalho e realizar os ensaios numa sala reservada para
essa atividade.

Os grupos também poderiam introduzir nas apresentações um vídeo de até quatro minutos sobre
o tema apresentado ou sobre o dramaturgo. Estabeleci que o vídeo seria de quatro minutos, pois na
minha prática docente em momentos anteriores verifiquei que muitas vezes os alunos inserem um
vídeo longo sem fazer observações ou para preencher os momentos da apresentação. Além do tempo
para o vídeo de quatro minutos, o que era exibido precisava mostrar algo que ainda não tinha sido
abordado pelos integrantes do grupo.

Com esses dois momentos de apresentação e representação, verifiquei que era necessário estabelecer
como seria a pontuação dos alunos, se individualmente ou se seria uma nota pelo trabalho do grupo,
visto que essa atividade iria compor uma das notas do bimestre letivo. Decidi que a nota seria ao gru-
po e distribuí um total de dez pontos em várias etapas que deveriam cumprir nesse processo, ficando
da seguinte forma, como mostro no quadro 1:

Quadro 1 – Forma de pontuação na atividade sobre os dramaturgos do século XX.


1 – APRESENTAÇÃO COM SLIDES PONTUAR PONTOS
OBSERVAÇÕES
ATÉ OBTIDOS

Biografia do dramaturgo 1,5


Contexto histórico 1,0
Outras obras e adaptações 1,0
Uso de vídeo: 4 minutos 0,5
Resumo da obra representada 1,0

2 – REPRESENTAÇÃO

Atuação 1,0
O cenário, figurino, som, luz 1,0
Encenação 1,0

3 – TEMPO DO TRABALHO

Até 10 minutos 0,5


Entre 11 e 20 minutos 1,0

Entre 21 e 30 minutos 1,5

Entre 31 e 40 minutos 2,0

TOTAL 10,0

725
Nas duas etapas, era necessária a participação de todos integrantes do grupo. No momento da apre-
sentação, cada aluno ficava responsável para a exposição de um item e também todos participariam
da representação. Porém, diante da timidez de alguns alunos, não exigi a participação de todos no
momento da ‘atuação teatral’, pois alguns não se sentiam numa situação confortável quanto a uma
exposição mais expressiva. Assim, respeitando essa particularidade, alguns alunos participaram nas
atividades técnicas da representação, contribuindo na cenografia, iluminação, sonoplastia e indu-
mentária. Desde o primeiro momento, os alunos iniciavam as apresentações, mostrando os slides e
já caracterizados com a indumentária dos seus personagens. Em seguida, iniciavam a representação.
Não havia intervalo para troca de figurino entre os dois momentos.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os grupos tomaram como ponto de partida para leitura e pesquisa a obra de Campedelli (1996). A
partir desse primeiro contato, desenvolveram a leitura das peças teatrais e se dedicaram às pesquisas
pela internet no laboratório de informática do campus. Acompanhei o desenvolvimento dos traba-
lhos, permitindo que eles usassem da criatividade na elaboração dos slides e representação das cenas.
Somente ao perceber como eles pensavam uma forma estética que o trabalho assumiria, iniciei o meu
trabalho de diretor teatral.

Nessa orientação, desenvolvi, também, minhas habilidades como diretor teatral, além de professor. Ao
perceber que um grupo pretendia um trabalho mais realista/naturalista, buscando os móveis, figurinos
e adereços que estivessem de acordo com o contexto da peça, orientava-os, também, quanto à forma
de proferir o texto, os gestos e algumas marcações para a cena. Essa preocupação aconteceu com o tra-
balho do grupo responsável pela obra teatral ‘A moratória’, de Jorge Andrade, e ‘De braços abertos’, de
Maria Adelaide Amaral. Conforme Jean-Jacques Roubine (1982), verifiquei que alguns grupos, mesmo
sem conhecer as teorias da interpretação teatral, pensavam numa forma estética que se aproximava do
naturalismo e do sistema organizado pelo teatrólogo russo Constantin Stanislavski. Esse cuidado com a
representação como é na vida real podem ser conferidos por meio das figuras 1 e 2.

Figura 1. Apresentação sobre o dramaturgo Jorge Andrade e Figura 2. Apresentação sobre a dramaturga Maria Adelaide
a peça ‘A moratória’. Amaral e a peça ‘De braços abertos’.
Fonte: Arquivo pessoal de Almir Tavares da Silva, abr. 2015. Fonte: Arquivo pessoal de Almir Tavares da Silva, abr. 2015.

Outros grupos pensavam em construir as cenas com uma indumentária que não fosse necessariamen-
te uma cópia da realidade. Também percebi que não tinham a preocupação em construir ou montar

726
uma cenografia real. Os grupos trabalhavam apenas com o necessário para a cena: um adereço muito
específico a ser usado, um lençol no chão, que representaria uma cama, e a inserção de um narrador,
para explicar algumas partes da cena. Identifiquei, com referência em Anatol Rosenfeld (2011), que
alguns tinham ideias que se aproximavam de uma estética do teatrólogo alemão Bertold Brecht, o que
pode ser conferido nas figuras 3 e 4.

Figura 3. Apresentação sobre os dramaturgos Millôr Fernan- Figura 4. Apresentação sobre o dramaturgo Dias Gomes e a
des e Flávio Rangel e a peça ‘Liberdade, liberdade! peça ‘O santo inquérito’.
Fonte: Arquivo pessoal de Almir Tavares da Silva, abr. 2015. Fonte: Arquivo pessoal de Almir Tavares da Silva, abr. 2015.

A diversidade de ideias para a montagem das cenas me impressionou nesse processo. Havia outros
grupos que faziam as cenas sem nenhum recurso ou adereço, ousavam em fazer as cenas com a sala
mais ampla e sem móveis. O corpo e posicionamento dos alunos substituam adereços e móveis junto à
mímica. Outros grupos eram mais exagerados na forma e que se aproximavam da Commedia dell´arte.
À medida que percebia esses sinais, logo os incentivava para que prosseguissem com suas criações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento desse trabalho no ensino do teatro com o estudo sobre os dramaturgos brasilei-
ros do século XX foi realizado num período de aproximadamente dois meses e quinze dias, tempo
estabelecido para o cumprimento de um bimestre letivo. Inicialmente, os alunos não acreditavam que
poderiam desenvolver esse trabalho. Era a primeira vez que eles faziam, na área de Arte, um trabalho
com todas essas etapas e não estavam acostumados, nas séries anteriores, cursadas nas outras escolas.
Mas, juntos fomos percebendo que o trabalho teve uma dimensão maior e, como professor e diretor
teatral, surpreendi-me com os resultados.

O fato de os alunos não conhecerem as teorias da interpretação teatral fez com que eles ficassem livres
para o processo de criação. Eu não enfatizava uma atuação convincente realista/naturalista ou que
provocasse um efeito de catarse aristotélica no público que assistisse à representação teatral. A ativi-
dade foi direcionada para que os alunos conhecessem a dramaturgia, os dramaturgos, um pouco so-
bre a história do teatro no Brasil e experimentar o fazer teatral, combinando pesquisa, teoria e prática.
Os grupos fizeram um trabalho teórico-prático nas aulas de teatro, iniciando pela apreciação, con-
textualizando e produzindo, pontos específicos da Abordagem triangular. Isso fez com que eu com-
preendesse que esses alunos também iniciaram um processo para participarem de uma sociedade
artisticamente desenvolvida, considerando o pensamento de Ana Mae Barbosa:

727
O que a Arte na Escola principalmente pretende é formar o conhecedor, fruidor, decodificador da
obra de arte. Uma sociedade só é artisticamente desenvolvida quando ao lado de uma produção de
alta qualidade há também uma alta capacidade de entendimento desta produção pelo público. (BAR-
BOSA apud BERG, 1996, XIII).

REFERÊNCIAS

AULETE, Caldas. Novíssimo Aulete dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon,
2011.
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1996.
CAMPEDELLI, Samira Youssef. Teatro brasileiro do século XX. São Paulo: Scipione, 1996.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2011.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de janeiro: Zahar, 1982.

728
Proposta triangular na formação
de espectadores
Elaine Bela Vista

1. CONHECER, FAZER E APRECIAR TEATRO

Ana Mae Barbosa afirma, em sua obra A imagem no ensino da arte (1991), que arte não é apenas so-
cialmente desejável, e sim socialmente necessária. Nesse sentido, precisamos de ações que promovam
o fazer artístico e a apreciação estética em todas as camadas sociais, fundamentalmente em momen-
tos cruciais na formação dos seres humanos, a saber: enquanto ocorre a alfabetização semântica e
cultural e no período de transformações próprios da adolescência. Utilizo-me da proposta triangular
elaborada por essa arte-educadora, visando à formação de espectadores de teatro como metodolo-
gia possível para uma pedagogia teatral com crianças e adolescentes na pesquisa de mestrado que
se encontra em andamento. Embora sinta a necessidade de compartilhar uma grande ambição nos
resultados esperados, no sentido de desdobramentos, que as estratégias de formação de espectadores
com um grupo de 25 crianças e adolescentes de Itabuna/BA deverão causar positivamente nas ações
cotidianas desses jovens que participam da pesquisa a médio e a longo prazo.

A estratégia que eu elaborei para estimular jovens de periferia a conhecer, fazer e apreciar teatro se
encontra, primeiro, no contato e afeto entre educandos e educadora; segundo, em planejamentos de
aulas divididas por eixos temáticos pertinentes aos contextos dessas crianças e adolescentes, mesclan-
do, em cada encontro, variadas atividades que promovam esse dinamismo triangular de perspectivas
por parte dos participantes do grupo.

Entre as atividades, proponho jogos teatrais que possam explorar as dinâmicas do lugar de onde se
vê e do lugar de onde se é visto; exibição de alguns curtas metragens; exercícios e dinâmicas de sensi-
bilização e reverberação; círculos de cultura que estimulam o exercício de descrição dos espetáculos
vistos em incursões teatrais feitas pelo grupo, bem como exercícios de descrição dos pensamentos
e sentimentos suscitados no ato de criar cenicamente, assim como as possíveis narrativas do ato de
espectar (apreciar e dialogar com a obra de arte).

Visando um olhar cênico mais habilidoso por parte dessas crianças e adolescentes que a pesqui-
sa acompanha, é desejo implícito, proporcionar uma arte do observador-participante que conhece,

729
questiona, recria e descreve o espetáculo teatral. Para isso, esse estudo objetiva elaborar um trabalho
que desemboque na conquista de uma técnica teatral e na conquista de equilíbrio emocional e cons-
ciência social por parte dos jovens integrantes do grupo acompanhado.

O imbricamento da arte na sociedade promove uma motivação de refletir uma, apropriando-se da


outra.

Quando falo de conhecer arte falo de um conhecimento que nas artes visuais se organiza inter-rela-
cionando o fazer artístico, a apreciação da arte e a história da arte. Nenhuma das três áreas sozinha
corresponde à epistemologia da arte.
O conhecimento em artes se dá na intersecção da experimentação, da decodificação e da informação.
Arte-educação é uma certa epistemologia da arte como pressuposto e como meio são os modos de
inter-relacionamento entre a arte e o público, ou melhor, a intermediação entre o objeto de arte e o
apreciador.
Nem a arte-educação como investigação dos modos pelos quais se aprende arte, nem a arte-educação
como facilitadora entre a arte e o público podem prescindir da inter-relação entre história da arte,
leitura da obra de arte e fazer artístico.
Só um fazer consciente e informado torna possível a aprendizagem em arte. (BARBOSA, 1991, p.
31-32)

Aproprio-me dessa noção organizada para pensar as artes visuais e aplicá-la na dimensão das artes
cênicas. Compreendendo minha função social enquanto arte-educadora, no sentido de justificar as
razões subjetivas e pragmáticas que o conhecimento artístico promove nos indivíduos, especialmente
em crianças e adolescentes, que se encontram em pleno processo de formação. O desenvolvimento
do processo criador dialoga com esferas de ordem emocional e cognitiva do ser que cria. E o fazer
teatral, especificamente, conduz à noção de alteridade, além de que o conhecimento da arte teatral
proporcionar condições de melhor execução de funções práticas nas diversas profissões que estão
ligadas direta ou indiretamente as artes.

O caráter formativo encontra-se presente nessa proposta de sistematizar o encontro de crianças e ado-
lescentes com a arte teatral em suas variadas instâncias. Com fins de apresentar ferramentas capazes
de, através de mãos habilidosas, esculpir espectadores disponíveis ao encontro teatral e que sejam ao
mesmo tempo, protagonistas de suas próprias histórias.

A apreciação artística para aperfeiçoamento crítico-reflexivo é uma das atividades que compõem ciclos
de formação de espectadores junto a esse grupo, por meio de exercícios de descrição das leituras indi-
viduais acerca dos espetáculos teatrais apreciados durante o período de desenvolvimento da pesquisa.
Uma vez que boa parte do ensino de teatro, tanto na educação formal quanto na informal e do ensino
da arte como todo, centrar-se na competência do fazer, considero pertinente uma pedagogia teatral que
abarque esse aspecto de contemplação ativa, tão importante para a aprendizagem da arte. A ideia é de es-
timular jovens a se colocarem nesse lugar de observadores atentos, espectadores que julgam, comparam,
qualificam, respondem e elaboram questões a partir da análise dos espetáculos apreciados.

Por sua vez, o conhecimento mais amplo sobre os gêneros teatrais, algumas obras clássicas, determina-
dos artistas canônicos na história do teatro ocidental, os elementos que estão presentes na engenharia

730
teatral, e demais conhecimentos sobre o universo do teatro, colabora para um aprofundamento sobre
esse saber. Além de fazer e apreciar teatro, é necessário um mergulho na leitura de fazeres de artistas de
teatro, contextualizando esses artistas e suas obras em seus tempos e espaços, traçando um retrospecto
histórico que desemboque em pensamentos importantes para tratar o lugar do espectador, além de
lançar mão de estratégias que visam desenvolver habilidades de decodificação de obras teatrais.

Aperfeiçoando habilidades de criação cênicas por meio da improvisação de cenas sugeridas em jogos
teatrais, é alcançado o valor máximo dessas atividades: a espontaneidade. O fazer teatral, tanto através
de exercícios e jogos praticados em sala de aula, tendo os colegas como espectadores das cenas apre-
sentadas, ou por meio da elaboração de experimento cênico a ser ofertado para um público maior,
parece ser o desdobramento lógico para aprender o prazer do teatro e conhecer os mecanismos que o
constitui (DESGRANGES, 2010). Dessa forma, a experiência de produzir e criar cenicamente através
dos jogos teatrais evidencia o trabalho coletivo como condição fundamental para essa arte, conduzin-
do os jogadores/atores a se reconhecerem como “(...) parte de um todo orgânico motivado pela ação
lúdica” (KOUDELA, 1984, p. 147). Logo, desenvolver esse sentido de cooperação conduz à autonomia
da consciência.

2. SOBRE A PEDAGOGIA DO ESPECTADOR

[...] tomar conhecimento dos mecanismos que envolvem uma encenação, desvendar e apreender a
lógica da teatralidade significam conquistar instrumentos que viabilizem a reflexão acerca dos pro-
cedimentos utilizados em diversas produções espetaculares. O espectador instrumentalizado encon-
tra-se em condições de decodificar os signos e questionar os significados produzidos, seja no palco,
seja fora dele. (DESGRANGES, 2002, p. 37).

Compreendo a pedagogia do espectador como uma atividade que colabora na decifração da cena
como discurso. Assim ela é apresentada na obra Pedagogia do Espectador (2010) por Flávio Desgran-
ges, ação essa, que exige um diálogo entre o espetáculo teatral e seu público. Mais do que o dialogismo
inerente à essa arte, proponho a iniciação de jovens espectadores no universo da arte teatral, com
procedimentos espetaculares e extra-espetaculares, pois, além de viabilizar o acesso físico desse gru-
po a espetáculos profissionais, realizo, concomitantemente, encontros de formação em espaços não
formais de ensino, onde é possível maior aprofundamento de questões que contextualizam o saber
teatral, além de oferecer oportunidade a esse grupo para desenvolvimento de experimentos cênicos
de caráter amador.

Esse estudo parte da análise de argumentos utilizados pelos jovens participantes do grupo, nas discus-
sões realizadas; na construção de textos produzidos por eles acerca do entendimento dos espetáculos
assistidos; também por meio de questionários, como propõe Biange Cabral no seu artigo O espaço
da pedagogia na investigação da recepção (2008). Neste caso, a escolha foi de trabalhar questionários
semiestruturados em algumas ocasiões, entregando-os e discutindo-os antes da apreciação do espe-
táculo teatral, e, em outras oportunidades, só apresentando esse material ao final do espetáculo as-
sistido, sempre solicitando que respondam ao questionário após a fruição cênica, assim como parece
pertinente realizar filmagens dos encontros de formação e incursões teatrais, para que seja possível
observar de maneira precisa ocasiões espontâneas de criação em sala de aula e de interação com equi-
pe técnica e artística de alguns espetáculos visitados pelo grupo.

731
O argumento da pesquisa se inspira nos trabalhos dos animadores teatrais dos anos de 1970, no que diz
respeito à iniciação de espectadores. Ou se preferirmos, na mediação teatral para uma arte da observa-
ção. Embora seja necessário decupar e comparar aspectos que diferenciam especificamente o método
proposto na pesquisa e as ações de trupes das décadas de 70 e 80 em que este primeiro se referencia.

Partindo do princípio de que o processo de mediação sugerido perseguirá um desenvolvimento gra-


dual por parte dos educandos em espaços não formais de educação, e as animações dos anos 70
terem sido práticas teatrais dirigidas ao público infantil por trupes que iam até as escolas (público de
crianças e adolescentes) levar produtos artísticos a esses espectadores, então privados de acesso aos
bens culturais (DESGRANGES), essas intervenções não tinham, portanto, o caráter de continuidade,
sendo ações pontuais, posteriormente muito criticadas devido à baixa qualidade do teatro que passou
a ser oferecido ao público infantil.

A proposta de mediação aqui apresentada, compreendida como evolução de tais práticas, é a de sus-
citar o interesse pelo teatro através do debate estético, a prática de jogos teatrais durante os encontros
de formação e a efetivação da presença desse público de crianças e adolescentes em acontecimentos
cênicos os mais variados. Suponho que, realizando uma incursão na história do teatro, fazendo e
apreciando a arte teatral, esses indivíduos serão conduzidos a um encontro consigo mesmos.

Desde o período do iluminismo, opera-se, intencionalmente, uma modificação na estrutura dramá-


tica, a fim de propagar o pensamento burguês. O eixo do drama burguês centra-se em mergulhar o
espectador na ilusão da ação dramática, por empatia e identificação com o personagem/herói. As
representações passaram a ser sínteses da vida social, que estavam em conformidade com os ideais
burgueses. O espectador é, portanto, convidado a observar esse pequeno mundo como se não esti-
vesse ali, mas o efeito é ser arrastado pela ação dramática, assumindo os interesses do herói da cena.

O teatro épico, por sua vez, utilizou variados recursos cênicos e narrativos para solicitar ao espectador
que desempenhasse uma atitude estética e reflexiva.

O drama moderno surge como oposição a essa empatia por abandono (Brecht, 1978) estabelecida
pelo drama burguês. O convite críticoreflexivo feito ao espectador, nesse caso, pode ser compreendi-
do como um retorno freqüente à própria consciência, descolando-se da pele do herói e reassumindo
seu lugar de observador, seu ponto de vista, fora do mundo fictício, para, desse lugar que lhe é pró-
prio, elaborar um juízo de valor acerca dos acontecimentos levados à cena. Ou seja, a identificação
com o personagem não está inviabilizada, mas a empatia não se efetiva de modo irrefletido. O mer-
gulho no interior do universo ficcional se dá ainda via identificação com o protagonista; colado ao
herói, o espectador imerge na trama. (DESGRANGES, 2009, p. 14)

Brecht foi o teórico/prático que, conscientemente, propôs um desvio no eixo teatral, centrando no es-
pectador a co-autoria da obra de arte. Propondo que esse espectador ativo, ao descortinar as causas que
produzem os efeitos da cena, perceba as engrenagens que produzem as ilusões na vida, ao distanciar-se
da cena esse espectador passa a ter condições de vê-la de um ponto de não-imersão na trama ficcional.
Há a possibilidade de o espectador suspender o juízo para que a análise da composição de ideias lança-
das pelo autor ocorra autonomamente. O dramaturgo se posiciona sobre os temas abordados e dá espa-
ço para que o espectador faça o mesmo, interferindo e sendo solicitado na conclusão e desfecho da cena.

732
Augusto Boal, por sua vez, o homem do teatro brasileiro que ganhou grande reconhecimento interna-
cional pelo método político teatral que elaborou, convida o espectador no Teatro do Oprimido (1996)
a realizar uma dramaturgia simultânea, além de cunhar o conceito espect-atores, no qual enxerga
em cada espectador um ator em potencial, evidenciando o cuidado para que essa participação seja
precedida de uma preparação do corpo dos participantes visando à máxima expressão consciente
e prontidão cênica, convertendo-se de objeto/testemunha para sujeito/protagonista não apenas na
cena, mas também na esfera política.

Revisitar esses procedimentos teatrais que nos precederam, torna-se importante tarefa para melhor
compreender de onde partimos para elaborar uma prática pedagógica voltada para autonomia e pro-
tagonismo de jovens espectadores. A mediação teatral aqui proposta reafirma a necessidade colocada
por Boal, de preparação dos corpos com exercícios dramáticos. Há uma atenção para realização de
atividades de sensibilização antes dos espetáculos assistidos, voltadas para uma experiência que se
efetiva a partir dos jogos teatrais, primeiro no corpo dos jovens participantes, além do movimento de
mediação continuada com aplicação de jogos e dinâmicas pensadas no sentido de reverberação das
inúmeras possibilidades de interpretações e atravessamentos das obras artísticas.

O jogo teatral surge como ingrediente potente na alquimia de depurar espectadores, além de possuir o
caráter agregador e coletivo que suscita questões sobre si e sobre o outro (alteridade). Ingrid Koudela, ao
descrever a experiência com um grupo de adolescentes na obra Jogos teatrais (1984), expõe a fala de uma
jovem que questiona se toda aquela prática tem algo a ver com a vida de cada um, para depois discorrer
sobre os efeitos ou consequências da consciência de si, que despertam reflexões acerca da ideia de iden-
tidade causadas pelos jogos. A permissão para a ludicidade dada a partir dos jogos teatrais sugere uma
revolução no indivíduo que se desdobra em sua maneira de perceber e atuar no mundo.

Criar o gosto pelo teatro é possível, embora seja difícil convencer alguém disso. Esse prazer ocorre na
esfera da experiência do espectador disponível, sendo esse saber de experiência, assim como proposto
por Jorge Larrosa (2002), não no sentido de acúmulo de informação, mas antes, o sujeito da experi-
ência teatral se colocando como território de passagem. O que faz a diferença no papel pedagógico do
teatro que privilegia a experiência do espectador é o convite de mergulhamos em quem nós somos,
caracterizando essa experiência como uma travessia que demanda atenção, receptividade, delicadeza,
de forma a aprender a lentidão para cultivar a arte do encontro tão própria ao teatro.

O desafio de promover uma atuação ativa dos espectadores dentro da constante evolução e trans-
formação da arte teatral é o que me move. Na tentativa de responder como realizar esse desafio e
outras questões norteadoras desse problema, vou efetivando minha prática docente. A formação de
espectadores se torna, desse modo, um campo vasto e pleno de significado na comunhão de minhas
múltiplas facetas profissionais. Eis o lugar do diálogo entre a pesquisadora, a artista e a educadora
social que sou.

Uma vez que a construção do questionário representa uma mediação entre produção e recepção, ar-
ticulada às demais ações que se encontram na seara da pedagogia teatral, a ‘eu-educadora’ traz à tona:
Quais questões considerar ao elaborar um questionário de reverberação de espetáculo? Ou mesmo,
quais temas propor para nortear os planos de aula para os encontros de formação? Como manter vivo

733
o interesse em participar dos encontros do grupo? Quais estratégias utilizar para trabalhar os con-
teúdos e ter o distanciamento necessário a quem pesquisa o processo de formação de espectadores?
Não se pode desprezar que para uma iniciação de espectadores em nosso tempo, onde a teatralidade
e espetacularidade presente nos meios de comunicação a que até os mais jovens tem acesso diaria-
mente, é preciso organização e aplicação de métodos e procedimentos que burlem essa característica
alucinante da vida na contemporaneidade. Visando o prazer do teatro, aplico uma pedagogia que não
se furta em requerer disponibilidade e esforço por parte dos educandos-espectadores.

3. O PAPEL DE ARTISTAS E EDUCADORES NA CONDUÇÃO PARA DECIFRAÇÃO DO MUNDO

Paulo Freire chama a atenção em sua obra Pedagogia da Autonomia (1998) para o caráter formador
do exercício educativo. E é esse princípio que norteia a prática que venho elaborando e sistematizan-
do, enquanto “ensinante” e “aprendente” de teatro, com crianças e adolescentes nos últimos anos. Ou
seja, enquanto estimulo o aprendizado e evidencio o prazer que o conhecimento teatral produz nos
educandos, aprendo a ensinar, regozijando-me do prazer de me formar educadora.

“Quem ensina, aprende ao ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender” (FREIRE, 2009, p. 23). Pensar
os locais, parceiros, sistematizar o planejamento de aulas, selecionar atividades a partir de resultados
esperados que contemplem os objetivos aqui expostos, enfim, organizar esses elementos requer um
saber também disponível durante a própria experiência. E será apenas no contato com esses jovens
que aprendo como pôr em prática todas essas referências anteriormente citadas. Atrair um público
jovem a se interessar por teatro é a meta que aprendo a aplicar enquanto ensino.

Mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma presença no mundo “(...), presença
que pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas
também fala do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe” (FREIRE,
2009, p. 18). Contribuir para uma leitura de mundo através da experiência teatral com esse grupo de
crianças e adolescentes, é estimular o processo de ressignificação de suas presenças no mundo.

Vale trazer para essa discussão a situação do ensino de teatro no Brasil, contemporaneamente, uma
vez que os educadores que ministram conhecimentos teatrais, seja através de oficinas ou por meio
de ‘disciplinas’ que compõem a “grade” curricular, esbarram na relação entre as práticas adotadas
em sala de aula e o sentido de tais práticas para o grupo em questão, de modo que, ao elaborarmos
nossas ações junto a um grupo de educandos, devemos levar em consideração se nossa prática
docente visa responder aos desafios que a sociedade atualmente nos coloca enquanto educadores.
Temos a oportunidade, portanto, de, enquanto fazemos teatro, trabalharmos questões urgentes de
noção de respeito, valor do trabalho coletivo, entre outras, que são absorvidas no próprio fazer/
ensinar teatral.

O papel do educador, não apenas de teatro, mas de toda área do conhecimento, deve estar centrada
no significado de sua prática na vida dos seus educandos. Digerindo referencias teóricas que pressu-
pomos pertinentes, para eleger metodologias possíveis a determinado grupo com o qual estejamos
trabalhando, pensando sempre que as propostas apresentadas possam contribuir para o desenvolvi-
mento dos indivíduos presentes no processo educacional.

734
A situação da formação dos educadores e artistas de teatro, atualmente, encontra-se mais favorável
do que há algumas décadas, devido ao acesso a uma gama de referencial e trabalhos acadêmicos de-
senvolvidos na área, a exemplo da formação continuada, bem como da existência de inúmeros cursos
de graduação em artes. Percebo a necessidade, dessa forma, de aproximar preceitos metodológicos,
preconizados em teorias as mais distintas, com a realidade mesma dos sujeitos que habitam fora dos
muros das universidades, cabendo aos mediadores culturais adquirirem, pela via da experiência, a
sensibilidade suficiente no trato direto com as questões levantadas no ato educativo.

Encontra-se, portanto, na prática docente, o valor do caráter formador. O exercício educativo conduz
a reflexões sobre aprender a viver juntos, tão fundamental em tempos de tamanha intolerância e difi-
culdades de conviver com a diversidade. O educador, dessa forma, é aquele que desafia o educando a
quem se comunica a produzir sua compreensão, fornecendo uma ampliação nos quadros referenciais,
e se pensando enquanto ser comunicador, sempre visando uma prática que facilite a abordagem de
um determinado tema pertinente para o grupo em questão, com oportunidade de diálogo, onde todos
possam se ouvir dentro do coletivo.

A autonomia do ser dos educandos perpassa por uma atitude do educador que os encara enquanto
seres capazes de dar significado ao que fazem. O desempenho de determinadas destrezas não pode
prescindir à urgência de formar cidadãos conscientes e autônomos. O exercício do bom senso é sem-
pre bem-vindo na dinâmica de acesso ao conhecimento, e, no que diz respeito à seara teatral, a ideia,
antes de formar atores, é a de educar para leitura consciente de mundo.

Há um desejo de que a rotina de experimentação artística fará com que esses jovens que acompanho
comecem a frequentar espaços de consumo de cultura e artes em locais que outrora eram desconhe-
cidos para eles. Potencializando nesse grupo a autonomia e reflexão para emancipação, uma vez que
assumindo essa atitude artística de ser espectador, suponho que os integrantes desse grupo serão mais
críticos e obterão material perceptivo para ressignificar suas vivências, socializando-se, desvelando o
mundo, agindo sobre ele e modificando-o.

Também utilizo o recurso das imagens para contribuição da leitura da obra de arte, amparando-
-me, também, em reflexões feitas por Ana Mae Barbosa, na obra A imagem na leitura da obra de arte
(1991), na qual é possível relacionar entre outros argumentos que sustentam a pesquisa de mestrado
em andamento, o de que “(...) aprender a linguagem da arte implica desenvolver técnica, crítica e
criação, e, portanto, as dimensões sociais, culturais, criativas, psicológicas, antropológicas e históricas
do homem” (BARBOSA, p.43).

A arte como esfinge contemporânea diz ao seu espectador: ‘Decifra-te ou devora-me!’ É preciso co-
nhecer a si mesmo para perceber a força e a volúpia contidas em cada um dos seres humanos, no
sentido de eliminar problemas no âmbito pessoal e na esfera social. Toda mudança precisa passar por
esse lugar de autoconhecimento. Suponho que, se eu, enquanto educadora, puder proporcionar aos
jovens educandos com os quais desenvolvo uma prática pedagógica a oportunidade de conhecer mais
sobre a história do teatro, o fazer através de jogos teatrais ou no próprio exercício do experimento
cênico aberto ao público, e, vivências constantes do ato de apreciar teatro, estarei contribuindo na
formação de espectadores mais críticos: jovens protagonistas de suas histórias, que valorizam o poder

735
transformador da arte teatral, uma vez que se apropriam desse saber para melhor saberem-se a si
mesmos.

A matéria prima de toda sociedade é seu povo. Uma vez que as células desse corpo social são os
indivíduos, primeiro necessitamos de um mergulho pessoal para descobrir quem somos, para, em
seguida, reconhecer e respeitar o que nos distingue dos demais. Assim, percebemos numa experiência
corporal, proporcionada pelo ato de representar, o sentido próprio de alteridade, contextualizamos
histórica e tecnicamente o que envolve essa área do conhecimento, lançamo-nos na fruição de espe-
táculos teatrais, dialogando com as demais experiências, para, em seguida, obtermos ferramentas que
colaborem para refletir e agir sobre a realidade do mundo, transformando-a.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.
BOAL, Augusto. O teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1996.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online], 2002, n.
19, p. 20-28. ISSN 1413-2478. Disponível em: http://dx.doi. org/10.1590/S1413-24782002000100003.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. 2. ed. Tradução de Fiama pais Brandão. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira S.A., 1964.
CABRAL, Biange. O espaço da pedagogia na investigação da recepção do espetáculo. São Paulo, Sala Preta, Uni-
versidade de São Paulo, 2008, p. 41-47.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
______. Pedagogia do teatro: Provocação e dialogismo. 3. ed. São Paulo: Editora Hucitec; Edições Mandacaru,
2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia - Saberes necessários à prática educativa. 9. ed. São Paulo: Paz e Terra,
1998.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1984.

736
A abordagem triangular
no ensino-aprendizagem de dança:
caminhos possíveis
Verônica Teodora Pimenta

1. DA ABORDAGEM TRIANGULAR PARA A TRIANGULAÇÃO


NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE DANÇA

Neste trabalho, é assumido o desafio de estudar o ensino-aprendizagem de Dança na escola através


da Abordagem Triangular do Ensino de Artes, registrando-se possibilidades metodológicas inferidas
a partir do confronto entre o referencial teórico e a observação de aulas de Dança numa escola. Para
tal, foi realizada uma pesquisa campo, de referências bibliográficas, além da revisitação de diários de
bordo redigidos durante dois estágios de Licenciatura em Dança, frequentados pela pesquisadora, nos
quais foi adotada a metodologia de observação participante. Os trabalhos de observação e interven-
ção ocorreram numa escola de Ensino Fundamental da rede privada260, no segundo semestre de 2014
e no primeiro semestre de 2015. Nesse período, a pesquisadora conviveu com 12 (doze) turmas de 2º,
3º, 6º e 7º anos do Ensino Fundamental, sob a responsabilidade de 02 (duas) professoras da disciplina
“Artes/Dança”, e quantidade de matriculados variando, em média, de 15 (quinze) e 20 (vinte) pessoas.
A pesquisadora observou, ainda, o processo de criação coreográfica e respectivos ensaios dos alunos
para uma mostra artística realizada na escola.

Quando se discute a origem da Abordagem Triangular, fala-se também da emergência de um paradig-


ma educativo diverso do tradicional e correspondente ao esforço de superar a ideia de arte enquanto
“livre-expressão” (BREDARIOLI, 2010, p. 30). Enfatizam-se, assim, as Artes desenvolvidas na escola
como resultados de processos de construção histórica e de conhecimentos específicos. Por exemplo, a
noção de prática de Dança se modifica conforme a noção de técnica corporal adotada, da mesma for-
ma que uma proposta pedagógica para a contextualização de obras pode ser transformada segundo
as relações estabelecidas dentro do seio das comunidades de aprendizagem. A Dança também pode
ser contextualizada, vivencialmente, em cada uma das corporalidades envolvidas nos processos de
criação e de ensino-aprendizagem.

260. Nome e localização da escola estão omitidos para preservar a identidade dos que participaram da pesquisa, conforme procedimento
ético.

737
Segundo Barbosa (1989, p. 172), geralmente, a “apreciação artística e a história da arte não têm lu-
gar na escola”. Entretanto, a contextualização das Artes pode ser entendida como algo maior do que
simplesmente oferecer informações sobre as obras e os seus referenciais históricos. É também possi-
bilitar que educandos e educadores elaborem e reelaborem constantemente suas propostas artísticas
de modos críticos, reinventem-se através de lógicas e necessidades próprias. Um aspecto presente na
Abordagem Triangular é a contextualização como meio de desnaturalizar a ideia de expressão em Ar-
tes. Assim, a dimensão de ensino-aprendizagem aqui desenhada não é meramente técnica, pois inclui
a integralidade do conhecer artístico: aspectos intelectuais, afetivos, sensíveis, emocionais, cognitivos,
históricos, ambientais, etc.

Marques (2011) traduz os princípios da Abordagem Triangular para o ensino-aprendizagem de Dança


através da ligação entre o triângulo artístico formado pelos vértices praticar-conhecer-contextualizar
a outros dois tripés – o do ensino e o da sociedade – à maneira de um “caleidoscópio” (MARQUES,
2011, p. 55). Assim, o sujeito pode praticar e construir Arte enquanto conhecimento de si mesmo,
dos outros e da realidade em que vive. Da mesma forma, a sociedade não se coloca nas produções de
Dança apenas como um dado concreto para as coreografias, mas principalmente como uma realidade
imaginada, percebida e vivida (MARQUES, 2010; 2011). Numa súmula, o ser humano é produtor de
sentidos, esteja ele na condição de público, de crítico, apreciador ou autor das obras artísticas.

Outro desafio quanto à prática de Dança na escola é a necessidade de superar a cultura marcada pelo
ideário da aprendizagem mecânica de movimentações corporais, mediação estabelecida em determi-
nadas noções de cópia e mimese de passos, geralmente codificados previamente pelos professores ou
coreógrafos. Nessa outra concepção de ensino-aprendizagem, ora abordada, os educandos podem ser
considerados autores, mais do que meros executores de coreografias. Dessa forma, entende-se que o
ensino-aprendizagem pode ser uma prática articuladora de contextos vários – artísticos e sociais – o
que inclui até mesmo a interpretação de Danças já existentes (MARQUES, 2011) e não necessaria-
mente a criação de movimentos inéditos. O objetivo geral é que seja superada a realização de fazeres
acríticos no campo da educação em Dança. Essa produção consiste, dentre outros elementos, no
próprio reconhecimento de saberes artísticos contextualizados em novos fazeres, práticas e possibili-
dades de apreciações. De modo complexo, articula-se o caleidoscópio do tripé ensino-arte-sociedade.

2.A TRIANGULAÇÃO DO ENSINO-APRENDIZAGEM DE DANÇA NA ESCOLA PESQUISADA

2.1. Um projeto de ensino-aprendizagem de dança

Ambas as professoras acompanhadas eram artistas-docentes: mantinham práticas artísticas paralelas


à escola onde trabalhavam e possuíam formações de licenciaturas originárias de escolas superiores de
Artes. Uma delas declarou ser licenciada em Teatro e possuir, dentre outras formações, a certificação
pela Royal Academy of Dance. Sua experiência artística incluía práticas de atuação cênica e de ensi-
no de Ballet, Jazz e Sapateado, técnicas cujos estudos foram iniciados ainda na infância. A segunda
professora informou que estava cursando Licenciatura em Dança e atuava nos campos da Dança
do Ventre e das Danças Populares Brasileiras, com destaque para as Quadrilhas Juninas. Além dos
referenciais teóricos da Abordagem Triangular – destacados voluntariamente por apenas uma das
profissionais – ambas reconheceram, como documento de base, os Parâmetros Curriculares Nacio-

738
nais (PCNs). Assim, os resultados apresentados nos quadros a seguir contaram, sobretudo, com as
inferências do processo de observação e pesquisa. Não necessariamente houve a manifestação – por
parte das professoras ou educandos – de associações conscientes e diretas entre os trabalhos em sala
de aula e os aspectos artísticos, metodológicos e de reflexão destacados.

Para os PCNs de Artes, “o conjunto de conteúdos está articulado dentro do processo de ensino-
-aprendizagem explicitado por intermédio de três eixos norteadores: produzir, apreciar e contextua-
lizar” (BRASIL, 1998, p. 49). O documento também destaca a necessidade de se propiciar, através da
experiência artística marcada pelo tripé mais claramente fundamentado na Abordagem Triangular,
“um clima de trabalho em que a curiosidade, o constante desafio perceptivo, a qualidade lúdica e a
alegria estejam presentes junto com a paciência, a atenção e o esforço necessários para a continuidade
do processo de criação artística” (BRASIL, 1998, p. 99). Especialmente no Ensino Fundamental I, foi
observada a preocupação de traduzir elementos previstos nos PCNs para o vocabulário das crianças
(Quadro 1). Por exemplo, o trabalho de exploração do espaço e seus níveis foi estimulado por meio
de comandos metafóricos como: “Vamos caminhar pela floresta?”; “Como fazer uma escultura hu-
mana em que três ou quatro corpos encontram apoios entre si?” “Como o leão caminha na floresta?
E a cobra?”

Quadro 1 – Paralelos entre enunciados e aspectos artísticos

Vocabulário de movimento no
Aspectos Artísticos Previstos nos PCNs/Arte/Dança.
Fundamental I
Experimentação e pesquisa das diversas formas de locomoção,
“Caminhar pela floresta” deslocamento e orientação no espaço (caminhos, direções e
planos).
Reconhecimento dos apoios do corpo explorando-os nos planos
“Andar como minhoca”
(os próximos ao piso até a posição de pé).
Experimentação e pesquisa das diversas formas de locomoção,
“Pular como macacos” deslocamento e orientação no espaço (caminhos, direções e
planos).
Observação e experimentação das relações entre peso corporal e
“Bater asas como pássaros”
equilíbrio.
Reconhecimento dos diferentes tecidos que constituem o corpo
Acionar todas as “dobrinhas do corpo” (pele, músculos e ossos) e suas funções (proteção, movimento e
estrutura).
Fonte: Elaboração da autora, com base nos PCNs (BRASIL, 1998) e nos resultados da pesquisa.

A professora do Ensino Fundamental I solicitava que as crianças ficassem atentas a “todas as do-
brinhas do corpo”, ou seja, às articulações. Já os alunos de 6º e 7º Anos do Ensino Fundamental II
demonstraram, quase sempre, a necessidade de explanações concretas. Por exemplo, quando a pro-
fessora solicitou “caminhar no andamento musical”, eles devolveram a pergunta: “o que é andamento
musical?”. Em outra situação, quando a docente afirmou ser necessário “trabalhar mais na posição de
cócoras para evitar o encurtamento de tendões”, eles devolveram a pergunta: “o que é um tendão?”. E
dessa forma, o ensino de Dança se articulava com conceitos dos campos da Música ou de Anatomia,
dentre outras possibilidades.

739
2.2. Procedimentos metodológicos observados e inferidos

Os procedimentos metodológicos adotados pelas professoras observadas foram variados. Em quase


todas as aulas houve práticas de investigação do movimento corporal. Notou-se, ainda, a forte presen-
ça de exercícios de Improvisação em Dança e de jogos voltados para a criação plástica e/ou teatral do
movimento. No caso específico dos adolescentes, a professora destacava sempre que buscassem “fazer
algo diferente” do que já haviam realizado e também que se diferenciassem uns dos outros, através de
movimentações autorais, inventadas por eles mesmos.

Quadro 2 – Enunciados e atitudes observadas no ensino-aprendizagem de Dança

ENUNCIADO DA PROFESSORA ATITUDES DOS ALUNOS


Acalmaram-se, ao mesmo tempo em que experimentaram
Respirar
apoios corporais diversos.
Propuseram movimentos a partir de referenciais anatômicos
Conhecer/escolher partes do corpo para (joelhos, articulações, quadris, coluna vertebral) como
fazer com que o movimento aconteça. princípios do movimento. Eles tiveram de expor verbalmente
os referenciais com que trabalhavam.
Caminharam, observando o equilíbrio da ocupação da sala pelo
conjunto da turma; indicaram a criação de espaços imaginários,
a exemplo dos exercícios de “quadros-vivos”, nos quais
Explorar o espaço situavam a atitude e a postura corporal em lugares e durações
específicas, por exemplo: um shopping center, uma praia, uma
loja de sapatos, uma viagem num trem de ferro, um parque de
diversões, etc.
Fonte: A autora, resultado da pesquisa

Claramente inspirada nos “temas de movimento”261, de Rudolf Laban (1879-1958), a professora do


Ensino Fundamental II propôs que os alunos partissem de ações do cotidiano como andar, correr,
caminhar, saltar, empurrar, carregar, etc. Através das variações de um mesmo tema de movimento
(Quadro 3), alguns educandos tiveram a chance de perceber as próprias limitações e de superá-las
ao realizar novas tentativas de determinados exercícios, sem, com isso, ter a impressão de que se tra-
tasse de uma penalização pelo seu rendimento (e de fato não se tratava disso). As variações também
permitiram observar que boa parte dos educandos dominaram gradualmente, em lapsos temporais
diversos, os temas estudados.

Quadro 3 – Variações de um mesmo tema na investigação de Dança


TEMA DE
VARIAÇÕES DO TEMA OBJETIVOS DE ENSINO-APRENDIZAGEM
MOVIMENTO
Estudo do ritmo e compasso musical através do
Andar Andar no pulso musical.
movimento.
Andar Arriscar formas diferentes de andar. Criatividade/Invenção de movimentos.

261. Rudolf Laban é citado na bibliografia do programa de ensino de Dança apresentado por uma das professoras. Laban organizou 16
(dezesseis) temas através dos quais pode ser estudado o movimento humano. A partir de ações espontâneas e cotidianas também se orien-
tam pesquisas do indivíduo para a conquista progressiva e o domínio corporal. Para conhecer os temas em detalhes consulte Dicionário
Laban (ver: RENGEL, 2001, p.116-128).

740
Andar em todas as direções, andar Estudo do espaço onde acontece o movimento e
Andar da espacialidade do próprio corpo.
de costas.

Andar “com os pés pronados ou Conhecer termos técnicos que auxiliam no


Andar estudo do movimento.
supinados”.
Promover variações de um mesmo tema,
engajando sensações e imagens, a fim de que
Andar Andar “como um robô”. o educando problematize, com autonomia, a
proposição da professora.
Descobrir apoios corporais, explorar o contato
Andar Andar “sem ser bípede”. com objetos e com outros corpos humanos
através da Dança.
Relacionar o espaço pessoal aos espaços pessoais
Correr Correr “sem trombar”.
dos demais dançarinos.

Correr para longe ou para perto do Relacionar o espaço pessoal com a espacialidade
Correr do próprio movimento.
colega.
Fonte: A autora, resultado da pesquisa

Algumas formas de contextualização vivencial dos princípios de Dança foram observadas nos
estudos de temas de movimento como “carregar”, “despedir” e “levantar”. Os alunos foram convi-
dados a responder, através da ação e do gestual, à questão implícita: “carregar o quê?” “despedir-
-me do quê ou de quem?” “levantar o quê?”. As novas problematizações corporais dos proble-
mas lançados pela professora foram variadas. Os jovens carregaram objetos imaginários como
baterias de celular e de carro, objetos leves e pesados, ou mesmo os próprios colegas, etc. Com a
ação “despedir”, ocorreu o mesmo: despediram-se em tons de lamento, de alegria, demitiram um
trabalhador, etc.

2.3. Processo de criação coreográfica

O trabalho de criação coreográfica e os ensaios foram observados exclusivamente com 03 (três) tur-
mas do Ensino Fundamental II. Inicialmente, foi solicitado a cada um dos alunos que propusesse
sequências de movimentos, que eles denominaram “oitavos” ou simplesmente “oitos”. Esse intervalo
não incluía necessariamente oito movimentos, podendo haver pausas e quebras de ritmos. Numa se-
gunda etapa, as turmas foram divididas em grupos menores. Cada conjunto de três ou quatro pessoas
construiu uma pequena sequência de movimentos através da união dos “oitavos” criados individu-
almente e com antecedência. Por fim, todos os grupos tiveram que estudar formas consensuais de
ligar suas partituras individuais integrantes para, depois, ensiná-las ao conjunto da turma. Ao mesmo
tempo, o coletivo ia conhecendo e problematizando essas partituras. Posteriormente, os educandos
tiveram também de conduzir, em voz alta, a contagem e o ritmo em que gostariam de ver os colegas
dançando suas criações. Em outras, o movimento era descrito verbalmente, o que também passava
pelo reconhecimento de determinados referenciais anatômicos utilizados quando da estruturação
dos “oitavos” iniciais.

Com um semestre letivo de antecedência, os alunos haviam sido convidados a levantar propostas de
tema para as coreografias a serem apresentadas na Mostra de Artes. Identificou-se, assim, a utilização

741
dos “temas geradores”262 de Dança, que de acordo com Isabel Marques (2011), permite falar de con-
textualização através de uma rede complexa de Dança/Educação, a qual, fatalmente, une realidades
“sentidas”, “imaginadas” e “vividas” (MARQUES, 2011, p. 100). As propostas de temas coreográficos
apresentadas pelos alunos, ainda no segundo semestre de 2014, incluíram: “a felicidade e a tristeza de
todo dia”; “brigas familiares”; “harmonia em família”; “folclore, ou sobre a falta dele”; “famílias boas e
ruins”; “vidas boas e ruins”; “filhos que não convivem com os pais porque eles não têm tempo”; “Apo-
calipse”; “diversidade da Dança ou das culturas (incluindo Danças Urbanas e músicas eletrônicas)”.
Cada turma construiu uma coreografia com uma composição musical diferente, um tecido formado
pela mistura dos “oitos” individuais e das partituras de cada um dos grupos.

No espetáculo final, as coreografias acabaram por tratar da banda britânica Queen e do cantor Freddie
Mercury. Toda a peça se constituiu na junção dos trabalhos de cada uma das turmas. Antes disso e
após a proposição dos temas, a escolha dos jovens havia sido transformada num trabalho interdisci-
plinar, possibilitado pela parceria entre as áreas de Artes e de Língua Inglesa. No dia da apresentação
da coreografia, a professora de Dança falou ao microfone, informando à comunidade escolar que toda
a concepção cênica e de movimentos havia sido dos próprios alunos. Seu papel tinha sido orientar os
jovens, “organizando” e “costurando” os principais elementos pesquisados em sala de aula. O cenário
do palco foi composto de projeções das pesquisas realizadas pelos educandos: vídeos, fotografias e re-
portagens sobre a banda Queen, Freddie Mercury, o mundo do show business, a problemática da AIDS
e a busca de cura para a doença. Em tempo: o trabalho de apreciação envolveu, posteriormente à
apresentação num teatro da cidade, uma sessão de exibição do registro em vídeo e rodas de conversa.

2.4. Praticar-Contextualizar-Apreciar a Arte da Dança

Observou-se a construção do conhecimento em Dança nas seguintes formas: a) propor criações in-
dividuais e compartilhá-las em grupos; b) aprender a respeitar e a valorizar a produção estética do
outro; c) reconhecer identidades através de movimentos corporais próprios e do seu tratamento esté-
tico; d) conhecer a própria geografia corporal e os respectivos referenciais anatômicos; e) conquistar
a segurança necessária para navegar e lançar-se no espaço. No Quadro 4, destacam-se elementos
metodológicos observados nesse processo construtivo.

Ambas as educadoras enfatizaram, por diversas vezes, que as aprendizagens de Dança também são “le-
vadas para a vida”. Observaram-se os seguintes pontos de contextualização artística, marcada pela co-
nexão entre a prática artística e a vida: a) os alunos foram constantemente convidados a organizar os
próprios sapatos, que num ímpeto eram largados desordenadamente; b) alguns adolescentes estavam
com chulé e foram destinados alguns minutos – em mais de uma aula – para se falar sobre a importância
da higiene e do gostar de si mesmo; c) os grupos observados eram formados por pessoas com habili-
dades e capacidades diversas; d) foram admitidas formas variadas de responder e reproblematizar um
mesmo enunciado de Dança; e) os alunos foram convidados a observar as maneiras como os colegas
dançavam; f) os grupos de trabalho eram mistos e formados também por pessoas com limitações físicas

262. Marques inspira-se no conceito de “temas geradores” de Paulo Freire (1921-1997). Partindo do princípio de que o ato educativo é
dialógico, Freire concebeu os temas geradores como pontes entre as realidades dos educandos e educadores. O diálogo é a instância me-
diadora, cujo objetivo final é sugerir que os alunos desenvolvam o saber por meio de apropriações críticas e reflexivas, superando dessa
maneira a relação natural/acrítica com qualquer campo de conhecimento tratado. Ver: FREIRE, 1996.

742
e intelectuais aparentes e não aparentes; g) o senso de diversidade destacado nos itens “e” e “f ” também
foi reforçado através da simples convivência artística entre pessoas com e sem deficiência.

Quadro 4 – Elementos metodológicos para uma prática de ensino de Dança na escola.


ELEMENTO METODOLÓGICO DESCRIÇÃO
Perguntas feitas aos educandos:
- Posso apoiar com outras partes do corpo?
- Estou andando no pulso musical?
- O movimento é rápido ou lento?
- Estou muito próximo dos colegas ao dançar?
- Posso andar no nível alto, acima do nível em que caminho?
- Existem formas sinuosas de andar?
Lançar perguntas - Será uma Dança que todos conseguem fazer?
- O que posso aprender observando o colega?

As perguntas são como camadas que contribuem para as descobertas


artísticas e também para aprimorar o senso de observação.
As improvisações aconteceram primeiro. Posteriormente, os
educandos foram estimulados a pensar e falar sobre a prática de
improvisação.
Todas as atividades realizadas individualmente ou em grupo
costumavam ser apresentadas à turma. A professora enfatizava que
era preciso observar a si mesmo para aprender a fazer diferente,
Estimular a observação
transformando o movimento que já se viu ou que já foi executado.
Havia o reforço contínuo de atitudes desejáveis, traduzidas em falas
como: “sejam criativos, busquem outros apoios”.
A Professora solicitou aos educandos que explorassem um objeto
concreto, mas transformando-o num objeto imaginário. Por
exemplo, uma luneta virou um carrinho de supermercado; uma
Valorizar a imaginação e o “segredo” flauta uma cola bastão; um rolo de massa virou um telefone; um
(a comunicação não-verbal) martelo, uma marcha de carro, uma banana de dinamite, etc. Ela
também propôs a ocupação de espaços imaginários e que eram
criados pelos educandos e só descobertos pelo espectador durante
a solução cênica, como uma dinâmica de “quadros-vivos”.  
À maneira de uma diretora de cena, a Professora oferecia o retorno
crítico imediata e continuamente aos alunos, durante a condução
dos exercícios ou logo após os mesmos, em rodas de conversa. Certa
Avaliar Continuamente vez, a um aluno se aproximou buscando aprovação. Ela destacou,
então, não existe “bom ou ruim”, “certo ou errado” e que o objetivo
de se estudar Dança na escola “é descobrir como o corpo pode se
movimentar”. 
Fonte: A autora, resultado da pesquisa.

Diante das observações anteriores e à guisa de uma conclusão, propõe-se o seguinte detalhamento de
uma possível Abordagem Triangular no ensino-aprendizagem de Dança:

Praticar: criar a Dança através da investigação de possibilidades para a movimentação do próprio


corpo, tal como ele é. Executar partituras criadas por terceiros de modo a compreender o raciocínio
adotado. O princípio não é a forma exterior da coreografia, mas conhecer a lógica organizada através
de atualizações do movimento; o pensamento que se desenha, sobretudo, através da experiência de
Dança em primeira pessoa.

743
Figura 1. Abordagem Triangular no Ensino de Dança.
Fonte: A autora, resultado da pesquisa.

Contextualizar: conectar a aprendizagem pessoal com a produção de Dança do coletivo, com a rea-
lidade em que está inserida a escola (cidade, estado, país). Propor a produção de Dança do presente
em diálogo crítico com as produções do passado e as demais que se tem conhecimento na contempo-
raneidade e no espaço da escola. Propor também leituras críticas da(s) História(s) da Dança que nos
chegam de modos não lineares e das quais nos apropriamos por meio de perspectivas próprias, em
mundos “sentidos”, “imaginados” e “vividos” tal como aponta Marques (2011).

Apreciar: aprender a compreender a diversidade das propostas de Dança, independentemente dos


gostos pessoais. Propor a cada indivíduo que observe como ele mesmo dança e como dançam os seus
colegas. Observar criticamente o que propõe o educador e os demais colegas em trabalhos de grupo,
conectando percepções autorais às expressas pelos outros com quem se compartilham as diversas
culturas e devires de Dança.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O referencial da Abordagem Triangular facilitou a percepção de caminhos para um ensino-apren-


dizagem de Dança capaz de superar a ênfase mecânica de ensino, por meio da cópia vazia e descon-
textualizada de coreografias, geralmente criadas pelos professores. O tripé praticar-apreciar-contex-
tualizar também se mostrou uma relevante referência para a constituição de projetos metodológicos
pelos artistas-docentes de Dança, tanto no que diz respeito à mediação de posturas investigativas,
como ao apoio à produção autoral e inclinada à pluralidade de concepções artísticas. Isso implica em
compreender os saberes relativos às técnicas corporais como fazeres históricos, heteróclitos e capazes
de serem processados por diferentes necessidades contextuais.

744
Mostras e aulas abertas podem ser eficientes estratégias para facilitar a compreensão do ensino-
-aprendizagem de Dança enquanto processo artístico e fundamental para o desenvolvimento integral
do educando. Esse saber também passa pela prática de ensino-aprendizagem de Dança na escola
como ato de pesquisa pelo professor. Tal demanda inclui ainda a experiência cênica da Dança na
escola, bem como a compreensão de que os produtos artísticos não são necessariamente encaixáveis
à proposta de mero entretenimento. As práticas de Dança observadas na escola em questão também
foram belos convites para compreender que a formação cidadã e o comprometimento com as ques-
tões do mundo começam no próprio corpo do ser humano. No dançar de muitos desses educandos,
viu-se o desabrochar de processos reflexivos e problematizações artísticas da realidade.

REFERÊNCIAS

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n. 0, out. 2003. Disponível em: <http://www.revista.art.br/site-numero-00/ anamae.htm>. Acesso em: 04 ago.
2015.
BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados, Tra-
dição de Sofia Fan, São Paulo, v. 3, n. 7, p. 170-182, set./dez. 1989.
BARBOSA, Ana Mae. Introdução. In: BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira (Orgs.). A abordagem
triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Editora Cortez, 2010, p. 09-24.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Arte-Ensino de quinta a oita-
va séries / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1998. 116 p.
BREDARIOLLI, Rita. Choque e formação: sobre a origem de uma proposta para o ensino da arte. In: BARBO-
SA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira (Orgs.). Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais.
São Paulo: Cortez, 2010, p. 27-42.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
MARQUES, Isabel. De tripé em tripé: o caleidoscópio do ensino de dança. In: BARBOSA, Ana Mae; CUNHA,
Fernanda Pereira (Orgs.). Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais. São Paulo: Cortez,
2010, p. 211-228.
MARQUES, Isabel. Ensino de dança hoje. Textos e contextos. 6. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011.
PIMENTEL, Lúcia Gouvêa. Fruir, contextualizar e experimentar como possível estratégia básica para a investi-
gação e possibilidade de diversidade no ensino de arte: o contemporâneo de 20 anos. In: BARBOSA, Ana Mae
e CUNHA, Fernanda Pereira (Orgs.). Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais. São Paulo:
Cortez, 2010, p. 211-228.
RENGEL, Lenira Peral. Dicionário Laban. 2001. 138 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes,
Universidade de Campinas, Campinas, 2001.

745
Coletivo Eu Passarinho:
a essência do sensível como prática
e pesquisa além da academia
Adélia Oliveira/ Amanda de Souza

INTRODUÇÃO

Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore. Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele
passarinho. No estágio de ser árvore, meu irmão aprendeu mais de sol, de céu e de lua mais do que na
escola. No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu pra santo mais que os padres lhes ensinavam no
internato. Aprendeu com a natureza o perfume de Deus. Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu
melhor o azul. E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida no tronco das árvores só serve
mesmo pra poesia. No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas. Que
justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara, envaidecia-se quando era nomeada
para o entardecer dos pássaros e também tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos bre-
jos. Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore porque fez muita amizade com as
borboletas. (BARROS, 2000).

O que poderia ser feito para potencializar ou gerar a curiosidade sobre o conhecimento das Artes
Visuais? Como ativar o “estado de ser árvore”? Que meios utilizar para que a experiência finde em
aprendizado?

Com a tentativa de responder a estas perguntas, temos como fio condutor desta pesquisa, as ex-
periências de um grupo criado por nós, alunas da graduação em Artes Visuais da UFPE. Nossos
trabalhos são voltados para a apropriação e o pertencimento artístico/social, extrapolando barrei-
ras invisíveis relacionadas ao conhecimento sobre artes, faixa etária, linguagem artística, leitura de
imagem e alfabetização imagética, estética, poética pessoal, espaços expositivos e público. Criado
em 2013, o Coletivo Eu Passarinho nasce com o intuito de aproximar a arte da vida das pessoas
comuns em seus respectivos espaços, num encontro onde se possa compartilhar saberes científicos,
históricos e emocionais sobre Artes Visuais. Nasce respeitando o aprendizado através da troca.
“Nas condições de verdadeira aprendizagem, os educandos vão se transformando em reais sujeitos
da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador igualmente sujeito do
processo” (FREIRE, 1996).

746
O Coletivo Eu Passarinho é uma iniciativa Arte/Educativa que tem como objetivo organizar e oferecer
encontros lúdicos formativos, a fim de descentralizar, fomentar e aproximar conhecimentos acerca
das Artes Visuais ao público em geral. Desenvolvemos projetos que promovam ações culturais e
educativas que visam democratizar as artes visuais através de oficinas artísticas, com metodologias
brincantes e poéticas, que facilitam explanações sobre movimentos artísticos que compõem a his-
tória das Artes, experimentações de técnicas, observação sobre a atemporalidade estética de artis-
tas mundiais e locais, a fim de que o público construa significados que desrespeitem a apreciação,
redescoberta e apreço pela experiência pessoal/afetiva do ver, compreender e fazer artístico. “Arte/
Educação é todo e qualquer trabalho consciente para desenvolver a relação de públicos (crianças,
comunidades, idosos, etc.) com a arte, como em um diálogo em que um está dentro do outro”.
(BARBOSA, 2011, p. 22)

Traduzimos, em nossos trabalhos, o que sentimos, quando pensamos em nossas próprias histórias
de vida. Enquanto estudantes, nos contavam uma história que não nos reconhecíamos. Acolhemos,
então, a ideia de construir narrativas sobre as artes a partir de nós e do encontro com o outro. O
que você traz de seu na arte que você encontra na arte que você sente? Partindo desta premissa, bus-
camos a essência do sensível, do afeto e da criatividade presente na memória da infância a grande
referência para todo e qualquer tipo de trabalho que realizarmos. Acreditamos na expressividade
e no imaginário livre como grandes elementos de força estética e produção plástica. Foi assim que
nos aproximamos das Artes, foi por percebê-la tão próxima, chegando a pulsar dentro da memória
que a escolhemos. É assim que gostaríamos que as pessoas encontrassem arte em suas memórias,
viva, pulsante!

A arte tem assim uma função que poderíamos chamar de conhecimento, de ‘aprendizagem’. Seu do-
mínio é o do não-racional, do indizível, da sensibilidade: domínio sem fronteiras nítidas, muito di-
ferente do mundo da ciência, da lógica, da teoria. Domínio fecundo, pois nosso contato com a arte
nos transforma. Porque o objeto artístico traz em si, habilmente organizados, os meios de despertar
em nós, em nossas emoções e razão, reações culturalmente ricas, que aguçam os instrumentos dos
quais nos servimos para apreender o mundo que nos rodeia. Entre a complexidade do mundo e a
complexidade da arte existe uma grande afinidade. (COLI, 1995, p. 15).

1. HISTÓRIAS DO NOSSO SENTIR E FAZER ARTE

Nós duas escolhemos estudar ARTE. Em nossas famílias, somos as primeiras a conseguir adentrar
num curso superior. Nossas infâncias fizeram parte de brincadeiras de quintal e brinquedos culturais
e populares de nossa terra. Somos enraizadas de música, dança, lantejoulas e batuques. Somos crias
das habilidades manuais, criativas, doces e delicadas de nossas mães. Somos sementes das histórias
inventadas e reais de nossos pais. Nós também somos duas mulheres vindas de favela. Uma vem do
Bode e a outra do Alto do Pascoal. Hoje, somos duas mulheres estudantes do Curso de Licenciatura
em Artes Visuais na UFPE, pretendendo ser Arte/Educadoras. Temos muitos sonhos, um deles: tra-
balhar em nossa área. Hoje sonhamos com os pés em nuvens, sim, as nuvens são nosso chão mesmo.
Hoje somos passarinhos de um céu de nuvens coloridas e já de muitas histórias e infinitos. Somos o
Coletivo Eu Passarinho, carregamos conosco a bagagem do que aprendemos sobre Arte em casa, na
Universidade e no mundo. Compartilhamos nossos saberes e aproximamos a Arte da vida de quem

747
nos encontra e que, muitas vezes, assim como nós, não tiveram oportunidades de acesso ao universo
das Artes Visuais, com suas histórias, pesquisas e conhecimentos. Semeamos como os passarinhos.
Carregamos sementes no bico. Eis aqui o que somos. Eis aqui o queremos ser: mediadoras, artistas,
Arte/Educadoras, no museu, na sala de aula, no espaço expositivo ou simplesmente num equipamen-
to cultural, chamado: “qualquer lugar”.

As aprendizagens da vida cotidiana, longe de serem sempre fáceis de fazer, obrigam a operar um des-
locamento do olhar sobre as coisas para revelá-las de outro modo e fazer emergir sentidos ocultos.
Esse novo olhar sobre o comum transforma as representações do cotidiano e, desse modo, não nos
deixa nem interiores nem indenes, mas nos transforma igualmente. As representações do mundo
mudam, e ao mesmo tempo, o trabalho operado por esse deslocamento nos descobre de outro modo
e modifica a nossa apreensão do mundo. (BROUGÉRE; ULMANN, 2012, p. 3).

2. INVENTIVIDADE E LUDICIDADE NAS OFICINAS DO COLETIVO EU PASSARINHO

Uma de nossas preocupações, ao planejar nossas vivências, é encontrar formas simples de desenvol-
ver a expressividade e o conhecimento nas pessoas. Procuramos, desse modo, elaborar propostas que
pedem a participação de sujeitos de qualquer faixa etária. Acreditamos que a aprendizagem acontece
não somente nos espaços formais, mas nas experiências que adquirimos a cada encontro e com cada
pessoa que se permite voar conosco e deixar um pouco de si para o Coletivo. Outra grande inquie-
tação de nossa pesquisa é estimular as pessoas a continuarem produzindo, mesmo após o término
de nossas atividades. Pensando nisso e por um outro fator muito forte, que é o nosso contexto social,
a escolha de materiais baratos e de fácil acesso foi altamente significativo para esses resultados e se
tornou, posteriormente, a identidade do Coletivo Eu Passarinho. O papelão é hoje nossa grande fer-
ramenta de trabalho, a sua versatilidade nos inspira e nos ajuda a estimular a imaginação e a inventi-
vidade das pessoas a partir de suas mil possibilidades.

Como arte/educadoras em formação, sabemos dos múltiplos benefícios cognitivos, sociais e afetivos
envolvidos no fazer e ensinar arte, desenvolver um trabalho centrado nas expressões e percepções do
outro deve ser uma das premissas fundamentais de todo arte/educador (FERRAZ; FUSARI, 1999).
Com esse intuito, nasceram, no seio do Coletivo, oficinas de arte que pretendem estimular a criativi-
dade e o fazer artístico, através do trabalho grupal, da poesia, do manejo de materiais, da contação de
histórias, da transformação do papelão em obra de arte e/ou brinquedo e do resgate da simplicidade
da infância, que foi tão presente em nosso tempo. Surgiram, assim, as oficinas: “Papelão de Poesia”,
“Para a Palavra” e “Palavra avoada”. Fazendo um breve resumo, a primeira consiste em criar peças
tridimensionais, usando o papelão como suporte, tendo como inspiração e ponto de partida leituras
poéticas; “Para a Palavra” une contação de histórias, encadernação e estamparia artesanal; e a “Palavra
avoada” começa na confecção da pipa, em seguida na criação de sua estampa e na escolha de uma
poesia que será escrita na sua rabiola, culminando com uma grande brincadeira, onde todos vão fazer
seus brinquedos levantarem voo juntos.

Escolhemos a oficina “Papelão de Poesia” para apresentar duas experiências distintas com público de
diferentes faixas etárias. A primeira aconteceu em agosto de 2014, no Espaço das Arteiras, localizado
na Rua Guaianazes, no bairro de Campo grande – Recife.

748
Figura 1. Oficina Papelão de Poesia no
Espaço das Arteiras.
Foto de Goretti Varela.
Fonte: Facebook, espaço das arteiras.

A oficina é sistematizada em três momentos, e, nessa ocasião, foi direcionada para o público adulto.
Inicialmente, nós fazemos uma acolhida e conversamos sobre o Coletivo e a proposta da oficina. Ainda
dentro desse momento são escolhidas poesias que nos remetam imagens. Algumas pessoas escolhem
rememorar seus poemas preferidos, outras escolhem a partir dos livros que levamos. No segundo mo-
mento, nós mostramos o material, as possibilidades de uso e partimos para o processo criativo. O terceiro
e último bloco acontece quando todos terminam as suas peças. Fazemos uma grande conversa sobre o
processo e cada um externa suas ideias, sensações e inquietações que surgiram ao longo do processo. O
primeiro ponto que observamos – recorrente na maioria das vezes em que trabalhamos com esse público
– é a falta de segurança. Os adultos se julgam menos competentes por estarem sempre desejando repro-
duzir o seu imaginário de maneira mais mimética possível ao mundo real. A cada etapa do processo, eles
vão ganhando mais confiança e ornando o seu trabalho com significados próprios e tão sensíveis, a ponto
de se surpreenderem com o resultado. “Sentir, perceber, fantasiar, imaginar, representar, fazem parte do
universo infantil e acompanham o ser humano por toda a vida” (FERRAZ; FUSARI,1999, p. 56).

Figuras 2 e 3. Oficina Papelão de


Poesia no Espaço das Arteiras.
Foto de Goretti Varela.
Fonte: Facebook, espaço das ar-
teiras.

749
Figura 4. Culminância da oficina no espaço
das arteiras.
Foto de Goretti Varela.
Fonte: Facebook, do espaço das arteiras.

O momento de criação é onde o adulto se liberta. As travas existentes no início da oficina aos poucos
vão sendo deixadas para trás, dando espaço à autoestima e à valorização de seu trabalho.

A segunda experiência aconteceu em julho de 2015, num local muito significativo, no MAMAM
(Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães), localizado na Rua da Aurora, Boa vista – Recife, e foi
um momento muito ímpar em nossa trajetória, pois, no início do Coletivo, não imaginávamos que
chegaríamos a conseguir realizar uma oficina num espaço artístico tão importante para nossa cidade
como é o Museu de Arte Moderna. Integramos, juntamente com outros artistas, a grade de oficinas
de férias do Museu. Nessa ocasião, a “Papelão de Poesia” foi ofertada para o público infantil e adulto,
quatro crianças e a mãe de uma delas participaram da oficina. Nesse dia, fizemos uma acolhida um
pouco diferente, adicionamos à oficina mais um estímulo sensorial, utilizando instrumentos per-
cussivos, como alfaia, pandeiro e chocalhos, para provocá-los a produzir imagens e ideias a partir
do som. Mais uma vez a literatura se fez presente e houve os que escolheram representar histórias, e
outros que fizeram suas escolhas baseadas em influências externas ou situações vivenciadas em sua fa-
mília (personagens de games, crença religiosa). Apesar da pouca idade, as crianças presentes também
atribuíram significados extremamente complexos às suas produções e eram muito seguras em relação
às suas expressividades. “O conhecimento é uma relação abstraída a partir das ações e da coordenação
das ações físicas dos objetos, tornando possível à criança transpor os limites da sensibilidade e recons-
truir o mundo à imagem de seu entendimento” (RICHTER, 2002, p. 34).

Fazendo uma analogia do processo criativo e dos resultados observados nas crianças e nos adultos,
encontramos diferenças e semelhanças entre eles. A primeira diferença está na liberdade de julga-
mento e na interação com o grupo. As crianças estão abertas e instigadas ao novo desde o primeiro
contato, já os adultos desenvolvem essas características durante o processo de criação com o manu-
seio dos materiais e a troca de experiências entre si. As crianças não se mostraram preocupadas em
reproduzir mimeticamente, mas em transmitir suas ideias. A semelhança maior acontece na mudança
interna que ocorre ao término da oficina. Ao final, todos acabam adquirindo um grauzinho a mais
de confiança em relação ao seu desenho, às suas ideias, ao entendimento de que podemos, sim, nos
expressar artisticamente, independente de nossa formação ou idade, e que, fundamentalmente, o tra-
balho coletivo e a liberdade criadora são imprescindíveis para o nosso crescimento humanístico.

750
Figura 5 e 6. Processo criativo e resultado da oficina no MAMAM.
Foto de Anderson José.

Atrelando nossas atividades de oficina ao espaço museal, inserimos uma visita ao acervo do MA-
MAM, no mesmo dia de nossa atividade, para que os envolvidos na oficina Papelão de Poesia pudes-
sem conhecer e experienciar ainda mais o universo tridimensional. A visita foi reconhecida como
importante, por existir a constatação, no ato da inscrição, que nenhuma das crianças envolvidas co-
nheciam o Museu. Adicionamos a visitação ao nosso encontro com o intuito de inseri-los ao ambiente
e oportunizar referências para a ampliação de possibilidades e suportes plásticos. Todos os envolvidos
puderam conhecer obras de outros artistas pernambucanos e brasileiros. Após a visita, finalizaram
suas obras, dando a elas títulos e base. Não surpreenderia se disséssemos que as crianças voltaram
muito inspiradas e motivadas a intitular suas obras de arte e levá-las para casa, podendo expô-las
como as que conferiram dentro do Museu. O nosso último momento seria registrado com uma foto,
mas o local deveria ser escolhido pelas crianças. Quando perguntados sobre a escolha do local, res-
ponderam: “Aqui é bom, tem palco, a obra fica mais alta e ele (Francisco Brennand) fez desenhos de
bichos parecidos com os nossos...” (Gabriel, 10 anos, e Pedro, 15 anos). Quiseram expor ao lado das
obras do artista pernambucano de grande representatividade em toda a cidade do Recife, o renomado
Francisco Brennand.

Para nós do Coletivo, não poderia ter sido mais especial a finalização dos trabalhos deste dia. Ob-
servamos as crianças em “estado de ser árvore”. Com seus bichos e imaginário, eles aprenderam mais
sobre Brennand do que poderíamos ter explicado. Aprenderam a ver, sentir e criar Arte. Carregarão
na memória para sempre um artista e obra mais próximos.

751
Figura 7. Processo criativo e resultado da oficina no MAMAM.
Foto de Anderson José.

Buscamos, com estas vivências, a simplicidade da técnica, a espontaneidade do traço, a criatividade


tridimensional, a ilustração artesanal, as artes manuais, a ludicidade para trazer ao público de forma
acessível a intrigante força da imaginação e suas várias formas de narrativa, visando aproximar ainda
mais o ser humano da sua essência criadora. Acreditamos que o conhecimento da arte abre perspecti-
vas para que o aluno tenha uma compreensão do mundo na qual a dimensão poética esteja presente:
a arte ensina que nossas experiências geram um movimento de transformação permanente, que é
preciso reordenar, a todo momento, ser flexível. Isso significa que criar e conhecer são indissociáveis
e a flexibilidade é condição fundamental para aprender. (BRASIL, 1998).

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. Arte/Educação: O pensamento de Ana Mae Barbosa. Disponível em: <https://www.scri-
bd.com/doc/186766181/Arte-Educacao-O-Pensamento-de-Ana-Mae-Barbos a>. Acesso em: 10 maio 2016.
BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais de 5a a 8a séries: arte. Brasília.
MEC-SEF, 1998.
BROUGÈRE, Gilles; ULMANN, Anne-Lise (Orgs.). Aprender pela vida cotidiana. Trad. Antonio de P. Danesi.
Campinas/SP: Autores Associados, 2012. (Coleção formação de professores).
COLI, Jorge. O que é arte? 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998.
FERRAZ, Maria Heloísa C. de T.; FUSARI, Maria F. de Rezende e. A criança conhecendo a Arte. In: Metodologia
do Ensino de Arte. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999. (Coleção magistério 2º grau. Série formação do professor).
FREIRE, PAULO. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
(Coleção Leitura).
RICHTER, Sandra. Infância e imaginação: o papel da arte na educação infantil. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.).
Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.

752
O pensamento/criação da
fotografia artística contemporânea:
um olhar transdisciplinar
Leandro Pereira da Costa

Figura 1 –
Palimpisesto#01, sé-
rie Entremeio.
Fonte: O Autor, 2010.

1. PANORAMA HISTÓRICO

É no trânsito ocorrido com a passagem da Modernidade para a Pós-Modernidade que veio à tona
uma quantidade de implicações na redefinição do contexto de arte. Nesse novo contexto de transição,
a fotografia passa a ter papel fundamental na nova constituição do fazer artístico, em vista de uma res-
significação das técnicas tradicionais, como pintura e escultura. Assim, a fotografia altera simbolica-
mente a produção de imagens, extrapolando os limites da arte e impõe a necessidade de se estabelecer
novas categorias para essa expressão visual.

Com o seu advento, a arte e a produção artística, passam a trabalhar com outros aspectos, como a
seleção e a edição, procedimentos que são da ordem de um mundo industrial/mecânico e não mais de
base estritamente manual, pictórico e escultórico. Essa é uma mudança radical, que abre espaço para
uma desmaterialização progressiva da arte, onde uma nova dimensão – a imaterial – passa a vigorar,
com base nas novas tecnologias e nas novas necessidades de enfretamento dos artistas, refletindo
novas condições do real.

753
A arte passa a ser compreendida não mais como um produto fechado em sua fisicalidade, ou na
sua aura263, como relatado por Walter Benjamin, em seu célebre texto: A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica; para torna-se uma obra aberta264, nos conceitos de indeterminação, como
escritos por Umberto Eco, em seu livro de mesmo título. Com isso, permitiu-se uma reflexão de sua
função social e toda uma determinação de caráter objetivo. Esse novo processo, da lógica do imaterial
e do virtual, permite que a obra possa tomar como significado a realização de um acontecimento,
manifestando-se em performances, como as dos Futuristas ou Dadaístas, ou em happenings, que fo-
ram criados no fim dos anos 1950, pelo americano Allan Kaprow (1927 – 2006).

Pelo seu caráter de comunicação e de informação documental ou artística, a fotografia imprime


uma dinâmica nova ao simples conceito da obra tradicional, como um produto acabado, e faz
com que o trabalho de artistas modernos das vanguardas históricas não hesite em utilizar novos
materiais e técnicas, sejam da produção industrial ou do espaço e tempo, promovendo rupturas
com a herança e os procedimentos técnicos específicos de meios de expressão, como a pintura e a
escultura.

A fotografia – “imagem-máquina” (André Parente, 1993) – é, portanto, um produto da modernidade,


um sistema de representação adaptado para essa nova realidade que emergiu, uma resposta para as
novas necessidades de se pensar o espaço e o tempo, de se criar imagens, tudo introduzido na trama
social e na produção artística.

Figura 2. O espaço
permanente entre
eu, você e outro.
Fonte: O Autor,
2009.

263. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Berlim: [s.n.], 1936.
264. ECO, Humberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1989.

754
2. CONTEXTO INVESTIGATIVO

No momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se


à produção artística, toda a função social da arte se transforma.
Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política.
(BENJAMIN, 1994, p.172).

Foi com Marcel Duchamp, com seus ready-made, com suas operações programadas, com sua negação
às técnicas, com a formulação de conceitos como o de “coeficiente artístico”, no ato de dotar de valor
algo sem valor, que a desmaterialização da arte e o papel do artista se complementam em ruptura com
os cânones. Ele trabalhou na ressignificação do fazer artístico, e seu papel, ou de suas obras, acabaram
assumindo caráter protagonista nas mudanças que se seguirão e nos novos rumos que serão tomados
pela arte. Na ótica Duchampiana, fazer arte não consistia mais em “fabricar” imagens, porém, em
encontrar, selecionar objetos, dar-lhes um novo sentido e registrá-lo em uma instituição (um museu,
um Salão), tentando dirigir para o trabalho um conjunto de atores como: críticos, público, editores de
publicações especializadas, etc. Sua obra é uma máquina: de ordem política-institucional. Nessa pers-
pectiva, há uma gradativa marginalização do fazer manual, elabora-se o rascunho de uma nova pro-
dução, muito mais conceitual do que aquela ligada às tradições na realização das imagens. A imagem,
a partir de então, poderia ser: apropriada, mecânica, óptico-química, fotográfica, cinematográfica e
todas as possibilidades que advieram.

Nesse cenário de grandes mudanças, a fotografia passa a ter papel fundamental na nova constituição
da arte, tendo em vista uma progressiva ressignificação das técnicas tradicionais e o enfrentamento de
novas questões que foram reverberando no mundo da arte. É na década de 1960 que esses pensamen-
tos ganham força. Nesse momento, ideias formuladas anteriormente pela arte vão ser colocadas em
cheque. Novas vanguardas, movimentos e estilos vão surgir no período, trazendo novas abordagens,
destaco aqui: O Minimalismo, O Conceitualismo, As Performances, A Land Art e logo depois, já nos
anos 1970 a Videoarte.

Foi um período marcado pelas muitas experimentações, processos de trabalhos artísticos, suportes,
meios e materiais não convencionais. O surgimento de novas mídias e tecnologias promovem, defini-
tivamente, rupturas com a herança e os procedimentos técnicos ligados à tradição.

Quando o Conceitualismo foi absorvido como elemento discursivo pelo repertório dos artistas, no-
vos aspectos para além dos plásticos-formais foram surgindo nos rumos do fazer artístico. A espe-
cificidade cultural do momento histórico ampliou a reflexão, leitura e o entendimento sobre o fazer
artístico, e o artista deixa de ser apenas operador de sua obra, e passa a difundir reflexões, pensamento
e discurso acerca de sua produção artística, criticamente e politicamente, liberando espaço para a
afirmação dos mais variados suportes, como a fotografia e o vídeo. Mas, nesse início, tanto a fotografia
quanto o vídeo eram apenas registro desse novo fazer. Esses artistas situaram seus trabalhos “além da
experiência perceptiva direta”, construindo suas obras em torno de um sistema documental: fotogra-
fias, mapas, desenhos e linguagem descritiva, logo depois acrescenta-se o vídeo como ferramentas e
suportes para documentar seus processos de trabalhos. Desta maneira, a arte conceitual introduziu
a fotografia na arte contemporânea, e, por meio dela, procede-se uma revolução na natureza daquilo

755
que é apresentado como trabalho pelos artistas. Foi a partir deste princípio que a fotografia, no impulso
dessa nova configuração, adquiriu propriedades abertas e externou sua capacidade produtiva muito
além das condições técnicas e documentais de uma fotografia, com o papel apenas de documento histó-
rico, emanação do referente, como elaborado por Roland Barthes, equivalendo legitimamente às coisas
ou às circunstancias que ela representa, como classificado na história da linguagem fotográfica.

A arte conceitual, alandart, e a arte corporal abriram fronteiras para o estabelecimento e desenvolvi-
mento da linguagem fotográfica enquanto receptividade pelo “sistema de arte”, até se tornarem um dos
principais materiais da arte contemporânea. Porém, ainda nos anos 70, muitos artistas nem sequer
realizavam suas próprias fotografias, e quando faziam, a precariedade dessas realizações revelava que
o trabalho se situava em um lugar distinto do institucionalizado pelo meio fotográfico, considerando
aqueles registros apenas como apresentações: provas, testemunho desse “não-lugar” onde se situava
o trabalho. Este é o caso de trabalhos de artistas como Joseph Beuys (1921 – 1986), Robert Smithson
(1938 – 1973) e Walter de Maria (1935 – 2013), por exemplo. Essa atitude ainda reforçava a fronteira
existente entre o valor da arte e o valor da fotografia, evitando, assim, qualquer tipo de assimilação,
hibridização ou olhar transdisciplinar.

Com o decorrer dos anos 1970, passa a ocorrer significativas mudanças no papel da fotografia. Mas
é a partir dos anos 1980, que ela ganha relevância e passa de simples documento/registro para ser
estratégia de ação e matéria da arte. Essa nova geração de artistas, nesse novo impulso, passa a domi-
nar perfeitamente a técnica da fotografia, a utilizá-la e experimentá-la como material artístico, é uma
virada fundamental do seu papel no campo da arte.

A reverberação do uso da fotografia no meio artístico, assim como o surgimento das mídias digitais,
teve um papel decisivo para a arte. Com a câmera digital, não é só o registro que passa a ser possível,
mas também a possibilidade de manipulação da imagem, utilizando-se do computador como ferra-
menta. Segundo Santaella (2003), com o uso do computador, “pessoas ou coisas podem ser apagadas
ou acrescentadas, cores modificadas e imagens ampliadas. As capacidades de retoques do computa-
dor são tão eficientes, sutis e indetectáveis” (p.151).

Somente para citar a capacidade e amplitude que essa nova ferramenta traz para os artistas, ou seja,
infinitas possibilidades de alteração, edição e manipulação. Esses procedimentos, da ordem do plu-
ral, consideravelmente, estão sendo explorado pelos artistas contemporâneos em suas produções, há
pouquíssimo tempo, frente a toda historiografia da arte, sendo este um fenômeno das produções mais
recentes, dos últimos 30 anos.

A fotografia, que já foi matriz de invenção nos processos industriais, está no centro do processo cria-
tivo digital, [...] de imagem em suporte duro, material fotoquímico, passa ser imagem imaterial nas
memórias do computador, onde é truncada e interferida pelos artistas e posteriormente recuperada,
como um híbrido. A fotografia hibridiza-se com o computador e passa a ser matéria-prima para um
imaginário artístico. (PLAZA; TAVARES; 1998, p.198)

Fato é que, através da fotografia digital, as tecnologias digitais invadiram não só o nosso cotidiano
como interferiram diretamente nas produções de imagens. Estas sofrem constantemente consi-

756
deráveis mudanças em sua captura, tratamento, processo de produção e manipulação, devido ao
uso do computador e mais recentemente com o surgimento dos aparelhos de telefonia celular
inteligente.

Nos dias de hoje, seja no Brasil ou no mundo, a produção da fotografia se encontra amplamente di-
fundida, e a cada dia é possível acompanhar sua crescente contribuição para a arte contemporânea.
Ela ganhou status quo não só na produção artística contemporânea, ao qual passa a ter uma presença
cada vez mais marcante a partir dos anos 1990 no sistema de arte, mas também na sociedade. Esse
processo se apresenta potencializado na atualidade, tendo como contexto um mundo virtual informá-
tico e globalizado, que vem modificando radicalmente nossa relação com o espaço e tempo, aspecto
que tão pouco pode ser avaliado em sua devida extensão.

É nesse complexo panorama que abordo meu processo de trabalho nesse artigo, demonstrando, na
comunicação, uma pesquisa em arte, e contribuindo com estudos da fotografia artística, trazendo à
tona a complexidade do processo criativo, sem pretender que a proposta seja, no entanto, ilustração
de nenhum sistema de conhecimento. Assim, o objetivo principal dessa comunicação é apresentar
minha investigação sobre o meu processo de trabalho, observando percursos e aspectos da pesquisa
estético-formal que levem a reflexões e abordagens futuras sobre processos de criação utilizando a
fotografia. Optarei, assim, por uma análise transdisciplinar do processo de trabalho, demonstrando
suas estratégias e seus interesses para o público presente, para que os participantes façam aproxima-
ções e cruzamentos com outras áreas do conhecimento.

Figura 3. Entremeio#1, 2011.


Fonte: O Autor.

757
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA (RESUMO EXPANDIDO E PARCIAL DA POIÉSIS DE TRABALHO)

“O espaço não é uma realidade em si, cuja a representação exclusiva


varia de acordo com os tempos, o espaço é, ele mesmo, o espaço da experiência humana”.
(Pierre Francastel)

O trabalho proposto alude às relações inter-humanas e problematiza o espaço através da arquitetura


em seus limites de ordenação política e espacial.

Difícil é articular essas questões entre arte e política, mais ainda, em que medida essas articulações
interferem na criação, onde o trabalho pode ser arte e ao mesmo tempo política. Como falar desse
pretenso aspecto do trabalho – o político – quando as próprias instituições políticas estão em crise,
haja vista todo o processo político institucional que se configurou no cenário nacional recentemente,
colocando a própria prática democrática em xeque devido aos acontecimentos dos últimos meses.

Vivemos em tempos difíceis, acompanhamos e com certa isonomia do comportamento social, o trân-
sito incrédulo dos corpos, seja pela carência ideológica ou pelo esvaziamento em seus pontos de vis-
tas. Porém, é a insatisfação que deve mover o motor da história. Hesitar deve ser um comportamen-
to ético dos corpos que assistem incrédulos todo esse retrocesso institucional. Não sabemos o que
virá, mas também não podemos deixar de pensar e propor novas maneiras de articulações sociais.
Ao hesitar, aponta-se para o engajamento de estar alerta diante do convencimento e do consensual,
para que não seja impedido o contato com a diferença e com o plural. Engajar-se é muitas das vezes
confundido com a história de lutas artísticas e de modos de vidas das próprias vanguardas artísticas
modernistas, sendo interessante, em contextos micro políticos, rever seus fundamentos para des-
construirmos e atualizarmos seus valores e ideais. E, na própria história desses engajamentos, há um
momento exemplar desse não-lugar (no sentido de uma utopia), onde a arte é muito mais do que a
representação ou uma apresentação de um objeto: é uma atitude. Esse momento é o construtivismo
russo. O construtivismo partiu de um outro tempo, tempo das metas narrativas, da idealização do
progresso, aliada a uma fé inabalada de uma Rússia revolucionária, com a possibilidade de trans-
formação social, política e, acima de tudo, espiritual. Podemos relacionar tanto a obra de Malevich
quanto a de Kandisky, como o grau zero de uma nova sensibilidade latente na história da arte. Uma
revolução baseada na arte como construtora de uma nova sociedade, assumindo-se como produção
de uma coletividade, parte determinante de um novo funcionamento social. Sabemos que o constru-
tivismo foi incorporado como projeto pelo próprio desdobramento do devir revolucionário, sem ter
realizado seu desejo de construção social, e que coube apenas à história a legitimação dos processos
históricos desse movimento artístico, através dos museus e da própria história da arte.

O desafio tratado nesse escopo de trabalho é como elaborar com ressignificação esse contexto, ao qual
se tenciona utilizar para além da metáfora visual, como projeto – outrora macro – de micropolítica,
no sentindo utilizado por Jacques Rancière: “ocupando-se do que se vê e do que se pode dizer sobre
o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço
e dos possíveis tempos” (RANCIÈRE, 2005, p.17).

Como abordar, nos dias de hoje, através de uma poética visual que utiliza a fotografia, e tentando
com eficácia, a reflexão da capacidade política da arte na possibilidade de transformação do social?

758
Mesmo que essa transformação se dê na fruição do receptor da obra em escala micropolítica. Como
fazer reverberar essa tentativa de criação de espaços heterotópicos – espaços absolutamente outros –
carregados de consciência coletiva e política?

Esses aspectos dos desafios de uma escrita da história, que não se exima de sua potência política, fo-
ram formulados por Paul Ricoeur, tratando-se de nos lembrar que o que foi projetado no passado não
necessariamente deve ser esquecido.

Segundo escreveu Hannah Arendt¹: “a política surge no entre-homens”, e é nesse espaço entre, que se
afirma e se projeta a construção do trabalho, espaço infindável das relações sociais e temporais, daí o
título da série: Entremeio.

Outro aspecto importante do trabalho, formalmente perceptível, é o aspecto urbano, de Polis, uma vez
que a expansão das cidades desenvolve a necessidade constante de cada vez mais organizar o espaço
coletivo e exercer o convívio social. A arquitetura desempenhou em um dos seus muitos momentos, o
papel de materialização da ordem urbana, um modo de regular o convívio social e organizar as dife-
renças. Com isso, apresento o principal aspecto materializado e correlacionados nos meus trabalhos:
A Arquitetura não seria ela mesma a própria relação, tal qual a política, da coletividade e da plurali-
dade dos homens e, desta maneira, da convivência dos diferentes?

Figura 4. Entremeio#2, 2011.


Fonte: O Autor.

Através dessa série, faço uma revisão e construção crítica de um saber que, outrora, dizia-se inter-
nacional e reduzia os diferentes aspectos de cada cultura a pontos de vistas privados de liberdade,
originalidade e singularidade, através da marcante imposição de um estilo internacional. Ressalto,
nesses trabalhos, um pensamento crítico ao poder institucional, ao consenso da história hegemônica,

759
mais ainda as possibilidades e tentativas de construção de um mundo linear, a visão de uma sociedade
uniforme e uniformizada. Sendo assim, percebo, pela ausência do aspecto plural, a necessidade de
múltiplos enquadramentos, paradas obrigatórias diante dos pontos de vista, inexistindo o a priore,
um enquadramento determinante, apenas enquadramentos diferentes, mundos distintos, próximos e
distantes, nestes entremeios em que vivemos na paisagem.

Com a arquitetura modernista, lido com o seu papel histórico, do seu projeto de edifícios e cidades
que foram motivados pelo crescimento coletivo, mas que trazem, consigo, introjectado, espaços de
controle265, seja dos aparatos de Estado, seja nos sistemas econômicos e culturais, como o sistema da
arte. São os mesmos espaços de controles ao qual assistimos atônitos todo processo caótico de gover-
nabilidade institucional em que vivemos hoje no Brasil. Essa é a espessura da reflexão do que versa a
conduta de criação da obra.

O processo de trabalho se dá após a seleção e edição das imagens fotográficas, voltada para a escolha
de ângulos e edifícios dos grandes centros urbanos, que, após ampliados, são produzidas interferências
nas imagens realizadas. A partir da edição, projeto precisos cortes nas áreas das janelas dos edifícios,
criando padrões gráficos que generalizam a experiência da proximidade coletiva. Essas interferências
retiram informações das fotografias, revelando-nos o que está do lado de fora do papel ampliado. Neste
jogo entre dentro/fora, imagem/realidade está entregue à sintaxe do trabalho, que abre espaço para a
visualização de intervalos ativos, que estabelecem, assim, a continuidade entre os espaços aquém e além
do plano. Desta maneira, a imagem é tomada pelo espaço, numa demonstração do território expandido
da fotografia que “ilude” o expectador, que não percebe de imediato como os recortes feitos em mate-
riais planos criam a ilusão de um espaço urbano tridimensional e livre, que privilegia um pensamento
que enaltece a diferença e a ruptura, como proposto por Deleuze. Os conceitos de fotografia, desenho e
escultura se misturam. Fotografia e espaço se encontram em simbiose e demonstram que: nós fazemos
parte da paisagem e que a paisagem também faz parte de nós, ou seja, um espaço múltiplo e de livre
convivência coletiva, onde a questão do sublime tramasse em uma concepção burkiana, levando em
consideração a questão do tempo. Haveria, então, uma pergunta anterior à tomada de consciência dos
acontecimentos: existirá, ocorrerá, será possível? A interrogação como imagem de indeterminação do
tempo, antes dos acontecimentos. Vazio, indeterminação, ausência que desperta angústia e ansiedade de
nada acontecer, como um escritor diante da página em branco. O indeterminado dos enquadramentos
das janelas vazias seriam os pontos de interrogação do agora, como o sentimento em que nada pode
acontecer. O nada, o agora, princípio zen muito difícil de conviver para a cultura ocidental, onde o nada
é sinal de improdutividade, de ineficiência, diante de uma lógica capitalista. No entanto, o suspense em
relação ao “existirá”, ao “ocorrerá”, pode conter um imenso prazer: seria o prazer de acolher a qualquer
momento o desconhecido (LYOTARD, 1990, p. 97) pela positividade da existência. Trata-se, assim, de
um sentimento contraditório, um misto de angústia e alegria, prazer e desprazer.

Segundo o filósofo Jean Lyotard, o nome do sentimento contraditório que envolve prazer e dor, con-
sagrado pela estética do século XVIII, chama-se: “sublime”.

É nesse espaço, ligado justamente ao tempo, que está mergulhado o processo de criação e reflexão,
produção de um conhecimento singular, que se desdobra indeterminadamente, que não podemos

265. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 33. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2007.

760
aferir com precisão seu tempo, e ao qual se faz apresentado nessa comunicação, com o qual se permite
uma configuração de mundo. O espaço vazio do jogo e o tempo do jogo é um tempo entre parênteses,
em suspensão, em devir, esse é o espaço da construção do próximo passo.

Figura 5. Entremeio#3, 2011.


Fonte: O Autor.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. O que é a política? Fragmentos de obras póstumas. Copilados por Ursula Ludz. Trad. Rei-
naldo Guarany. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
ARTEERUPTURA/Sesc, Departamento Nacional. Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2013.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política (1936). A obra de arte na era de sua repro-
dutibilidade técnica. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ECO, Humberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1989.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: Ed. José
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NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva.
Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998.
PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hu-
citec, 1998.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005.
SANTAELLA, L. Cultura e artes do pós-moderno: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus Edi-
tora, 2003.

761
Gravar sem poluir
Frutuoso da Silva Lorega Filho

1. CONHECENDO A GRAVURA

A gravura é um meio de expressão que sempre ocupou lugar de destaque na produção da maioria dos
artistas, pois possui características sem equivalência em outras modalidades artísticas. Suas operações
sofisticadas e a invenção dos métodos de imprimir, e das próprias prensas, fizeram do ofício do artista
gravador um misto de gênio da criação, com engenheiro e alquimista (ANDRIOLE, 2003?, n.p.).

Gravura é um múltiplo de obras reproduzidas a partir de uma matriz, que é o fruto da elaboração e
manipulação minuciosa de um artista. Depois, essa matriz passa pelo processo de impressão. A edi-
ção é restrita, onde cada reprodução é enumerada e assinada uma a uma pelo artista, o que configura
aí o caráter artesanal, tornando cada uma em Obra de Arte. Dessa forma, cada imagem reproduzida
é única em si. A arte da gravura se caracteriza na perícia da reprodução, da fidelidade entre as cópias.

A definição de gravura, por Costa (2010), traduz o meu sentimento em relação a essa pesquisa: “a gra-
vura é uma técnica intimista que exige tempo e dedicação; a beleza de suas imagens revela-se lenta-
mente, como um pequeno universo que aos poucos nos invade e seduz”. É como pesquisador, artista e
até alquimista, que me propus a imergir no universo da gravura em metal e nas muitas possibilidades
que ela pode proporcionar através das experiências com diversos materiais e suportes.

Muitos artistas, ao longo da História da Arte, utilizaram a gravura para experimentos e meio de
concretização de seus processos de criação e inovação artística. É possível encontrar registros dessa
técnica em imagens criadas em 1500. por artistas renascentistas, como o alemão Albrecht Dürer. A
partir do século XV, com o desenvolvimento de métodos gráficos, em busca da melhoria na qualidade
das impressões, começaram a ser utilizados os metais para esse fim. No século XVII, as técnicas de
gravura em metal chegaram ao auge da perfeição, que, além do interesse estético, produzia o registro
documental e cultural da época. Já no século XIX, devido às transformações sociais e de modifica-
ções e desenvolvimento tecnológico, a gravura ganhou visibilidade e disseminação nos campos da
comunicação e das artes por se tratar de um meio rápido de difusão e circulação de ideias e imagens.
No entanto, no final do século XIX, com o surgimento da fotografia e de inovações fotomecânicas de
impressão, a produção artesanal da gravura decaiu. Mas, tais transformações também causaram mu-
danças no campo das artes que propiciaram os princípios da gravura contemporânea (REIS, 2010).

762
No Brasil, a história da gravura é marcante e ganhou tanta notoriedade, principalmente no Nordeste,
que adotamos a gravura (xilogravura) da literatura de cordel como “natural” do Sertão, filha do serta-
nejo contador de histórias. Desenvolvida nessa região, desde a década de 1950, de onde se destacam,
como exemplos, Gilvan Samico e J. Borges.

A gravura moderna brasileira se desenvolveu na década de 20 do século XX, através da via expressionis-
ta, com as obras de Lasar Segall e, posteriormente, de Oswaldo Goeldi. Já na década de 30, a gravura pas-
sou a ser uma forte aliada política na veiculação de imagens contra a opressão. Na década de 50, a disputa
entre os movimentos abstracionistas versus a arte realista colocou a gravura numa posição de destaque,
pois o artista gravador desenvolvia trabalhos junto à imprensa, à propaganda, ao mercado editorial, o que
fazia dele um ser mais preocupado com aspectos cotidianos do que com discussões, estilísticas e estéticas
entre pintores e escultores. Nos anos 70, porém, após ter sido incorporada ao mercado da arte, a gravura
passou por um momento crítico em que artistas inescrupulosos reproduziam, em massa, imagens de bai-
xa qualidade, a fim de conquistar uma “clientela” somente interessada em adquirir assinaturas. Mas, “os
verdadeiros artistas gravadores se refugiam em pequenos núcleos de resistência e se dedicam ao ensino
da técnica para as novas gerações” (COSTA, 2010). Nos anos 80 e 90, a produção da gravura foi variada e
se espalhou por todo o país. E, hoje, ela tem importante destaque no cenário artístico e cultural e muitos
artistas se dedicam à pesquisa nos processos de gravação e impressão e na produção artística.

Assim, no Brasil, a gravura:

[...] foi e é de extrema importância: ela aproxima a literatura das artes plásticas, ela recusa essa espécie
de pedantismo pseudo-intelectualizado que faz da arte prisioneira das teorias filosóficas e a recoloca na
vida diária e cotidiana das pessoas. A gravura fala da gravura, fala da arte, mas não se envergonha de
falar sobre o seu país, sobre o homem, sobre a realidade. A gravura é a arte da luta (COSTA, 2010, n.p.).

Diante da importância histórica da gravura e como esta se desenvolveu ao longo do tempo, hoje, com
as novas tecnologias e novos produtos, surgiram infinitas possibilidades de pesquisa em gravura.
Desenvolvemos, atualmente, uma consciência mais voltada aos princípios da preservação da vida,
seja ela na forma dos cuidados com a própria saúde seja com os cuidados com o meio ambiente, pois
somos um só, parte integrante de um todo, homem e natureza juntos em harmonia.

Nessa perspectiva, fazem-se necessários investimentos em ações que propiciem os cuidados com a natu-
reza e com a saúde. Desse modo, nessa pesquisa, objetivo experimentar métodos e técnicas de gravura em
metal, utilizando materiais de fácil acesso e baixa toxicidade, com menor risco à saúde e impacto ambiental,
bem como conhecer o poder corrosivo de produtos químicos não convencionais, avaliar os processos de
gravação da matriz com cada produto testado e analisar os resultados obtidos na impressão das mesmas.
Assim, procurei investigar através de testes a utilização de produtos químicos como o vinagre, sal de cozi-
nha, outros cítricos, etc., testando a capacidade corrosiva de cada um na superfície metálica do alumínio.

Esta pesquisa representa uma importante contribuição para a educação, uma vez que a utilização
de materiais não tóxicos, de baixa periculosidade e recicláveis possibilitam o emprego da atividade
de gravura com maior frequência em ateliers, proporcionando, ao estudante, o aprofundamento nas
técnicas de gravura, ao desenvolvimento de experiências com materiais diversos que contribuam com

763
os processos de criação, inovação da criatividade e o senso estético, contribuindo para o processo de
ensino/aprendizagem em arte.

2. EXECUÇÃO

O Atelier de Gravura, no Centro de Artes e Comunicação – CAC/ UFPE, foi o local base para a efe-
tivação da pesquisa e, dependendo da natureza do trabalho, também na própria residência do pes-
quisador. O atelier dispõe de equipamentos, materiais e ferramentas necessários para a realização dos
experimentos. A permanência no âmbito acadêmico possibilitou o acesso dos estudantes do curso, e
de outros, para a observação das experiências, que é fundamental na formação dos mesmos. Na resi-
dência, foram feitas pesquisas bibliográficas e de internet, bem como alguns testes de mordentes, que
demandavam longo tempo de espera.

3. RESULTADOS

Para os testes de “mordentes”266, foram preparadas diversas placas de tamanhos diversos. Por padrão,
fiz uma pequena placa de alumínio (Placa de referência – Foto 01), utilizando os materiais usados
comumente no atelier, que é o Neutrol (Solução asfáltica) para isolante e o Percloreto de Ferro como
Mordente (Ácido). Esta placa me deu a referências do “modo” como aquele ácido age sobre o alumí-
nio e o perfil da incisão feita por ele, que reterá a tinta na matriz.

É sabido que depende bastante do usuário o poder de corrosão da mistura, pois pode variar o per-
centual de água para mais ou menos, causando o seu enfraquecimento ou concentração, porém, tal
procedimento apenas afetará o valor “Tempo” no trabalho, para menos ou mais, respectivamente,
pois o “tipo da mordida” no metal será o mesmo.

Também não padronizei os tamanhos de placas de alumínio e (ou) cobre, pois, nesta pesquisa, isso
é irrelevante, haja vista que em qualquer tamanho serão colocadas completamente no recipiente do
Mordente e por ele serão corroídas ao mesmo tempo, por igual.

3.1. Preparação

• Isolantes = 1 – Solução asfáltica (Neutrol), facilmente encontrada em lojas de material de constru-


ção; 2 – Esmalte para unhas; 3 – Verniz (Goma laca); e 4 – Cera líquida para piso.
• Mordentes = 1 – Percloreto de ferro, encontrado em algumas lojas de materiais eletrônicos, na par-
te de laboratório, pois é usado para confeccionar as placas de circuito impresso; 2 – Ácido clorídrico
(Ácido Muriático); 3 – Ácido Acético (Vinagre); e 4 – Sulfato de cobre.
• Catalisadores = 1 – Peróxido de hidrogênio (Água oxigenada); 2 – Cloreto de sódio (Sal de cozinha).
• Preparo da Solução mordente =
Percloreto de Ferro267 = Como indicada no rótulo do ácido, uma quantidade de 200 g do produto

266. Solução de produto químico de alta acidez, usada para corroer metais, basicamente o Cobre, o zinco ou o alumínio.
267. Cabe aqui uma observação aos iniciantes: sempre ao dissolver o percloreto, colocar o produto aos poucos sobre a água, que já deve
estar no recipiente adequado, e nunca o contrário (água sobre os cristais), pois a reação química desencadeada gera muito calor e o proce-
dimento inadequado poderá causar danos.

764
cristalizado é dissolvida em meio (1/2) litro de água.
Ácido Clorídrico (Ácido Muriático) = Solução pronta, encontrada nos armazéns de construção, utili-
zada na limpeza de pisos em final de obras. Para maior concentração e poder de “mordida” no metal,
pode ser usado, também, o ácido clorídrico a 50%, com água potável.
Ácido Acético (Vinagre) = Puro.
Sulfato de Cobre = Uma mistura de 250 gramas de sulfato de cobre para 1000 mililitros de água po-
tável e 250 gramas de cloreto de sódio (Sal de cozinha).

3.2. Execução

As placas de alumínio tiveram tamanhos diversos, tais como: 14,5 x 21,0 cm; 5,0 x 12,0 cm; 6,0 x 7,5
cm; 7,0 x 3,5cm, depois as padronizando em 3,0 x 6,0 cm.

Levando a efeito os procedimentos necessários para a gravação nas placas de testes (iguais para todas)
como sejam: 1) Limpeza da placa. (Foto 02); 2) Isolamento com os produtos acima referidos e sua poste-
rior secagem. Observando que cada isolante tem o seu próprio tempo de cura. 3) Incisões com uma pon-
ta-seca para a atuação do “mordente”. Sinais e ou desenhos aleatórios; 4) Colocação da placa em banho no
“mordente”, identificando-as, registrando e cronometrando o tempo (Foto 03); 5) Limpeza final da placa
para retirada do isolante; 6) Observação e registro do resultado da corrosão do ácido e posterior compa-
ração com a placa de referencia; 7) Impressão em papel alta-alvura, apenas de algumas placas. (Foto 04).

Foto 1. Placa de referência.

Foto 2. Preparação de placas (Limpeza)

765
Foto 3. Banho no mordente

Foto 4. Uma impressão de teste.

4. RESULTADOS OBTIDOS DO PODER E TIPO DE “MORDEDURA”.

Utilização do mordente Ácido Clorídico (Ácido Muriático) = Bom poder de corrosão e resultados
semelhantes ao do Percloreto de Ferro obtidos com período de tempo igual. Somente os isolantes,
Neutrol e Esmalte de unha são eficientes os demais inócuos.

Utilização do mordente Ácido Acético (Vinagre) = Baixo poder de corrosão, mesmo quando da uti-
lização de catalisadores (Peróxido de Hidrogenio). Todos os isolantes usados foram eficientes. Resul-
tado insuficiente e inexpressivo, pesando o fator Tempo.

Utilização do “Mordente de Bordeaux,” Sulfato de Cobre = Excelente poder de corrosão, com bons
resultados análogos aos obtidos com o Percloreto de Ferro. Todos os isolantes usados foram eficientes.
Não fizemos referência à utilização e performance do Perclorêto de ferro por ser o que está em uso
corrente, na maioria dos ateliers, bem como na nossa Universidade e por ter sido ele o balizador para
o resultado dos outros ácidos.

5. ISOLANTES268

Asfalto Líquido (Neutrol): É o isolante em utilização na maioria dos ateliers e também em nosso meio
acadêmico. Foi eficiente com todos os mordentes utilizados, apenas seu descarte deixa a desejar, no
quesito proteção ao meio ambiente, quando em ele sendo um produto derivado do petróleo, utiliza
para sua limpeza e dissolução outro produto da mesma origem, o querosene.

268. Materiais (Geralmente soluções) que aplicados às placas a serem gravadas tem como função proteger da ação do ácido determinada
área.

766
Cera Líquida (Cera para assoalho): Aplicada em duas demãos e de preferência com uma cor escura.
Foi bem eficiente quanto ao isolamento. O seu ponto negativo aparece quando extrapolamos o tempo
da secagem e passamos mais que 24 horas para utilização da ponta-seca, que vai originar o desenho
a ser gravado. Sua condição de ressecada dá margem para que apareça o “craquelamento”, ou seja, as
linhas geradas pela incisão da ponta-seca, por vezes, ao invés de apenas riscar, quebram a cera aplica-
da, tornando o traço sem definição. Sua limpeza é conseguida com o álcool anidro.

A utilização da Cera Líquida de base acrílica está indicada em trabalhos acadêmicos, como os pu-
blicados pela ANPAP, mais especificamente no 18º Encontro, ocorrido em Salvador-BA, de autoria
da Professora Doutora Angela Raffin (POHLMANN, 2009), onde referencia sobre o mesmo tema o
Professor Doutor Sebastião Gomes (PEDROSA, 2003).

Goma Laca (Verniz de madeira): Tem um relativo poder de proteção às placas, não sendo eficiente
quando da utilização do Ácido Clorídrico. Sua utilização é aconselhada apenas para isolamento de
áreas em que não se queira fazer incisões, pois, após a secagem, ocorre o efeito de “craquelamento”,
caso se tente riscar. Sua limpeza também é feita com o álcool anidro.

Esmalte de Unhas: Com um relativo poder de proteção, pois semelhante à Goma Laca, é ineficiente
com o Ácido Clorídrico, e com pouca performance quando da utilização da ponta-seca, pois se torna
uma película plástica. Aconselhável apenas para isolamento de pequenas áreas em que se deseje uma
rápida secagem. Limpeza com a acetona.

6. TOXICIDADE

Consultamos empresas de produtos químicos e de saneamento e saúde pública, através de seus sites
na internet, que disponibilizam todas as informações para cada elemento verificado. Preferimos nos
referir à CETESB-SP, por ser organismo público e seus laudos serem bem direcionados para a questão
de segurança tanto do Homem quanto do meio ambiente, conquanto que todas as informações, sejam
de quaisquer órgãos pesquisados, seja público ou privado, foram idênticas.

Estamos trabalhando com ácidos, e isto, por si só, é indicador de que devemos manuseá-los com
cuidado, sempre, independentemente de sua alta ou baixa corrosão, sempre haverá riscos, por isso,
durante nossa pesquisa, levamos em consideração a possibilidade de minimização e de controle segu-
ro dos fatores de risco que cada elemento oferece. Enfatizamos a necessidade do uso de simples equi-
pamentos de proteção individual, tais como: aventais, e luvas para o manuseio dos ácidos, e também
utensílios como pegadores e espátulas de madeira para manuseio das placas quando na ação de cor-
rosão. Assim sendo, levamos em consideração, nesta pesquisa, não somente os danos causados pelo
contato físico com o produto, mas também as emissões de gases quando de sua utilização, ou durante
seu preparo, fatores estes que nos levam a lembrar a todos a correta iluminação e ampla ventilação do
atelier ou outro local onde estejam acontecendo estes procedimentos. À exceção do Ácido Acético,
que não tem classificação, todos os outros têm como Número de Risco o valor 80, ou seja, é idêntica
a toxicidade sobre humanos e aquática, o que nos levou a pesar outros fatores, tais como a emissão
de gases tóxicos durante seu manuseio, agressão pelo contato direto, bem como os procedimentos
necessários para o seu correto descarte, quando não mais seja utilizado.

767
7. DESCARTE DE SOLUÇÕES USADAS

Com o uso continuado, a solução ácida vai perdendo componentes químicos na sua reação com o me-
tal, na sua grande maioria o oxigênio (O2), diminuindo, assim, o seu poder de corrosão e se tornando
pouco eficiente quando da “mordedura” no metal e consequente aumento do tempo despendido.

Sendo necessária, à consecução de outros trabalhos, à feitura de nova quantidade de mordente, tam-
bém é imperioso um correto descarte da solução, ora inoperante, em modos que não venham a causar
danos ao meio ambiente. Errôneo é o pensamento de que a solução que se tornou inoperante para
nossos propósitos perdeu também sua condição de alta acidez e como tal, passiva de ser descartada
em qualquer local. Esta solução apenas perdeu a capacidade de corroer os metais que utilizamos, em
um determinado limite de tempo, mas sua acidez permanece em alto nível e, para que se dê o seu re-
torno à natureza, devemos reduzir o seu teor PH para uma quase neutralidade, em valores que variem
de 6 a 9 na escala de referência.

A seguir, indicamos alguns procedimentos a serem adotados para o seguro descarte das soluções que
se tornaram “fracas” ou de baixo rendimento no trabalho com os metais.

Para todos os “mordentes” que seriam eliminados, padronizamos a quantidade em 500 ml e obtive-
mos os resultados abaixo:

• Percloreto de ferro 500 ml – Dissolver esta quantidade de ácido em 25 litros de água (50 x o volume
do ácido) e com 300gr de Hidróxido de cálcio (Cal hidratada).
• Procedimento Padrão: Após 20 minutos (tempo aproximado para uma decantação dos resíduos
sólidos), verificar o PH da solução, que deverá estar em torno de 7 a 9, tornando a mistura passiva
de ser descartada em qualquer sistema de esgotamento sanitário sem riscos à natureza. (Este procedi-
mento será padrão para todos os “mordentes”)
• Sulfato de cobre 500ml – Dissolver esta quantidade de ácido em 15 litros de água (30 x o volume do
ácido) e com 200gr de Hidróxido de cálcio. Efetuar o Procedimento padrão.
• Ácido Clorídrico 500ml – Dissolver em 25 litros de água. (50 x o volume do ácido) com 300gr de
Hidróxido de cálcio. Efetuar o Procedimento padrão.
• Ácido Acético 500ml – Dissolver em 5 litros de água (10 x o volume do ácido) com 50gr de Hidró-
xido de cálcio. Efetuar o Procedimento padrão.

Todos os “mordentes”, quando em uso, acumulam detritos sólidos, originários do processo corrosivo
dos metais. Estes detritos não devem seguir o mesmo destino do líquido já devidamente inoculado
para a exclusão. Embora não apresente risco pelo teor de acidez, resta ainda a poluição por partículas
provenientes do metal utilizado. Mesmo ciente de que a quantidade destes resíduos produzidos pelo
fazer artístico seja de pouca monta, sugerimos que os separem e, após alguma quantidade considerável,
dar-lhe o destino que manda a legislação local para tais rejeitos, ou ainda, continue os usando para fins
artísticos como seja: Como pigmento de tinta para pintura a óleo, amalgamando-o com óleo de linhaça.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sempre temos em mente a nossa questão principal, que é a busca por produtos alternativos mais se-
guros para o artista e ecologicamente correto no mister do fazer gravura em metal.

768
Com os resultados obtidos, os dados nos apontam a substituição do mordente, atualmente em uso em
nosso âmbito acadêmico (Percloreto de Ferro), pelo Sulfato de Cobre (Mordente de Bordeaux). Como
isolante, a indicação dos dados é a substituição do Neutrol (Asfalto líquido) pelo uso da Cera Líquida
(para assoalhos), desde que seu período de secagem não ultrapasse 24 horas.

Durante todo o período em que trabalhamos no Atelier 1 da UFPE destinado ao ensino da arte da
Gravura, tivemos oportunidade de dialogar com diversas pessoas, estudantes, docentes, até mesmo
de fora do âmbito acadêmico, o que contribuiu bastante para o desenrolar dos nossos trabalhos. Foi
nesse ambiente e com informações de estudantes que conheci o Mordente de Bordeaux, e o incluí na
pesquisa, sabendo mais tarde que o mesmo já estava sendo bastante difundido no Chile, em meios
acadêmicos e artísticos. Também nos auxiliou a abertura dada pela Professora Dr.ª Ana Elizabeth
Lisboa Nogueira Cavalcanti, que, em algumas aulas da cadeira de Gravura, da qual é a titular, se dis-
pôs a testar, junto com seus estudantes, nossos experimentos, onde, ao mesmo tempo, usávamos os
mordentes e isolantes, colhendo e avaliando diversos resultados, otimizando nosso tempo quanto à
utilização dos ácidos, elaboração das placas e sua consequente impressão.

Agradecemos ao PIBIC e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)


pelo apoio concedido às pesquisas que deram origem a este texto.

REFERÊNCIAS

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COSTA, Marcus de Lontra. A gravura no Brasil no século XX. O papel da arte, 2010. Disponível em: <http://
www.opapeldaarte.com.br/historia-da-gravura-no-brasil/> Acesso em: 28 fev. 2015.
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iar. unicamp.br/cpgravura/cadernosdegravura/downloads/GRAVURA_1_maio_2003_parte_1.pdf>.

769
Arte/Educação e mediação cultural
na Espanha: perspectivas femininas
na arte contemporânea árabe
Daniella Zanellato/ Rita Maria Ricardi Noguera

INTRODUÇÃO

A Europa vem enfrentando, nos últimos anos, por consequência dos conflitos no Oriente Médio e
do crescente número de refugiados que cotidianamente cruzam as fronteiras políticas, sociais e cul-
turais por vias marítimas e terrestres, a necessidade de refletir e discutir estratégias para lidar com a
problemática atual. No entanto, de acordo com os distintos interesses que envolvem cada país, enca-
minhamentos diversos para a questão acabam por desencadear problematizações que impactam em
situações cotidianas na sociedade europeia.

Uma questão que se amplia diante de tal situação, está no crescente assédio e violência sexual e de
gênero contra mulheres árabes refugiadas, continuamente expostas e vulneráveis, sobretudo frente
ao alto custeio imposto pelos grupos que ilegalmente fazem a travessia via marítima e terrestre entre
o Oriente Médio e a Europa, quanto posteriormente frente à sobrevivência nos diferentes países da
Europa (ESCAÑO, 2016)269.

No campo da Arte/Educação, tais enfrentamentos apontam para a necessidade de discutir e cons-


truir novas possibilidades de abordar tais questões, tendo em vista a construção de olhares para a
diversidade étnica, cultural e de gênero que, em certa medida, já localizava aportes diante do número
expressivo de imigrantes oriundos de países da África, Ásia e da América Latina.

Diante disso, por meio da construção de abordagens artísticas e culturais em espaços formais e não
formais de educação, pretende-se que novas proposições possibilitem condições de refletir, discutir,
compreender e transformar em âmbito cultural e social, alguns dos enfrentamentos apresentados
que, de maneira cíclica, podem se repetir nos mais distintos contextos, em diferentes épocas. Sobre

269. Conferência proferida pelo Prof. Dr. Carlos Escaño (Universidad de Sevilla), intitulada: “Lo que no se ve. Creatividad, poder (y
contrapoder) de la visualización: una experiencia mediática en Lesbos y la crisis de los refugiados”, na Universidad Autónoma de Madrid
(Espanha), em 22 de abril de 2016.

770
a questão, Hannah Arendt (1943) aponta que refugiados são todas as pessoas que se veem forçadas
a abandonar sua terra e seus costumes para serem “aceitas” em outros países em nome dos Direitos
Humanos, por sua vez, representando nesses novos lugares, apenas um número administrativo, des-
tacando ainda, que nenhuma pessoa gosta de ser chamado de refugiado.

No campo da educação não formal, alguns espaços culturais, fundações e museus de Arte da Espanha
buscam desenvolver estratégias de mediação cultural que considerem a multiculturalidade e intercul-
turalidade presentes entre os diferentes povos, religiões e culturas.

No contexto desta pesquisa, a mediação cultural possui um caráter de construção de sociedades mais
democráticas, participativas e sensíveis, encontrando diálogos com as reflexões de Tourinho (2009):

A mediação estende-se e visualiza poderes e ações para além da escolarização, preocupando-se com
a construção de uma sociedade democrática, participativa e sensível. Mediação pressupõe interação,
dialogar com a cultura visual dos estudantes (e a nossa), integrá-la e ampliá-la são processos com os
quais interagimos e a mediação que eles exigem envolve uma prática que deve ser crítica e autocrítica
(TOURINHO, 2009, p. 272).

É neste sentido que o papel do Arte/Educado se mostra como fundamental na mediação cultural, a fim
de favorecer aprendizagens mais significativas, propondo abordagens artísticas e educativas, por meio de
percursos e estratégias que propiciem interpretações que se ampliam a outros lugares de aprendizagem.

Tendo em vista que neste relato de experiência a ênfase da mediação está na formação continuada
de educadores de diversas áreas do conhecimento que trabalham na educação formal e não formal,
dialogamos com as inúmeras possibilidades e potencialidades propiciadas pela mediação cultural na
esfera educacional, conforme proposto por Rizzi (2013).

De acordo com a autora, os educadores são responsáveis pelo processo de escolha da exposição, dos
percursos e abordagens artísticas, culturais e pedagógicas vivenciadas pelos alunos a partir da relação
que estabelecem com os museus, que trazem, em si, possibilidades de fruição e criação:

Como educadores, temos a possibilidade de estudar previamente uma exposição, desdobrar-lhe a


materialidade da linguagem expositiva, seus suportes; exercitar as possibilidades de interpretação,
construir percursos e criar estratégias de mediação cultural para nossos alunos. Considerando essa
complexa dimensão das possibilidades de criação e escolhas que uma exposição oferece, ir a uma
exposição, levar os alunos a ela deve ser sempre um ato de escolhas de cada educador em termos de
qual exposição e em que momento do período letivo levá-la (RIZZI, 2013, p. 139).

Além disso, a construção do percurso e demais escolhas interpretativas do objeto cultural podem se
fazer presentes na mediação cultural, a partir da inter-relação do fazer da Arte, da leitura da imagem,
da obra ou campo de sentido da Arte, bem como da contextualização política, social e cultural, con-
forme pressupostos presentes na Abordagem ou Proposta Triangular (BARBOSA, 2012).

O vértice da contextualização ganha força, sentido e significado ao se desenvolver junto com as bases
da pedagogia sistêmica, já que o sentido da contextualização se amplia do interno para externo, do

771
pessoal para o social, do mundo interno do indivíduo ao mundo externo em questão, sendo funda-
mental para a reflexão, compreensão e criação de arte.

Por sua vez, a pedagogia sistêmica, ao abordar e incluir todos os agentes que fazem parte do contexto
desenvolvido, propicia que, a partir da mediação cultural, sejam incluídos e respeitadas todas as pes-
soas em seus saberes e contextos de lugar, a saber: a) agentes e artistas que desenvolvem a obra, por
meio de seu contexto histórico e artístico; b) equipe educativa, que desenvolve o trabalho de mediação
cultural; c) públicos e a mediação cultural; d) instituição cultural, que desenvolve a ação educativa.

De acordo com Traveset (2008),

A pedagogia sistêmica é uma filosofia e uma metodologia que inclui a todos os elementos do sistema


educativo, a todos os educadores, a todas as famílias, a todos os alunos. Portanto, um dos seus objeti-
vos é trabalhar a inclusão e o sentido de pertencer[…]. De fato assim se recolhe no marco normativo
que regula a educação, mas as exclusões se dão em um plano inconsciente, devido a que não somos
capazes de ampliar nosso mapa, o nosso olhar, não somos capazes de sair de nosso contexto para
abarcar outro. Assim pois, verbalmente falamos de inclusões, mas desde a comunicação não ver-
bal excluímos, julgamos, desvaloramos, e assim se perpetuam os problemas. A pedagogia sistêmica
aporta ferramentas e instrumentos para fazer coincidir a comunicação lógica e a comunicação ana-
lógica, ou ao menos, diminuir estas mensagens duplas (TRAVESET, 2008, p. 35-36).

A realização de mediações culturais mais significativas entre todos considera o respeito aos lugares
individuais e coletivos de aprendizagem, favorecendo um espaço de discussão e aprendizagem da
Arte de forma contextualizada aos enfrentamentos atuais.

Aprofundaremos a discussão a partir do relato de experiência de uma mediação cultural que bus-
cou refletir, por meio da Arte contemporânea árabe, alguns aspectos sobre os conflitos presentes no
Oriente Médio.

1. MEDIAÇÃO CULTURAL: RELATO DE EXPERIÊNCIA

Este relato de experiência discute a mediação cultural realizada na exposição “Looking at the World
Around You. Contemporary Works from Qatar Museums”, em cartaz durante os meses de fevereiro a
junho de 2016, pela Fundación Banco Santander, localizada em Madri, Espanha. A mediação cultural
foi realizada por uma arte/educadora270 junto a um grupo de professores, a partir da seleção de um
conjunto de diferentes obras de Arte contemporânea produzidas por mulheres árabes.

A exposição de Arte “Looking at the World Around You. ������������������������������������


Contemporary Works from Qatar Museu-
ms” inclui mais de 160 obras modernas e contemporâneas, dentre pinturas, esculturas, fotografias,
instalações e videoinstalações de 35 artistas árabes e de países que estabeleceram relações históricas e
culturais com Catar.

270. O serviço educativo de mediação cultural oferecido pela Fundación Banco Santander, na Espanha, conta com o apoio de três equipes
vinculadas às empresas especializadas em programas educativos, sendo uma dessas empresas a MirArte Arte para todos, da qual a arte/
educadora da mediação está vinculada.

772
Tendo por objeto a problemática anunciada, onde a crise enfrentada no Oriente Médio tem impac-
tado diretamente em países da Europa e, sobretudo na violência sexual e de gênero que as mulheres
árabes estão sendo expostas, para a mediação cultural em discussão, buscou-se selecionar um con-
junto de obras de Arte contemporânea árabe, produzidas por mulheres árabes que atualmente vivem
ou já viveram em países árabes.

De acordo com Barbosa (1998), a discussão sobre a temática das mulheres é sempre um ato político
que, em diálogo com Kant, para ser estético se inicia no particular, no singular:

O pensamento feminista, ou o mero pensar sobre o universo existencial das mulheres, é sempre
um ato político, pois supõe uma reflexão sobre a diferença e a singularidade em contraposição a
homogeneidade do poder hegemônico. Julgamento estético, para Kant, começa com o particular, o
singular. Como julgar esteticamente sem respeito pelas diferenças, sem respeito pelo outro ou pela
comunidade humana pluralista? (BARBOSA, 1998, p. 103-104).

Para a mediação cultural em discussão, participaram um grupo com cerca de 15 professores de diver-
sas áreas do conhecimento que trabalham com a Arte na educação, em espaços formais e não formais,
localizados em Madri, Espanha. Os professores são provenientes de diferentes regiões da Espanha e
de países da América Latina, e, desde 1998, integram o grupo de estudos e pesquisas denominado
Enter-Arte271. O grupo se reúne a cada quinze dias para discutir temas da Arte e da educação, refle-
tindo sobre abordagens e possibilidades de trabalho em âmbito formal e não formal.

Dentre as artistas presentes na exposição e tendo em vista a mediação cultural realizada com os pro-
fessores, foram selecionamos diferentes artistas mulheres e obras e, dentre essas, selecionamos algumas
para discutir, a saber: a) Amal Kenawy, com a obra Las multitudes silenciosas (2010); b) Mona Hatoum,
com as obras Corriente subyacente (2004) e Misbah (Farol) (2006–2007); c) Shirin Neshat, com a obra
Nuestra casa está en llamas (2013); e d) Manal AlDowayan, com a obra Suspendidas juntas (2011).

Além de as artistas terem em comum suas origens em países árabes, suas obras buscaram refletir as-
pectos da identidade e da cultura árabe na sociedade atual. Muitas dessas artistas árabes emigraram
para outros países e discutem a questão sob novas perspectivas, buscando um lugar de pertencimen-
to, ou ainda, buscando uma maneira de compreender aspectos pertinentes à sua cultura de origem ou
do país que emigrou.

O percurso de mediação cultural levou em consideração tais pressupostos e também o caráter político
e estético das obras, considerando ainda as possíveis abordagens educativas realizadas por professores
junto a alunos da educação formal e não formal.

Para a mediação cultural realizada com os professores, foram selecionadas as artistas citadas e suas
respectivas obras bidimensionais, tridimensionais e instalações que permitiram a construção de diá-

271. Grupo de trabalho do Movimento de Renovação Pedagógica chamado “Acción Educativa”, constituído por docentes de todos os
níveis de formação e profissionais interessados por uma educação artística de qualidade. É um espaço de encontro para a reflexão sobre a
criação e pesquisa artística em sala de aula. Enter-Arte se propõe a uma busca de novas linguagens visuais na escola, realizando metodolo-
gias que fomentem a criatividade como cerne da aprendizagem, pesquisando o entorno, interessando-se em outras realidades socioculturais
e valorizando positivamente os processos de trabalho e a participação de toda a comunidade educativa: famílias, educadores e educandos.

773
logos para a problemática vivenciada pelo conflito árabe, bem como refletir sobre aspectos da reali-
dade em Madri, Espanha.

Assim, por meio da pesquisa sobre o contexto de criação das obras e suas artistas, foi possível
construir o percurso de mediação cultural e as proposições artísticas que orientaram as apreciações
estéticas.

Para introduzir a discussão, os professores foram contextualizados ao espaço e à temática expositi-


va, tendo em vista ser a primeira vez que uma exposição de Arte contemporânea árabe do Museu
de Catar estar na Espanha. Também foram realizadas conexões e diálogos, partindo do conhecido
para o novo, sendo apresentadas fotos de cidades árabes como Riad, Beirut, Doha, Dubai, El Cairo,
dentre outras. Além dessas, um conjunto de imagens que contextualizavam as obras de Arte apre-
sentadas auxiliaram a ampliar as referências dos professores durante os diálogos e o percurso de
mediação.

Uma das primeiras obras apresentadas foi da artista Amal Kenawy (El Cairo, 1974 – 2012). Com uma
breve e intensa carreira artística, interrompida por uma enfermidade, a artista realizou a obra “Las
multitudes silenciosas” (2010).

Figura1. Obra Las multitudes silenciosas (2010),


artista Amal Kenawy. Fundación Banco Santander
(Madri, Espanha).
Fonte: Daniella Zanellato, 2016.

A obra é uma reflexão poética sobre a crise cotidiana que segue caracterizando a vida no Egito con-
temporâneo e de toda a região, utilizando a estrutura arquitetônica típica das construções informais
dos bairros mais pobres do Cairo, por onde cerca de cem botijões de gás criam, no espectador, uma
sugestão do perigo. A força desta obra e do objeto como símbolo representativo do indivíduo foram
discutidos pelos professores que fizeram referências a outras exposições, como SujetObjetoS, realiza-
da em 2004, e ao curso La vida afectiva de los objetos, realizado em 2015, pelo Centro de Arte Dos de
Mayo (CA2M).

Outra importante artista selecionada para o percurso de mediação foi Mona Hatum (Líbano, 1952),
que atualmente vive e trabalha em Londres. Duas obras da artista mereceram destaque: Corriente
subyacente (2004) e Misbah (Farol) (2006 – 2007).

774
Figura 2. Obra Corriente subyacente (2004),
artista Mona Hatoum.
Fonte: Catálogo virtual da Fundación Banco Santander, 2016.

Figura 3. Obra Misbah (Farol) (2006-2007), artista Mona Hatoum.


Fonte: Catálogo virtual da Fundación Banco Santander, 2016.

Alguns professores do grupo já conheciam a artista e suas obras, bem como as contradições propostas
pela artista: uma luminária de quarto de criança com desenhos de soldados armados, um tapete que
não se pode pisar, dentre outros. Além disso, os materiais utilizados e ritmos propostos pela artista
mobilizaram diferentes percepções nos professores.

Na obra Corriente subyacente, conforme a luz mudava de intensidade, do mais intenso ao mais tênue,
foram citados aspectos sobre o ritmo nas mediações realizadas com alunos de escola, bem como per-
cepções internas e corporais ritmadas, como o coração, estabelecendo associações com o ritmo de vida.
Também foram reflexionados aspectos sobre o ritmo da língua árabe e sua sonoridade poética, propon-
do associações sobre o som de suas palavras desenhadas no ar, por onde saem curvas orgânicas e arabes-
cos árabes. Nesse contexto, os professores apontaram para a possibilidade de trabalhar com diferentes
ritmos, materiais e contextos, demonstrando interesses em conhecer mais o trabalho da artista.

A elaboração do percurso de mediação cultural exigiu estabelecer critérios claros que levassem em con-
sideração o público de visitação, já que a discussão de algumas obras e artistas abordavam temas como
guerra e morte por meio de recursos visuais impactantes. Nesse sentido, os professores foram apresen-
tados à artista Shirin Neshat, tendo em vista como poderia ser a abordagem da obra Nuestra casa está en
llamas (2013), junto à mediação cultural com crianças, sobretudo devido atemática da obra.

A artista Shirin Neshat (Irán, 1957), atualmente vive e trabalha em Nova York. A obra Nuestra casa
está en llamas (2013) é uma grande instalação com retratos monumentais de uma sociedade e suas
perdas, que foram resultado da “primavera árabe”.

Para realizar a obra, a artista Shirin passou um período com as pessoas que perderam membros de sua
família. Com o grupo de professores, foram reflexionadas as dificuldades de trabalhar a temática com
os alunos de 6 a 8 anos, mas também da importância de reconhecer tal necessidade, tendo em vista a
importância e o necessário respeito às histórias de perdas relatadas, à escuta sobre elas e, sobretudo,

775
à compreensão da importância de falar sobre os conflitos, conquistas e perdas, mantendo um lugar
ao que lhes foi deixado em vida. Assim, a artista realiza as fotos escutando essas histórias e refletindo
com as famílias sobre os enganos e as perdas por ocasião da Primavera Árabe.

Figura 4. Obra Nuestra casa está en llamas (2013), de Shirin Neshat.


Fonte: Catálogo virtual da Fundación Banco Santander, 2016.

Na mediação, os professores foram convidados a se aproximarem das fotografias e descobrirem pos-


síveis marcas deixadas pela artista. Ao apreciarem a imagem, os professores se surpreenderam ao
descobrir que misturadas às rugas e sulcos das pessoas retratadas havia a gravação de um poema ma-
nuscrito, do poeta Iraní Mehdi Akhavan Sales. Os professores apontaram que a obra produz um certo
silêncio, levando-os a refletir sobre profundas conexões entre acontecimentos locais e internacionais,
histórias individuais preservadas dentro de um contexto humano, coletivo e, por vezes, trágico.

Para finalizar, o percurso seguiu para a instalação Suspendidas juntas (2011), da artista Manal AlDowayan
(Arábia Saudita, 1973), que continua trabalhando na mesma cidade de origem Dhahrane, em Dubai.

Neste país, a maior parte dos direitos humanos e liberdades fundamentais foram restringidos. As re-
lações homossexuais são condenadas habitualmente com a morte e as mulheres não podem conduzir
veículos. O direito ao voto pelas mulheres só foi reconhecido em 2011. Apesar dos últimos avanços, os
mais importantes grupos de direitos humanos, como Amnistía Internacional y Human Rights Watch,
fazem constantes denúncias sobre o desrespeito aos direitos humanos fundamentais no país.

Figura 5. Obra Suspendidas Juntas (2011), de Manal AlDowayan. Fun-


dación Banco Santander (Madri, Espanha).
Fonte: Daniella Zanellato, 2016.

776
A partir da instalação de 126 pombas com autorizações de viagens coladas em seus corpos, foram
realizadas indagações sobre impressões percebidas pelos professores na obra, por meio dos questio-
namentos “O que estão vendo, e, na opinião de vocês, o que está acontecendo?”

Figura 6. Mediação com a arte/educadora Rita Noguera. Fundación


Banco Santader (Madri, Espanha).
Fonte: Daniella Zanellato, 2016.

A artista Manal AlDowayan expõe a questão do machismo e autoritarismo presente na relação contra
as mulheres que vivem na Arábia Saudita, que precisam de autorizações de viagens dos seus tutores,
pais, marido ou irmãos. Nas pombas, a artista utilizou as autorizações de viagens concedidas a nume-
rosas mulheres de destaque, como educadoras, engenheiras, artistas e cientistas.

Durante a mediação, alguns questionamentos foram realizados: O que a artista propõe com essa obra?

Durante a mediação, a arte/educadora apresentou que a artista propõe uma reflexão sobre a sociedade
e suas leis, que podem mudar. Além disso, o grupo de professores foi desafiado a recordar sobre o ano
em que as mulheres espanholas deixaram de necessitar de autorização para viajar sozinhas na Espa-
nha. A resposta do grupo foi exata, ano de 1981, uma data simbólica na Espanha. Até essa data, as mu-
lheres espanholas também deviam pedir permissão de seus maridos para trabalhar, receber salários,
tirar passaporte, carteira de habilitação para dirigir, abrir conta corrente em banco, dentre outras. A
partir daí, os professores começaram a estabelecer relações com situações ocorridas com familiares
próximos. Ao término da mediação cultural no espaço expositivo da Fundación Banco Santander, os
professores receberam um folder da exposição.

No caminho de retorno, os professores continuaram a discutir aspectos que lhes chamaram a atenção
nas obras. Também passaram a refletir sobre as obras e artistas por meio de um grupo de discussão
na internet, onde tiveram acesso ao catálogo digital oficial da exposição, também disponível para
consulta virtual pela Fundación Banco Santander.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordar questões relativas aos conflitos do Oriente Médio, refletindo sobre os enfrentamentos de um
crescente número de refugiados, dentre os quais, mulheres vítimas de violência sexual e de gênero,

777
permite-nos compreender a dimensão política da Arte nas ações de mediação cultural, sendo possível
construir novas vias de acesso, cada vez mais necessárias, para discutir tal problemática.

Nesse sentido, a mediação cultural por meio de obras e instalações realizadas por artistas mulhe-
res árabes permite compreender a complexa temática, favorecendo, sobretudo, à construção de uma
multiplicidade de olhares para a questão, onde pontos de confluência entre diferentes culturas – e o
outro então desconhecido –aproximem-se da dimensão humana da Arte e de suas formas de ser, es-
tar, sentir e agir na sociedade. É a partir das relações humanas que nos integramos e sustentamos, nos
unindo para a compreensão dos inúmeros processos que envolvem o desenvolvimento do respeito à
cultura do outro, que também é a nossa.

Sendo assim, é por meio de tais questões que compreendemos como os contextos na Arte podem au-
xiliar a relacionar distintos modos de ser e estar, integrando o mundo interno com o mundo externo,
fazendo o pensar no “outro” como o pensar em “si, a partir do respeito às singularidades e diversidades.
Por fim, a perspectiva de trabalho de mediação em Arte, permite, ainda, construir, com distintos grupos,
uma sociedade mais justa, onde as diferenças sejam tratadas de maneira mais humana e inclusiva.

REFERÊNCIAS

ARENDT, H. We refugees. Menorah journal, ed. 31, n. 1, p. 69-77, 1943.


BARBOSA, A.M. Arte-Educação no Brasil. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.
BARBOSA, A.M. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1998.
LOOKING at the World Around You. Contemporary works from qatar museums. Catálogo virtual e obras.
Fundación Banco Santander. Disponível em: <http://www.fundacionbanco santander.com/visita_virtual/qa-
tar_museums/es/>. Acesso em: 08 abr. 2016.
NOGUERA, R: Experiências de arte e inclusão: integrando crianças e famílias nos ateliês de San Fernando. Re-
vista Educação, Artes e Inclusão, Revista do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – LAVIPE/UDESC,
Florianópolis, v. 7, n. 1, p. 117-130, 2013. Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/arteinclu-
sao/article/view/3137>. Acesso em: 05 mar. 2016.
RIZZI, M. C. Caminhos metodológicos. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações e mudanças no ensino da
Arte. São Paulo: Cortez, 2002.
TOURINHO, I. Visualidades comuns, mediações e experiência cotidiana. In: BARBOSA, Ana Mae; COUTI-
NHO, Rejane G. (Orgs.). Arte/Educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
TRAVESET, M. V. Pedagogía sistémica, Fundamentos y práctica. Sèrie: Atenció a la diversitat / Educació especial
/ Orientació i tutoria. Collecció. Barcelona: Ed. Graó, 2000, 238 p.

778
As mulheres em foco:
da invisibilidade à visibilidade, a partir
de uma prática de ensino em artes
Isaac Assunção

INTRODUÇÃO

Este texto tem como objetivo compreender quais os efeitos do ensino de artes sob a ótica das produ-
ções artísticas femininas. A prática educativa aqui analisada se refere a um curso de férias realizado
pela Escolinha de Arte do Recife (EAR), no estado de Pernambuco, uma das escolas de arte mais an-
tigas do Brasil, que tem sua fundação em março de 1953, com atuação há mais de 60 anos. Esta escola
não trabalha com fins lucrativos. Com o dinheiro que ganha, busca manter a instituição. No quesito
acessibilidade, distribui vagas para estudantes de escolas públicas e de baixa renda, assim como, dá
desconto a filhos/as de professores/as.

Nesta escola, nos meses de janeiro e julho, as crianças e adolescentes de diferentes bairros e cidades
frequentam-na para participar do tradicional curso de férias.

Durante muito tempo na história da arte, as mulheres foram invisibilizadas e tiveram suas produções
artísticas ocultadas ou assumidas por homens. No Brasil, é notório a presença das artistas modernistas
Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. No entanto, cabe questionar: antes delas não existiam outros ilustres
nomes femininos na arte? Porque as mulheres só apareceram na arte com visibilidade no Brasil a partir
do modernismo? Diante da problemática, a Escolinha de Arte do Recife, com sua equipe pedagógica e
parcerias, decidiu planejar um curso de férias onde as mulheres seriam compreendidas como as prota-
gonistas da arte, no período em que as crianças vão a este espaço para passar o melhor de suas férias.

O referido curso de férias, que aqui está sendo analisado, teve o objetivo de compreender a produção
artística feminina, partindo da obra O Diário das Frutas, da Olindense Tereza Costa Rêgo, em diálogo
com a tracunhaense Severina Batista, a estadunidense Annie Leibovitz e a gaúcha Regina Silveira,
através das linguagens de pintura, modelagem, fotografia e instalação.

O curso de férias da EAR é organizado em quatro módulos, divididos por semana, onde cada semana
compõe um módulo e para cada um deles é atribuída uma linguagem artística que dialoga com a lin-
guagem central, que, neste curso, foram as artes visuais. Segundo Barbosa (2007),

779
[...] a Arte, como uma linguagem aguçadora dos sentidos, transmite significados que não podem ser
veiculados por meio de nenhum outro tipo de linguagem, como a discursiva e a científica. Dentre
as artes, as visuais, tendo a imagem como matéria-prima, tornam possível a visualização de quem
somos, onde estamos e como sentimos. (p. 01).

É possível, então, compreender a relevância das artes visuais para o ensino de arte e os possíveis sig-
nificados que, por ventura, surgem dela, por ser esta uma linguagem presentacional, o que a torna
difícil de ser explicada pela linguagem discursiva e pela científica, devido ao fato de que a linguagem
presentacional transmite significados que as outras linguagens não conseguem transmitir.

O curso conta ainda com a parceria do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino do Cen-
tro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (DMTE/ CE/UFPE), com a Pró-Reitora
de Extensão (PROEXT/UFPE) e com a Associação Nordestina de Arte/Educadores de Pernambuco
(ANARTE-PE).

Este trabalho foi organizado em cinco seções. A Introdução, onde se apresenta um pouco da preten-
são deste texto, assim como a problemática que gerou a temática do curso e o lócus da pesquisa. Em
seguida, o referencial teórico, no qual se fundamenta o trabalho e que aborda três categorias teóricas
centrais: Abordagem Triangular do Ensino das Artes, Interculturalidade e Gênero. Em sequência, dis-
põe-se a descrição da prática de ensino implementada, a análise da prática e os resultados coletados.
Por fim, apresentam-se as conclusões.

1. ABORDAGEM TRIANGULAR, INTERCULTURALIDADE E GÊNERO

Na situação didática implementada, foi utilizada como fundamento teórico para a metodologia de en-
sino, a abordagem triangular para o ensino das artes, sistematizada pela professora Ana Mae Barbosa,
e que hoje é a principal referência de ensino de arte no Brasil. Segundo a autora:

Em nossa vida diária, estamos rodeados por imagens impostas pela mídia, vendendo produtos,
ideias, conceitos, comportamentos, slogans políticos, etc. como resultado de nossa incapacidade de
ler essas imagens, nós aprendemos por meio delas inconscientemente. A educação deveria prestar
atenção ao discurso visual. Ensinar a gramática visual e sua sintaxe através da arte e tornar as crianças
conscientes da produção humana de alta qualidade é uma forma de prepará-las para compreender
e avaliar qualquer tipo de imagem, conscientizando-as de que estão aprendendo com estas imagens.
(BARBOSA, 1998, p. 17).

Faz-se necessário, desta forma, ensinar, despertar o olhar das crianças para estas imagens, este discur-
so visual que nos ronda. Nesse sentido, ler é uma das ações da abordagem triangular, assim também
como o fazer artístico e a contextualização em termos mais genéricos.

Com relação à contextualização, é necessário compreender que a arte é um resultado do seu tempo,
que é produzida pelos/as seus/suas artistas e que ela é uma área de conhecimento transdisciplinar, ou
seja, está em constante diálogo com o mundo e as diferentes áreas de conhecimento, como nos indica
Barbosa:

780
A metodologia de análise deve ser de escolha do professor e do fruidor, o importante é que obras de
arte sejam analisadas para que se aprenda a ler a imagem e avaliá-la; esta leitura é enriquecida pela
informação acerca do contexto histórico, social, antropológico etc. (BARBOSA, 2009, p. 39).

É interessante para a utilização dessa abordagem o princípio da interculturalidade, termo mais ade-
quado numa arte/educação que se propõe a trabalhar com os diferentes códigos culturais. É possível
encontrar, ainda na literatura, outros sinônimos que vêm sendo utilizados. Porém, como nos indica
Richter (2003):

Atualmente vem sendo utilizado o termo “interculturalidade”, que implica uma inter-relação de reci-
procidade entre culturas. Esse termo seria, portanto, o mais adequado em um ensino aprendizagem
em artes que se proponha a estabelecer a inter-relação entre os códigos culturais de diferentes grupos
culturais. (p. 19).

A interculturalidade também pressupõe dialogar com contextos artísticos locais e ou regionais, na-
cionais e internacionais, aproximando as diferentes culturas artísticas, ampliando, assim, o conhe-
cimento e o repertório de mundo das crianças, pois, como já mencionamos anteriormente, a arte é
produzida por sujeitos/as sociais e é resultado das expressões culturais de um povo. Segundo Barbosa
(2007), “a arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente,
nem estrangeiro no seu próprio país”.

Tratando-se de um curso em que só as produções artísticas femininas foram estudadas, faz-se necessário
tratar aqui as questões de gênero, que por gigantesca desigualdade estabelecem-se numa relação binária
onde um polo está superiorizado e só se afirma e se constitui a partir de um outro inferiorizado, que é a
questão do homem e da mulher, especialmente aqui tratando dessa relação na história da arte.

A filósofa norte americana pós-estruturalista Judith Butler (2003) acredita que o gênero e o sexo são
é uma construção histórico-social, e não um dado natural, atravessado por discursos e reiteração de
uma norma. Para Butler, gênero é um ato intencional, um gesto performativo que produz significados
(PISCITELLI, 2002). Não é proposta deste trabalho analisar as questões de gênero apenas pelas desi-
gualdades, apesar de ter sido esse o fato da invisibilidade das mulheres artistas na história da arte. A
arte era um valor atribuído ao homem e não à mulher, por este primeiro estar polarizado como valor
social, binariamente falando.

Para Louro (1997), as discussões de gênero e as desigualdades geradas por elas estão em constantes
transformações. Os movimentos sociais organizados buscam equidade e superação das desigualdades
instaladas e mantidas historicamente. Logo, a ação da EAR é uma ação que prevê um deslocamento
das desigualdades instaladas historicamente na arte e a busca pela visibilidade das produções artísti-
cas das mulheres na arte.

2. DESENVOLVIMENTO DA SITUAÇÃO DIDÁTICA

A Escolinha de Arte do Recife oferece cursos de férias que acontecem em janeiro e julho, no turno
da manhã, no horário das 8h às 11h, e à tarde, das 14h às 17h, com três turmas denominadas A, B, C,
com, no máximo, de quinze (15) alunos matriculados por turma. As turmas são organizadas por faixa

781
etária da seguinte forma: a turma A, entre 2 e 3 anos; a turma B, entre 4 e 6 anos, e a turma C, a partir
dos 7 anos. Porém, há frequentes casos em que uma criança não se identifica com as crianças do ateliê
correspondente à sua idade e se identifica com crianças de maior ou menor idade, sendo estes casos
acolhidos na turma em que o/a estudante se identificar, cabendo ao arte/educador fazer as adaptações
necessárias. As turmas são distribuídas em três (03) ateliês.

Sua equipe pedagógica conta com um (01) diretor pedagógico doutor em educação, duas (02) coor-
denadoras pedagógicas licenciadas em artes visuais e nove (09) arte/educadores das diversas áreas
do conhecimento, como Pedagogia, Dança, Artes Visuais e Letras. O planejamento do curso ocorreu
com muita antecedência. Os coordenadores e a gestão pedagógica planejaram a formação, convida-
ram os profissionais escolhidos para realizar as formações e elencaram as temáticas das formações,
que, neste curso, se voltaram para as questões de gênero na arte.

Os arte/educadores planejaram suas sequências de ensino com o apoio das coordenadoras e se reu-
niam todas as sextas-feiras do mês, antecedentes ao curso, para discutir e melhorar os planejamentos.
Foi vivenciada uma formação, ministrada por professores doutores externos à EAR, no campo do
Gênero/Educação, Feminismo, História da Arte, para os arte/educadores que iriam atuar neste curso
de férias. Também foram realizadas excursões formativas nas terras de duas artistas homenageadas,
localizadas no estado de Pernambuco. Os lugares visitados foram o ateliê de Tereza Costa Rêgo e a
Terra do Barro Santeiro, a Cidade de Tracunhaém, para conhecer a história de Severina Batista, outra
artista homenageada, já falecida, que deixou seu legado a seu filho, Luiz Gonzaga.

Como mencionado anteriormente, este curso de férias teve como objetivo compreender a produção
artística feminina, partindo da obra “O Diário das Frutas”, da artista plástica pernambucana Tereza
Costa Rêgo em diálogo com Severina Batista, Annie Leibovitz e Regina Silveira, através das lingua-
gens de pintura, modelagem, fotografia e instalação, a fim de compreender a arte como uma área de
conhecimento construída histórica e socialmente, a partir de processos de leituras, contextualizações
e produção artística, como é proposto pelas atuais tendências de arte/educação.

A artista homenageada neste curso, Tereza Costa Rêgo, nasceu na cidade histórica de Olinda, no
estado de Pernambuco; é formada em História, pela Universidade de São Paulo, e tem doutorado em
História, na Sorbonne, com uma tese sobre o proletariado brasileiro.

No ano de 1950, ela conseguiu colocar em exposição sua primeira obra, no Museu do Estado de
Pernambuco, pela qual recebeu um prêmio da Universidade Federal de Pernambuco. Foi aluna
da Escola de Belas Artes no Recife aos quinze anos de idade. Durante a ditadura militar, foi alvo
de perseguição política no Brasil e precisou fugir com seu marido. Ficou exilada em Paris, onde
assinava seus quadros como “Joanna” para não ser descoberta pelo regime opressor. Seus quadros
são diferenciados pelas quantidades de tintas e raspagens feitas para acabamento final. O vermelho
é uma marca presente em suas pinturas, assim como o tamanho de suas telas, que são generosa-
mente grandes. Tereza Costa Rêgo retrata, em sua pintura, o imaginário popular pernambucano,
como procissões, igrejas, santos, Olinda, Recife, animais e certa paixão por maçãs. Ela confessa ter
influência do artista espanhol Francisco Goya. O escritor Ariano Suassuna identificou marcas do
Barroco em sua obra.

782
Hoje, Tereza tem um ateliê em Olinda/Pernambuco, cidade conhecida pelo desfile dos Bonecos Gi-
gantes, das agremiações de Frevo, por ser eleita como Patrimônio Histórico da Humanidade pela
UNESCO em 1978 e por estar entre os quatrocentos monumentos mais importantes do mundo. A
cidade de Olinda ainda ostenta mais três títulos como a 1ª Capital Brasileira da Cultura, título
esse concedido pela ONG Capital Brasileira da Cultura (CBC), mais de onze mil pessoas e entidades
declararam seu apoio à cidade para receber tal título, tem também o título de Monumento Nacio-
nal – Lei federal n° 6863, de 26 de novembro de 1980 (Lei Fernando Coelho) – e, por fim, o título de
Cidade Ecológica – Decreto municipal n° 023, de 29 de junho de 1982 – este último título foi confe-
rido pelo prefeito Germano Coelho, devido aos vários espaços verdes ainda conservados na cidade,
como o Horto d’ El Rey, um dos primeiros jardins botânicos do país; o Bosque de Coqueiros, situado
na entrada da cidade, com mais de dez mil mudas; a Mata de Passarinho, além de outros sítios de pre-
servação do verde. O dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, patrono da ecologia, é dedicado
à comemoração do título e à exaltação ao coqueiro.

Tereza Costa Rêgo, por ser a artista homenageada, foi estudada nos quatro módulos, que foram
divididos nas semanas do mês de janeiro, sendo o primeiro módulo do dia 05 a 08, o segundo de
12 a 15, o terceiro de 19 a 22 e a quarto de 26 a 29, onde foram explorados os doze quadros que
compõem a exposição O Diário das Frutas, estudada durante todo o curso de férias. Além de falar
da sua história, apresentou-se, por fotografias, o ateliê da artista e outros gigantes quadros que se
encontravam em exposição para os visitantes. O objetivo da visita foi conhecer pessoalmente a ar-
tista e tirar dúvidas sobre sua vida e sua obra, assim como coletar material de exposições anteriores
para apresentarmos aos estudantes. Os/as arte/educadores/as aproveitaram e tiraram fotos com a
artista no dia da visita para apresentar e instigar os/as estudantes a irem visitar a artista, tendo em
vista que na primeira semana a arte postal a ser trabalhada com as crianças sugeria uma visita ao
ateliê da artista Tereza Costa Rêgo.

O contato de crianças com esta artista fez parte da experiência didática que analisei neste trabalho.
A prática de ensino que escolhi para a discussão corresponde à primeira semana do curso de férias, e
foi realizada com a turma de crianças a partir dos sete (07) anos de idade. Fiz opção por analisar este
momento do curso pelo fato de que, ao meu olhar, foi uma experiência provocadora para os/as estu-
dantes. Nesta situação didática, vivenciei o lugar de docente. O texto segue para uma breve descrição
da experiência analisada.

Agora faremos uma breve descrição da prática de ensino implementada na turma de sete anos em
diante, para uma melhor compreensão do fenômeno aqui investigado. Vamos nos deter apenas à
primeira semana, que, ao nosso olhar, foi mais provocadora para os/as estudantes, o primeiro contato
com Tereza Costa Rêgo e o diálogo com a obra da mexicana Frida Kahlo. Na primeira semana, apre-
sentei a artista plástica pernambucana Tereza Costa Rêgo, a partir da imagem central do curso, “A
Pitanga”, um dos 12 quadros que compõem O Diário das Frutas, que esteve em 2011 em exposição no
Caixa Cultural de Recife/PE e foi noticiado nos principais jornais do Estado. As crianças se surpreen-
deram com a imagem da pitanga e riram bastante pela nudez da mulher retratada na pintura. Pareceu
ser desafiador ler aquela imagem com a turma. Prontamente, apareceram as questões de sexualidade
infantil. Um estudante de sete anos brincou dizendo “Que gostosa essa mulher, eu quero ela para
mim!” As crianças riram muito da cena.

783
Perguntaram por diversas vezes, “Professor ela ainda está viva ou já morreu?” Respondi que estava
viva e que era uma senhora muito saudável, alegre e que subia em escadas para pintar seus quadros
gigantes. Eles acharam estranho estudar uma artista do estado de Pernambuco e que estava viva.
Ainda nesta primeira semana, apresentamos a artista mexicana Frida Kahlo e alguns de seus quadros
do gênero natureza morta, para dialogar com os quadros de Tereza Costa Rêgo e para fazermos um
diálogo internacional. Aproximamos, desta forma, artistas com histórias de vidas tão diferentes e com
a semelhança de serem pessoas do gênero feminino e de trazerem em suas obras elementos capazes de
provocar discussões sobre gênero.

Ao apresentar Frida Kahlo, a partir de seu autorretrato, as crianças riram muito da imagem da artista.
Ao perguntar as crianças o porquê daquele riso descontrolado, as crianças disseram que Frida não
fazia a sobrancelha, tinha bigode e que ela parecia uma “mulher-homem”.

Ainda na mesma semana, levamos um quebra-cabeça com algumas imagens dos quadros da obra O
Diário das Frutas. Na hora do jogo, as crianças, sem saberem que as imagens do quebra-cabeça eram
imagens da obra que estávamos conhecendo, ficaram muito inquietos/as quando as imagens foram
se revelando, principalmente a do quadro da Manga. Em certo momento, uma das crianças com sete
anos, do sexo masculino, montou a imagem da Manga. Ele pegou a parte que apresentava a imagem
do seio, dirigiu-se a mim, o arte/educador, e na frente das crianças disse: “olha que gostoso esse pei-
tinho”, e fingiu lamber o seio na imagem. As crianças riram muito da cena. É importante colocar que
a ação da criança com a imagem desmobilizou o arte/educador, que ficou sem reação e não agiu com
naturalidade.

Depois de os quebra-cabeças montados, perguntamos às crianças se elas sabiam que imagens eram
aquelas. De pronto, as crianças afirmaram que eram mais quadros de Tereza Costa Rêgo. Quando
perguntamos como elas sabiam daquilo, as mesmas informaram que a forma como a mulher foi pin-
tada lembrava a mulher que estava no quadro Pitanga e comentaram que era uma mulher nua e com
desenhos de frutas dentro do quadro. Eles reconheceram o estilo de pintura da artista estudada.

As crianças gostaram tanto da ideia de conhecer o gênero de natureza morta que propusemos a elas
elaborar telas com materiais reciclados e neles retratar a natureza morta da forma que quisessem para
expormos na sala, indicando a finalização do primeiro módulo.

Podemos destacar, ainda, que, no fim do curso, a obra O Diário das Frutas foi estudada por completo,
por meio de leitura de imagens, contextualizações, jogos, técnicas. Tivemos, no último dia, a presença
ilustre da artista homenageada. Para as crianças foi um momento fantástico, pois eles estudaram ela e
sua obra e, diferentemente das práticas de ensino implementadas no ensino de arte escolar, conhece-
ram a artista viva. Para as crianças foi, sem dúvida, uma experiência marcante.

3. RESULTADOS E ANÁLISES PARCIAIS

A quebra de paradigmas em arte, trabalhando-se apenas com artistas do gênero feminino, não se trata
de segregação, mas de dar visibilidade às mulheres, que, por tanto tempo na história da arte, foram
violentamente excluídas dos méritos de suas produções. Importante destacar que a obra O Diário das

784
Frutas como sendo uma produção artística da nudez feminina, um gênero pictórico, produzido por uma
mulher, impressionou às crianças, que tanto estão acostumadas a não ter acesso de uma forma tão lúdica
e artística ao corpo feminino. E este corpo ligado a frutas que, apesar de comuns na região Nordeste, as
crianças não conheciam ou nunca haviam experimentado antes do curso. Conhecer e vivenciar diferen-
tes processos artísticos a partir da leitura, produção e contextualização possibilitou aos estudantes co-
nhecerem artistas mulheres de diferentes momentos e produções, do continente americano, dialogarem
com elas, e receberem a surpresa de conhecer uma artista viva, Tereza Costa Rego, e viver as suas obras.

Conhecer Frida Kahlo por seu autorretrato e suas obras de natureza morta, em diálogo com a obra O
Diário das Frutas, possibilitou às crianças vivenciarem um processo de pintura expandido, entender
como artistas tão diferentes podem ter uma obra dialogada.

É importante ainda destacar que a estética feminina construída pelas crianças foi colocada em che-
que, devido à imagem de Frida Kahlo que, na visão das crianças, não correspondia ao esperado para
mulheres. Entendemos, assim, que crianças tão pequenas já assimilam os signos culturais desta socie-
dade que ainda encontra desafios para viver o respeito às diferenças e a quebra de paradigmas. Toda-
via, percebe-se que é possível, por meio do ensino de arte, problematizar essas questões, conhecendo
e experimentando um processo artístico onde as artistas estudadas quebram com alguns padrões
estabelecidos socialmente, seja por suas histórias de vida, seja por elementos de suas obras. É encan-
tador perceber que, depois do contato com estas artistas, as crianças puderam pensar o gênero a partir
da diferença, o gênero como algo construído e não um dado biológico.

Por fim, podemos destacar a experiência vivida no final do curso, que foi o de culminar o curso com a
presença da artista homenageada e estudada durante todo o mês. Através de uma pesquisa prévia nas
dinâmicas de apresentação, podemos verificar que as crianças participantes do curso de férias haviam
estudado apenas artistas homens, cis, brancos, europeus, cristãos e já falecidos. Viver um processo
artístico onde conhecer a vida e a obra de uma artista local e ainda viva foi muito significativo para
as crianças, pois puderam tirar dúvidas, abraçá-la, tirar fotos, pedir autógrafo, sentir que as mulheres
produzem arte e que não precisam estar mortas para serem reconhecidas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática de ensino implementada neste curso possibilitou compreender o universo destes/as estudantes
quanto ao gênero, as suas problemáticas e suas proposições, através de uma situação de ensino de arte
que pôs em foco as produções artísticas de mulheres. Pode-se ver, na análise, questões onde o ensino
de arte proporcionou aos estudantes, dentro das situações problematizadoras, pensar sobre o gênero, o
sexo e a sexualidade de uma forma lúdica, a partir do gênero pictórico da principal obra trabalhada, O
Diário das Frutas, com deslocamento de vários conceitos e comportamentos reproduzidos pelas crian-
ças, em reiteração a discursos que circulam socialmente. Neste curso, elas puderam entender, pensar e
refletir por meio do ensino de arte questões tão complexas, principalmente relacionadas ao discurso
visual utilizado pelos arte/educadores que conduziram o processo educativo neste curso de férias.

É possível ainda concluir que o objetivo do curso foi alcançado e que a formação que os arte/educa-
dores tiveram antes e durante o curso foi de extrema importância, principalmente pela participação

785
de intelectuais de Pernambuco, como Jaileila Araujo (UFPE), Fernando Azevedo (UFGA), Karina
Valença (UFPE) e Everson Melquiades (UFPE), que vêm pensando o gênero, a educação, a mulher, a
arte e o seu ensino.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, A. M. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. 7. ed. rev. São Paulo: Perspectiva,
2009.
______. Cultura, arte, estética e educação. [Online]. TV Futura, 14 fev. 2007. Disponível em: <www.futura.org.
br/beleza>.
______. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998.
BUTLER, J.. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, L. (Org.). A prática feminista e o conceito de
gênero. Textos Didáticos, n. 48. Campinas: IFCH/Unicamp, 2002, p. 7-42.
RICHTER, I. M. Interculturalidade e estética do cotidiano no ensino das artes visuais. Campinas: Mercado das
Letras, 2003.
TÍTULOS. A cidade. Prefeitura de Olinda. Disponível em: <http://www.olinda.pe.gov.br/a-cidade/titulos#.
VwXGU5wrLMw>.

786
Construção midiática do corpo
feminino: percepções do corpo com
docentes e estudantes do Sesc piedade
Emanuely Arco Iris da Silva/ Maria Carolina Leite de Lima

INTRODUÇÃO

Ao refletirmos sobre as relações de gênero em uma sociedade sexista, logo percebemos que, desde
sempre, as mulheres foram e continuam sendo subalternizadas e oprimidas por uma cultura machis-
tas. O estudo em questão teve a pretensão de, a partir das relações de gênero presentes na sociedade,
conhecer como essas relações são construídas, a partir da influência da mídia na construção da subje-
tividade do ideal de corpo feminino, tomando por referência a percepção das docentes e das discentes
do Sesc Piedade. Buscamos identificar, ainda, quais os papéis que são representados por mulher em
algumas propagandas, verificando a presença do sexismo, a partir do modo de como estão expressas.

Neste contexto, pesquisar as questões das relações de gênero presentes na mídia é, sem dúvida, motiva-
dora, a partir do entendimento que temos de que, na atualidade, a maioria da população tem na televi-
são e em algumas fontes impressas a única ou principal fonte de informação e formação ideológica. A
mídia brasileira, e não só, é eficaz na transmissão cultural do saber, podendo, assim, construir elementos
de influência na formação, transformação da identidade, dos valores sociais e morais da população.

Diante disto, a nossa pesquisa pretendeu oferecer reflexões para responder a seguinte questão: Qual
a percepção das docentes e das discentes do Sesc Piedade sobre a influência da mídia e acerca da
construção da subjetividade do ideal de corpo feminino? Para tanto, tivemos como objetivo princi-
pal a análise de como a mulher está representada, segundo as estudantes e as educadoras, em diversos
tipos de propagandas.

Pesquisar sobre as relações de gênero presentes na mídia é, ainda, levar em consideração as diferenças
existentes no contexto escolar, bem como as relações entre os indivíduos na sociedade como um todo,
para que possamos compreender a importância de uma sociedade onde mulheres e homens sejam
iguais efetivamente, tanto em direitos quanto na percepção social de seus papéis e comportamentos.
Nessa pespectiva, é preciso levarmos em consideração a não neutralidade nas propagandas veiculadas
na mídia, que, por vezes, esteriotipizam o papel e a figura feminina e contribuem para a perpetuação
do sexismo na sociedade.

787
1. GÊNERO E SUAS RELAÇÕES NA SOCIEDADE

No final do século XIX e início do século XX, as manifestações da luta sufragista feminista, movimento
liderado por mulheres de classe alta que lutaram para a garantia do direito de voto das mulheres, fez com
que esse período fosse conhecido como a primeira onda do movimento feminista. Embora neste período
as reivindicações tenham sido restritas apenas pelas e para as mulheres brancas e de classe média, é atra-
vés deste movimento que o mundo vive um despertar para a superação da invisibilidade das mulheres.

Na década de 1960, os movimentos feministas ganham maior visibilidade. Este é um período conhe-
cido como a segunda onda do movimento feminista, no qual diferentes grupos sociais – negros, mu-
lheres, estudantes, intelectuais entre outros – nos principais países da Europa e nos Estados Unidos,
buscaram romper com o silenciamento e a discriminação que sofreram historicamente. Nesse sentido,
muitos fatores possibilitaram o (re)surgimento de diversos movimentos contra-hegemônicos, dentre
eles o movimento feminista. E, nessa perspectiva, uma grande quantidade de mulheres, inseridas nas
universidades, iniciaram um modo diferenciado de militância, tendo como arma a produção de um
conhecimento que colocasse em causa o conhecimento conservador, que por muito tempo justificou
a dominação masculina sobre as mulheres.

Entretanto, apesar de reconhecermos que as lutas feministas se iniciaram com maior visibilidade em
países da Europa e nos Estados Unidos, vale ressaltar que, assim como assinala Magdalena Valdivieso
(2012), a emergência dos estudos feministas na América Latina apoia-se numa visão de que o femi-
nismo não é um discurso inerentemente ocidental e eurocêntrico, mas uma postura política, filosó-
fica, epistemológica profundamente crítica dos paradigmas e práticas ocidentais, sociais e culturais,
produzida a partir da subordinação, da marginalidade e da resistência. Na América Latina, os estudos
feministas têm características próprias, trazendo debates sobre a importância da descolonização do
saber e do ser, que, por vezes, podem estar, na perspectiva feminista, aliados ao conceito de despa-
triarcalização da sociedade (VALDIVIESO, 2012, p. 20).

O que se pretendia, a partir de então, através de estudos feministas era questionar os valores sociais que
justificavam a dominação masculina e a subordinação das mulheres, através de uma perspectiva de co-
nhecimento da modernidade, que assumia uma posição de suposta neutralidade do sexo nas produções
acadêmicas. Estes buscavam fundamentar a inferiorização das mulheres através de teorias de cunho de-
terminístico naturalista, no qual tentavam justificar a ausência feminina em determinadas carreiras ou
sua incapacidade para o desenvolvimento de determinadas tarefas, como próprios ao sexo, ligadas aos
aspectos biológicos. Em contrapartida, o que as feministas refletiam era que estas questões deveriam ser
entendidas sob uma perspectiva de gênero, colocando o debate da desigualdade entre os sexos como
uma construção social, e não apenas como biologicamente dados. Em face disto, segundo Colling (2004),

Falar em gênero em vez de falar em sexo indica que a condição das mulheres não está determinada
pela natureza, pela biologia ou pelo sexo, mas é resultante de uma invenção, de uma engenharia social
e política. Ser homem/ser mulher é uma construção simbólica que faz parte do regime de emergência
dos discursos que configuram sujeito. Nesse sentido, é necessário criticar, demonstrar estereótipos
universais e valores tidos como inerentes à natureza feminina. A idéia de gênero, diferença de sexos
baseada na cultura e produzida pela história secundariamente ligada ao sexo biológico e não ditada
pela natureza, tenta desconstruir o universal e mostrar a sua historicidade (p. 29).

788
Nessa perspectiva, o que se pretendeu através dos estudos feministas foi colocar a mulher como su-
jeito de análise, possibilitando uma visibilidade sobre as principais questões que levam à sua subordi-
nação, trazendo para o debate estudos sobre a mulher na educação, a mulher e política, a mulher e o
corpo, a mulher e a maternidade, e muitos outros. Segundo Louro (1997),

Tornar visível aquela que fora ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas desses primei-
ros tempos. A segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera
como consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito (p. 17).

Nesse contexto, Lage (2008) reflete que os estudos feministas não buscam apenas a transformação
epistemológica com a formulação de novas perspectivas teóricas e/ou metodológicas, segundo a au-
tora, esta se apresenta na mesma intensidade como uma perspectiva política:

[...] que se posiciona perante as questões cruciais que a ciência, desde sempre, relegou a um segun-
do plano, sob o argumento da necessária despolitização científica. Nesse sentido reivindicam que o
mundo científico assuma o seu caráter de subjetividades e, de tal forma que possa, não apenas atuar
politicamente, mas que também se constitua como sujeito detentor de responsabilidades frente às
mudanças para a construção de uma sociedade multicultural (LAGE, 2008, p. 204).

Dessa maneira, pesquisas têm levado em consideração outras formas de saberes e metodologias,
como histórias de vida e estudos que trazem o corpo como objeto de investigação. Aos poucos, des-
locamentos realizados de outras teorias, como o marxismo, a psicanálise, o funcionalismo, o estru-
turalismo, dentre outras, começam a não dar conta de explicar as relações desiguais de gênero, pois
estas teorias sempre estiveram centradas em uma perspectiva androcêntrica, pensadas a partir de
valores masculinos, e tomando estes como referência. É neste cenário que surgem novas epistemolo-
gias, como a epistemologia feminista. Segundo Walter Mignolo (2003), “as epistemologias feministas
contribuíram de maneira impressionante para descentrar e memorizar os pressupostos patriarcais da
ciência ocidental e da revolução científica e das suas consequências históricas, políticas, epistémicas e
éticas” (MIGNOLO, 2003, p. 649).

Diante disto, os estudos feministas, através de uma linguagem centrada na perspectiva das relações
de gênero, começam a refletir sobre as formas de dominação sofrida pelas mulheres e por homens
que não se enquadram em uma perspectiva hegemônica de masculinidade (branca, heterossexual e
colonial). Levando em consideração as relações de poder existentes entre ambos os gêneros e as for-
mas de segregação sexual que justificam papéis sociais diferenciados para homens e mulheres, essa
massa hegemônica produz uma sociedade sexista, em que homens e mulheres são definidos segundo
o gênero, apresentando estereótipos para cada um, no qual, na maioria das vezes, busca abordar a
condição das mulheres determinada pela natureza, pela biologia ou pelo sexo.

2. A MÍDIA E A OBJETIFICAÇÃO DO CORPO FEMININO

Historicamente, a valorização e a veneração do corpo têm se intensificado. Essa preocupação tem per-
passado em todas as faixas etárias e classes sociais, com discursos que vão desde a valorização da saúde
até, simplesmente, a estética. Os jovens são afetados nessa busca do corpo perfeito, pois, de modo geral,
já crescem com a angústia e na busca de melhorias estéticas, como forma de auto-aceitação ou de inclu-

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são em determinados grupos. Em contrapartida, a busca dos adultos não é apenas pela aceitação: passa,
ainda, pela angústia do envelhecer.

A mídia tem um papel fundamental que determina o ideal de corpo, pois, através de propagandas impres-
sas ou televisivas, criam estereótipos, produzindo um imaginário social do certo ou do errado. Segundo
Jablonksi (2010), o problema reside no fato de que estereótipos remeterem à generalização, “trata-se de
crenças amplamente compartilhadas sobre uma pessoa ou um grupo de pessoas, que se referem não uma
visão sobre elas em particular, mas ao que é julgado mais similar ou repetido no grupo ao qual elas per-
tencem” (JABLONKSI, 2010).

As diversas lutas feministas no decorrer dos anos garantiram direitos e levaram, também, ao ques-
tionamento do sexismo presente na sociedade. Apesar dessas conquistas, a publicidade, por vezes,
vai na contramão, já que constantemente o sexo feminino é retratado em papéis sociais que buscam
a objetificação da mulher. De acordo com Caroline Heldman (2012), o termo objetificação consiste
em analisar alguém ao nível de um objeto, sem considerar seus atributos emocionais e psicológicos.
Esta objetificação está expressa em propagandas que mostram apenas atributos sexuais ou físicos
de uma mulher, sem levar em consideração outro tipo de apelo, como o emocional (HELDMAN,
2012).

Segundo Lourenço, Artemenko e Bragaglia (2014, p. 5), podemos ver a mulher como objeto em algu-
mas propagandas, nas quais a imagem mostra apenas parte ou partes do corpo; também quando usada
como apoio para objetos; em imagens sensuais utilizadas sem propósito; ao passar a ideia da violação da
integridade física sem consentimento; ou, ainda, quando o corpo é utilizado com tela para passar alguma
mensagem.

Nessa perspectiva, o problema reside no fato de que muitas vezes a sociedade introjeta comportamentos,
a ponto de passar despercebido em algumas propagandas a inferiorização ou submissão da mulher, dos
negros, dos homossexuais, etc. Cabe observar que, quando a mídia introjeta na subjetividade humana a
idealização do corpo feminino, “Tendências e comportamentos vão sendo in(corpo)rados, a partir das
proposições (imposições) da mídia e/ou da indústria da beleza buscando imprimir a todos o consu-
mo e a busca de um dado modelo de corpo” (BENTO; JÚNIOR, p. 6).

Nesse sentido, segundo Alarcão (2003), no momento em que vivemos na era da informação e da co-
municação a mídia adquire um poder esmagador,

[...)] sua influência é multifacetada, podendo ser usados para o bem e para o mal. As mensagens que
neles passam apresentam uma miríade de valores, uns positivos, outros negativos de difícil discerni-
mento para aqueles que, por razões várias, não desenvolvem espírito crítico, competência que inclui
o hábito de se questionar perante o que lhe é oferecido (p.13).

Dessa forma, faz-se necessário compartilhar a reflexão e a compreensão a respeito do comportamento


e tendências concernentes à mídia e ao corpo na educação e no âmbito social, a fim de contribuir para
ações individuais e coletivas criteriosas e reflexivas diante dos meios de comunicação e da sociedade
do consumo.

790
3. METODOLOGIA

Buscando ter uma ampla visão sobre a realidade e um aprofundamento da compreensão das relações
de gênero, a partir deste estudo, do diálogo e de reflexão sobre a mídia, optamos por uma pesquisa
quanti-qualitativa.

Dentro desta perspectiva, um trabalho que tenha como foco a pesquisa quanti-qualitativa visa não
apenas descrição de fatos, do que é visto, mas busca identificar as relações presentes. Para Lage (2009),

[...] a pesquisa é um caminho seguro para o processo de construção do conhecimento sobre mundo,
e do autoconhecimento, na medida em contribui para a organização de estruturas cognitivas, por
meio da compreensão de métodos que asseguram não a reprodução do conhecimento, mas a sua (re)
elaboração, a partir das experiências de seus sujeitos (p. 2).

De fato, buscamos a (re)elaboração de conhecimentos, trabalhando na perspectiva da essência da


pesquisa quanti-qualitativa.

Os sujeitos da nossa pesquisa foram as mulheres discentes e as docentes do Sesc Piedade, com a faixa
etária que variou entre 17 e 56 anos.

O trabalho de coleta de dados foi realizado a partir das propagandas selecionadas na internet e que
foram veiculadas na televisão, para análise.

Para aprofundar ainda mais a questão de estudo, utilizamos, também, como técnica de coleta de da-
dos, o uso do questionário, que continha quatro questões de múltipla escolha e seis questões abertas.

4. O CORPO E A MÍDIA: DIÁLOGOS ENTRE DOCENTES E ESTUDANTES DO SESC PIEDADE

Diante do que nos propusemos a investigar, que foi a percepção das docentes e estudantes do Sesc Pieda-
de sobre a influência da mídia e a construção da subjetividade do ideal de corpo feminino, pudemos
perceber que ao indagarmos no questionário realizado com trinta e uma mulheres se as mesmas se
sentem cobradas pela família para ter o corpo igual ao dos modelos corporais que aparecem na mídia,
33,3% das mulheres responderam que às vezes se sentem cobradas, enquanto 66,7% concluíram que
não se sentem cobradas. Não houve nenhuma resposta à opção de se sentir sempre cobrada. Embora
menos da metade das mulheres perceba alguma cobrança familiar, ainda é significativo o número das
que notam alguma exigência no ambiente que deveria ser acolhedor e estimulador.

Ao perguntarmos sobre a cobrança do(a) companheiro(a) sobre o corpo, 10% das mulheres responde-
ram que sempre sentem essa cobrança por parte dos (as) parceiros (as), enquanto 16,7% às vezes e 73,3%
nunca. O que indica que mais da metade das mesmas não se sentem cobradas pelo companheiro(a).

Já com relação à cobrança da sociedade, 20% descreveram que sempre se sentem cobradas, 40% res-
ponderam que nunca e 40% às vezes. Nesse sentido, podemos observar que mais da metade das
mulheres, 60%, se sentem cobradas pela sociedade para ter esse paradigma do corpo (magro, alto,
branco, cabelos lisos), variando apenas o grau de intensidade.

791
No que se refere ao questionamento realizado sobre a cobrança pessoal para a obtenção do corpo
veiculado na mídia, 10% das entrevistadas afirmam que gostariam, 23,3% afirmaram que não e 66,7%
às vezes. Se levarmos em consideração a quantidade de mulheres que consideram que sempre ou que
às vezes gostariam de ter o corpo igual ao dos modelos apresentados na mídia, tivemos um percentual
significativo de 76,7%. Número elevado que mostra o quanto essa imagem estereotipada apresentada
pela mídia está introjetada no subjetivo feminino e o quanto elas são tomadas como referência.

Por fim, ao inquirirmos sobre se as mulheres sofrem ou já sofreram com a aparência do seu cor-
po,20% afirmaram que sempre, 36,7% às vezes e 43,3% nunca. Com isso temos um total de 56,7% de
mulheres que já sofreu ou sofre por não se reconhecerem nesse padrão, o que consideramos ser ainda um
percentual muito elevado. O Gráfico 1 expressa uma síntese dos questionário realizado.

Gráfico 1: Influência da mídia na construção da


subjetividade corporal das docentes e estudantes
do SESC Piedade
25

20

15
Nunca
10 Às vezes

5 sempre

0
Cobrança da Cobrança Cobrança da Cobrança Sofreu ou
família do(a) sociedade pessoal sofre pela
parceiro(a) aparência
Gráfico 1. Influência da mídia na construção da subjetividade das docentes e estudantes do SESC Piedade.

Buscando aprofundar nossa reflexão sobre o papel da mídia e a construção da subjetividade do ideal
de corpo feminino, analisamos também, junto com as estudantes e docentes, algumas propagandas
impressas que tiveram bastante repercussão no Brasil.

Imagem 1. Propaganda Cerveja Sol


Fonte: https://br.pinterest.com/pin/348747564867323383/

792
A primeira imagem analisada foi uma campanha da cerveja Sol, veiculada em 2007. Solicitamos que
cada entrevistada registrasse sua opinião sobre a mesma. De modo geral, as mulheres entenderam a
propaganda como uma forma de super-valorização do corpo feminino com padrões de beleza im-
posto como na terceira peça, o normal e o aceito. A Entrevistada 1 afirma que há “a exigência de uma
padronização corporal, no imaginário masculino (gostosa). Existe um ‘modelo’ de corpo com atribu-
tos pré-estabelecido para tal, quem não tem está fora”. O que vai de encontro ao que a Entrevistada 4
afirma, pois, para ela, a cerveja expressa também a idealização do corpo feminino, definindo o que é
correto, portanto aceitável socialmente, enfatizando que “o fato de uma bebida alcoólica ser associada
ao corpo feminino. Mulher vitrine, mulher objeto, mulher ‘comestível’ e só”. Nesse sentido, podemos
afirmar que, de modo geral, todas as entrevistadas expressaram algum tipo de crítica no que se refere
à idealização de corpo expressa nessa propaganda, que busca associar o corpo feminino à preferência
do consumidor, numa associação direta, criando um imaginário social da ditadura do corpo perfeito.
Entretanto, podemos observar também que algumas entrevistadas afirmam que o corpo da tercei-
ra peça “no ponto” como sendo o correto. Para a Entrevistada 3, a propaganda “usa a comparação
dos corpos das mulheres para dizer que a cerveja não pode ser exagerada, extrema, nem desleixada,
nem excessiva e sim no correto”. Registramos, ainda, adjetivos utilizados ao corpo como “padrão do
momento”, “demonstra atitude, beleza e suavidade”, o que nos leva a concluir que, mesmo de forma
inconsciente, na subjetividade feminina existe o certo e o errado, quando se trata do corpo.

Imagem 2. Propaganda Cerveja Devassa


Fonte: http://www.festivalmarginal.com.br/polemica

A propaganda 2, veiculada em 2010, traz o desenho de uma mulher negra com pose sensual, vestida
com um vestido curto de gala com as costas abertas. Essa imagem equipara a mulher negra a um objeto
de consumo; relaciona o seu corpo e um produto, agregando os seus valores à cerveja. Além disso, a
publicidade é racista, pois, ao afirmar que “é pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”, acaba
fazendo alusão ao uso do corpo da negra como um objeto sexual, que na época escravocrata era vis-
to como posse dos seus senhores. Para além disso, remete, também, ao estereótipo de corpo de uma
mulher negra, com curvas e volumes, criando um imaginário social de como a verdadeira negra deve
ser. Tal afirmativa também vai de encontro à maioria das entrevistadas, pois, para a Entrevistada 10, a
propaganda “está demonstrando que o corpo é como uma forma de objeto para vender algo, tratando
como mercadoria”; e a Entrevistada 2 acrescenta que “a apologia comercial traz resquícios escravocrata
sobre a ‘sensualidade’ da mulher negra, onde o corpo e suas formas serviriam como objeto de desejo”.

793
Imagem 3. Propaganda Tresemme
Fonte: https://geledes.org.br

A Imagem 3 traz recorte da propaganda da Tresemme. Dela, o que chama atenção é a frase “meu cabelo
liso ressalta o melhor de mim”, trazendo à tona que o fato de uma mulher possuir aproximação com o ca-
belo padrão ao de uma mulher branca é positivo, “é o melhor de mim”. Na propaganda, percebemos que
as opiniões foram bastante diversificadas: por um lado, algumas mulheres entenderam-na como uma
“imposição do cabelo liso como a certificação de um modelo identitário” (Entrevistada 1) e que passa a
“ideia de que o cabelo da mulher tem sempre que estar liso, aumentando mais o preconceito de quem
tem cabelo mais cacheado ou crespo” (Entrevistada 26). Por outro lado, a maioria das mulheres não
vira preconceito e esteriotipização na imagem, pois trazem apenas elogios ao produto, ao cabelo. Para a
Entrevistada 15, o que mais chama atenção na imagem é que o “cabelo da modelo é perfeito, o produto
funciona”. Para a Entrevistada 20, “o cabelo tem que ser longo e liso. Ele é reflexo da personalidade femi-
nina”. O que nos leva a concluir que, na atualidade, ainda percebemos um preconceito arraigado sobre o
cabelo crespo, o que leva muitas mulheres a aderirem ao alisamento, para assumir um padrão de cabelo.

Imagem 4. Propaganda da Cerveja Itaipava.


Fonte: https://cartacapital.com.br/sociedade

794
A Imagem 4 traz um recorte da propaganda da Cerveja Itaipava. Solicitamos que as docentes e as
estudantes analisassem a mesma para verificarmos qual a percepção das mesmas sobre a relação que
a imagem faz com a quantidade de ml e o seio da modelo, com a frase “faça a sua escolha”.

De modo geral, a percepção das entrevistadas é a de que há uma “exposição desnecessária para
tratar de escolha usando o corpo de uma mulher. Ela é produto a venda tanto como a cerveja”
(Entrevistada 17), entendendo a propaganda como “oferecendo o seio da mulher como bebida”
(Entrevistada 5) ou, ainda, a mulher como “mero objeto de consumo” (Entrevistada 23). Além
disso, as entrevistadas concluem que a propaganda, além de deixar claro a objetificação da mu-
lher, ainda traz o estereótipo de corpo perfeito e ideal, objeto de desejo dos homens e meta fe-
minina.

Imagem 5. Propaganda Calvin Klein Jeans


Fonte: https://feminismosemdemagogia

Por fim, analisamos a propaganda representada na Imagem 5, da Calvin Klein Jeans. A mesma
dividiu opiniões entre as estudantes e as docentes pesquisadas. Para algumas, a campanha traz a
mulher como objeto “disponível para o prazer do homem” (Entrevistada 8), assim como “parece
ser a presa e os homens os predadores. Chama atenção o erotismo da cena. A mulher praticamente
nua, está dominada pelo homem que está sobre ela” (Entrevistada 4). Além disso, algumas viram
como “apelo sexual desnecessário para venda de um produto, onde a mulher figura numa condição
de submissão” (Entrevistada 1). No entanto, algumas mulheres observaram apenas a sensualidade,
entendendo como uma cena normal ou, ainda, como uma conquista feminina, como “mudança de
comportamento das mulheres, hoje em dia a mulher pode sim se expressar sexualmente” (Entre-
vistada7).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, as nossas conclusões apontam para a compreensão de que, de modo geral, a
mídia influencia a construção da subjetividade do ideal de corpo das docentes e estudantes, e que
essas sofrem ou já sofreram em busca de um corpo idealizado, pois mais da metade das mulheres

795
investigadas afirmam ter sofrido ou ainda sofrer com a aparência. Além disso, as mesmas sentem
mais a cobrança da sociedade do que da família e dos parceiros(as), o que reforça o papel da mídia
na construção da subjetividade corporal ao mostrar em propagandas, novelas, filmes, reportagens
e outros, um corpo feminino universalizado (magro, alto, branco, cabelos lisos), não enxergando
a diversidade existente, criando no imaginário feminino uma busca quase inalcançável pelo corpo
perfeito.

No tocante às propagandas analisadas pelas estudantes e docentes, podemos concluir que a maio-
ria das entrevistadas compreendeu o quanto a mulher vem sendo retratada na mídia de forma
estereotipada. Além disso, as publicidades reforçam a submissão e objetificação feminina. Nesse
sentido, os meios de comunicação continuam reproduzindo e legitimando uma sociedade marcada
historicamente por uma cultura sexista, que reproduz as desigualdades de gênero, pois ainda per-
cebemos, na atualidade, a imposição da mídia sobre a idealização do corpo feminino, como seus
papéis e comportamentos, bem como reforça uma perspectiva histórica de que a mulher nasceu
para servir, para ser usada, para estar a serviço de, tendo que assumir padrões únicos de doçura e
subserviência. Um exemplo recente disso é a reportagem divulgada pela revista VEJA, que, ao fazer
referência a Marcela Temer, apresenta a mesma como “Bela, recatada e do lar” (discrição essa que
gerou grande polêmica nas redes sociais). Nessa reportagem, podemos refletir que, no imaginário
de parte da sociedade, o ideal feminino é ser discreta, apesar de ter os padrões físicos desejados e
apresentados pela mídia, e submissas ao homem. O problema não está no fato de as mulheres terem
perfil parecido com esse, mas ao fato de trazer desse o padrão exemplar.

REFERÊNCIAS

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América Latina. In: Feminismo y cambio social en América Latina y el Caribe. Ciudad Autónoma de Buenos
Aires: CLACSO, 2012.

797
Fantasmas imaginários
do corpo casa: mediação entre
antigos e novos significados afetivos
através da vídeoperformance
Anna Carolina Coelho Cosentino

A intenção desse artigo é compartilhar um projeto de pesquisa que está em processo: o estudo acerca
de meu percurso de criação em artes visuais. Trata-se de uma reflexão sobre meu trabalho enquanto per-
former e vídeo artista, cuja narrativa é expressa no trajeto que parte de escritos, poesias, cadernos de so-
nhos com respectivas ilustrações, diálogo com objetos herdados, até a realização de videoperformances.

A pesquisa prevê a execução de performances registradas em vídeo, com sua correspondente análise,
sobre o ponto de vista do corpo na vivência da sexualidade feminina e suas consequências. Nessa
perspectiva, uma investigação conduzida por métodos artísticos foi iniciada nos videoarte/perfor-
mance: Espaços do silêncio (2008), Agora eu também quero sair (2014), Origem (2014), Tecelagem
Lenta (2015) e Corpo Explícito (2015), produzidos e realizados por mim.

Mais do que arte, as performances acima citadas foram a transgressão necessária, a possibilidade de
libertação de muitos fantasmas internos que haviam em mim. Dou significado aos fantasmas, consi-
derando aquelas vivências infantis e pré-natais que repercutem na vida como compulsões inconscien-
tes, muito tempo depois do momento em que se originaram. Assim como certas experiências vividas
por antepassados, que afetam gerações, numa espécie de herança emocional sentida e experimentada,
porém não reconhecida, nem compreendida.

Se esta memória permanece inscrita no corpo, é possível reordenar as marcas que ficaram do pas-
sado? Realizar uma digestão emocional dos acontecimentos que as provocaram? O título da investi-
gação “Fantasmas imaginários do corpo-casa” apresenta a inquietude: o que aconteceu com minhas
antepassadas, com relação a investidas em criatividade? Percorrer minha árvore genealógica materna,
relacionando esta indagação com as experiências ocorridas nos corpos dessas mulheres, assim com a
repercussão disso em minha trajetória, foi a vertente escolhida.

O tema se refere ao infortúnio de que, entre elas, desde 1850, pelo menos, até a presente data, mulhe-
res e crianças morrem no período final de gestação. Através da videoperformance pretendo comparar

798
estas observações com as marcas em meu próprio corpo, visto que os afetos herdados na memória
física, corpórea, constituem o principal elemento ativador de minha prática artística.

Sendo o corpo a casa mais íntima, onde se experimentam toda sorte de vivências, elegi a performance
aliada ao vídeo como recurso de abordagem a tais indagações. Por meio deles, cogito compor uma
espécie de novo continente, para os referidos conteúdos afetivos que, através dos atos performáticos
filmados, meu corpo natural possa ser ao mesmo tempo, um corpo que cria, que registra e arquiva,
nessa herança materna, imagens inéditas. A arte permite ressignificações para a vida.

A intenção de realizar um certo número de performances é também a tentativa de propiciar gestos


inversos. Que existam não apenas silêncio e eco, mas ações de geração e criatividade autorizadas, pa-
ridas para viver. Em Origem (2014), utilizo meu próprio sangue menstrual para escrever na parede,
durante uma residência artística, uma espécie de manifesto poético para que as referidas mortes pre-
maturas não precisem mais se repetir. E ainda na ação Agora eu também quero sair (2014), desvisto
camisolas de minha avó, mãe, e minhas próprias; camisolas de noites de núpcias.

Em seguida estes vestidos são entregues ao mar, em oração, numa tentativa de desidentificação de
parte desse conteúdo. É relevante notar que ao mesmo tempo em que busco este descolamento das
experiências repetidas, uma nova identificação acontece. Ao mesmo tempo em que entrego ao mar as
referidas vestimentas, dou passos no sentido de descobrir o significado de toda essa epopeia.

A presente pesquisa traz, também, uma pulsante intenção de alargamento da visão de mundo e das
relações com o mesmo, através do aprofundamento no estudo da arte. Pretendo construir de uma
análise inspiradora para indivíduos que talvez se encontrem em situação semelhante, em estágios mais
preliminares e que se interessem por também se debruçar sobre sua história pessoal. A transmissão e
o compartilhamento dos conhecimentos adquiridos serão de relevante importância.

“A arte na contemporaneidade, muitas vezes pressupõe que os artistas sejam, também, teóricos de
sua produção poética” (FREDDI, 2011, p. 01). Nessa tarefa, a investigação vai permear a análise dos
processos de criação artística de vídeoperformances que têm seu foco em experiências ocorridas nos
corpos de mulheres da família Plessman Cruz Coelho (minha ascendência materna), observando
como isso reverbera em mim.

Segundo Paulo Freire (1997), ao realizar autorreflexões o homem percebe-se inacabado, por isso
está em constante busca, sendo este o fundamento essencial da educação. Para o autor, a aprendiza-
gem seria um processo de ver a si mesmo e ao mundo (FREIRE apud BARBOSA, 2010); um cons-
tante desvelar daquilo que é próprio de cada um, através do diálogo com a cultura. Elliot Eisner
(2008), outro grande filósofo da Educação, corrobora com Freire no entendimento de que as artes
são uma forma especial de conhecimento. Nesse sentido, a performance e o vídeo podem ser inse-
ridas nas discussões sobre conhecimento. Ambas se articulam a conceitos, estabelecem elos entre
as manifestações da cultura e facilitam reflexões para experiências futuras, individuais ou coletivas.

De acordo com Eisner (2008), as modalidades artísticas oferecem um “sentido de vitalidade” e uma
“mobilização de afetos”, fundamentais à experiência de aprendizagem. O referido autor afirma que estes

799
são, talvez, os únicos aspectos que asseguram a manutenção do conteúdo aprendido, ao longo da jorna-
da de formação intelectual de um indivíduo. Por isso interessa ser proporcionada pela Metodologia da
Educação, a possibilidade de interlocução entre o sujeito, suas experiências e as disciplinas estudadas.

Ademais, Eisner (2008) ressalta que a vida prática não se subjuga a respostas únicas corretas. Por isso
as formas de pensar que as artes instauram e desenvolvem são muito mais apropriadas para a realida-
de educativa. O método artístico é vantajoso: oferece meios para se lidar com mensagens ambíguas e
soluções criativas para os problemas, além de opções de avaliação alternativas, para casos de ausência
de regras (EISNER, 2008).

O autor critica a constante busca por uniformidade nos tradicionais modelos de ensino, sugerindo
que “há virtudes em ter objetivos e na capacidade de os concretizar. O que é problemático é o empur-
rão para a uniformidade” (EISNER, 2008, p. 08) nos objetivos, conteúdos, avaliações e expectativas.
Como lidar com tanta uniformidade quando o interesse educacional se constitui, também, em desen-
volvimento identitário daquilo que é mais particular de cada um?

No acompanhamento da formação ou do reconhecimento de identidades, é preciso ser capaz de atu-


ar, enquanto educador, a partir das diferenças, das necessidades especiais. Entre os múltiplos aspec-
tos da cultura, o ensino de artes perpassa enfaticamente tal processo. Portanto, os profissionais que
utilizam procedimentos artísticos na educação podem precisar se contrapor “às supostas verdades
educacionais e às mais suspeitas ainda certezas da escola” (BARBOSA, 2010, p. 12).

Além disso, a educação é transmitida pelo mundo em que se vive. Nisso estão de acordo o já men-
cionado Eisner, além de John Dewey e Paulo Freire. Para os autores, “a educação é mediatizada pelo
mundo em que se vive, formatada pela cultura, influenciada por linguagens, impactada por crenças,
clarificada pela necessidade, afetada por valores e moderada pela individualidade” (BARBOSA, 2010,
p. 12). A educação seria uma experiência geradora de significados a partir das trocas com o mundo
empírico, com a cultura e a sociedade.

É especialmente na valorização dessa experiência que os referidos filósofos e/ou epistemólogos con-
cordam. “Se, para Dewey, experiência é conhecimento, para Freire é a consciência da experiência que
podemos chamar conhecimento. Já Eisner destaca da experiência do mundo empírico sua dependên-
cia de nosso sistema sensorial biológico [...]” (BARBOSA, 2010, p. 12).

Como formas de experimentação do mundo empírico e mesmo como métodos de aprendizagem, tanto
a performance como a videoarte são possibilidades atuais, pertinentes ao debate. Ambas alcançam a con-
temporaneidade, desfrutando da prerrogativa de se inserirem numa imensa profusão de práticas, uma
vez que são elucidativas não apenas de temas subjetivos, mas também sobre questões sociais e culturais.

A performance realizada e compreendida como modalidade artística, tem início na década de 1960,
com o grupo Fluxus272. Um artista muito importante dessa organização foi o alemão Joseph Beuys.

272. O Grupo Fluxus foi um movimento que marcou as artes das décadas de 1960 e 1970, opondo-se aos valores burgueses, às galerias e ao
individualismo. Criado em 1961, em Wiesbaden, na Alemanha, durante o Festival Internacional de Música, recebeu a liderança de George
Maciunas. Foi integrado por artistas de várias partes do mundo, como Joseph Beuys, Nam June Paik e Yoko Ono.

800
Do latim, flux: modificação, escoamento, catarse. Beuys chega a declarar que somente a arte torna a
vida possível (ARCHER, 2008, p. 115). Sobre esta perspectiva, Archer afirma que a performance teria
despontado como uma forma de criação de uma espécie de “vida paralela” ou da própria vida “reves-
tida por uma representação intensiva de si mesma” (ARCHER, 2008, p. 110). Isso parece com o que
Eisner sugere, quando “conceitua educação como um processo de aprender a inventar a nós mesmos”
(BARBOSA, 2010, p. 12).

Esse ponto de vista evidencia que o sujeito performativo tanto pode construir novos sentidos, como
desconstruir outros previamente existentes. Goldberg (2006) reforça esta ideia, quando observa a per-
formance como sendo uma arte viva, que acontece em determinado espaço e que tem, no tempo real
do acontecimento, sua maior potência. Relata que a performance nasce como ruptura, como modo de
transgressão de formas estabelecidas no campo artístico, como meio para demolir categorias e apon-
tar novas direções. “Ao ser-obra pertence a instalação de um mundo” (HEIDEGGER, 2010, p 113).

Não há questionamento de que a vida mais potente da performance, onde se apresenta com mais
clareza o “novo mundo” a ser criado, situa-se no momento de sua execução. No entanto, Archer
levanta a possibilidade do uso de recursos audiovisuais para registro de tais eventos e posterior
transmissão. Elabora que, “mesmo quando acontece numa galeria, a performance só pode existir
para todos, com exceção dos poucos presentes como audiência, a partir desses registros” (AR-
CHER, 2008, p. 110).

Dentre as linguagens áudio visuais, e mais especificamente, sobre o uso do vídeo na contemporanei-
dade, nota-se que “passa a ser solicitado como um circuito, como processo, e não necessariamente
como produto ou obra acabada” (MELLO, 2008, p. 22). É abrangente o diálogo entre o mesmo e as
múltiplas formas de expressão artística, incluindo a performance.

Trata-se de um momento da arte que revela um alto grau de retroalimentação entre os mais variados
procedimentos e linguagens, e o vídeo, híbrido por natureza, passa a ter a habilidade de recodificar
experiências contemporâneas e transitar no âmbito das mais diversas expressões. Não por acaso
ouve-se muito dizer que “tudo é vídeo na contemporaneidade” (MELLO, 2008, p. 22).

Utilizando o vídeo como recurso, histórias podem ser contadas a partir da voz do sujeito criador, de
performances, a partir de distintas composições imagéticas, etc. Sob o prisma do ensino das artes
visuais, é considerável a importância de tais narrativas como complemento à narrativa escrita dos
trabalhos e investigações.

Outrossim, em atividades dessa natureza, tanto na performance como no vídeo, o corpo consiste em
mote privilegiado de pesquisa e criação estética. Em muitos trabalhos de artistas mulheres, as ima-
gens criadas oferecem, também, o potencial de romperem com estereótipos culturais sobre o gênero.
Luciana Loponte (2008) questiona de que forma o corpo feminino tem sido construído no imaginário
da arte ocidental, afirmando que, de fato, existe a atuação de uma espécie de “pedagogia visual do
feminino” (LOPONTE, 2002), naturalizando e legitimando este corpo como objeto de contemplação.
A autora refere-se ao corpo e à sexualidade feminina como postos em discurso, no campo das artes
visuais, a partir de um determinado modelo de olhar masculino.

801
Por outro lado, promovedora do debate, mais que desvelar subjetividades, a performance oferece o po-
tencial de pôr em pauta as relações entre o eu e o outro, através dos liames do corpo. Hernández (2013)
questiona quais são as possibilidades que os estudos sobre performatividade abrem para repensar o
espaço educativo, “como lugar de encontro de sujeitos biográficos e corporalizados” (HERNÁNDEZ,
2013, p. 53).

Nas condutas educativas, a percepção dos indivíduos como seres corporais é levada em consideração?
“Nosso corpo traz marcas sociais e históricas, portanto questões culturais, questões de gênero, de
pertencimentos sociais podem ser lidas no corpo” (NÓBREGA, 2005, p. 610). No corpo se problema-
tizam afetos, temores, dores e medos, dentre tantos outros aspectos mantenedores de conhecimento
sobre os indivíduos e as diversas situações.

Segundo a autora, permanece o desafio de se pensar um currículo mais flexível, que contemple “novas
e insuspeitas direções, espaços e lugares que acolham a corporeidade, e com ela a intensa paixão de
conhecer” (NÓBREGA, 2005, p. 613). Que neste processo não se busque a uniformidade, sínteses
apaziguantes, fundamentos únicos. É preciso notar que ideologias, esperanças, expectativas, incerte-
zas e ambiguidades fazem parte da aventura de ser humano. Por isso, faz-se coerente, nos processos
educativos, a abertura para múltiplas conexões, assim como a busca por experiências significativas;
além da consideração da existência de novos territórios e potenciais a serem explorados.

Para este fim, nada melhor que a arte. Então, na presente pesquisa, busco analisar e refletir sobre os
processos de criação artística de vídeoperformances realizadas por mim. Isso num contexto em que
as funções de artista e de pesquisadora estão unidas no mesmo sujeito, possibilitando um arte/educar
pela performatividade.

Com intuito de alcançar os objetivos estabelecidos, estou desenvolvendo algumas etapas bem defini-
das. Dentre elas: investigação, coleta e organização das fontes de pesquisa, através de levantamento do
material existente no acervo familiar; análise e discussão dos conteúdos estudados; realização de ví-
deoperformances; escrita e documentação dos resultados. Estas etapas estão sendo distribuídas para
todo o tempo de execução da pesquisa, ocorrendo, por vezes, em simultaneidade.

Além do mais, compreendo como de fundamental importância, as considerações éticas que envol-
vem uma proposta desta natureza. FREDDI (2011, p. 02) observa que a pesquisa acadêmica em arte
e sobre a arte apresenta “o paradoxo da subjetividade como fio condutor do pensamento estrutura-
do pela objetividade”. Nestes casos, acentua a importância de uma preocupação com procedimentos
metodológicos que levem em consideraçăo tanto a subjetividade quanto a objetividade do artista
pesquisador (FREDDI, 2011).

Outro fator que merece destaque, referente à coleta de dados, é a implementação de um diário de
atelier para todo o decorrer da pesquisa, com o fim de documentação e correspondente acompanha-
mento dos desdobramentos do processo. Podendo ser sempre revisitado, este material tem servido
inclusive como facilitador para uma imersão reflexiva mais aprofundada. Também, nessa documen-
tação, as motivações e inquietações do ato de performar estão sendo elaboradas. Isto somado ao estu-
do bibliográfico e à comparação com trabalhos de outros artistas, constituem um material agregador

802
de conhecimento a respeito da vídeo performance, aliada à reflexão processual. “Eisner propõe, na
tradição de Dewey que o conhecimento pode também derivar da experiência. E uma forma genuína
de experiência é a artística” (HERNÁNDEZ, 2013, p. 43).

Serão realizadas, ainda, as novas videoperformances, com respectiva análise das ações, e de suas de-
correntes consequências. Feito isso, o objetivo seguinte será a articulação desta parte com o restante
do material disponível, a fim de alcançar um resultado em forma de dissertação. Desta feita, a in-
tenção é a de que as elaborações conclusivas da pesquisa sirvam de abertura para novas indagações,
dando seguimento ao processo de busca por ampliar o conhecimento sobre o assunto.

REFERÊNCIAS

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803
O inter-humano na obra
“The artist is present”: a arte ao
encontro dos direitos humanos
Elis Regina dos Santos Costa/ Denise Maria Moura e Silva

1. A ARTISTA, O CORPO E O POLÍTICO

Relação de um artista com transparência:


– O artista deve dar e receber ao mesmo
– Transparência significa receptivo
– Transparência significa dar
– Transparência significa receber
– Transparência significa receptivo
– Transparência significa dar
– Transparência significa receber
– Transparência significa receptivo
– Transparência significa dar
– Transparência significa receber
Item nove do “Manifesto sobre a vida do
artista”, de Marina Abramović.

A informação mais importante a respeito da artista sérvia Marina Abramović, aquela cuja ausência
tornaria difícil de caracterizá-la e até identificá-la, é a de que se trata de uma performer. Mas segundo
ela mesma, em depoimento registrado no documentário homônimo “Marina Abramović: The artist
is present” (2012), há muitas, tantas outras Marinas que se deve considerar. Uma delas é a filha de pais
partidários, políticos, heróis nacionais da Segunda Guerra Mundial, criada como um soldado, que
aprendeu a lutar pelo que quer e desconhece limites. Outra é o produto de uma infância sem qual-
quer afeto maternal, uma criança que cresceu vulnerável, triste e decepcionada com seu destino. Uma
terceira Marina, no entanto, é uma mulher que possui certa sabedoria espiritual capaz de lhe deixar
acima de todos esses aspectos de sua vida – e é com essas características que ela mais se identifica hoje,
já com mais de 40 anos de carreira.

Identificada no meio artístico como a dama ou a avó da performance, conhecida principalmente


pelos seus trabalhos provocativos, extremos e exaustivos que contam com seu corpo como sujeito e
meio de sua arte, Abramović na verdade começou sua carreira na pintura.

804
Era difícil obter informações naquela época, por isso nunca tinha visto uma performance quando
a inventei. Foi muito simples. Eu pintava nuvens e gostava de observá-las. Era 1969 e estava deitada
no gramado quando vi aviões militares passando e fazendo desenhos lindos no céu que, em seguida,
desapareciam. Aquilo foi uma revelação. Entendi que não precisava ficar presa aos trabalhos bidi-
mensionais, pois arte é liberdade de espírito e eu poderia usar o que quisesse: fogo, água ou o meu
próprio corpo. Então, levantei e nunca mais voltei para o ateliê. O mundo e as nossas necessidades
mudaram. (Entrevista de Marina Abramović – GERMANO, 2015).

Entre alguns de seus trabalhos mais significativos estão a performance “Rhythm 10” (1973), na qual
brinca com o ritmo que se forma enquanto esfaquea, com um conjunto de facas de diferentes tama-
nhos, repetidamente os espaços entre os seus dedos da mão; “Rhythm 5” (1974), na qual, após uma
série de ações como cortar cabelos e unhas e ateá-los a uma estrela de cinco pontas feitas de madeira
e em chamas, a artista adentra o espaço vazio no interior da estrela e deita no chão, onde permanece
até perder a consciência em virtude da escassez de oxigênio; e “Rhythm 0” (1974), na qual a artista
se coloca parada diante de um público que pode fazer com ela o que quiser, utilizando um ou mais
dos setenta e dois objetos que ela disponibiliza, entre os quais uma rosa, perfume, vinho, mel, pão,
bisturis, tesouras e uma arma carregada. Na verdade, toda a carreira de Marina Abramović é forte-
mente marcada por obras em que ela se coloca em circunstâncias penosas, exposta à dor e à ago-
nia, cortando-se, drogando-se, espetando-se, desnudando-se, repetindo inúmeras vezes uma mesma
ação, estendendo simples gestos a tempos extenuantes. A proposta artística de Abramović confronta a
realidade, transforma o público em coautor, reflete sobre certa dimensão do sagrado e da religião nas
nossas vidas e, sobretudo, explora fortemente o corpo como expressão artística.

Essa compreensão da dimensão do corpo como parte da obra (se não a própria obra), em verdade, co-
meçava a ganhar lugar nas artes visuais justamente nos anos 60 e 70. Dentre alguns autores que se dedi-
cam a refletir sobre este papel político do corpo na arte, especialmente no campo das artes visuais, Artur
Freitas (2013) traz interessantes contribuições para estas nossas reflexões. Suas considerações acerca da
compreensão da obra para além do sistema de objetos, expandindo inclusive a própria potência da arte,
passa por um lugar bem próximo ao que a obra de Marina Abramović nos coloca: esse de compreender
o corpo como interface entre arte e vida – ou, no caso dela, entre a arte, a vida e a morte.

Foi nos anos 1960, enfim, que o discurso do corpo, pretensamente “desrepressivo” e “desalienador”,
alcançou um status cultural revolucionário. Assim, quando a produção de vanguarda foi levantando,
uma a uma, suas principais bandeiras utópicas – como o inconformismo institucional, a denúncia
da mercadoria ou a desautonimização da arte – não se espanta que então se tenha eleito justamente
a alegoria do corpo como a metáfora máxima da fusão arte-vida. […] Em extensão à tese radical da
arte como vida ou vice-versa, não admira, portanto, que Antonio Manuel tenha se impressionado
com um grupo [Grupo Fluxos] cujo centro nervoso, segundo Cristina Freire, residia “na demons-
tração de como o corpo é o agente construtor de significados de conhecimentos sensíveis – a fonte
para a manipulação de objetos, sistemas sociais e instituições, assim como invenção, reinvenção e
indagação da linguagem”. (FREITAS, 2013, p. 274)

Freitas ainda continua chamando atenção para o aspecto libertário que, segundo ele, somente a expe-
riência sensorial do corpo é capaz de proporcionar, além de toda a sua potencialidade – “da sexuali-
dade à escatologia, das pressões morais à sensibilidade alargada” (Ibidem, p. 275).

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“A arte frequentemente é entendida como sublimação, remoção da dimensão instintual do desejo, do
sexo etc. Só que a body art, que assume o corpo como sujeito, provoca um tipo de reação pela qual o
que geralmente é removido passa a ser praticado e volta”. Para ele [o antropólogo Massimo Canevac-
ci], o problema é que esse retorno não ocorre de forma tranquila, mas violenta: “O removido é uma
força que pode colocar em crise o controle do ego. O tipo de performance de Marina Abramovic cria
esse tipo de deslocamento corporal”. (DOURADO, 2014).

O antropólogo Massimo Canevacci, em seminário intitulado “Marina Abramović: A Arte e a Vida por
Um Fio” (realizado em setembro de 2014 pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
Paulo), a quem também pertence a fala citada acima (registrada em matéria do mesmo instituto), ain-
da tratando sobre a relação artista-público, abordou o potencial transformador da obra de Abramović.
Entre os anos de 1976 e 1988, Marina Abramović trabalhou com o performer e fotógrafo alemão Uwe
Laysepien, conhecido como Ulay e que foi seu marido por 12 anos, numa série de trabalhos perfor-
máticos em que explorava a binariedade entre homem e mulher, através do grupo de trabalho criado
por eles, o “Relation Work”. Dentre as várias criações concebidas pela dupla, “Imponderabilia” (1977)
serve-nos aqui como uma ilustração desta relação forte entre o artista e público característica da esté-
tica de Abramović, a que Massimo Canevacci se refere. Em “Imponderabilia”, a artista e Ulay ficaram
cada um em um lado de uma porta, de frente para o outro e nus. A porta dava acesso à Galleria Com-
munale d’Arte Moderna, em Bolonha (Itália). Ou seja: para entrar no espaço da galeria, os visitantes
precisavam passar entre os dois artistas, obrigando o público a manter contato visual e/ou físico com
os performers, o que muitas vezes deixava o expectador em situação constrangedora, uma vez que
nossa cultura ainda sustenta muitas questões problemáticas em relação ao corpo nu.

Para Canevacci, no entanto, dentre as criações de Marina Abramović, o exemplo mais emblemático
dessa potência de transformação mútua entre performer e expectador é a obra “The artist is present”
(2010), realizada em New York (EUA) a convite do Museum of Modern Art (MoMA), na ocasião dos
40 anos de carreira da artista. A obra inédita até então, com duração de mais de 700 horas (a mais
longa de toda sua trajetória, até a data), compunha uma enorme exposição homônima que contava
a trajetória de Abramović através de fotos, instalações, peças sonoras, obras de vídeo e suas primei-
ras reperformances ao vivo feitas por outros artistas num museu. Em “The artist is present”, Marina
Abramović permanecia sentada por 8 horas diárias, 6 vezes por semana durante 3 meses, enquanto
visitantes eram convidados a sentar-se em sua frente, e em silêncio se olharem. Assim artista e visi-
tante permaneciam, até quando este último desejasse se retirar. Nesse momento a artista fechava os
olhos, abrindo novamente diante de outro visitante que ocupava o lugar do anterior. Somente uma
mesa separa as duas cadeiras, uma onde a artista permanece (quase sem se mexer), outra onde os
visitantes se revezam.

“Marina Abramovic é como um corpo cheio de olhos”, comparou Canevacci, para quem esse fechar e
abrir de olhos é um elemento filosoficamente muito importante: “Nós também estamos metaforica-
mente com os olhos fechados quando encontramos outras pessoas”. O antropólogo afirmou que essa
ênfase no olho-no-olho problematiza a vinculação do olhar prolongado a uma postura de afronta ou
sedução. “A gente não tem costume de olhar fixo. Marina Abramovic coloca em crise a ideia do olhar
como controle do espaço e dos outros. Para ela, a abertura dos olhos é uma forma de encontro com o
outro, o desconhecido, o estrangeiro”. De acordo com ele, o encontro com o outro é parte constitutiva
do tipo de arte criada por Abramovic e diz respeito não só ao outro como uma terceira pessoa, mas

806
também aos nossos próprios outros. “Trata-se de uma relação dialógica entre minha alteridade inter-
na e a alteridade dos outros”, por meio da qual é possível “se transformar num ser que vê e que se vê”,
explicou. “Nesse tipo de encontro de Marina Abramovic a arte é incontrolável, cria uma mudança. E
esse tipo de mudança é, para mim, a estética. A estética é quando um sujeito está frente a uma obra
e percebe que está mudando, que a sua identidade não é mais a mesma, que está virando outras. É
como se ele fosse capturado por um evento e deslocado para um contexto totalmente diferente. A
arte ou modifica a nossa identidade ou não é arte. E modificar a identidade é modificar a corporeida-
de. Porque a identidade está disseminada no corpo; o corpo é cheio de identidades, subjetividades”,
completou. (DOURADO, 2014.)

Um outro dado importante a ser colocado é a forte relação entre as obras de Marina Abramović e sua
vida pessoal. Isso pode ser observado, especialmente, nas criações que construiu junto a Ulay, entre
elas a última, “The Lovers – The Great Wall Walk” (1988), que marcou a separação do casal. Origi-
nalmente criada para marcar o casamento dos artistas, em “The Lovers” Abramović saiu de um ponto
oposto da Muralha da China em que Ulay saíra, caminharam, ambos, por 90 dias até se encontrarem
no meio do percurso total, onde se despediram e encerraram o casamento e a parceria de 12 anos,
ficando sem qualquer contato até a organização da exposição “The artist is present”, em 2010. Em
algumas entrevistas, assim como no seu “Manifesto sobre a vida do artista” (2007), Abramović já pro-
meteu, inclusive, que seu enterro será sua última obra. Ela deixou indicações a serem seguidas no seu
velório, que contará com outros dois corpos além do seu, um em cada uma das três cidades em que
ela residiu, de modo que ninguém jamais terá certeza de onde ela realmente estará enterrada. Ou seja,
na estética construída por Marina Abramović podemos perceber uma forte valorização do ser, e uma
recusa grande da imagem como ilusão, algo representativo, a não-verdade. Tudo que acontece nas
performances de Marina Abramović acontecem de fato. A presença do seu corpo é a própria presença
da vida no ato artístico, não há muita distinção entre uma coisa e outra. Não é à toa que o nome dessa
exposição, e também da obra que aqui damos destaque é “The artist is present”, posto que a presença
do artista na constituição da obra, enquanto corpo, inclusive, foi a grande contribuição política que
a performance trouxe às artes visuais – e que, tanto no caso da obra como da exposição realizada no
MoMA, de fato, a artista está presente (e em diferentes qualidades de presença, inclusive). Em outras
palavras, com a utilização do corpo presente na arte, o sistema de objetos teve sua importância ressig-
nificada, abrindo espaço para a presença, que é a própria vida na sua maior metáfora: o corpo.

“The artist is present”, inclusive, conduziu Abramović a um lugar de estrelato no mundo das artes e
para além dele, tornando-a uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, segundo a Revista Times
em 2014. O que ajudou a alavancar, inclusive, o próprio status da performance no mundo, que du-
rante anos era compreendida como uma prática alternativa, não um gênero artístico legítimo como é
hoje, uma mainstream art.

Aqui, cabe-nos um espaço para uma delicada discussão acerca do aspecto político na obra de Marina
Abramović. Cabe-nos, porque nossa pretensão com este artigo é contribuir com uma reflexão sobre
a estética de uma obra no que ela suscita e evoca a questão ética, a nossa relação com o outro, nosso
estar-agir no mundo. Delicada, porque no ambiente das artes a trajetória de Abramović não é con-
sensualmente compreendida como algo homogêneo, uniforme. O status que à artista compete hoje
em dia, no mundo, faz com que alguns colegas de profissão questionem suas produções, no sentido
do seu comprometimento com a arte e com este próprio mundo, em detrimento do capital que hoje

807
o seu nome atrai. No entanto, não se pode negar a importância histórica desta artista para as artes, e
o quanto que suas criações contribuíram com uma mudança estrutural nesta área – mudança esta já
anunciada aqui por Freitas e suas reflexões sobre o corpo.

Para clarear melhor, no entanto, em torno de que se assentaria enfim o caráter político de uma pro-
dução, deve-se olhar para além do discurso da própria obra (aquilo que ela diz de modo direto),
mas para a sua forma (para o como ela diz, ou aquilo que a obra diz de modo indireto). Em outras
palavras, a qualidade artística de uma obra diz respeito hoje, no sentido político, não somente à causa
defendida na obra, ao compromisso de seu autor, ou ao seu poder, mas também aos aspectos de mer-
cado e de produção e como estes atuaram neste fazer artístico. Ou seja, a qualidade de uma obra de
arte é, nas palavras Walter Benjamin, a sua “tendência política correta”: “(…) a tendência política, por
mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquan-
to o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na
qualidade de produtor” (BENJAMIM, 1987, p. 125-126).

O que Benjamin nos alerta com essa passagem é da impossibilidade de se desassociar a lingua-
gem artística das condições de sua produção – o que justifica, ao mesmo tempo, as críticas atuais a
Abramović, e o reconhecimento da sua trajetória até aqui. Em tempo, dos doze anos em que Marina
Abramović viveu criando arte com seu ex-marido e então parceiro Ulay, cinco foram dentro de um
furgão, sem dinheiro, sem endereço certo, sem estrutura básica. E sua produção, assim como seu
modo de vida, era bastante crítica ao sistema vigente.

O que se pretende aqui com esta discussão, é nos colocarmos cientes dessa problemática. E, apesar
dela, ainda dispostos a pensar uma relação interessante entre tal estética e questões éticas. Não por
insistência, mas por acreditar e creditar a nossa percepção sobre a obra, de que se trata de uma expe-
riência válida e profícua.

2. A OBRA, O INTER-HUMANO E O DIÁLOGO

No sentido já anunciado por Canevacci – de que parte constitutiva da obra de Abramović é o próprio
encontro com o outro (outro de fato e os outros de nós mesmos), uma relação dialógica entre alte-
ridades – é que podemos encontrar nesta obra de Abramović elementos do que o filósofo austríaco
Martin Buber chamou de inter-humano.

Buscando, afinal, traçar relações entre “The artist is present” e alguns pensamentos de Buber, recu-
peramos aqui o que o filósofo sustenta ao tratar dos fatores que impedem o crescimento do inter-hu-
mano. Neste sentido, ele identifica duas formas de existência humana (não que sejam, ambas, formas
de existências puras – essa diferenciação se dá na verdade pela predominância dos comportamentos):
uma pautada no ser, outra baseada numa vida a partir da imagem. Para ele, a verdade no campo do
inter-humano significa o ser um-com-o-outro tal como se é, sem aparências.

O homem que vive conforme o seu ser olha para o outro precisamente como se olha para alguém
com quem se mantém relações pessoais; é um olhar “espontâneo”, “sem reservas”; é verdade que, na-
turalmente, ele não deixa de ser influenciado pela intenção de fazer-se compreender pelo outro, mas

808
não é influenciado por qualquer pensamento sobre a imagem que pode ou deve despertar no outro,
quanto à sua própria natureza. […] onde a aparência se origina na mentira e por esta é impregnada,
aí o inter-humano é ameaçado na sua existência. (BUBER, 2009, p. 142-143)

A partir dessas concepções, Buber compreende a crise do homem como a crise do entre. Para ele, ser
homem implica em honestidade, em nenhuma aparência (em relação presente).

Voltando a “The artist is present”, podemos observar, a partir dos registros disponíveis para tal (fo-
tos que podem ser facilmente localizadas e acessadas via internet, ou mesmo o documentário “Marina
Abramović: The artist is present”, já supracitado), a força ou qualidade de presença que contém o olhar
da performer em atuação. Um forte indício desta presença são as reações que tal olhar provoca no públi-
co que pôde participar dessa experiência do encontro. O choro é comum, às vezes volumoso, dolorido,
denso. Respirações profundas também podem ser assistidas. Gestos cheios de sentido e emoção vez ou
outra adornam essa experiência estética. A transformação que ocorre nos expectadores participantes é
claramente percebida, fugindo desse campo marcado por tanta ressalva que é o campo da subjetividade.
E ainda que a transformação dos envolvidos nessa troca de olhares, nessa experimentação da presença
e do inter-humano seja concreta, não deixa de forma alguma de ser sensível.

Em tempo, Martin Buber explica sobre o que se trata exatamente o inter-humano, e nos ajuda a
compreender sua importância para o exercício do diálogo, tão urgente e necessário no mundo e na
sociedade que constituímos:

O domínio do inter-humano estende-se muito além do domínio da simpatia. Incidentes muito sim-
ples podem já pertencer a ele como quando, um bonde superlotado, dois desconhecidos trocam
olhares atentos para, em seguida, afundar novamente na conveniência do não-quere-saber-nada-
-um-do-outro. Mas deve também contar-se como pertencente a este domínio todo encontro entre
adversários, por casual que seja, quando ele influi no comportamento mútuo, isto é, quando algo
se realiza entre os adversários, por mais imperceptível que seja, não importando naquela hora se é
carregado de sentimento ou não. A única coisa importante é que, para cada um dos dois homens, o
outro aconteça com este outro determinado; que cada um dos dois se torne consciente do outro de
tal forma que precisamente por isso assuma para com ele um comportamento, que não o considere
e não o trate como seu objeto mas como seu parceiro num acontecimento da vida, mesmo que seja
apenas uma luta de boxe. É este o fator decisivo: o não-ser-objeto. […] por esfera do inter-humano
entendo apenas os acontecimentos atuais entre homens, dêem-se em mutualidade ou sejam de tal
natureza que, completando-se, possam atingir diretamente a mutualidade; pois a participação dos
dois parceiros é, por princípio, indispensável. A esfera do inter-humano é aquele do face a face, do
um-ao-outro; é o seu desdobramento que chamamos de dialógico. (BUBER, 2009, p. 137-138)

Martin Buber critica ainda nossa atual incapacidade para uma conversação genuína. Para ele, “em
geral os homens não falam realmente um-ao-outro, cada um embora esteja voltado para o outro,
fala na verdade a uma instância fictícia, cuja existência se reduz a escutá-lo” (BUBER, 2009, p. 145).
O pressuposto para o surgimento de uma conversação de fato genuína seria então o conhecimento
íntimo do fato de que o outro é essencialmente outro (e isto precisa ser recíproco). Buber considera
essa tomada de conhecimento íntimo do outro como o ato de experienciá-lo em totalidade enquanto
pessoa determinada pelo espírito, colocar-se presente diante de uma outra presença.

809
O filósofo atenta para o fato de predominar, no nosso tempo, “um olhar analítico, redutor e de-
dutivo entre homem e homem” (Ibidem, p. 147). Devemos, para mudar isso e conseguirmos esta-
belecermos conversações genuínas, desenvolver em nós mesmos e nas gerações futuras o dom da
“intuição”, ou como o Buber prefere chamar, a fantasia do real. O outro que vem ao meu encontro
eu posso tentar torná-lo presente para mim, posto que o inter-humano acontece somente numa
parceria viva. Daí a imensa potência que percebemos em “The artist is present”, uma obra provoca-
tiva que, sobretudo, nos convoca ao encontro, a uma outra vivência do tempo, a coragem necessária
para ser (resistindo a sedução da aparência), a necessidade de perceber o outro como outro, essen-
cialmente outro, único, seja ele quem for – algo tão caro e capaz de transformar profundamente as
estruturas que nos sustentam.

Está na própria condição da arte a dimensão transformadora dos que com ela se envolvem, seja como
for. Mas diante de “The artist is present” a transformação suscitada pela experiência estética pode
nos servir no campo social, através da sensibilização para a diferença, para a alteridade, tornando-
-se uma forte aliada na luta pelos Direitos Humanos, como veremos mais à frente. Ao abrir os olhos,
na ocasião do encontro, Marina Abramović não somente se dispõe a ser, não somente nos oferece a
oportunidade de presenciá-la existindo sem aparências, não somente abre os olhos para o que somos,
mas nos convida a também existir sem aparências. E mais: nos provoca a enxergar a nós mesmos e,
especialmente, os outros – condição primordial para uma conversação genuína, para o diálogo, para
uma comunicação não-violenta, para uma Cultura de Paz.

3. O BELO, O JUSTO E O OUTRO

Compreender a estética como fundamento para a Cultura de Direitos Humanos, para muitos juristas,
pode soar algo muito distante. Afinal de contas, não é ensinado nos cursos de Direito a importância
da estética no âmbito jurídico. Na realidade, o homem é um ser estético, o “gosto” é inerente da con-
dição humana e também fator desencadeador de fenômenos sociais.

A percepção da arte como importante mecanismo de transformação social remete a Grécia Antiga,
onde o filósofo Platão defendia a tese de que ela, a arte, seria a base de toda a educação. De fato, toda
a educação ateniense no século V a.C. baseava-se na literatura, música e esportes, como observa Ri-
chard Courtney, citado por Camarotti (1999). Diante desse breve panorama, no entanto, cabe a res-
salva de que na arte a dimensão pedagógica inerente a toda forma artística não deve se sobrepor a sua
dimensão estética. E é este fato estético, e a crença na sua indissociabilidade do fator ético, a dimensão
da arte que interessa a este artigo, no sentido da promoção dos Direitos Humanos.
Segundo o autor Eduardo C. B. Bittar,

A estética, num sentido amplo, engloba diversas práticas humanas [constitutivas do próprio fazer
humano] e está mais presente na história das civilizações, das culturas e dos povos do que a nos-
sa visão-moderna, individualista, de sociedade capitalista e ocidental nos permite enxergar. Ainda
mais, a estética diz mais sobre os fenômenos humanos e sociais do que se pode, a partir de uma visão
confinada de especialidades do conhecimento, pressupor. (...) Há, pois uma estética da existência, e
isto não é superficial, mas revelador da dimensão do humano, pois ser humano e praticar uma forma
de cultura não são coisas diferentes”. (BITTAR, 2009, p. 71-72)

810
No entanto, cabe aqui a ressalva de que a aproximação dos conceitos de ética e estética não é um con-
senso entre os autores, e encontra críticas pertinentes em autores como Bohrer:

No caso de Bohrer, temos o exemplo de uma posição contrária àquela defendida por Welsch da
“atualidade do estético” e de qualquer possibilidade desta contribuir para a ética. Para Bohrer nada
há em comum entre ética e estética, uma vez que aspectos como a estética do horror e o caráter enig-
mático da arte, pelo que trazem de conexão com forças da vida e liberação dos limites convencionais,
acentuam a impossibilidade de relacionar aspectos estéticos com as questões normativas da ética.
Bohrer não aceita a aproximação dos termos estética e aisthesis, pois isso levaria à perda do caráter
subversivo da arte. (HERMANN, 2006, p. 7)

Em verdade, foi a partir do século XX que tal noção de “atualidade do estético” (WELSCH apud
HERMANN, 2006) começa a se desenhar. As grandes transformações ocorridas no pensamento
nesse período questionariam os limites entre arte e outras áreas do conhecimento, como a filosofia,
por exemplo – limites esses que mostravam o caráter excludente desses conceitos até então (que
não acolhiam aquilo que escapava de suas determinações). Relocando o entendimento de estética
para além da teoria do belo e da arte, a modernidade imprimiu-se nesse campo tornando-o mais
subjetivo e próximos de uma perspectiva do gosto, inserindo-o no cotidiano e nas discussões das
ciências humanas e aproximando-o de temas como percepção e sensibilidade, mito e arte, corpo-
reidade.

Na década oitenta do século XX, Welsch retoma o conceito de aisthesis da filosofia de Aristóteles,
que significa percepção pelos sentidos, sensibilidade e recoloca-a no âmbito da experiência estética
na vida contemporânea. A estética passa a ser interpretada, então, como uma crescente “desdiferen-
ciação” (Entdifferenzierung) dos termos aisthesis e estética, na perspectiva de um novo conceito de
razão, que incorpora o sensível. Estética e aisthesis podem ser reunidas justamente por não se tratar
de uma teoria da arte, mas de uma racionalidade que incorpora também o conhecimento pela per-
cepção sensível. (HERMANN, 2006, p. 2)

Em outras palavras, no discurso contemporâneo a estética passa a dizer respeito a percepção do sen-
sível, extrapolando os limites da teoria da arte para alcançar aspectos da vida cotidiana, a vida prática,
o que Budner (apud HERMANN, 2006) chamou de “estetização do mundo da vida”. E é nesse lugar
onde a estética encontra a ética: é na arte em que ambos os conceitos dialogam.

A obra de arte nos indica, com sua verdade, que o mundo não é compreendido quando apropriado
abstrata e tecnicamente, pois só encontramos a realidade de nossas vidas quando nos apoderamos
dela espiritualmente. Ou seja, na relação com o mundo, a experiência estética traz “algo”, que ultra-
passa nossas explicações racionais, promovendo um estranhamento que indica o ponto de relação
entre ética e estética. (HERMANN, 2006, p. 7)

A experiência estética na contemporaneidade, momento da arte que atravessa a vida prática, tem se
revelado uma possibilidade no sentido de promover a experiência da alteridade. Faz isso ao eviden-
ciar aquilo que nos é estranho, amaciando nossas percepções embrutecidas e automatizadas e promo-
vendo uma ampliação necessária de nossa reflexão moral – que termina por contaminar, inclusive, a
esfera jurídica.

811
Por meio de Tercio Sampaio Ferraz Junior, podemos entender melhor como o belo e o justo estão
intrinsecamente conectados. Em suas palavras:

Isso põe, de novo, o jurista e o artista, no mesmo domínio público. É que o gosto discrimina, decide
entre as qualidades e os talentos, como o senso de justiça examina e decide entre as provas trazidas
no contraditório. Por isso o artista como o jurista, no seu julgamento sempre atento às coisas do
mundo, impõem-se a moderação e a prudência, para não serem engolfados pela arrebatação do belo
ou pela tirania do verdadeiro. Prudência e moderação não significam, porém, ausência de paixão.
Pois ambos – o jurista e o artista –introduzem, no âmbito da verdade ou da qualidade e do talento, o
fator pessoal, ou sejam, conferem-lhes uma significação humana. O autêntico jurista como o genuíno
artista cuidam dos seus objetos à sua própria maneira pessoal, humanizando, assim, o mundo da
qualidade e do talento e do verdadeiro. Ambos são, no sentido próprio, inexoravelmente humanistas,
homens que sabem como preservar, admirar e cuidar das coisas do mundo, sem a elas se escravi-
zarem. No recôndito do humanismo está o sentido da beleza e da justiça. (FERRAZ JUNIOR apud
BITTAR, 2009, p. 70).

Daí, podemos perceber que a estética tem também como função a de socializar, perceber o outro. No
momento da fruição da arte, o fruidor, antes sujeito solitário, sai do seu autocentramento, tornando-se
parceiro da reconstrução do sentido da obra de arte. Em “The artist is present”, de Marina Abramović,
podemos constatar que através da linguagem da arte há o encontro com o outro, existindo, naquela
ocasião, os fenômenos da alteridade e da empatia. Vale ressaltar que, a palavra alteridade vem do la-
tim alter, que significa “outro”, “qualidade do que é do outro e não meu ou eu”, chamando-nos atenção
para o fato do outro ser outro de fato. Já empatia é um termo que nos sugere a experiência de entrar
na dimensão do sofrimento humano.

Bom, segundo Juliana Merçon (2009), a existência de um corpo é marcada por sua constante relação
com outros corpos pela sua possibilidade de afetar e ser afetado. A afetividade é exatamente isso:
a arte de afetar e ser afetado. A questão é que esse encontro pode diminuir as nossas forças ou nos
potencializar. É característico de corpos mais complexos serem mais potentes, ou seja, terem maior
potencialidade de afetar, de se sensibilizar e, também de afetar, de produzir. Quanto mais potente,
mais conscientemente produz afetos. (MERÇON apud VASCONCELOS, 2012, p. 24)

O grande legado da estética nos Direitos Humanos, representada aqui por meio da obra de Abramović
– é trazer à tona o respeito ao “gosto” do outro, o respeito às diferenças, através do encontro com o ou-
tro, revelando a faceta do inter-humano de Buber, que se manifesta no face-a-face, no um-com-outro.
Só a partir do referido encontro, surgem os fenômenos descritos acima. E mais: a possibilidade do
exercício do diálogo – ainda que na obra artística em questão ocorra no silêncio.

A ideia de relacionar uma obra artística como “The artist is present” com aspectos do inter-humano,
entre outros tantos que sugerem o exercício do diálogo, busca mostrar outras plurais formas de buscar
o caminho da escuta – por meio da experiência estética (que extrapola os limites da arte), por meio do
afeto, desse “algo” indizível de que trata a arte. Indizível e, como podemos observar, potente nos nossos
processos de sensibilização social quanto as questões imprescindíveis aos Direitos Humanos, ou a uma
Cultura de Paz, como o respeito a existência do outro enquanto outro, a alteridade, a empatia para com
ele, a compreensão de sua condição de outro, a solidariedade, o amor, enfim, a dignidade humana.

812
REFERÊNCIAS

AKERS, Matthew. Marina Abramović: The artist is present. 2012. (Documentário).


BITTAR, Eduardo C. B. Estética, democracia pluralista e direitos humanos: da estética da diversidade à socie-
dade, da sociedade pluralista à estética. In: PELIZZILI, Marcelo (Org.). Cultura de paz: a alteridade em jogo.
Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009.
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VASCONCELOS, Karina (Org.). Bom Pastor: as histórias e os afetos. Recife: Instituto Brasileiro Pró-Cidadania,
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813
As expressões vocais em
“O canto da sereia” e no rap:
experiências sonoras criativas
na sala de aula
Elthon Gomes Fernandes da Silva

INTRODUÇÃO

O conhecimento do ator sobre os elementos básicos do som pode favorecer a sua formação, em vista
de que sua a ação cênica pode conter elementos da musicalidade. De acordo com Moreira (2014), a
musicalidade “inaudível” pode ser capaz de induzir, para o espetáculo, o uso de estruturas organiza-
cionais ocultas na música: relações de impulso e apoio de movimento, variações de dinâmica e uso
do ritmo, por exemplo.

A musicalidade do espetáculo compreende a materialização, dentro da obra teatral, dos parâmetros


sonoros em suas várias possibilidades acústicas: na trilha musical, na sonoplastia e seus efeitos, no
modo de organização do espetáculo, nos movimentos corporais do ator, e também na velocidade e
natureza expressiva das falas do ator (MOREIRA, 2014).

Desse modo, o jogo teatral pode ser uma estratégia utilizada em sala de aula com o objetivo de pro-
mover a musicalização durante a formação de estudantes de Teatro, pois a fala, o gesto e as criações
sonoras são áreas contempladas nessas atividades.

Ao reproduzir acontecimentos remotos ou criação de novas circunstâncias/cenas, por meio dos jogos
teatrais, o indivíduo assume uma postura diferenciada: ainda que o personagem seja ele próprio, sua
presença durante a realização da atividade supõe uma construção para que o resultado evidencie um
“corpo” diferente ao observado em situação cotidiana. Torna-se o momento de exercitar o corpo (ges-
to e voz) como material expressivo (SILVA, 2013).

A possibilidade de experimentação de voz integrada ao movimento, também pode estar associada ao


gênero musical Rap. Esse gênero envolve o uso da voz falada em diferentes ritmos e entonações. Se-
gundo afirmação de Bertelli (2012), corresponde a uma sigla que abrevia do inglês rhythm and poetry,

814
em português, “ritmo e poesia”, sendo uma referência ao “canto declamatório” inscrito sobre a base
rítmica de trechos de músicas alheias ou produzidos por sintetizadores.

Ainda pensando sobre a realização de ações para formação de estudantes, cabe trazer o comentá-
rio de Tardif (2008) sobre o fato de que na sala de aula os professores não realizam apenas objeti-
vos, atuam também sobre um objeto, e esse objeto de trabalho dos professores são seres humanos
individualizados e socializados, entre os quais se estabelecem relações humanas (individuais e
sociais).

Desse modo, utilizar uma temática que o(a) estudante teve contato em seu contexto social e buscar
relacioná-la à abordagem teórica da disciplina, pode estimular o processo de ensino-aprendizagem
permitindo esse(a) estudante perceber que o saber da sala de aula é aplicável na prática e pode gerar
desdobramentos em novas ações.

O objetivo do presente trabalho é descrever uma experiência pedagógica realizada com estudantes
dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Teatro da UFPB durante a disciplina Experiências So-
noras Criativas.

1. METODOLOGIA

O presente relato de experiência é resultante de descrições sobre atividade realizada, no mês de mar-
ço de 2016, na disciplina “Experiências Sonoras Criativas”, ministrada em sala de aula no Centro de
Comunicação Turismo e Artes da UFPB (CCTA-UFPB).

O estudo tem caráter descritivo, e foi realizado a partir do plano de curso elaborado para a disciplina,
de registros do professor sobre as atividades diárias após cada aula ministrada com a turma e das
observações de registros em diário de campo do professor.

“Experiências Sonoras Criativas” contém na sua ementa:

• Reconhecimento de elementos rítmicos básicos;


• Exploração do ritmo na fala e no movimento;
• Pesquisa de possibilidades sonoras e sua exploração criativa;
• Improvisação, estruturação sonoras e representação gráfica.

O objetivo geral da disciplina é instrumentalizar o(a) estudante para que obtenha condições bá-
sicas para lidar, criativamente e criticamente, com um projeto sonoro criado por ele(a) e dentro
do universo das Artes Cênicas. A carga horária semestral destinada para essa disciplina é de 60
horas.

Com dezessete estudantes matriculados, pertencentes aos cursos de Bacharelado e Licenciatura em


Teatro, e a abordagem teórico-prática do semestre letivo dividida em três unidades, a disciplina tinha
como enfoque na Unidade1 a Introdução ao universo sonoro e os Parâmetros Sonoros Musicais (du-
ração, intensidade, altura e timbre).

815
Subáreas foram trabalhadas dentro dessa unidade e, assim, os temas utilizados foram:

• Reflexão sobre a musicalidade do espetáculo e musicalização do ator;


• Descobertas de criação sonora com o corpo (voz e percussão corporal);
• Conceitos e reflexões sobre Som, Ruído e Silêncio;
• Experimentações com o parâmetro Duração (pulso, contra pulso, andamento, ritmo) utilizando
voz e instrumentos convencionais e não-convencionais para fazer releitura de músicas populares e
também criar músicas;
• Experimentações com o parâmetro Intensidade utilizando voz e instrumentos convencionais e
não-convencionais;
• Experimentações com o parâmetro Altura utilizando voz e instrumentos convencionais e não-
-convencionais;
• Junção dos três parâmetros anteriormente citados para ajudar na criação de novos timbres vocais.

Ao final desta Unidade, já iniciando as atividades relacionadas ao Timbre, foi elaborada uma aula com
o objetivo de experimentar os parâmetros duração, intensidade e altura na voz.

Os parâmetros sonoros foram conceituados em disciplina à luz de Schafer (2011), Wisnik (1999) e
Fernandes (2010). A partir dessas referências, os parâmetros básicos do som foram entendidos como:

• Duração: parâmetro identificador de um som que se refere ao tempo que a onda sonora ativa nos-
sos ouvidos, se ouvimos o som por longo período ou curto período. Sendo então classificado como
som curto ou longo;
• Intensidade: informação sobre o grau de energia da onda sonora, na qual o som pode representar
não somente fraqueza ou debilitação, mas também um jorro de explosão. A intensidade permitiria o
som ser classificado como fraco ou forte;
• Altura: são as diferentes altitudes (frequências) do som. Sua variação pode gerar uma melodia, e na
fala essas variações de frequências (melodia) é chamada de inflexão ou entonação;
• Timbre: é a cor, identidade do som, uma superestrutura que faz um som se diferenciar de outro na
mesma intensidade e altura. Cada corpo ressoa seu próprio som de forma diferente devido às suas
diferentes estruturas, e no caso dos instrumentos musicais isso fica mais evidente tendo em vista as
mais diferentes formas, materiais e modo de produção sonora dos instrumentos;

Com o ato de experimentar a criação vocal de uma sonoridade que pudesse ter um som curto ou
longo, intensidade forte ou fraca e altura grave, média ou aguda, faria o grupo perceber a chegada de
um novo som diferente de sua própria voz.

Como preparação corporal para a realização das sonoridades, foi realizado trabalho de relaxamento
(alongamentos, rotação de articulações) associados à respiração e sons facilitadores (bocejos, sons
fricativos, emissão de vogais bocejadas). Essa proposta foi organizada à luz da abordagem vocal citada
por Behlau (2010).

Essa mesma referência foi a base para inclusão de exercícios vocais utilizando sons nasais, pois
este som promove, por exemplo, relaxamento do aparelho vocal, projeção da voz e equilíbrio da
ressonância.

816
Logo em seguida foi explicada à turma a atividade do jogo teatral “O Canto da Sereia” (BOAL,
2011). A descrição original da atividade corresponde a um grupo de atores que se juntam num
grupo no centro da sala, pensam em uma opressão que tenham vivido e fecham os olhos. Uma
pessoa começa emitindo um som (choro, gemido, grito ou lamento) que deve ser a tradução so-
nora da opressão que tenha pensado. O diretor então leva essa pessoa a um canto da sala, e depois
escolhe outras três para distribuir nos outros pontos desse espaço. Após silêncio e com os atores
ainda de olhos fechados, é solicitado que as quatro pessoas emitam seus sons ao mesmo tempo e o
restante do grupo siga para escolher o som que se assemelha à sua própria opressão. Desse modo se
formarão quatro grupos. Então todos abrirão os olhos e no grupo cada pessoa contará aos demais
a opressão que mentalizou.

Para esta aula essa atividade foi adaptada. Manteve-se a proposta de arrumação dos grupos, com as
pessoas no centro e depois se direcionando, mas foi solicitado que representassem a voz da opressão
vivenciada por outra pessoa. Poderia ser de uma pessoa conhecida ou então mostrassem uma opres-
são de alguém que não conhecem, mas que tivessem conhecido a história.

Após o momento de abrir os olhos, foi solicitado que o grupo voltasse ao trabalho de relaxamento as-
sociados à respiração e sons facilitadores, pois seria uma forma de voltar à condição de equilíbrio das
tensões corporais. Em seguida, indicou-se que deveriam escrever no quadro palavras que referissem
a opressão vocalizada.

Nesta etapa foram utilizadas faixas instrumentais do gênero musical Rap e o convite para que inclu-
íssem as palavras seguindo o ritmo e pulso da música, buscando também variações de intensidade e
alturas para emissão das palavras.

Ressalta-se que a temática pedida para vocalizar a opressão deveria ser relacionada à “opressão rece-
bida por uma mulher”.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A aula que direciona o presente relato de experiência, ocorreu na semana do dia 08 de março, Dia
Internacional da Mulher. Neste período, o departamento recebeu a notícia de que uma aluna havia
sofrido violência física. Tal assunto circulou em todo o departamento, e foi pensado pelo professor
da disciplina realizar uma ação que associasse a temática de trabalho da disciplina e a temática social
que a turma estava em contato.

Além disso, existiu também a ideia de propor uma atividade disparadora que gerasse uma criação ar-
tística em sala de aula, e assim o grupo aplicaria de forma prática as informações teóricas que estavam
recebendo desde o início do semestre.

Neste dia, numa única atividade, três pontos importantes (duração, intensidade e altura) seriam expe-
rimentados para direcionar a prática do último ponto da Unidade I (timbre). Todas as aulas consta-
vam de momentos teórico-práticos, mas como o material teórico havia sido discutido anteriormente,
o professor decidiu que somente a parte prática fosse realizada.

817
Os jogos teatrais citados por Spolin (2007) e Boal (2011), bem como exercícios propostos por Schafer
(2011), foram estratégias constantes para as atividades práticas dessa Unidade I. Essas atividades, em
alguns momentos, também foram adaptadas pelo professor, além da criação de novas atividades por
ele, a partir da leitura dessas referências bibliográficas.

De acordo com Spolin (2007) as atividades com jogos teatrais são úteis no desenvolvimento de habi-
lidades dos alunos em comunicar-se por uso do discurso e da escrita, e também por formas não-ver-
bais. A autora ainda comenta que são fontes que ajudam a aprimorar habilidades de concentração,
resolução de problemas e interação com o grupo, ao passo que oferece a oportunidade de exercer sua
liberdade, respeito pela outra pessoa e responsabilidade dentro da comunidade da sala de aula.

Na referência de Boal (2011) selecionada pelo professor, o autor apresenta que os jogos podem ser
feitos por atores e não-atores, e que servem para desenvolver em todos a capacidade de se expressar
por meio do Teatro. Também podem ser usados no trabalho político, pedagógico ou social.

Dentro dos agrupamentos de jogos, no grupo “Ativando os vários sentidos” Boal (2011) traz a ideia de
que a visão seria um sentido monopolizador, e então os demais ficariam adormecidos ou atrofiados.
Desse modo, a privação do sentido da visão faria desenvolver os outros sentidos e a capacidade de
perceber o mundo exterior.

O jogo “O Canto da Sereia” (BOAL, 2011), foi uma atividade escolhida também com o intuito de fazer
a turma perceber, no corpo, a opressão recebida pelo outro e direcionar a libertação dessa condição
de oprimido por meio da voz.

As quatro sonoridades mais representativas, e escolhidas pelo professor para se tornarem referência
pelo restante do grupo, foram de dois alunos e duas alunas. As expressões vocais mais realizadas fo-
ram evidenciadas da seguinte maneira:

• Inicialmente começaram fracos, mas ao passar do tempo as vozes se tornaram mais projetadas e as
intensidades se mostraram mais fortes;
• Sons curtos acompanhados de respiração ofegante;
• Sons longos com intensidade forte e velocidade rápida;
• Sons longos com intensidade crescente (da mais fraca à mais forte), velocidade lenta e seguindo do
grave para o agudo.

No restante da turma, além das descrições acima referidas, as emissões vocais se mostraram tensa-
-estrangulada, de frequência grave e com excessiva quantidade de ar e suspiros representando sono-
ridade de choro.

Toda a turma também mostrou movimentos corporais que acompanhavam essas sonoridades: om-
bros encolhidos, cabeça baixa, mãos que escondiam o rosto, braços que tentavam proteger a cabeça
foram os mais observados.

Por meio de voz de comando, feita em forte intensidade, com o termo “Silêncio!”, o professor inter-
rompeu a atividade e logo indicou que buscassem o equilíbrio da respiração e da emissão vocal uti-

818
lizando as técnicas do início da aula: alongamentos e rotação de articulações associados à respiração
(sopro longo) e aos sons facilitadores (bocejos, consoantes /s/-/x/-/f/ e emissão de vogais bocejadas)
(BEHLAU, 2010).

Essas atividades também foram realizadas com os olhos abertos e acrescentou-se o pedido de automas-
sagem para reduzir as tensões corporais que porventura haviam se instalado durante essa proposta.

Em seguida, quando o professor pediu que todo o grupo escrevesse no quadro as palavras que repre-
sentassem as opressões representadas, foi observado que a temática da violência, busca por indepen-
dência e autonomia e liberdade para o corpo predominaram.

As faixas do gênero musical Rap então foram lançadas, e inicialmente apenas 02 pessoas logo en-
traram para criar musicalidade com a voz e as palavras de forma ainda tímida. Ao passar do tempo
essas vozes se tornavam mais seguras, demonstravam atitude expressiva ao cantar e logo o restante da
turma entrou no jogo.

De acordo com Schmeling e Teixeira (2010), a partir do entendimento que cantar é utilizar o corpo
como um todo, atividades de reconhecimento do espaço, dos colegas e que trabalhem percepção,
prontidão, concentração, iniciativa, liderança, integração, socialização, entre outras habilidades, de-
vem ser propostas.

Os elementos teóricos trabalhados até aquele momento foram bem experimentados durante essa ati-
vidade. As expressões vocais mais realizadas foram:

• Acompanhamento da palavra ao ritmo presente na faixa musical;


• Subdivisão do ritmo presente na faixa musical, inclusive com uso de aceleração da velocidade de
emissão da palavra;
• Desconstrução da palavra (repetição de sílabas, repetição de consoantes ou vogais, prolongamentos
de vogais, silabação);
• Alternância de emissão de palavras em intensidade forte e fraca, assim como a utilização do cres-
cendo e diminuindo das intensidades;
• Gestos corporais que acompanhavam a voz e a palavra nos diferentes ritmos e intensidades.

O gênero Rap permitiu uma ação de desenvolvimento vocal por meio da exploração da voz falada
nas suas várias formas de emissão e entonações. Por ser um gênero que envolve variações de ritmos,
entonações e utilizar a palavra de forma clara e direta para narrar um cotidiano, o Rap foi escolhido
como disparador para experimentação da expressividade vocal e estendendo a possibilidade também
ao movimento.

A possibilidade de o movimento ser incluído numa proposta de musicalização está de acordo com
o apresentado por Schmeling e Teixeira (2010), quando as autoras apresentam que vivenciar o canto
por meio do corpo (utilizando gestos, encenações e dança, por exemplo), é fundamental para a per-
cepção do que acontece com nossa voz, com a música, com o gênero musical proposto. Afirmam tam-
bém que cantar com o corpo levaria a uma interpretação músico-vocal geralmente mais descontraída,
podendo auxiliar na expressividade do canto.

819
No aspecto mais subjetivo da aula, foi percebido o quanto essa ação favorecia o “sentir-se capaz de ter
voz”. Eram os elementos do cotidiano da turma que estavam sendo vocalizados, e a própria voz era
um veículo para criticar aquilo que julgava opressão, ao mesmo tempo que se compartilhava da ideia
de opressão apresentada por um(a) participante da turma.

Esse momento do uso do Rap, durou aproximadamente 15 minutos, e à medida que o grupo par-
ticipava, a voz e a palavra se mostravam mais enérgicas e com assertividade. Destaca-se que uma
estudante teve resistência em seguir para o momento do Rap por estar muito emocionada, no entanto
participou ativamente do grupo que fazia o coro e apresentava-se cada vez mais relaxada e presente
na atividade.

Ao final da aula, houve conversa sobre o objetivo da aula e as estratégias utilizadas. O professor ex-
plicou à turma que as estratégias serviram para experimentação prática das informações teóricas tro-
cadas em sala de aula e também de induzir à criação artística a partir da observação de uma temática
social: a opressão contra a mulher.

Foram esclarecidas as histórias de opressões que cada estudante vocalizou. Violência familiar, a colega
de curso que sofreu violência física, condição de inferioridade diante do homem, cerceamento das
oportunidades de busca por trabalho e independência, assim como a imposição de limites no com-
portamento e na roupa, foram os fatos mais comentados pela turma.

A estudante que se mostrou mais emocionada, trouxe brevemente uma história de violência física
sofrida por uma pessoa de sua família. Comentou ainda, que a aula permitiu entrar em contato com
suas memórias desse fato e que a coragem de falar sobre o assunto, assim como o enfrentamento, é
possível quando num espaço de discussão se percebe que todas as pessoas trazem opiniões semelhan-
tes. Disse também que o silêncio impossibilita a busca de soluções e reforça a atitude do opressor.

A reflexão sobre a condição da mulher nos dias atuais foi muito bem comentada pelos homens da tur-
ma, e também as opressões que eles escolheram vocalizar eram referidas com preocupação e indignação.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da análise dos direcionamentos estabelecidos no início da disciplina; da revisão dos temas
abordados para favorecer a musicalização de estudantes de Teatro; da criação de estratégias para o de-
senvolvimento de novas percepções necessárias à construção de conhecimento da turma e do enten-
dimento de que o processo de ensino-aprendizagem deve receber influências daquilo que está fora do
ambiente de universidade, foi realizada atividade em sala de aula que pudesse integrar conhecimentos
teórico-práticos, refletir sobre uma temática social e promover a criação artística.

A utilização do jogo teatral “O canto da sereia” e de faixas musicais do gênero Rap, se mostrou uma
estratégia facilitadora para sensibilizar estudantes dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Tea-
tro da UFPB, sobre a possibilidade de experimentação das suas potencialidades expressivas com voz
e movimento, de perceber a capacidade de criação coletiva e de se colocarem na condição de artista
que reflete sobre o contexto social no qual está inserido.

820
REFERÊNCIAS

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tória e Estudos Culturais, v. 7, p. 1-24, 2010.
MOREIRA, J.T. A contemporaneidade do Teatro de Rua: potências musicais da cena no espaço urbano. Rio de
Janeiro: Phábrica de Phábrica de Produçoes, 2014. 228 f.
SCHAFER, R. M. A Afinação do Mundo. São Paulo: Editora da UNESP, 2011.
SCHMELING, A.; TEIXEIRA, L. Explorando possibilidades vocais: da fala ao canto. Música na educação básica,
Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 74-87, 2010.
SILVA, E. G. F.; MARTINS, R. M. A.; NASCIMENTO, G. K. B. O.; SOUZA, S. R.; FERREIRA, L. P. Conside-
rações sobre o uso de métodos teatrais como abordagem terapêutica para pessoas com Doença de Parkinson.
Revista Kairós Gerontologia, v. 16, n. 3, p. 41-52, 2013
SPOLIN V. Jogos teatrais na sala de aula: um manual para o professor. Tradução de Ingrid Dormien Koudela.
São Paulo: Perspectiva, 2007. 321p.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
WISNIK, J. M. O Som e o Sentido: Uma outra História das Músicas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.

821
Arte da palavra: a cantoria de viola
e seu repertório poético
Simone Oliveira de Castro

A Cantoria de Viola é uma arte poética. Trata-se de uma poesia, em geral, improvisada por canta-
dores repentistas, no entanto, é possível encontrar registros dessa poesia em outros suportes que não
só a performance do cantador. Esses registros estão em livros, LP´s, CD´s e DVD´s.

Essa poesia movimenta ao longo de diversas gerações de cantadores um reportório poético consti-
tuidor do “grande texto” que compõe a cantoria. São diversos mundos entrecruzando-se, dando vida
a personagens lendárias, bíblicas, históricas, que se encontram, dialogam com sertanejos, vaqueiros,
cangaceiros, políticos, poetas, escritores, beatos, cantadores, etc. A natureza também aparece esmiu-
çada em pequenos detalhes; rios, vulcões, animais ressurgem em meio a vozes roufenhas e sons da
viola companheira. São repertórios de conteúdos que permanecem numa memória social que se re-
constrói a cada nova geração de cantadores e ouvintes.

Este breve artigo pretende demonstrar e analisar uma pequena parte deste repertório poético, enten-
dendo que esse conteúdo tanto pode ser pensado e problematizado como um objeto artístico quanto
educacional.

Nesses repertórios, variadas épocas, personagens e situações são revividas. Percebe-se que os canta-
dores dominam um saber “enciclopédico”. Dependendo das sugestões do público, o repente é cons-
truído em torno de um ou mais temas. Por exemplo: temas de história mundial e do Brasil, mitologia,
figuras religiosas, anti-heróis na história oficial, mas sempre considerados heróis para os cantadores e
seu público, etc. Jerusa Pires Ferreira explica, o cantador “cantava Ciência” que:

(...) configura uma poética maior, em que se baseia a transmissão daquilo que é considerado cultura,
e cujos principais componentes são Geografia, Retórica e Mitologia, envolvidos pelo conjunto de
aforismos que respondem por um saber prático, mesmo se especulativo sobre a vida e a morte (FER-
REIRA, 1991, p. 85).

No LP Mensageiros da Cantoria, gravado em 1981, os cantadores Ivanildo Vila Nova e Sebastião Dias
trabalham a riqueza poética que envolve o “cantar Ciência:”

822
(IV)Me responda sobre os fatos (IV)Me responda amigo meu
Do martírio de Jesus Quem foi Roma na borrasca
Quem ajudou com a cruz Quem eram Bruto e Casca
Quais foram os ladrões ingratos E Marco Antônio que perdeu
Quem era Pôncio Pilatos Sobre Cleópatra e Pompeu
Quem traiu nosso Senhor De César qual o valor
Quem negou ao Salvador Quem foi Sila por favor
E quem foi com ele cravado E de Otávio o resultado
Se você tem bom guardado Se você tem bom guardado
Me responda cantador Me responda cantador
(SD)Pedro não reconheceu (SD)Marco Antônio foi corsário
Ser de Cristo companheiro Pompeu era general
Quem carregou o madeiro Otávio era imperial
Foi SimiãoSirineu Sila foi legionário
Judas foi quem o vendeu Casca era um sectário
Gestas foi salteador Brutos foi um traidor
Pôncio era governador Cleópatra viveu de amor
Dimas morreu ao seu lado César foi assassinado
Como eu tenho bom guardado Como eu tenho bom guardado
Já respondi cantador Já respondi cantador
(IV)Cite as velhas profissões (IV)Me aponte um rei caridoso
Os três nomes discrimine Cite um poeta brilhante
Hitler, Stálin, Mussolini Descreva um rio gigante
Quais eram suas nações Mostre um grande criminoso
As bombas e explosões Diga um escritor famoso
Que causaram mais pavor E um pugilista de cor
Quem foi o seu causador Anote um reformador
E qual o país castigado E visite um país gelado
Se você tem bom guardado Se você tem bom guardado
Me responda cantador Me responda cantador
(SD)Hiroshima, Nagasaki (SD)Poeta bom foi Homero
Truman fez a represália Rei nobre Antonino Pio
Mussolini na Itália Mississipi o grande rio
Foi mestre e forjou ataque Incendiário foi Nero
Stálin, russo sem traque Reformador foi Lutero
Sapateiro e ditador Jean Paul Sartre o escritor
Hitler da Áustria o terror País frio Equador
Foi cabo e pintor frustrado KaciusKley peso pesado
Como eu tenho bom guardado Como eu tenho bom guardado
Já respondi cantador Já respondi cantador

Como se pode acompanhar na peleja das estrofes, Ivanildo vai inquirindo sobre diversos assuntos.
Começando com o martírio de Cristo, intercala acontecimentos de épocas diferentes sem uma pre-
ocupação cronológica. O que importa é a comunicação, a forma como a mesma é trazida para enri-
quecer o repente.

Considerando que a cantoria faz parte de uma “literatura oral” pode-se acompanhar as reflexões de
Mircea Eliade: “De modo mais intenso que nas outras artes, sentimos na literatura uma revolta contra
o tempo histórico, o desejo de atingir outros ritmos temporais além daquele em que somos obrigados
a viver e a trabalhar” (2002, p.64).

823
Os motes utilizados na cantoria “se você tem bom guardado/me responda cantador” e “como eu
tenho bom guardado/já respondi cantador273 fazem referência a uma memória ancestral. Zumthor,
falando sobre memória e comunidade, esclarece que:

O que entra em jogo no intérprete de poesia, no momento em que é requisitada sua memória, é algo
mais do que uma simples memorização. (...) Conforme o intérprete, na performance, cante, recite
ou leia em voz alta, limitações de maior ou menor força geram sua ação; de qualquer modo, porém,
esta empenha uma totalidade pessoal: simultaneamente um conhecimento, a inteligência de que ela
se investe, a sensibilidade, os nervos, os músculos, a respiração, um talento de reelaborar em tempo
tão breve ( ZUMTHOR, 1993, p. 141).

Memória que guarda os repertórios, ajudando o cantador a se destacar frente ao seu público e ao seu
parceiro. Só quem tem bom guardado pode entrar no jogo e responder o perguntado. A própria ques-
tão do esquecimento, quando não se tem bom guardado, assume um caráter intrínseco na recriação
dos repertórios. Ao esquecer algum acontecimento o cantador cria, ao seu modo, outros que possam
dar continuidade ao repente.

A pergunta abre a possibilidade de pensar e dialogar com eventos. Ela trabalha como uma chave
que ativa a memória para dar conta desse vasto repertório de conteúdos. Na hora do improviso são
articulados conhecimentos de história antiga com aspectos geográficos, mitologias, personalidades
da literatura universal, da vida política de diversos países, do esporte, etc. Outras vezes, personagens
marcantes da história do Brasil ganham ênfase através da ótica do repentista.
Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio cantam “Revoltas Brasileiras”:

(IV) No Contestado (IV) E Conselheiro


O profeta Zé Maria Foi de Quixeramobim
O homem que se dizia Cumprir a missão sem fim
Ser de Deus iluminado De beato e cangaceiro
Foi fulminado O desespero
Por João Goberto tenente Tomava conta do crente
Morreu traiçoeiramente Morreu mais de um inocente
Nas noites de Butiais No fogo dos arraiais
No tempo de Pai Tomás(2x) No tempo de Pai Tomás
Preto Velho e Pai Vicente Preto Velho e Pai Vicente
(IV) Foi deflagrada (GA) Em União
No Maranhão como raio Dos Palmares, os quilombolas
Por dois anos o Balaio Arrasaram fazendolas
A luta da balaiada Amedrontaram o sertão
Com a espada do negro População
Cosme Valente A Zumbi obediente
Pagou posteriormente Resistia bravamente
Seus crimes descomunais Na terra dos marechais
No tempo de Pai Tomás No tempo de Pai Tomás
Preto Velho e Pai Vicente Preto Velho e Pai Vicente

273. Mote de sete sílabas com perguntas e respostas. Com rimas na seguinte disposição: ABBAACCDDC.

824
(GA) Ainda brilha (IV) Foi Virgulino
Entre as águas do Chuí Para muitos um bandido
O nome Piratinir Lampião seu apelido
O símbolo do farroupilha Foi um líder nordestino
Quando Costilha Por seu destino
Se encheu de sangue quente Foi morto covardemente
Com Bento Manuel à frente Outro daquela corrente
Canaparru e outros mais Serra Talhada não traz
No tempo de Pai Tomás No tempo de Pai Tomás
Preto Velho e Pai Vicente Preto Velho e Pai Vicente
(GA) Que desmantelo (GA) Lutava um dia
No Juazeiro a sedição Na Revolução Praieira
Zé da Penha, o capitão Pedro Ivo da Silveira
Uniu-se à Franco Rabelo Capitão de artilharia
Quando um apelo E se evadia da prisão
Padre Ciço fez urgente Com sua gente
Dr. Floro inteligente Morreu no mar inclemente
Soube vencer seus rivais Já bem distante do cais
No tempo de Pai Tomás No tempo de Pai Tomás
Preto Velho e Pai Vicente Preto Velho e Pai Vicente

Nesta cantoria, retirada do LP Violas de Ouro (Lado 2, 3ª faixa,1976), percebe-se uma leitura poé-
tica de importantes fatos acontecidos na história do Brasil. Identificados com os agentes históricos
que vivenciaram essas lutas, essas “revoltas”, os cantadores trazem à tona um repertório que se
confunde com o imaginário sociocultural de diferentes regiões do país.

A cantoria faz ressurgir como “heróis” personagens marginalizados na história oficial. Também deixa
entrever que nesses combates, a força dos mais fracos, em geral, era a esperança, frente à sede de san-
gue dos mais fortes. Daí porque “morriam muitos inocentes”. A voz dos poetas coaduna-se com uma
voz ancestral que empresta ao repertório um valor simbólico. Os acontecimentos históricos cantados
guardam um valor que vai além do real.

O cantador projeta, através do fazer poético da cantoria, imagens que nos levam a revisitar momentos
mal resolvidos ou mal contados da história do país, em que diferentes personagens encontram-se,
ganham vida, dentro de palavras cantadas, rimadas, ritmadas.

Denotando uma ampliação de repertórios, algumas cantorias reproduzem cenas cotidianas nas
grandes cidades, imbricadas com referências históricas, políticas, sociais e culturais. Numa
cantoria denominada “Três coisas de todas as coisas”, contida no LP “Cantadores de Hoje”, de
1980, Ivanildo Vila Nova, ao lado de Severino Feitosa, dialogam no gênero Quadrão Pergun-
tado274:

(IV) Jesus o que achou no Horto (SF) Cite três antigos reis
(SF) Insulto, choro e maltrato (IV) Quépos, Quefrém e Miquerinos
(IV) As serventias do jato (SF) Três caudilhos genuínos

274. Décima com versos heptassílabos dialogados. Rimas: ABBAACCDDC.

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(SF) Torre, pista, aeroporto (IV) Perón, Vila e Juaréz (?)
(IV) Os objetos do morto (SF) Gigantes me aponte três
(SF) Mova, mortalha e caixão (IV) Hércules, Tarzan e Sansão
(IV) Os jogos da perdição (SF) Três nomes de projeção
(SF) Baralho, roleta e dado (IV) Lorca, Neruda e Calado
Isso é quadrão perguntado Isso é quadrão perguntado
Isso é responder quadrão Isso é responder quadrão
(SF) As faces da violência (IV) Os artefatos da mina
(IV) Estupro e roubos e crimes (SF) Bateia, ganga e metal
(SF) Manifestações sublimes (IV) Enfeites do carnaval
(IV) Pintura, música e ciência (SF) Frevo, bloco e serpentina
(SF) Retratos da previdência (IV) Glórias da festa junina
(IV) Fila, maçada e cartão (SF) Forró, fogueira e balão
(SF) Quem merece compaixão (IV) As etapas da paixão
(IV) Louco, cego e aleijado (SF) Flerte, namoro e noivado
Isso é quadrão perguntado Isso é quadrão perguntado
Isso é responder quadrão Isso é responder quadrão
(IV) O que mais se deprecia (SF) O veranista o que veste
(SF) Roupa, mobília e cruzeiro (IV) Tanga, calção e bermuda
(IV) Os fracos do brasileiro (SF) Onde o regime não muda
(SF) Futebol, reza e folia (IV) Pequim, Praga e Budapeste
(IV) Onde mora a burguesia (SF) As desgraças do Nordeste
(SF) Cobertura, praia e mansão (IV) Cheia, política e verão
(IV) E os pobres aonde estão (SF) Os dramas de um cidadão
(SF) Em mocambo ou alagado (IV) Ser pobre, honesto e casado
Isso é quadrão perguntado Isso é quadrão perguntado
Isso é responder quadrão Isso é responder quadrão

As estrofes trazem agora um repertório mais direcionado a um ouvinte urbano. As informações se


misturam. É interessante observar que a forma como a pergunta é feita exige, além da memória, ra-
pidez e habilidade técnica para dar a resposta coerente com o perguntado e ainda obedecer à rima, à
métrica, uma vez que se segue um diálogo intercalado.

Essa cantoria traduz as características de uma cidade polifônica, onde tudo acontece simultaneamen-
te: prazer, dor, esperança, desesperança, tradição, renovação, arte, tecnologia, morte, vida. Tudo é
incorporado e tratado no repertório do cantador.

No entrecruzamento de repertórios, fatos bíblicos são intercalados por temas tecnológicos que se ligam
a temas humanos. Problemas sociais são permeados por arte e ciência. Críticas a injustiças relacionam-
-se com desejos de fruição, de liberação do corpo. Reis, semideuses, personagens bíblicas, heróis cine-
matográficos, políticos, literatos se unem por um breve instante. Ainda tem espaço para falar do Nordes-
te, seja através das calamidades climáticas e políticas, ou por meio de suas festas tradicionais.

Por entre cada frase cantada se percebe palavras sedentas por serem ditas, ouvidas. Vozes coletivas pa-
recem gritar junto com o cantador, quando ele cria um “mundo” poético, eufêmico. Ouvidos escutam
o “choro de Jesus no Horto”; corpos se dilaceram nas “filas que levam à Previdência”; os “pobres nos
mocambos” assistem na televisão a “burguesia deleitar-se, ‘acorrentar-se’ nas mansões”; O “nordes-
tinovive mais uma seca, uma cheia, uma eleição”. Enquanto isso, o futebol, o samba, a festa junina, o
flerte, a religião, alimentam de ilusões o dia a dia do “cidadão”.

826
Em outros momentos, o repertório do cantador procura exaltar vultos que ele e seus ouvintes conside-
ram importantes. Em geral, são pessoas ligadas ao ambiente nordestino e a religiosidade popular.

Maria Antonieta Antonacci, em estudo sobre religiosidades populares de tradições orais no Ceará,
esclarece que:

Tais religiosidades, muitas vezes rebeldes e insurgentes, contestadoras do status quo, provêm de processos
múltiplos de expropriações e vivências de confrontos sociais diversos, expressando transgressões a or-
dens excludentes e inclusões por meio de práticas dessas mesmas religiosidades, que podem ser pensadas
como um persistente confronto aos códigos, valores, condutas e linguagens dominantes (2002, p. 190).

Esse repertório liga-se, por sua vez, a amplo repertório para além do religioso. Cantando esses personagens
e a forma como eles vivem a “religião”, o cantador deixa entrever que ouvintes/sertanejos se apropriam de
práticas religiosas impostas institucionalmente e criam modos diversos de relacionamentos com o sagrado.

Seguindo esse repertório em 1980, no LP Cantadores de Hoje, encontramos a figura de Antônio Con-
selheiro nas vozes de Ivanildo Vilanova e Severino Feitosa.

(IV) Num profundo deserto sem ter fonte


Já surgiu um regime igualitário
Onde um justo já sexagenário
Fez erguer a cidade Belo Monte
Para então vislumbrar um horizonte
Sem maldade, sem crime, sem dinheiro
Sem bordel, sem fiscal, sem carcereiro
Mas foi morto e tomado por selvagem
A história fará sua homenagem
A figura de Antônio Conselheiro
(SF) Quem viveu ao seu lado sempre quis
Ter real o que era fantasia
O reinado do céu não prometia
Sim um reino na terra mais feliz
Afinal só o povo do país
Pode dar o retrato verdadeiro
Deste líder, Antônio Mensageiro
Que alguém deformou a sua imagem
A história fará sua homenagem
A figura de Antônio Conselheiro 1
(...)

A religiosidade é a tônica imprimindo neste repertório um valor simbólico que perpassa a arte poéti-
ca que a cantoria expressa. São valores humanos, sofrimentos, esperanças, crenças em possibilidades
de se ter uma vida terrena com “justiça, direitos, pão”.

Na cantoria pode-se entrever um mundo de intolerância e incompreensão em relação à religiosidade


popular, tão bem retratado em filmes como “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte e Dias
Gomes. Trazer essas personagens, sempre presentes no repertório da cantoria significa, para muitos
cantadores, a possibilidade de reagir à imposição de uma religião única que nada tem a ver com suas
formas de religiosidade.

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Para os cantadores e seus ouvintes, a imagem de Conselheiro, assim como a do cantador, foi defor-
mada. Mas o “povo”, em seu universo, sabe que imagem quer trazer, qual suas conclusões, cria seus
próprios “heróis” e “mitos”. Não por acaso, Lampião representa outra personagem com forte presença
nas cantorias. LP De Repente 30 Anos de Repente. Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio. Lado B, 1ª
faixa. Seleto Discos, 1993:

(IV) Quando um patrão desonrava


E a moça pobre ofendia
Quando Lampião sabia
As providências tomava
Sendo solteiro casava
Casado ia pra o caixão
Serviu de exemplo e lição
Pra fazendeiro devasso
Lampião rei do cangaço
Foi assombro do sertão
(GA) Foi herói, bandido e louco
Foi um mestre sem estudo
Um gênio acima de tudo
Que teve o mal como troco
Se envultava em pé de toco
Na força da oração
Enfrentava um batalhão
Sem levar nenhum balaço
Lampião rei do cangaço
Foi assombro do sertão

Lampião, Conselheiro e outros protagonistas que fazem parte da história do Nordeste, reaparecem
nas cantorias. Seja através de um mote criado exclusivamente para homenageá-los, relembrá-los, ou
em citações dentro de cantorias nas quais cabem diferentes repertórios. O cantador procura desta for-
ma, desafiar o tempo e o esquecimento. Recria a história dessas personagens que, de alguma maneira,
imbricam-se com seus modos de viver, costumes, crenças e tradições sertanejas.

Heróis, bandidos, santos, pecadores, fanáticos, justos, injustos, sofredores, justiceiros, humilhados,
exaltados, não importa. Essas personagens enriquecem o repertório do cantador não somente porque
são lembradas, mas por fazerem parte de suas próprias histórias. Zumbi também retorna entre perso-
nagens marcantes na cantoria:

(IV) No início da vida brasileira


Foi o negro uma fonte de tesouro
No desejo incansável pelo ouro
E no labor da lavoura açucareira
Essa raça infeliz foi a primeira
A ser vítima do ódio e da maldade
Pra fundar arraial, vila e cidade
Limpar cana, arar terra e cortar sola
Só com outro Zumbi, o quilombola
Pode o negro alcançar a liberdade
(...)

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(SD) Mesmo após o decreto da princesa
Há algemas, correntes e grilhões
As mucamas, senzalas, os porões
E o racismo ofendendo a natureza
Entre brancos e negros com certeza
Nunca houve nem há essa igualdade
Preconceito na atualidade
Tem na fábrica, na rua e na escola
Só com outro Zumbi, o quilombola
Pode o negro alcançar a liberdade
(IV) Alguém acha que o negro é sem valor
Não merece gozar a vida franca
Ser artista e casar com mulher branca
Ter emprego, ter lar, paz e amor
Deve sempre ter cargo inferior
Ser gari, ou chofer de autoridade
Pegar frete e biscate na cidade
Engraxar, bater bomba e jogar bola
Só com outro Zumbi, o quilombola
Pode o negro alcançar a liberdade2

Exaltando e reatualizando imaginários em torno da figura de Zumbi, o cantador canta e conta a


luta dos negros na história. Luta permanente como a própria cantoria. O mote criado registra uma
contínua consciência de desigualdades que permeiam as relações entre negros e brancos no Brasil
e no mundo.

Com seus versos o cantador atualiza a luta de Zumbi, considerando que persiste. Hoje, luta-se contra
o racismo, os preconceitos, a indiferença em busca de igualdade. A cantoria traz à tona a “discrimina-
ção mascarada” na sociedade, na qual “o negro parece já ter seus lugares devidamente marcados”, seja
na vida escolar, profissional, social, política, cultural. Ao mesmo tempo, através desse mote, percebe-
-se um convite a “resistência”, uma tentativa de continuar com o mesmo espírito de Zumbi, “de serrar
as grades” que parecem cada dia mais fortes porque invisíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As personagens que dão conformação a esse repertório trazem consigo o desejo de crítica, com canta-
dores atentos aos problemas, às injustiças, as lutas que fazem parte do cotidiano de muitos brasileiros.
São testemunhas que encontram nas vozes, nos corpos, nos gestos, na musicalidade desses artistas,
formas de continuarem existindo.

Esse repertório procura manter aceso, na memória dos ouvintes, “pedaços da história” que possuem
muitas versões. O cantador imprime na cantoria a sua versão, dando margem à construção de um
texto que perpassa o real e o imaginário. Essas personagens que circulam entre rimas, métricas, po-
esia e técnica simbolizam possibilidades da fala, da voz, da identificação com momentos históricos
marcantes em termos de enfrentamentos sociais. De alguma forma, trazem experiências de gerações
de cantadores e ouvintes que se sucedem nos confrontos.

829
Muitos outros repertórios poderiam ser exemplificados. O universo poético do cantador é muito
variado. A quantidade de informações e recriações que envolvem a arte do improviso, em seus dife-
rentes suportes, é incomensurável. A criação não tem limites. O fazer humano é sua fonte.

A cantoria assume, através de seus repertórios, que por sua vez ganham vida por meio do cantador
e do público, uma capacidade de questionamento, de reflexão que, muitas vezes, passa despercebida.
Como outras formas de poesia, traz uma mensagem moral que dá margem a diversas interpretações.
A do cantador, do público, do pesquisador, no tempo, no espaço...

Estes repertórios ressoam como ecos longínquos, que se renovam a cada geração, produzindo dife-
rentes versões. Criam formas múltiplas de pensar o mundo que nos rodeia, a partir de uma poética
oral. O espaço social, cultural, político, com seus problemas, dificuldades, o homem, a mulher, a vida,
a morte, a natureza são interrogados e recriados pelos cantadores.

A cantoria, como um grande texto em processo, com seus repertórios reaviva nossa memória. Não
há uma preocupação em transmitir os fatos, com a riqueza de detalhes do próprio acontecido. Antes,
ela põe o mundo em diálogo. Entrecruza diferentes temporalidades, para nos dizer da possibilidade
infinita que o poeta/cantador tem de recriar o vivido, dando a ele o colorido que sua maior ou menor
dramaticidade pedir.

REFERÊNCIAS

ANTONACCI, M. A. Artimanhas da história. In: Projeto História n° 24. São Paulo: EDUC, 2002.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 6. ed. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2002.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória - conto e poesia popular. Salvador: Fundação Casa de Jorge
Amado, 1991.
ZUMTHOR, P. A Letra e a Voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Hucitec, 1997.

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A intervenção urbana do graffiti
em Teresina; estudo da produção
plástica do artista de rua “Manin”
Maria Helena Ferreira da Costa

1. APRESENTAÇÃO

A intervenção artística do graffiti em Teresina começou a tomar volume, no sentido ser percebida
com mais evidência, em meados da década de 90 (noventa). Durante seus pouco mais de 160 anos de
existência histórica, a cidade já recebeu monumentos e estátuas representativas de homens públicos,
pinturas murais, esculturas em estilos contemporâneos, prédios e edifícios arrojados, e todos trazem
a assinatura de artistas e artesãos, gente da própria terra. O graffiti vem seguindo essa mesma trilha,
porém trazido por um viés meio marginal, pois quem o realiza o faz no silêncio da noite ou em perío-
dos matutinos de pouca circulação de pessoas; sempre com recursos próprios, e quase sem concursos
ou certames públicos.

Ana Mae Barbosa, ao emitir um depoimento no livro “A Metrópole e a Cidade” (1992), faz a seguinte
citação:

A primeira reação do público ao desprezo que por ele têm os artistas quando produzem obras para
as ruas se deu entre 1981 e 1987 com a escultura de Richard Serra, “Tilted Arc”, comissionada em
1979, por um programa governamental que estimulava arte em edifícios públicos [...]. Enfim, depois
de seis anos de luta judicial, que encheu ilhares de páginas de papel e muitos metros de notícias de
jornais e revistas, a obra foi retirada da praça (BARBOSA, 1992).

Portanto é preciso deixar bastante claro que nem toda intervenção plástica será necessariamente ar-
tística, ou necessariamente aceita pelo público que a vê, pois a cidade em suas áreas de circulação, a
priori é de todos e de ninguém, porém não é exclusiva de um só. Além disso, o cidadão que circula
pela cidade, também convive com produções artísticas, cujo papel precípuo é sensibilizar o indivíduo,
enquanto ser estético e formador de opinião e construtor de juízos de valor.

Kátia Canton, quando escreveu “Novíssima Arte Brasileira” (2001), afirma que a produção artística
genuína, naturalmente será o reflexo daquilo que passa pelos olhos do artista e este, enraizado num

831
processo lento de leitura visual e estética do seu entorno - sua vida, seus grupos sociais, ambientes de
convívio, as relações que trava com a cidade e, como esta se relaciona com seus transeuntes - devolve
esse olhar de forma plástica para ser vista pela cidade, matriz primeira de onde tudo começou.

As condições latentes que afloram no cotidiano do ambiente urbano, são temas recorrentes na pro-
dução da geração 90/2000. No retrato contemporâneo da vida nas cidades, figuram imagens solitá-
rias e amedrontadas, muitas vezes procurando sentido num emaranhado de sentimentos de tédio e
impotência, insegurança, abandono, deslocamento. (CANTON, 2001, p.10).

Em um artigo do jornal local Meio Norte, o grafiteiro Washington Gabriel informou sucintamente ter
gasto R$150,00 reais, na execução de um graffiti que não durou mais que uma semana, pois sobre ele
viu um homem cobrindo as pinturas com cal para fazer uma propaganda de venda de frangos. “Eu
não reclamei. O homem estava ganhando R$10,00 reais para fazer esse trabalho, tinha que ganhar a
vida, declarou Washington Gabriel” (MEIO NORTE, 2010, A/15).

É nítido que se houvesse políticas públicas educacionais voltadas para incrementar o desenvolvimen-
to da educação estética, em muito contribuiriam para desenvolver mais a sensibilidade e percepção
visual e, por conseguinte, uma mudança comportamental, pois quem vê e se reconhece na beleza da
arte pública disposta na e pela cidade, não irá depredá-la.

Mas, se ao contrário não houver algum tipo de identificação do indivíduo com seu ambiente viven-
cial, poderemos ver perpetuar a perda da consciência cultural e não tendo uma base conceitual e reco-
nhecimento de sua cultura e arte não terá raízes para crescer cônscio da beleza que é ser teresinense,
por exemplo.

Em artigo de Michael Pollak, traduzido por Monique Augras, sobre Memória e Identidade Social, o
referido autor esclarece que a memória é um fenômeno construído social e individualmente, através
de um elo estreito entre memória e o sentimento de identidade, consubstanciado em três elementos: a
fronteira física do próprio corpo e as relações do ser com ele; a continuidade dentro do tempo, no sen-
tido físico, moral e psicológico, e o sentimento de coerência, todos unificados e codependentes, sendo
que uma vez rompido essa coesão, pode-se está dando início a fenômenos patológicos. E, sendo a me-
mória um elemento constituinte do sentimento de identidade, essa identidade estará sempre passível
de mudança, negociação, transformação em função dos outros - que vai oferecer ao indivíduo opor-
tunidades de obter outras referências vivenciais ou disputas em conflitos diversos (POLLAK, 1992).

Daí o graffiti oferecer uma excelente oportunidade para o indivíduo, o transeunte sair do seu universo
pessoal e cíclico para olhar algo feito por outrem, alguém que não se conhece, e provavelmente jamais
vai conhecer, mas que te oferece uma imagem para ser vista, admirada, ou para ser “lida” e decifrada;
em qualquer das opções o estímulo atingiu o objetivo primeiro que era chamar a atenção daquele que
passa pelas ruas da cidade.

Foi na década de 90 (noventa) que começaram a aparecer com mais notoriedade imagens grafitadas
pela cidade de Teresina. Inserções tímidas e isoladas foram gradativamente, nos últimos dez anos,
ampliando seu campo de ação e exposição, senão de visualização, tanto na quantidade, qualidade e

832
diversidade formal e temática; quanto na participação desses artistas de rua, os grafiteiros, em amos-
tras coletivas e exposições.

Então, o objeto de pesquisa será a produção do artista de rua Augusto César, vulgo “Manin”, isto é,
seus graffiti por toda a cidade de Teresina, especificamente aqueles produzidos entre os anos de 2009
até 2012, além do estudo iconográfico e iconológico de alguns exemplares que servirão de referências
para leitura e interpretação através dos elementos da linguagem visual sobre um graffiti.

2. JUSTIFICATIVA

Nos primeiros anos desse século começamos a observar a reincidência das imagens “ciclópicas” (ima-
gens de um olho só) se espalhando por paredões, muros e outros suportes verticais e horizontais,
dispostos em pontos estratégicos da cidade de Teresina, que permitiam uma visualização imediata
por quem por ali passasse. Em meio às tantas possibilidades plásticas que o grafite oferece, tivemos
a iniciativa de guardá-los por meio fotográfico, o que garantiu o registro de grafites que não existem
mais, uma vez que alguns desapareceram sob propagandas de toda sorte, em menos de seis meses.

O artista de rua que produz tais grafitto responde pelo nome de Augusto César ou pelo seu codinome
“Manin”. Segundo página na internet, e confirmado em entrevista cedida no final de 2012, ele afirma ter
tido uma referência artística no trabalho pictórico de Nonato Oliveira, por quem tem muita admiração.

Iniciamos, então, estudos sobre a cidade, conceitos e bibliografias que embasassem a intervenção ar-
tística do grafite e sua influência sobre os transeuntes. Para além desse aspecto, pesquisamos também
Nonato Oliveira e sua produção artística muralista e, como estabelecer elos de influência entre uma
pintura em baixo relevo, de enormes proporções, cujo tema é o nordestino e suas manifestações mais
folclóricas, que é uma das características mais notáveis da obra de Nonato Oliveira, com o grafite
contemporâneo e igualmente monumental de Augusto César, o “Manin”.

O primeiro texto que nos interessou foi o relato da lenda urbana da Num se pode, onde, no seu intrói-
to, fala-se de uma cidade de cantos e encantos.

Nosso objetivo mais específico é fazer uma análise iconológica e iconográfica da produção artística
em grafite de Manin, codinome de Augusto César. Seus trabalhos são eminentemente figurais e estão
espalhados nos mais inusitados suportes em vias públicas, pela cidade de Teresina.

Os trabalhos de Manin começaram a aparecer na década de 90 (noventa). Nos últimos anos daquela
década o artista de rua ampliou seu campo de ação, tanto na execução das pinturas, como partici-
pando de amostras, exposições e “vernisagens”, principalmente no biênio 2008/2010. Já é possível,
inclusive, registrar obras urbanas nas zonas norte, centro e leste da cidade.

O interesse nos graffiti de Manin começou pela insistência do olhar quando, ao circular pela cidade,
percebemos, numa frequência bastante regular, as formas, as cores e proporções dos trabalhos realiza-
dos em locais inusitados: postes, caixas de controle de telefonia, calçadas, paradas de ônibus, paredes
de prédios desabitados, colunatas de pontes, por exemplo.

833
Desejamos entender a obra desse artista, o porquê das dimensões (a maioria possui aproximadamente
dois metros de altura por 80 centímetros de largura); como se dá a influência artística de Nonato Oli-
veira sobre a produção do grafiteiro; Manin possui formação artística? Qual o impacto dessas inter-
venções urbanas sobre quem olha a cidade, como olha e “se” olha; o que o artista de rua pretende com
essas mensagens visuais, e será que ele pretende mesmo dizer algo ou simplesmente sugere?

Através desse objeto entenderemos o surgimento da técnica do graffiti, seu desenvolvimento no Brasil
e no Nordeste e, principalmente, em Teresina, no Piauí. Quem são esses artistas de rua que deixaram
de pichar a cidade para produzir arte?

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Teresina hoje tendo mais de 160 anos possui cerca de 100 (cem) áreas de convívio entre praças e
corredores de circulação. Por outro lado, também é cenário de uma verticalização incessante que está
ocorrendo sem quase nenhum planejamento. O que foi uma meta aos olhos e técnicas de Mestre Isi-
doro França, hoje não acompanha o mesmo pensamento, pois a cidade localiza-se num espaço físico
e geográfico que deve ser respeitado a fim de se manter um equilíbrio entre o crescimento da polis e o
seu entorno natural, rios, morros e baixios.

Nascida do traçado geométrico Teresina foi implantado o Plano de Compensação entre áreas edificadas
e os “vazios”, ou áreas livres, proporcionando equilíbrio volumétrico e adequação ao clima local.

Em artigo da revista “Idéias, Arquitetura e Construção”, Tânia Martins ao entrevistar ao arquiteto e pro-
fessor Ricardo Dias, escreveu que apesar da implementação de construções verticais, isso parece não ter
contribuído para fazer com que Teresina se “vestisse” semelhante a outras capitais do país, pois “(...) hoje
a cidade se verticaliza mais e, o que é melhor, criando um estilo próprio. Podemos notar essa identidade
nas cores das cerâmicas e nas formas livres das nossas fachadas” (MARTINS, 2001, p. 13).

Mas, Teresina é muito mais que prédios e seu crescente processo de multiplicação e proliferação ver-
tical; é também espaços “vazios” - as chamadas áreas de circulação, de convívio, o espaço público por
excelência. Foi escrito vazios entre parênteses, por ser exatamente nestes vazios que a cultura flui,
aparece em várias formas: o paisagismo em passarelas, rótulas e descansos, as estátuas públicas - nas
mais diferentes possibilidades formais e materiais - as pinturas murais (em baixo relevo), fachadas
(em xilogravura) e graffiti, por calçadas, áreas abandonadas ou não, postes e caixas de telefonia.

Então, como num círculo vicioso, voltamos à questão de valorização e reconhecimento de que aquelas
estátuas e pinturas são produtos da nossa cultura, da nossa história. A cidade é um aglomerado de
indivíduos que por ela transitam de modo difuso, porém ritmado, por suas vias e edificações, estabe-
lecendo com ela, a cidade, uma relação estreita e muito particular, sem necessariamente ser profunda
ou amorosa. “No cotidiano o estético é primordial: ele sustenta o jogo das aparências, os usos e costu-
mes, as paixões, os afetos, os vínculos, o desejo coletivo” (MEIRA, 2002, p.20).

A cidade contemporânea por se comportar hoje mais proximamente como um organismo vivo, per-
mite-se palco democrático por excelência de diversas ações artísticas e/ou culturais. “A cidade, à ma-

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neira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir a espaço a partir de um
número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas uma sobre a outra. Nesse lugar organi-
zado por operações ‘especulativas’ e classificatórias, combinam-se gestão e eliminação” (CERTEAU,
1999). E será mais completo esse processo de escolha se o indivíduo se armar de toda a sua capacidade
perceptiva para se aperceber dos graffiti e demais peças artísticas espalhadas sobre a cidade. E é por
isso que ao analfabeto visual algo irreversível pode acontecer: perde-se a oportunidade de captar a
alma do lugar.

Certeau afirma que o ato de caminhar é um exercício de escolha, e cada movimento encerra seu fim
no movimento seguinte, sem opção de retorno, senão através de um “re-torno” que nunca será igual
ao que teria sido se a escolha tivesse existido. Mas, eu só transformo meu caminhar se puder ver e
olhar tudo, para depois escolher; o ato de não olhar estará vinculado necessariamente ao nível de o
conhecimento que o indivíduo tem sobre o que é arte de rua e, por conseguinte, grafito para então
reconhecer essa arte como produto de uma intervenção artístico/urbana repleta de signos e signifi-
cados.

Ainda parafraseando Marly Ribeiro Meira, no artigo “Educação estética, arte e cultura no cotidiano”,
ela comenta que “o olhar estético é o primeiro passo para se consumar o exercício pleno da cultura,
onde deve estar presente sempre a interação entre estética, ética e política, iniciada na imaginação,
tempo fértil capaz de assumir uma poderosa força estratégica (permutação e metamorfose), ao se
vestir a roupagem que a forma plástica lhe apresenta” (MEIRA, 2001, p. 35).

E o graffito é pela sua simplicidade formal, um canal acessível e disponível a qualquer hora do dia e da
noite para apreciação, registro e estudo. A essência de sua criação, solitária e escondida, adiciona-lhe
um caráter meio reacionário, uma vez que o grafiteiro, sendo artista de rua, produtor de obra de arte
livre de amarrações acadêmicas, multiplica-se tanto em relação à temática, quanto a intencionalidade
e criatividade, no momento de inserção no espaço urbano, às vezes sobre um muro, num lugar sotur-
no, de outra sorte colando-se e moldando-se a fachadas de casas e/ou lojas, ou ainda podemos nos
deparar com o graffito dialogando de maneira fluida com decoração de ambientes.

Nesse ponto o graffito parece se encaixar perfeitamente no conceito de linguagem para os escritores
pós-estruturalistas, pois Rago & Gimenes afirmam que, dentro do paradigma da linguagem, “(...) o
que importa não é a fala, mas a escrita - e o grafito na sua origem é escrita, registro e imagem - com
seu autor ausente, sua audiência desconhecida e seu texto sem regras vomitando suas múltiplas signi-
ficações, conotações e implicações” (RAGO & GIMENES, 2000).

Como consequência os autores descrevem o que seria a “morte do autor”, pois a partir do momen-
to que o autor desaparece como agente principal de uma produção escrita ou não, o texto eclipsa e
transcende as intenções do seu criador - e é exatamente isso que acontece com o graffito, pois quem
menos aparece num trabalho desses é seu autor, isto é, o grafiteiro; e a outra implicação de que os dois
escritores se referem é que: uma vez que o texto encontra-se liberado da referência autoral, ele é tam-
bém liberal da intenção autoral. E aqui é preciso fazer um adendo, pois todo grafiteiro que se preze
faz questão de deixar sua marca pessoal, seu nome, sua tag (gíria entre os grafiteiros para designar a
autoria de um graffito).

835
Porém, apesar desse registro autoral, eles (os grafiteiros) usam codinomes, o que acaba endossando-
-lhes o anonimato e o segredo. “[...] dessa maneira o autor se desvanece, suas intenções desaparecem,
e o texto (no caso, o grafito) começa a oferecer possibilidades que seu autor pode jamais sequer ter
imaginado” (HARLAN, 2000, p. 5).

Essa dinâmica das cidades contemporâneas acaba por provocar algumas lacunas no próprio modo de
absorvê-las (a arte pública), e a primeira crise que se destaca é a da memória, pois Walter Benjamin
afirma que a memória é por excelência um exercício de resgate, de proteção e – nas práticas de sele-
cionar e esquecer (RICOEUR apud CATOGRA, 2001, p. 31) – pode-se esquecer daquilo que não foi
analisado, pois só lembrando se poderá explicar e compreender. Pela transitoriedade de sua existência
o grafito circula no limite da memória, exatamente na intersecção entre dois conceitos que deram ori-
gem ao termo memória: testemunho é indício, ao tempo que é o testemunho plástico de um grafiteiro,
também nos dá indícios de intencionalidades e subjetividades.

Catogra nos traz a medida exata do que poderíamos conceituar com graffiti, ao descrever a constru-
ção etimológica da palavra memória:

Aliás, não deixa de ser sintomático que a própria origem da palavra memória pareça solicitar o traço
(o grafismo do grafito) e o rito (o ato próprio de executar um grafito). Com efeito, a expressão latina
monumentum deriva da raiz indo-europeia men: e esta também se aplica a uma das funções nucleares
do espírito (mens), a memória (...) a ligação entre monumento e memória nos convida a relacionar
as dimensões espaço-temporais que ambos os conceitos implicam (...). A mediação espacial do traço
surge, portanto, como condição necessária para que a recordação não degenere em exclusiva imagi-
nação. (CATOGRA, 2001, p. 24-25).

A memória seria, então, estimulada pelo grafito a provocar no transeunte, no expectador, cidadão
reviver experiências e estabelecer sentimentos de pertença e continuidade, imprescindíveis num uni-
verso em que a palavra de ordem (ou desordem) é o desenraizamento (BOSI, 1998).

O graffito é uma intervenção urbana marginal subversiva. Marginal porque sendo executada quase
sempre no vazio das noites praticamente sem nenhum expectador, elas surgem com o dia e pela cida-
de permanecem por um tempo indeterminado, até que o próprio tempo lhe determine o fim; subver-
siva porque o prefixo “sub” significa o que não está aparente ou visível, está escondido ou disfarçado, e
ela - a pintura/graffito imersa sobre os “vazios” da cidade, às vezes nos passa despercebida, posto que
ao nos depararmos com uma delas, ocorre primeiro o choque, a surpresa e a frustração de não tê-la
percebido por completo, não ter tido tempo para admirá-la na sua integridade.

Os graffiti de Manin se encontram em locais e suportes surpreendentes, onde não se espera que este-
jam caprichosamente espalhados pela cidade enxadrezada, como um imenso quebra cabeça.

A dimensão das imagens é um espetáculo à parte, a estética é enxuta; são grandes imagens figurais,
geralmente femininas que nos olha “de banda”, como se a inquirir nosso íntimo, enormes de cores
fortes, fazem das produções artísticas de Manin, uma arte de rua exemplar, em sua madureza formal
e plástica.

836
Para abordar o graffito como intervenção artística urbana, especificamente na obra de Manin, faz-se
necessário levantamento histórico do percurso do próprio graffito, até descobrir o como e o quando
esse tipo de manifestação plástica pública chegou em Teresina.

Enquanto isso no Brasil, a produção artística pública, teve com o artista Eliseu Visconti o precursor
dos imensos murais, sendo que seu trabalho executado sob a forma de um painel com dimensões
gigantescas (12 x 16m), para decorar o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no ano
de 1905, foi um marco em trabalhos monumentais. E veremos Cândido Portinari como o iniciador do
muralismo brasileiro, ainda nos anos 30 (trinta). Nas décadas subsequentes irão surgir Carybé, Mário
Cravo dentre outros realizando trabalhos semelhantes.

Podemos citar o Movimento Muralista Mexicano, ainda por volta dos anos 20 quando, nomeado
pelo líder revolucionário Álvaro Obregón, José Vasconcelos assume a presidência da Univer-
sidade e ministro da Educação, criando o Programa do Mural. Nesse programa Vasconcelos
liberou as paredes da recém construída Escuela Nacional Preparatória (ENP) a um grupo de
jovens artistas - buscados em ateliers e escolas de arte - e artistas já consagrados, como Siqueiros
e Rivera. Vasconcelos executa seu plano de libertação do povo mexicano através da estética, pois
“acreditava piamente que os mexicanos somente seriam ganhos para a causa quando tivessem
sua sensibilidade estética despertada” (ADES, 1997, p. 152). Rivera, então, executa “A criação”
(1922-1923), com a técnica de encáustica e folha de ouro, no Anfiteatro Bolívar na ENP, Cidade
do México.

Imagem 1. A Criação. Rivera, 1922-1923. Imagem 2. Pano de Boca. Visconti, 1907.


Fonte: br.pinterest.com/pin/27584616442070892/ Fonte: http://www.eliseuvisconti.com.br/

Em trabalhos como “A velha ordem” (OROZCO, 1926), a “Festa da Cruz” (MONTENEGRO, 1924), e
“Usina de açúcar” (RIVERA, 1926), podemos observar que as composições se fundem naturalmente
à arquitetura, cobrindo-a soberbamente.

E é exatamente esse movimento muralista que vem trazer outro aspecto imprescindível para o graffito:
a intervenção do artista em áreas públicas.

Em artigo publicado pelo Instituto Arte das Américas, Silva e Veneroso definem arte pública através
de um conceito bastante amplo: “abrangendo a instalação de monumentos em praças públicas, a rea-

837
lização de performances, a revitalização de espaços degradados, a apropriação ecológica, bem como
a intervenção nos espaços públicos em diálogos com as comunidades locais (...). São trabalhos que
estão situados, muitas vezes, num ponto em que arte, antropologia, arquitetura e outras disciplinas se
cruzam, fornecendo subsídios para se pensar a respeito da cidade e suas múltiplas possibilidades de
leitura” (SILVA & VENEROSO).

Ora, todos os murais dos chamados “Los Três Grandes” (Rivera, Orozco e Siqueiros) foram execu-
tados nos interiores de edifícios públicos: Escuela Nacional Preparatória, Ministério da Educação,
Museo de Arte Moderno, Banco Internacional, Palácio Nacional, Hospital de la Raza, sendo expostos
a um imenso contingente de transeuntes que circulavam por esses prédios, atingindo o objetivo de
José Vasconcelos que era libertar sua nação através do aprimoramento estético e alfabetismo visual
(leitura de imagens, no caso, dos murais).

Em maio de 1933, George Biddle - entusiasta do muralismo mexicano - com o apoio do então
presidente norte americano Roosevelt, criou o “Public Works of Art Project” e o “Federal Art Pro-
gram” do “Works Progress Administration”. Segundo dados do “A Metrópole e a Arte” (1922, p. 50),
entre 1935 a 1943, “5 mil artistas produziram 2.500 afrescos, 18 mil esculturas, 108 mil pinturas,
200 mil cópias de gravuras e 200 mil cartazes distribuídos em edifícios públicos, escolas, bibliotecas
e hospitais”.

No Brasil, nesta mesma década teremos em Portinari um dos primeiros muralistas a executar entre
1936-1944, no Palácio da Cultura, “Ciclos Econômicos”. Porém dentre outras obras por ele realizadas,
nada se compara ao grande painel de 18 metros de largura, com o tema “Tiradentes”, concluído em
1949; hoje exposto no Memorial da América Latina (RJ).

Imagem 3. Tiradentes. Portinari, 1949.


Fonte: http://museucasadeportinari.org.br/

Na década de 50, temos o destaque para um painel de 15 metros de comprimento, na fachada do


Teatro de Cultura Artística (SP), onde Di Cavalcanti narra a história da própria arte brasileira. Nesse
mesmo período, em Salvador, Anísio Teixeira convida alguns artistas para realizar murais no Cen-
tro Educacional Carneiro Ribeiro, que foram assinados por Carybé, Jenner Augusto, Mário Cravo
e Carlos Magno. Acompanhando a forma arquitetônica do edifício do Centro Educacional Carnei-
ro Ribeiro, Carybé elaborou, em 1953, o painel “Os Cinco Elementos”, utilizando-se da técnica da
têmpera-ovo sobre madeira.

838
Francisco Brennand, no começo dos anos 60 concebe “Batalha do Guararapes” em ladrilho sobre
cerâmica, afixado ao ar livre no centro de Recife (PE). Opção do artista para a arte mural faz parte
do mesmo ideário: realizar uma arte mais comunicativa, fundada numa linguagem acessível a amplos
segmentos da população. É nesse sentido que o painel sobre a Batalha dos Guararapes se entrosa com
a tradição popular e barroca da arte pernambucana, revelando a opção por um desenho delibera-
damente tosco, rude e alegre. Este trabalho de Brennand aproxima mais ainda os murais do graffito,
pois o fato de tê-lo feito, ou pelo menos montado em praça pública o torna bem mais “público” que
os demais murais produzidos até então. Mas, a arte pública também se estende àquela que é realizada
na própria rua.

Neste sentido fazer arte na e pela cidade abrange happenings e vernissages. Assim teremos em 1963 os
happenings de Wesley Duke Lee e Flávio de Carvalho, ambos de São Paulo, sempre marcados por atos
de rebeldia, extravagância e absurdos.

Com o instauro do Ato Institucional Nº. 05 (AI-5), em 1968, e muitos eventos históricos carregados
de significado político, devido a crescente limitação da liberdade de expressão, como Passeata dos 100
mil, lançamento da música Roda-Viva, inauguração do MASP por Lina Bo Bardi, e o fechamento da
II Bienal de Artes Plásticas, em Salvador, dentre outros; ocorreu a formação de um ambiente ideal
para iniciar pichações e grafites, no obscurantismo das noites pelas cidades que recebia mais estí-
mulos para se tornarem palcos de resistência e luta em prol da liberdade de expressão e do próprio
indivíduo, contra aquele clima de opressão.

Neste mesmo período dos anos 50 surge Alex Vallauri, estudante de Comunicação Visual, pela Fun-
dação Armando Álvares Penteado, e, já no final de 50, iniciou uma coleção de carimbos de uma fábri-
ca com desenhos que resultou numa coletânea de 400 carimbos.

Logo em seguida, em 1975, especializou-se em Artes Gráficas no Litho Art Center, na cidade de Es-
tocolmo, Suécia, retornando para o Brasil em 1977 quando, nos anos subsequentes, iniciou a grafitar
pela cidade de São Paulo, utilizando-se de máscaras (que é o nome dado aos moldes vazados, sobre
o qual se aplica tinta spray), a “botinha”, a “luva preta”, os “óculos anos 50”, dentre outros, até chegar
ao grafite da “Rainha do Frango Assado”. E, em 1979, encontra-se com Hudinilson Junior e iniciam
grafites pelas ruas do centro paulista, numa clandestinidade, pois nesta época grafite e pichação eram
sinônimas. Ainda no ano de 79, juntou-se com um pernambucano chamado Túlio Feliciano e fez um
trabalho de arte postal usando xerox. Além disso, apropriou-se também das imagens de HQ (histórias
em quadrinhos) e da história das artes.

Segundo Silva-e-Silva, o graffiti “é inserido na história brasileira neste momento (Tropicália, 1967) em
que a representação coletiva era de ruptura com o passado, de busca por mudanças. Fortificando-se
a cada década [...] a participação dos intelectuais começou a legitimar o grafite como arte” (2008, p.
225). Citando Knauss, Silva-e-Silva relata a defesa que Carlos Drummond de Andrade faz à poesia do
tapume do grafiteiro Gilson de Abreu Marinho.

839
Figura 4. Gilson do giz grafitando o chão, 1977.
Fonte: letrastaquarenses.blogspot.com.br

Neste mesmo ano, 1977 Jean-Michel Basquiat começa a fazer grafites em prédios abandonados em
Manhattan (EUA), passando a ser mundialmente famoso a partir de 1980. Tendo tido uma carreira
meteórica, chegou a expor com artistas como Keith Harinr e Bárbara Kruger, e manteve, por muitos
anos, uma amizade com Andy Warhol, vindo a falecer em 1988.

A década de 80, começou com a I Exposição Internacional de Arte em Art-door, organizada por Da-
niel Santiago, poeta, e Paulo Bruscky artista multimídia, e foi realizada em Recife (PE), no ano 1981.
“A ideia foi retomada em 1983, pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo,
com o título de ‘Arte na Rua’, que juntou out-doors de 75 artistas brasileiros, dentre os quais Adir So-
dré, Anna Horta, Emanoel Araújo, Siron Franco, Carmela Gross e Júlio Plaza” (GINZBURG, 1992, p.
54). Realizada novamente no ano seguinte, desta vez ocorrendo simultaneamente em São Paulo, Rio
de Janeiro e Brasília.

O auge do reconhecimento advém do convite feito pela organização da Bienal de 1987, a grafiteiros
para expor seus trabalhos em suas galerias. Nesse evento encontraremos nomes como Alex Vallauri
(que faleceria neste mesmo ano), Waldemar Zaidler e Carlos Matuck.

Nos anos de 1988 e 1989, um grupo paulista de grafiteiros “Tupi Não Dá” recebeu um convite para
produzirem trabalhos no Centro Cultural Cândido Mendes e numa igreja em Sorocaba (SP).

Apenas na década de 90, concretiza-se uma maior descentralização do grafite nas demais regiões do
país, Centro-oeste, Norte e Nordeste.

E no ano de 2000, acontece o tombamento do conjunto de grafites produzidos por Datrino ou Profeta
Gentileza, produzidos entre os anos de 1960 até meados de 1990, ao longo do viaduto do Gasômetro,
nos bairros da Leopoldina e do Caju (RJ). Cada unidade possuindo aproximadamente dois (02) me-
tros quadrados.

Com características marcantes, Silva-e-Silva enumera o “modelo de exposição de sua obra, o modo
com que mantém a rigidez formal entre os painéis, e a fidelidade a temas morais” (2008, p. 226). Para
além desses aspectos estruturais de sua produção, há um ar realmente profético, pois tudo começou

840
quando, ainda empresário do ramo de vinho, Datrino ouviu vozes lhe dizendo que dali por diante se-
ria uma espécie de mensageiro da paz e do amor; daquele momento em diante, largou mulher, filhos e
neto para divulgar tocantes mensagens de amor e atos de gentileza, que acabou se tornando seu nome,
Profeta Gentileza (SANTOS, 2012).

Em 2010, aconteceu, em São Paulo, a I Bienal Internacional GRAFFITI FINE ART, entre os meses de
setembro e outubro daquele ano.

O graffiti no Nordeste nos aparece em meados de 1990. Por exemplo, em Pernambuco, no ano de
1999 vemos surgir do Projeto Brigada Hip Hop PE, vinculado diretamente aos demais elementos da
cultura de rua (dança, breaking, DJ e o graffito), permeando todo um processo de resgate da cidada-
nia de crianças e adolescentes, pois através do envolvimento com essas práticas culturais, acontece o
incentivo de articular esses jovens com os movimentos sociais.

Nas demais cidades do Nordeste começam a ocorrer eventos de incentivo e ampliação do graffiti. Na
Bahia, em 2011 aconteceu o Projeto Cultural Recongraffiti - 1º Circuito de Oficinas e Intervenções de
graffiti do Recôncavo Baiano. Enquanto isso, na Paraíba, o professor Pedro Nunes, da Universidade
Federal de Alagoas, está desenvolvendo em 2012, um trabalho na forma de projeto de extensão “Pro-
jeto Multimídia Graffiti: Visualidades Urbanas”, cuja culminância ocorrerá em junho daquele ano no
SESC-Centro, com exposição fotográfica de 60 fotos do próprio professor e quatro curtas, sendo um
documentário com duração média de 15 minutos, que vai tratar do movimento do graffiti em João
Pessoa. Na ocasião será lançado também um Website que tratará exclusivamente do graffito (portals-
nn.com.br, acessado 27 fev. 2012).

4. ENCAMINHAMENTOS

Teremos como objetivo geral desenvolver um estudo teórico que apresente o graffiti, aqui em Teresi-
na, como elemento de intervenção urbanística contemporânea.

Para atingir aquele objetivo iremos desenvolver alguns objetivos específicos, como inserir Teresina
como cidade emergente, ímpar no seu processo lento de verticalização e gradativa inserção na era
contemporânea, tentando definir lhe uma identidade como cidade/capital receptora de intervenções
plástico-urbanísticas, com a especificidade do graffito.

Outro aspecto que será abordado é o comportamento urbano dos graffiti, especificamente de um
grafiteiro, produzido entre os anos de 2003 a 2012. Além de descrevermos a história do graffito no
Piauí, em Teresina.

E o último objetivo específico será selecionar quatro graffiti para análise iconográfica e iconológica.

1. Caracterizar Teresina como cidade receptora de intervenções plásticas, especificamente o graffito;


2. Identificar os graffiti de Manin, entre 2003 até 2012;
3. Mapear, em planta baixa a distribuição das obras pela cidade;
4. Descrever iconológica e iconograficamente alguns graffiti de Manin.

841
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda em processo de estudo e averiguação das hipóteses levantadas, compreendemos que muito
estudo será necessário para dar provimento da articulação das artes de rua com a urbe nesse início
de século por demais impregnado de tecnologia e ilhas pessoais intermediadas por celulares e redes
sociais que, ao mesmo tempo que conecta os indivíduos virtualmente, distancia-os do convívio corpo
a corpo. Aprender mais sobre a arte de rua pode ser um caminho, uma ponte para se reaprender a
olhar a cidade e suas artes.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Cosac & Naify Edições, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
BRAZ E SILVA, Ângela Martins Napoleão. Lua, sonho, ruas, histórias, tudo Teresina. O Dia, Teresina, 16 ago.
2007, p. 2-3. (Encarte Comemorativo do aniversário da cidade)
BOSI, Alfredo. (Org.). Plural, mas não caótico. In: Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Editora
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CATOGRA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ:
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MEIRA, Marly Ribeiro, Educação estética, arte e cultura do cotidiano. In: PILLAR, Analice Dutra (Org.). A
Educação do olhar no ensino de arte. Porto Alegre: Mediação, 1999.
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Teresina: Harley S/A Gráfica e Editora, 2002.
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pinas, SP: UNICAMP, 2000.
RIBEIRO, Efren. Primeira amostra de grafiteiros. Disponível em: < http://cidadeverde.com/noticias/54203/ar-
tes-de-marco-inova-e-realiza-1-mostra-de-grafiteiros-de-teresina>. Acesso em 05 out. 2010.
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br/10_A_traje>. Acesso em: 06 out. 2010.
WEBSTER, Maria Helena (Org.). A metrópole e a arte. São Paulo: Prêmio Banco Sulamerica, 1992.

842
Alguns grãos poéticos
em outros retalhos
Viga Gordilho

1. BTS EM RETALHOS?

Considero interessante responder a esta questão, para melhor compreensão do projeto que abordare-
mos. Com este propósito, gostaria de inicialmente contextualizar o vocábulo “retalhos”, considerando
um enfoque polissêmico, ou seja, como uma parte que se tira, que se corta de uma coisa – especial-
mente de um tecido –, tornando-se um fragmento, um pedaço, mas também, com o sentido do “reta-
lhamento” simbólico da BTS - Baía de Todos os Santos.

Sob estas vertentes, o projeto ”BTS em retalhos” buscou tecer esses “fragmentos”, dissolvendo frontei-
ras entre o pensar, o sentir e o fazer entre cinco comunidades que margeiam a BTS – Baiacu, Itaparica,
Matarandiba, Coqueiros e Ilha de Maré.

Com essa proposta, as práticas de ensino, pesquisa e extensão ultrapassaram os muros da universi-
dade e foram compartilhadas através de ações poéticas em coletivos que potencializaram o contexto
geográfico, social, político, em seu próprio ambiente natural.

O cronograma geral do projeto “guarda chuva” BTS, concebido em 2006, no seu contexto metodo-
lógico, contempla um planejamento longitudinal demarcado em seis ondas, com duração de cinco
anos cada. Compreendendo um período total de 30 anos, portanto, o Projeto BTS se encerrará em
2038. Cada onda do projeto possibilita uma atuação em diversas áreas do conhecimento, referente
a estudos no campo das Ciências Exatas e Humanas. Desde a sua formatação, abraça um caráter
multi-institucional e multidisciplinar, fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
da Bahia (Fapesb), numa exploração investigativa de atividades concernentes a um universo plural
definida como Eixos. (GORDILHO, 2013, p. 18).

Integrando, então, a primeira onda – 2007 a 2012 – o Eixo de Artes, composto por membros do
Grupo de Pesquisa em Artes Visuais MAMETO275, sob a minha coordenação, definiu os princípios

275. Grupo de pesquisa MAMETO – Estudo da MAtéria, MEmória e conceiTO em poéticas visuais contemporâneas, certificado pelo CNPq.
O nome mameto (banto) significa pessoas importantes na hierarquia religiosa congo-angola, também conhecidos como MACOTA. O grupo
atua na pesquisa prático-teórica da matéria em trânsito com a memória, na busca de definição de conceitos como elementos inerentes ao
processo criativo. É constituído por doutores, doutorandos, mestres, mestrandos, monitores e bolsistas PIBIC dos seguintes estados: Bahia,
Pernambuco, São Paulo e Paraná: Arthur Scovino, Conceição Andrade, Didonet Thomaz, Hugo Fortes (Vice-líder), José Henrique Barreto,
Lais Andrade, Liege Galvão, Lucimar Bello, Luiz Cláudio Campos, Marcillene Ladeira, Maria Luedy, Mike Sam Chagas, Vladimir Santos,
Suzana Azevedo, Vladimir Oliveira, Viga Gordilho (Líder) e ZedeRocha. Disponível em: <http://mametobts.blogspot.com/>

843
norteadores, agregando durante o processo de trabalho, pesquisadores residentes em Salvador, São
Paulo, Paraná e Pernambuco, estudantes da Pós-Graduação e da Graduação.

Tomamos assim, como âncora, o pensamento da artista pesquisadora Fayga Ostrower (1987, p. 32),
quando ela diz que “[...] o pensar só poderá tornar-se imaginativo através da concretização de uma
matéria, sem o que não passaria de um divagar descompromissado, sem rumo e sem finalidade”.

Com essas perspectivas, o objetivo principal foi definido: realizar pesquisas e atividades de ensino e
extensão, tendo como recurso a linguagem artística, a partir dos materiais recolhidos no cotidiano,
em interface com o conjunto de caracteres próprios e exclusivos do entorno das comunidades escolhi-
das na Baía de Todos os Santos, tendo a presença da “água-cidade” como referência do lugar.

É significativo pontuar que esta presença de “água-cidade” como referência de lugar é relativa às co-
munidades que vivem às margens do oceano, mangues ou rios e precisam se deslocar constantemente
para a cidade. Essa dicotomia nos levou a um conceito inicial para a proposta do Eixo de Artes: água
– cidade: ocultações e espelhamento. (GORDILHO et al., 2011, p. 413).

Escolhemos assim a Ilha de Itaparica como primeiro lugar para aportarmos, considerando também a
curta distância que a separa de Salvador.

Iniciamos as ações artísticas em Baiacu, um dos nove distritos que conformam uma antiga vila de
pescadores (Figura 1), situada na contracosta da Ilha de Itaparica. Pertencente a Vera Cruz.

Figura 1. Visão da Vila dos pescadores. Porto I,


Baiacu.
Foto: Gal Meireles.

Baiacu reflete a vocação matérica da comunidade; no sentido de que os habitantes manuseiam


materiais: tecem redes para a pesca, amassam o barro da construção de casas, retiram carnes da
áspera textura de mariscos e crustáceos para o alimento diário. Suas memórias povoam-se destas
imagens, vincadas nas portas dos paeiros, que são pequenas cabanas usadas para guardar o mate-
rial de pesca.

A partir dessas reflexões percebemos que todos os envolvidos no processo criativo poderiam con-
ceber a proposta entrecruzando a raiz cultural com a sua realidade, nosso grande desafio, o que nos
reporta Ana Mae, quando se refere a Suassuna, no seu artigo “ Entre Culturas: matrizes populares”:

844
Como disse Suassuna em uma entrevista, o Movimento Armorial, batizado nos anos 70, “se destinava
a lutar contra um processo de descaracterização e de vulgarização da cultura brasileira [...]. Ao mes-
mo tempo procurávamos uma arte erudita brasileira, baseada nas raízes populares da nossa cultura”.
Isso acontecia em um momento em que o “Alto Modernismo” dominava, o formalismo era o credo
crítico e a palavra “raízes” soava pior que pornografia. Antes de morrer, a vanguarda estrebuchou e
condenou Ariano e seus seguidores ao inferno. (...) Horrorizou a muitos. (BARBOSA, 2008, p. 885).

Foi com base nestes enunciados que o Porto I - Baiacu tornou-se determinante para adaptarmos as
nossas aspirações aos interesses da comunidade, pois no processo da realização da primeira oficina
emergiu na fala da comunidade a perspectiva da construção da macroponte na BTS para ligar Salva-
dor a Itaparica. Em conseqüência, outro questionamento veio à superfície: o que pensam as comuni-
dades que vivem no seu entorno? Na tentativa de responder à questão, formulou-se, a seguinte per-
gunta para ser respondida através do universo imagético: qual a ponte que você gostaria de construir?
Dessa forma, em Baiacu, e nos outros quatro portos nos quais o grupo ancorou, as respostas foram
registradas plasticamente sobre retalhos de pano de vela (painéis) medindo 1,20 m X 1 m.

Foram nestas perspectivas que, em Baiacu, visualizou-se a possível ponte material, macro, e outra
ponte imaginária onde grupos heterogêneos da comunidade poderiam apropriar-se de materiais re-
colhidos nos seus ambientes e construírem suas próprias pontes, cunhadas como “retalhos-ponte”
- painéis subjetivos, que indiciaram uma interação com o mundo, como nos situa mais uma vez, a
artista plástica e arte educadora Fayga Ostrower.

Cada materialidade abrange de início, certas possibilidades de ação e outras tantas impossibilidades.
Se as vemos como limitadoras para o curso criador, devem ser reconhecidas também como orien-
tadoras, pois dentro das delimitações, através delas, é que surgem sugestões para se prosseguir um
trabalho e mesmo para se ampliá-lo em direções novas. (OSTROWER, 1987,32).

Após esta primeira ancoragem em Baiacu, mapearmos os outros quatro portos em que iríamos con-
tinuar a realizar o projeto, visualizados na Figura 2.

Figura 2.– GORDILHO, Viga. Mapa desenhado em formato


A4, onde se pode visualizar, um traçado imaginário da ponte
física que se pretende construir e as localizações dos cinco
portos de ação do projeto “BTS em retalho”: I-Baiacu; II - Ita-
parica; III – Matarandiba; IV- Coqueiros; V- Ilha e Maré.

Segundo Milton Santos, (2001, p. 39) “O mundo é o que se vê de onde se está”, pode-se dizer, sob
esse pensamento, que, navegando pelas águas da Baía, ao ancorarmos em cada lugar, encontramos
aspectos singulares de manifestações populares inseridas em distintas paisagens, que nos fizeram

845
rever nossos próprios passos, e aprender a caminhar com cumplicidade, mas sem perder de vista a
liberdade criadora da arte.

Com essa premissa, nos caminhos, foram selecionadas terras coloridas, búzios, conchas, mariscos,
fibras etc., matérias estas carregadas de significados que constituíram o fio condutor dos trabalhos,
conforme ilustram as Figuras 3, 4 e 5.

Neste percurso, a ponte imaginária indiciou um recorte do pensamento humano atual no que diz
respeito a estes pequenos lugarejos da BTS, onde gerações distintas vivenciaram um processo de cria-
ção coletiva, no qual todas as partes aprenderam com seus pares, sem hierarquização de saberes. Foi
também fundamental para o desenvolvimento do projeto, como ilustra a Figura 06, apresentar, em
todas as comunidades, mostras parciais

Figura 3. Porto II, Itaparica: o grupo coordenado por Viga Figura 4. Porto III, Matarandiba: trazendo à tona o
Gordilhocom a participação de Dete e Jaciara universo da concha como temática
Foto: Laís Andrade. Foto: Railson Oliveira.

Figura 06. A ponte


Figura 5. Porto IV, Coqueiros: “Retalhos-ponte” pintados imaginaria que se
com as tintas obtidas no local. Da esquerda para direita: Ana sonha para atravessar
Fraga, Lucimar Bello, Gabriela Santana e Viga Gordilho o mar. Visão de uma
Foto: Railson Oliveira. das mostras parciais.
Foto: Gal Meireles.

A participação do grupo MAMETO CNPq no projeto BTS colaborou tanto para o desenvolvimento
e valorização da cultura local, incentivando a prática dos saberes populares, como também poten-
cializando a investigação coletiva e as pesquisas individuais dos artistas-pesquisadores. Este foi um
fator importante, que seguramente, nos motivou a criar “Outros retalhos”, promovendo demais com-

846
partilhamentos, focados nas imagens indiciadas no nosso percurso, as quais ilustram o livro BTS em
retalhos: ações poéticas em cinco portos da Baía e Todos os Santos: Baiacu, Itaparica, Matarandiba,
Coqueiros e Ilha de Maré, publicado pela EDUFBA, em 2013.

2. ALGUNS GRÃOS POÉTICOS

Neste prisma, 3 anos se passaram, após a edição do referido livro e de alguns artigos publicados sobre
o projeto “BTS em retalhos”. O grupo MAMETO analisando a significativa experiência em campo,
decidiu, que cada artista pesquisador poderia buscar uma matriz embrionária na experiência, em
interface com as poéticas individuais.

Para este propósito, o grupo propôs o projeto, “PROCESSOS CRIATIVOS: Alguns grãos poéticos em
outros retalhos”, como ilustra a Figura 7.

Figura7. Estudo inicial do cartaz para o projeto, criado por Liege Galvão.

Com estas possibilidades, cada artista se apropriou de alguma foto, como “grão”, promovendo a fe-
cundação de distintas linguagens inerente a cada investigação.

Como podemos observar na Figura 8, a artista mineira, Lucimar Bello, no seu processo de criação,
pensou na configuração das rendas de bilros encontradas no Porto V - Ilha de Maré, e com expressi-
vos desenhos em cor vermelha riscou a seguinte reflexão:

Rendas rendam redes, rendem grãos.


Rendas ajustam sementes, ajuntam artistas-pesquisadores.
Rendas granulam bagos, granam trabalhos d’arte.
Rendas migram migalhas de inteirezas d’arte.
Rendas de papel, brancos e vermelhos, conversam com um varal de rendas que transpassam mares
da Bahia de Todos os Santos.
(BELLO, 2016, apontamentos da artista).

847
Figura 8. artefatos se renda de bilro da Ilha de Maré e Estudos de Lucimar Bello.

Já José Henrique Barreto e Luiz Cláudio Campos, reportando-se a rostos infantis, bordaram sobre
couro pergaminho. As peles trazem vestígios de pelos, cicatrizes adquiridas ao longo da vida e marcas
de manipulação do couro no curtume como elementos de diálogo entre o real e o imaginário, tendo
também como “grão” poético a renda de bilro. Assim criaram auto-retratos que, segundo os artistas,
a obra

“[...] traz à tona o simbolismo do enlace, da união, da aproximação: o bordado é um agente de liga-
ção. Como signo, remonta no espaço da obra de arte, a idéia de “história familiar” [...]. A imagem
do bordado nos transporta às nossas raízes mais íntimas. Essa dupla resposta dada pelo bordado às
carências simbólicas de nossa época ilustra a relação entre identidade e intimidade, recorrente no
discurso crítico sobre a Arte de nossos tempos: o artista contemporâneo constrói sua identidade
mergulhando em si próprio, na sua vida, história pessoal e subjetividade. (BARRETO e CAMPOS,
2016, apontamentos).

Figura 9. Artefato de renda de bilro e desenho bordado sobre coro pergaminho.


Foto: Luis Cláudio Campos e José Henrique Barreto

A obra de Conceição Fernandes, “Sim métrico, ou não?”, vem se configurando em pontos de cor
sobre corpos modulares cerâmicos, a partir da observação cuidadosa do livro em questão, que traz a
imagem do “retalho-ponte” elaborado em oficina artística pelas artesãs Lúcia e Maria Auxiliadora da
Ilha de Itaparica. Assim percebe a artista, sobre a referida imagem singular, para chegar mais perto
da sua totalidade poética:

848
Os pequenos módulos circulares, punhado de grãos de areia cerâmicos, por sua vez texturados por
pequenas áreas irregulares durante sua modelagem, como pequenos espelhos d’ água ao vento, vêm
sendo parcialmente tingidos. Serão exibidos em conjunto sobre um círculo de vidro de 70 cm de di-
âmetro, buscando – se trazer reflexões sobre um cruzamento de linhas que se espelham em direções
variadas. (FERNANDES, 2016, apontamentos da artista).

Figura 10. Conceição Fernandes com Lucia e Maria Auxiliadora durante a realização do retalho -
ponte e seu corpo modular cerâmico.
Foto: Lais Andrade

A obra de Laís Andrade, “Embalando sonhos”, está sendo estruturada em uma embalagem octogonal
transparente, encimada com um filtro dos sonhos rendados com linhas brancas e amarelas. Cada um
dos seus oito lados aborda, em seus grafismos, oriundos do fogo, conceitos relacionados à embala-
gem, que, segundo a artista, traz o sentido de embalar, proteger, quanto no sentido de embalar, ninar.
A obra aborda referências do livro BTS, a qual indicia uma ponte-retalho construída por um grupo
com crianças em Matarandiba, conjugada a uma outra que ilustra com o traje artístico, criado a partir
das rendas da Ilha de Maré. Ainda nas palavras da artista; “O conceito da espiral foi muito importante
em meu processo criativo, como a espiral desenvolvida no retalho-ponte com os alunos da escola
Juvenal Galvão, em Matarandiba, assim como o conceito da casa que embala o caracol, símbolo do
desaceleramento da infinita correria cotidiana”.

Figura 11. Laís com as crianças em Matarandiba e um detalhe da sua obra


Fotos: Railson Oliveira e Lais Andrade

Trago também um recorte das minhas inquietações referentes o desenho de casas que sempre apa-
reciam nos retalhos-ponte. Durante todo o processo de trabalho, observei que talvez essa fosse a
principal ponte - desejo das pessoas de todas as comunidades em que ancoramos. O desejo por casas

849
próprias, mais seguras, mais resistentes, rebocadas e coloridas. Este foi o meu “grão poético”, para ela-
borar uma obra com fragilidades, delicadezas, transparências, e suas sombras, tecidas, bordadas com
esperança e fé. Com esta reflexão, busquei matérias que conceituassem a proposta, trabalhando com
fibra, fotografia, palavra, e lã tingidas com as cores das águas da Baía de Todos os Santos.

a construção de lugares do imaginário

Figura 12. Detalhes de retalhos-ponte onde aparecem casas e


da obra de Viga Gordilho.
Fotos: Viga Gordilho

A imagem “paisagem neblínea”, que ilustro a seguir, foram extraídas do “diálogo entre as artistas”, Candi-
ce Didonet e Didonet Thomaz a respeito da performance “Doninhas da solidão”. A imagem fotográfica
mostra a observação do lugar da performance, na Ilha de Maré, desde o ponto de vista do terraço, de
cima para baixo, momentos antes da cessação da chuva que caiu, das 12h às 13h aproximadamente.

Originalmente, a fotografia é colorida, mas, Didonet Thomaz a apresenta em preto e branco na pe-
quena coleção composta por quatro impressões em pigmento mineral sobre papel de algodão Canson
Rag, pb, 21cm x 30cm (cada uma).

Figura 13. THOMAZ, Didonet. Pequena coleção “Paisagem neblínea”.


Fotografia 21cm x 30cm (cada uma).
Performance Doninhas da solidão: Candice Didonet e Didonet Thomaz
Memorial de pesquisa: arquivo

Apresento ainda neste artigo uma reflexão da discente de Graduação Juliana Mendonça, que também
toma como “grão”, as cores das águas da BTS, reportando-se ao seu objeto de pesquisa - heroínas de his-
tórias em quadrinhos. Neste recorte, ela se auto retrata, apresentando-se como uma heroína que luta em
defesa das águas da Baía de Todos os Santos, onde estas banham o seu corpo em pinceladas aquareladas.

850
Finalizando, como não será possível referenciar as obras dos 25 artistas envolvidos com a proposta,
trago uma reflexão da artista pernambucana, Suzana Azevedo sobe a sua obra “As roupas”:

Encontro o conteúdo das roupas situados na memória. Onde estão os bebês que vestiram sua nudez
com o ar salgado da Ilha de Maré? As roupas trouxeram sua trama antiga, seus bordados e rendas
para povoar a memória dos costumes. Mas os corpos... as almas... se escondem no tempo nu da Ilha
de Maré! (AZEVEDO, 2016, apontamentos).

Figura 14. Detalhe da obra “As roupas”


Foto: Suzana Azevedo

Assim sendo, espera-se que este relato motive outros grupos de artistas pesquisadores a ancorarem
em mais portos, para conhecerem as nossas raízes culturais, germinarem novas poéticas visuais, pa-
rafraseando Ana Mae, mas em tempo gerúndio, extrapolando, interterritorializando, misturando, lu-
tando contra o exclusivismo hegemônico, contra a ditadura do código europeu e norte-americano,
dissolvendo os muros da universidade, pois ela emana da sociedade e a ela pertence.

Referências

BARBOSA, A. M.. Entre Culturas: matrizes populares. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NA-
CIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 17., 2008, Florianópolis. Anais... Florianópolis:
ANPAP 2008.
GORDILHO, V. (Org.). BTS em retalhos: ações poéticas em cinco portos da Baía e Todos os Santos: Baiacu, Itapa-
rica, Matarandiba, Coqueiros e Ilha de Maré. Salvador: EDUFBA, 2013.
GORDILHO, V. et al. Ocultações e espelhamentos: processos criativos em oficinas realizadas pelo Núcleo de Arte
no Projeto BTS. Salvador: EDUFBA, 2011.
______�������������������������������������������������������������������������������������������������
. �����������������������������������������������������������������������������������������������
Programa de pesquisa Baía de Todos os Santos: resposta à complexidade das demandas por conheci-
mento. Rev. Virtual Quim, v. 4, n. 5, p. 497-516, out. 2012. Disponível em: <http://www.uff.br/rvq>. Acesso em:
03 maio 2016.
OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2001.

851
Coletivo artístico: artivismo
e arte-intervenção urbana
por meio de projeto de extensão
Judivan José Lopes

INTRODUÇÃO

O Instituto Federal de Alagoas/IFAL – Campus Arapiraca oferta dois cursos de ensino técnico de nível
médio integrado: Informática e Eletroeletrônica. Atende aproximadamente 600 alunos distribuídos nos
quatro anos dos cursos. São alunos formados por professores de todas as áreas do conhecimento e oriun-
dos de vários lugares do País. O Campus tem ainda um corpo gestor composto de profissionais ímpares
para a localidade, ou seja, não há escolas na região com um organograma funcional como esse, compos-
to de: Diretores Geral, Acadêmico e Administrativo; Coordenações de Pesquisa, Extensão, Pedagógica;
Cursos Técnicos, Pós-Graduação; Programas de Governo (Pronatec e Profissionário); Serviço Social, Psi-
cólogo, dentre outros. E vários programas voltados a permanência e conclusão da formação profissional.

O IFAL é uma escola técnica com diversos níveis de formação, do médio técnico a pós-graduação,
nas modalidades presenciais e a distância, porém, pela condição de sua criação sem instalações pró-
prias, com sua estrutura física ainda em construção comprometem de certa forma o bom andamento
de suas ações didáticas. Por essa condição, as ações de ensino-aprendizagem são desenvolvidas em
prédios pessimamente adaptados e improvisados, com os limites dessas instalações, só foram con-
templados com laboratórios as disciplinas técnicas: informática e eletroeletrônica. Com isso, os pro-
fessores das demais áreas buscam alternativas diversas para dar êxitos as suas práticas pedagógicas, a
disciplina de arte encontrou caminhos nos projetos de pesquisa e extensão, como nas visitas técnicas
desenvolvidas em galerias e museus. Nada de estranho e exclusivo, já que as ações pedagógicas da
escola são baseadas no tripé ensino-pesquisa-extensão, mas, no entanto, não existem espaços apro-
priados para o exercício do ensino-aprendizagem da arte como orientam a literatura específica da arte
educação contemporânea, fundadas na relação tríplice: produzir-apreciar e fruir/contextuaizar arte
(MARTINS, 1998.), (BARBOSA, 2005) e outros.

Arapiraca é um município do interior de Alagoas, localizado na mesorregião do Agreste, no centro


geográfico do estado com 351 km2 de território, a 128 km de Maceió e estima cerca de 231.000 habi-
tantes, segundo dados do IBGE de 2010.

852
A cidade com pouco mais de 90 anos, é de origem rural e há pouco mais de duas décadas está em
transição para urbanização metropolitana, cabendo o título de cidade que mais cresce no Brasil, cres-
cimento vertiginoso por consequência da mudança do perfil econômico, de agrícola, abandonando a
cultura fumajeira que sustentou a economia por décadas, para consolidar seu ascendente crescimento
com a adoção do comércio e serviço como estratégia e meio de desenvolvimento.

Para Arapiraca convergem, por várias necessidades, lazer, saúde, educação e emprego, os 14 pequenos
municípios circunvizinhos elevando o fluxo populacional para aproximadamente 500.000 pessoas, o
que a torna em um centro metropolitano movimentado. O município conta com universidades, uma
estadual (UNEAL) e outra federal (UFAL), além de diversos centros universitários, mas nenhuma das
instituições educacionais de nível superior ofertam cursos relacionados a formação artística, sejam
bacharéis, tecnólogos ou licenciaturas.

A cultura local se caracteriza pela suplantação da música forró pé de serra, cultura popular, folguedos
e outras tradições pelos produtos da indústria cultural, dentre as tradições, decorrente da principal
fonte de econômica do passado, destacam o rito ‘destiladeiras de fumo’ com suas cantorias de ameni-
zação do sofrimento e dor provocado pela labuta sobre a terra sob o sol escaldante de quase 40 graus,
é escassa a oferta de outras artes, em se tratando de artes contemporânea é quase inexistente, a na ci-
dade dois museu temático, o Museu da Mulher e o Museu Zezito Guedes, ambos expõem permanen-
temente seus acervos e com raras exposições temporárias. A maioria dos artistas são autodidatas e os
trabalhos versam temáticas figurativas, as pinturas geralmente óleo sobre tela, esculturas de madeira e
pedra calcárias, tapeçarias de paredes (aplicações) com representações da vida cotidiana, campestres
e bucólicas, sátiras do presente e passado nostálgico e recente.

Há nesse meio, da geografia metropolitana três aldeias indígenas e algumas comunidades quilombolas,
mesmo as riquezas de suas tradições como o Toré, Ouricuri, Pintura Corporal, Maculelê, Quilombo, etc. são
ignoradas em todos os aspectos. São comunidades invisíveis para a grande população, geralmente lem-
bradas nas festividades provocadas pelos feriados comemorativos dos dias da consciência negra e do índio.

Os alunos do IFAL advêm desse contexto culturalmente miscigenado: caipiras, caboclos, suburbanos,
globalizados pela internet. O grupo de arte em questão, “ArtVirus: grupo de art-intervenção”, é forma-
do por uma representação proporcional de jovens oriundos desses recantos dominados por políticas
coronelistas, comunidades com baixos índices de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), com
níveis de pobreza entre 50% e 70%, baixa escolarização e elevado grau de analfabetismo, a cidade de
Arapiraca tem a 21a colocação nos índices de homicídios em 2012 e 11a colocação em 2014, com taxa
de 84,7 homicídios por cada mil habitantes (Exame.com, 2014 e 2015), com todas essas variáveis,
ainda assim, esses jovens são prenhes de desejos de ascensão cultural, econômica e social.

É nesse contexto, com esses sujeitos, que o “ArtVírus” surgiu em 2014 como um projeto de extensão
dentro do programa institucional ArtIfal da Pró-Reitoria de Extensão do IFAL. Sua formação inicial
se deu a partir do ajuntamento de 06 alunos interessados em arte, jovens de 15 a 19 anos dos cursos
ofertados no Campus, orientados por um professor mestre na área. Em 2015, a formação foi ampliada
para 14 componentes de 15 a 20 anos, 12 alunos e 02 egressos, já universitários, um deles em Artes
Visuais e outro em Engenharia Civil.

853
O grupo nasce e se desenvolve com os objetivos de entrelaçar produções artísticas contemporânea e
fazer intervenções na paisagem urbana da cidade. Com o intuito de atingir tais objetivos formam um
repertório artístico fundado em estudos teóricos conceituais da arte contemporânea, principalmente
arte pública urbana, adota postura de produção coletiva, utiliza recursos materiais diversos e interfere
no espaço de convivência pública da cidade com sua arte. Enfim, realiza obras de arte inquietantes,
com temas da atualidade local capazes de provocar espantos, indignação, reflexão, questionamentos
nas pessoas, convidando-as a olhar a realidade desvelada em suas obras.

1. DESENVOLVIMENTO

Os caminhos trilhados nos dois anos foram recheados de muitos encontros e desencontros, estudos,
debates, comprometimentos, disciplina, trabalho, muito trabalho. Desde o início com esses jovens do
interior, que não tinham contato significativos com a arte, houve o cuidado para uma orientação de
formação com vivências e teorias da arte, e teve como consequência uma formação compartilhada
de saberes diversos da cultura artística, espaços de aproximação com objetos artísticos, experimentos
de técnicas, estudos textos, debates de ideias e de desenvolvimento de produção criadora. Outros
cuidados voltavam-se para a população, com as expectativas da importância poderia dar às apresen-
tações, a invasão dos logradouros, então refletir sobre uma prática medianeira era fundamental para
a aproximação entre arte e público para se perceber como isso poderia acontecer e que procedimento
poderiam ser adotados.

No começo da conversa, para a maioria dos alunos, arte contemporânea é qualquer arte produzida
no tempo em que vivemos, sem se importar os estilos, técnicas, suportes, linguagens, mas com o
processo de formação marcada com práticas e reflexões, com o olhar sobre as rupturas artísticas ao
longo da história, a produção de artistas contemporâneos e a percepção da constante atualização da
linguagem visual artística, irá provocar nos componentes do grupo possibilidades de escolhas por
identificações com discursos visuais mais alternativos, julgados por eles mais arredios, inovadores,
sobretudo “subversivos”.

Escolher a atualidade do dialogo pela arte os faz desejosos da produção de arte contemporânea
e aumenta a fome por essas possibilidades artísticas. Inicialmente os ready-mades de Duchamp
e Seric Shoba, as intermídias de Nelson Leiner, a Pop Arte e Andy Warhol, os grafites de Banksy,
Os Gêmeos, os parangolés de Hélio Oiticica dentre tantos outros foram os alicerces fundamentais
para a formação do repertório artístico, educação do olhar que viriam guiar as mãos e os imbri-
camentos de pensamentos, sensações e emoções na elaboração das próprias criações. A compre-
ensão da contemporaneidade da arte só pode ser sustentada conhecendo-a, nesse sentido parti-
cular: “Arte contemporânea o sentido de um modo particular da arte, um modo de fazer-se arte,
um estilo, uma linguagem – dessa arte que saiu da parede e do plano demarcado da tela de pano
para desdobrar-se em todos os suportes e ‘apresentar-se’ mesmo ali onde não há suporte algum”
(COELHO, 2002 p. 14).

Várias questões nortearam essa busca da arte contemporânea. Se procuro uma arte que não é mais
pintura óleo sobre tela, em sendo pintura o que será? Que não era mais escultura de pedra ou madei-
ra, se é tridimensional o que será?

854
[…] traços e imagens sobrepõem-se em palimpsestos: inscrições “selvagens” depositam-se sobre
as oficiais, que lhes servem apenas como suporte; intervenções sucessivas de grupos diferentes,
tentando contestar ou completar umas às outras, tecem uma espessa trama de desenhos, palavras
ou rabiscos, que se funde com os cartazes publicitários, as propagandas políticas, as proclamas
religiosas, os sinais de trânsito, os nomes das ruas. Como ver essa trama num momento em que
os centros e as periferias de nossas cidades são, mais do que nunca, lugares de trânsito, onde se
travam batalhas pelo direito à moradia ou às condições de moradia; redutos das culturas mino-
ritárias, das misturas sociais e étnicas, espaços de passagem entre religiões múltiplas e laicidades
desgastadas? (MELENDI, 2016)

As rupturas artísticas apontavam múltiplos caminhos, as produções dos artistas, nas últimas décadas,
inspiravam os desejos dos modernistas como o equilíbrio estático, e as permanências dos materiais
para o desenvolvimento e apuramento da linguagem artística (DORFLES,1992) geraram incômodos.
A busca era pela contínua alternância de cosmos e caos, uma arte que provocasse incomodo, mas que
ao mesmo tempo promovesse uma empatia, um elo de identificação, de significação, em parte João
Spinelli trata, desse conceito. “A arte pública pode ser considerada como um mediador entre desejos.
O do artista, que, de um lado, deflagra a constituição formal da obra, e o do público receptor, que
anseia pelas formas artísticas para realizar uma espécie de manobra visual da sua vida simbólica”
(SPINELLI. 1999, p.11).

Como fazer essa manobra? Como olhar o entorno com os enfrentamentos do povo violentado pelos
poderes dominantes e tornar isso símbolo? Que arte pode intercambiar ideias, movimentos, materiais
e linguagens que não se enquadrem em um único paradigma? Facilita, se entender que “a arte deve
desafiar e ampliar os significados da palavra público para atingir o público não identificado com a
classe dirigente, ... Se preocupar com as injustiças e conflitos esquecidos ou camuflados pela maioria
das instituições de poder” (BRENSON, 1998.). Compreensões como essas despertaram o desejo de
intervir nesses espaços assujeitados e mobilizaram interpretações diversas nas cabeças acostumadas a
ter a mesma linha de raciocínio. Percebe-se que a arte de intervenção urbana possibilita o desenges-
samento das ideias estáticas e pode ser a melhor alternativa para ocupar estes espaços públicos – ruas,
praças, escolas e museus, bem como transformar o público no suporte da arte e proporcionar intera-
ção com as pessoas que ali transitam.

As dezenas de encontros sabáticos foram de estudos teórico-práticos de forma coletiva, isso sustentou
o grupo e fortaleceu o coletivo ao longo de 2014 e metade de 2015. No primeiro ano, foram desenvol-
vidas 5 intervenções, dentre elas:

1. Instalação artística: “Por baixo do Pano sobre Tapete Vermelho”, representativa do elevado nú-
mero de homicídios em Arapiraca. Dois Cadáveres foram expostos nas praças centrais da cidade,
no Museu Zezito Guedes e nas ruas de Goiás/GO durante o Festival de Arte de Goiás. (Veja a
Figura 1.). Essa instalação preparada para ser montada em qualquer ambiente urbano, composta
por duas esculturas de tecido e gesso do tamanho natural humano, uma do sexo masculino e
outra do sexo feminino, representam corpos caídos e ensanguentados, feridos a projeteis de arma
de fogo, bastante mimético, ladeados por dezenas cruzes e recortes de jornais, sites e bloggers de
notícias policiais, com matérias e fotografias de vítimas da violência, sobre uma faixa longa de
tecido vermelho.

855
2. Performance “Votos de Palhaço”, espetáculo de 20 segundos sobre a faixa de pedestre. Dezenas de
apresentações nas vésperas das eleições, em que 5 palhaços mímicos questionam: “Quanto vale seu
voto?”. (Veja Figura 2.)

Figura 1. Instalação: “Por Baixo do Pano Sobre o Tapete Vermelho”. Arapiraca, ArtVírus, 2014.

[...] ao se pensar em arte de rua, há de se considerar sempre, além do produto artístico, seja um lam-
be, grafite ou pichação, a experiência do artista ao realizar o seu trabalho e também a experiência
do observador que irá de alguma forma se relacionar com aquele trabalho. Artista e transeunte, com
seus corpos, experimentam a arte e a cidade fisicamente, esse é o contexto da arte de rua, uma “arte
contextual”. (ARDENNE, 2006.)

Arte na rua é por si o manifesto da resistência, são os vestígios da experiência que subverte, insurge
emanada da potência criativa em sintonia com o fluxo de quem perambula, são indícios da resistência
subjetiva que se materializa no passeio público a fim de reivindicar uma ordem ainda não alcançada.
É o desejo do andarilho apreciador surgido das catarses dos artistas em contraponto ao consumo, ao
modo de vida capitalista e a ideia de felicidade e bem-estar. Assim com a “cidade genérica é a cidade
liberada do cativeiro central, da camisa de força da identidade [...] ela é nada senão uma reflexão da
presente necessidade e da presente habilidade. (KOOLHAAS, 2010). O homem que a habita é genéri-
co, impessoal, cativo dos sistemas de poderes que não permite empoderamentos. A arte subverte essa
ordem e conduz tanto o artista como os interatores/apreciadores.

O processo artístico da arte no espaço urbano vai além de conceitos estéticos, funcionais ou materiais
e está muito mais próximo a questões de criação e derivação de sentidos a partir da experiência de
quem cria e de quem compartilha o espaço urbano.
Nesse aspecto, a arte de rua – uma arte praticada fora do circuito tradicional da arte e que privilegia

856
a experiência artística, seja a experiência criativa do artista, seja a experiência sensível e às vezes tam-
bém criativa do espectador – pode ser entendida como uma “arte contextual”. (NAVARRO, 2016).

Diferente do ano anterior, o ano de 2015 foi marcado pela autonomia do processo criativo dos mem-
bros do grupo, com os tons da temática, materialidade e linguagens semelhantes à produção do ano
anterior, porém mais intensa e diversificada, os componentes produziram também obras individuais
(Veja figuras: 4 e 5.) para exposições em ambientes fechados e começaram a escrever sobre suas ações.
Em resumo, participou do Fórum Mundial 2015 – Recife/PE, 4ª Semana de Extensão – Satuba/ AL,
III Elic – Encontro de Professores de Linguagens e Códigos do Instituto Federal de Alagoas. Expôs
obras: 13ª Semana de Museus, 9ª Primavera dos Museus, I Semana de Gênero, V Fazendo Ciência e
Arte, Intervenção de revitalização de monumentos pré-existentes e desenvolvimento de oficinas de
Stencil e ocupou praças em Arapiraca/AL.

O artista ativista situa-se no interior de uma relação social, isto é, engendra uma esfera relacional fun-
dada no desejo de luta, na responsabilidade ou na vocação social que reconhece a existência de conflitos
a serem enfrentados de imediato. Portanto, torna-se fundamental no artivismo o reconhecimento do
outro e também a crítica das condições que produzem a contemporaneidade. (CHAIA, 2007).

Figura 2. Performance: “Votos de


Palhaço”. Intervenção em faixa de
pedestre. Arapiraca, ArtVírus, 2014.

857
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo sendo um grupo institucionalizado, o ArtVírus ainda assim tem buscado por meio da lin-
guagem artística visual possibilidades de tocar em mazelas humanas provocando atenção sobre os
problemas, sejam eles de ordem social ou de questões emocionais e psicológicas. O trabalho de
arte-intervenção desse grupo pode ser considerado uma expressão de arte comprometida e en-
gajada com anseios sociais, uma produção de arte atual que toca as pessoas nos vários sentidos:
sensoriais, emocionais e cognitivos, porque as pessoas se identificam com a problemática que ela
toca. Um trabalho de caracterizado por uma estética que provoca nas pessoas estranhamentos,
aguça a percepção, a sensibilidade, promove reflexões sobre a realidade vivida e evoca novas ideias
a respeito desse vivido. O compromisso com o que acontece no cotidiano das pessoas do lugar é o
que se evidencia tem um caráter de realidade peculiar que não se pode discutir dissociado dessa
relação tempo e espaço.

Percebe-se no artivismo um realismo político que busca o sucesso dos objetivos seja no microcosmo
(quarteirão ou bairro), seja no macrocosmo (público ampliado, áreas internacionais ou Internet).
Pode-se falar em realismo também por incorporar à arte uma certa instrumentalização, dando a ela
uma função sócio-política, que vai desde a formação de consciência do outro, passando pela educa-
ção, até o fomento da mobilização. Pode-se ter, então, a metáfora do artista como gatilho de futuros
desdobramentos sociais. (CHAIA, 2007).

A arte produzida pelo ArtVírus se caracteriza na primeira fase com padrões de identidade cole-
tiva, criação de cartazetes, instalações, performances. Na segunda fase evidenciam os frutos dos
esforços individuais, predominância de objetos, apropriações, assemblages, modelagens tridimen-
sionais, stencils e a busca autoral. Nas duas situações, o caráter inusitado, ocupações e intervenções
acontecem para além espaço público urbano, entram nos espaços institucionais conservadores de
arte e de não arte. Com essa abrangência, se mantêm firmes na produção artística: materialidade
perecível, temporalidade efêmera e temáticas que oscilam do intimista ao social, sem perder o teor
reflexivo.

Referências

ARDENNE, Paul. Un arte contextual: Creación artística en médio urbano, en situación, de intervención, de
participación. Murcia/ES: CENDEAC, 2006.
BARBOSA, Ana Mae (Org.). Arte/Educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez,
2005
BRENSON, Michael. Perspectivas da arte pública. In: Arte pública. São Paulo: SESC, 1998.
BRETAS, Valéria. As 250 cidades mais violentas do Brasil. EXAME.COM, São Paulo, 10 nov. 2015. Disponível
em: <http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/as-250-cidades-mais-violentas-do-brasil>.
CHAIA, Miguel. Artivismo-Política e arte hoje. Aurora, v.1, 2007. Disponível em: <www.pucsp.br/revistaauro-
ra>.
COELHO, Teixeira. Contemporâneo: arte no Brasil: 1981-2016. Coleção Itaú. São Paulo: Itaú Cultural, 2006.
DORFLES, Gillo. O Devir das Artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

858
IBGE. Instituto Brasileiro Geográfico e estatístico. Cidades. Disponível em: <http://cidades. ibge.gov.br/xtras/
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MARTINS, Mirian Celeste Ferreira Dias. Didática do ensino de arte. A língua do mundo: poetizar, fruir e co-
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MELENDI, Maria Angélica. PREFÁCIO: Para ver e viver uma cidade. In: NAVARRO, LUIZ. Pele de propaganda:
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SPINELLI, João (Org.). Arte pública: apontamentos reflexivos. São Paulo: CNPq/Unesp, 1999.

859
Docência em arte no ensino básico
técnico e tecnológico: perspectivas,
desafios e experiências.
Isabel de Fátima Rodrigues Silva

1. QUESTIONAMENTO (S): DOS DESAFIOS DA DOCÊNCIA EM ARTE

Quem é a jovem aluna, o jovem aluno do Ensino Médio, na atualidade? E ainda, quando inseridos em
uma formação técnica/tecnológica, o que esses estudantes podem esperar da apreensão de conteúdos
de Arte? Como podem contribuir para que o ensino-aprendizagem seja, efetivamente, uma ferramenta
para a percepção de suas individualidades, suas identidades, em consonância com a construção de co-
nhecimento, além de permitir a interpretação de fenômenos da sociedade quem que estão inseridos?

Eis alguns dos mais intrigantes questionamentos que um (a) docente em Arte pode se fazer ao minis-
trar aulas no Ensino Básico Técnico e Tecnológico (EBTT). Nesse contexto, percebeu-se que o ideário
do ensino dessa área do saber contempla as diferenças de raça, etnia, religião, classe social, gênero,
opções sexuais, da mesma forma que lança um olhar mais apurado sobre outras culturas. Ao longo de
décadas, com especial atenção aos anos 1980-1990, os conteúdos trabalhados davam ênfase aos temas
curriculares referentes às artes europeia e norte-americana (especialmente, a estadunidense) – uma
arte predominantemente branca e masculina. Cabe aqui relembrar Edgar Morin quando assinala que
“As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou
como cultura-mestra, deve se tornar também uma cultura-aprendiz. Compreender é também apren-
der e reaprender incessantemente. ” (MORIN, 2000, p. 102)

Ora, com a crescente organização política dos docentes e as discussões sistemáticas sobre as delimita-
ções conceituais e metodológicas do ensino nessa área – em particular, faz-se menção ao arcabouço
teórico fundamentado por Ana Mae Barbosa em sua vasta produção literário-acadêmica –, constatou-se
que a Arte possui história e conteúdos específicos, apresenta várias “gramáticas” e múltiplos sistemas de
interpretação que podem e devem ser abordados no contexto escolar. Ademais, a Arte gera tal especifi-
cidade de experiência simbólica e estética que leva a narrativas particulares sobre o mundo.

No cenário pedagógico atual, em que se discute a ampliação e mesmo a superação das diferenças
conceituais entre arte e cultura, é cada vez mais necessário levar em consideração o seguinte desafio:

860
como integrar a cultura local, a cultura global e a memória no ensino da Arte, de forma a abranger os
mais diversos públicos da educação formal e da não-formal? Por isso é preciso recorrer às prerrogati-
vas oriundas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 2000), também passíveis de atualizações,
mas que preconizaram a partir do final de década de 1990 que a área de arte deveria se inserir no
campo das Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, o qual tem como eixo as faculdades da represen-
tação e da comunicação.

Disso resulta a possibilidade de se trabalharem os múltiplos usos das linguagens, o que faz com que
uma organização curricular dessa área de conhecimento considere, efetivamente, a valorização da
pluralidade e da diversidade cultural, nas mais variadas manifestações. Também é necessário levar em
conta o conjunto de saberes que os estudantes trazem consigo (aspectos da cultura local), a fim de se
construí pontes entre o “eu” e o “outro” – o que dará base para a preensão da cultura global, em favor
do respeito e da aceitação das semelhanças e diferenças culturais entre os indivíduos.

Nesse contexto, lança-se mão dos apontamentos de Moacir dos Anjos (2005) em Local/global: arte
em trânsito, que fomenta a reflexão em torno do extenso domínio da produção cultural, tendo como
foco o campo das artes visuais. Nesse ensaio, aponta-se a necessidade de novos referenciais para se
pensar o mundo, frente aos desencontros e temores que a globalização pode suscitar, em especial a
preservação da memória – ou memórias dos povos – e das manifestações culturais e artísticas. O
autor discute, então, a importância da busca de paradigmas renovados e explicativos, que deem conta
das múltiplas formas relativas às práticas culturais que, na contemporaneidade, passam a entrar em
contato, dialogar e se interconectar como nunca se vira.

Essa obra, de maneira singular, pode iluminar considerações sobre a inserção de aspectos de memó-
ria, cultura local e global no âmbito da educação em arte. Isso porque os diálogos interculturais se for-
taleceram e se intensificaram. Todavia, é considerável o trabalho que se faz para que, pela apreensão
da cultura local, o indivíduo – quer seja o professor, quer seja o (a) aluno (a) – se posicione frente ao
mundo que o cerca. Assim, pelo ensino da arte, em uma abordagem contemporânea que se associa ao
desenvolvimento cognitivo, nada melhor do que partir das experiências pessoais partilhadas em sala
de aula, o que, por sua vez, revela o quanto a memória torna-se um fio condutor de muitas práticas,
sobretudo, na construção da identidade.

Tais considerações valem sobremaneira quando se pensa na “ideia de Brasil”, construída historica-
mente muito mais a partir da região Sudeste, dado, sobretudo, seu poder econômico, político e sim-
bólico na pretensão de representar o país. Quando, no âmbito da educação básica, são confrontados
recursos didáticos, por exemplo, há muitas vezes um choque (quando não estranhamento) diante do
turbilhão de informações – que vão desde História da Arte até as poéticas artísticas mais atuais – e do
pouco (re) conhecimento com relação ao que ali está registrado.

Dessa feita, é preciso reinventar as práticas docentes de forma a aproximar temas artísticos, noções
de história, acontecimentos e personagens importantes, ações estéticas e estésicas, tudo em favor da
transformação do conhecimento em inserções produtivas para a vida e para a autonomia de pensa-
mento. E quando se tem um público jovem, inquieto e questionador à frente, a escola é local privile-
giado para se construir identidade, personalidade, memória e pertencimento.

861
2. RELATO: DUAS EXPERIÊNCIAS MARCANTES

Não raramente, questiona-se o ensino de Arte no Ensino Básico Técnico e Tecnológico – quer por
parte de estudantes e familiares, quer por parte de docentes técnicos e outros profissionais da educa-
ção que se inserem nesse contexto. Não que se trate de uma aversão a tal área de saber, antes, do des-
conhecimento do quanto a arte pode ser imprescindível na formação de adolescentes e jovens, uma
vez que favorece a associação do conhecimento estético à postura ética, a partir, inclusive, da própria
natureza dos diversos objetos artísticos. Noções de liberdade, sensibilidade e consciência crítica são
caros a essa área de conhecimento que, inserida no contexto das Linguagens, toca mais fundo as no-
ções de representação e comunicação.

A presente comunicação, uma vez feita prévia contextualização, pretende relatar os desafios de se
realizar uma organização didática que prevê a concentração de conteúdos em apenas um ano letivo
de formação – dentre de quatro anos previstos pela grade curricular da instituição, a saber, o Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, IFBA-Ilhéus.

Nesse caso, ressalte-se que a docência em Arte deve atentar por uma busca pelo delineamento do que se
pretende e se efetiva como educação tecnológica, sobretudo, que possibilite a construção do/no mundo
sem que se descuide do “humano”, em favor do equilíbrio entre formação técnica e humanística. Em tão
pouco tempo para se efetivarem duas aulas semanais (45’/aula), foi necessário, ao longo do exercício
docente, projetar um plano de curso que se pautasse por escolhas criteriosas daquilo que, em uma gama
de possibilidades de abordagens, pudesse melhor servir aos interesses dos estudantes em formação.

Dessa feita, a proposta maior busca fazer compreender a arte como saber cultural e estético que gera
significação/significações, como agente integrador da organização do mundo e, principalmente, da
própria identidade. Há que se reconhecer a arte em diferentes grupos sociais e étnicos, de forma a
promover a interação entre patrimônio local, patrimônio nacional e até internacional, com a apreen-
são das distintas dimensões sócio históricas. Ao longo de quatro unidades (bimestres), alinhavam-se
conteúdos que possam permitir o (re) conhecimento e a produção de textos artísticos, interpretação/
contextualização dessas manifestações e ações de representação do mundo para o fortalecimento dos
processos de construção de identidade e cidadania.

Sem que se esqueça da revisão do contexto histórico e social das obras através dos tempos, bem como
da apreciação e da análise formal e crítica de imagens e objetos artísticos, o curso procura apresentar
aos jovens discentes as fronteiras difusas entre arte, mídia e dia a dia. Nesse sentido, a contemporanei-
dade opera de modo crucial e a interface entre, praticamente, todas as áreas artísticas – e outras áreas
de saber – se faz notória, até mesmo em relação à própria vida. No caso da visualidade, manifestada
em textos híbridos que envolvem arte, mídia e imagens do cotidiano, tem-se um objeto de estudo
singular, de tal forma que se pede, inclusive, a interação daquele que experimenta a arte contempo-
rânea, de forma que se dê um relacionamento (contágio?) com a obra (ou objeto), um encontro que
proporcione a experiência/vivência.

Em meio ao entrelaçamento de diferentes linguagens e áreas do saber humano, a contextos vários que
permitam a construção sensível e o envolvimento estético/estésico dos indivíduos com os meios, as

862
formas, os suportes e tudo o que permeia os efeitos de sentido veiculados à Arte, é essencial que não
se restrinjam as aulas a questões teóricas.

Na impossibilidade de relatar todas as sequências didáticas já efetuadas pela autora, esta comunicação
selecionou dois momentos-chave de um ciclo de atividades, a saber, duas das principais produções
poéticas dos jovens alunos e alunas ao longo de um ano letivo (2015): a construção de um perfil e a re-
alização de uma grafitagem em estêncil, respectivamente, na primeira e na quarta unidades (bimestres
letivos) – de forma a fazer um fechamento sobre o percurso realizado em sala de aula naquele período
de estudos. Nesses dois casos, partiu-se da perspectiva de produção de obras em que se estabelecem
relações entre análise formal, pensamento artístico, contextualização cultural e identidade pessoal –
aspectos que são trabalhados no decorrer de todo o ano letivo, direta ou indiretamente.

Dentre os diversos temas passíveis de tratamento em arte, mais especificamente, em artes visuais (área
de domínio docente), há que se citar a percepção visual aliada à sensibilidade estética e a abordagem
dos elementos constitutivos das artes visuais. Tais temas não podem ser desvinculados de um pano-
rama educacional que é mediatizado pelo mundo, formatado pela cultura e fortemente influenciado
pelas mais diversas linguagens. Há o impacto das crenças e valores, além da importância da modera-
ção exercida pela individualidade.

Ao ingressarem no IFBA-Ilhéus276 para o 1º ano do Ensino Médio Integrado, os estudantes trazem as


mais diversas referências culturais e perfazem um grupo multifacetado com o qual o corpo docente
passa a trabalhar de forma intensa – visto que são abordadas até mais de 15 matérias por período letivo,
em um curso que dura quatro anos e conta com a realização de estágio final ou produção de Trabalho
de Conclusão de Curso. Trata-se de rapazes e moças imersos em realidades socioculturais distintas, to-
davia, com interseções que permitem delinear aspectos de “convergência na diversidade”. Nesse sentido,
pode-se assinalar que sua faixa etária é relativamente homogênea (entre 14 e 16 anos), seus hábitos de
consumo são muito próximos, seu comportamento frente às tecnologias de informação e comunicação
é semelhantes, a ver pelo uso que fazem de aparelhos celulares e conexão a redes sociais.

Na realidade, a despeito de a formação desses jovens se pautar pelo caráter técnico/tecnológico – dali
deverão sair futuros profissionais em Edificações, Informática e Segurança do Trabalho –, o contato
com a Arte visa buscar, principalmente, experiências de fruição, reflexão e produção artística, de
modo contextualizado na cultura e na sociedade. Some-se a isso a possibilidade de gerar exercícios da
imaginação estética associada a processos cognitivos e inventivos, que favoreçam até o estabelecimen-
to de conexões com o mundo do trabalho para o qual esses jovens se preparam.

Para a construção do perfil, uma das primeiras atividades práticas do plano de ensino, foi realiza-
da toda uma contextualização acerca das temáticas de arte, cultura e patrimônio, de modo que os
estudantes pudessem se posicionar de maneira menos passiva e mais questionadora. Praticamente

276. Ressalte-se que o referido instituto se localiza na BR-415, aproximadamente no meio do trecho que liga as cidades de Ilhéus e Itabu-
na (BA). O bairro mais importante em termos de aglomeração urbana fica a mais de 2 km de distância e o corpo discente é formado por
estudantes oriundos de escolas públicas (maioria) e privadas dessas duas cidades e outras tantas da região circunvizinha. Não é, pois, uma
“escola de bairro/comunidade” e, por ter sido inaugurado há pouco mais de cinco anos, encontra-se em pleno processo de construção de
sua própria identidade e de expansão.

863
todos esses jovens são confrontados, diariamente, a um turbilhão de imagens de si próprios – as tão
propaladas selfies obtidas a partir de telefones celulares e até cultuadas em redes sociais cibernéticas
– e a imagem de si mesmos era o ponto de partida para um exercício de percepção visual de forma
e contra-forma, que é uma das mais difundidas técnicas artísticas em que se visualizam imagens em
positivo e negativo.

Desafiados a partir para a práxis artística, os estudantes tiveram que superar possíveis limitações de
motricidade, engajando-se em operações de cognição inventiva, apreensão de imagem e mesmo de
imaginação. O trabalho foi realizado em dupla.

Imagem 1. Alunas e alunos


da turma ITST 11 (1º ano),
Integrado de Segurança do
Trabalho.
IFBA-Ilhéus, ano letivo 2015.
Foto: Isabel Rodrigues.

Imagem 2 – Alunas e alunos


da turma ITST 11 (1º ano),
Integrado de Segurança do
Trabalho.
IFBA-Ilhéus, ano letivo 2015
(março).
Foto: Isabel Rodrigues.

864
Com esta atividade, buscou-se proporcionar aos jovens uma outra forma de lidar com sua aparên-
cia, a diversidade de tipos físicos que constituíam o grupo, a reflexão acerca de sua personalidade,
além de despertar questionamentos sobre auto aceitação e protagonismo juvenil. Destarte foi possível
aprender por meio de uma ação que partia da imaginação, em favor do pensamento, do sentimento,
da tomada de decisões, em suma, pelo viés de uma operação significativa que buscava evidenciar a
continuidade mente-corpo-mente através de uma intervenção criadora.

Já ao final do ano letivo, após uma série de abordagens que intentaram lidar com as mais variadas
temáticas – da função da arte ao estudo de obras e de artistas no âmbito da História da Arte, passando
por aspectos comunicacionais e culturais –, frente a uma disponibilidade de tempo assaz reduzida,
chegou-se à derradeira atividade prática da disciplina, especificamente falando. O intuito didático
sempre foi o de viabilizar experiências de fruição, reflexão e criação, com os sujeitos se relacionando
entre si e com o ambiente, buscando fortalecer conceitos, gerar apensamento e tentando promover
um modo de ver o mundo. Com isso, após estudos pontuais acerca da arte contemporânea e da arte
de rua, alunas e alunos tiveram a oportunidade de criar um estêncil e executar uma grafitagem nos
próprios muros da escola – o que foi viabilizado graças à compreensão da direção geral quanto à in-
serção da arte na formação do alunado, quanto ao aproveitamento dos espaços escolares e quanto e
do papel de destaque dos estudantes no meio escolar. Ressalte-se que essa atividade, de certa forma,
já fora alimentada em momentos anteriores, quando de uma atividade de produção de logomarca
pessoal e coletiva. Nesse sentido, já haviam sido trabalhados os elementos estruturantes em artes vi-
suais, bem como a interface entre linguagens e códigos. Uma vez mais, vislumbrara-se compreensão
da arte como saber cultural e estético gerador de significação e integrador da organização do mundo
e da própria identidade. Ao deixar suas marcas nos muros do IFBA-Ilhéus, os estudantes realizaram
uma etapa significativa na construção de sua memória afetiva com relação ao seu percurso escolar,
bem como puderam refletir sobre manifestações artísticas que lhe dizem respeito – inseridas em sua
época, seus gostos pessoais, suas mais distintas culturas juvenis.

Alunas e alunos da turma


ITST 11 (1º ano), Integrado
de Segurança do Trabalho.
IFBA-Ilhéus, ano letivo
2015 (janeiro 2016).
Foto: Isabel Rodrigues.
À guisa de conclusão (in-
conclusa)

865
Antes dos apontamentos finais, cabe uma menção à terceira edição do Fórum Mundial de Educação Pro-
fissional e Tecnológica, cujo tema era “Diversidade, Cidadania e Inovação”, no qual muito se discutiu
sobre os desafios da formação profissionalizante para os jovens, do modo que disciplinas propedêuticas
e técnicas se encontram e, por vezes, se estranham e se confrontam, em um universo de especificidades
que deveria se pautar por relações educativas coerentes, sob uma perspectiva sinergética.

Quem é a jovem aluna, o jovem aluno do Ensino Médio, nesse cenário? Como ele pode esperar uma
formação em Arte nesse cenário? Os docentes, em suas mais diversas atuações, podem construir re-
presentações tanto positivas quanto negativas sobre esse público, todavia, há que se buscar soluções
para que o relacionamento entre esses dois eixos do ensino-aprendizagem – docentes ó discentes
– seja favorável e profícuo.

A abertura para a construção da identidade juvenil (ou identidades e culturas juvenis) pode e deve
ser favorecida pelo processo educativo e a Arte, como área de saber – mais do que como componente
curricular do Ensino Médio – pode contribuir, por intermédio de seus conceitos e procedimentos,
para a realização de experiências (vivências, inclusive, artísticas) significativas no dia a dia, de forma
a proporcionar tanto o pensamento crítico-reflexivo quanto o protagonismo juvenil na construção do
conhecimento, sem que se desvincule sua mobilização para uma futura atuação profissional.

REFERÊNCIAS

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MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e
Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.
PRESENÇA Pedagógica, Belo Horizonte, v.19, n. 110, mar/abr 2013.

866
O ensino de artes na educação
brasileira: uma abordagem reflexiva
Sislândia Maria Ferreira Brito

INTRODUÇÃO

A arte tem função tão importante quanto às outras áreas de conhecimento no processo de ensino e
aprendizagem, isso não se pode negar. Vale ressaltar a sua importância desde o início da história da
humanidade, pois é certo que a arte esteve presente nas formações culturais. O ensino e a aprendiza-
gem da arte fazem parte, de acordo com normas e valores estabelecidos em cada ambiente cultural,
do conhecimento que envolve a produção artística em todos os tempos.

Nesse sentido, é compromisso das escolas brasileiras se manifestar a favor da arte, da democratização
do seu ensino, do acesso à todos indistintamente, nessa perspectiva Ana Mae Barbosa (2001, p. 6)
afirma “precisamos levar a arte, que hoje está circunscrita a um mundo socialmente limitado, a se
expandir, tornando-se patrimônio cultural da maioria e elevando o nível de qualidade de vida da
população”.

Na história do ensino de arte no Brasil, pode-se observar a integração de diferentes orientações quan-
to às suas finalidades, à formação e atuação dos professores, mas, principalmente, quanto às políticas
educacionais e os enfoques filosóficos, pedagógicos e estéticos. O que se observa, então é que sem
uma consciência clara de sua função e sem uma fundamentação consistente de arte como área de
conhecimento com conteúdos específicos, os professores não conseguem formular um quadro de
referências conceituais e metodológicas para alicerçar a sua ação pedagógica.

Os debates acerca da importância da arte na educação do Brasil, e sua obrigatoriedade, respeito, his-
toricidade, abordagens práticas e metodologias ganharam espaço e seriedade, um campo propício e
fonte de investigações nos cursos de graduação e pós-graduação em educação em todo país.

E desta maneira, começa na esteira do debate desses cursos, a construção dos pilares para uma ruptu-
ra dos modelos tradicionalistas que até então se encontravam fortemente presentes nas aulas de arte,
rumo a um desdobramento dialético das questões/tensões do ensino por meio das copias, dos mode-
los e das técnicas até as concepções teóricas pragmáticas de Dewey (1980), em que o experimentar, o

867
vivenciar, o fazer e o pensar são elementos de importância, portanto inquestionáveis no processo de
construção dos saberes em arte na escola.

E assim, no caminhar entre o fazer e o perceber, até a Abordagem Triangular sistematizada pela
professora Ana Mae Barbosa (1999), em que a história da arte, leitura da arte e o fazer artístico são
pontes.

Nesse ínterim, compreender que a arte proporciona conhecimento, que ela é conhecimento, é cog-
nição, é produção humana assim, como a teoria de Pareyson (1989) fundamentada na concepção
estética, no processo artístico entre o fazer, o conhecer e o fruir, na relação simultânea com a arte.

1. OBRIGATORIEDADE E POSSIBILIDADES

Vale ressaltar que na busca por compreender o ensino de arte no Brasil dos nossos dias se faz necessá-
rio lançar o nosso olhar na reforma do ensino de 1º e 2º graus de 1971 com a Lei 5.692. No âmbito do
ensino de arte essa lei introduziu a obrigatoriedade da disciplina de Educação Artística no currículo
das escolas do país. Essa obrigatoriedade estava prevista pelo artigo 60º onde fica claro que: “Será
obrigatória à inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas
de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus”.

Assim, o que podemos constatar nesse documento é que faz nascer a arte no currículo escolar brasi-
leiro. Porém, naquele momento sua realização se dava como mera atividade, destituindo-a e distan-
ciando-a de seu caráter de disciplina, sem conteúdos consistentes, o que está confirmado e explicito
na redação do Parecer nº 540/77: “não é uma matéria, mas uma área bastante generosa e sem contor-
nos fixos, flutuando ao sabor das tendências e dos interesses”.

Na esteira desses acontecimentos vimos nascer no Brasil cursos de licenciaturas de curta duração
em Educação Artística. Para atender a necessidade evidenciada na nova lei, essa licenciatura de ca-
ráter polivalente teria que ser realizada de forma a atender essa nova demanda exigida pela lei e o
seu processo de formação, de acordo com os seus ditames, deveria acontecer o mais rápido possível,
tudo isso acontecendo sob a tutela do governo federal. Esses cursos tinham a duração de dois anos e
visava preparar o professor de arte para atuar com todas as linguagens: Artes Plásticas, Teatro, Dança
e Música. Portanto, foi nesse período que a formação polivalente do professor de arte perdurou em
nosso país no período que compreende os anos de 1970 a 1980, numa educação de caráter tecnicista,
descontínua e excludente.

Nas aulas de arte, os professores enfatizam ‘saber construir’ reduzidos aos seus aspectos técnicos e ao
uso de materiais diversificados (sucatas, por exemplo), e um ‘saber exprimir-se’ espontaneístico, na
maioria dos casos caracterizando poucos compromissos com o conhecimento de linguagens artísti-
cas. (FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 32)

Como se pode perceber, os novos conceitos e metodologias organizados pelo projeto de Lei 5.692/71
se tornaram obrigatórios nas escolas a partir da década de 70. Um aspecto central deste enfoque é so-
bre a elaboração dessa lei, pois ela foi elaborada por decreto do então presidente da república Emílio

868
Garrastazu Médici, em 1970. Esta lei traz em seus princípios a ordem contraria da lei anterior, a lei
4.024/61.

Com impecável coerência o professor Demerval Saviani diz que:

[...] a inspiração liberalista que caracterizava a Lei 4.024/61 cedeu lugar a uma tendência tecnicista
tanto na Lei 5.540/68 como na Lei 5.692/71. A diferença entre as duas orientações se caracteriza
pelo fato de que, enquanto o liberalismo põe a ênfase na qualidade em lugar da quantidade; nos fins
(ideais) em detrimento dos métodos (técnicas); na autonomia em oposição à adaptação; nas aspira-
ções individuais antes que nas necessidades sociais; e na cultura geral em detrimento da formação
profissional, com o tecnicismo ocorre o inverso (SAVIANI, 2003, p. 32).

A partir desse contexto se pode notar que há uma busca em ajustar a organização do ensino de arte no
Brasil à nova ordem política que se apresentava. De fato, é realizada a reforma universitária em 1968.
Porém é com a Lei 5.692/71 que foi introduzida a obrigatoriedade da educação artística no currículo
das escolas do Brasil.

Portanto é somente na redação do Parecer nº 540/77, que no âmbito de sua explicação, sobre a defi-
nição da disciplina, conceitua a educação artística como uma atividade, que no currículo deve ficar à
deriva, a mercê das tendências e interesses, pois é uma área bastante generosa.

Assim, como resultado das mudanças advindas das novas reformas na educação do país, e sem pro-
fessores com formação na área, a providencia a ser tomada foi à criação de cursos de licenciatura
curta, institucionalizado pelo governo brasileiro em 1973, com o objetivo de preparar professores em
cursos com duração de dois anos. Esta formação traz a proposta da polivalência para a formação do
professor de arte nas décadas de 70 e 80.

Portanto, com característica e caráter superficial, esta formação tinha como objetivo formar o pro-
fessor para atuar em todas as linguagens da arte trazendo para a educação artística a ideia de que
experimentar as técnicas separadas estaria evidenciando as artes, essa era a orientação que recebiam
os professores.

De fato, essa formação superior em artes dava aos professores legalidade para trabalhar artes plásticas,
teatro, dança e música.

Assim, a Educação Artística era uma mera atividade, nem sempre de cunho artístico, pois refletia
uma indefinição quanto aos saberes estéticos e artísticos, isso porque os projetos em educação eram
voltados para a formação profissionalizante enfatizando o domínio técnico, exigido pelo conjunto de
propostas da abordagem tecnicista de educação escolar, que reforçava o ideário da ditadura militar.

Com a obrigatoriedade da Educação Artística nas nossas escolas, os professores passaram a usar cada
vez mais os livros didáticos que eram produzidos pela “indústria cultural”, devido ao despreparo e
insegurança, pois a abordagem polivalente mostrava-se incapaz de favorecer ao professor atuar em
sala de aula com a arte.

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Não há absolutamente nenhuma preocupação com uma teoria da arte-educação no currículo, a úni-
ca disciplina especificamente relacionada em arte-educação é a tal Prática de Ensino de Educação
Artística, em que os professores em geral se limitam a levar os alunos à observação de classes de arte
em escolas de 1º grau. Pretende preparar em dois anos, com este currículo, um professor que terá a
obrigação de ensinar ao mesmo tempo, música, Por outro lado, o legislador educacional artes visuais
e artes cênicas da 1ª a 6ª e até mesmo a 8ª série (BARBOSA, 1998, p.16).

Nesse contexto, percebe-se que o professor formado nessa concepção teve seus conceitos de arte total-
mente deturpados, na concepção de um currículo que obrigava o professor a ensinar um leque de lin-
guagens sem apoio na formação teórico-metodológica que o orientasse e o direcionasse a um trabalho
não polivalente. Essa prática de formação de professores de Educação Artística levou gerações inteiras
a sofrerem de um quase que total analfabetismo estético e artístico, no processo de desenvolvimento
escolar em Arte.

Portanto, uma formação universitária aligeirada e incipiente era a principal causa da insegurança dos
professores de arte nas salas de aula.

Dentre os problemas apresentados no ensino artístico, após a Lei 5692/71, encontram-se aqueles re-
ferentes aos conhecimentos básicos de Arte e métodos para apreendê-los durante as aulas, sobretudo
nas escolas públicas. O que se tem constatado é uma prática diluída pouco ou nada fundamentada, na
qual métodos e conteúdos de tendência tradicional e novista se misturam sem grandes preocupações,
com o que seria melhor para o ensino de Arte. (FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 39).

O que se observa nesse contexto é um ensino de arte sem fundamentação teórica, descontextualiza-
do, voltado aos aspectos técnicos e visivelmente descomprometidos com os conhecimentos em artes,
necessitando de aparatos teórico-metodológicos.

2. NA ESTEIRA DOS CONFLITOS

Mesmo com a obrigatoriedade da arte como atividade, a partir da lei nº 5692/71, observa-se que a
Educação Artística na escola sofria o seu mais grave problema no campo da formação docente, como
afirma Ana Mae:

O currículo de licenciatura em educação artística na universidade pretende preparar um professor de


arte em apenas dois anos [...] é um absurdo epistemológico ter a intenção de transformar um jovem estu-
dante (a média de idade de um estudante ingressante na universidade do Brasil é de dezoito anos), com
um curso de apenas dois anos, em um professor de tantas disciplinas artísticas. (BARBOSA, 2001, p. 10).

A partir dessa perspectiva se pode afirmar que o Movimento Escolinhas de Arte – MEA desde 1948
difundia no país a ideia da Livre Expressão fundamentada na experimentação, valorizando a livre
expressão para crianças, jovens e portadores de necessidades especiais. Esse movimento estava arti-
culado à Escola Nova.

Alguns estudiosos que pesquisam sobre o Ensino de Arte no Brasil, como é o caso de Ana Mae Bar-
bosa (1999), vem afirmar que no MEA destaca-se, entre tantas outras, as ideias de Augusto Rodrigues.

870
Um dos mais entusiastas da arte na educação no Brasil. Suas ideias, defendendo a criança da massifi-
cação, tornaram mais conscientes o ensino nas escolas primárias, secundárias e nas escolinhas de arte
nascidas da experiência da Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro [...] elaborou com o auxílio
de sua equipe, um plano de expansão visando a conscientizar professores e educadores da grande
tarefa que lhes compete no crescimento da criança como ser humano total (ANDRÉS, 2000, p. 148).

Ana Mae Barbosa (1999), também vem afirmar que o MEA estava profundamente influenciado pelo
Modernismo e propunha uma educação que respeitasse o processo criador dos educandos, por meio
da valorização da expressão original que consistia em deixar a criança fazer, inventar e criar sem a in-
terferência do professor, cabendo a este oferecer espaço e material para que o ato de criação ocorresse
sem interferência, envolto em um clima de magia e mistério.

A autora segue afirmando que o curso intensivo de Arte na educação criado na Escolinha de Arte do
Brasil, no Rio de Janeiro foi até 1973, o único que formava em caráter não oficial gerações de profes-
sores de Arte tentando atender a demanda de todo o país.

Ainda sobre essa temática a autora diz que o MEA foi o primeiro movimento importante em Ensino
de Arte no Brasil e por isso nos anos 80 integrou o Movimento de Arte/Educação na busca de alter-
nativas que eram exigidas após as críticas elaboradas a Educação Artística dos anos 80.

Em consequência aos feitos advindos da lei 5.692/71 os Arte/Educadores organizaram diversos e dis-
tintos movimentos, mobilizações em defesa das mudanças nos textos da nova lei da arte e do seu en-
sino nas escolas públicas e conseguiram mudanças importantes. Assim, hoje no Brasil, a abordagem
mais contemporânea da Arte/Educação está relacionada ao desenvolvimento cognitivo, que, como
diz Barbosa (2005), a abordagem cognitiva para o ensino de arte vem se impondo cada vez mais entre
os arte/educadores brasileiros.

Essa compreensão nos leva a refletir a respeito do ensino de arte, provocando o direcionamento das
preocupações relacionadas às questões que permeiam o como ensinar arte para o como se apren-
de arte. Questões que vem gerando ao longo de mais de duas décadas, teorias, estudos, pesquisas
e investigações, tais como os trabalhos de inúmeros investigadores e pesquisadores no/do Brasil
como é o caso de Barbosa (1991), (1998), (1999), (2002), Ferraz e Fusari (1993), Martins, Picosque
e Guerra (1998), Biasoli (1999), Ivone Richter (2003), Rossi (2003), Sueli Ferreira (2003), Raimun-
do Martins y Irene Tourinho (2009) e tantos outros, que buscam explicar o processo do ensino de
arte e da aprendizagem dos conhecimentos artísticos. Para explicar essa questão com coerência,
Barbosa afirma:

Nossa existência hoje é marcada pela tenebrosa sensação de sobrevivência, vivendo um presente que
não tem nome próprio, mas é designado por um prefixo acrescentado ao passado. Trata-se do prefixo
‘pós’ do pós-modernismo, do pós-colonialismo, do pós-feminismo etc. Queremos explicitamente
ultrapassar o passado sem deixá-lo de lado (BARBOSA, 1998, p. 33).

Porém, vale refletir sobre o processo de reorganização da arte na educação brasileira no novo panora-
ma político nacional. Assim, nas décadas de 80/90, em pleno processo de abertura política no Brasil,
ocorre a revisão do ensino de arte impulsionando as lutas dos professores na busca de incluir a arte

871
como disciplina obrigatória do saber escolar na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
– LDB, que logo foi aprovada em 1996.

Representando uma mudança significativa no cenário educativo brasileiro, os logros expressados na


Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN. Nº 9.394/96) estabelece em seu artículo 26:

Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser comple-
mentada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida
pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela (BRASIL,
1996).

Assim, fica estabelecido no parágrafo 2º que: “O ensino da arte constituirá componente curricular
obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural
dos alunos”.

Vale ressaltar que estamos falando de uma situação que é uma vitória recente e a partir de tudo isso
outras vitórias surgiram, podemos citar o caso do dispositivo CNE/CEB (Conselho Nacional de Edu-
cação/Conselho de Educação Básica) nº 22/2005, petição de retificação da expressão que designa
a área de conhecimento Arte/Educação pelo nome: Artes baseado na formação específica em uma
das suas linguagens: Artes Plásticas, Dança, Música e Teatro. Nessa perspectiva, são postas em pauta
novas direções para o ensino de artes no Brasil. Símbolo de uma grande luta realizada por diferentes
profissionais e setores podemos citar como referência a Federação de Arte Educadores do Brasil –
FAEB, fundada em setembro de 1987.

Vale ressaltar que segundo Ana Mae Barbosa (1999), a FAEB é o órgão de representação das associa-
ções estaduais, regionais e municipais dos professores de artes de todo o Brasil e tem entre os seus
objetivos o fortalecimento e o melhoramento do ensino de artes na busca de uma educação brasileira
com identidade cultural e social. Surgindo em um momento de efervescência política no Brasil, nos
anos de pós-ditadura militar, na FAEB havia uma intensa participação no desenvolvimento da nova
lei de educação nacional, a LDBEN.

Ana Mae Barbosa (1999) continua afirmando que sem dúvidas, a FAEB, entre outras coisas lutava
para que o ensino de artes no Brasil quebrasse com paradigmas e se liberasse do preconceito no
qual a cultura brasileira o cercou durante quase dois séculos que sucederam e implicaram em sua
implantação.

Com a luta dos arte/educadores, e assim com as vitórias advindas na nova LDB, surgem no final da
década de 90, os “Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN’s”, para todas as áreas de ensino, inclusive
artes. Esses documentos são destinados no inicio para as séries iniciais do ensino fundamental, sendo
organizados para os anos seguintes documentos destinados a todos os outros níveis da educação na-
cional. No entanto, queremos assinalar que se faz necessário uma leitura acerca das observações feitas
por Ana Mae Barbosa aos documentos em questão e em especial ao PCN de arte no livro Tópicos
Utópicos (1998). Nessa publicação a autora provoca uma discussão a respeito da pluralidade, multi-
culturalidade e diversidade e/ou “diferenças culturais”.

872
Assim, os PCN’s, vinculados a Lei n° 9.394/96, constituem uma forma de regulamentação, estabelece
diretrizes para o currículo do ensino fundamental da 1ª a 8ª série – hoje do 1º ao 9º ano277e são re-
ferências nacionais, seja para a prática educativa, seja para ações políticas nos âmbitos da educação.
Assim, essa proposta é estabelecida em seu texto:

Configura uma sugestão flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos
e programas de transformação da realidade educacional empreendidos pelas autoridades governa-
mentais, pelas escolas e pelos professores. Não configuram, portanto, um modelo curricular homo-
gêneo e impositivo [...] (BRASIL, 1997a, p.13).

Os conflitos e as vitórias em meio à arte e a educação no Brasil são explícitos, no final da década de
noventa, e nos últimos 25 anos, isso é comprovado a cada ano nos encontros dos arte/educadores do
Brasil, organizados pela Confederação de Arte Educadores Brasileiros – CONFAEB.

Hoje, o ensino de arte é obrigatório em todos os níveis da educação básica. Os documentos, tanto para
a educação dos anos iniciais do ensino fundamental como para os anos terminais ganharam novas
orientações curriculares para o ensino de artes, vitória também das lutas e dos movimentos organiza-
dos pela Federação de Arte/Educadores do Brasil.

A partir de tais conquistas o estado do Ceará viu nascer a Resolução nº. 411/2006, do Conselho de
Educação do Ceará - CEC, que vigora desde 2006. No texto do documento, três artigos preveem nor-
mas para o componente curricular Artes.

Em seu Artigo 3º reafirma que são atribuídas responsabilidades às instituições públicas e privadas como:
oferecer condições à arte-educadores para o cumprimento dos objetivos contidos na Resolução, dispo-
nibilizar material adequado as suas necessidades, havendo horários para manifestações artísticas no co-
tidiano escolar, bem como desenvolver programas de formação continuada para os profissionais da área.

De acordo com o Art. 7º da presente Resolução, “a formação de professores para a disciplina Artes
será feita em curso de licenciatura específica na área, conforme as diretrizes curriculares para a for-
mação de docentes” (CEARÁ, 2006, p. 3). Neste item, reside uma reivindicação amplamente feita
pelos Arte-educadores, principalmente no que tange à abordagem da Arte com conteúdos específicos
subjacentes à formação inicial. É uma aspiração nacional que, como consta nas diretrizes, não pode
flutuar ao sabor de indefinições. O que falta textualmente neste artigo, entre outras coisas, é especi-
ficar que além da base de conteúdos da área de arte, é necessária uma boa base de conhecimentos
pedagógicos, imprescindíveis de articulação na prática pedagógica artística e estética.

Temos nessa resolução outras orientações que se faz necessário apresentar, o Art. 8º prevê que: “Além
dos professores habilitados, a escola poderá utilizar para enriquecer o processo didático os talentos
locais: brincantes, artistas, artesãos no ensino de Artes, orientando-lhes pedagogicamente para o de-
senvolvimento das atividades com os alunos”.

277. Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006 – altera a LDB de forma a ampliar Ensino Fundamental para nove anos de duração, ou seja,
de 1º al 9º ano.

873
Nessa compreensão da história das lutas, travadas pelos arte/educadores em prol da arte nas escolas,
se percebe as mudanças no ensino de arte no Brasil e a luta para que a Arte seja respeitada na educa-
ção escolar como área do conhecimento, deixando de ser uma atividade, uma disciplina à margem
das outras disciplinas do currículo escolar, luta essa vitoriosa. Mas, para tornar concreto este ganho é
necessário que todos: professores, alunos e a sociedade de modo geral, estejam atentos para os direi-
tos propostos nos documentos de cunho legal, para que essas determinações não fiquem restritas às
gavetas de gabinetes ou à mercê da vontade de políticos inescrupulosos e administrações arbitrárias,
mas na legalidade do exercício pleno de execução e funcionamento para que, no caso, a arte tenha
um espaço próprio na escola e o acesso da mesma esteja direcionado à todas as camadas da sociedade
alcançando toda a população estudantil brasileira.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os autores que dialogam nesse texto traçam conceitos e relacionam campos do conhecimento, que
nos encaminham às diversas informações convergentes, no que se refere à arte e seu ensino e a im-
portância das políticas públicas direcionadas a essa área do conhecimento. Fazem-nos refletir acerca
da arte no contexto escolar e histórico, como experiências vividas não só por sujeitos, nos preceitos
individuais, mas também em contextos sociais. Observamos nas falas dos autores o ensino de artes
rompendo o que chamamos de aspectos temporais e atemporais, abordagens de construções de co-
nhecimentos, em tempos e espaços distintos, perspectivas além de seu próprio tempo.

As artes no contexto de explicação das ideias de perpetuação ou mudanças na história de sujeitos,


de culturas, de valores éticos, estéticos, políticos e das relações sociais, e a busca urgente e necessária
em compreender a importância de políticas que sejam verdadeiramente voltadas para a inclusão do
ensino de artes com qualidade e com acesso a produção artística e a compreensão estética.

A partir desse estudo foi possível refletir sobre a inclusão da arte no currículo escolar brasileiro.
Analisar e buscar compreende seu percurso histórico que ainda recente oficializada como disciplina
na reforma educacional iniciada em 1990, que resultou na aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, LDB n° 9.394 de 1996 em que determina o ensino de arte como componente
curricular obrigatório na educação básica do Brasil. Assim, nos termos da lei fica explicito que a arte
tem conceito, história, conhecimento e que as práticas, assim como as metodologias teóricas das artes
devem estar nos projetos de todas as escolas, de todos os níveis da educação. Por conseguinte, com
toda a força e rigorosidade da lei. Portanto, fica assegurado o espaço, a responsabilidade, o compro-
misso, a função e o respeito à área. Nessa perspectiva, fica explicito e assegurado o espaço próprio da
arte na educação escolar e o reconhecimento de uma área de conhecimento com contornos fixos e de
obrigatoriedade para todos os níveis da educação básica do Brasil.

Diante das relevantes conquistas em que a arte assume em meio às reformas educacionais no Brasil,
acreditamos que é primordial analisar e buscar desvelar questões, como também compreender pontos
que possam possibilitar conhecer e descortinar os determinantes político-sociais e os objetivos que
são estabelecidos. E, nesse contexto, visando um melhor entendimento das políticas públicas educa-
cionais brasileiras para o ensino de arte, seu processo de elaboração e aplicação, verificando assim,
suas implicações na prática escolar, no ensino de arte no país.

874
REFERÊNCIAS

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BARBOSA, Ana Mae. (Org.) Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.
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SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados,
2003.

875
O PIBID em Artes Visuais – UFPE
e IFPE juntos em um
processo de formação
Luciana dos Santos Tavares

1. O CAMPO DE FORMAÇÃO EM ARTES VISUAIS EM PERNAMBUCO

Refletindo acerca do campo de formação em Artes Visuais na região Metropolitana do Recife, depa-
ramo-nos com três Instituições de ensino de forma presencial, que oferecem uma formação específica
em Artes Visuais, duas públicas e uma privada. São elas: a Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE, que oferta o curso de Licenciatura em Artes Visuais, a AESO – Faculdade Barros de Lima, que
oferece o curso de Bacharelado em Artes Visuais, e o Instituto Federal e Educação, Ciência e Tecnolo-
gia de Pernambuco – IFPE, que, no Campus Olinda, oferece o Curso Técnico de nível subsequente278
em Artes Visuais. Sendo então, somente esta a realidade que temos de formação em Artes Visuais
nas cidades de Recife e Olinda; portanto, a necessidade de um diálogo entre estas instituições se faz
latente.

E é isto que vem acontecendo entre as duas Instituições Públicas supracitadas: o curso Técnico de
Artes Visuais do IFPE tem cruzado o seu caminho com o Curso de Graduação em Artes Visuais da
UFPE, seja na matriz curricular, na equipe docente (alguns dos professores do curso técnico já tive-
ram atuação docente na UFPE como substitutos), nos estudantes comuns que existem entre as duas
instituições (já que isto é possível porque são de graus diferentes de formação, sendo o do IFPE de
nível básico e o da UFPE de nível superior), seja em eventos produzidos por um ou o outro curso nos
quais docentes são convidados a participar, em palestras, oficinas, mesas-redondas ou mesmo aulas
em ateliês ou ainda em programas de parcerias dentre as duas instituições, como o Estágio de docên-
cia das disciplinas de práticas da UFPE, que tem utilizado as salas de aula do IFPE como campo de
pesquisa e atuação, ou onde queremos chegar

278. A categoria subsequente no IFPE refere-se à formação técnica específica dentro da educação básica equivalendo-se ao Ensino Médio.

876
Imagem 1. Produção dos estudantes do Curso Técnico sob a orientação dos Pibidianos.
Fonte: Acervo da autora.

2. UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO PIBID EM ARTES VISUAIS

O Programa Institucional de Bolsa de iniciação à Docência (PIBID) existe em várias áreas de co-
nhecimento e foi criado pelo Ministério de Educação com a intenção da valorização da prática
docente, dispondo de bolsas concedidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES)279 aos estudantes dos Cursos de Licenciatura, desenvolvendo um trabalho que,
com a supervisão de um professor da Educação Básica e um coordenador de área da Educação
Superior, deverá estimular e possibilitar uma parceria entre os dois níveis de ensino, o básico e o
superior, envolvendo, neste processo, docentes e discentes que em um futuro próximo se tornarão
docentes também.

Nos dados encontrados em levantamentos, como o censo 2013 realizado pelo Instituto Nacio-
nal de Estudos e Pesquisas Educacionais –INEP, pode-se averiguar a diminuição do número de
matrículas nos cursos de licenciatura, e foi a partir da preocupação relacionada ao decrescente
número de estudantes candidatos a professor do Ensino Básico, matriculados nas universidades
e ilustrado por esta pesquisa, que o PIBID foi criado, servindo de estímulo, experimentação e
enriquecimento da atividade docente, principalmente no Ensino Médio, que é o segmento alvo
deste programa.

279. Autarquia e agência pública de pesquisa do Brasil vinculada ao Ministério da Educação.

877
O PIBID é, hoje, um grande marco na formação inicial de um grupo de acadêmicos de Artes Visuais
que, juntamente com professores da IES e professores da rede pública estadual de ensino, vislum-
bram uma formação inicial alicerçada em um ensino, ao mesmo tempo, investigativo e reflexivo que
constrói, desconstrói e reconstrói a prática escolar cotidianamente, alimentada por saberes advindos
não apenas do universo acadêmico mas também das ações colaborativas que passaram a existir entre
a comunidade universitária e a comunidade escolar, formada pela escola e todo o seu entorno. (NU-
NES, 2013. P. 27).

O subprojeto do PIBID/Artes Visuais teve o seu início em 2012, na Universidade Federal e Pernam-
buco – UFPE, e o primeiro grupo de estudantes de Artes Visuais a ingressar no PIBID. Atuou na
Escola Estadual Diário de Pernambuco, localizada no Engenho do Meio, na Região Metropolitana
do Recife; era composto por cinco discentes e supervisionado pela professora que ministrava a
disciplina de Artes na escola; mais adiante, este grupo foi renovado (o período da bolsa é de dois
anos) e outro grupo de estudantes, desta vez, foi atuar no Colégio de Aplicação da Universidade
federal de Pernambuco – CAp, onde permaneceu por cerca de um ano, sendo direcionado no ano
posterior (2015) para o IFPE Campus Olinda, onde atuariam no Curso Técnico subsequente de
Artes Visuais.

O subprojeto de artes visuais será pautado pela compreensão dessa área de conhecimento em seu
contexto social, cultural, histórico e político, no ensino de artes visuais, no nível médio de forma a
contextualiza-la na vida cotidiana do estudante. A experimentação faz parte da essência do ensino
de arte; no experimentar os estudantes são levados a resolverem os desafios enfrentados na própria
vida, buscando além das soluções, a autonomia. Nota-se aqui a ênfase no caráter experimental da
arte como enfatizam Paulo Freire e John Dewey; e o exercício criativo de curiosidade nas buscas das
leituras das imagens da arte e do cotidiano.
Este subprojeto visa assim engajar os/as licenciandos/as de Artes Visuais no seu ensino, no nível
fundamental e médio de escolas públicas estaduais, fomentando neles a práxis da docência lidando
com a leitura de mundo de forma mais ampla do que o currículo, visto no seu curso. Apontamos
ferramentas para que os/as bolsistas lidem com um currículo de ensino mais amplo, qualitativo,
sublinhando o caráter específico das artes visuais em ler, contextualizar e produzir arte, citando Ana
Mae Barbosa. (Subprojeto Pibid/Artes Visuais UFPE, 2012).

Desde do seu início, o PIBID de Artes Visuais adotou como prática uma reunião semanal para ler
e estudar textos que dizem respeito a didática, metodologia, ensino, teoria da Arte e outros vários
temas. Nestas reuniões, as ações do PIBID na escola também são avaliadas, refletidas, reestruturadas
por todos (Coordenadores, supervisores e estudantes da graduação). Foi criada, então, uma sistema-
tização de reuniões que, no semestre passado, 2015.1 funciona da seguinte forma: todas as segun-
das-feiras, o grupo de Pibidianos reúnem-se com a coordenadora da UFPE, sendo que no Campus
Olinda do IFPE - 1ª segunda do mês com todos os professores do IFPE que recebem o PIBID em
suas aulas, todos os estudantes do PIBID, Coordenadora do grupo (UFPE) e Supervisora (IFPE).
Na segunda segunda-feira do mês, reúnem-se no Centro de Artes e Comunicação - CAC - UFPE,
Coordenadora e estudantes do PIBID. Na Terceira segunda-feira do mês, no CAC - UFPE, Coorde-
nadora PIBID, supervisora IFPE e estudantes do PIBID. E, finalmente, na quarta segunda-feira do
mês, no CAC - UFPE, Coordenadora e estudantes do PIBID. Estas reuniões têm se mostrado como
algo de grande importância para todos os envolvidos, haja vista que o PIBID traz a possibilidade de

878
trabalharmos com bastante flexibilidade e reestruturações programáticas, didáticas, metodológicas,
proporcionando ao licenciando vivenciar a realidade de um cotidiano escolar em que tudo é constan-
temente reavaliado.

Imagem 2. Reunião do PIBID na UFPE, 2015


Fonte: acervo da Autora.

3. O CURSO TÉCNICO EM ARTES VISUAIS DO IFPE E A LICENCIATURA


EM ARTES VISUAIS DA UFPE

O Curso Técnico de Artes Visuais no IFPE é um curso bastante recente. Começou a funcionar somente
em outubro de 2014 e formará a sua primeira turma no segundo semestre de 2016. Constitui-se como
um espaço novo de formação, de investigação, que deverá contribuir para as diversas formas de inserção
para futuros profissionais no campo das Artes, porém, mesmo sendo, também, um curso de Artes em
uma Instituição Pública, como na Universidade Federal, ele oferece uma formação que difere da Gradu-
ação em Artes Visuais da UFPE, haja vista que sua duração é de quatro períodos, ao contrário da UFPE,
cuja formação é constituída por oito períodos letivos. Além disso, os componentes curriculares são, na
sua maioria, voltados para as disciplinas de ateliês (mais práticas), como: Estamparia de tecidos, Mode-
lagem em barro, Gravuras I e II, Curadoria e montagem de exposições, Pinturas I e II, Mídias digitais
Fotografia e Desenho de observação e de Modelo vivo, para dar alguns exemplos; em oposição aos da
UFPE, onde a maior parte hoje se destina à componentes voltados para a História da Arte I, II, III, IV e
V e várias outros voltadas para a Educação, como: Metodologias das Artes Visuais, Estágios curriculares
em Ensino das Artes visuais I, II, III e IV; além e gestão Educacional e outras, possuindo um currículo
bastante diversificado, mas que a cada dia se volta mais para uma realidade de Curso de Licenciatura.

879
Mas, então, por que estudantes das Licenciaturas estão utilizando como campo de pesquisa um cam-
po da educação profissional? Esta foi uma pergunta que nos fizemos (Coordenadores e supervisores
do PIBID) durante muito tempo. Seria este um espaço de estudo e trabalho para o estudante de uma
Licenciatura?

Legalmente, desde 2008, a Educação Profissional e Tecnológica passou a integrar a Lei 9.394/96, de
Diretrizes e Bases da Educação, e se constitui de um espaço para a formação básica. Sendo assim, este
será um campo de atuação para os licenciados pela UFPE. Além disso, a experiência de acompanhar
o cotidiano dos estudantes, seja na sala de aula ou fora dela, em oficinas, cursos ou outras atividades,
já que a atuação do PIBID não se restringe somente à sala de aula: comporta-se como um espaço
diferente de atuação do professor de Artes que, neste caso específico, forma pessoas que atuarão em
ateliês, espaços expositivos, espaços de aprendizados não formais, como em Organizações não for-
mais-ONG’s, pontos de cultura, ateliês de artistas e outros, constituindo, assim, outras possibilidades,
que não estão, necessariamente, voltadas para as mesmas perspectivas de uma formação básica de
Ensino Médio tradicional.

Em um primeiro momento da chegada do grupo de licenciandos da UFPE ao Campus do IFPE, hou-


ve uma apresentação do espaço físico da escola, que tem funcionado em um Campus provisório280, no
Bairro de Jardim Atlântico, no município de Olinda; para que os licenciandos pudessem pensar e es-
truturar as suas ações em consonância com a realidade infraestrutural apresentada, foram mostrados
os ateliês, espaços externos, laboratórios e salas de aula; depois o corpo docente, já que os licenciandos
trabalham constantemente junto aos docentes do Instituto, coordenação de cursos. Em Olinda, por
enquanto, funcionam os cursos281 de Técnico subsequente em Artes Visuais e Técnico subsequente em
Computação Gráfica, que está muito voltado para o design, com planos para o futuro de tornar este
Campus um Campus das Artes, somando a estes dois cursos outros das diferentes linguagens, como
Dança, Música e Teatro.

Mais adiante, foram apresentados, aos licenciandos, documentos relacionados ao curso Técnico para
que eles pudessem se inteirar e compreender melhor a proposta do curso do IFPE. Dentre os do-
cumentos apresentados estavam: Planejamento Pedagógico do Curso – PPC, Matriz curricular do
curso, Ementa das disciplinas do curso, Prévia do Planejamento semestral da disciplina (aberta para
modificações). Sendo importante ressaltar que, dentro do planejamento do grupo do PIBID, uma das
ações é participação do planejamento das aulas junto ao docente do IFPE, na tentativa de acrescentar
ao planejamento questões que talvez não tenham sido pensadas pelo docente da Instituição, mas que
enriquecessem as aulas e atividades pedagógicas.

280. Doar o terreno para o funcionamento de um Campi do IFPE é a contrapartida das prefeituras para com os Institutos Federais de Ensi-
no, a Prefeitura da Cidade doa um terreno para a o IFPE construir as suas instalações e o IFPE vem para a cidade. Em Olinda este terreno
está passando por processos como terraplanagem e por estas e outras questões o Campus Olinda do IFPE tem funcionado em um prédio
provisório emprestado pela Prefeitura de Olinda.
281. Os cursos para os Campus do IFPE, na expansão três, como é o caso de Olinda, foram escolhidos em audiência pública, depois que
uma empresa contratada pelo IFPE, pesquisou na cidade quais seriam as demandas de cursos adequados à realidade da cidade, após quatro
sugestões de cursos, foram escolhidos os dois supracitados. A quantidade de cursos no Campus Olinda só deverá ser aumentada quando
inaugurarem o prédio definitivo, que contará com estrutura melhor adequada às necessidades dos cursos.

880
Imagem 3. Atividade desenvolvida pelos Pibidianos junto aos estudantes do curso técnico.
Fonte: Acervo da autora.

4. ORGANIZAÇÃO DOS GRUPOS DE PIBID NO INSTITUTO FEDERAL

O primeiro grupo de PIBID a chegar no Instituto Federal foi composto por cinco estudantes
de períodos variados da UFPE. O processo de escolha dos componentes curriculares que iriam
acompanhar variou de acordo com o interesse de cada estudante e da sua disponibilidade de ho-
rário, pois todos estão cursando disciplinas da graduação na Universidade. É importante ressaltar,
também, que não são todos os professores do Instituto que se mostram interessados em receber
em suas aulas estudantes do PIBID. Por conta disto, quando é apresentado ao Pibidiano o horário
de aulas daquele semestre no Instituto, também já há uma orientação a respeito dos professores
que se mostram interessados e abertos à presença dos Pibidianos em suas aulas durante o semes-
tre letivo.

No primeiro grupo que se fez presente no Instituto Federal, no semestre 2015.1, só houve, ao longo
do percurso, uma troca de estudante, por questões pessoais. De forma geral, estes estudantes per-
manecem no projeto durante dois anos consecutivos, salvo se terminar a graduação, quando será
excluído automaticamente, o que não foi o caso de nenhum deste grupo. As disciplinas escolhidas
por eles neste período foram: História das Artes II, Fotografia e Fundamentos da Linguagem Vi-
sual. Em algumas disciplinas, algumas vezes, há a presença de mais de um Pibidiano, mas, ainda
assim, existe uma preferência que se alternem os horários de presença na disciplina, para este gru-
po só existiam dois períodos disponíveis no curso e por isso se dividiram entre aulas de primeiro
e segundo períodos.

881
A segunda formação do grupo já passou por algumas mudanças: havendo a saída de dois componentes
do grupo e a entrada de outros dois. Os que saíram o fizeram porque precisaram se dedicar mais às dis-
ciplinas da graduação, já que estavam próximos da conclusão da graduação; este grupo no semestre de
2015.2 escolheu como disciplinas para acompanhar: Desenho de Modelo Vivo, Gravura I, Estamparia,
Modelagem em Barro, Mediação Cultural e Pintura I. Para este grupo houve a existência também do
terceiro período e assim alguns optaram por disciplinas mais práticas. Alguns acompanharam mais de
uma disciplina, ficando algumas vezes com uma disciplina mais prática e outra mais teórica.

A Terceira formação que é a vigente no período que se inicia – 2016.1282 – também é composta de
cinco estudantes. Passaram por uma troca dois estudantes do semestre passado para este e escolheu
como disciplinas para acompanhar: Mídias Digitais, Mediação Cultural, História da Arte no Brasil e
Pintura II, sendo algumas destas disciplinas já pertencentes ao quarto período do curso, que, por sua
vez, é uma turma terminal.

Sendo importante ressaltar que a presença dos estudantes com PIBID na escola tem ido além da ação
em sala de aula, diante de um entendimento de todos do grupo que as condições e aprendizagem se
dão dentro e for a da sala de aula, portanto, dentre estas ações do PIBID na escola, podemos ressaltar a
grande importância da contribuição na sala de aula desde a elaboração do planejamento à efetivação do
conhecimento, passando por atividades realizadas fora e dentro da sala de aula, regências, visitas técni-
cas, oficinas para todo o Campus, atividades no contraturno de aulas, reflexões acerca da estruturação
do curso, cotidiano em sala de aula, propiciando para estudantes, professores, coordenadores de ambos
os cursos e supervisores a constante reavaliação do conhecimento construído no espaço educacional.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Investigados à partir da observação, entrevistas, conversas e depoimentos, podemos concluir que a


presença dos Pibidianos no IFPE Campus Olinda tem, de fato, gerado bons frutos. Vejamos o que
dizem os docentes do Instituto: “Com a presença dos estudantes/PIBID houve uma oxigenação das
aulas, trocas constantes, possibilidade de reatar vínculo com a Universidade”. Para os Pibidianos: vi-
vência de um cotidiano escolar dialogado com o corpo pedagógico da escola, um campo aberto para
a pesquisa e experimentação. Para os estudantes do Ensino Técnico: novas práticas de aprendizagem,
diálogos, novas metodologias, estímulo para estudar e aprender. Para todos: praticar, experimentar,
reinventar, reavaliar, reconstruir, ousar, refletir, desfrutar do prazer de viver o dia a dia de um pro-
cesso de prática em ensino em uma escola básica, mas, principalmente, aprender todos os dias com
todos que perfazem uma escola.

REFERÊNCIAS

COORDENAÇÃO de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Programa Institucional de Bolsa de Ini-


ciação a Docência. Disponível em: <http://www.capes.gov.br/ educacao-basica/capesPibid>. Acesso em: 17 dez.
2015.

282. Houve um atraso no início das aulas do semestre 2015.2 por questões infraestruturais do prédio, fazendo com que o semestre 2016.1
só tenha início em maio de 2016.

882
FREIRE, Eleta Carvalho; RAMOS, Sérgio Ricardo Vieira; DIONÍSIO, Ângela Paiva (Orgs.). PIBID-UFPE: por
uma nova cultura institucional na formação docente. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2014.
INSTITUTO Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira. Censo da Educação. 2013. Disponível em: <http://
download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/apresentacao /2014/coletiva_censo_superior_2013.
pdf>. Acesso em: 12 dez. 2015.
NUNES, Ana Luiza Ruschel. Artes visuais e processos colaborativos na iniciação à docência e pesquisa. Nova
Ponta Grossa: Editora UEPG, 2013.

883
Misterioso encantado como
proposta dialógica de arte educação
Nildo Alfredo Barbosa/ Elinildo Marinho de Lima

INTRODUÇÃO

A Literatura de Cordel, mesmo tendo se originado de maneira humilde, apresenta com um espírito de
forma clássica, mesmo assim, considera-se com um propósito educativo e como ferramenta para o ensi-
no-aprendizagem. Com isso, é intenção dos autores produzi-la sempre da maneira mais correta possível.

O Cordel é uma poesia oral, mas com influência notável na escrita, da norma gramatical culta. Isso acon-
tece quando não se trata do Cordel como algo relacionado apenas à poesia matuta, e que, por sua vez,
apresenta uma forte tendência em criar histórias do nada, criar alegorias a partir dos pequenos aconteci-
mentos, com uma visão crítica e irônica dos costumes e fatos do cotidiano, contribuindo para que os po-
etas desenvolvam sua capacidade intuitiva fundamentadas nas motivações escondidas no fazer humano.

Foi assim que Billé Ares buscou inspiração no Romance do Pavão Misterioso, de José Camelo de Melo
Rezende, para criar o alegórico espetáculo O Misterioso Encantado, cuja finalidade é contribuir de
maneira metodológica, numa linha dialógica, através da música, com o processo de ensino-aprendi-
zagem na atualidade. Seu lirismo, a sua filosofia são marcos motivadores para adquirir e desenvolver
o “gosto” que a leitura traz.

Com todo aparato tecnológico ao alcance da sociedade, ainda se faz necessário tornar o ambiente da
sala de aula o local mais agradável possível, com capacidade de produzir materiais que façam a dife-
rença, em especial à leitura. Nietzsche, o grande filósofo, enfatiza que “a criatividade vem como um
raio e não temos como detê-la”.

Logo, as práticas pedagógicas vivenciadas em sala de aula, motivam o processo de criação de novos
textos, onde os aspectos culturais se tornam expressões marcantes destas produções.

Mais que uma mera reprodução do som, a música é também um meio imprescindível para provocar
o processo dialógico na aprendizagem, e por isso, é importante lançar mão dela como ferramenta,
como forma de atender aos interesses dos atores envolvidos.

884
1. CAMINHOS PERCORRIDOS PELA LITERATURA DE CORDEL NO BRASIL

Pesquisas apontam que o cordel é um gênero da literatura que se vale das narrativas para se tornar
poesia popular e teve o seu auge entre os anos de 1940 e 1950, através da propagação oral, onde o mote
contava fatos da vida pública, amorosa e política de um povo, tudo isso depois publicado em folhetos
que eram impressos um a um, e geralmente vendidos nas residências, feiras livres e praças, em forma
de cantoria, conforme o relato da reportagem apresentada pelo jornal Mundo Lusíadas, por Costa
Filho, de 02 abr. 2007.

A “Literatura de Cordel”, vem de Portugal, começou aí por volta do início do século XVII (século 17),
mesmo porque, a poesia é eterna, vem da alma dos poetas, dos declamadores, dos cancioneiros e te-
mos notícias já do século XII (século 12), quando ainda falava-se o português arcaico, de poesias que
ficaram gravadas para a posterioridade, como do poeta dessa data: João Rodrigues de Castelo Branco.

Outras pesquisas têm apresentado manifestações em que a Literatura de Cordel se faz presente, desta-
cando-a como um dos primeiros núcleos da cultura mundial com relatos de que existia manifestações
com estas características no ocidente por volta do século XII, no sul da França, onde os peregrinos
se encontravam, em direção à Palestina no norte da Itália, para chegar a Roma e ainda na Galícia no
Santuário de Santiago.

Descreviam que nesses encontros os primeiros versos compostos de forma muito primitiva foram
transmitidos, sob o acompanhamento de instrumentos de música, e assim foi se espalhando por toda
Europa e, posteriormente, pela América.

Sabe-se ainda, que, pelo menos, até as primeiras décadas do século XX, as taxas de analfabetismo
chegavam a quase 70% da população com mais de 15 anos e eram muito baixos os índices de esco-
larização, supondo-se, deste enfoque, que, até recentemente, somente parte ínfima da elite cultural
brasileira se relacionava com escrita, leitura, cultura e artes clássicas.

Para facilitar a memorização, os cordéis eram escritos em rimas, e transmitidos oralmente à popu-
lação da zona rural que concentrava a maior parte da população brasileira, e com o tempo, estes fo-
lhetos passaram a ser confeccionada a mão, e ilustrados com xilogravuras, uma espécie de impressão
inversa como carimbos, a partir de matriz de madeira.

Em Portugal os folhetos eram expostos à venda pendurados em cordas (ou cordéis), o que deu origem
ao nome do folheto de cordel brasileiro, hoje também vendidos em bancadas e algumas livrarias.

A década de 60 foi um período de inércia para consolidar a literatura de cordel, devido aos vários
conflitos políticos e sociais existentes na época, e que tiveram uma contribuição desastrosa nessa
poda.

Já na década de 70, o movimento reascende ganhando suportes e aportes, como os das Universidades
que agora apresentam interesses pela temática, nas e pesquisas universitárias. Com o tempo, esta
prática desencadeou um movimento cultural bastante relevante graças a capacidade que os poetas de-

885
senvolveram de memorização e o e interesse em apresentar suas narrativas através da escrita. Segundo
Fonseca dos Santos (1999, on line):

A literatura de mascate, de cordel ou folhas volantes, esteve provavelmente presente no Brasil, como
no resto da América Latina, desde os tempos coloniais: documentos comprovam o embarque regular
de pliegos sueltos para as colônias espanholas. Contudo, o primeiro folheto brasileiro, encontrado
por Orígenes Lessa, é datado de 1865 e foi publicado no Recife. Escrito sobre o modelo de testamen-
tos de animais, tão apreciados pela literatura de cordel portuguesa, ele contém alusões a aconteci-
mentos da vida pernambucana que comprovam sua escritura brasileira. A partir de 1893, a literatura
de folhetos constitui, aos poucos, um conjunto complexo e independente do sistema literário insti-
tucionalizado com seus poetas e suas editoras que, até os anos 1960, pertencem freqüentemente a
poetas. Esta literatura tem suas próprias redes de comercialização (os mascates), sendo vendida nas
feiras, nas estações ferroviárias e rodoviárias, e até nas ruas.

De característica eminentemente oral, e sua forma escrita só apareceu tempos depois, o cordel se
adaptou bem à cultura nordestina, na época formada, por uma população que, na sua maioria, não
tinham a leitura nem a escrita na sua formação, inclusive alguns poetas, Este fato acabou levando os
poetas a aprendizagem autônoma, onde o resultado se dava a partir da tríade, ouvir, decorar e ler.

Segundo Ariano Suassuna (apud, GASPAR, 2003, on line): “a literatura popular em versos do Nordes-
te brasileiro pode ser classificada nos seguintes ciclos: o heróico, o maravilhoso, o religioso ou moral,
o satírico e o histórico”.

Para melhor entendimento da evolução histórica do cordel no Brasil, se faz necessário atentar para
características que na época deram suporte a sua consolidação.

O advento da imprensa, muito contribuiu para a propagação dos folhetos de cordel no Brasil, embora
o que tenha alavancado sua propagação tenha sido a genialidade dos poetas em improvisar redondi-
lhas e rimar versos em narrativas espirituosas e desafiadoras.

A tradição do povo nordestino de contar histórias - com as respectivas performances orais - ainda
era intensa na primeira metade do século XX, as pessoas se reuniam em casas de conhecidos para
ouvirem o contador, muitas vezes um analfabeto de extraordinária memória acaba sendo o melhor e
mais apreciado no entretenimento.

Técnicas diversificadas entram no “vale tudo” para despertar o interesse pela leitura e conseqüen-
temente pela escrita e dentre os mais variados métodos investigadas decidiu-se pela música como
elemento estruturador e motivador, aliado a Literatura de Cordel por apresentar uma linguagem sim-
ples e uma escrita breve como alguns dos atributos que envolvem, despertam e facilitam o gosto pela
leitura. Em Linhares (2009 on line):

A literatura de cordel continua um expressivo meio de comunicação neste século XXI, apesar da
morte, tantas vezes anunciada, ao longo dos tempos. Felizmente, enquanto expressão cultural, per-
manece, adaptada, reinventada, no desempenho de suas funções sociais. Informar, formar, divertir,
socializar ou poetizar, conforme os diferentes temas que retrata e o enfoque abordado. Da oralidade,

886
lá em suas origens remotas, à era tecnológica, hoje, é real a transformação e adaptação, compatível à
própria evolução da humanidade.

Assim, o Cordel leva à memorização e isso está relacionado à própria compreensão do que se lê, e é
sabido que só se gosta e se aprecia aquilo que se entende que aliado a dualidade literatura e música,
passa a existir uma maior apropriação pela leitura.

2. PENSAR O ESPETÁCULO COMO ELEMENTO DE DIÁLOGO

Considerado um dos clássicos da Literatura de Cordel e um dos folhetos mais vendidos em todos os
tempos, o Romance do Pavão Misterioso escrito por José Camelo de Melo Rezende no final dos anos
20, também a base inspiradora para a construção desse diálogo, onde toda musicalidade caminha
junto com a Literatura, para contar a aventura do jovem Evangelista.

Toda narrativa do Misterioso Encantado foi construída em rimas e versos, conta à história de forma
melodiosa, cadenciada alegre e descontraída, das aventuras de um rapaz chamado João Evangelista
que ao contemplar a beleza de Creusa, uma donzela conservada prisioneira pelo seu pai, e nessa busca
incessante começa a sentir um forte desejo por ela, capaz de tirara-la do sobrado e finalmente tomá-la
para sempre como sua mulher.

Logo, Evangelista foge com Creusa, ajudado por um pavão mecânico que faz parte do imaginário
Construído a partir de diferentes versões do cordel, o espetáculo “Misterioso Encantado” valoriza
as canções regionais populares que são executadas ao vivo, por músicos e instrumentistas que apro-
veitam da narração para fazer uma mistura de ritmos diversos como: a ciranda, o cavalo marinho, o
frevo, o xaxado, o forró e tantos outros ritmos nordestinos.

A integração de todos estes ritmos trouxe ao espetáculo uma maior conscientização de que cada parte
e importante no desenvolvimento total do projeto, pois no processo de aprendizagem a socialização
tem papel preponderante, principalmente porque é desenvolvida de maneira criativa, lúdica e poética.

Partindo deste princípio, se fez necessário desenvolver um trabalho com diversas linguagens, onde
fosse possível oferecer aos expectadores uma pluralidade de resultados, que perpasse pela simbologia
do encantado, do publico que vai além da diversão e oferece varias outras oportunidades como a de
novas experimentações, o contato com os vários segmentos das artes, principalmente no se refere a
musica, a poesia, a literatura de cordel e o teatro, tudo isso vivenciado e utilizado como ferramenta
que encontra aporte na educação nas diversas áreas do conhecimento.

3. PROPOSTA DE ENCENAÇÃO

A criação do personagem se apoiou em pesquisas de várias figuras presentes no imaginário popular


coletivo e por sua vez característico da cultura popular nordestina.

A partir daí, esta figura foi sendo potencializada nas mais variadas nuances, como forma de encontrar
um corpo cênico que se alinhasse ao folclore nordestino através de alguns artistas, como os poetas

887
populares, cantadores de viola e emboladores, o mamulengo, além das danças e ritmos populares do
nordeste brasileiro.

Buscou-se na cultura cômica popular a fundamentação para a criação e apresentação do espetáculo


baseado na dinâmica, provando que é possível tornar o terrível risível e, a partir daí, o público liberar
sua imaginação.

Assim, o espetáculo “O misterioso encantado”, na sua diversidade, foi pensado para ser encenado nos
mais diversos espaços e equipamentos culturais, por adaptar bem sua plasticidade, demonstrando a
arte cênica presente e envolvendo os segmentos do teatro, da música e da dança em um musical onde
a cultura popular nordestina é a verdadeira expressão.

Como em muitas narrativas populares, no “O Misterioso Encantado”, o herói vem do estrangeiro e


sua história acontece também em uma região longínqua, sempre presente no imaginário do leitor ou
ouvinte.

Com isso, o personagem João Evangelista do cordel vem da Turquia e, na sua aventura, tem o nordeste
brasileiro como aporte na construção deste imaginário, que se amplia a partir das investigações cul-
turais realizadas e que confere ao personagem a mais pura magia.

Vivendo em paragens remotas ou simplesmente desconhecidas do apreciador da história, mesmo que


povoadas de perigos e ameaças, o herói acaba se revestindo de uma natureza misteriosa, quase sempre
relacionada a habitantes de lugares imaginários e distantes, criando uma relação entre a fantasia, o
popular, e a realidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado com a poética do Espetáculo “O Misterioso Encantado” contribui para compre-
ender a importância da literatura de Cordel como característica do dialogismo e da oralidade nas
manifestações populares, uma vez que em sua narrativa transparece quase todos os gêneros encon-
trados na literatura popular, como adágios, adivinhas, provérbios, anedotas, causos e principalmente
o cordel.

Nesse sentido, a narrativa da obra de José Camelo de Melo Rezende, O Romance do Pavão Misterio-
so, ajudou-nos a fazer uma releitura desse gênero literário, através da sua temática, das composições,
do simbolismo, dos adereços e até mesmo da sua narrativa, por conter elementos fundamentais dos
contos populares na sua estrutura formal.

Investigamos, ainda, que o cordel, enquanto representação artística da literatura popular, pode e deve
ser vivenciado como uma das práticas pedagógicas e de leitura nas escolas por ser um dos elementos
fundamentais no processo dialógico, contribuindo, assim, para atingirmos resultados exitosos, desde
que a equipe pedagógica se integre como mediadora do processo e se torne apreciadora desse gênero
da literatura.

888
Esclarecemos ainda que a intervenção realizada através deste estudo não é o único caminho a ser
seguido, é apenas uma possibilidade encontrada para se produzir conhecimento, que vai desde a área
de Comunicação e Expressão e perpassa pelos Temas Transversais até encontrar a dialogicidade como
forma de se materializar.

Na verdade, utilizamo-nos dessa prática como desculpa para contribuir com a formação da critici-
dade do aluno, tendo em vista que os resultados se concretizarão quando compreendermos que as
relações dialógicas entre o “clássico” e o cordel é uma experiência em que a leitura se torna bastante
significativa e capaz de ir para além da sala de aula.

Logo, a leitura de folhetos de cordel aliada à leitura de obras consideradas canônicas pode trazer inú-
meras contribuições para o processo de formação de novos leitores, bem como o reconhecimento da
função social que emana da literatura nas suas mais variadas formas.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil Gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1994.
ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
______. “Então se forma a história bonita” – relações entre folhetos de cordel e literatura erudita. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, v.10, n. 22, p. 199- 218, jul./dez. 2004.
______. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas /SP: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil,
1999. (Coleção Histórias de Leituras)
AYALA, Maria Ignez Novais. Aprendendo a apreender a cultura popular. In: PINHEIRO, Hélder (Org.). Pesqui-
sa em literatura. Campina Grande/PB: Bagagem, 2003, p. 83-119.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750- 1880. 13. ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2012.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 12. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. (Coleção Debates 1)
FREIRE, Paulo. A Importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1995
GASPAR, Fontes Lúcia. Literatura de Cordel. Pesquisa Escolar On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/>. Acesso em: 15 maio 2016.
HAVELOCK, E. A equação oralidade-cultura: uma fórmula para a mente moderna. In: OLSON, D. R.; TOR-
RANCE, N. (Orgs.). Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática, 1995.
LINHARES, Thelma R. S. A história da Literatura de Cordel. Disponível em: <http://www.camarabrasileira.
com/cordel101.htm%3E.%20Acesso%20em:%2011%20de%20Outubro.%202009>. Acesso em: 15 maio 2016.
MACHADO. Irene A. Literatura e Redação. São Paulo: Scipione, 1994.
REZENDO, João Camilo de Melo. Romance do Pavão Misterioso. Disponível em: <http://www.onordeste.
com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Pav%C3%A3o+Misterioso&ltr=p&id_perso=1278v>.
Acesso em: 15 maio 2016.

889
ANEXO A - Imagens do espetáculo O Misterioso Encantado

890
891
ANEXO B – Informações sobre o espetáculo

PÚBLICO ALVO

O espetáculo musical O Misterioso Encantado, está direcionado a públicos de todas as idades, que sua
plasticidade e musicalidade, envolve desde a criança mais tenra até os adultos da boa idade.

FICHA TÉCNICA:

Atuando na narrativa cantada e contada – BILLÉ ARES


Violão, flauta, e direção musical – HÉLIO MACHADO
Bateria e efeitos– LEONARDO FERREIRA
Baixo – LÉO CALAZANS
Teclado e escaleta – GUSTAVO ANDRADE

892
Cenários e figurinos – DENILSON NEVES
Texto, músicas letras e melodias – BILLÉ ARES
Produção executiva – MADELAINE ELTZ
Assistente de direção – J ANNDRADE
Coreografia corporal – CLAUDEMIR DE ABREU
Mascaras e bonecos – BILLÉ ARES
Gênero – MUSICA E TEATRO
Classificação – LIVRE
Duração – 1h 20 minutos
Produção – VANGUARDA TEATRO PRODUÇÕES
Concepção pedagógica – NILDO BARBOSA e ELINILDO MARINHO

Arquivo da Vanguarda Produções e Eventos.


Em 15.06.2016.

893
Desconstruindo o cenário e tecendo
a liberdade: a experiência do sociodrama
na prevenção do uso do álcool, fumo e
outras drogas no Projovem urbano
Ilana de Oliveira Aguiar

INTRODUÇÃO

A experiência aqui demonstrada parte da preocupação dos coordenadores municipais, de educadores


e gestores do Projovem Urbano em responder a questões sociais que são postas pela juventude de nos-
sa contemporaneidade, a de levar informação, conscientização, além de prevenção sobre problemas
sociais, físicos e psicossociais advindos do uso indevido de drogas.

Durante o processo de intervenção social realizamos a Técnica do Sociodrama e dinâmicas de grupo,


atividades lúdico-educativas (Momento PRO Talento JOVEM de Cultura e Arte), Exibição de Vídeo
(Filme Diário de um Adolescente e Escritores da Liberdade), exposição de conteúdos sobre a temática
e realizamos atendimentos individuais e/ou em grupo. Através destas ações foi possível investigar e
coletar dados qualitativos para a pesquisa-ação do tema que será debatido neste trabalho. No entanto,
tendo por base a intervenção social com os jovens, procurou-se refletir sobre a “Qualidade de vida e
Liberdade” em detrimento das “drogas e dependência”. Identificar soluções, desafios e possibilidades
de mudanças, ao invés de focalizar os problemas. Olhando os educandos enquanto “sujeitos de direi-
to”. Dessa forma, a nossa pesquisa-ação, além do seu caráter investigativo, teve a preocupação de levar
informação aos jovens que tiveram ou não envolvimento com drogas psicotrópicas. Buscou-se obser-
var e realizar a escuta de educandos e educandas, educadores e educadoras, priorizando não a questão
da droga em si, e sim o comportamento que a droga ocasiona, como: problemas sociais, de saúde e de
qualidade de vida. Aprendendo, refletindo, dialogando e investigando sobre a realidade vivenciada na
escola, na família, na comunidade, na sociedade, relacionando-a a questão do universo das drogas.

1. O PROCESSO DE INTERVENÇÃO SOCIAL E A PESQUISA-AÇÃO


NA PREVENÇÃO DE DROGAS NO PROJOVEM ORIGINAL DE RECIFE

Os problemas sociais ocasionados pela relação, que tem se estabelecido de forma banal e desinfor-
mada, entre juventude e drogas na atualidade vêm configurando de forma marcante o ambiente
escolar. Nas escolas e bairros nos quais existe o Projovem Urbano, estes problemas se tornam pro-

894
tagonistas da vida dos jovens, e eles se tornam meros escravos de problemas como: da fobia escolar;
do déficit de atenção (ADHD); do afastamento ou abandono escolar; da repetência; da falta de
motivação; da vida sem objetivos; das sextas-feiras de evasão por causa do álcool; das segundas-
-feiras de depressão por causa da ressaca de bebidas alcoólicas; da saída para fumar um cigarro no
meio da aula; dos traficantes e seus toques de recolher que impedem os estudantes de ir à escola,
da violência, da criminalidade da morte. Assim, a droga, seja ela licita ou ilícitas roubam a cena
assumindo grande importância na dinâmica escolar, seja somando-se a violência, ou seja, no aban-
dono da vida escolar. Sendo assim, esclarecemos que adotamos a pesquisa-ação como método de
pesquisa por ela ser:

Uma metodologia de investigação da prática educativa que assume o caráter emancipatório, pois
mediante a participação consciente, os sujeitos da pesquisa passam a ter oportunidade de se libertar
de mitos e preconceitos que organizam suas defesas à mudança e reorganizam a sua autoconcepção
de sujeitos históricos. (FRANCO, 2005, p. 485).

Desta forma, procurando dar início ao processo de intervenção social e à pesquisa-ação realizamos
um estudo – em conjunto com coordenadores locais e do município, gestores, educadores, assistentes
sociais e qualificadores profissionais – do diagnóstico situacional dos problemas enfrentados pelos
jovens do Projovem Urbano da cidade do Recife vitimizados ou usuários de drogas, visando decidir
quais seriam as escolas que emergencialmente precisavam de maior intervenção social, em conformi-
dade com a realidade local apresentada. Após o estudo, constatou-se que as escolas que precisariam
de intervenção seriam primeiramente as escolas situadas na RPA/01, são elas: Escola Municipal Sede
da Sabedoria, localizada no bairro de Santo Amaro; Escola Municipal Pedro Augusto, localizada no
bairro da Boa Vista; Escola Almirante Soares Dutra, localizada no bairro do Cabanga e que também
atende aos alunos do bairro da Ilha de Joana Bezerra; em seguida, uma escola localizadas na RPA/06,
no Ibura COHAB, a Escola Municipal dos Rios; depois, a Escola Municipal Casa dos Ferroviários,
localizada no bairro de Tejipió, RPA/05; e, por fim, a Escola Municipal Ana Maurícia, localizada no
bairro de Água Fria, RPA/02. Destacamos que estas localidades foram escolhidas por estarem nossos
educandos em maior situação de vulnerabilidade social vivendo em situação de extrema pobreza e
exclusão social. Além do desemprego e falta de oportunidades, que resulta fortemente em seu envol-
vimento com o tráfico de drogas.

Sendo assim, o processo de intervenção social (ao qual denominamos de Encontro) e a pesquisa-
-ação se estruturaram em três momentos, quais sejam: o de Diagnóstico; o de Intervenções Pla-
nejadas (Encontros); o de Avaliação e Coleta dos resultados (através da técnica do Sociodrama
e dinâmicas de grupo). Participaram da pesquisa-ação cerca de 630 alunos e 20 educadores do
Programa Nacional de Inclusão de Jovens de Recife, além de familiares atendidos através de visitas
domiciliares. Para as Intervenções Planejadas ou Encontros, procurou-se utilizar técnicas e dinâmi-
cas de grupo, priorizando: vivências, aulas dialogadas (roda de debates), orientações pedagógicas
(destinado à prática relacional e funcional do núcleo, no que diz respeito às drogas), reuniões de
planejamento e avaliação em conjunto com os educadores, produção de recursos audiovisuais e
palestra. Para a sistematização e avaliação do nosso trabalho, usamos a metodologia da observação
participante e da avaliação continua.

895
2. TÉCNICAS E DINÂMICAS DE GRUPO COMO INSTRUMENTOS DE PESQUISA-AÇÃO: A EXPERI-
ÊNCIA DO SOCIODRAMA

O Sociodrama como instrumento de pesquisa-ação nos proporcionou investigar as relações sociais


construídas entre a juventude do Projovem Urbano e as drogas, possibilitando aos jovens dar novos
significados a estas relações, através de um processo dialógico e reflexivo sobre a realidade que se
encena em sua comunidade e em sua cidade. Conhecida como a técnica do encontro, o Sociodrama
é um tipo de intervenção investigativa que proporciona a interação grupal, buscando compreender
e intervir em suas relações de conflito, sofrimento e situações-problemas, por meio da ação e/ou
comunicação das pessoas. Surgiu no inicio do século XX, através do Teatro Espontâneo, criado pelo
psiquiatra Jacob Levy Moreno (1889-1974), em 1921.

De acordo com Drummond, (2008, p. 10-14), o Sociodrama pode ser utilizado para diversos fins:
motivação de equipes, resolução de conflitos, estímulo de grupos para que expressem seus problemas
e desafios, além de possibilitar a visão dos problemas e busca de solução em grupo. Como teoria, ela
se baseia na realidade dos fatos; e, como metodologia, sua principal abordagem é a investigação das
relações humanas em grupo, buscando amenizar e administrar conflitos para estabelecer uma rede
relacional saudável. Tendo como proposta trazer leveza e maior alegria à arte de conviver.

Pedro Demo283 (1999) ressalta que é “fundamental colocar a realidade acima do método e não o con-
trário”. Nesta perspectiva, o Sociodrama permitiu a todos os participantes, através da ação dramática
em grupo, experimentar e representar papéis reais que são vivenciados ou presenciados por eles/elas
em sua comunidade e/ou na sociedade, encenados pelas drogas, possibilitando-nos rica investigação
interventiva. Assim, na prática sociodramática, podemos considerar que:

É com base nos fatos (fenômenos) que acontecem no cotidiano que se faz a reflexão grupal para
que o coordenador (um olhar mais distanciado daqueles problemas) e o grupo (um olhar interno
da situação) possam melhorar e potencializar o próprio cotidiano. Além disso a construção do
saber é realizada pelos participantes, que são considerados indivíduos ativos em sua formação e
informação. Baseado no ideal onde se quer chegar (objetivo), os participantes refletem o cotidia-
no (tema gerador) e elaboram a devolução dessas reflexões para o mundo circundante. (DRUM-
MOND, 2008, p. 21).

Desta forma, com relação ao submundo das drogas, a vivência sociodramática fez com que os edu-
candos não se sentissem vitimizados, e sim pessoas que:

Com suas ações e valores são capazes de transformar a si e ao mundo para se tornar mais livre. Não
só contando com antigas respostas ou respostas aprendidas, mas podendo se adaptar de forma sau-
dável ao contexto em que vive e fazê-lo flexível para necessárias mudanças. Esse é o homem espon-
tâneo. (DRUMMOND, 2008, p. 23).

Assim, visando estudar as relações sociais estabelecidas entre a droga e o jovem, as encenações so-
ciodramáticas no Projovem Urbano se desenvolveram considerando a importância de sua estrutura,

283. Disponível em:< http://sites.ffclrp.usp.br/paideia/Fasciculos/v16n35/v16n35a02.pdf > Acesso em: 05 jan. 2009.

896
que, de acordo com Castilho (1995), se organiza da seguinte forma: de contexto; etapas; meios de
aquecimento; dramatização ou ação; feedback e encerramento.

Com relação à nossa pesquisa-ação sobre drogas, ela proporcionou, através de suas ações dramáticas,
a coleta de dados sobre experiências vivenciadas pelos jovens na sua família, escola e na comunidade,
além de ajudar os jovens a melhor enfrentar tensões psicológicas, proporcionando-lhes, também: a
partilhar sentimentos e emoções; a analisar situação de crise e achar resoluções para as dificuldades;
estabelecer trocas subjetivas; observar novas possibilidades; permitiu trabalhar a tolerância, a paciên-
cia, o aprender a ouvir, a falar e a interagir; adquirir maior conhecimento e compreensão dos proble-
mas de saúde e sociais ocasionados pelas drogas.

Nessa perspectiva, nossos encontros sociodramáticos com os educandos do Projovem Urbano, além
de levar informação a respeito das reais consequências e efeitos da dependência química dos varia-
dos tipos de drogas, possibilitou mediar conflitos advindos de estereótipos preconceituosos, racismo
social, intolerância, banalização, estigmatização e/ ou atitudes negativas contra pessoas que estão em
situação de dependência química. Durante todo o tempo e nas etapas sociodramáticas, buscou-se
respeitar as diferenças e a impulsionar os jovens na direção de maior justiça e equidade social, valo-
rizando os direitos humanos e procurando sempre elevar a autoestima dos educandos, acolhendo-os
em suas questões interpessoais, diminuindo suas ansiedades e inseguranças, e considerando-os, prin-
cipalmente, como “sujeito de direito”.

2.1. As Intervenções Sociais Planejadas ou Encontros

A experiência do processo de intervenção social e da pesquisa-ação sobre drogas se desenvolveu através


da realização de cinco encontros. No primeiro encontro houve a apresentação e explanação dos objeti-
vos da intervenção social e da pesquisa-ação sobre o “Álcool, fumo e outras drogas”, e também foi feito
um contrato de ação coletiva com os jovens e educadores, o qual se pautou durante os cinco encontros.
O segundo encontro teve o propósito de exibir o filme “Diário de um Adolescente ou Escritores da
Liberdade”, visando sensibilizar e prevenir os educandos sobre os danos físicos, mentais e sociais que as
drogas causam. O terceiro encontro foi dedicado à realização de roda de debates e técnicas e dinâmicas
de grupo sobre os conteúdos abordados nos filmes e levantados pelos educandos após sua exibição. As
Rodas de Debates propiciaram espaços livres para a fala e escuta, dando oportunidade aos jovens de se
expressarem livremente e trocar experiências e informações. No quarto encontro houve a realização de
uma aula expositiva sobre “Álcool, fumo e outras Drogas”, com entrega de material informativo, sendo
feita reflexões sobre os efeitos das drogas para a saúde. A Exposição dos Conteúdos tiveram a finalidade
de sensibilizar, conscientizar, alertar e socializar informações. O quinto e último encontro foi dedicada
à aplicação da técnica de grupo do Sociodrama e a atividades lúdicas educativas, as quais foram deno-
minadas de “Momento PRO Talento JOVEM de Cultura e Arte”. Onde também procuramos despertar
a valorização pessoal, os dons e talentos dos jovens, a autoestima, reflexões sobre si mesmo e sua comu-
nidade, limites e potencialidades dos jovens com relação às drogas.

O Sociodrama (teatro espontâneo) favoreceu à formação de um espaço para refletir, vivenciar, discu-
tir e interpretar o tema trabalhado, mais a reflexão da realidade. A maioria dos educandos demonstra-
ram em suas encenações o seu pensar da realidade social e desenvolvimento de questões individuais

897
sócioafetivas e emocionais. Através desta técnica, analisamos questões pessoais e sociais, procurando
respostas para a sua realidade de vida. Expressaram valores, atitudes e comportamentos de uma cultu-
ra de paz e não violência. Para sua realização, utilizamos brinquedos, para que os alunos procurassem
expressar emoções, comportamentos e fatos reais. Em algumas escolas, além da realização da Técnica
do Sociodrama, dividíamos as turmas em temáticas, com a orientação de seus educadores orienta-
dores e especialistas, como: Poesia, Música, Dança, Artes Plásticas, Teatro, ou seja, de acordo com as
habilidades, os talentos e os dons dos educandos daquela escola, que se expressavam através do Mo-
mento PRO Talento JOVEM de Cultura e Arte, onde puderam dar luz, som e ação às suas produções
criativas originadas em sala de aula por meio das disciplinas de Ação Comunitária, Formação Básica
e Qualificação para o Trabalho.

Os resultados eram de jovens se apresentando como protagonistas juvenis, como fontes de conheci-
mento, interlocutores, empreendedores e parceiros de iniciativas locais, e não meros destinatários do
mesmo. Jovens mostrando seu potencial criador, superando, passando por cima de suas histórias de
injustiça social e exclusão. O momento PRO Talento JOVEM também teve o objetivo de incentivar a
produção artística e cultural dos educandos e educadores/as do Projovem Urbano, além de criar um
espaço de reflexão a partir de novas ideias e percepções sobre a arte, tendo como ferramenta e inter-
face a educação sobre drogas.

3. O CENÁRIO DOS JOVENS DO PROJOVEM PERANTE AS DROGAS:


PROTAGONISTAS OU COADJUVANTES? O CENÁRIO QUE LEVA À ESCRAVIDÃO.

Problema de infraestrutura, saúde, segurança, falta de acesso a lazer, à educação de qualidade e ao


trabalho digno. Jovens que, antes de serem autores de violência, foram vítimas: dentro de casa, por
abuso sexual e maus tratos; por morar em comunidades consideradas de risco, por discriminação e
exclusão; vitimizados pelas drogas, pelo tráfico, pelo envolvimento no crime; pela gravidez precoce;
pela exploração sexual, resultando em prostituição; pela desestrutura familiar. São alguns dos proble-
mas constantes, vivenciados pelos jovens que faziam parte do Projovem Urbano de Recife, em suas
comunidades, expostos através da Técnica do Sociodrama e das dinâmicas de grupo, com vistas da
pesquisa-ação.

Durante a pesquisa-ação, pudemos observar que os bairros que convivem acentuadamente com a
violência e tráfico de drogas e a transversalidade de sua violência são os mais discriminados por al-
guns meios de comunicação. São elas: as escolas do bairro de Santo Amaro (Escola Municipal Sede
da Sabedoria), do bairro do Cabanga, que abriga os alunos da Ilha Joana Bezerra e Cabanga (Escola
Municipal Almirante Soares Dutra) e do Bairro do Ibura (Escola Municipal Dois Rios). Nos relatos
dos estudantes, observamos que nestes bairros é grande a impunidade, falta segurança, falta oportu-
nidade, e “existe muita exclusão social” (Educando 4).

No decorrer da pesquisa, percebemos que a maioria dos bairros onde ficam localizadas estas escolas,
de acordo com declarações feitas pelos estudantes, é grande o acesso às drogas ilícitas, “é muito fácil
em qualquer esquina tem” (Educanda 2), colocando estes jovens em situação de vulnerabilidade e
risco social, além da convivência com o mundo violento do tráfico. Alguns educandos relataram que
a maioria das mortes violentas que ocorrem no seu bairro está diretamente ligada ao universo dos jo-

898
vens que estão envolvidos com o tráfico, consumo de drogas e criminalidade. Além da falta de opções
e da dependência química que a droga ocasiona, identificamos que muitos dos nossos educandos que
se envolveram com drogas passam por problemas econômicos e, muitas vezes, o caminho do tráfico
em que alguns se inserem é a garantia de ter uma remuneração sem esforço, não excludente e “mais
fácil” (Educando 7), recebendo dinheiro para suprir suas necessidades e sonhos de consumo. Certa
quantia em dinheiro para quem passa por tantas necessidades financeiras “torna-se a maior motiva-
ção” (Educando 8) para entrar no tráfico, como relata alguns de nossos alunos.

Através da pesquisa-ação, observamos que o envolvimento dos jovens com a dependência de drogas
psicotrópicas é “muito forte”, seja de forma direta ou indireta. Onde o Cigarro é a droga mais consu-
mida por eles e estes começaram a fumar ainda na adolescência, por “influencia dos amigos” (Edu-
cando 10) ou por observar seus familiares fumando, como relata uma aluna da Escola Municipal Casa
dos Ferroviários: “minha mãe me dava o cigarro para eu acender” (Educando 11). Ao indagarmos se
os jovens sabiam os efeitos da drogas no organismo, constatou-se que a maioria não sabia responder,
mostrando-se desinformados. Diziam apenas que sabiam mais que elas causavam problemas sociais
como: violência, brigas familiares, criminalidade, dentre outros. Muitos disseram que começaram a
“fumar”, por exemplo, sob “influencia de amigos e de familiares, minha mãe fuma muito até hoje, e
tenho uma tia que está cega por causa do cigarro” (Educando 12) e “porque achava bonito” (Educan-
do13). Segundo examinado na pesquisa-ação, o álcool é a segunda droga mais usada entre os jovens
e em seguida vêm os solventes (loló e cola), o Crack em quarto e Maconha em último lugar. Drogas
como o cigarro e o álcool são os que mais atraem os jovens e estes evadem no horário escolar do
núcleo ou da sala de aula para “dar uma fumadinha” (Educando 15) ou “ir tomar uma cerva na sexta-
-feira” (Educando 16).

Com relação aos educandos que declararam ter ou tiveram envolvimento com drogas, identificamos
que a maioria se encontra em situação de considerável pobreza; seus familiares, e os mesmos, em
situação de desemprego crônico, além de ter baixa escolaridade, possuir um nível cultural de leitura
e informação em déficit e pouca capacidade de autocrítica. São jovens que, antes de voltar a estudar,
como destacam alguns em seus discursos, “não tinha perspectiva de futuro” (Educando 18). Destes
que afirmaram ter envolvimento com drogas muitos faltam frequentemente e tem baixo desempenho
escolar, “são os que estão mais atrasados em relação à escolaridade e faixa etária” (Educador 3).

Sobre o envolvimento de jovens no tráfico de drogas ilícitas, destacamos que em locais como o bair-
ro do Ibura, onde fica localizado a Escola Municipal Dois Rios, não há locais dignos de lazer e cultura,
“professora, as praças não dar nem para levar meus filhos, porque tem gente cheirando cola, loló e
fumando e vendendo maconha” (Educanda 25), as Escolas são de “péssima qualidade” (Educanda 25)
e não existem locais de incentivo à qualificação profissional e emprego, “as que existem ninguém tem
informação, são para poucos” (Educanda 26). Quanto a locais de lazer e participação dos jovens
em espaços políticos, nos bairros de Santo Amaro, Cabanga, Coque e Ibura é ressaltado pelos jovens
que, nestes, os que existem está em extrema precariedade, “pixados e com estrutura caindo” (sic). De
acordo com alunos da Escola Municipal Dois Rios, no Ibura, existem praças e campos de futebol que
“ainda usamos, mas em algumas praças há adolescentes cheirando cola e os campos encontram-se
em péssimo estado” (Educanda 40), “por isso fica difícil da agente ir para as praças ou levar nossos
filhos pra brincar” (Educanda 41). Quando indagados, a maiorias destes educandos nunca foram ao

899
teatro nem ao cinema, pouquíssimos se lembram em quem votou na última eleição e não participam
de ações de interesse público e social, “nunca participei de orçamento participativo” (Educando 42)
e de atividades de protagonismo juvenil, “sei não o que é conferência de juventude” (Educando 43).

4. A EDUCAÇÃO COMO CENÁRIO DE LIBERTAÇÃO: PROTAGONISMO JUVENIL, CULTURA


E ARTE, OPORTUNIDADE DE PREVENÇÃO AO USO DE DROGAS ATRAVÉS DA ESCOLA.

Durante a realização da pesquisa-ação, também observamos a prática política pedagógica de alguns


educadores e do seu papel como mediadores no processo social de inclusão social dos jovens do
PROJOVEM ORIGINAL em Recife, na qual pudemos ter contato com equipes de educadores bastan-
te dedicados e comprometidos com a importância social de suas ações, visando o protagonismo dos
jovens. Em destaque, colocamos a Escola Municipal Sede da Sabedoria, que, a partir da realização da
técnica do Sociodrama, deu continuidade ao teatro espontâneo, sistematizando um grupo de teatro
sobre drogas, resultando num Plano de Ação Comunitária (PLA). Na E. M. Almirante Soares Dutra,
realizamos, em conjunto com os educadores e Assistente Social, oficinas de artes plásticas, dança e
teatro, refletindo sobre a dependência química e o tráfico de drogas psicotrópicas, denominada por
nossa equipe de Momento “Pro Talento Jovem de Cultura e Arte”. Na E. M. Pedro Augusto e na E.
M. Casa dos Ferroviários, com ajuda e motivação dos professores orientadores, o protagonismo dos
jovens também foi valorizado, onde, para finalizar nossas ações, tivemos um momento de troca de
experiências e aprendizado mútuo, no qual, através do Sociodrama, da arte e cultura, os alunos ex-
pressaram seus sentimentos sobre as drogas lícitas e ilícitas, além de mandar mensagens de esperança
e força de vontade, dando seus testemunhos.

Nestas escolas, houve a percepção da importância de ser jovem e de se valorizar suas vivências e tentar
efetivar seus direitos, além do compromisso ético com o processo de ensino/aprendizagem, mesmo
contando com dificuldades na qual se encontra os aparelhos escolares e o pouco investimento dos
governantes. Ressaltamos, também, o empenho de alguns educadores em cativar e fortalecer a relação
de afetividade educando e educador/a, buscando promover a criatividade, o protagonismo juvenil e
a valorização dos jovens como sujeitos éticos, historicamente inseridos no processo permanente de
si e de sua realidade, procurando valorizar o afeto entre todos da comunidade escolar, a esperança, o
dialogo, o respeito e a troca intergeracional em suas práticas educativas, em especial a arte educação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que o processo de intervenção social e a pesquisa-ação veio somar a importância do


Projovem Urbano de Recife, no sentido de possibilitar aos seus jovens mais oportunidade de infor-
mação, possibilidade de caminhos e conscientização sobre os efeitos do álcool, fumo e outras drogas
e questões transversais a este tema, como o da violência.

A aplicação do Sociodrama mostrou que os jovens precisam, primeiramente, de oportunidade para


mostrar o seu potencial criativo e aumentar sua autoestima, para além de ter perspectivas de viver
a vida de forma responsável e ativa. Precisando receber incentivo e apoio, sobretudo dos poderes
públicos locais, de seus familiares, da escola e da comunidade, para que se sintam possuidores de
inteligência, de criatividade, de habilidades, de autonomia.

900
Podemos afirmar que tudo o que mostramos nos resultados de nossa pesquisa-ação é apenas um pou-
co da realidade que leva nossos jovens a usar drogas e entrar no mundo do tráfico de entorpecentes.
Cremos ainda que a má qualidade de vida; a individualização na satisfação dos desejos; o estranha-
mento afetivo nos relacionamentos humanos; caminhos sem oportunidade e de exclusão, políticas
públicas feitas para o jovem e não com o jovem, dialogando sobre as suas necessidades, é o que leva
nossos jovens a propensão em procurá-las.

Assim, diante de uma realidade de desigualdade, exclusão e protagonismo das drogas, podemos dizer
que realizamos conquistas importantes, mas que o universo no qual estão inseridos nossos jovens
é bastante cruel e de grande rivalidade com nosso trabalho, muitas vezes pensamos não existir ca-
minhos perante tantos problemas e injustiças sociais. Mas foi o depoimento de jovens com atitudes
guerreiras e históricos de superação que nos deu força e esperança para continuar. Estes jovens, mes-
mo passando por tantas vulnerabilidades sociais e violências, estão sempre em busca de algo que
preencha suas vidas, como: “um trabalho, amor, paz, respeito, fé, solidariedade, igualitarismo, apoio
familiar, valorização pessoal, justiça e direito de sonhar” (Educandos).

Para finalizar, gostaríamos de deixar um parágrafo da poesia do poeta libanês Khalil Gibran, a qual
marcou nossas ações e nos deu força para começar, recomeçar, acreditar e ter esperança de ver estes
jovens livres. Livres das drogas e livres para desconstruir cenários e tecer seus sonhos... “Como posso
perder minha fé na justiça da vida, quando os sonhos dos que dormem num colchão de penas não são
mais belos do que os sonhos dos que dormem no chão.” (Khalil Gibran, Poeta libanês, 1849-1931).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Curso de prevenção do uso de drogas para educadores
de escolas públicas. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, Ministério da Educação. 2. ed. Brasília: Mi-
nistério da Justiça, 2010. Disponível em: <http://clicrbs.com.br/pdf/16208836.pdf> Acesso em: 15 maio 2010.
COSTA, Antonio Carlos Gomes da. O protagonismo juvenil passo a passo: um guia para o educador. Belo Hori-
zonte: Universidade, 2001.
DRUMMOND, Joceli; SOUZA, Andréa Claudia. Sociodrama nas organizações. São Paulo: Ágora, 2008.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. A pedagogia da pesquisa-Ação. Educação e Pesquisa, Revista da Faculdade
de Educação da USP. v. 31, n. 3, p. 483-502, set/dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/
a11v31n3.pdf> Acesso em: 06 nov. 2009.
LINO, Antônio et al. 1ª Conferencia Nacional da Juventude. Caderno de Resoluções. Brasília: Secretaria Nacio-
nal de Juventude, 2005. Disponível em: <http://www. juventude.gov.br/conferencia/06_drogas_PB.pdf>. Acesso
em: 15 nov. 2009.
MARINEAU, R. F. Jacob Levy Moreno 1889-1974 – pai do psicodrama, da sociometria e da psicoterapia em
grupo. São Paulo: Ágora, 1992.
MARTIN, E. G. Psicologia do encontro. São Paulo: Ágora, 1996.
MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. São Paulo: Summus, 1993.
SENAD. Prevenção do uso de drogas: capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias. Ministério da Jus-
tiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. 2. ed. Brasília: SENAD, 2010. 450 p. Disponível em: <http://
www.conseg.pr.gov.br/ arquivos/File/Livro_completo_SENAD5.pdf>. Acesso em: 27 jan. 2010.

901
A arte como abordagem para
despertar o senso estético, a
sensibilidade e o potencial criativo
Laura Renata Dourado Pereira

INTRODUÇÃO

É muito importante que qualquer processo criativo desenvolva a capacidade de motivar a articula-
ção produtiva e desse modo venha a se estabelecer com as tradições, as linguagens e as referências
artísticas.

É inegável que a arte esteja fortemente ligada às nossas experiências individuais ou coletivas, podendo
produzir formas novas a partir de outras que já tenham sido conhecidas, promovendo renovação e
mudança.

No que se refere a objeto de criação artística, por sua vez, pode claramente designar a arte de nosso
tempo, se assim apresentarmos de maneira desmistificada por estar presente no cotidiano da maioria
das pessoas, mesmo que essas, muitas vezes, não tenham consciência de tal fato.

Obtendo a compressão de que uma ação motivada para realizar um fazer artístico pode igualmente
ampliar-se como prática no campo escolar, e tomando como exemplo os procedimentos iniciados
pelos artistas modernos ao fazerem experimentações em seus trabalhos, estaremos efetivamente de-
senvolvendo novas atividades, com novos meios, pelas quais são constituídas de grande importância
para o conhecimento coletivo.

Ao despertarmos o interesse pela arte por meio da educação, e que esta proporcione a compreensão
da prática criativa como consciência social, permitimos, então, que, por meio da experiência técnica
se torne uma ferramenta indispensável ao processo de fruição plena, e saberemos que a sensibilidade
estará efetivamente atuando. Ao colocar em prática a responsabilidade de produzir arte de caráter
simbólicos por meio de materiais sem atrativos usuais e estes despertarem nos discentes o interesse
coletivo, teremos alcançado os estímulos a formação de seres reflexivos.

902
1. ARTE NO COTIDIANO: A CRIAÇÃO ARTÍSTICA POR MEIO DA INTERPRETAÇÃO
DO MEIO CULTURAL

Os trabalhos artísticos desenvolvidos com materiais incomuns e distintos são inspiradores, como
pode ser visto nas criações dos irmãos Humberto e Fernando Campana (Fig. 01 e 02). Essas peças são
de designe e tem um ar transformador, pois é pela informalidade que suas obras trazem interpreta-
ções variadas e a partir de elementos do cotidiano, fazem uma reelaboração e apresentam suas obras
com muita ousadia.

Figura 1. Mesa de Centro – Troncos de madeira e Vidro. Figura 2. Cadeira de Papelão

Transformar materiais de pouco ou nenhum valor, em peças para uma nova composição, é tornar
possível uma inovação a partir do que é comumente desprezado. Assim, estabelecer o processo de
importância e valorização de matéria prima rejeitada, significa beneficiar diretamente a natureza com
essa atitude.

Figura 3. DESIGNBOOM, 2016

A necessidade de fazer uma produção artística com benefícios impactantes para o meio ambiente
e que contribua para destacar a importância do novo valor dedicado para algo queseria normal-
mente rejeitado, é fundamental. Com essa atitude, a utilização de sobras de madeira como é o caso
do pó de serragem que é desprezado, pode ser indispensável como matéria prima fundamental
para criações artísticas, e desse modo permitir um novo resultado carregado de consciência ambiental.

A abertura dessas experiências, torna possível aplicar novas ideias a materiais como o papel, o pet, o
903
vidro entre outros, e ampliar a importância para a diminuição da quantidade de resíduos industriais,
e assim minimizar a produção de lixo para o planeta.

No Amazonas é comum a desvalorização da serragem, que se acumula em grande quantidade nas


muitas serrarias existentes nas cidades do interior. A realização de trabalhos artísticos por meio de
resíduos da madeira surgiu exatamente da observação desse desperdício residual que poderia ser
empregado ao fazer artístico e a partir disso, dar ao novo objeto criado, a possibilidade de ter uma
função totalmente diferente da sua compreensão inicial. Desse modo, pode planejara possibilida-
de para uma ampla produção, pois se trata do resíduo da madeira selecionada, e o pó que sobra é
descartado.

Ao fazer uso dessa alternativa é possível obter objetos artísticos com resultados consideráveis em re-
lação as variações no uso dessa matéria prima.

Cada resultado obtido corresponde a uma busca do constante entrelaçar de experimentações, que
podem ajudar a mudar a aparência inicialmente esperada e tornar o objeto audacioso. Também é pos-
sível conduzir à criação de texturas ou simplesmente deixar se destacar as imprevistas. Outro interesse
importante nesse estudo, foi retrabalhar nos materiais as possibilidades de explorar outras formas
que estão na memória e fazem parte das lembranças pessoais e culturais dos indivíduos, tornando os
objetos com valores ainda mais fascinantes ao primeiro olhar.

As recordações cotidianas e culturais podem ser ressignificadas, mas para tanto, é importante manter
o constante empenho de extrair da simplicidade da matéria prima utilizada, os resultados excepcio-
nais aos objetos artísticos, atribuindo a eles uma carga contemporânea de expressão universal. Deste
modo, compreendemos estes conceitos no que BARBOSA (1991) propõe ao trabalho com a arte edu-
cação nas escolas brasileiras que “[...] é a ideia de reforçar a herança artística e estética dos alunos com
base em seu meio ambiente [...]”.

2. A CRIATIVIDADE DE SELECIONAR, INTERPRETAR E REFORMULAR

A essência criativa nas obras de Fernando e Humberto Campana é observada com os fundamentos
do design, mas pelo aproveitamento de materiais ousados para usos singulares, e dessa maneira criam
novas relações com a arte e o meio ambiente. Essa potencialidade criativa se encontra, nos diversos
planos da consciência sensível do indivíduo, e se faz presente nos vários níveis de compreensão em
que culturalmente o homem procura interpretar, pelas realidades vivenciadas.

Toda atitude criativa representa um ponto de partida, onde o indivíduo começa o processo de trans-
formação. Por conseguinte, tudo aquilo que pode ser classificado como material pobre, comum e
configurado a descartável, se convertem naquilo que é apropriado, exclusivo e pleno de criativida-
de. Nesse sentido, qualquer atividade humana, desde que conduzida regularmente a um fim, pode
chamar-se artística (BOSSI, 1989, p. 13).

A atuação criativa desenvolvida para ilustrar esse estudo no contexto de trabalhos com matéria prima
residual, não se limita apenas a abrir possibilidades para alcançar um objetivo, mas também é dada a

904
importância de pensar nas mudanças que essa forma de agir pode alcançar. A arte é uma produção;
logo, supõe trabalho (BOSSI, 1989, p. 13).

As ações artísticas podem ser potencializadas por usar uma infinita variedade de matéria prima e de
tal modo agregar a estas o valor de produtos provenientes de trabalhos artesanais. A essas criações,
também podemos interpretar com o entendimentode uma produção artesanal de objetos com valor
artístico, podendo ser igualmente comparado ao design contemporâneo.

A escolha pela linguagem artística a ser trabalhada, pode ser feita com base nos objetivos do educa-
dor. Deste modo, podemos realizar o trabalho com a arte-educação nas escolas brasileiras atendendo
a esse trecho referente às artes dos Parâmetros Curriculares Nacionais de 5a a 8a séries, da Secretaria
de Educação Fundamental:

O conhecimento da arte abre perspectivas para que o aluno tenha uma compreensão do mundo na
qual a dimensão poética esteja presente: a arte ensina que nossas experiências geram um movimento
de transformação permanente, que é preciso reordenar referências a todo momento, ser flexível.
Isso significa que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para
aprender. (p. 20).

3. IMPULSO CRIATIVO: O SENSO ESTÉTICO E A SENSIBILIDADE

A pesquisa e o trabalho artístico foram motivados e desenvolvidos pelo interesse em representar as


infinitas formas que a natureza oferece, e no que diz respeito a essa importância, foi escolhido à cria-
ção de esculturas. Constituindo-se em um exercício voltado para o desenvolvimento de habilidades,
pois é importante que a interação entre o saber e a experimentação possa promover a dinâmica entre
a criação e a prática.

Considerando a importância de fazer o registro material como o início de um processo continuo,


iniciou-se a busca do método que pudesse realizar o trabalho e desta maneira produzir as escultu-
ras com maior satisfação. Não existe um processo criativo. São muitos os processos criativos, com
muitas camadas, muitos níveis de envolvimento e propósito (NACHMANOVITCH, 1993, p. 165).
A escolha pela construção de esculturas com resíduos da madeira, pode ser interpretada como
uma ressignificação dos troncos de árvores cortados, e a nova interpretação daquilo que deixou de
compor a floresta.

A experiência de dar continuidade de maneira interpretativa ao que deixou de existir, abre espaço
para revelações individuais que possibilita o exercício relevante da imaginação e da expressão. As
descobertas de novas percepções e experimentações causam pluralidade, e é através dessa multi-
plicidade e diversidade que pode ser determinante para os novos valores que podem alcançar esse
objeto.

As criações dessas esculturas estão voltadas para a valorização da vida no universo regional, deste
modo faz uma alusão à infinidade de elementos que compõe o cenário amazônico, traduzido plasti-
camente por essas imagens.

905
Figura 4. Esculturas Totens, Foto1: Figura 5. Esculturas Totens, Foto2:
DOURADO, Laura. 2015. DOURADO, Laura. 2015.
Fonte Própria Fonte Própria

Partindo de inspirações das amplas possibilidades de interpretação do universo amazônico, essas es-
culturas Totens propõem uma reflexão as interações que a arte permite entre a natureza e os indivídu-
os, rearticulando significados e comportamentos. Essas esculturas são criações artísticas que podem
desafiar a imaginação e ao mesmo tempo convidar o espectador para uma conversa intima, à medida
que vai se delimitando o ponto de partida e o ponto de chegada do que se quer enxergar.

Existe sempre a preocupação e a necessidade de fazer uma ação significante com resultados de boa qua-
lidade, gerando características mais nobres nos objetos produzidos. Portanto, o trabalho criativo é diver-
timento; é a livre exploração dos materiais que cada um escolheu (NACHMANOVITCH, 1993, p. 49).

A escolha pelo pó da madeira se deu pelo ótimo resultado no estudo experimental. E na livre inter-
pretação pessoal, o pó da madeira nessa construção artística, equivale ao preciosismo do pó de ouro.
Fazendo uma leitura poética do ouro quando se encontra em pepitas brutas para tornar-se pó e virar
esculturas, assim também foi visto o pó da madeira, que precisa ser peneirado para ser separado da
serragem e virar matéria valiosa dos totens. O pó da madeira permitiu atender as necessidades dos
procedimentos técnicos que foram aplicados para a criação das esculturas. Para tanto foi preciso fazer
testes para confirmar que o material disponibilizava as características adequadas para as aplicações
previstas. As inúmeras possibilidades conseguidas nos experimentos iniciais, geraram respostas posi-
tivas para futuros novos desafios e buscas de resultados.

As boas expectativas relacionadas à utilização desse pó de madeira para criações plásticas artísticas,
visa diminuir a agressão ao meio ambiente, pois nas serrarias não é dada uma atenção adequada ao
descarte desse resíduo. Acreditamos que por meio da arte-educação e chamando a atenção para uma
consciência de cuidado com o meio em que vivemos, poderemos atender a importância de não com-
prometer as gerações futuras.

Nosso planeta nos últimos anos tem sofrido muitas mudanças e visto assim a necessidade de nos
perguntar o que podemos fazer para garantir a sobrevivência do mundo e da civilização, para garantir
que haverá alguém criando arte (NACHMANOVITCH, 1993, p. 163). Essa questão de cuidado com

906
o lugar que habitamos, foi também um dos fatores que influenciaram diretamente para a escolha da
matéria prima em questão.

Ao educar para o uso consciente de recursos naturais que são desperdiçados, podemos provocar a possi-
bilidade de mudança no comportamento do homem em relação a si próprio e ao meio em que vive. Este
conhecimento poderá se tornar uma experiência singular que irá permitir a busca pela melhor maneira
de tomar decisões, almejando atingir os melhores resultados. Instigar a reflexão por meio da consciência
crítica de um ideal artístico, pode ser possível se buscarmos um fazer transformador.

De tal modo, a única capacidade verdadeiramente poderosa que a espécie humana possui para sair
desse impasse é a imaginação criadora. O único antídoto para a destruição é a criação. (NACHMA-
NOVITCH, 1993, p. 163).

É de fundamental importância a necessidade urgente de despertar nos alunos, nos apreciadores de


arte e nos artistas de modo geral, a imensa força dessa expressão artística contemporânea por meio de
materiais excluídos e não experimentados.

Figura 6. Esculturas Totens, Foto3: DOURADO,


Laura. 2015.
Fonte Própria

Desse modo, a libertação, o despertar para a criatividade, ocorre quando finalmente percebemos nos-
sa verdadeira relação com o universo, ao qual não devemos ceder nem resistir – quando percebemos
que somos parte do todo (NACHMANOVITCH, 1993, p. 173).

Tudo aquilo que costumamos chamar de criatividade envolve fatores como inteligência, capacidade
de perceber a ligação entre fatos até então desconexos, capacidade de romper com ideias ultrapassa-
das, destemor, vigor, alegria e até mesmo certa capacidade de escandalizar (NACHMANOVITCH,
1993, p. 165).

As esculturas totens possuem curvas volumosas, sinuosas e com algumas distorções, permitindo que
se tenha várias leituras a partir do ângulo desejado. São propositalmente construídas para permitir in-

907
terpretações infinitas de acordo com a sugestão das linhas irregulares que formam sua silhueta. Todas
as esculturas são ocadas, e conservam a cor natural da madeira, pois foram criadas intencionalmente
para serem associadas a troncos de árvores.

Figura 7. Esculturas Totens, Foto 4: Figura 8. Esculturas Totens, Foto 5: Figura 9. Esculturas Totens, Foto 6:
DOURADO, Laura. 2015 DOURADO, Laura. 2015 DOURADO, Laura. 2015
Fonte Própria Fonte Própria Fonte Própria

A natureza refletida pela cor sem nenhum tipo de revestimento, também pode ser tocada e sentida as
suas texturas como nos troncos naturais, para que se possa perceber com qual material foi construída.

O processo utilizado nos totens possibilitará que muitos outros trabalhos possam ser realizados, e
essa é a nossa intenção. As construções das esculturas foram feitas com cortes efetuados diretamente
na placa de isopor sem esboço prévio, o que permitiu a montagem da base que deu forma ao se que-
ria produzir. A partir da realização prática dessa técnica, procurou-se explorar ainda mais qualquer
possibilidade imaginável. Com a descoberta dessa abertura, essa opção está a cargo de cada indivíduo
interessado em desenvolver, experimentando outros materiais, independente dessa técnica com pó
de serragem.

Figura 10. Esculturas Totens, Foto 7:


DOURADO, Laura. 2015
Fonte Própria

908
As esculturas se apresentam com simplicidade, mas traduzem as formas presentes no universo ama-
zônico, revelando uma profunda interação do significado de troncos totens com a floresta. Torna-se
um trabalho singular pela compreensão de que para sua realização a possibilidade surge através do
material residual desprezado, que depois de coletado e retrabalhado, volta a representar o valor e a
importância da própria natureza. Sendo assim, os trabalhos artísticos de esculturas totens, também
somam o interesse particular de fazer alusões aos povos que vivem na floresta.

Os Totens buscam mostrar à capacidade de se traduzir pela arte a vida existente nessa complexidade
visual que é a Amazônia, e ressaltando principalmente sua importância para a sobrevivência do planeta.

Esse trabalho pode ser considerado de caráter simbolista e com grande força expressiva, pois também
buscou inspiração nos totens que comumente são produzidos nas comunidades indígenas. Tendo em
vista que as esculturas apresentadas pela cultura indígena em geral, chamam a atenção por seus cortes
nas formas geométricas, e muitas vezes pintadas com cores vibrantes. No trabalho com as esculturas
totens não foi utilizado nenhuma pigmentação respeitando a particularidade da cultura indígena.

Cultivando a força visual da região do Amazonas, onde temos várias referências de influência indíge-
na e por ser muito rica nesse aspecto, buscou-se mostrar através deste trabalho, aquilo que nos iden-
tifica com o lugar em que vivemos e com nossas raízes culturais. Desse modo, traduzimos por meio
dessas esculturas algumas formas mais marcantes da floresta.

Figura 11 – Esculturas Totens, Foto 8.


DOURADO, Laura. 2015
Fonte Própria

Diante do exposto, ressaltamos ainda que as esculturas totens não buscam apenas causar nos indi-
víduos uma reflexão sobre a importância do cenário que o circunda, mas também procura instigar
sobre as infinitas possibilidades de um fazer artístico, com ações conscientes e relevantes que possam
minimizar os impactos degradantes que natureza sofre. É fundamental pensar novas maneiras de
criações artísticas experimentando e desenvolvendo novas técnicas a partir de materiais disponíveis
que são diariamente desperdiçados nas cidades.

909
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O assunto natureza amazônica é sem dúvidas uma fonte inesgotável de infinitas inspirações, e foi
fundamental para o desenvolvimento dos trabalhos artísticos com as esculturas totens. Ter a floresta
e seus habitantes como referência para ressignificação requer uma leitura cuidadosa por se tratar de
valores culturais. Com as artes visuais, temos a oportunidade de imaginar e construir, criar e recriar,
tornando-nos ativos e críticos na sociedade, fato que ressalta a sua importância nos processos educa-
tivos em que se pressupõe uma formação integral.

A arte proporciona um contato direto com nossas emoções, e desperta uma maior atenção ao pro-
cesso sensível de criação. Com base nesses valiosos princípios que o tema natureza amazônica serviu
como inspiração para o desenvolvimento das esculturas totens. A experiência serviu também para
observamos a necessidade e a importância fundamental de um fazer artístico que possa rearticular
com a ideia da diversidade cultural, das artes e dos sentimentos constituídos pelo resgate da memória.
Sabemos que, cruzar as fronteiras estabelecidas para alcançar a essência de um determinado saber, só
é possível por meio de uma educação que apresente sua construção baseada em princípios morais que
norteiam as organizações sociais comprometida com interesses éticos e as especificidades culturais
de cada povo.

Por fim, percebemos e acreditamos na importância que a arte representa quando toca na dimensão
existencial da essência de cada indivíduo, por meio dos sons, dos movimentos e da visualidade pre-
sentes na natureza.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais de 5a a 8a séries: arte. Brasí-
lia: MEC-SEF, 1998.
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre arte. São Paulo: Ática, 1989.
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991.
EGAS, O. Irmãos Campana: do design à arte. Instituto Arte na Escola, São Paulo: Rede SescSenac de Televisão,
2005. 1 DVD (Duração 23 m.).
DESIGNBOOM. Disponível em: <http://www.designboom.com/design/lucirmas-handy-cork-glass-desk-ac-
cessories/>. Acesso em: set. 2016.
IRMÃOS CAMPANA. Disponível em: <http://paulacaldeiradesign.blogspot.com.br/ 2010_ 11_01_archive.
html>. Acesso em: jul. 2016.
IRMÃOS CAMPANA. Disponível em: <http://sersustentavelcomestilo.com.br/2011/01/21/ campanas/>. Aces-
so em: jul. 2016.
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo - o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus,
1993.

910
Recife arte pública: a cidade
como campo para ações educativas
Lúcia de Fátima Padilha Cardoso/ Hassan Fellipe dos Santos/
Niedja Ferreira dos Santos Torres

INTRODUÇÃO

A cidade do Recife abriga uma relevante coleção de obras de arte espalhadas pelos espaços públicos
da cidade. Trata-se de um acervo monumental que transforma a cidade em uma exposição coletiva
permanente de grandes artistas plásticos, como Francisco Brennand, Lula Cardoso Ayres, Abelardo
da Hora, Cícero Dias e Corbiniano Lins.

A maioria das obras está disponível para apreciação e algumas representam verdadeiros cartões pos-
tais da cidade. Nas ruas do centro, em parques, praças e prédios, a arte pública do Recife torna a
cidade mais bela e reconta a sua história. São esculturas, monumentos, painéis e murais que datam
do século XVIII até nossos dias atuais. Nesse valioso acervo é possível encontrar obras que contam a
história da arte do Brasil e do mundo.

Entretanto, apesar de constituir um rico patrimônio artístico e cultural de Pernambuco, grande


parte dessas obras passa despercebida pela população. Muita gente passa pelas ruas e não tem a
consciência de que certas peças são obras artísticas. Outras vezes, a falta de conservação e a ausên-
cia de identificação das obras não desperta o interesse cultural ou turístico do público que circula
pela cidade.

Todo esse acervo de arte pública pode ser considerado um valioso recurso educativo, especialmente
para ações de Arte-Educação e Educação Patrimonial. A arte pública da cidade do Recife compõe
um conjunto de obras artísticas inseridas em contextos urbanos, facilmente acessíveis a todos os
cidadãos, e que possuem a capacidade de promover a identidade de um lugar, proporcionando um
maior contato com a arte e a conscientização do patrimônio artístico e cultural presente na cidade do
Recife. Além disso, o fato de se localizarem em espaços públicos as torna fisicamente acessíveis, pois
muitas delas podem ser tocadas, e podem estabelecer relações educativas diferentes das formalidades
e regras de um museu.

911
Apesar desse contexto positivo, não existe nenhum trabalho educativo voltado para a arte pública do
Recife. Muitas vezes, a arte pública mesclada ao cotidiano, pode se tornar invisível. Mas, quem prestar
atenção, há de se encantar com obras que continuam vivas, testemunhando o dia a dia das pessoas
pelos quatro cantos da cidade.

A ausência de ações educativas sobre esse patrimônio material contribui para o esquecimento e des-
valorização desse tesouro cultural pernambucano. A arte pública, ao ser criada para a cidade, teste-
munha também o crescimento urbano, e deve ser vista também sob esse caráter documental e educa-
tivo, um verdadeiro acervo público disponível a toda sociedade.

Segundo Reis (2007), a arte em espaços públicos é importante porque nos dá “uma sensação de
lugar” envolvendo as pessoas que o usam e tornam os espaços mais agradáveis, mais funcionais,
capazes de “acolher a vida social”. Entretanto, o autor aponta que é importante perceber o que se
pode aprender através da arte pública e indica qual o papel educativo das obras de arte nos espaços
públicos. A partir dessa intenção, o autor lança questões importantes sobre o papel da arte pública
para ações educativas:

Se arte pública é vital porque existe onde vivemos e trabalhamos quer dizer que temos com ela uma
relação quotidiana. Mesmo que não lhe prestemos a devida atenção, as obras estão lá! Já as vimos
uma e outra vez, provavelmente todos os dias. Mas o que é que elas representam para nós? Que
pensamos nós delas? Como as entendemos? O que aprendemos com elas? Nunca saberemos estas
respostas se não pensarmos sobre elas, se não pararmos para observar, contemplar, fruir,… e pensar
outra vez. (REIS, 2007).

Nesse sentido, o projeto cultural Recife Arte Pública realizou o mapeamento de esculturas e murais
artísticos públicos da cidade do Recife com a intenção de tornar visível esse valioso patrimônio artís-
tico, histórico e cultural da capital pernambucana. Ao mesmo tempo, o projeto Recife Arte Pública
pretende também mostrar e valorizar o potencial educativo da arte pública inserida na paisagem
urbana da cidade para ações educativas diversas. Durante o mapeamento, foi realizada uma pesquisa
coletando dados relevantes sobre as obras, como informações sobre seus autores, títulos, datas em que
foram realizadas e sua localização, relatadas a seguir.

1. MAPEAMENTO DE ARTE PÚBLICA DO RECIFE: METODOLOGIA E RESULTADOS

O projeto, com incentivo do FUNCULTURA, mapeou mais de 100 pontos de localização que pos-
suem esculturas e murais artísticos em espaços públicos do Recife. Durante a pesquisa, foram reali-
zadas visitas in loco, entrevistas e consultas a livros e arquivos públicos. A equipe visitou 32 (trinta e
dois) bairros da Região Metropolitana do Recife, com a intenção de tornar visível esse valioso patri-
mônio artístico, histórico e cultural da capital pernambucana. Como resultado, foram mapeadas mais
de 200 esculturas públicas e mais de 80 murais nas quatro zonas principais da cidade: Leste (Centro),
Norte, Oeste e Sul.

A pesquisa foi dividida em dois mapeamentos distintos: escultura e mural. O resultado do mape-
amento foi apresentado em dois produtos: um livreto impresso com o mapeamento das esculturas

912
públicas e um site com o mapeamento dos murais e painéis artísticos públicos da cidade. Os dois
mapeamentos estão disponíveis no portal www.recifeartepublica.com.br, com imagens e informações
sobre as obras, além de uma versão digital do livreto disponível para download.

Além desses dois mapeamentos já realizados – esculturas e murais – já está em andamento o mapea-
mento dos vitrais públicos, mais uma categoria do patrimônio cultural pernambucano, que resultará
em mais uma publicação (livreto) com distribuição gratuita e mais um site para o portal www.recife-
artepublica.com.br.

Figura 1. Página inicial do portal www.recifeartepublica.com.br

A seguir, uma breve descrição dos dois mapeamentos já realizados pelo projeto Recife Arte Pú-
blica.

2. ESCULTURAS

O livreto Recife Arte Pública: Escultura apresenta mais de 100 pontos de localização para conhecer
esculturas em espaços públicos do Recife. São monumentos, esculturas, estátuas, bustos, que datam
do século XVIII até os dias atuais. Nas ruas, em parques, praças e prédios, as esculturas públicas do
Recife tornam a cidade mais bela e contam a sua história através da arte, incluindo obras de artistas
como Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Corbiniano Lins e Bibiano Silva.

Os locais onde se encontram as esculturas públicas são, na sua maioria, de livre acesso, porém alguns
possuem horários de visitação, enquanto que outros espaços são privados, mas com acesso ao público.
Todas as informações necessárias para visitação das obras estão contempladas no livreto.

Para abranger todo o contexto urbano do Recife e facilitar o acesso aos locais das esculturas, o mapea-
mento dividiu a cidade em quatro zonas principais: Leste (Centro), Norte, Oeste e Sul. Tal divisão teve
como referência os limites territoriais das seis Regiões Político-Administrativas estabelecidas pela Lei
Municipal nº 16.293 de 22.01.1997, sendo a Zona Leste (Centro) equivalente à RPA 1, a Zona Norte à
RPA 2 e RPA 3, a Zona Oeste à RPA 4 e RPA 5 e a Zona Sul à RPA6. Um mapa geral com as quatro zonas
da cidade é apresentado no início do livreto e em seguida, cada zona é detalhada com seus bairros e a
localização das esculturas mapeadas.

913
Figura 2. Mapa geral da cidade do Recife com as quatro regiões pesquisadas.
Fonte: Livreto “Recife Arte Pública: Esculturas”, 2016.

Entre as obras da pesquisa estão esculturas francesas do século XVIII como as instaladas no Museu
do Estado, Praça da República e Ponte Maurício de Nassau. São esculturas de ferro produzidas pelos
mesmos autores das peças encontradas no acervo de museus franceses como o d’Orsay, em Paris.
Outras esculturas dessa mesma época podem ser vistas, feitas em mármore ou bronze, muitas delas
associadas à arquitetura de prédios ou compondo o contexto urbano da cidade.

Dos artistas pernambucanos, Abelardo da Hora e Francisco Brennand são autores de grande parte do
acervo da arte pública do Recife. Realizadas no modernismo, são esculturas e monumentos produzi-
dos, em sua maior parte, entre as décadas de 40 e 60, utilizando técnicas e materiais diversos, como
cerâmica, pedra, bronze, entre outros. Além deles, outros grandes nomes se fazem presente nessa ex-
posição a céu aberto, como Corbiniano Lins e José Cláudio. Muitas dessas obras reforçam a memória
da nossa sociedade e constroem a cultura pernambucana.

Mais contemporâneas, instaladas às margens do Rio Capibaribe ou em praças públicas, esculturas e


monumentos nascem com a vocação de fazer lembrar, evocar, celebrar, como o “Monumento Tortura
Nunca Mais” e a escultura “Carne da Minha Perna”, um caranguejo confeccionado com sucata de fer-
ro que homenageia o músico Chico Science e o geógrafo pernambucano Josué de Castro. Da mesma
maneira, as esculturas dos escritores do Recife que compõem o “Circuito da Poesia” prestam homena-
gem aos poetas que nasceram ou viveram no Recife, como Capiba, Manuel Bandeira, João Cabral de
Melo Neto, Carlos Pena Filho e Clarice Lispector. Contemporâneo também é o “Parque de Esculturas
de Francisco Brennand”, com 90 esculturas do artista.

914
3. MURAIS

O projeto mapeou mais de 80 (oitenta) murais em espaços públicos e espaços privados com acesso ao
público na cidade do Recife. Durante a pesquisa, a equipe visitou 20 (vinte) bairros da Região Metro-
politana do Recife, com a intenção de compor o site Recife Arte Pública: Murais, com acesso pelo
portal www.recifeartepublica.com.br. O site traz em seu conteúdo informações sobre a obra de arte, o
artista, sua localização e dados para acessar o mural mapeado.

Figura 3. Página com mapeamento dos murais em www.recifeartepublica.com.br

Entre os principais nomes da arte em mural do Recife estão grandes artistas plásticos pernambucanos
como Francisco Brennand, Lula Cardoso Ayres, Abelardo da Hora, Cícero Dias, Delfim Amorim,
Petrônio Cunha, Maurício Silva, José Paulo, entre outros. Boa parte produzidos entre as décadas de
40 e 90 e disponíveis para apreciação. 

Como um dos destaques do mapeamento, pode-se conferir o primeiro mural abstrato da América do
Sul que se encontra na capital pernambucana, de autoria de Cícero Dias, que está exposto na Secreta-
ria da Fazenda do Estado. Muitos prédios recifenses abrigam nas suas fachadas a arte mural de Fran-
cisco Brennand, como o mural de duzentos metros de altura, de 1967, que ocupa metade da lateral
de um edifício situado na Rua do Sol. Da mesma forma, os painéis em azulejos de Delfim Amorim
compõem fachadas de edifícios que são referência na cidade, como o Edifício Acaiaca em Boa Viagem
e o prédio do IMIP no bairro dos Coelhos.

Lula Cardoso Ayres assina muitos murais espalhados pela cidade, como o do hall do Cinema São
Luis. Corbiniano Lins e Abelardo da Hora também contribuem com esse acervo de painéis e murais
artísticos pelo Recife, especialmente com temáticas mais políticas como o mural “Joaquim Nabuco
e a Abolição da Escravatura”, na Rua do Sol e os cinco painéis em azulejo intitulado “Revoluções
Pernambucanas” em Santo Amaro. Os artistas mais contemporâneos também participam com obras
espalhadas pela cidade como os painéis de Christina Machado, Rinaldo e Maurício Silva na Galeria
do Bar Central e fachadas da Casa da Cultura, no centro do Recife.

915
4. ARTE PÚBLICA COMO RECURSO EDUCATIVO

Desde o seu lançamento, em fevereiro de 2016, o projeto Recife Arte Pública vem recebendo muitas
críticas positivas pelo público, em jornais, revistas, programas de TV e pelas redes sociais. Com ape-
nas 30 dias on-line, o portal do projeto já recebeu mais de 1.000 visitas, confirmando o interesse do
público recifense e também de todo o Brasil pelo tema da arte pública.

O interesse pelo projeto vem também mostrar uma lacuna sobre discussões e reflexões relacionadas
à arte pública da cidade que poderá começar a ser preenchida a partir do mapeamento realizado pelo
projeto Recife Arte Pública.

A arte pública de uma cidade conta sua história e é uma memória viva da sociedade. Em Recife, o
acervo de arte pública conta a história da cidade e do Estado de Pernambuco através de monumentos
que marcam eventos históricos, bustos e estátuas de personalidades referências da cultura pernambu-
cana, murais e vitrais que mostram cenas e elementos culturais dos recifenses.

Desvelar a história da formação desse acervo é lidar com um tecido múltiplo de memórias, que car-
rega um sentido simbólico de sua época. Conhecer essa história é condicionante para ressignificar os
espaços urbanos e se pensar em políticas de preservação, além de discutir o espaço público por meio
da arte e da cultura, enxergando as ruas, praças e a arte pública como elemento primordial da vida
das cidades.

Mesmo com todos esses atributos positivos, são pouquíssimas as programações de atividades voltadas
para a interação com a arte pública do Recife. É possível encontrar algumas propostas de passeios
turísticos que visitam poucas obras de arte pela cidade mediante agendamento prévio e com dia e
horários marcados, na maioria das vezes realizadas por instituições ligadas ao turismo.

Apesar de ser uma boa iniciativa no sentido de conhecer mais a cidade, esse tipo de programação
nem sempre consegue atingir um grande público, visto que nem sempre os horários programados
coincidem com o de quem tem interesse por esse tipo de atividade. Nesse sentido, a ausência de mais
atividades interativas e ações educativas que envolvam a arte pública do Recife contribuem para o
esquecimento e desvalorização desse patrimônio cultural pernambucano, além de deixar uma lacuna
na preservação da memória da cidade do Recife.

Segundo Reis (2007), é possível elencar oito pontos elucidativos das reais possibilidades educativas
da arte pública, onde a arte pública pode ser entendida como “uma produção social e cultural que
possui a função de transmitir e formalizar conteúdos sociais” que facilitam a integração de novos co-
nhecimentos quando o público as encontram em situações naturais (nas paisagens urbanas), ou seja,
em “situações de aprendizagem contextualizadas”. Para o autor, os oito pontos favoráveis para a arte
pública como recurso educativo são:

1. Tem uma relação quotidiana com os nossos gestos e rotinas;


2. Encoraja o diálogo entre os cidadãos;
3. Estimula o pensamento e a imaginação;

916
4. Define espaços únicos e específicos, estabelecendo relações entre o observador, a obra e o contexto;
5. Expressa diversas qualidades, crenças e valores de diferentes culturas e artistas, ensinando-nos
sobre o nosso passado, o nosso presente e o nosso futuro;
6. É fisicamente e intelectualmente acessível a toda a sociedade;
7. Proporciona a intersecção de diferentes campos de estudo;
8. Permite ao observador estabelecer o seu próprio ponto de vista, focar a atenção e construir a sua
própria narrativa, incorporando os diferentes estímulos do contexto envolvente;

Diante desses pontos positivos elencados por Reis (2007) em conjunto com o mapeamento realizado
pelo projeto Recife Arte Pública, é possível afirmar que o acervo de arte pública da cidade do Recife
pode ser considerado um valioso recurso educativo, especialmente para ações de Arte-Educação e
Educação Patrimonial.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto Recife Arte Pública, a partir do mapeamento já realizado, pretende construir e incentivar
trabalhos e projetos tendo a arte pública como um valioso recurso educacional, não somente para sua
apreciação estética, mas para o entendimento do significado das obras inseridas no contexto urbano
da cidade do Recife. É fato que todo esse acervo carrega um sentido simbólico de várias épocas, de
diversas memórias da cultura pernambucana, oferecendo conteúdo valioso para que os professores
possam trabalhar em suas ações educativas com todo esse patrimônio público da cidade do Recife,
acessível a todos os cidadãos.

Dessa maneira, o projeto Recife Arte Pública pretende contribuir com a formação de públicos di-
versos e favorecer a inclusão sociocultural em Pernambuco, realizando um trabalho educacional de
conscientização direcionado para que a sociedade possa conhecer e valorizar esse rico patrimônio
cultural, artístico e material da capital pernambucana.

REFERÊNCIAS

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
FRANCA, Rubem. Monumentos do Recife: estátuas e bustos, igrejas e prédios, lápides, placas e inscrições histó-
ricas do Recife. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1977.
SILVA, Fernando Pedro. Arte pública: diálogo com as comunidades. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2005.
RECIFE Arte Pública: Esculturas. Livreto do projeto Recife Arte Pública, 2016.
REIS, Ricardo. Arte pública como recurso educativo: Contributos para a abordagem pedagógica de obras de arte
pública. 2007. 270 f. Dissertação (Mestrado em Eduação Artística) – Faculdade de Belas Artes, Lisboa, 2007.

917
Concepções e práticas de ensino
dos arte/educadores que atuam
com a dança em espaços não formais
Márcia Gomes da Silva

INTRODUÇÃO

Esse artigo é parte de meu estudo de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que emergiu a partir de
vivências como arte/educadora em escolas de dança onde as práticas de ensino de alguns educadores
estavam, em geral, permeadas pelo domínio exato da técnica e pela busca imediata por virtuosismo,
brilhantismo nos palcos. Desta forma, tais práticas se limitam à repetição mecânica de movimentos,
sem a devida contextualização em relação aos sentidos e significados da dança.

Formada em Pedagogia, tive a oportunidade de refletir sobre o ensino da arte em contextos formais
e não formais de educação, bem como de analisar as infinitas possibilidades dessa linguagem para a
formação humana dos estudantes. Aliado a isto, temos uma crescente produção de estudos (BARRE-
TO, 2008; MARQUES, 2012) que evidenciam, a partir de diferentes abordagens, o ensino de dança
no contexto do ensino formal. É, sem dúvida, de extrema relevância perceber a escola enquanto lócus
privilegiado para o debate das questões relacionadas ao ensino de arte. Porém, a educação em si com-
preende também o ambiente sociocultural no qual o sujeito está imerso, e desta forma ampliam-se os
contextos para a materialização de propostas educacionais. A ênfase recai para os espaços não formais
de educação, que se tornam, cada vez mais, um campo fértil para a difusão das Artes e Cultura.

Nossa problemática gira em torno do seguinte questionamento: como as instituições não formais
estão materializando o ensino da dança? A partir disso, este artigo tem como objetivo geral com-
preender quais as concepções e práticas dos arte/educadores que atuam com o ensino de dança em
espaços não formais. Os objetivos específicos a serem alcançados são: Conhecer os discursos dos arte/
educadores sobre arte, sobre educação e sobre o ensino da dança e identificar as práticas de ensino
que são materializadas por tais arte-educadores nas instituições não formais onde atuam.

Acreditamos que as concepções e práticas de ensino dos arte/educadores estão, em geral, fundamen-
tadas na compreensão de dança enquanto técnica e expressão, estando historicamente relacionadas
ao ensino de arte. Isso revela um desconhecimento em relação às estruturas/conteúdos para o ensino
da dança, reflexo da ausência de formação específica destes sujeitos.

918
1. ARTE, DANÇA E EDUCAÇÃO

Ana Mae Barbosa, com sua forte atuação política desde 1970, tem se preocupado com a posição da
arte na educação. Sua atuação favoreceu a luta conceitual que, defendida por arte/educadores, con-
quistou o deslocamento da arte para o campo epistemológico.

A arte/educação é definida como epistemologia da arte, ou seja, “[...] os modos de inter-relacionamento


entre arte e o público, ou melhor, a intermediação entre o objeto de arte e o apreciador” (BARBOSA,
2010, p. 33), cujo objetivo primordial seria formar o conhecedor, fruidor e decodificador da obra de arte.

Propositora de uma metodologia para o ensino de arte, hoje já revisada e ampliada, a Abordagem
Triangular para o Ensino das Artes e Culturas Visuais, surgida em 1991, constitui-se a partir de influ-
ências diversas, dentre elas os princípios de Paulo Freire e Noêmia Varela. Esta abordagem compreen-
de como centrais três eixos: o ler, o contextualizar e o fazer (a obra ou campo de sentido), enfatizando
a arte enquanto campo de conhecimento, construção social, histórica, cultural de âmbito cognitivo e
emocional. Além disso, existe uma preocupação com a diversidade e com o desenvolvimento cultural
dos sujeitos que se delineia a partir dos termos multicultural e pluricultural. Para Barbosa (2010),
estes fatores são fundamentais para a compreensão da arte como epistemologia.

A dança como forma de arte educa corpos para que estes sejam capazes de criar pensando, e, assim,
ressignificar o mundo, sendo esta uma das contribuições da dança para a educação, conforme Mar-
ques (2012). Indo na contramão desta afirmação, as aulas de dança, em geral, estão delineadas por
uma busca incessante pelo domínio da técnica, esta definida como cópia, imitação, decorar passos
materializadas através de sequências de movimentos já prontas e definidas pelo professor, que acaba
também seguindo a tradicional linearidade: demonstração, assimilação e reprodução de passos/mo-
vimentos desprovidos de criticidade e reflexão.

Deste modo, definir a dança como cópia de passos seria negar, em primeira instância, a multiplici-
dade e diversidade de corpos presentes em nossas salas de aula e o contexto em que se inserem, pa-
dronizando-os. Consequentemente, seria transformar as aulas de dança em “[...] verdadeiras prisões
de sentidos, das ideias, dos prazeres, da percepção e das relações [...]” (MARQUES, 2012, p. 29). No
contexto pós-moderno, compreendemos a técnica de dança como:

Um aspecto que relaciona cognição, motricidade e criatividade, revelando-se como abordagem de


corpo-pensamento em processos de imaginação avançada; ela vincula arte-vida gerando questões
éticas e estéticas para o panorama da dança: uma ambiência política em esferas de micropolíticas
(OLIVEIRA, 2013, p. 32).

Assim, é importante pensarmos: e atualmente? Quais os desafios, os limites e as possibilidades do


ensino da dança? O maior desafio para o ensino de dança, ouso afirmar, seria romper as fronteiras do
conservadorismo que invadiu a nossa atualidade e tem se instaurado independentemente do contexto
em que estão inseridos (formal ou não formal), assim como as lacunas e dificuldades em torno da
formação do arte/educador; portanto, também é necessário esclarecer e reafirmar a distinção entre
área da dança e da educação Física, cuja aproximação imprime um pensamento de conduta moral do
corpo e aproxima a dança às práticas de ginástica.

919
Assim, Marques (2010) sistematiza a Abordagem Caleidoscópica para o ensino desta linguagem, que
estabelece o intercruzamento entre a Abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa e os Temas Geradores
propostos por Paulo Freire, articulando-os no âmbito da arte (que, pensados para a dança, compreen-
dem o fazer, o apreciar e o contextualizar), do ensino (que integra o conhecimento de si, o conhecimento
do(s) outro(s) e o conhecimento do meio) e da sociedade (que articula o mundo vivido, percebido e
imaginado), constituindo, assim, redes de relações entre si. Desta forma, afirma Marques (2010, p. 62):

Mais importante que os conceitos trabalhados são as relações entre eles, pois são as relações estabele-
cidas que constroem sentidos e significados aos/pelos envolvidos nos processos de ensino-aprendi-
zado de dança. Ou seja, mais importante do que conhecer os conceitos de Laban em si, por exemplo,
é traçar relações entre esses conceitos, os sujeitos e a sociedade em que vivem.

No contexto atual, ensinar dança é, antes de tudo, possibilitar o conhecimento do contexto socio-
político e cultural, construindo, pois, um ensino que promova sentidos, desenvolva a criticidade e
autonomia dos sujeitos, visando à dança e aos processos corporais como campo exploratório, passível
de investigação e reflexão; um território onde não existem fórmulas mágicas ou soluções imediatas
que se encaixem adequadamente às inúmeras situações educacionais, mas que deve constantemente
estabelecer diálogo com a sociedade em que vivem.

2. EDUCAÇÃO FORMAL E NÃO FORMAL: DELIMITANDO CONCEITOS

A educação não formal foi um termo que passou a ser popularizado a partir do final da década de 60,
com a publicação da obra de P. H. Coombs, The World Educational Crisis, em 1968. Posteriormente,
com o intuito de refinar e melhor delimitar esse novo campo educativo, Coombs e seus colaboradores
propuseram a distinção entre três tipos de educação: a formal, a não formal e a informal.

Mas o que caracteriza a educação não formal? Para Gohn (2010, p. 33),

É um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o


político como a formação do indivíduo para interagir com o outro em sociedade. Ela designa um
conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organiza-
ções/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de programas
e projetos sociais.

Assim, a educação não formal tem como eixos a educação para a justiça social, a educação para os
direitos humanos, sociais, políticos, culturais; a educação para a liberdade, para a igualdade, para a
democracia, uma educação contra a discriminação e voltada ao exercício da cultura e para a manifes-
tação das diferenças culturais. Uma educação voltada para o ser humano como um todo, um sujeito
cidadão do mundo.

Gohn (2006) adverte que não compete à educação não formal substituir ou competir com a educação
formal. Ambas devem se articular, se complementar. Ambas devem objetivar a uma educação inte-
gral, digna e justa. A autora ainda nos chama a atenção para a utilização do termo “não formal”, que,
às vezes, aparece equivocadamente como sinônimo de informal, educação extraescolar, educação po-
pular, educação comunitária, educação permanente, entre outros.

920
Cabe ressaltar que essa divisão entre a educação formal, não formal e informal não é fixa, pois, no
cotidiano, o sujeito circula nessas dimensões. A educação, que é um processo holístico e contínuo,
não deve ter como finalidade o simples acúmulo de conteúdos, técnicas, normas, procedimentos, e
sim uma combinação das experiências e dos conhecimentos construídos na escola, na educação não
formal e na vida cotidiana, em interação constante.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O estudo apresentado configura-se como uma reflexão acerca da abordagem qualitativa, que possi-
bilita enxergarmos os significados da realidade em questão, descrevendo os detalhes observados e
compreendendo determinados processos da pesquisa.

Como instrumentos de coleta de dados, adotamos a entrevista semiestruturada e a observação de au-


las/encontros. Assim foram entrevistados 2 (dois) arte/educadores – um representante de cada espaço
pesquisado, com ampla experiência no ensino desta linguagem: o Movimento Pró-criança e o grupo
Brincantes da Ladeira. Além disso, foram observadas 6 (seis) aulas destes mesmos arte/educadores
em seus respectivos locais de atuação. Na entrevista, foi elaborado um roteiro com questionamentos
em torno das concepções sobre arte, dança e educação, bem como as práticas realizadas em seus res-
pectivos contextos de atuação. Todas as informações foram coletadas em entrevistas audiogravadas,
com duração de uma hora. Depois de transcritas, (re)lidas e analisadas, foram sistematizadas de acor-
do com as informações que se aproximaram e/ou se distanciaram.

Em relação aos procedimentos de análise de dados, compreendemos como sendo mais pertinente
para nosso estudo a Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1977).

4. ANÁLISE DOS DADOS

Para materializar este estudo analisamos o conteúdo dos entrevistados, neste caso o discurso de dois
arte-educadores que atuam com o ensino da dança em instituições não formais. Na configuração dos
resultados, eles serão denominados de arte/educador 1 (um) e arte/educador 2 (dois).

As entrevistas demonstraram que os arte/educadores compreendem a arte como sinônimo de vida,


manifestação da estética e expressão. Entre estes conceitos, os arte/educadores evidenciaram a com-
preensão de arte como expressão. Com origem na fase moderna, esta concepção se destaca pela forte
atuação do movimento Escolinha de Arte e, principalmente, pela atuação da psicologia, que acredi-
tava que a arte infantil era sinônimo de espontaneidade da criança. Tal espontaneidade era interpre-
tada “[...] como a liberação dos fatores emocionais e expressão de experiências” (DUARTE JR., 1981,
p.114).

Em seu percurso histórico, a dança representou vida em diversas civilizações, adquirindo ora um
caráter religioso, ora dramático, entre outras características, onde os sujeitos, mergulhados em seus
medos e angústias, viam em diversas manifestações (dança) um meio para expurgar seus “demônios
internos” e fugir da realidade, o que nos permite compreender que tanto a arte como a dança não se
materializam distanciados do mundo/contexto em que estamos inseridos.

921
Sem dúvida, uma das características da arte e da dança é o seu caráter expressivo; porém, alerta-nos
Barbosa (2009, p. 43) que o subjetivo, a vida interior e a vida emocional devem navegar, mas não
ao acaso, pois se a arte não é tratada como forma de conhecimento, mas apenas como “um grito da
alma”, não estaríamos construindo nem educação cognitiva nem educação emocional. Além disso,
lembra-nos a autora que as emoções podem se revelar em múltiplas expressões catárticas e reativas,
mas pouco podemos aprender sobre elas se não somos levados a refletir acerca de nossas próprias
respostas. Desta maneira, enfatizamos que a dimensão subjetiva está conectada à cognitiva, e ambas
se articulam.

Quando questionados sobre o significado/conceito de dança, os entrevistados a apontaram como


exercício, ponte entre a individualidade e alteridade do outro, movimento corporal, forma de pro-
mover saúde física e psicológica. Grande parte do discurso dos arte/educadores estão enraizados nas
concepções de dança propagadas pela área da educação física, que, no contexto pós-moderno, ainda
possui conflitos com a área da dança.

Barreto (2008) aponta que, em seu percurso histórico, a educação física possuiu como base conceitos
dualistas que desenvolviam a ideia de corpo objetificado, reduzido aos aspectos fisiológicos e mecâni-
cos, desprovidos de sentidos e expressões. Associados a esta visão do corpo como máquina, o papel da
educação física se restringiu aos treinamentos físicos disciplinadores que, associados às instituições
militares ou de ensino, impunham aos corpos movimentos solidificados, com o objetivo de desenvol-
ver a força, a disciplina e uma boa saúde. Estas ideias corroboram a concepção de dança como mo-
vimento corporal que, segundo Souza (2010), enfatiza os aspectos físicos, observáveis em atividades
de treinamento motor no sujeito que dança. Em contraponto, a concepção de dança como arte surge
como um modo de ruptura, considerando o objeto passível de apreciação estética e artística, e não
apenas como manifestação empírica” e mecanicista (SOUZA, 2010, p. 33).

A educação é compreendida pelos arte-educadores como a busca pela intensificação de significados


da existência, ordenação do mundo, processos de ensinar e aprender que ocorrem de forma mútua
em contextos formais e não formais. Morin (2012, p. 65) afirma que, na perspectiva da aprendizagem
cidadã, tal como pretendemos para o ensino da dança, é preciso compreender que “[...] um cidadão
é definido em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria. O
que supõe nele o enraizamento de sua identidade nacional”. Deste modo, a educação exige a assunção
da identidade cultural, psicológica, econômica, antropológica e simbólica, visando ao processo de hu-
manização do sujeito. Assim, não deve ser reduzida aos meros processos de ensino e aprendizagem,
tal como afirmam os arte/educadores. Compreendemos estes dois itens como reflexo da coparticipa-
ção entre educador e educando. Sobre isso afirma Freire (1996, p. 47): “[...] ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar possibilidades para a sua própria produção ou sua construção”.

No quesito planejamento, o arte/educador 1 afirma que não há um planejamento específico, ressaltando


a ausência de recursos materiais para realizar tal ação. O arte/educador 2 afirma preparar o planejamen-
to inicialmente sozinho, ou seja, os passos que irá ministrar em determinado dia e em cima desses movi-
mentos comunica ao corpo de instrutores para que eles trabalhem determinados tipos de alongamento
e aquecimento que se integrem à perspectiva já elaborada. Como objetivo, propõe a consciência crítica
para a qualidade de vida e criatividade, a partir dos processos de improvisação na dança.

922
Compreendemos que o planejamento é uma ferramenta indispensável para qualquer prática, inde-
pendentemente do contexto de atuação e das relações estabelecidas. Desta forma, o planejamento
“[...] é uma ação reflexiva, viva, contínua.[...]. É um ato decisório, portanto político, pois nos exige es-
colhas, opções metodológicas e teóricas. Também é ético, uma vez que põe em questão ideias, valores
e projetos que alimentam nossas práticas” (FARIAS, 2009, p. 107). Especificamente sobre o ensino de
dança, o planejamento deve estabelecer relações entre a arte, o ensino e a sociedade, ideais capazes de
discutir, problematizar e delinear o projeto educacional de diversas maneiras.

Sobre os saberes abordados nas aulas de dança, o arte/educador 1 alerta para a responsabilidade que
os sujeitos devem ter ao dançar frevo, sobretudo em relação à prevenção de lesões. Segundo ele, isso
é de responsabilidade de cada um, e enfatiza o resgate da infância, a desconstrução dos padrões es-
tabelecidos pelo mundo moderno, estabelecendo relações entre racionalidade e afetividade. O arte/
educador 2 ressalta que o ensino está para além do conteúdo técnico (passos), e que é possível utilizar
o frevo para melhorar a qualidade de vida dos sujeitos.

Compreender a relevância de uma educação voltada para a saúde é imprescindível para promover um
ensino de dança seguro. Entretanto, estas possibilidades devem ser construídas e problematizadas em
ambiente educacional. Embora o arte/educador 1 ressalte esta preocupação, o mesmo omite-se quan-
do faz parte da sua ação pedagógica construir caminhos para tal finalidade. Marques (2012) aponta
que é fundamental abordar conhecimentos específicos da dança: saberes de anatomia, fisiologia, cine-
siologia, técnicas de educação somática, noções básicas de aquecimento, relaxamento, compensação
entre outras possibilidades. Em outras palavras, é necessário discutir, problematizar os conhecimen-
tos articulados ao mundo para que, desta forma, o aluno possa de fato construir a consciência crítica
e o conhecimento do próprio corpo.

Evidenciamos também que o brincar não está relacionado apenas a “brincadeiras de criança”, pois
reduzi-la apenas a um viés descaracteriza seu papel fundamental de corpos lúdicos e relacionais. A
técnica não deve ser o único meio para delinear o ensino de dança. Esta é imprescindível para o bai-
larino, mas, conforme assinala Nunes (2008, p. 34), “[...] mais importante do que a aprendizagem de
qualquer técnica corporal é o trabalho de conscientização do corpo, das tensões que ele guarda, dos
bloqueios que o impedem de seguir o fluxo da vida”.

O arte/educador 1 afirma que não existe um método de entrada, e sim liberdade, referindo-se à metodo-
logia utilizada para materializar as aulas de dança. O arte/educador 2 afirma que, atualmente, utiliza como
metodologia a fusão de três estudos: a metodologia de Nascimento do Passo (técnica direcionada para o
frevo), os estudos de Valéria Vicente, que, em consonância com um fisioterapeuta, propõe metodologia
voltada especificamente para o universo do frevo, e a metodologia criada pelo próprio arte-educador, que
introduz nas aulas a ludicidade, conseguindo, assim, atingir diferentes níveis de aprendizagens.

Com esta percepção, o arte-educador ressalta para alguns sujeitos não fazerem determinados tipos de
movimento, pois alguns passos dependem do fisiotipo da pessoa, ou seja, alguns têm flexibilidade e
facilidade, enquanto outros, não. O entrevistado afirma que para aqueles atores que insistem em fazer
algum passo que não se encaixam neles, ele se preocupa em chamá-lo reservadamente para trabalhar
alguns exercícios com o intuito de evitar que o sujeito se lesione.

923
A ação pedagógica se constitui de intencionalidades. A liberdade enfatizada pelo arte/educador 1 re-
mete-nos a ideia de livre-expressão, que também esteve presente durante a trajetória histórica da arte.
Desta forma, a livre expressão do movimento, de certa maneira, não exige dele conhecimento especí-
fico, elaborado e articulado na área de arte, facilitando o trabalho do professor. Em relação à técnica
em dança, esta deve ser compreendida como pensamento-corpo, cuja base libertária e emancipatória
deforma a ideia de corpo ideal e não deve permitir um pensamento de exclusão, mas de valoração da
alteridade e fomento às inúmeras genealogias corporais, como afirma Oliveira (2013, p. 26).

Embora os arte/educadores enfatizem o lúdico como ferramenta em suas aulas de dança, este ins-
trumento não deve estar relacionado a uma simplória brincadeira de criança. Marques (2011, p. 34)
enfatiza: “[...] A situação educacional lúdica está relacionada à criação e transformação, brincar é criar
vínculos. Assim, estaremos também contribuindo para a educação de corpos sociais, cidadãos brin-
cantes que saibam estabelecer vínculos com os outros e com o mundo em que vivem”.

Sobre as dificuldades encontradas ao ensinar dança, o arte/educador 01 se refere ao poder públi-


co, que ainda não observou a função da dança, que evita o envolvimento dos indivíduos em drogas
e bebedeiras, preenchendo, assim, o tempo ocioso dos sujeitos com atividades artísticas. Já o arte/
educador 2 diz ter tido, no início da carreira, dificuldades ao lidar com a forma correta do ensino, e
que como design industrial sempre se preocupou com a técnica para não ensinar dança de qualquer
maneira, afirmando que os exercícios devem ser transmitidos da forma que são.

O ensino, baseado em concepções certas ou erradas, conhecimentos transmitidos da “maneira correta”,


remete-nos à concepção de educação bancária proposta por Freire. Este tipo de educação exclui a preo-
cupação com o contexto dos alunos e não tenciona torná-los sujeitos ativos no processo, desrespeitando
a dinâmica cultural dos indivíduos, visando “[...] a transmissão de conhecimentos acumulados pelas ge-
rações anteriores, sistematizados de forma lógica, definidos pelo professor, agente principal do processo
[...] aos alunos cabe assimilar o acervo cultural que lhe é transmitido” (SOUZA, 2010, p. 33).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo nos possibilitou perceber que mesmo com as lutas ideológicas e políticas promovida pelos
arte/educadores que defendem a arte e a dança como campo de conhecimento base para a construção
de uma arte/educação que esteja delineada sobre os princípios da leitura, o fazer e a contextualização de
forma significativa essencial para a formação humana dos sujeitos, o discurso dos arte-educadores se
delinearam nas concepções de dança enquanto expressão, bem como exercício e movimento corporal.

Em resposta ao nosso questionamento inicial sobre como as instituições não formais estão materiali-
zando o ensino de dança, compreendemos que os espaços pesquisados utilizam a técnica como único
viés para materializar as propostas de ensino em seus respectivos contextos de atuação, evidenciando
os aspectos físico/motor para, assim, promover qualidade de vida. Estes espaços apresentam lacunas
quanto a formação específica dos arte/educadores, bem como o desconhecimento sobre a definição
de seu papel/atuação neste contexto, assim como quais os saberes serão desenvolvidos nos sujeitos
participantes. Denotamos também que, de modo particular, cada campo empírico se constitui a partir
de uma cultura existente em seu interior, fator este que permeiam os processos de ensino.

924
Tal resultado se configura como um limite à arte/educação contemporânea, sendo relevante e urgente
destacar a distinção entre a área da dança e educação física, ambas autônomas e específicas, assim
como outros estudos que identifiquem os processos de formação dos arte/educadores para atuar neste
âmbito educativo.

REFERÊNCIAS

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MARQUES, Isabel A. De tripé em tripé: o caleidoscópio do ensino de dança. In: BARBOSA, Ana Mae; CUNHA,
Fernanda Pereira. (Orgs.). Abordagem Triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.
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MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Bra-
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NUNES, Clarice. Dança, terapia e educação: caminhos cruzados. In: CALAZANS, Julieta; CASTILHO, Jacyan;
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Dança, Salvador, v. 2, n. 1, p. 22-33, jan./jun. 2013.
SOUZA, Ana Paula Abrahamian. Corpos que dançam dentro e fora da escola: discursos pela interculturalidade
na dança no ensino. 2010. 127 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação, Universidade
Federal de Pernambuco. Recife, 2010.

925
O ensino de arte fora da escola:
os espaços culturais do bairro do
Recife como campo de educação
não formal
Inácio Alves Dantas Neto/ Cristiane Maria Galdino de Almeida

INTRODUÇÃO

Os espaços culturais estão cada vez mais presentes nos grandes centros urbanos. Também conhecidos
como centros culturais, estas instituições possibilitam que a sociedade tenha contato com os mais diver-
sos tipos de obras artísticas, como exposições, instalações, espetáculos de teatro, dança, música, sessões
de cinema e atividades formativas (oficinas, palestras e cursos), possibilitando a democratização da arte.

Além de serem pontos atrativos para turistas e locais de entretenimento, os espaços culturais se apre-
sentam como locais de várias possibilidades de desenvolvimento humano, tendo na arte/educação
um dos caminhos para a criação de um ambiente de ensino aprendizagem. Nesse sentido, podemos
considerar que esses espaços são um campo de ensino não formal, a partir das práticas de ensino de-
senvolvidas pelos arte/educadores que atuam nesses ambientes.

O presente artigo pretende realizar um estudo a respeito dos centros culturais, com o objetivo de apre-
sentar dados que caracterizem estas instituições como centros de ensino de arte e de educação não
formal. O texto traz o Observatório Cultural Torre Malakoff, a CAIXA Cultural Recife, o Museu Cais
do Sertão e o Paço do Frevo como importantes espaços culturais do Bairro do Recife para descrever
a relevância da região para a educação e como ferramenta de ensino e aprendizagem fora da escola.

1. METODOLOGIA

O trabalho a seguir será de natureza bibliográfica. A pesquisa bibliográfica, ou de fontes secundárias,


“é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em docu-
mentos impressos como livros, artigos, teses, etc” (SEVERINO, 2007, p. 122). Sua finalidade é colocar
o pesquisador em contato com tudo o que foi escrito, dito ou formado sobre determinado assunto.
Para isso, seguimos as etapas apresentadas por Lakatos e Marconi (2010): escolha do tema; elaboração
do plano de trabalho; identificação, localização, compilação e fichamento do material selecionado;
análise e interpretação dos dados obtidos; e, finalmente, a redação do artigo.

926
Para a construção deste estudo, analisamos parte da literatura científica sobre os temas relacionados
à arte/educação e à educação não formal, com o intuito de estudar e analisar os espaços culturais do
bairro do Recife como campo de educação não formal.

2. OS ESPAÇOS CULTURAIS DO BAIRRO DO RECIFE

O Bairro do Recife, comumente chamado de Recife Antigo, é hoje um bairro de referência em relação
aos centros de vivência cultural. Após o desenvolvimento do Plano de Revitalização do Bairro do
Recife, que teve início em 1992, o lançamento do projeto Porto Digital e da reforma do antigo prédio
do Cais da Alfândega para a instalação do Shopping Paço Alfândega, ambos a partir do ano 2000, o
bairro obteve um aumento gradativo de movimentação humana (LACERDA, 2015). Para descrever
a grande concentração de espaços culturais no Bairro do Recife, podemos citar quatro importantes
instituições da região: o Observatório Cultural Torre Malakoff, a CAIXA Cultural Recife, o Museu
Cais do Sertão e o Paço do Frevo.

O Observatório Cultural Torre Malakoff, com sede na Torre Malakoff, está localizado próximo à
Praça do Arsenal. O prédio foi construído no século XIX e depois transformado em espaço cultural,
no ano 2000, trazendo a proposta de unir ciência, arte e tecnologia. O observatório conta com oito
salas de exposição, além de salas educativas e administrativas, com ênfase na realização de projetos
de artes visuais, música e ações formativas. Na área externa do centro, são realizados diversos eventos,
com a adaptação do local. O equipamento é administrado pela Fundação do Patrimônio Histórico e
Artístico de Pernambuco (FUNDARPE).

A CAIXA Cultural Recife se localiza no antigo prédio da Bolsa de Valores de Pernambuco e da Pa-
raíba, em frente à Praça do Marco Zero, e foi inaugurada no ano de 2012. O centro possui dois pavi-
mentos de galerias de arte, teatro com 96 lugares, sala multimídia para exibição de vídeos e realização
de palestras, duas salas para oficinas de arte/educação, revistaria e área de convivência. A pauta do
espaço é composta por projetos de artes visuais, cinema, teatro, dança e música, e conta ainda com a
realização de oficinas, debates e lançamento de livros.

O Museu Cais do Sertão, sediado no Armazém 10 do Porto do Recife, foi inaugurado em 2014 e pro-
jetado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco. O espaço utiliza a tecnologia
para apresentar obras que trazem uma mostra da cultura popular nordestina. O centro traz uma ex-
posição permanente sobre o Rio São Francisco, estúdios de gravação, oficinas de música e a obra do
artista Luiz Gonzaga, o rei do Baião.

O Paço do Frevo está localizado em frente à Praça do Arsenal e foi inaugurado em 2014 para representar
o Frevo, uma das principais tradições culturais brasileiras, reconhecida como Patrimônio Imaterial da
Humanidade pela UNESCO. O centro é um espaço cultural da Prefeitura do Recife. O Paço do Frevo
se dedica à difusão, pesquisa, lazer e formação nas áreas da dança e música do frevo, com o objetivo de
propagar sua prática para as futuras gerações. O espaço conta com um centro de documentação, escola
de música, escola de dança e ambientes para exposições e exibição de obras audiovisuais.

A grande quantidade de equipamentos culturais e a realização de vários projetos artísticos nos espa-
ços apontados demonstra a relevância do Bairro do Recife para o desenvolvimento cultural de Per-
nambuco e o caracteriza como um fértil ambiente de estudos, pesquisa e formação humana.

927
3. O ESPAÇO CULTURAL COMO CAMPO DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL

Muitas vezes cometemos o equívoco de confundir educação com escolarização. Segundo Trilla
(2008), “há educação na escola e na família, mas ela também se verifica nas bibliotecas e nos museus,
num processo de educação à distância e numa brinquedoteca. Na rua, no cinema, vendo televisão e
navegando na internet, nas reuniões, nos jogos e brinquedos” (p. 29). Podemos descrever três tipos de
educação: a educação informal, que inclui a educação não sistematizada, que pode ser efetuada pela
família ou no cotidiano dos indivíduos; a educação formal, tradicionalmente associada à educação
escolar; e a educação não formal, que pode ser distinguida da educação formal a partir de diversos
critérios, como a metodologia empregada, a estrutura da ação educativa e seus agentes. A educação
não formal normalmente está ligada aos âmbitos da formação para o trabalho, ao lazer e à cultura, e
à educação social.

Os espaços ou centros culturais se apresentam como um rico campo de estudo e disseminação de


conhecimento. No presente estudo, utilizaremos a seguinte perspectiva para descrevermos estas ins-
tituições:

Os centros de cultura são espaços que aglutinam atividades de criação, reflexão, fruição, distribuição
de bens culturais. Constituem um núcleo articulador e gerador de ações culturais de criação. Devem
dispor de infraestrutura que permita o trabalho cultural e devem propiciar o encontro criativo entre
as pessoas. Se a atividade cultural deve instigar e provocar, a sua casa, o centro de cultura, não pode
ser um espaço exclusivamente de lazer; ao contrário, ele deve atrair as pessoas para o novo e a refle-
xão, deve negar o conformismo e a familiaridade com o conhecido. O que se realiza nesses espaços é
a ação cultural entendida como processo, sem começo e sem fim demarcados, que não deixa atrás de
si produtos formais acabados, mas uma nova cadeia de ações (RAMOS, 2007, p. 94-95).

Tendo em vista o caráter processual, de criação e reflexão dos espaços culturais, visualizamos nesses
ambientes um campo relevante de educação não formal, que pode auxiliar na formação de seres hu-
manos independentemente ou em sintonia com a educação formal. Segundo Gohn (2015):

[...] a educação formal é aquela desenvolvida nas escolas, com conteúdos previamente demarcados; a
informal como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de socialização - na família,
bairro, clube, amigos etc., carregada de valores e culturas próprias, de pertencimento e sentimentos
herdados: e a educação não-formal é aquela que se aprende “no mundo da vida”, via os processos de
compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivas cotidianas (GOHN,
2015, p. 1).

Uma questão surge ao analisarmos esses ambientes de educação não formal: qual o elemento em
comum dos espaços culturais do Bairro do Recife? A presença da arte, materializada por objetos ar-
tísticos das mais diversas linguagens: artes visuais, música, teatro, dança, etc. Para Aumont (2012), há
diversas formas de definir arte, todas elas influenciadas por determinada ideologia e de acordo com o
contexto histórico e cultural. Porém, o autor descreve duas características como sendo presentes em
toda definição de arte: o arbitrário, que traz a ideia de relatividade da obra de arte, identificado na
possibilidade de mudança da visão de que um determinado objeto pode ser considerado arte ou não,

928
de acordo com as instituições e o contexto cultural; e a aura, um valor especial atribuído às obras de
artes, difícil de qualificar, mas que dá a determinado objeto ou performance um prestígio particular.
A arte apresenta papel fundamental no processo de formação dos seres humanos. Segundo Read
(2013), é através dela que o homem experimenta um processo de comunicação específico, o da ex-
pressão artística. A arte possibilita o desenvolvimento da subjetividade, fazendo com que o homem
possa criar além do que lhe é apresentado em seu ambiente. A educação pela arte gera o desenvol-
vimento do pensamento imaginativo, aspecto humano capaz de dar ferramentas para que possamos
criar possibilidades de mudança do nosso mundo, fazendo com que entremos em contato com nossos
sentimentos, emoções, instintos e pensamentos que compõem a nossa personalidade, pois “tanto o
artista que cria a obra de arte quanto o observador desta estão penetrando de maneira mais ou me-
nos profunda no mundo dos sonhos” (READ, 2013, p. 35). Inicialmente, podemos perceber que a
educação pela arte constrói duas importantes características da relação do homem com o mundo: a
percepção, na medida em que entramos em contato com diferentes formas artísticas; e a imaginação,
ao experimentarmos o processo de criação através da arte. Em consequência disso, a arte possibilita o
desenvolvimento da atividade mental do pensamento, ao auxiliar a construção da linguagem através
da relação do homem com signos e símbolos específicos.

Morin (2011) afirma que a arte se configura como um item indispensável para a educação do futuro,
na medida em que contribui para o ensino da condição humana. Nessa perspectiva, os centros e es-
paços culturais são locais de extrema importância, pois democratizam o acesso à cultura e colocam
obras de arte ao alcance de toda sociedade. Além disso, toda a subjetividade humana é exercitada a
partir do contato do homem com a arte.

Segundo Dewey (2010), a experiência com arte faz com que o sujeito exercite suas emoções ao se
deparar com um objeto artístico, pois:

Ao assistir a uma peça teatral, contemplar um quadro ou ler um romance, podemos ter a sensação
de que as partes não se articulam. Ou seu criador não teve uma experiência colorida pela emoção,
ou, embora tenha havido no começo uma emoção sentida, ela não foi sustentada, e uma sucessão de
emoções não relacionadas ditou a obra. Nesse último caso, a atenção oscila e se desloca, e o resultado
é uma montagem de partes incongruentes. O observador ou leitor sensível percebe as articulações e
as costuras ou os buracos arbitrariamente preenchidos. Sim, a emoção precisa atuar (DEWEY, 2010,
p.159-160).

A presença da arte na educação é ainda mais indispensável nos anos iniciais do ser humano e “as ati-
vidades lúdicas são também indispensáveis à criança para a apreensão dos conhecimentos artísticos e
estéticos, pois possibilitam o exercício e o desenvolvimento da percepção, da imaginação, das fanta-
sias e de sentimentos” (FERRAZ; FUSARI, 1993, p. 84). Para Barbosa (2009), o conceito de educação
está atrelado ao de mediação, pautando-se nos estudos de Paulo Freire para afirmar que aprendemos
uns com os outros mediatizados pelo mundo. A autora afirma que espaços culturais são excelentes
ambientes para que o processo educacional em arte possa ser desenvolvido, principalmente pelo fato
de que após se depararem com uma exposição, as crianças são capazes de realizar criações mais ela-
boradas, rompendo com esquemas simples de desenho, mais ainda do que em sala de aula. A experi-
ência criadora, dentro do próprio espaço de arte como um museu, pode gerar resultados surpreendes.
Ao entrarmos em contato com os espaços culturais do Bairro do Recife, normalmente somos abor-

929
dados pela equipe de mediação dessas instituições. Este setor, geralmente intitulado de educativo, é
responsável pela relevante missão de possibilitar o contato entre o público e as obras de artes e proje-
tos culturais desenvolvidos nesses espaços. As práticas em arte/educação normalmente são utilizadas
como ação para a construção desse encontro, seja através da mediação, da realização de oficinas rela-
cionadas às manifestações artísticas ou pela experiência estética, caracterizada não só pela fruição da
obra, mas associada à criação artística por parte do público.

A própria expressão empregada para designar essa equipe, o Educativo, demonstra a natureza desses
espaços culturais: um rico ambiente de ensino aprendizagem, um importante campo de educação não
formal, que possui o ensino da arte como principal componente. O exercício dessas práticas de arte/
educação dos profissionais que compõe o Educativo dos espaços culturais do Bairro do Recife nos faz
acreditar que estes espaços são relevantes para o campo da educação não-formal e precisam ter sua
área de atuação expandida.

Apesar de o ensino da arte ser um aspecto de extrema importância para a formação integral do ser
humano, muitas vezes as práticas em arte/educação não colaboram para que este objetivo seja alcan-
çado. Os espaços culturais, por possuírem obras de arte como parte integrante de seu espaço, podem
contribuir de forma excepcional para a educação, pois:

Não é possível o desenvolvimento de uma cultura sem o desenvolvimento de suas formas artísticas.
Não é possível uma educação intelectual, formal ou informal, de elite ou popular, sem arte, porque
é impossível o desenvolvimento integral da inteligência humana sem o desenvolvimento do pensa-
mento divergente, do pensamento visual e do conhecimento presentacional que caracterizam a arte.
Se pretendemos uma educação não apenas intelectual, mas principalmente humanizadora, a ne-
cessidade da arte é ainda mais crucial para desenvolver a percepção e a imaginação, para captar a
realidade circundante e desenvolver a capacidade criadora necessária à modificação desta realidade
(BARBOSA, 2010, p. 5-6).

Porém, muitos espaços culturais não oferecem à sociedade toda a sua gama de possibilidades, prin-
cipalmente pela má gestão de seus recursos ou pela falta de elaboração de atividades consistentes.
Barbosa (2010) chama a atenção para a falta de capacitação encontrada em muitos administrados de
arte e cultura, principalmente em relação aos princípios da arte/educação, pois estes espaços, “quando
funcionam bem, é graças à atuação de pessoas especiais, mas autodidatas, que dificilmente encontram
como substitutas outras pessoas especiais que pelo menos preservem da destruição o trabalho cultu-
ral precedente” (BARBOSA, 2010, p. 6).

É bastante comum encontrarmos nos centros culturais práticas em arte/educação pautadas apenas
em um modelo tradicional de mediação, que não valoriza a visão de mundo dos espectadores, utili-
zando uma concepção de ensino da arte como transferência de conhecimento sobre História da Arte,
executada através de visitas guiadas:

A ‘mediação’ tradicionalmente exercida nesses espaços por meio de visitas guiadas tem uma con-
cepção diretiva, se pautando no discurso informativo construído em torno das obras, um discurso
absorvido da erudição dos historiadores, dos críticos e dos curadores. Esse modelo de mediação, se
assim pode qualificar tal ação, pressupõe um discurso unilateral e legitimador que afirma e confirma

930
o lugar da obra e de seu autor – o artista – no mundo da arte. Paradoxalmente, exclui desse círculo
fechado o sujeito que busca se aproximar, sobretudo o leigo, pois é um discurso pautado nos códigos
instituídos do mundo da arte, em especial o código da tradição erudita, que pressupõe uma iniciação.
Esse dispositivo de comunicação unilateral é uma herança dos sistemas elitistas excludentes, que
desconsideram uma possível autonomia de observação dos sujeitos que se veem diante das obras
obrigados a seguir com o olhar as indicações do guia (COUTINHO, 2009, p. 172).

Dessa forma, faz-se necessário romper com os modelos de ensino de arte pouco eficientes, principal-
mente aqueles que visualizam a produção artística dos educandos apenas como um passatempo, uma
livre expressão, sem uma intencionalidade na produção de sentido. A abordagem triangular, uma
proposta de Ana Mae Barbosa e apresentada por Azevedo (2014) como um sistema adequado para
a arte/educação, utiliza três ações importantes para a construção do conhecimento em arte e para a
concretização da experiência estética: o ler, o fazer e o contextualizar. A abordagem triangular pode
ser percebida como uma teoria de interpretação, capaz de gerar resultados positivos na relação do
sujeito com o outro e com o mundo.

Para que metodologias adequadas de ensino da arte sejam empregadas, torna-se fundamental a atua-
ção de educadores capacitados, cientes de sua responsabilidade como formadores de seres humanos,
principalmente para os alunos nos anos iniciais da vida escolar. É muito importante que o arte/edu-
cador faça uma mediação adequada entre os alunos e as atividades desenvolvidas, pois “a principal
tarefa do professor de arte é auxiliar o desenvolvimento dessas observações e percepções das crianças”
(FERRAZ; FUSARI, 1993, p. 49).

É de suma importância que os espaços culturais contribuam na formação dos arte/educadores, pois nor-
malmente as práticas desenvolvidas por estes profissionais nos espaços educacionais são pautadas pelo
projeto político-pedagógico da instituição. Nesse sentido, consideramos que “a práxis pedagógica da
formação de professores tem que estar plasmada no Projeto Pedagógico de Formação de Professor e no
Currículo de Formação sempre revisto e atualizado de acordo com as exigências da educação” (SOUZA,
2012, p. 66). Por isso, os espaços culturais devem rever seus planos de mediação e atuação pedagógica,
para que a sua atuação ofereça cada vez mais possibilidade de desenvolvimento para a sociedade.

Por fim, vale salientar o caráter educativo dos espaços culturais em relação à possibilidade de o ser
humano conhecer sua própria cultura e perceber suas próprias potencialidades criativas, sendo de-
tentor de uma história e de um lugar no mundo. Através do conhecimento, o homem pode assumir-se
como um ser social, capaz de agir e modificar a sua própria realidade. “Assumir-se como ser social e
histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter
raiva porque é capaz de amar” (FREIRE, 2011, p. 42).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o estudo a respeito da arte/educação e dos conceitos relacionados à educação não formal, acre-
ditamos que os espaços culturais constituem um importante campo de ensino aprendizagem, que
muitas vezes não recebe a devida valorização. Conhecer as práticas em arte/educação e os educadores
desses espaços pode proporcionar grandes descobertas, e, principalmente, uma ampliação de conhe-
cimento e de visão de mundo.

931
O engajamento dos professores das redes públicas e privadas de ensino possibilitará que os espa-
ços culturais possam ser usufruídos em sua totalidade. Através de visitas previamente agendadas, os
docentes podem proporcionar aos seus alunos momentos únicos de aprendizagem, articulando os
saberes da sala de aula e os novos conhecimentos.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Fernando Antônio Gonçalves de. A abordagem triangular no ensino das artes como teoria e a pes-
quisa como experiência criadora. 2014. 208 f. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação, Universi-
dade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 2012.
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2010.
______. Mediação cultural é social. In: BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão (Orgs.). Arte/educa-
ção como mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
COUTINHO, Rejane Galvão. Estratégias de mediação e a abordagem triangular. In: BARBOSA, Ana Mae;
COUTINHO, Rejane Galvão (Orgs.). Arte/educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP,
2009.
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FERRAZ, Maria Heloísa C. de T.; FUSARI, Maria F. de Resende e. Metodologia do ensino de arte. São Paulo:
Cortez, 1993.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal, participação da sociedade civil e estruturas colegiadas nas es-
colas. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 14, n. 50, p. 27-38, jan./mar. 2006. Disponível em: <http://
escoladegestores.mec.gov.br/site/8-biblioteca/pdf/ 30405.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2015.
LACERDA, Norma. Intervenções no bairro do Recife e no seu entorno: indagações sobre a sua legitimidade.
Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 3, p. 621-646. set./dez. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/
v22n3/06.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2015.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo:
Atlas, 2010.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2011.
RAMOS, Luciene Borges. O centro cultural como equipamento disseminador de informação: um estudo sobre
a ação do Galpão Cine Horto. 2007. 243 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
READ, Herbert. A educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2007.
SOUZA, João Francisco de. Prática pedagógica e formação de professores. Recife: Ed. Universitária da UFPE,
2012.
TRILLA, Jaume. A educação não-formal. In: ARANTES, Valéria Amorin. Educação formal e não-formal: pontos
e contrapontos. São Paulo: Summus, 2008.

932
Parecia tão distante...
Mas era tão nosso!
Aldeline Maria da Silva

E ste trabalho é fruto de um projeto de pesquisa e prática em ensino e criação em dança para alunos
de escolas públicas do Bairro do Engenho do Meio, que teve como objetivo geral gerar discussões
sobre a dança-educação nas escolas públicas e a relação da Universidade com a comunidade próxima,
também como promover ligação entre estas instituições.

O projeto foi inspirado em uma oficina experimental realizada durante a disciplina de Metodologia
do Ensino da Dança 4 (Disciplina voltada para a faixa etária de adolescentes - Ensino Médio), compo-
nente da grade curricular do 6º período do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal
de Pernambuco. A oficina teve orientação da professora Liria Morais e foi realizada em conjunto pelos
estudantes do período em exercício. A turma de alunos participante possuía um número de 5 alunos
do 2º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Diário de Pernambuco (EREM). A perspectiva de dança
abordada na aula parte do princípio de considerar o meio cultural do aluno, juntamente com alguns
conteúdos de dança que dizem respeito aos princípios de movimento. A metodologia utilizada na aula
promovia autonomia dos alunos na investigação do próprio corpo e relação e um direcionamento para
o movimento cênico, a ser detalhado mais à frente. Os resultados obtidos foram de sucesso e geraram
necessidade de continuação, tanto para os alunos, quanto para os professores (graduandos).

No período seguinte, faço uma visita como estagiária (Da disciplina de Estágio Supervisionado em
Dança 4) à escola Professor Leal de Barros, também do Engenho do Meio, onde observei um grande
interesse por parte dos alunos em relação às práticas de dança. Porém, a escola não oferecia acolhi-
mento e estrutura necessária para o estágio. Além disso, surpreendeu uma grande quantidade de
estudantes que não dispunham livres os turnos nos quais seriam oferecidas as oficinas de dança, por
terem responsabilidade de emprego – muitos, pelo programa Jovem Aprendiz.

Em entrevista, constatei que a maioria dos alunos alega um distanciamento com a UFPE. Muitos
deles não tinham conhecimento do curso de Licenciatura em Dança, nem do projeto Expo UFPE.
Muitos ainda afirmaram estarem se organizando para concorrer a uma vaga em faculdades da rede
particular, através dos programas PROUNI e FIÉS. Uma outra inquietação apontada pelos alunos, foi
a falta e incentivo, tanto para atividades regulares da escola, quanto para projetos extracurriculares.

933
Um dos fatos mais preocupantes é ver que esta escola reflete a situação da maioria das escolas de
educação básica, que não considera a importância da dança no ensino e curricular e nem oferece
estrutura e condições adequadas para a pratica extracurricular da disciplina. Uma outra preocupação
consiste no fato de a escola estar localizada em uma das comunidades mais próximas da UFPE, o que
retrata a necessidade de visão e promoção de acessibilidade, já que o curso de Licenciatura em Dança
visa a formação de professores-artistas para a atuação na Educação Básica.

Considerando esta demanda, voltei a contactar os alunos da Escola Diário de Pernambuco e outros
estudantes de Licenciatura em Dança que atuam como professores, mais especificamente em projetos
sociais, ONG’s e escolas públicas, e retomar o projeto de oficinas de dança para escolas públicas do
Engenho do Meio, na UFPE, com o objetivo de gerar reflexão sobre o espaço destes alunos na Uni-
versidade Pública e o espaço da Dança nas Escolas Públicas da Educação Básica. A partir de então,
foi feito uma organização do projeto e desdobramento da experiência anterior, procurando atender
às necessidades encontradas. O projeto contou com a parceria dos professores, Carla Santana, João
Victor Fortunato, Leandra Santos, Lin Caitano e Wanessa Cavalcanti.

1. ETAPAS

Perfil da turma dos alunos: Alunos da rede pública; baixa renda e classe média baixa; apresentam en-
tre 14 e 18 anos; consomem como produto cultural, o brega, a dança de rua, a “swingueira” e o frevo;
a maioria trabalha e é responsável por parte de seu sustento.

O projeto ficou dividido em 8 oficinas:

Oficina 1: Princípios de movimentos presentes nas práticas de danças cotidianas dos alunos: partes
isoladas e integradas do corpo, níveis espaciais, volume corporal, tempo de movimento; princípios de
improvisação individual e coletiva, princípios de criação.
Oficina 2: Exploração de princípios de movimento: peso, apoios, movimentos consecutivos e adja-
centes, fluxo livre e contido, construção de movimentos cênicos a partir de situações cotidianas.
Oficina 3: Dança de rua: Movimentos, práticas sociais, contextualização histórica, desconstrução e
criação.
Oficina 4: “Swingueira” e brega: Movimentos, práticas sociais, contextualização histórica, reflexão
sobre conceitos, desconstrução e criação.
Oficina 5: Frevo: “Swingueira” e brega: Movimentos, práticas sociais, contextualização histórica, re-
flexão sobre conceitos, desconstrução e criação.
Oficina 6: Reflexões sobre as posições sociais, culturais e políticas da dança, retomada das constru-
ções corporais individuais e coletivas, princípios de composição.
Oficina 7: Métodos de educação somática e composição a partir dos sentidos e contato com o espaço
e os outros.
Oficina 8: Escuta e reconhecimento da construção corporal obtida, reflexões sobre os conhecimentos
apresentados, retomada das composições coletivas, finalização do processo de produção artística.

Os planos de aula foram elaborados a partir dos resultados obtidos em cada oficina, com exceção da
primeira, que foi elaborada a partir do perfil da turma. Os alunos atuaram diretamente na construção

934
do processo, trazendo sensações, inquietações, dispositivos de composição e etc. Vale ressaltar que
os professores ofereceram apenas estímulos para desenvolvimento dos conteúdos e apenas instru-
mentalizaram e orientaram o processo de construção artística, sendo este, de autonomia dos alunos e
resultado dos conhecimentos construídos durante as oficinas, a partir do que eles já tinham.

2. PERSPECTIVA E METODOLOGIAS

Quando se fala em oficinas de dança, é comum vir à cabeça a imagem de aulas técnicas que abordem
estilos específicos de dança. No entanto, estas aulas acabam por não gerar reflexão aos alunos, enten-
dimento do próprio ser e possibilidade de criação, e a dança acaba por se integrar em um campo de
atividade física ou lazer. Procuramos, então, entender e ampliar a visão e conhecimentos de dança
dos alunos.

No projeto em questão, abordamos a perspectiva do ensino da dança investigativa e criativa, que


promova a reflexão do indivíduo como ser integrantes do mundo, interação social e possibilidade de
expressão, reflexão e intervenção através do movimento dançado. Nesta perspectiva, procuramos o
“não inventar do corpo, mas o conhecer e aprofundar” (LOUPPE, 2010).

Para o desenvolvimento das aulas, utilizamos estudos acerca dos métodos de Educação somática de
Eutonia e Klauss Vianna; métodos de Estudo do Movimento de Laban; corpo expressivo/poético,
processos de composição de André Lepecki, Maria Tereza Furtado Travi, Regina Miranda, Jussara
Miller, Laurence Louppe e outros.

Ser bailarino é escolher o corpo e o movimento


do corpo como campo de relação com o mundo,
como instrumento de saber, de pensamento e expressão
Laurence Louppe, 2012

3. DOS RESULTADOS

Tanto os professores, quanto os alunos ficaram contentes, satisfeitos e instigados com os resultados do
projeto, pretendendo dar continuidades às aulas de dança com direcionamento criativo.

As reflexões geradas pelos alunos apontam a eficácia dos métodos de ensino de dança abordados e a
sua intervenção no âmbito das escolas públicas. A construção corporal dos alunos consistiu em cons-
ciência ativa dos movimentos e das relações espaciais, compreensão das particularidades a dança em
aspectos políticos e sociais, desenvolvimento de significado reflexivo aos movimentos.

Apresentamos alguns depoimentos dados pelos alunos durante o processo, que continuará em apri-
moramento e construção: “a gente queria que tivesse dança na escola” (Natanael Silva, 15 anos); “Eu
pensava que o que a gente dançava era errado, pensei que dança era outra coisa. Agora eu sei que eu
posso criar e aprender com o que eu tenho” (Igor Roberto, 16 anos); “Pensei que as aulas iam ser te-
diosas, e não estão sendo” (Gabriel Rocha, 15 anos); “Eu nem sabia o que tinha na faculdade, já queria
fazer faculdade de dança, mas a gente nunca tinha nada de incentivo” (Adyla Souza, 17 anos).

935
A partir dos depoimentos dos alunos e discussão sobre as concepções de dança e dos conceitos da
Educação Superior Pública, os alunos chegaram ao título: “Parecia tão distante... Mas era tão nosso”

REFERÊNCIAS

FARTIN, Sylvia. Quando a ciência da Dança e a educação somática entram na aula técnica de dança. Pro-
-Posições, Campinas, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 79-95, jun. 1998.
LOUPPE, Laurence. A poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
MILLER, Jussara. Qual o corpo que dança? Dança e educação somática para crianças e adultos. São Paulo: Sum-
mus, 2012.
MIRANDA, Regina. O movimento expressivo. Rio de Janeiro: FUNARTE,1979.
RENGEL, Lenira Peral. Planos de composição. PPGD, UFBA.
TRAVI, Maria T. Furtado. Dançar-se: processos de criação em dança contemporânea. Cena em movimento,
Porto Alegre, n. 3, 2013.

936
Dança baixa
Reginaldo dos Santos Oliveira

“Dança baixa” foi um espetáculo que tomou como ponto de partida a criação. A Cia dos Pés se res-
tituía de um período de pausa e se reestruturava com um novo elenco. O encontro entre essas dife-
rentes pessoas e a investigação das potencialidades desse encontro na estruturação de um grupo, que
tinha no centro de seu projeto poético a valorização da autonomia e singularidade de cada intérprete-
-criador, tornou-se a questão central do processo.

As reflexões tecidas sobre a experiência por Benjamin (1994) e Bondía (2002) nos abrem possibilida-
des de conexão com questões aqui discutidas, se pensarmos, por exemplo, que a criação de “Dança
baixa” se desenvolveu num processo compositivo a partir da própria experiência dos dançarinos, em
que a relação de troca com o outro pode criar possibilidades poéticas no espaço-tempo, por meio das
particularidades e diferenças das corporeidades específicas de cada dançarino, deixando em si mesmo
e no outro, registros de experiências, marcas, vestígios como afirmam esses autores.

Imagem 1. Dança baixa. Fotografia: Jul Sousa


Fonte: acervo Cia dos Pés.

“Dança baixa” foi composto num partilhamento entre os seus integrantes e nesse cruzamento de afe-
tos, falas, dizeres e escutas abriu-se caminho para a alteridade, para o reconhecimento dos aconteci-
mentos no corpo, para o intercâmbio de ideias e questões, para o respeito mútuo entre os integrantes.

937
Nesse trânsito e cruzamento, construímos o outro em nós mesmos e nos construímos no outro crian-
do possibilidades de autoconhecimento a partir das diferenças que o outro apresentava, agenciando
um contato consigo mesmo e com sua cultura.

Esta ação contaminadora entre os sujeitos presente em “Dança baixa” sobre um estado poético e estético
se construiu a partir de uma partilha sensível, de uma organização coletiva que implicou, não em uma
atitude simplista do tipo “todo mundo faz tudo”, mas na disponibilidade que teve cada indivíduo ao se
colocar e participar da discussão da obra, das propriedades operativas que engendravam o grupo e a
configuração artística, e por isso, elas se tornaram compartilhadas. Apropriando-me de Jacques Rancière:

[...] Denomino partilha do sensível o sistema de evidencias sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a
existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha
do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repar-
tição das partes e dos lugares se fundam numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que
determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros
tomam parte dessa partilha. (RANCIÈRE, 2005, p. 15).

Imagem 2. Dança baixa. Fotografia: Jul Sousa.


Fonte: acervo Cia dos Pés.

Como comentado anteriormente, o processo compositivo partiu da reestruturação da Companhia


dos Pés com novo elenco. Isso indicou diferença, modos distintos e diferenciados de ser e estar no
mundo e de tratar o processo de criação. Assim como uma atitude de afirmação do sujeito e de suas
particularidades, neste processo o artista sobrepõe-se ao passo de dança. Podemos afirmar que a im-
provisação foi o procedimento que circulou todo o universo de composição das cenas. Dessa forma,
o que se observa no trabalho não é o grau de dificuldade ou de elaboração da coreografia (embora
ela tenha tanto uma quanto a outra), mas sim o intérprete que nesse caso específico foi também co-
-criador da obra artística, realizando seu discurso através do movimento e de sua experiência. Isso
enfatizou a importância da autonomia dada ao dançarino nesta criação, ou seja, a construção de um
discurso pessoal imbricado no coletivo.

[...] Este processo de criação e investigação explorou as singularidades de cada dançarino desa-
fiando a capacidade expressiva por múltiplas vias, além de encontrar a particularidade de cada in-

938
divíduo numa movimentação de conjunto, num corpo poético, compartilhado e exposto na cena.
(LOPES, 2014, p. B1).

O discurso corporal em questão remete à aproximação e ao pertencimento dos dançarinos com as


Danças Tradicionais Populares, a saber: Coco alagoano e pernambucano, Dança dos Orixás, Frevo,
Caboclinho e Cavalo Marinho. Para esta composição importou o temperamento dessas danças e não
o passo em si. Para tanto, esse processo foi alimentado e construído numa rede de interlocução entre
danças tradicionais brasileiras e dança contemporânea, observado e tratado a partir de suas peculiari-
dades, o que envolveu mudanças no modo de se organizar corporalmente e esteticamente. Tal diálogo
possibilitou conexões do indivíduo consigo mesmo, com o outro e com sua cultura, proporcionando
uma relação crítico/reflexivo de seu fazer/estar no mundo. Além disso, as danças tradicionais popu-
lares na construção dos corpos desses dançarinos desestabilizaram modelos de imagens do corpo que
sustentam os vários tipos de representações dominantes na dança, na mídia e na sociedade, pondo em
evidência o caráter político da arte. Pois:

[...] É nesse ponto que o trabalho se cruza com o estudo das corporalidades das danças/comu-
nidades populares brasileiras – como potencialidade de enriquecer a experiência corporal dos
alunos interessados em dança/artistas da dança em formação. O que mais nos interessa nas
danças populares é a corporalidade, que relaciona cotidiano e dança. Trata-se de um saber cor-
poral especializado relacionado com ações cotidianas de práticas que, de um modo geral, não
existem no ambiente urbano e ampliam a exploração das potencialidades anatômicas do mo-
vimento humano. De acordo como nosso modo de pesquisar, esses movimentos se relacionam
com metáforas, portanto, trata-se de um aporte que resulta em ganhos técnico-poéticos. Essas
danças e ações corporais, de fato, estão relacionadas a modos de vida e subjetividades bastante
específicas. (DOMENICI, 2010, p. 4).

O estar com o outro, o encontro entre diferenças gerou modos particulares de movimentação e ex-
pressividade que implicou em potência criativa, em possibilidades possíveis de construção de ima-
gens poéticas, ressaltando as singularidades de cada dançarino ao invés de originalidades.

Imagem 3. Dança baixa. Fotografia: Jul Sousa.


Fonte: acervo Cia dos Pés.

939
Pudemos, então, perceber que a aproximação, diálogo e interlocução entre essas duas línguas atuaram
em “[...] um processo de construção de uma zona de transitividade, baseada na cooperação entre con-
dições relacionais de cada área, em busca de conexões que mobilizem experiências reorganizativas de
seus respectivos regimes de funcionamento e estados de equilíbrio, de modo que favoreçam a produ-
ção de novos sentidos” (BRITTO, 2008, p. 5). Numa ideia, não de somar uma coisa sobre a outra, mas
investigar as possibilidades de articulação e interlocução entre as línguas em exposição, construindo
caminhos que promovam “a expansão de um campo no outro” (BRITTO, 2008, p. 3), compreendendo
e afirmando seus contrapontos e semelhanças. Isso gerou a produção de vozes singulares no coletivo,
distantes de uma homogeneização ou de sujeição de uma língua sobre outra, entretanto próximo de
um jogo de pluralidades, multiplicidades e diferenças.

Imgem 4. Dança Baixa. Fotografia: Jul Sousa.


Fonte: acervo Cia dos Pés.

Em Dança Baixa, a recriação das danças tradicionais brasileiras se deu de modo a acomodar estas
danças gerando nos corpos e na composição ajustes, reajustes e rearranjos que criaram modos de
organização estéticas diferenciados. Como, por exemplo, o uso do movimento das pernas em elo-
quência no nível baixo, caminhadas agachadas, mobilidade da coluna no eixo cabeça-cóccix. Assim,
nesse processo pretendeu-se que o dinamismo, o ritmo, corporalidades e imaginários específicos da
cultura popular pudessem contaminar a gestualidade da dança contemporânea da Cia dos Pés. Nesse
sentindo, o diálogo compositivo coevoluiu numa retroalimentação proporcionando a construção de
uma dança que foi capaz de fazer uma língua expandir-se na outra, pois:

[...] Toda dança resulta de modo particular de um corpo organizar, com movimentos, o seu conjunto
de referências informativas (biológicas e culturais). Do mesmo modo, o contexto cultural correspon-
de ao ambiente do corpo, no sentido de que o conjunto de informações que caracterizam os modos
de pensar e operar vigentes na sociedade em que está inserido delineia seu campo particular de pos-
sibilidades interativas. Os ambientes interferem na configuração de suas estruturas, ao mesmo tempo
em que tais estruturas, geradas sob as condições dos ambientes, interferem na sua reconfiguração.
(BRITTO, 2008, p. 72).

940
Imagem 5. Dança Baixa.
Fotografia: Jul Sousa.
Fonte: acervo Cia dos Pés.

Esse diálogo gerou dinâmicas corporais ricas e sofisticadas onde cada corpo contou com a sua lingua-
gem pessoal, seu histórico e a sua bagagem expressiva conectada à proposta do espetáculo. Podemos
dizer que se realmente existiu um diálogo entre os dançarinos e ‘suas danças’ nesse trabalho, tal diá-
logo se deu necessariamente por uma via particular na afirmação de suas diferenças.

[...] Quando também a emoção deixa de ser uma representação, o corpo deixa de representar e passa
a apresentar estados corporais que criam empatia e comunicam devido aos próprios traços materiais,
estabelecendo uma espécie de diálogo tônico. (GODARD apud DOMENICI, 2010, p.80).

Imagem 6. Dança Baixa. Fotografia: Jul Sousa.


Fonte: acervo Cia dos Pés.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Volume I. Magia e Técnica, Arte e Política. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

941
BONDÌA, Jorge Larossa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n.
19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002.
BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Hori-
zonte: FID editorial, 2008.
DOMENICI, Eloísa. A pesquisa das danças tradicionais brasileiras: questões epistemológicas para as artes cêni-
cas. In: Cadernos Gipe-Cit: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário
e Teatralidade, n 23. Salvador: UFBA, PPGAC, 2009.
LOPES, Antonio. Tempo de ver e sentir. Gazeta de Alagoas, Maceió, 23 de abr. 2014. Caderno B, p.1.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: EXO experimental, 2005.
SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo. Dança e performatividade. Salvador: Editora da Universidade Fede-
ral da Bahia (EDUFBA), 2008.

942
Poética da cidade
Telma César Cavalcanti

E sta comunicação discorre sobre a realização do Projeto Poética da Cidade, desenvolvido em Ma-
ceió-AL. Teve como foco a ressignificação do espaço urbano e a contextualização histórico-cultural via
corpo. Os espaços urbanos, em suas configurações arquitetônicas e nas particularidades dos contextos
históricos e socioculturais em que foram gerados e nos quais estão inseridos hoje, levaram-nos a leitu-
ras simbólicas que contaminaram a criação coreográfica, colocando memórias em movimento. Desse
modo, nosso interesse não esteve centrado na ação de dançar na rua, e sim de dançar a rua. Foram ex-
ploradas quatro locações, gerando três coreografias e um exercício de improvisação aberto ao público.
Além disso, também foram realizadas oficinas para grupos de dança do interior do estado e para estu-
dantes de Arquitetura da UFAL. Sendo assim, chegamos à implementação de um processo de produção
de conhecimento sobre nós mesmos, sobre nossa história e cultura, e sobre modos de operar em dança.

1. O TEMPOESPAÇO DAS IDEIAS

O Projeto Poética da Cidade foi concebido em 2006 e realizado entre 2009 e 2010, patrocinado pela FU-
NARTE (Prêmio Klauss Vianna de Dança). Dele, participaram 28 bailarinos inscritos em convocatória
aberta à comunidade, sendo a maioria deles alunos do Curso de Licenciatura em Dança da UFAL.

O trabalho teve com principal aporte conceitual o sistema Laban. Utilizamos ainda os referenciais
da obra de Gaston Bachelard, “a poética do espaço”, como objeto de inspiração poética e de reflexão
sobre os modos de relação com o espaço urbano. Bachelard (2008, p.12), no livro supracitado, diz-
-nos que, [...] todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa [...]. Casa como abrigo,
onde [...] o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua
virtualidade, através do pensamento e dos sonhos [...].

Ao lançar essa perspectiva atribuída a casa, por Bachelard, para a cidade, muitos questionamentos
surgiram no sentido de perscrutar até que ponto, realmente, habitávamos nossa cidade e nos sentía-
mos abrigados por ela. A dança, assim, apresentava-se como meio de sensibilizar os limites da cidade
postos em sua realidade arquitetônica e histórico-cultural. A dança, como possibilidade de viver a
realidade da urbe, tendo o corpo como meio que, em conexão com a Arquitetura e a História, elabora
nexos de sentido que permitem novos modos de percepção do espaço urbano. Modos poéticos que,
quem sabe, possam despertar maior sentido de pertencimento ao lugar em que se habita.

943
Propondo o diálogo dos nossos corpos com a cinestesia que o espaço urbano gera, foram escolhidas
quatro locações para realização do projeto: a ponte do Riacho Salgadinho, o Memorial à República, as
escadarias da Associação Comercial de Maceió e os pilotis do Clube Alagoinhas. Para cada uma das
coreografias criadas por essas locações, foi atribuído um título.

1.1. Qual é a história que você quer que eu conte?

Esta coreografia foi criada pelo Memorial à República, um monumento construído pelo Governo
do Estado, na orla de Maceió, no bairro histórico de Jaraguá, em homenagem aos proclamadores da
República, Marechal Deodoro e Floriano Peixoto, ambos alagoanos.

O título do espetáculo: “Qual é a história que você quer que eu conte?” articula duas reflexões: uma
ligada ao acesso que temos sobre nossa história, às versões que nos chegam sobre a própria proclama-
ção da República, por exemplo, e a não história de Zumbi; outra, a necessidade que o público em geral
e, por vezes, os próprios bailarinos têm de que a dança tenha uma narrativa.

Do ponto de vista arquitetônico, as simetrias do local, suas dimensões e formas definiram o uso do
espaço tanto no sentido das improvisações individuais quanto nas formações grupais.

Um outro elemento utilizado como estímulo à criação/reflexão foi o Hino à República.

Imagem 1

1.2. Miami dos Mendigos ou As privadas

Dentre os 28 artistas que integraram o elenco de “Qual é a história que você quer que eu conte?”,
selecionamos 06 bailarinas para integrarem o elenco da coreografia Miami dos Mendigos, dançada
na/pela ponte do Riacho Salgadinho. Aqui os procedimentos metódicos foram bem diferentes do
trabalho anterior. Foi criada uma coreografia para as bailarinas executarem. Apesar disso, ao execu-
tarem a coreografia na ponte do Riacho Salgadinho, esse espaço foi trazendo proposições ao grupo,
que alteraram a coreografia. Este riacho, atualmente, é um esgoto que deságua em uma das mais belas
praias urbanas de Alagoas.

944
Imagem 2 Imagem 3

1.3. Dentrofoaadentro

Essa coreografia, inicialmente idealizada para as escadarias da Associação Comercial de Maceió, aden-
trou também os salões desse grande edifício neoclássico do bairro de Jaraguá. O processo da construção
e, sobretudo, o advento da inauguração desse prédio, muito nos revelou da história e da organização so-
cial da comunidade alagoana, tanto à época do advento quanto das reverberações atualmente. O nome
da coreografia nos remete à condição de exclusão e inclusão tão demarcada no acesso a esse prédio,
onde, curiosamente, há dois museus que, não por acaso, sofrem com falta de visitação.

Imagem 4

Imagem 5

1.4. Azulquente

Os elementos sensoriais, as texturas, das pedras, do cimento, da água, as sonoridades do local, foram
os principais elementos detonadores do processo improvisacional. Na terceira improvisação feita no
local convidamos o público aproveitando as comemorações do Dia Internacional da Dança em abril.

945
Imagem 6 Imagem 7

Entendemos que este projeto lançou a dança em um lugar social pouco comum e pouco divulga-
do na sociedade alagoana. Uma dança que provoca reflexões, que aponta questões sociais, que se
apresenta em lugares até então incabíveis, como monumentos históricos ou a praia que rodeia a
cidade. Que não apenas se apresenta no lugar, mas que dança o lugar, ressignificando-o enquanto
espaço dançado.

946
O processo de construção
de repertório para o artista
de teatro musical
Inácio Alves Dantas Neto

O presente trabalho pretende sistematizar o caminho percorrido pelo autor para a construção de
repertório para teatro musical, realizando o debate a respeito do tema e descrevendo um possível ca-
minho para os artistas que pretendem enveredar para este campo artístico. O foco desta comunicação
será o processo de escolha das músicas para composição de portfólio, considerando as características
individuais de cada artista, tendo em vista que o canto é um importante atributo que precisa ser de-
senvolvido e aprimorado para a atuação em teatro musical.

A preparação do artista de teatro musical exige disciplina e habilidades em três importantes lingua-
gens artísticas: o teatro, a dança e a música. Segundo Deer e Dal Vera (2013), uma forma para que o
artista possa se desenvolver e unificar estas três artes é através da preparação de um repertório ade-
quado, que deve ser utilizado para estudo, tanto da melodia e das letras das músicas, dos movimentos
adequados para a interpretação, quanto do texto do libreto do espetáculo do qual a canção faz parte.
A partir da análise das intenções e do contexto do universo de cada personagem, o artista pode mer-
gulhar na sua profissionalização e desenvolver sua técnica.

O autoconhecimento vocal é indispensável para que seja possível a escolha de um repertório adequa-
do e dos personagens que cada artista poderá interpretar. Nesse sentido, conhecer a própria classifi-
cação vocal possibilitará a descoberta dos espetáculos e das canções que poderão ser trabalhadas por
cada profissional. Baê e Marsola (2012) descrevem que a extensão e a tessitura vocal são os principais
indicadores para a classificação vocal, tanto na música popular quanto na música erudita. Para as au-
toras, as vozes podem ser divididas em seis tipos na música erudita, da mais aguda para a mais grave:
soprano, mezzo soprano e contralto (vozes femininas); e tenor, barítono e baixo (vozes masculinas).
Já na música popular, a divisão mais usual se dá em apenas quatro vozes: soprano e contralto (vozes
femininas); e tenor e baixo (vozes masculinas).

O canto lírico pode ser considerado como a base para a formação de todo cantor, incluindo o artista
de teatro musical. Além deste tipo de canto, o Belting aparece como uma técnica específica para a
performance em teatro musical e para música pop. “Podemos definir Belting tecnicamente como uma

947
voz de laringe um pouco mais alta, de espaço faríngeo mais restrito resultando acusticamente em um
som muito brilhante (Pure Belting)” (ARAÚJO, 2013, p. 45). O Belting Contemporâneo apresenta
uma classificação vocal específica para teatro musical, da voz aguda para a voz mais grave: belters,
sopranos e soprano-belters (vozes femininas) e barítonos, tenores e baritenores (vozes masculinas).
As vozes mais graves, as contraltos e os baixos, aparecem com pouca frequência, possuindo papéis
específicos no repertório de teatro musical.

Cerqueira e Oliveira (2014) apontam a escolha do repertório como um elemento importante para a
aprendizagem de saberes voltados para a performance musical. Para os autores, existem dois prin-
cipais modos de instrução musical: a individual e a coletiva. A instrução individual possibilita uma
aproximação na relação professor e aluno, permitindo que o docente reconheça as especificidades de
cada aluno. A instrução coletiva permite que os alunos possam interagir entre si e aprendam através
dos mais diversos tipos de metodologias, como a iniciação musical, a elaboração de arranjos, oficinas
de performance, masterclasses, grupos instrumentais diversos, entre outros. Para uma aprendizagem
de performance musical de forma completa e eficiente, as experiências práticas, além dos estudos te-
óricos, são indispensáveis, pois o estudo da música envolve aspectos auditivos, cinestésicos e visuais,
não apenas cognitivos.

Após os estudos iniciais de canto e o reconhecimento de sua extensão, tessitura e classificação


vocal, o artista que pretende iniciar em Teatro Musical necessita selecionar o seu repertório, ten-
do em vista os mais variados estilos e gêneros. Para Deer e Dal Vera (2013), é necessário possuir
algumas músicas dos estilos a seguir, tanto em ritmo lento quanto acelerado: ária de ópera ou
música clássica; canção de opereta vienense; canção de Gilbert e Sullivan; música de comédia
antiga ou Tin Pan Alley; canção de drama musical moderno; música de comédia musical; can-
ção de musical da idade de ouro; canção de musical “Juke Box”; música de Sondheim; canção
de musical de Rock; música de espetáculo burlesco; canção de musical contemporâneo; música
de filme ou musical da Disney; música do repertório pop ou country. Além do desenvolvimento
artístico, os autores também descrevem como um repertório amplo e variado pode facilitar a
vida profissional do artista:

Ao folhear os jornais profissionais, sites e anúncios de teatro para possíveis audições, você vai
descobrir uma incrível variedade de potenciais postos de trabalho, cada um requerendo diferentes
estilos de canto e de atuação. Para cada audição, vai precisar de músicas que funcionem apenas
para aquele específico show ou peça, e às vezes terá muito pouco tempo para prepará-las. Mas
ter que localizar, aprender e preparar totalmente uma nova música para cada audição pode ser
desgastante, caro e uma forma ineficiente de obter trabalho. Uma resposta muito melhor é ter um
bom portfólio de músicas para audição já preparado, e com uma ampla gama de estilos e gêneros.
Assim, a cada audição, basta selecionar no menu de opções, revisar e fazer os pequenos ajustes
necessários para apresentar-se de forma polida e preparada. Todas as músicas em seu portfólio,
independentemente do estilo ou gênero, devem ser apropriadas à sua idade e tipo físico (DEER e
DAL VERA, 2013, p. 496).

Para exemplificar um portfólio de artista para teatro musical, com a inclusão de obras de autores
nacionais, segue um repertório para um artista masculino, tenor, entre 30 e 35 anos, resultado da
pesquisa do autor do presente trabalho: 1) Un’Aura Amorosa (1790), música e letra de Wolfgang

948
Amadeus Mozart (ária de ópera); 2) It’s De-Lovely (1934), música e letra de Cole Porter (drama
musical moderno); 3) Younger Than Springtime (1949), Música de Richard Rodgers e Letra de
Oscar Hammerstein II (drama musical da idade de ouro); 4) Maria (1956), música de Leonard
Bernstein e letra de Stephen Sondheim (canção de Sondheim); 5) Can’t Take My Eyes Off You
(1967), música de Bob Gaudio e letra de Bob Crewe (1967) (musical “Juke Box”); 6) Beautiful
City (1971), música e letra de Stephen Schwartz (musical de rock); 7) Mr. Cellophane (1975),
música de John Kander e letra de Fred Ebb (musical burlesco); 8) On This Night Of A Thousand
Stars (1976), música de Andrew Lloyd Webber e letra de Tim Rice (musical de Andrew Lloyd
Webber); 9) Geni e o Zepelim (1978), música e letra de Chico Buarque (musical nacional); 10)
Caçador de Mim (1981), música de Sérgio Magrão e letra de Luiz Carlos Sá (musical “Juke box”
nacional); 11) Under The Sea (1988), música de Alan Menken e letra de Howard Asman (música
da Disney); 12) Moving Too Fast (2001), música e letra de Jason Robert Brown (musical con-
temporâneo); 13) You Raised Me Up (2002), música de Rolf Lovland e letra de Brendon Graham
(música pop); 14) If You Were Gay (2003), letra e música de Robert Lopez e Jeff Marx (comédia
musical).

Além do estudo da letra da música em sua língua original, o artista necessita conhecer as canções
em suas versões em português. Renomados diretores brasileiros de teatro musical, como Cláudio
Botelho (“Hair”, “Despertar da Primavera” e “Milton Nascimentos – Nada Será Como Antes”),
Carlos Bauzys (“Alô Dolly!”, “Xanadu” e “Hairspray”), Miguel Briamonte (“O Fantasma da Ópera”,
“A Bela e A Fera” e “Chicago”), e Paulo Nogueira (“Jekyl & Hyde”, “Mama Mia!” e “Fame”), não
fazem oposição, caso os candidatos escolham executar seu repertório na língua portuguesa, ou
exigem que as músicas sejam interpretadas em português nas audições (TOLEDO, 2016). Existem
diversos sites na internet com versões em português de músicas de teatro musical, como o trabalho
de Oliveira (2016).

A obra compilada por Walters (2008) apresenta vários volumes com partituras de músicas dos mais
diferentes estilos e gêneros de teatro musical, sendo um rico material de pesquisa para a construção
de um portfólio. Separados por classificação vocal, algumas versões dessas obras trazem ainda CD
com acompanhamento em piano para as canções, possibilitando que o artista tenha autonomia para
estudo e possa simular o processo de execução da canção que será realizado em uma audição. Além
das músicas completas, é necessário o estudo de pequenos trechos selecionados de cada canção, tendo
em vista que muitos testes não possibilitam a apresentação de uma peça completa. Para isso, o tra-
balho de Walters (2010) oferece partituras com recortes de 16 compassos, facilitando o processo de
escolha das partes mais expressivas de cada música.

A construção de um repertório adequado é um elemento de grande importância para o artista de


teatro musical, pois é através do estudo do material escolhido que será possível o desenvolvimento
de uma técnica vocal adequada e dos mais diversos recursos para uma performance musical de
qualidade, de acordo com as características das personagens interpretadas. Além disso, a prepara-
ção de um portfólio com as mais diversas canções de estilos diferentes, possibilitará que o artista
esteja preparado para as oportunidades que aparecerem em sua carreira, como testes e audições
para espetáculos.

949
REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Marconi. Belting contemporâneo: aspectos técnico-vocais para teatro musical e música pop. Brasília:
Musimed Edições Musicais, 2013.
BAÊ, Tutti; MARSOLA, Mônica. Canto, uma expressão: princípios básicos de técnica vocal. São Paulo: Irmãos
Vitale, 2012.
CERQUEIRA, Daniel Lemos; OLIVEIRA, Cristiano Braga de. Transmissão de conhecimentos no ensino da
performance musical. In: TOURINO, Cristina; ZORZAL, Ricieri Carlini. Aspectos práticos e teóricos para o en-
sino e aprendizagem da performance musical. São Luís: EDUFMA, 2014. p. 170-219.
DEER, Joe; DAL VERA, Rocco. A atuação em teatro musical: curso completo. Brasília: Editora Dulcina, 2013.
OLIVEIRA, Rafael. Musical em bom português. Disponível em: <https://sites.google.com/ site/musicalembom-
portuguesintro>. Acesso em: 14 mai. 2016.
TOLEDO, Ana. Cantar em inglês ou português? Disponível em: <http://mrzieg.com/blog/ 2013/07/cantar-em-
-ingles-ou-portugues>. Acesso em: 14 mai 2016.
WALTERS, Richard. The singer’s musical theatre anthology: tenor “16-bar” audition. Milwaukee: Hal Leonard
Corporation, 2010.
______. The singer’s musical theatre anthology: tenor. Milwaukee: Hal Leonard Corporation, 2008.

950
Minha vida como obra de arte.
Minha casa como espaço cênico e meu
cineteatro como experimentação estética
Lucas Leal

INTRODUÇÃO

Ao apresentar o projeto de prática de montagem III no curso de Bacharelado em Artes Cênicas, com
Habilitação em Teoria do Teatro, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO),
imaginei o quão difícil seria e, ao mesmo tempo, intenso e expositivo. Aprendi que ao propor novas
experimentações estéticas, estou sujeito as interpretações. Sem o outro, meu trabalho não existe.
Mesmo que não compreendam o todo do trabalho, ouvir/ler comentários é primordial para compre-
ensão sobre cada experimentação estética que proponho.

Durante o curso, pesquisei apropriação de espaços públicos, transformando-os em cenários. Através


de técnicas do teatro: de invasão, invisível e político, transformei também meu corpo como possibi-
lidade cênica. As intervenções partiam de um eu fragmentado em vários eus, com personalidades,
sobretudo em Alice no País das Maravilhas e O Mágico de OZ. Inseri, no trabalho, ficção e realidade,
misturando minha história de vida com as histórias destas ficções. Utilizei, ainda, personagens de
outros “contos”, de forma menos intensa, principalmente de desenhos animados e animes que fizeram
parte da minha infância e adolescência.

Fiz esse resgate pensando no reviver constante, no tempo, na loucura, no amor, e na intensidade que
é viver na realidade, uma vida ficcional. Transformei-me em um personagem de mim mesmo. No
cotidiano, utilizava elementos dos personagens, principalmente a indumentária. Os personagens se
utilizam de elementos do meu eu real, relembrando a infância e a juventude. Com o passar dos anos,
fui gravando e exibindo imagens de mim mesmo quando sendo outro(s), ou seja, eu quando persona-
gem misturava o meu eu real. Sou assim, professor, ator, diretor, teórico, experimentando minha vida
como uma obra de arte. E o que faltava para expor mais?

Faltava inserir mais diretamente as pessoas no meu universo particular, minha casa, ou melhor, a casa
de “mainha”, onde vivi de 1 ano e 8 meses até os 23 anos e 5 meses (em Casa Caiada, Olinda-PE). Saí
de casa para estudar e experimentar artes. Fiquei 6 anos e meio no RJ. Tornei-me mestre em educação

951
(pois já era historiador) e, por fim, bacharel em artes cênicas com habilitação em teoria do teatro. Os
meus trabalhos possuem recorte antropológico e etnográfico como fonte de pesquisa. O meu eu, ou
meus eus, são elementos de estudos, e minha casa, ou melhor, a casa de mainha, tornou-se espaço
cênico para prática de montagem III. Pensando na estrutura cênica, organizei o projeto (2015.2): Ci-
neclube ao vivo e online 4 ladeiras e 70 degraus284 apresenta: “meu Pernambuco” 6 anos e meio depois:
em uma série de viagens.

OBJETIVOS

- Criar experimento de cineclube para exibição de blocos de um filme inacabado sobre uma banda
que não existe.
- Remontar a história do filme, através da explicação do autor: sobre a história, sobre o processo de
gravação e sobre as ações de exibições artísticas que demandou criar/lançar um filme inacabado ao
vivo e on-line.
- Reviver filmando e divulgando vídeos sobre lugares e histórias da infância, adolescência e juventude.

ARGUMENTAÇÃO

Ao começar o curso de artes no RJ, tinha dois objetivos: compreender teorias das artes cênicas e elaborar
meu próprio projeto artístico. Trabalhando com intuito de atingir meus dois objetivos, tomo como base
hoje, a inter-relação deles. As teorias que tive contato, sobretudo a partir de uma visão panorâmica sobre
história da arte (com foco em arte cênica), despertaram em mim interesse no fazer artístico; mas, sem
esquecer a contextualização, importante instrumento para apreciação/produção artística.

Foi na vontade de expor meus pensamentos sobre arte e política que entrei no mundo dos contos de
fadas, que fez parte da minha trajetória como ator/diretor/produtor de cultura e arte no Estado do Rio
de Janeiro. Estabeleci parâmetros bem particulares para discutir as questões, com uma pesquisa au-
tobiográfica, resgatando memórias da infância e juventude; dialogando com conceitos que misturam
ficção e realidade, verdades e mentiras, no sentido extramoral. Como diretor, produtor e personagem
de um filme, que gravo desde 2010, comecei a expor minhas ideias abertamente na rede social virtual
Facebook.com. Acabei virando três “Lucas Leal” (com três perfis) e comecei a interagir através de
eventos e fanpages (de projetos ligados à cultura e arte).

Durante o processo da Prática de Montagem I285, onde propus gravação/exibição de um filme ina-
cabável, de forma ao vivo (como performance e/ou teatro de/na rua) e on-line (com fragmentos de
filmagens) dentro do contexto de um evento festivo (O Mundo Mágico de Oz #1), percebi a necessi-
dade de voltar a ser um “Lucas Leal” e “condensar” as informações do meu trabalho teórico de forma
mais organizada286. Para tal objetivo, transformei meus perfis em Fanpages: A primeira (https://www.

284. Link da fanpage sobre o filme: https://www.facebook.com/4ladeirase70degraus/?fref=ts


285. Para saber sobre a prática: http://nemculturanemnepotismo.blogspot.com.br/2015/06/relatorio-de-pratica-de-montagem-1-show.html
286. São 3 práticas para se formar, na II participei como aluno de teoria em uma montagem cênica proposta por um aluno-diretor, onde fiz
uma crítica sobre o processo de montagem até a estreia. Parar ler: http://nemculturanemnepotismo.blogspot.com.br/2015/12/moby-dick-
-unirio-convite-para-minha.html

952
facebook.com/LucasLealPerforMAN) me coloco como personagem/ator/diretor/perforMAN287 do
filme e exponho o que tenho tentado criar no campo cultural e artístico. A segunda (https://www.
facebook.com/gonzalezelpayaso) explico o personagem do filme inacabado; e na terceira (https://
www.facebook.com/LowElClown) coloco que o personagem que interpreto no filme interpreta um
palhaço que interpreta outros personagens288 de acordo com minha memória infanto-juvenil (refe-
rências autobiográficas) dos “contos de fadas” (que englobam desenhos animados; gibis; animes; e
principalmente filmes).

Dessa forma, pensar em um Cineclube ao vivo e online sobre um filme inacabável, com base nesses
conceitos que trato na pesquisa é mais um empreendimento para concretizar o objetivo de encontrar
meu projeto de arte. Sempre com a ideia de novas formas de apresentações artísticas; com artes inte-
gradas; utilizando projeções digitais; música ao vivo; atores e não atores durante evento festivo.

Mesmo compreendendo as dificuldades institucionais que se enfrentam na UNIRIO para propor Prá-
tica de montagem enquanto aluno, sempre acreditei no potencial da linguagem estética que estava
elaborando por três motivos: 1- ao criar cineclube ao vivo e online, estou ampliando possibilidades
de público; 2- ao expor nesse cineclube virtual pequenos vídeos explicando o filme, estou encenando
como ator em obra cinematográfico-documental, já que nenhum filme documentário trata de uma
realidade, mas sim de uma visão fragmentada da realidade que pode nem existir; 3- Enceno/produzo/
explico conceitos estéticos do trabalho artístico no intuito de estabelecer debates, ou seja, exponho
o que pensei ao idealizar a obra de arte deixando espaço público virtual aberto para comentários/
críticas/sugestões sobre a mesma.

Do ponto de vista conceitual, o trabalho articula questões artísticas e culturais, localizo-as dentro da
perspectiva dos Estudos Culturais Contemporâneos; alimentando o atual contexto da cultura digital;
possibilitando uma obra de arte também virtual; interativa; aberta e gratuita; em uma plataforma digital
privada (facebook.com), onde a rede parte do particular (amigos) para o social (amigos de amigos) e
público (pessoas da rede que encontram o evento virtual; e os presentes durante o cineclube ao vivo).

Dia 10/07/2009, saí de Olinda-PE para pegar carona com estudantes de Sistema de Informação da
UFPE que iriam para um congresso na UNIRIO. Na cabeça tinha um sonho: trabalhar com artes. Um
dia antes, entrei na internet, procurei testes, encontrei a ONG-ECOA Teatro Social. Mandei como
professor e para um teste de ator. Dois dias depois, passando pela Bahia (não sei onde), ligou-me al-
guém da ONG. Gostaram do meu currículo. Cheguei em 12/07 no RJ, vi uma pedra enorme no meio
de um jardim, e disse: “vou estudar aqui”. Comprei um chip da TIM na banca (hoje sei que é em frente
ao Rio Sul, conhecido Shopping); meu número até hoje (021 982030203).

Não escolhi o número, nem o aconteceu por lá. Foram 18 endereços, uma graduação em teoria do
teatro e o mestrado; dois anos como professor substituto na FFP/UERJ; alguns projetos; nenhuma
novela; nenhum comercial. Uma notícia no jornal O Globo sobre edição VII do baile à fantasia do

287. Conceito desenvolvido por mim do pernambuquês: Performer + Man (cumprimento entre amigos).
288. Para ler sobre os personagens acessar o link: http://nemculturanemnepotismo.blogspot.com.br/2016/01/ explicando-publicamente-o-
-meu-trabalho.html

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Chapeleiro Maluco289. Conheci muitas pessoas, tive ilusões, desilusões, sonhos, tentativas... algumas
viagens pelo Brasil, pela América Latina, ideias, lugares, tempo, espaço... Algumas perguntas e muita
vontade de viver. “Quem eu sou? O que estou fazendo aqui? Para onde vou?” Sempre que me pergun-
tavam se eu era de Recife, respondia: Olinda. No geral, tinha orgulho em dizer: “sou pernambucano”.
Comecei a perceber que não conhecia “minha terra”. Sei andar mais pelo RJ. Se quando conclui o
curso de História (2007), com 21 anos, eu me questionava: “que tipo de historiador sou eu que quase
não saí de Pernambuco?”; hoje me questiono: que tipo de pernambucano sou eu que não conheço
Pernambuco?

Ao pensar esse projeto, uma dúvida surgiu. Pernambuco é enorme, por onde começar? Pensei: “não
quero só começar, como também me interessa recomeçar”. Como assim? Vou começar o projeto mos-
trando lugares que já fui e que gosto. Quais? Olinda, alguns bairros e lugares. Como será que está tudo
agora? E depois? Pensei em outros lugares em Paulista, Recife, Itamaracá, Vale da Lua, Praias de Porto
de Galinhas, Tamandaré e etc. Já era o bastante para reviver lugares e apresentar para as pessoas que
nunca ouviram falar. Essa foi a parte 1 do projeto (que não significou necessariamente uma ordem de
lugares).

Já que a pesquisa em artes vem do universo autobiográfico, comecei a explorar nas imagens filmadas
um pouco de narrativa. Utilizei pressupostos que discuto na monografia: arte e política no contexto
dos contos de fadas a partir de uma pesquisa autobiográfica. As narrativas entram como pano de fun-
do para relatar histórias vividas nos lugares, para colar e/ou sobrepor com os contos que trabalho na
pesquisa, a saber: Alice no país das maravilhas, na visão do Chapeleiro Maluco (que interpreto) e O
Mágico de Oz, onde represento o Homem de lata. As histórias de cada personagem e dos contos são
instrumentos dramatúrgicos para recriar uma história real: a minha.

Para a pesquisa autobiográfica, é importante reviver e reconhecer – só que não ampliava conhecimen-
to espacial. Como criar novas sensações e novas histórias, em movimento contrário? Como assim?
Antes, as histórias tinham sido vividas em PE e relatadas no RJ (através dos eventos e da pesquisa).
Agora, além da parte 1, reviver lugares e histórias sobre, queria conhecer outros, desse novo momento
(volta para casa): Vindo do RJ e relatando em PE. Pensei sobre o recorte, lugares que poderia conhe-
cer e apresentar, mas, PE é enorme, como eu disse. Para parte 2, decidi acompanhar o Sport Club de
Recife no campeonato Pernambucano de futebol fora de Casa. Escolhi esse recorte para a parte 2, por
ser apaixonado por futebol, pelo Sport, e esses anos longe de Olinda-PE passei acompanhar o time
pela internet. Essa foi a maior ligação que mantive com “minha terra”. Não era família, amigos ou
projetos, mas sim o Sport, que matinha a consciência da minha naturalidade pernambucana.

Na prática, fui a alguns jogos na Ilha do Retiro (estádio do clube que fica em Recife) e aos jogos fora de
Recife, mas em PE, no intuito de, além de ver os jogos, conhecer os lugares e as pessoas. Em cada local,
conversei sobre costumes, valores, relatos, e, o que fazia no RJ. Foram viagens bem loucas... Conversas
com desconhecidos em lugares que nunca fui, falando em vídeos para um público que talvez nunca vá
lá (principalmente os cariocas). Conheci mais sobre PE e sobre meu eu pernambucano. Através das

289.https://www.facebook.com/MeiodiaForadoTempo/photos/a.290769044335832.68079.290759954336741/632336550179078/?type=3
&theater

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filmagens e exposições no cineclube-virtual, penso em contribuir para outras pessoas se interessarem
sobre elas mesmas como fonte de pesquisa artística290.

Após as filmagens, foram 3 semanas, 12 dias, 30 exibições/gravações de um filme que era para ser
sem fim, depois passou a ser inacabável, e hoje encaro como filme-teatro inacabado. Em cena, uma
projeção grande na parede da sala maior da casa, outra tela de 29 polegadas na sala menor, uma tela
de notebook e uma de netbook com vídeos diferentes e outros que se repetiam nas projeções. No ne-
tbook, cenas gravadas com base na parte 1 e 2 relatadas. Nas outras, fragmentos do filme inacabado.
Músicas de bandas de amigos, intervenções silenciosas minhas como perforMAN, fotografias parti-
culares da infância, adolescência e juventude eram entregues ao público. Luzes coloridas simulando
uma festa; entreguei “santinhos” da minha primeira comunhão (e o público levava para casa). Após
alguns momentos, eu enquanto o personagem convidava o público para assistir ao filme sobre a mi-
nha banda291 (que não existe).

No filme, todos falam de como me conheceram (o personagem, Gonzalez, palhaço Uruguaio que veio
morar em PE 2004 e em 2009 foi para o RJ) e do sucesso da banda na favela Vila Parque da Cidade-
-RJ. Após o fragmento do filme que contém narrativas, entrevistas e referências reais e ficcionais (18
minutos), em cena, questiono o público. Falo que tinha tudo: dinheiro, sucesso, pessoas falando de
mim, e pergunto (falando em espanhol): é isso que importa da vida? Dinheiro, sucesso, muita gente
falando de você... e o público responde que não. Então, falo que lembrei que tenho um filho (pepe),
telefono, digo que vou encontrá-lo em Montevidéu com meu Fusca 1969292, e coloco outras músicas...
Após isso, quebro novamente a cena e falo como autor do trabalho, convidando as pessoas a deixarem
recados escritos na parede do meu quarto.

Partes da encenação foram gravadas, algumas constam online e todo material elaborado vai compor o
filme, que pretende ser um longa metragem de 24 horas, o dia fora do tempo do calendário Maia, sen-
do a continuação/conclusão da pesquisa, em nível de doutoramento. Como é um trabalho de pesqui-
sa muito extenso, as referências são múltiplas e impossíveis de se colocar em um resumo expandido.
Os links sobre o projetos servem como referências do trabalho relatado. Há fragmentos do filme que
somente ao vivo ou quando o filme estiver pronto. No doutoramento, pesquisarei também formas de
exibição desse longa metragem.

290. Link on-line para apreciação constante: https://www.facebook.com/events/1665742840375892/


291. Link da banda: https://www.facebook.com/SaulomBRA/?fref=ts
292. Outra referência autobiográfica, o fusca faz parte de um projeto de cine-circo. Ver o link: https://www.facebook.com/
CineCircoRuaFusca69/?fref=ts

955
Arte-educação revisitando o escritor
Érico Veríssimo: Incidente em Antares -
o ontem que alcança o hoje
Lenôra Maria Albuquerque Farias

O projeto A Revolta dos Mortos-Vivos foi desenvolvido durante o segundo semestre de 2015, com
alunos do 1º ano, turma F, do E. M., no sentido de oportunizar ao alunado expressar à comunidade
escolar seu talento em suas várias acepções, através de uma obra literária de um autor consagrado. A
renomada educadora Ana Mae Barbosa (1991) declara que “o importante é que obras de arte sejam
analisadas para que se aprenda a ler a imagem e avaliá-la; esta leitura é enriquecida pela informação
acerca do contexto histórico, social, antropológico, etc.”. Com este pensamento, a escolha de consen-
so foi Incidente em Antares (Ed. Companhia das Letras, 1971), de Érico Veríssimo, amparado pelo
entendimento de Beatriz Santomauro (2015) de que, “hoje, a tendência que guia a área é a chamada
sociointeracionista, que prega a mistura de produção, reflexão e apreciação de obras artísticas”.

Sob a luz dos teóricos, os objetivos perseguidos foram: (1) Avaliar a importância da cidadania parti-
cipativa no processo de escolhas e decisões; (2) Despertar o interesse pela cultura através da interdis-
ciplinaridade; e (3) Identificar as características e significados da improvisação e da interpretação no
contexto da linguagem teatral. O processo de construção começou em julho de 2015, com duração até
o mês de novembro, quando foi apresentada uma peça teatral à comunidade escolar e à GRE Recife
Norte. De modo a facilitar a comunicação extraescolar, foi criado, em julho/2015, por sugestão de alu-
nos, uma comunidade no Facebook e um grupo no WhatsApp, onde alunos e a professora postaram
informações sobre o desenvolvimento de suas atividades e a socialização de sugestões, dúvidas, etc.

O conteúdo didático-pedagógico teve como base a análise de Gabriela Stocco (2015) de que “a arte,
ao longo da vida estudantil, tem um papel fundamental na construção de um indivíduo crítico, for-
necendo-lhe experiências que o ajudem a refletir, a desenvolver valores, sentimentos, emoções e uma
visão questionadora do mundo que o cerca”. A obra Incidente em Antares insere-se nesse contexto, no
momento em que possibilita ao aluno uma leitura do ontem e da atualidade, enquanto cenário socio-
econômico e político. Em atenção ao disposto nas diretrizes do documento da Secretaria de Educação
do Estado de Pernambuco que refere “no Ensino Médio, espera-se que o educando trabalhe de forma
crítica e consciente, criando e propondo criações artísticas individuais e em grupo, participando de
eventos e demonstrando autonomia em suas propostas” (SEDUC, 2013).

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Ao longo do semestre ocorreram diversos encontros: (1) Escolha da obra literária e do tema; (2) For-
mação de grupos para atuação em atividades: Estudo do Texto e Produção (figurinos, maquiagem,
cartazes e decoração do espaço para a dramatização); (3) Organização do ambiente. Um critério foi
estabelecido na escolha do grupo de dramatização: priorizar o talento e não a amizade. O cronograma
dos encontros presenciais foi apresentado e aceito pelos alunos, com as seguintes datas: 14/07; 14 e
31/08; 22/09; 13 e 27/10; 05 e 12/11; e 20/11 para apresentação da peça à comunidade escolar e, pos-
teriormente, à GRE Recife Norte.

Em julho, foram formadas as equipes para a pesquisa bibliográfica sobre greves e zumbis e Érico
Veríssimo; em agosto, as atividades foram de elaboração do roteiro para a pesquisa (texto e imagens)
sobre: Greves (Foto 01), Morto-vivo (Zumbi) representado na Foto 02, que resgata o crivo do livro
de Erico Veríssimo. Em outubro, foram realizados os primeiros ensaios da equipe de encenação do
trecho de Incidente em Antares de Érico Veríssimo, levantamento de preço de material para confec-
ção de cenário e figurino, coleta de sucata para confecção de cenário e, por fim, nas primeiras datas
em novembro, foram realizados ensaios e estudos, confecção de caixões para defuntos com caixas de
papelão (Fotos 03 e 04), cartazes e painel com grafismo em TNT (Fotos 05 e 06), testes com maquia-
gem e figurino (Fotos 07 e 08), simulação de organização de ambiente para apresentação da turma
ao público, com abordagem do contexto teórico - Greve, Morto-vivo e Érico Veríssimo/Incidente em
Antares, culminando com a encenação do trecho da obra literária (Foto10).

O recorte da obra de Érico Veríssimo escolhido pelos alunos e utilizado para a construção da drama-
tização pauta-se no ponto central do livro, como observado:

Em dezembro de 1963, uma sexta-feira 13, a matriarca Quitéria Campolargo arregala os olhos em sua
tumba, imaginando estar frente a frente com o Criador. Mas logo descobre que está do lado de fora do ce-
mitério da cidade de Antares, junto com outros seis cadáveres, mortos-vivos como ela, todos insepultos.
Uma greve geral na cidade, à qual até os coveiros aderiram, impede o enterro dos mortos. Os distintos
defuntos, já em putrefação, resolvem reivindicar o direito de serem enterrados - do contrário, ameaçam
assombrar a cidade. Seguem pelas ruas e casas, descobrindo vilanias e denunciando mazelas. O mau
cheiro exalado por seus corpos espelha a podridão moral que ronda a cidade (VERÍSSIMO, 1971). 

Acrescentado pelo texto de que “os mortos convocam toda a cidade e resolvem falar todas as verdades
que sabem, incluindo os políticos e autoridades corruptas e os crimes das pessoas. Como estão mor-
tos, não temem represália nenhuma, já que estão livres de qualquer castigo” (ARAÚJO, 2015), que
caracteriza a contemporaneidade do tema abordado.

Não obstante, é importante que seja evidenciada a recomendação proposta pela Secretaria de Edu-
cação de Pernambuco para o ensino-aprendizagem da disciplina Artes, qual seja: “Trabalhar cole-
tivamente em produções artísticas – refere-se à habilidade de trabalhar coletivamente com vistas à
criação artística” (SEDUC, 2013).

Dessa forma, o projeto elaborado na unidade escolar consubstanciou-se nas orientações preconizadas
no documento referido acima de que é fundamental para o aluno “Expressar-se através de produções
artísticas” – refere-se à capacidade de executar produções artísticas de forma pessoal (SEDUC, 2013).
Objetivando respaldar o contexto recortado da obra literária de Érico Veríssimo, os alunos apresen-
taram as seguintes imagens, as quais foram divulgadas por cartazes:

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Foto 1. Greve no Cemitério de Santo Amaro. Foto 2. Corpos insepultos.
Fonte: Diário de Pernambuco, 2003. Fonte: Diário de Pernambuco, 2003.

Segundo a pesquisa dos alunos, em decorrência da greve dos coveiros, os corpos ficaram insepultos
e os parentes aguardando a liberação dos mesmos (DP, 2003). A mesma causou transtornos, os quais
são representativos de questões sociais e políticas que influenciam a população de forma contunden-
te, reconhecimento que os alunos alcançaram com seu próprio entendimento. Conforme o resultado
esperado pela Secretaria de Educação de Pernambuco, preconizado no item Vivenciar, como fruidor,
de forma significativa, experiências em Arte – refere-se à habilidade de reconhecer produções artís-
ticas e construir conhecimentos a partir delas (SEDUC, 2013).

Foram registrados ainda a participação e o desenvolvimento de atividades de acordo com o estudo, pes-
quisa e análise comparativa com o texto de Érico Veríssimo (1971) com o objetivo de atender ao recorte
escolhido do texto do livro Incidente em Antares para a construção do projeto com os alunos, como segue.

Foto 3. Confecção de Foto 4. Ensaio da peça /


caixões com sucata. Confecção de cartazes.
Fonte: A autora, 2015. Fonte: A autora, 2015.

Foto 5. Confecção de Foto 6. Grafismo em


cartazes. TNT.
Fonte: A autora, 2015. Fonte: A autora, 2015.

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Em paralelo a esta atividade do grupo, outra equipe responsável pela caracterização realizou o ensaio
de maquiagem, após estudo do recorte da obra.

Foto 7. Caracterização dos Foto 8. Caracterização dos personagens.


personagens. Fonte: A autora, 2015.
Fonte: A autora, 2015.

O cenário foi idealizado pelos alunos, com o objetivo de expressar para o público o contexto literário
da obra de Érico Veríssimo.

Foto 9. Construção do Projeto. Foto 10. Encenação do trecho da peça.


Fonte: A autora, 2015. Fonte: A autora, 2015.

O objetivo dos alunos na busca de expressar, através do teatro, cenários do cotidiano vivenciados nos
campos sociais, econômicos e políticos, foi plenamente alcançado. A interação entre todos os envol-
vidos e a satisfação geral predominou em todo o desenvolvimento do projeto (Foto 09).

É necessário observar que o mais importante durante todo o processo, para esta autora, foi identi-
ficar o quão gratificante era ver os alunos tão envolvidos nas pesquisas, além de conhecer o autor
Érico Veríssimo: sua linguagem clara, crítica, apropriada nas análises sociais e políticas (presentes
em sua narrativa),ao apresentar fatos reais e irreais em 1971, mas que situam os leitores também na
atualidade; outro ponto foi a mútua colaboração dos grupos, tanto na confecção de material, quanto
na quantidade de sugestões trazidas pelos alunos para que fossem submetidas à análise dos grupos.
Merece destaque a alegria, companheirismo e empenho dos alunos na efetivação deste projeto, com
compromisso individual e ideário coletivo.

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REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Ana Paula. Incidente em Antares. Disponível em: <www.infoescola.com/livros/ incidente-em-anta-


res/>. Acesso em: 31 jul. 2015.
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo:
Perspectiva, 1991.
DP. Atraso em pagamento tumultua cemitério. Diario de Pernambuco, Recife, 11 jan. 2003. Caderno Vida Ur-
bana. Disponível em: <www.dpnet.com.br>. Acesso em: 18 ago. 2015.
SANTOMAURO, Beatriz. O que ensinar em arte. Disponível em: <http://revistaescola.abril. com.br/formacao/
conhecer-cultura-soltar-imaginacao-427722.shtml>. Acesso em: 15 jul. 2015.
STOCCO, Gabriela. A importância da arte para as crianças pequenas. 09 mar. 2015. Disponível em: <http://edu-
carparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/importancia-arte-criancas-pequenas-844821.shtml>. Acesso em: 15
jul. 2015.
SEDUC. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE PERNAMBUCO. Parâmetros curriculares de artes para o ensino
fundamental e médio. Recife: SEDUC, 2013, 60p.
VERÍSSIMO, Érico (1971). Incidente em Antares. Disponível em: <http://www.companhia dasletras.com.br/
detalhe.php?>. Acesso em: 28 jul. 2015.

960
Urbanicídio em autoretrato
Gracineia Maria Rodrigues Cruz/ Francilon Carvalho Barros/
Alan César A. Vasconcelos/ Maria Helena Ferreira da Costa

P rovocativa e ao mesmo tempo transgressora, a arte contemporânea, nosso campo de pesquisa,


possibilita a discussão de maneira imediata dos assuntos que são pertinentes ao nosso cotidiano, fa-
zendo uso dos mais variados suportes.

Temas ligados à violência deixa claro o quanto estão latentes as contradições que afloram o cotidiano
em nosso urbano, que, segundo Kátia Canton, não representam novidades, já que estes, são temas
recorrente a algumas gerações e se tornaram expressões do nosso tempo, através do registro do olhar
atento do artista visual, tomando forma, ou seja, materialidade, a partir de suas proposições.

Possibilitando a discussão sobre as contradições presentes no dia-a-dia, propomo-nos a olhar o nosso


complexo mundo, através de uma instalação que apresente o estranho jogos dos contrários, que as
vezes nem percebemos por estarmos anestesiados com tanta informação que nos retira dá realidade
e nos insere num mundo de desejos.

Dando voz às inquietações que o contemporâneo nos impõe, iniciamos as nossas pesquisas e a discu-
tir sobre a hipócrita sociedade que mergulhou na ilusão do mundo virtual e da felicidade de plástico,
onde tudo parece estar aparentemente/permanentemente tranquilo.

A ideia de falar do urbano e chamá-lo de autorretrato é para nos inclui como membros dessa mesma
sociedade, pois também nos enxergamos dentro dessas contradições e estranhamentos, que envolvem
a violência, de toda ordem, e que anestesia a vida nas cidades. Munidos de entusiasmo e coragem,
logo após as diversas leituras sobre arte contemporânea e a ressignificação do agora, através da fala
dos seguintes autores: Mário Pedrosa, Anne Cauquelin, Kátia Canton, Paul Wood e Zygmunt Bau-
man, iniciamos o trabalho sob a supervisão da nossa orientadora no projeto.

A nossa proposição artística, nomeada Urbanicídio em auto-retrato, dar-se-á através da exposição de


uma instalação, cujos objetos expostos ao público são 5 caixas sonoras feitas de MDF, de tamanhos
variados, mas que não ultrapassam 80 cm de altura. Cada unidade trata de tema específico de violên-
cia, que muitas vezes é disfarçada, e relacionada aos aspectos urbanos da sociedade contemporânea.
Estas caixas são revestidas com imagens selecionadas de acordo com as indicações, apresentadas mais

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adiante no texto. As imagens selecionas e recortadas são aplicadas na caixa com cola e pincel. O som
é pré-gravado em pendrive conectados em pequenos aparelhos de som digital instalados no interior
de cada caixa. A instalação se espalha pelo ambiente, o que proporciona um diálogo entre a imagem
(parte externa) e o som (parte interna) e o lugar em que se encontra, deixando para o interator a crí-
tica aos comportamentos vivenciados na prática cotidiana e representada neste quadro sem moldura,
onde a caixa é o espelho que reflete o mundo de contradições em que vivemos.

Os temas tratados serão violência social, cuja caixa número um traz imagens recortadas das páginas
de revista que apresentam cenas de artistas lindos, ricos e famosos, vivendo suas vidas “maravilhosas”,
enquanto que, internamente, a caixa produz um som (gritos de dor e choro), que contraria essa más-
cara social de felicidade, do casal perfeito e do amor inabalável.

A segunda caixa, igual à primeira, mas com a temática diferente, porém mantendo um contraponto de
diálogo, apresenta uma decupagem de imagens relacionas à natureza, e que trazem uma sensação de
paz interior, enquanto produz um efeito sonoro (buzinas e gritos de transito), que chega a ser descon-
fortante para o sujeito interator do objeto. Esta caixa apresenta como referência as questões ligadas ao
mau uso da natureza, o que acaba tirando dela a ideia de refúgio das horas do cotidiano.

A terceira caixa, cuja superfície externa apresenta colagens que fazem referência à música popular
brasileira, de capas de discos da MPB, durante os períodos de glória da música nacional, e sonora-
mente apresenta músicas depreciativas de composição pobre, com letras abusivas e preconceituosas.
Uma outra caixa, a quarta, faz referência ao nazismo; portando o discurso de Hitler enquanto apre-
senta imagens homo afetivas, para lembrar que os tempos de preconceitos ainda não foram superados
pela contemporaneidade.

E, por fim, a quinta e última caixa traz em seu corpo a colagem de imagens sacras, fazendo referência
aos religiosos, enquanto se escuta o barulho intenso de um casal fazendo sexo. A caixa é uma provo-
cação aos diversos abusos cometidos em nome da religião, da moral, falando da hipocrisia disfarçada,
ao se tratar de questões ligadas às práticas sexuais.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.


CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CANTON, Kátia. Novíssima arte brasileira: Um guia de tendências. São Paulo: Iluminuras, 2001;
PEDROSA, Mario. A modernidade cá e lá. São Paulo: EDUSPI, 2000.
WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

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Arte e sincronicidade:
o feminino como elemento
simbólico na obra matrística
Daniella Zanellato/ Krysia Howard/ Mirna Eugenia Sánchez Gómez

A Arte celebra encontros e reencontros em distintos momentos da vida, em tempos precisos e, por
vezes, em muitos espaços geográfico do mundo. Neste resumo expandido, apresentamos os pressupostos
teóricos que nortearam os estudos e processos artísticos da série performática Matrística, desenvolvida a
partir das inquietudes que acompanharam a constituição do Colectivo de Arte III, em Madri, Espanha.

O Colectivo de Arte III foi formado por três mulheres de diferentes nacionalidades, que, motivadas
por indagações e sincronias acerca das discussões sobre gênero, psique e o feminino na Arte, inicia-
ram um processo de criação artística, onde, a partir de proposições artísticas, buscaram responder,
através da arte, indagações sobre a feminidade e o feminino.

Na busca de reflexionar artisticamente sobre a questão, o Colectivo de Arte III, composto por Krysia
Howard (Inglaterra), Mirna Sánchez (México) e Daniella Zanellato (Brasil) – Universidad Autónoma de
Madri – partiu de conceitos contraditórios e, por vezes, opostos, buscando pontos de confluência e equi-
líbrio em aspectos simbólicos, representados por elementos que vão desde a separação até a integração;
do desequilíbrio ao equilíbrio; da psique ao corporal; do interno ao externo; do individual ao coletivo.

Tendo como ponto de confluência perfomática a Espanhã, o Colectivo de Arte III propôs intervenções
artísticas e performáticas em espaços acadêmicos e urbanos em Madrid e Valencia, tendo por premis-
sa simbólica a constituição de obras e ações que constituíssem em aspectos de receptividade e atenção
às emoções, propiciando visualidades que promovessem sincronicidades, expressas por meio da Arte
e considerando elementos de conexão, onde ideias criativas se entrecruzam por meio de elos invisíveis
que se expressam em uma obra coletiva.

A discussão sobre a Arte na sua relação com o feminino recebeu aportes teóricos na obra de Jung
(2009), que, analisado por Shinodo (2014), discute a simbologia da psique feminina, a partir de aspec-
tos do desenvolvimento psicológico e da presença de mitos e arquétipos constituintes desse feminino,
segundo explicita:

963
[…] el mito de Psique hace referencia a una mujer mortal que ofendió a Afrodita. Embarazada y
abandonada por su amante, intenta ahogarse y descubre que no puede. Tienen que completar cuatro
tareas que al principio la desbordan. En ese momento acuden unos ayudantes simbólicos a rescatarla,
cada uno representa un recurso interior que ella ignoraba poseer y, cuando termina esas tareas, cre-
ce psicológicamente. También, está Atalanta, famosa cazadora y corredora del antiguo mito griego.
Ella era una mujer mortal que al nacer fue abandonada a su suerte para que muriera. Sin embargo,
sobrevivió pues estaba bajo la protección de Artemisa. Atalanta configura el modelo de las mujeres
de espíritu indómito, competente y valerosas; mujeres con cuyo espíritu se niegan a abandonar lo que
saben que es auténtico para sí mismas. Tienen agallas, pasión y la persistencia de recorrer distancias,
sobrevivir y ganar. (SHINODA, 2014, p. 262).

Nesse sentido e tendo em vista os transcursos presentes nos processos criativos, as mulheres estive-
ram presentes como protagonistas de histórias mitológicas, emergindo como heroínas por meio da
presença do feminino, onde, nas relações humanas e coletivas, o essencial e próprio da contribuição
feminina se situa especialmente no âmbito emocional, no mundo das emoções, do afetivo, das ideias
e dos pensamentos. Partindo de tal pressuposto, os encontros entre o feminino são experiências sin-
crônicas que deixam marcas profundas e pessoais, uma vez que cada mulher se enfrenta no espelho,
por meio de seu próprio olhar, deparando com outra igual em essência, em singularidade e sem hie-
rarquia, através da integração de suas unicidades e diversidades.

A abordagem para aspectos da sincronicidade foi apresentada e discutida por Carl G. Jung (1996), refe-
rindo-se ao termo por meio da simultaneidade vinculados aos sentidos, de forma não casual, levando-nos
a compreender a questão a partir da reflexão e, pela união, dos acontecimentos interiores e exteriores,
conferindo percepções e sentidos individuais que se ampliam na esfera simbólica do coletivo.

As criações artísticas e performáticas do Coletivo de Arte III criaram a série Matrística, cuja abordagem
do termo se aproxima com aspectos da cultura matrística investigados por Humberto Maturana (1994,
2009), a partir de restos arqueológicos de povos primitivos, na Europa, que foram destruídos entre 6.000
a 7.000 anos por meio da invasão de outros povos, com maneiras distintas de viver e se relacionar, cha-
mada de cultura patriarcal. Na cultura Matrística, homens e mulheres participam de um modo de viva
de colaboração não hierárquica, por meio de relações de confiança e não de controle ou autoridade.

Figura1. Tríade Matrística (fotografia, co, 2016).


Fonte: Coletivo de Arte III.

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A série artística e performática Matrística parte de elementos simbólicos presentes no círculo, que, de
acordo com Jung (1996), sinaliza para todos os aspectos mais vitais da vida, como a integração, in-
cluindo as relações de ser com a natureza. A iniciativa se esforça em recuperar o potencial da energia
feminina, materializada a partir de três imagens que se ampliam a outras nove imagens que represen-
tam a natureza por meio de ervas medicinais: sálvia, camomila e calêndula, elementos representados
como meios de sanação, valorando, desta maneira, caminhos do feminino. Por sua vez, as ervas estão
contidas em espaços côncavos, onde foram realizadas, pelo Coletivo de Arte III, peças de argila na-
tural, envolvendo aquelas em novas possibilidades em busca de equidade e igualdade entre todos os
indivíduos, constituindo, dessa maneira, um espaço que dialoga com aspectos do conceito Matrístico,
que consideramos como espaço Matrístico. Nele, a intuição, o terapêutico e o meditativo se expressem
de forma criativa e livre em todas as etapas de seu processo.

965
Por sua vez, esse espaço também se refere ao lugar onde todos são aceitos em suas individualidades e
particularidades, integrando o feminino-masculino, por meio da constituição do interior, de maneira
a constituir uma nova tessitura social, a partir da recuperação mais profunda dos sentidos humanos.

REFERÊNCIAS

JUNG. Carl G. Arquetipos e inconscientes colectivos. Barcelona, España: Editorial Paidós Iberica, 2009.
JUNG, Carl G. El hombre y sus símbolos. Barcelona, España: Editorial Paidós, 1996.
HINODA BOLEN, Jean. Artemisa. El espíritu indómito de cada mujer. Barcelona/ES: Editorial Kairós, 2014.
MATURANA, Humberto. La democracia es una obra de arte. Colección Mesa Redonda. Bogotá: Ed. Linotipia
Bolívar y Cia., 1994.
MATURANA, Humberto (com a colaboração de Sima Nisis de Rezepka). El sentido de lo humano. 8ª ed. San-
tiago do Chile/CHI, 1996.

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Quando um muro separa
uma ponte une
Fátima Bulcão

“Quando um muro separa uma ponte une”. Esta frase da música Pesadelo, de Paulo Cesar Pinheiro e
Maurício Tapajós, gravada em 1972, define a inspiração utilizada para a execução dos trabalhos dos
alunos da Oficina de Arte da Escola Especial Ulisses Pernambucano.

Com um histórico relevante, cuja fundação data de 1941, a concretização do pioneirismo do Dr.
Ulisses Pernambucano, na área da assistência e estudo da criança com deficiência mental, está as-
sociada a nomes como da Prof.ª Helena Antipoff, fundadora, em 1932, da Sociedade Pestalozzi de
Belo Horizonte; Anita Paes Barreto, primeira diretora da recente escola inaugurada; e Dona Noemia
Varela, incansável defensora da Arte, cujo fazer artístico com as crianças da escola, eram ludicamente
trabalhados sobre as mangueiras e acácias, conforme gostava de contar com grande nostalgia.

Atualmente, a Escola conta com 252 alunos, divididos em três turnos, com faixas etárias que variam
de 0 a 60 anos. Nosso trabalho se refere aos turnos da tarde e da noite, ou seja, alunos entre 19 e 60
anos de idade, totalizando 158 alunos.

Pretendemos discorrer brevemente sobre a trajetória dos últimos cinco anos de atividades na Ofici-
na de Arte, período em que acontecem transformações substanciais na realidade da escola, que nos
motivou a mudanças e novas experimentações, cuja culminância foi a exposição “Fazer e Refazer”.

Havia alguns anos, as dificuldades do fazer artístico, na Oficina de Arte, avolumavam-se. Os alunos
com deficiências mais contornáveis, com mais habilidades, foram transferidos para escolas regulares,
através da inclusão, e a escola passou a aceitar alunos com múltiplas e severas deficiências, em um
volume tão acentuado, que toda uma ala da escola, no turno da tarde, foi ocupada por jovens e adultos
com ocorrências gravíssimas. Além da intelectual, outras combinadas. Esta mudança, para a Oficina
de Arte, representou uma frequência bem maior de alunos que sequer pegavam em um lápis. Cerca
de 70% dos frequentadores da Oficina só riscavam.

Como dar sequência aos trabalhos desenvolvidos na Oficina de Arte, que foi pautada, desde 2001,
por exposições e intensa participação na vida escolar? Principalmente por se tratar de pessoas com

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deficiência mental, nosso acreditar é que expor o trabalho periodicamente era como galgar degraus
de avanço e conquistas, mostrando para a sociedade o poder organizador do fazer artístico e a impor-
tância da inclusão social através das mostras de arte. Como afirma Anamelia Bueno Buoro:

A vida adquire sentido para o ser humano à medida que ele organiza o mundo. Por meio das percep-
ções e interpretações, os sistemas externos da realidade são mapeados nos sistemas internos do ser, e o
cérebro humano vai também se desenvolvendo no contato com essa realidade. (BUORO, 1998, p.19.)

Este desenvolvimento, mesmo para pessoa com deficiência mental, é, sem dúvida, processado, e esta
preocupação nos levou a buscar soluções para dar continuidade aos trabalhos.

Sabemos que a arte é uma forma de dominar a realidade caótica e hostil. Que a expressão do aluno
é uma tentativa de repouso, de deleite e encontro. Está ligada à sensibilidade, e podemos dizer que é
uma projeção sentimental.

Não devemos esquecer Nise da Silveira, que desenvolveu um belíssimo trabalho com esquizofrênicos,
confirmando o elemento integrador da arte. Não devemos esquecer sua maior preocupação, que era o
afeto catalisador, que, segundo suas palavras, “dificilmente qualquer tratamento será eficaz se o doen-
te não tiver ao seu lado alguém que represente um ponto de apoio sobre o qual ele faça investimento
afetivo” (SILVEIRA, 1981, p. 69).

Nise da Silveira também se refere à terapia ocupacional como “a expressão de vivências não verba-
lizáveis que no psicótico estão fora do alcance das elaborações e da razão e da palavra” (SILVEIRA,
1981, p. 98). Para nossos alunos, que em grande parte são pessoas com deficiência mental, e não com
doença mental, embora a escola também tenha passado a aceitar tal condição, esta frase se aplica
plenamente.

Vale lembrar que a deficiência mental se caracteriza por problemas que ocorrem no cérebro e levam
a um baixo rendimento cognitivo, sendo a Síndrome de Down e a Paralisia Cerebral as mais comuns.
O transtorno global do desenvolvimento está inserido nas psicoses e no autismo, assim como diag-
nósticos mais complexos.

A arte assume, então, o papel de representar uma condição que não encontra outro caminho para se
mostrar. O fazer artístico assume seu lado terapêutico e o fazer exposições assume o lado da conquista
e projeção social, que está ligado à autoestima. Suponho que podemos resumir o sentido maior de ex-
por para nosso aluno, com esta reflexão que deduzi: quando mostro meu trabalho e todos admiram,
mostro meu eu que também está sendo aplaudido.

Além das questões práticas e didáticas, quando se trata de pessoas com comprometimentos mentais,
ou mesmo quando se trata de qualquer pessoa, o afeto, as relações de confiança e a amabilidade são
as pontes que derrubam os muros.

Trabalhar com arte é também um exercício motor, que permite a expressão dos sentimentos e sensa-
ções, organizando conceitos. Entretanto, quando traduzimos esta afirmação para a nossa realidade

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tão severa, onde vários desenvolvimentos foram comprometidos, inclusive o desenvolvimento motor,
devemos nos apoiar, juntamente com as teorias da arte/educação, nas observações e experimentações
pessoais, como guias de trabalho. Dessa forma, o científico também começa pelo acúmulo de histó-
rias registradas e difundidas no dia a dia na sala de aula.

Se, anteriormente, fazer releitura da obra de arte e levar nossos alunos para museus era uma rotina,
após a “inclusão”, que para nossa escola significou a retirada dos alunos mais participativos, a neces-
sidade da continuação dos trabalhos na Oficina de Arte exigia novos olhares, novos aprendizados,
novos entendimentos e procedimentos. Ana Mae Barbosa afirma que “É a qualidade estética que uni-
fica a experiência enquanto reflexão. A qualidade estética de uma experiência de qualquer natureza é
a culminação de um processo” (BARBOSA, 1998, p. 21.) Acrescenta, ainda, a autora: “Toda atividade
prática adquirirá qualidade estética sempre que seja integrada e se mova por seus próprios ditames
em direção à culminância” (Ibid., p. 22.). Era esta culminância que buscávamos.

O rabiscar que dá prazer – um prazer cinestésico, o prazer de se movimentar, em relatos de desenvol-


vimento regular – é substituído por várias outras fases. A pessoa com deficiência mental mais severa,
não raro, interrompe estas fases e costuma estacionar nas garatujas ou representações primitivas. É
evidente que há exceções, e constatamos que o desenvolvimento do universo pictórico dos alunos
costuma estender quando o acompanhamento do professor se faz a cada passo e é povoado de estí-
mulos variados das formas de fazer, além de livros de arte e visitas a exposições.

Um fato curioso, destacado na Oficina de Arte, são os desenhos repetidos. Colecionando os desenhos,
e comparando meses após meses, anos após anos, é instigante observar que um número considerável
de alunos faz o mesmo desenho sempre.

Em 2001, fizemos a exposição “Com Você Meu Mundo Ficaria Completo”, no MAMAM, onde reprodu-
zimos um pássaro em grandes proporções e o colocamos no teto da galeria, acompanhado do desenho
original do aluno. Albert, invariavelmente, só desenhava o pássaro. O pássaro de Albert é um exemplo
desses desenhos repetidos por vários alunos, que instigam para a decodificação de seu significado.

Entre rabiscos, garatujas, desenhos complexos, desenhos repetidos, pintura chapada, pintura com
profusão de cores, pontinhos, casas que vão rareando, muitos desenhos com figuras pairando no ar,
papel em branco, vamos construindo. A união do desenho ou pintura mais elaborada a um chapado
que segue sem intenção, lentamente vai formando o produto final das oficinas, fazendo e repetindo,
destacando alguns traços ou coloridos, repintando o pintado, de forma que um abstrato ou expres-
sionista painel vai se concretizando. Através desses painéis em papel de bobina, que periodicamente
lembram alguma data mais significativa, fazendo parte de comemorações, a ideia de voltar a expor foi
alojando-se pelas frestas, e o pensamento de que fazer uma exposição é o ato mais instigante, abrasa-
dor e multiplicador, foi dominando, até se tornar realidade.

Fazer uma exposição com pessoas com deficiência mental é, além do belo que instiga, gravar um
testemunho que aqueles alunos podem e devem ultrapassar as marcas da confiança reduzida, pois, na
mente, nada é completamente sabido, mesmo que estejamos falando de danos no cérebro. Quando o
acreditar supera os preconceitos, mostram-se novas perspectivas. Exatamente como a arte, que atra-

969
vessa o tempo, contando, contornando, desprezando, horrorizando ou idealizando cada época. A arte
é um caminho de encontros e descobertas.

Quando um muro separa uma ponte une. E assim, aplicando o que a vivência de quinze anos de ten-
tativas, procuras, acertos e erros revelaram, a visão deslocou do ponto do problema e passou para a
superação. Fazer era mais importante que pasmar diante das negativas mudanças. Idealizar decidiu o
caminho da encruzilhada. Diante disso, urgiu, então, a mostra “FAZER E REFAZER”, depois de cinco
anos de pausa, cujo título traduz as dificuldades e a dinâmica empregada.

A pintura e o desenho, a expressão de cada aluno, eram manifestados sobre o grande papel que cobria
a generosa mesa, aula após aula, dia após dia, todas as turmas interferindo naquele plano, numa trans-
formação sucessiva, até que os desenhos ou as expressões abstratas, oriundas da participação coletiva,
chegassem ao ápice, ao grau de harmonia, que significava o trabalho concluído. Este método permite
que todos se vejam ali representados, pois, de fato, todos participaram. É interessante notar que não
existe disputa pela propriedade de cada participação: fato não comum nas escolas regulares. Felicito,
então, esse despojamento de autoria.

Concluído, o grande painel passou a ser recortado e colado nas velhas cadeiras que foram cedidas pela
direção da escola, pois novas cadeiras haviam sido entregues, e aquelas antigas, com tantos desgastes,
criaram vida nova e passaram a ser o suporte das pinturas, associando um uso prático e belo, que
inicialmente comporia a exposição programada para o Hall da Secretaria de Educação e, posterior-
mente, passaria a compor um estar mais agradável no pátio da escola.

A exposição na Secretaria de Educação não chegou a acontecer, mas fizemos uma mostra no hall da
escola, com direito a banner e placas elucidativas. As mães, principalmente elas, precisavam conferir
e orgulhar-se do concreto daqueles trabalhos.

Esta exposição, embora sem a grandiosidade das outras exposições que superaram todas as expecta-
tivas, resultou numa volta à prática do “Expor como Projeto Pedagógico”, que foi adotada pela Oficina
de Arte. A quantidade menor de peças não afetou a experiência estética vivenciada, cuja culminância
foi a exposição do trabalho.

A integração dessa experiência, as consequências construtivas que foram acumuladas ao longo de seu
percurso, trouxeram para alunos, mães, professores, comunidade escolar e para a sociedade como um
todo. Um encontro de sentidos positivos que foram renovados através da arte, que avança além das
dificuldades e faz emergir os resultados superadores.

Considero que o fazer artístico nas escolas deve ter a perspectiva de incorporar-se ao dia a dia da
comunidade escolar, não só como painéis de datas comemorativas, mas, sobretudo, como uma cons-
trução permanente que renova a escola e fica presente nos móveis, portas, paredes e objetos, como um
produto útil e de deleite visual. O útil e sempre presente resultado de um trabalho artístico, associado
à permanência, confirma a vocação da arte: mostrar-se e ser contemplada.

Em uma escola, a arte deve estar mais para grafismo, como uma comunicação imediata, do que para
recortes de revistas que não mostram nada do que somos.

970
REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.


BUORO, Anamélia Bueno. O olhar em construção: uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola.
São Paulo: Cortez, 1998.
SILVEIRA, Nise. Terapêutica ocupacional: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Casa das Palmeiras, 1979.
______. O mundo das imagens. Rio de Janeiro: Ática,1992.

971
Tankalé: formação para o
auto-registro audiovisual quilombola
Felipe Peres Calheiros

“Quilombo”, apesar de ser uma palavra da língua umbundu, teve seu conteúdo sociopolítico e militar
originado entre os povos africanos de línguas bantu, e serviu para designar, originalmente,

[...] uma associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem, na qual
os membros eram submetidos a dramáticos rituais de iniciação que os retiravam do âmbito protetor
de suas linhagens e os integravam como co-guerreiros num regimento de super-homens invulnerá-
veis às armas de inimigos (MUNANGA, 2001, p. 25).

Se a instituição legal da escravidão marcou o início da organização quilombola no Brasil, a “abolição”


formal – que de fato não aconteceu e por isso mesmo – não lhe determinou um fim.

Perpassados pela dor e pela luta em seus corpos - inclusive no tanto de ancestral que há nos corpos -
os quilombolas brasileiros são a experiência viva e permanente da resistência ao contínuo extermínio
das liberdades, e das próprias pessoas, no profundo poço da desigualdade nacionalmente construída.
A tese da democracia racial de Gilberto Freyre (1980), conjugada a outras tentativas de dissolução
imaginária das barreiras sociais, seja pelo nacionalismo ou pelo republicanismo, esbarra na perma-
nência das práticas racistas até os nossos dias. Mas em paralelo à opressão, a resistência também per-
dura. E o trajeto do povo negro, de Palmares, e de antes - de dentro dos navios do tráfico – até aqui,
segue incessante na busca por justiça social (MOURA, 1972).

Hoje, o Estado Brasileiro, lançado forçosamente às compensações por sua responsabilidade escravo-
crata, anuncia aos quilombolas o direito à devolução dos seus territórios – Art. 68 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias, Constituição Federal de 1988 – e lhes lança a oportunidade da
autoatribuição identitária – Decreto presidencial 4.887/03 – como mecanismo de acesso a políticas
públicas. Mas como concatenar direitos a partir de uma representação política e jurídica, se a Lei
nunca esteve de fato ao lado e ao acesso dessa população? Indo mais além: se a própria escrita não se
constituiu num caminho de representação legítima da negritude na história brasileira?

A representação, enquanto conceito, relaciona-se diretamente aos sistemas de organização do co-


nhecimento e do poder nas sociedades (CHAUÍ, 2010), assim como, para o campo do audiovisual,

972
anuncia as questões de interação entre o eu e o outro representado, o olhar e o que se vê, os que assistem
e os que são filmados. Os mecanismos utilizados nesse representar, no entanto, têm produzido exclu-
são e sombras, em muitos lugares e também na política e no audiovisual. Construções envoltas num
funcionamento de poder que, ao longo da história brasileira, continuam encurralando a população
negra na invisibilidade, através de processos ocultos e encobertos, seja na tomada de decisão dentro
dos governos, seja pelos diretores do cinema ou pelos produtores da comunicação de massa.

A parte de sombra se torna o desafio e o agente da representação: abrir para o espectador a possibi-
lidade de perceber e talvez de entender o que não se deixa facilmente ver, o que escapa ao concreto
da representação, o que não se pode ou não se quer mostrar, o que fascina o olho maquínico; mas
também confrontar o espectador com os próprios limites do poder e do ver, do ver como poder:
fazê-lo perceber como, desde sempre, olhar e poder estão ligados, e que esse lugar do dono do olhar
é também, claro, o da cegueira mais perfeita. (COMOLLI, 2009, p. 214).

Em 2006, com o objetivo de colaborar com a formação técnica e política de quilombolas para o autor-
registro de sua realidade social, de sua cultura e sua identidade, pesquisadores e artistas pernambu-
canos conceberam o projeto Tankalé, palavra que vem do idioma iorubá e significa “contar para todo
o mundo”. A ideia central consistiu, desde o princípio, na promoção de oficinas de audiovisual, com
fundamento nas concepções da educação para a autonomia e a liberdade de Paulo Freire, aprofundan-
do, na teoria e na vivência prática dos próprios participantes, temas como memória coletiva, história
oral, patrimônio cultural, identidade étnica, direitos dos quilombolas, pedagogia e arte-educação.

A iniciativa teve início em 2006, no âmbito das oficinas do Festival de Inverno de Garanhuns, onde o
documentarista Felipe Peres Calheiros (coordenador e um dos idealizadores do projeto) e o cientista
social Giorge Bessoni (um de seus idealizadores) realizaram no Quilombo Castainho a primeira expe-
riência, com a participação de crianças, jovens e adultos de quilombos de Garanhuns/PE e de outros
municípios, como Angico (Bom Conselho/PE), Imbé e Cascavel (Capoeiras/PE). Na ocasião, foram
produzidos dois documentários de curta duração, em que os participantes construíram coletivamente
todos os aspectos da produção audiovisual, desde a pesquisa e o roteiro, até a edição e a finalização.

Nesse mesmo ano, os educadores do Tankalé, ao ter notícia da existência do Crioulas Vídeo, equipe de
produção audiovisual do Quilombo de Conceição das Crioulas, decidiram passar a atuar no sertão per-
nambucano, para se associar aos quilombolas que já vinham produzindo seus primeiros trabalhos. A
comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, localizada no município de Salgueiro – no sertão
central de Pernambuco (Brasil) e distante 550 km da capital Recife –, é formada por cerca de 3.800 pes-
soas e destaca-se nacional e internacionalmente pelo esforço de organização e mobilização política, bem
como pela diversidade de projetos e frentes de luta assumidos de forma coletiva e democrática. Apesar de
décadas de reivindicações, o povo crioulo demorou a ver os resultados práticos de sua resistência, sendo
os mais importantes: a construção de alternativas de educação diferenciada, com novas escolas instaladas
e professores da própria comunidade; e a devolução de parte do seu território de 17 mil hectares, median-
te indenização a fazendeiros pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária e Colonização (INCRA).

O expressivo sucesso da estruturação da educação diferenciada em Conceição, excepcional em rela-


ção à maioria das 2.600 comunidades quilombolas brasileiras reconhecidas, deve-se, além da cobran-

973
ça pelos investimentos governamentais, invariavelmente à valorização do “extraescolar”, com ações
pedagógicas inseridas no cotidiano local, inclusive junto à própria experiência da luta política co-
munitária (SILVA, 2012). Nesse sentido, em 2005, havia sido oferecida uma oficina de vídeo para os
jovens de Conceição, numa das parcerias entre a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas
(AQCC) e o ‘movimento intercultural’ IDENTIDADES – coletivo composto desde 1996 por artistas,
professores e alunos ligados à Universidade do Porto (Portugal). Formou-se ali o embrião do Crioulas
Vídeo, produtora quilombola cuja missão é fortalecer a comunicação dentro e fora da comunidade,
estabelecendo um relacionamento amplo e hábil com o audiovisual, o que repercutiu na formação de
outros jovens quilombolas e na produção de obras que circularam em TVs, festivais, mostras, sites e
salas-de-aula.

A partir do momento de integração com os realizadores de Conceição, o projeto Tankalé amadureceu,


e o objetivo passou a ser o de estimular a formação de novas equipes quilombolas de vídeo, para que
fossem, então, multiplicadoras em outros quilombos. Em 2007, após consultorias técnicas e pedagó-
gicas, o Crioulas Vídeos – a primeira produtora quilombola do Brasil – assumiu o papel de educado-
res em oficinas realizadas no Quilombo do Livramento (Triunfo/PE), que estimularam a criação do
coletivo Mãe Preta Vídeo, a segunda produtora quilombola. Desta iniciativa, que teve o financiamen-
to do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (FUNCULTURA), do Governo de Pernambuco,
também foi gerado o vídeo “Quilombo do Livramento”, cuja concepção, produção, roteiro, fotografia,
captação de áudio e edição foram executados por 10 jovens quilombolas da localidade, seguindo a
metodologia já adotada em oficinas anteriores.

Em 2009, mais uma vez através do patrocínio do FUNCULTURA, o Tankalé concebeu novas consul-
torias de atualização técnica e pedagógica para que a equipe de documentaristas e educadores qui-
lombolas do Crioulas Vídeo oferecesse oficinas nas comunidades quilombolas de Santana e Conten-
das, localizadas em Salgueiro/PE. Foi a primeira vez que todo o processo de formação foi conduzido
por uma equipe inteiramente formada por quilombolas, o qual culminou com a criação de mais dois
coletivos: o Contendas Vídeo e o Santana Vídeo, no ano de 2009.

Agraciado em 2009 com o Prêmio de Mídias Livres do Ministério da Cultura, Governo Federal –
segundo lugar nacional entre os concorrentes de alcance regional – o projeto lançou-se em direção
a uma nova etapa de fortalecimento da autonomia e do protagonismo dos quilombolas. Dessa vez,
coube ao Crioulas Vídeo assumir, além do processo de formação, também a coordenação e a produ-
ção executiva do Tankalé. E em 2011, com a seleção e o patrocínio do Prêmio BNB de Cultura, do
Banco do Nordeste do Brasil, foram feitas as oficinas no Território Quilombola Águas do Velho Chico
(Orocó/PE), e a construção do coletivo Ribeirinhos Vídeo. Como resultado do projeto, foi produzido
o vídeo “Unidos pela Nossa História”.

Em cinco anos , os seis documentários produzidos e circularam em salas de aula, TVs públicas e priva-
das locais, atividades e eventos do movimento quilombola e em festivais de cinema, como o de Triunfo
(PE), o festival Visões Periféricas (RJ) e o 19º Festival de Curta-Metragens de São Paulo. Para além
do resultado prático dos produtos realizados e distribuídos, no entanto, ressalta-se a experiência de
construção coletiva de narrativas, de experimentação de linguagens e recursos antes não acessíveis, e a
integração dos jovens à discussão e à produção de uma outra representação de sua identidade étnica.

974
Assim, desde a sua concepção em 2006, o projeto vem aprofundando e ampliando o conhecimento
das comunidades quilombolas, no que concerne à memória, bens culturais e direitos por meio da
linguagem audiovisual. Essa iniciativa fortalece, portanto, a preservação das tradições, a pesquisa e o
acesso ao patrimônio cultural dos povos quilombolas de Pernambuco, ao mesmo tempo em que des-
mistifica a produção audiovisual e aproxima novos atores da possibilidade de expressão através desses
meios. Além disso, a consolidação da etnicidade e o autorreconhecimento com o vídeo também es-
truturaram instrumentos de emancipação política e cultural desses povos tradicionais.

O projeto Tankalé tornou Pernambuco pioneiro na inclusão tecnológica e audiovisual para a popula-
ção quilombola, e hoje, com as novas tecnologias da informação e comunicação (TIC), é de se pensar
que outras relações podem se construir por meio do uso de dispositivos móveis e computadores,
com outras possibilidades de transmissão de dados dentro e fora de comunidades. Essa comunicação
artística pretende, ao apresentar essa experiência histórica da última década, exibindo trechos dos
filmes e dos bastidores das oficinas, problematizar as possibilidades de educação e produção artística
envolvendo os quilombos brasileiros e o audiovisual.

REFERÊNCIAS

BRASIL: Constituição Federal da República do Brasil de 1988. Brasília, 1988.


______. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Estabelece as diretrizes e bases para incluir no currículo oficial
da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 2003a.
______. Decreto no 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, re-
conhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombolas de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 2003b.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CHAUÍ, Marilena. Em busca do espaço da reflexão. In: NETO, Símplicio (Org.). Cineastas e imagens do povo.
Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2010.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
Rio de Janeiro/Brasília: Livraria José Olympio; Editora INL/MEC, 1980.
JACCOUD, L. B. Racismo e República: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. Bra-
sília: IPEA, 2008.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. São Paulo: Conquista, 1972.
MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico dos quilombos em África. In: MOURA, Clóvis (Org.). Os quilom-
bos na dinâmica social do Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001.
SILVA, Givânia Maria da. Educação como processo de luta política: a experiência de “educação diferenciada”
do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2012.

975
Vestido vermelho, armadura,
gostosa – performances
Bárbara Collier

M inha pesquisa artística sempre girou em torno do universo feminino – casamento, amor entre
mulheres, aborto, loucura, devaneio – identidades e conflitos pertencentes à mulher. Parte dessa pro-
dução foi exposta na mostra “MULHER”, no Coletivo Branco do Olho, em outubro de 2006 - Casa
forte - Recife-PE, no Projeto Exposições Relâmpago.

O momento era de construção da minha identidade como mulher e não mais de uma jovem ou adoles-
cente! Desde a infância, questionei os padrões formais para o destino traçado e imposto nas normas de
convivência social - casar - trabalhar - ter filhos - andar de salto - maquiada - roupas da moda - cuidados do
lar. Ao mesmo tempo, eu era a princesa da casa, cercada por três irmãos, a “Penélope Charmosa de papai”.

No final do último período da graduação em Artes Visuais, coincidindo com a fase em que também
me formava como ser adulto, independente e responsável, esses questionamentos surgiram em forma
de trabalhos artísticos, performances em sua maioria, onde um misto de ritual, crítica e desapego
rondavam os trabalhos artísticos e a pesquisa sensível. Entendo por pesquisa sensível a materialização
em trabalho artístico aquilo que me toca, que me afeta – sentimentos, sensações e dúvidas.

O primeiro trabalho, Desejo Proibido – 2004, foi elaborado especificamente para a Mostra de Arte
Amor Entre Mulheres, promovida pelo movimento LGBT. Um ensaio fotográfico que mostra duas
mulheres em cenas de intimidade. Apesar de o toque físico ser possível, a sensibilidade é afetada por
uma película de papel filme que impede essa relação de forma fluida e prazerosa.

Esse trabalho foi realizado num momento em que ainda não tinha me relacionado com nenhuma mulher
e nem tinha ainda essa expectativa, não por achar errado, mas simplesmente por não ter até então me
apaixonado por nenhuma mulher. Porém, sempre me incomodava a interferência social e o julgamento
ao afeto alheio às relações entre pessoas do mesmo sexo. Como tirar a vida que existe dentro de você?

Minha avó era costureira, sustentou a família costurando para fora, quando meu avô ainda jovem
faleceu. Crochê e tricô eram atividades presentes na minha casa, na minha família. E, certa vez, embe-
bida na ansiedade de uma TPM e mesmo com sangramento menstrual achei que estava grávida. Num

976
acesso de insanidade, peguei uma agulha de tricô e passei mais de uma hora no banheiro pensando.
Enfio, não enfio? Mato ou vou morrer? O que minha mãe vai pensar? O que eu fiz? O que eu deveria
fazer? Eu vou para o inferno? A alma dessa pessoa vai ficar vagando por aí? A minha vai ficar vagando
quando eu morrer? Depois de muito tempo e um banho longo e gelado a menstruação fluiu com mais
força e pensei que eu poderia não estar grávida e era melhor esperar um pouco.

Sempre carreguei esse culpa comigo! Não só a culpa de pensar no aborto, mas de pensar em colocar
minha vida em risco também. E em um fim de semana em que minha ansiedade me colocou para fora
de casa num domingo, como em um impulso, fui visitar uma exposição no Museu do Estado de Per-
nambuco. Ao chegar à porta da exposição, deparei-me com um poema, fiquei um bom tempo ali, lendo
e relendo uma única estrofe e fui para casa pensar. Não vi a exposição. Na verdade, meu corpo chegou
ali só para ler aquela estrofe. No dia seguinte, resolvi apresentar ao público a angústia pela qual passei.
Coloquei o poema no chão, frase a frase e simulei aquele aborto, vida e morte juntos na mesma ação.

Dentro de mim mora um anjo, eu sou seu lado de dentro,


ele é meu lado de fora.
Cacaso

Musa, realizada ao fim de um curso com artista e professor de artes visuais, o Marcelo Coutinho - pelo
46º Salão de Artes Visuais de Pernambuco, realizei um ensaio fotográfico que discute a interpretação
da mulher na história da arte. A mulher – musa – sempre retratada por homens. Trazendo à tona, à
discussão, a percepção do feminino apenas como inspiração, e nunca como realizadora de uma pro-
dução artística, onde o feminino é apenas fonte de inspiração a essa estética masculina.

Em todas as suas realizações, a performance Divas trouxe novos elementos. A primeira vez foi realiza-
da em Garanhuns, no Festival de Inverno, e, posteriormente, em Olinda e no Atelier Branco do Olho,
na sede no bairro de Santo Amaro.

A ação coloca a mulher num pedestal, na altura acima do olhar e, durante algum tempo, as artistas
participantes da performance percorrem traços do feminino - a bruxa - a chefe de cozinha - a intelec-
tual - a compulsiva - a ninfomaníaca - a rainha pop.

A performance se caracteriza por um ritual de cura e limpeza, onde encarnar esses estereótipos próxi-
mos à identidade das artistas participantes, empodera, em cada uma delas, suas múltiplas identidades
e extrapola os limites para depois realinhá-los.

Lavadeira foi realizada no Museu Murilo La Greca – espaço cultural atualmente dirigido por mim. Essa
performance é um ritual de passagem e preparação para a performance seguinte. Durante mais de uma
hora, 10 metros de cetim branco foram lavados com sabão de coco, sal e açúcar. Um misto de limpeza
(sabão), proteção (sal) e atração do amor (açúcar). Assim, segui protegida para a próxima performance.

Noiva, onde está sua felicidade? Foi realizado no bairro de Santo Antonio – em Recife, no dia desse
santo, o santo casamenteiro. O Bairro no Recife possui oito igrejas católicas – isso mesmo: OITO – o
oito para mim é um número simbólico, pois representa o infinito.

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Nessa época, meu irmão estava prestes a se casar de terno e gravata na igreja. Ele sempre foi uma pes-
soa tímida e eu, além do ciúme, me perguntava porquê ele se permitia essa exposição? Ali, no altar,
diante de tanta gente e todo mundo olhando para ele. E sim, era pelo ritual, pela sociedade, pelo dese-
jo da futura esposa. Foi aí que, novamente, esses questionamentos sobre o casamento e sua felicidade
ETERNA voltaram à tona. Não sei o porquê, mas nunca tive esse desejo de casar, NUNCA. O Homem
da minha vida! Oi??? Como assim? Amor da vida inteira? A VIDA INTEIRA? Felizes para sempre?
SEMPRE? Sei não. Isso nunca foi normal ou legal para mim. Não entendia, não queria e não aceitava.
Não que eu não acredite no amor, mas devotar a minha vida a uma única pessoa durante toda a minha
vida, aí já é demais. Daí, com medo de encontrar esse para sempre, profanei. No dia de Santo Antônio,
vestida de noiva, percorri todas as oito igrejas do bairro do Recife. As pessoas na rua achavam que era
promessa, ex-voto, agradecimento pela graça alcançada, e eu estava ali para ser castigada por brincar
com a religião alheia, ser abençoada e não casar nunca. Até aqui funcionou!

Vale ressaltar que, tempos depois, comecei um tratamento que sigo até hoje para diminuir os sinto-
mas da minha tensão pré-menstrual, que me acomete terrivelmente no emocional e no físico, e já me
colocou em risco de vida por depressões e ansiedades infinitas.

Ao final dessa sequência de produção artística, seguida de uma crise depressiva, procurei um trata-
mento químico junto a um psiquiatra, o processo criativo estagnou, parou. Não sei se o motivo. As
angustias foram sanadas pelo processo químico? As questões foram respondidas? A dúvida persiste e
insiste. Como retomar este impulso criativo? De onde retomar?

O início desse processo de busca e retomada se iniciou ao voltar para a Universidade - agora no
mestrado porque eu sou adulta, independente e corro atrás dos meus desejos - em uma proposta de
disciplina que discute gênero. Tramações: Cultura Visual, Gênero e Sexualidades, ministrada pela
professora Luciana Borre e com uma metodologia diferenciada, onde professora e alunos são partíci-
pes do processo construtivo e criativo da troca e produção do conhecimento. As experiências pessoais
e o processo de pesquisa criativa permeiam a construção do conhecimento artístico/cientifico basea-
do na produção criativa/expressiva. A exposição Tramações me parece ser o espaço de culminância/
troca de todo esse processo com um universo que vai além da sala de aula, ampliando a construção
coletiva da aprendizagem.

Diante da proposta de criar e elaborar um novo trabalho de criação artística – ela (professora) não
me deixou apresentar trabalhos antigos. Fui me forçando a criar novamente, maldita/santa criatura,
essa professora. Fui dormir pensando em trabalhos e artistas que gostaria de encenar/experimentar e
acordei pensando em novas performances e pimba! Voltei a criar!!! Segue aqui meu agradecimento a
todos os alunos da disciplina, em especial a Luciana Borre, que não aceitou minha folga de apresentar
um trabalho já pronto.

E não é que eu fui dormir tranquila e acordei no supapo, com novas performances criadas. Sempre foi
assim, a performance amanhecia com o roteiro desenhado, no limite entre dormir e acordar, sonhar
e criar. Fui dormir pensando em políticas de representação e acordei com performances desenhadas
pelo impulso criativo. Obrigada, novamente. Achei que tinha perdido a artista que existia dentro de
mim. Voltei a criar e foi uma mistura de despertar e gozar.

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Sendo assim, proponho três performances como trabalho final para disciplina Tramações: cultura
visual, gênero e sexualidades, pensadas e criadas durante as aulas e nesse dormir/acordar/refletir/
criar, são elas:

Vestido Vermelho

Eu vestida em um longo vestido vermelho. Eu acreditava não caber mais em mim, e cabe, mas uma
vitória para o meu caderninho de pós-bariátrica. Eu, toda montada, maquiada, de salto, com sutiã
arrebenta/suspende peito, cinta para segurar a barriga, calcinha com enchimento e todo tipo de mon-
tação, me desmontar, lentamente.

Com um batom vermelho em punho, começo a riscar meu corpo, a princípio como quem marca os
cortes de diversas cirurgias plásticas, posteriormente, uso o batom como uma faca que corta e agride
o corpo, deixando suas marcas vermelhas por todo ele. A proposta é discutir esse “ideal de mulher”
proposto pela sociedade consumista e machista.

Armadura

Há 04 meses realizei uma cirurgia bariátrica, eliminei 27 kg até agora, recuperei minha saúde e hoje
tenho uma relação melhor – mais leve literalmente falando – com meu corpo, porém nem sempre isso
foi assim. Sempre fui uma adolescente muito atraente. Diziam-me isso e eu acredito. Beleza e corpo
torneado pela prática esportiva de 03 horas diárias não me trouxeram tantas coisas boas assim.

Homens que se aproximavam apenas para o sexo – com o corpo e não comigo – assédios de todas as
possibilidades. Desde um homem a me espremer em um ônibus vazio e se masturbar do meu lado -
só entendi o que aconteceu muitos anos depois, não sabia o que era aquela coisa rosa que ele mexia
tanto na mão – o marido de uma tia querida a tentar me convencer que eu era linda, sexy, que sexo
é ótimo e homens experientes são os melhores para começar! – Ele no caso. Entre tantos outros ab-
surdos que hoje sei que várias mulheres passam. Mesmo sendo uma artista feminista – como afirma
minha amiga, Clarissa Diniz – eu tinha medo de me assumir assim, pois não entendia muito bem o
que significava ser uma artista feminista e não gostava de rótulos.

Muita terapia e muita informação me fizeram perceber que os assédios que sofri não eram culpa mi-
nha. Muitos quilos depois e com a saúde debilitada, resolvi me libertar dessa “armadura” de gordura
que me protegia e aprisionava meu corpo – que me deixava fisicamente menos atraente, que me “pro-
tegia” do assedio alheio – sim, mulheres também me assediavam. Essa performance tem um quê de
rito e catarse, uma vez que meu corpo será totalmente encoberto pela quantidade de gordura perdida.

Gostosa

Essa é uma boa vivência, livre e na cara dura, da obra de Márcia X.

O leite condensado é meu inferno na terra! Amo o gosto, a textura, a cor, o cheiro e suas possibili-
dades de invencionices e receitas quânticas. Ele foi e é meu pior inimigo. Por culpa dele, engordei

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absurdamente e vivenciar esse elemento de forma tátil é uma possibilidade indescritível. Nessa per-
formance, irei utilizar o leite condensado cozido em ponto de doce de leite e irei besuntar todo o meu
corpo até a desconfiguração total.

Sendo assim, volto ao processo criativo embasado nos discursos e teóricos contemporâneos, entre
eles Deleuze, Judith Butler, Agamben, Rakim-Bay.

REFERÊNCIAS

AGAMBEM, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
AQUINO, Suellen. “Tu é menino ou menina?” Teoria queer e arte/educação (no prelo).
BORRE, Luciana. Cultura visual: travessias, provisoriedades e encontros em processos de ensinar e aprender.
In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Orgs.). Educação da cultura visual: aprender... pesquisar... ensi-
nar... Santa Maria/RS: Editora UFSM, 2015, p. 111-132.
COSENTINO, Caroline. Fantasmas imaginários do corpo casa: a vídeo performance como meio de ressignifica-
ção afetiva (no prelo).
FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. Trad. Roberto. Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível – estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora
34, 2012.

980
PRO GR AMAÇ ÃO DO V CON G R ES S O
INTE RNAC I ONA L SESC D E A R T E/ ED UC AÇ ÃO

ABERTURA | UFPE
25.07.16
08:00h Credenciamento - CCSA
- Local: Portaria do CCSA
08:30h às Abertura do Congresso - CAC
09:40h Homenagem a Ana Mae Barbosa
- 80 anos de Vida Artista | 60 anos de Magistério
Intervenções Circences
- Escola Pernambucana de Circo e Trupe Animatus Invictus
25.07.16
COMUNICAÇÕES ORAIS | CCSA | UFPE
Sala Ana Mae Barbosa - Corredor A - Sala 1
SESSÃO I - Arte/Educação Inclusiva
Mediadora: Márcia Carolina Mota Viana/UFRPE
HORÁRIO NOME TRABALHO
10:00 Karla Elizabeth da Silva Criatividade: O Inconsciente como Protagonista da
Gonçalves/UFPE Gênese da Obra de Arte e da Personalidade

10:15 Gracineia Mª Rodrigues Cruz e A Arte da Contação de História como dispositivo de


Odailton Aragão Aguiar/UFPI Interação de Uma Criança com TEA.

10:30 Jamile da Cruz de Jesus e Os Dois Turrões: Uma Experiência Teatral com Pessoas
Carlos Alberto Ferreira da com Deficiência Visual
Silva/UFBA
10:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - Arte/Educação Intercultural e as Relações Étnicos-raciais


Mediadora: Dayse Moura/UFPE

11:15 Clarissa Machado Belarmino/ Tramas Indígenas: Uma Reflexão Sobre Arte e
UFPE Artesanato

Amanda Caline da S. Omar/ Teatro e Pedagogia: Relato de Experiência de Projeto


11:30
UFPB Interdisciplinar em Escola Quilombola

11:45 Amanda Caline da S. Omar/ Teatro do Oprimido como Recurso para Compreender
UFPB Configuração Atual da Identidade em Escola
Quilombola

12:00 DEBATE DEBATE

981
Sala Noêmia Varella - Corredor A - Sala 2
SESSÃO I - História de Arte/Educação no Brasil
Mediadora: Maria Betânia e Silva/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

10:00 Niedja Ferreira dos Santos Torres/ Teoria X Práxis: Aspectos Educacionais da Escola
UFPE de Belas Artes de Pernambuco (1932-1946)

Leidson Malan Monteiro de Castro Há Crianças na Sala de Espetáculos! – Vestígios


10:15 Ferraz/UFPE da Presença de Pequeninos Espectadores nos
Teatros do Recife

Sandra Maria Nogueira Cruz; Edilva Diálogo com Noemia Varela e suas Concepções
10:30 Barbosa da Silva Lima; Zozilena de Sobre o Ensino de Arte na Pós Modernidade
Fátima Froz Costa/ UFPI
10:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - Arte/Educação Pós-Colonialista


Mediador: Everson Melquíades Araújo da Silva/UFPE
Miguel de Albuquerque Araujo/ Corpos em Construção: Judith Butler e a Construção
11:15
UFF de Personagens e Confecção de Bonecos

Guilherme Pereira da Silva /UFPE/ O Corpo Presente e a Teoria Queer


11:30
UFPB

11:45 Jaildon Jorge Amorim Góes/ Visualidades X Identidades: Aprender a Ver para
UFBA/UDESC Ser, Estar e Conviver no Mundo com Alteridade

12:00 DEBATE DEBATE

Sala Carlos Varella - Corredor A - Sala 3


SESSÃO I - O Ensino de Arte na Escola: Música
Mediadora: Ibrantina Lopes/FASC
HORÁRIO NOME TRABALHO

10:00 Socorro Maria Costa da Silva e Cantando e Encantando: Um Projeto de Música


Gustavo Henrique da Silva Pereira/ Aplicado na Escola Walney do Carmo Lopes em
UFPE Pacatuba-CE

10:15 Sidcléa Marques Cavalcanti de A Importância do Uso da Flauta Doce como


Moraes/IBPEX Ferramenta de Aprendizagem da Música no
Ensino Básico

Juliana Soares dos Santos e Érica O Ensino de Música nos Anos Iniciais do Ensino
10:30 Renata Alves de Oliveira/ Fundamental: O Que Temos com Relação à
UFPE/CAA Prática Docente Sete Anos Após a Aprovação da
Lei 11.769/2008?

10:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - O Ensino de Arte na Escola: Teatro


Mediador: Marcus Rodrigues/UFPE
11:15 Ildisnei Medeiros da Silva/UFRN Ensino Dialógico de Teatro: Apontamentos Para/
Sobre Uma Proposta Pedagógica

982
11:30 Sérgio dos Santos Reis/UFBA Uma Pedagogia do Teatro Popular: Uma
Experiência no Colégio Estadual Padre Palmeira
Aline Catiane Paz Almeida e Pedagogia do Teatro e Alteridade: Desafios e
11:45
Amanda Caline da Silva Omar/UFPB Reflexões na Realidade Escolar

12:00 DEBATE DEBATE

Sala Marco Camarotti - Corredor A - Sala 4


SESSÃO I - Processos de Criação em Arte: Artes Cênicas
Mediador: Igor Almeida/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO
Guilherme Rodrigues Silveira Intimus: Um Caminho para os Elementos Visuais
10:00
Kokeny/UFPE do Espetáculo nas Artes Cênicas

10:15 Reginaldo dos Santos Oliveira/ A Experiência como Prática de Criação e Reflexão
UFAL em Dança – Uma Passagem Pela Poética do
Espetáculo “Dança Baixa” da Companhia dos Pés

10:30 Lorena de Oliveira Chagas/UFF O Que é uma Peça-Game? - Reflexões para


Delinear um Novo Gênero.

10:45 DEBATE DEBATE


SESSÃO II - Dança/Educação
Mediadora: Maria Cláudia Guimarães/UFPE
11:15 Rafaela Cristina Mendes Gomes da O Método Nascimento do Passo: Ensino-
Silva/UMa/PT Aprendizagem da Dança do Frevo

11:30 Avaci Duda Xavier/UFPE Pernas que Andam Corpos que Dançam: Um
Diálogo com a Teoria das Inteligências Múltiplas
Guilherme Rodrigues Silveira Entrelaces do Yoga e o Ensino da Dança:
11:45 Kokeny e Leandro Henrique Percepções a Partir da Observação de Aulas de
Regueira de Mendonça/UFPE Dança no Ensino Não Formal

12:00 Maria Sheila Bezerra da Silva e Campo da Educação Somática e Hatha Yoga –
Emelly Linhares/UFPE Diálogos Experimentados

12:15 DEBATE DEBATE

Sala Abelardo da Hora - Corredor A - Sala 5


SESSÃO I - Arte/Educação como Mediação Sociocultural
Mediadora: Maria Betânia Correa/Museu da Cidade do Recife
HORÁRIO NOME TRABALHO
Alexandre Nepomuceno Targino/ A Investigação das Poéticas na Curadoria: Um
10:00 UFPE Percurso Pelas Trajetórias de Moacir dos Anjos e
Adriano Pedrosa
Vanessa Soares Lorega/ Relação Escola e Museu: Apresentação de
10:15
UFPE/UFPB Pesquisa

10:30 Gustavo Henrique da Silva Pereira/ O Podcast como Mediação Cultural: Iradex
ESTÁCIO FIC Podcast e as Conexões com Ideias e Pessoas
10:45 DEBATE DEBATE

983
SESSÃO II - O Ensino de Arte na Escola: Artes Visuais
Mediadora: Fabiana Vidal/UFPE
Maria Emilia Sardelich e Camylla Repertórios Visuais Entre Estudantes do Ensino
11:15
Ranylly Marques Paiva/UFPB Fundamental da Cidade de João Pessoa.
Juscélio de Holanda Cavalcanti e A Xilogravura Inserida nos Processos de Ensino
11:30 Gustavo Henrique da Silva Pereira/ de Arte: Ensino Fundamental II
IFCE

Edilania Vívian Silva dos Santos Cor Linhação: O Estudo da Cor como Experiência
11:45 e Cristiane Aparecida Romão da Educativa no Contexto Escolar
Silva/URCA

12:00 DEBATE DEBATE

Sala Jomard Muniz de Britto - Corredor A - Sala 6


SESSÃO I - Processos de Criação em Arte: Literatura
Mediador: José Manoel da Silva Sobrinho/SESC-PE
HORÁRIO NOME TRABALHO

Moisés Monteiro de Melo Neto/ O Poema Épico e as Diferenças de Gênero da


10:00 ESM/SORECH Poesia

10:15 Ana Paula Lourenço de Sá e Os Encontros, a Poesia e o Percurso. Ou, a


Andrêza de Lima Alves/UFPE Descoberta “Da Inutilidade como Conceito Útil a
uma Sobrevivência Criativa”
Mercia Paulino Nicolau da Silva/ Um Descortinamento da Singularidade Humana
10:30
UFPE Sob a Perspectiva da Valorização do Ser

10:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - Arte/Educação Intercultural e a Educação de Idosos


Mediadora: Emanuella de Jesus/SESC-PE
11:15 João Feliciano de Souza Neto e Inclinações Artísticas Influenciando em Práticas
Pedro Rodrigues Pereira da Silva/ Pedagógicas: Análise de Intervenção Pedagógica
UFPE com Idosos no Curso “Teatro, Corpo e Saúde”

11:30 Marcelo Caires Luz/SESC-AC Educação Musical na 3a Idade - Música e Outros


Processos Artísticos para as Saúdes Social, Motora,
Emocional e Cognitiva

11:45 Rosali Natalie da Silva Gouveia/ Da Necessidade de Arte/Educação para a Terceira


UFPE Idade: Uma Experiência na Extensão Universitária.

12:00 DEBATE DEBATE

Sala Rosa Vasconcelos - Corredor A - Sala 7


SESSÃO I – O Ensino de Arte na Escola: Educação da Infância
Mediadora: Luciana Santos/UFPE
10:00 Patricia Pérez Morales; Gisselle Aproximaciones a la Infancia: Una Mirada Desde
Margarita Tur Porres; Alejandra el Juego
Manena/UNAE/MADRI/ES

984
10:15 Gilvânia Maurício Dias de Pontes/ Bichos do Parque: Retomando Experiências para
UFRN Produzir um Novo Caminho

10:30 Andréia Maria Ferreira Reis/ Programa Curumim Sesc São Paulo: uma
SESC-SP Experiência da Metodologia da Escola da Ponte
na Educação

10:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II – Arte/Educação e Interdisciplinaridade


Mediadora: Ana Paula Abrahamian de Souza/UFPE
11:15 Jerônimo Vieira de Lima Silva e No Corpo, um Corpo: Reflexões Sobre o “Híbrido”
Elias de Lima Lopes/BELAS ARTES na Cena Contemporânea
PORTO/PT

11:30 Benedito José Pereira/UMa/PT Processos Interdisciplinares no Ensino/


Aprendizagem do Teatro na Escola

11:45 Janilson Lopes de Lima/ O Pensamento Complexo e a Interdisciplinaridade


UFPE/UFPB no Ensino de Artes Visuais em Escolas de
Referência no Recife

12:00 Telma César Cavalcanti/UFAL Ensino das Danças Tradicionais e Populares do


Brasil Notas de uma Experiência

12:15 DEBATE DEBATE

Sala João Francisco de Souza - Corredor A - Sala 8


SESSÃO I – Abordagem Triangular do Ensino da Arte
Mediadora: Maísa Cristina da Silva/Escolinha de Arte do Recife
HORÁRIO NOME TRABALHO
Almir Tavares da Silva/IFAL A Abordagem Triangular para o Ensino da Arte
10:00 no Processo de Estudo da Dramaturgia Brasileira
do Século XX
Elaine de Souza Silva/UFBA Proposta Triangular na Formação de
10:15
Espectadores

10:30 Verônica Teodora Pimenta/ A Abordagem Triangular no Ensino-Aprendizagem


UFMG de Dança: Caminhos Possíveis

10:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II – Processos de Criação em Arte: Artes Visuais


Mediador: Emília Freitas/UFPE
Adelia Maria Araújo de Oliveira e Coletivo Eu Passarinho: A Essência do Sensível
11:15
Amanda de Souza/UFPE como Prática e Pesquisa Além da Academia

Leandro Pereira da Costa/UFPE O Pensamento/Criação da Fotografia Artística


11:30
Contemporânea: Um Olhar Transdisciplinar

11:45 Frutuoso da Silva Lorega Filho/ Gravar Sem Poluir


UFPE

12:00 DEBATE DEBATE

985
26.07.16
COMUNICAÇÕES ORAIS | CCSA | UFPE
Sala Ana Mae Barbosa - Corredor A - Sala 1
SESSÃO I - Arte/Educação Intercultural e Feminismo
Mediadora: Conceição Reis/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO
Daniella Zanellato e Rita Maria Arte/Educação e Mediação Cultural na Espanha:
09:00 Ricardi Noguera/USP Perspectivas Femininas na Arte Contemporânea
Árabe
09:15 Isaac de Souza Assunção/UFPE As Mulheres em Foco: Da Invisibilidade à
Visibilidade, a Partir de uma Prática de Ensino em
Artes.
Emanuely Arco Iris da Silva e Maria Construção Midiática do Corpo Feminino:
09:30 Carolina Leite de Lima/ Percepções do Corpo com Docentes e Estudantes
SESC-PE do Sesc Piedade
09:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - Arte/Educação em Diálogo com as Novas Tecnologias


Mediadora: Heloisa Bastos/UFRPE
10:15 Anna Carolina C. Cosentino/ Fantasmas Imaginários do Corpo Casa. Mediação
UFPE Entre Antigos e Novos Significados Afetivos
Através da Vídeoperformance

10:30 Rosileide Guedes Sant’ana de A Recepção e Interpretação de um Vídeo em


Farias/UFPE Arte-Educação Sob o Paradigma da Teoria da
Atividade
10:45 Diogo José de Moraes Lopes O Cinema no Ensino Formal: uma Experiência
Barbosa/UFPB Possível

11:00 Debate Debate

SESSÃO III - Teatro/Educação


Mediador: Zezo Oliveira/ UFRJ
11:30 Natalyne Pereira dos Santos/UFBA Vozes no Palco Dramaturgia com Histórias da
Comunidade de São Bento
Jéssica Cristina Souza do O Processo Colaborativo em Invencionices – de
11:45 Nascimento; Laura Caldas Miguel e Manoel e as Nossas
Marcus Flávio da Silva/UFPE
Amanda de Sampaio Alves Como Conhecer o Mar? – Uma Experiência em
12:00
Duarte/UFBA Drama
12:15 Debate Debate

986
Sala Noêmia Varella - Corredor A - Sala 2
SESSÃO I - Ensino de Arte Escolar
Mediadora: Klesia Andrade/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

09:00 Carlos Cleiton Evangelista Literatura, História e Arte: Os Miseráveis, de Victor


Gonçalves/UFPB Hugo, em um Projeto Didático-Pedagógico no
Ensino Médio

09:15 Zozilena de Fatima Fróz Costa; Iris Múltiplos Olhares Sobre o Passado: uma
Victoria Montalvan Shica; Erika Experiência de Leituras de a Mameluca de Albert
Fernanda Pereira da Silva/UFPI Eckhout em Teresina, Piauí, Brasil
09:30 Rodrigo Gomes da Silva e Renata Na Intimidade do Ninho: Sala de Artes como
Wilner/UFPE Lugar de Liberdade
09:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - Arte/Educação Contemporânea


Mediadora: Cristiane Almeida/UFPE
Dione Souza Lins e Luis Ricardo Retratos e Autorretratos, na Escola
10:15 Pereira de Azevedo/UFRJ Contemporânea. Diálogos Interculturais com
Novas Tecnoligias
Maria Clara de Lima Santos e Arte, Vida e Natureza: Experiências no Ensino da
10:30
Marianna dos Santos Melo/ UFPE Arte Contemporânea

10:45 João Pedro Tavares da Silva/UFPE Considerações Investigativas Sobre o


Fazer Artístico como uma Plataforma de
Autoconhecimento
11:00 DEBATE DEBATE

SESSÃO III - Arte/Educação em Diálogo com as Novas Tecnologias


Mediadora: Karina Valença/UFPE
11:30 Leandro Machnicki Altaniel/ A Montagem do Filme na Construção da Cultura
UFPE Visual

11:45 Kyrti Aguiar Silveira Ford/ Miller e os 300 – Graphic Novel & Cinema
Pesquisadora Independente

12:00 Anamaria Sobral Costa/UFPE Uma Rançosa Teatralidade: Eisenstein e o Teatro


no Cinema
12:15 DEBATE DEBATE

Sala Carlos Varella - Corredor A - Sala 3


SESSÃO I - Ensino/Aprendizagem da Arte
Mediadora: Ana Carolina Nunes de Couto/UFMG
HORÁRIO NOME TRABALHO

09:00 Paulo Sérgio das Neves Souza e Ver * Sentir * Fazer: Ações Educativas e Processo
Adriele Cristine Silva da Silva/UFPA de Ensino/Aprendizagem em Arte.

987
09:15 Débora Frota Chagas e Roberta Arte, Processo de Criação e Avaliação: uma Experiên-
Bernardo da Silva/UFC cia Triangular no Colégio da Polícia Militar do Ceará

09:30 Ana Claudia do Amaral Leão e Lugares-Ilha: Sobre Aprendizagem como Processo
Adriele Silva da Silva/ UFPA Artístico
09:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - Arte/Educação como Mediação Sociocultural


Mediador: Romildo Moreira/Fundação de Cultura da Cidade do Recife
10:15 Poliana Lima Bicalho/UFBA O Relato de uma Experiência: A Ação Mediação
Cultural - Formação do Espectador no Teatro Sesc-
Senac Pelourinho, em Salvador (BA)

10:30 Rodrigo Carvalho Marques A Experiência do Teatro em Casa e a Pedagogia do


Dourado/UFPE Espectador

10:45 Sara Vasconcelos Cruz e Dr. Robson O Artista Educador e a Mediação Propositora de
Chavier da Costa/ UFPB/UFPE Experiências
11:00 DEBATE DEBATE

SESSÃO III - A Formação do Arte/Educador


Mediadora: Maria Alves/UFPE
11:30 Maria Betânia e Silva/UFPE Saberes e Fazeres: Trajetória Artística na Vida de
uma Professora

11:45 Luana da Silva Rito/UFPE A Importância da Formação dos Educadores da


Galeria Janete Costa para a Exposição “Arcaico
Contemporâneo - 50 Anos de Pintura” e Seus
Desdobramentos

12:00 Geisiane Nogueira Rocha; Juciene Fertilização e Fortalecimento da Árvore da Arte:


dos Santos Pimentel; Milena Reflexões Sobre o Convívio do Professor de Arte
Guedes Alves Rocha; Ana Claudia com Elementos Artísticos
Oliveira Freitas/UNEB
12:15 DEBATE DEBATE

Sala Marco Camarotti - Corredor A - Sala 4


SESSÃO I – Arte/Educação Intercultural e as Relações de Gênero
Mediadora: Francini Barros/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

Jaileila de Araújo Menezes e (Rap)Ensando a Discussão Sobre Direitos Sexuais


09:00
Dandara Maria Oniilari Ferreira da e Direitos Reprodutivos no Movimento Hip Hop
Silva/UFPE

09:15 Amanda Fernandes dos Santos/ Nuance do Nordeste No Ritmo do Hip-Hop /


UFPI Uma Narrativa da Prática Coletiva que Buscou a
Valorização Cultural Através da Dança

09:30 Maria Natália Matias Rodrigues e Juventude, Gênero e Hip Hop: Reflexões Sobre Arte
Jaileila de Araújo Menezes/UFAL e Identidade a Partir de Jovens Mulheres Rappers

09:45 DEBATE DEBATE

988
SESSÃO II – Arte/Educação Intercultural e Cultura Popular
Mediador: Mário Ribeiro/UPE
10:15 Edite Colares Oliveira Marques/ O Ensino de Arte e a Festa Popular
UECE

10:30 Gabriela Borba de Lima e Thiago Comes e Contos: Um Resgate da Sinestesia


Luiz de Souza e Silva/Instituto Culinária
Ricardo Brennand
10:45 Lívia Castro de Lacerda De Ponto em Ponto Aumento um Conto: o Ensino
de Artes em Pontos de Cultura do Território de
Identidade Portal do Sertão na Bahia

11:00 DEBATE DEBATE

SESSÃO III - Arte/Educação e Direitos Humanos


Mediadora: Adriana Aquino/ ANARTE-PE
Valdirene Aparecida Ferreira/ O Mundo Perfeito: Teatro Educativo Contra a
11:30
UCM Islamofobia

Kizz De Brito Barretto/ECA/USP Arte-Educação como Fonte de Dignidade


11:45
Humana: um Estudo de Caso
Elis Regina dos Santos Costa e O Inter-Humano na Obra “The Artist Is Present”: a
12:00
Denise Mª Moura e Silva/UFPE Arte ao Encontro dos Direitos Humanos

12:15 DEBATE DEBATE

Sala Abelardo da Hora - Corredor A - Sala 5


SESSÃO I - Educação Musical
Mediadora: Valdiene Pereira/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

09:00 Elthon Gomes Fernandes da Silva/ As Expressões Vocais em “O Canto da Sereia” e no


UFPB Rap: Experiências Sonoras Criativas na Sala de Aula

Simone Oliveira de Castro/IFCA Arte da Palavra: A Cantoria de Viola e Seu


09:30
Repertório Poético
09:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II – Processos de Criação em Arte: Artes Visuais


Mediador: Bruno Fernandes Alves - UFRPE
Maria Helena Ferreira da Costa/ A Intervenção Urbana do Graffiti em Teresina; Estu-
10:15
UFPI do da Produção Plástica do Artista de Rua “Manin”

Maria Virginia Gordilho Martins/ Alguns Grãos Poéticos em Outros Retalhos


10:30
UFBA

Judivan José Lopes/IFAL Coletivo Artístico: Artivismo e Arte-Intervenção


10:45
Urbana Por Meio de Projeto de Extensão.
11:00 DEBATE DEBATE

989
SESSÃO III – Formação do Arte/Educador
Mediadora: Clarissa Araújo/UFPE
Isabel de Fátima Rodrigues Silva/ Docência em Arte no Ensino Básico Técnico e
11:30
IFBA Tecnológico: Perspectivas, Desafios e Experiências.
Sislândia Maria Ferreira Brito/ O Ensino de Artes na Educação Brasileira: uma
11:45
URCA Abordagem Reflexiva
Luciana dos Santos Tavares/ O Pibid em Artes Visuais – UFPE e IFPE Juntos em
12:00
IFPE um Processo de Formação
12:15 DEBATE DEBATE

Sala Jomard Muniz de Britto - Corredor A - Sala 6


SESSÃO I - Arte/Educação Contemporânea
Mediador: Breno Fittipaldi/SESC-PE
HORÁRIO NOME TRABALHO

Nildo Alfredo Barbosa e Elinildo Misterioso Encantado como Proposta Dialógica


09:00 Marinho de Lima/UFPE de Arte Educação.

09:15 Ilana de Oliveira Aguiar/UFPE Desconstruindo o Cenário e Tecendo a Liberdade:


a Experiência do Sociodrama na Prevenção
do Uso do Álcool, Fumo e Outras Drogas no
Projovem Urbano

09:30 Laura Renata Dourado Pereira/ A Arte como Abordagem para Despertar o Senso
IFAM Estético, a Sensibilidade e o Potencial Criativo

09:45 DEBATE DEBATE

SESSÃO II - Arte/Educação em Espaços de Educação não Formal


Mediador: Célio Pontes/UFRPE

10:15 Lúcia de Fátima Padilha Cardoso; Recife Arte Pública: a Cidade como Campo para
Hassan Fellipe dos Santos; Niedja Ações Educativas
Ferreira dos Santos Torres/
Pesquisadores Independentes

10:30 Márcia Gomes da Silva/UFPE Concepções e Práticas de Ensino dos Arte/


Educadores que Atuam com a Dança em Espaços
Não Formais

10:45 Inácio Alves Dantas Neto e O Ensino de Arte Fora da Escola: Os Espaços
Cristiane Maria Galdino de Culturais do Bairro do Recife Como Campo de
Almeida/UFPE Educação não Formal

11:00 DEBATE DEBATE

990
26.07.16
COMUNICAÇÕES ARTÍSTICAS | CAC | UFPE
Sala Eduardo Freire - Sala de Dança
SESSÃO ÚNICA - Dança
Mediador: Paulo Henrique Ferreira/ACUPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

09:00 Aldeline Maria da Silva/UFPE Parecia Tão Distante... Mas Era Tão Nosso!

09:40 Reginaldo dos Santos Oliveira/UFAL Dança Baixa

10:20 Telma César Cavalcanti/UFAL Poética da Cidade

11:00 DEBATE DEBATE

Sala Ingrid Koudela - Teatro Milton Baccarelli


SESSÃO ÚNICA - Teatro
Mediador: João Denys Araújo Leite/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

09:00 Inácio Alves Dantas Neto/UFPE O Processo de Construção de Repertório para o


Artista de Teatro Musical

09:40 Lucas Leal/UERJ/IFRJ Minha Vida como Obra de Arte. Minha Casa
como Espaço Cênico, e Meu Cine-Teatro como
Experimentação Estética

10:20 Lenôra Maria Albuquerque Santos A Revolta dos Mortos-Vivos: Incidente em


Simões Farias/Escola Dom Bosco Antares - O Ontem que Alcança o Hoje
11:00 DEBATE DEBATE

Sala Solange Costa Lima - Ateliê 1


SESSÃO ÚNICA - Artes Visuais
Mediadora: Emília Freitas/UFPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

09:00 Gracineia Maria Rodrigues Cruz; Urbanicídio em Auto-Retrato


Francilon Carvalho Barros; Alan
César A. Vasconcelos e Maria
Helena Ferreira da Costa/UFPI
Daniela Zanellato/USP/ Arte Sincronicidade: O Feminino como Elemento
09:40
Universidad Autónoma de Madrid Simbólico na Obra Matrística
Fátima Mª Costa Bulcão/Escola Quando um Muro Separa uma Ponte Une/Escola
10:20
Especial Ulisses Pernambucano Ulisses Pernambucano
11:00 DEBATE DEBATE

991
Sala Sebastião Pedrosa - Ateliê 2
SESSÃO ÚNICA - Artes Visuais
Mediador: Fernando Azevedo/UFRPE
HORÁRIO NOME TRABALHO

09:00 Felipe Peres Calheiros/UFPE Tankalé: Formação Para o Auto-Registro


Audiovisual Quilombola

Bárbara Colier/UFPE Vestido Vermelho, Armadura, Gostosa -


09:40
Performances.

10:20 DEBATE DEBATE

27.07.16
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES | AUDITÓRIO CCSA | UFPE
Diálogo I - Vida Artista: Diálogos entre Arte/Educação e Filosofia
09:00h às - Ana Mae Barbosa (ECA-USP | Anhembi-Morumbi/SP)
10:30h - Guilherme Castelo Branco (UFRJ/RJ)
Mediação: Alexandre Freitas (UFPE/PE)

Diálogo II - Narrativas de Afetos


- Frederico Barbosa (Casa das Rosas/SP)
- Lígia Barbosa (PE)
- Sebastião Pedrosa (UFPE/PE)
10:30h às - Maria das Vitórias Negreiros do Amaral (UFPE/PE)
12:30h - Fernanda Pereira da Cunha (UFG/GO)
- Regina Machado (USP/SP)
- Rejane Coutinho (UNESP/SP)
- Jomard Muniz Britto (UFPE/PE | UFPB/PB)
Mediação: Fernando Azevedo (UFRPE/PE)

27.07.16
LANÇAMENTO DE LIVROS E E-BOOK | CAC | UFPE

PUBLICAÇÕES

Livro: ALÉM DO CORPO Livro: REDESENHANDO


18:00h O DESENHO -
- UMA EXPERIÊNCIA EM
às 22:00h ARTE/EDUCAÇÃO EDUCADORES, POLÍTICA
Autora: Ana Amália E HISTÓRIA
Tavares Bastos Barbosa Autora: Ana Mae Barbosa

992
Livro: CAMINHOS PARA Livro: A VIAGEM DE VOLTA
INCLUSÃO: UMA REFLEXÃO - AÇÕES DO MOVIMENTO
SOBRE ÁUDIO-DESCRIÇÃO INTERCULTURAL
NO TEATRO INFANTO- IDENTIDADES EM
JUVENIL COMUNIDADES DE
Autora: Andreza Nóbrega COLONIZAÇÃO LUSA
Autora: Madalena Zaccara

18:00h
às 22:00h Livro: A ABORDAGEM E-Book: IV CONGRESSO
TRIANGULAR NO ENSINO INTERNACIONAL SESC-PE E
DAS ARTES COMO TEORIA UFPE DE ARTE/EDUCAÇÃO
E A PESQUISA COMO - ECOS DE RESISTÊNCIAS
EXPERIÊNCIA CRIADORA NA AMÉRICA LATINA
Autor: Fernando Antonio Organização: Antonio
Gonçalves de Azevedo Edson Cadengue e
Rudimar Constâncio

18:00h às Apresentações Artísticas


22:00h - Grupo Bongar
- DJ Rodrigo Porto

28.07.16
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES | AUDITÓRIO CCSA | UFPE
Diálogo III - Colonialismo e Pós-colonialismo
- António Ângelo Vasconcelos (Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de
Setúbal/PT)
09:00h às
- Alexandre Furtado (UPE/PE)
12:30h
- Célio Pontes (UFRPE/PE)
- José Carlos Paiva (Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto/PT)
Mediação: Rosângela Tenório (UFPE/PE)

29.07.16
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES | AUDITÓRIO CCSA | UFPE
Diálogo IV - Abordagem Triangular em Diferentes Linguagens de Arte
- Christina Rizzi (USP/SP)
09:00h às - Isabel Marques (Instituto Caleidos/SP)
12:30h - Ingrid Koudela (USP/SP)
- Ramon Cabrera (Cuba)
Mediação: Ana Mae Barbosa (ECA-USP|Anhembi-Morumbi/SP)

25 a 29.07.16
CURSOS | UFPE | CAC e CCSA
De 14:00h às 18:00h
1- Curso: Artisticidades, criatividades e contextos: por uma ecologia de saberes no ensino
de música | Professor: António Ângelo Vasconcelos (Escola Superior de Educação do Instituto
Politécnico de Setúbal - PT)

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2- Curso: Rítmica Dalcroze: educação musical para o corpo e mente | Professor: Iramar Rodrigues
(Instituto Dalcroze - Genebra/Suíça)
3- Curso: Educação somática: caminhos para a criação em dança | Professora: Marcia Strazzacappa
(Unicamp/SP)
4- Curso: Dança em espaços não formais | Professora: Isabel Marques (Instituto Caleidos/SP)
5- Curso: Corpos Cômicos | Professor: Ronaldo Aguiar (Doutores da Alegria/SP)
6- Curso: Olhares da diferença: leituras coloniais e pós coloniais em literaturas de expressão
portuguesa | Professor: Alexandre Furtado (UPE/PE)
7- Curso: Micronarrativas e produção textual | Professor: Marcelino Freire (SP)
8 - Curso: O ensino de teatro e a deficiência: questões sobre inclusão escolar e acessibilidade |
Professor: Jefferson Fernandes (UFRN/RN)
9 - Curso: O jogo com o modelo da peça didática de Bertolt Brecht | Professora: Ingrid Dormien
Koudela (USP/SP)
10 - Curso: Pele e bastão: atuação teatral libertadora | Professor: João Denys (UFPE/PE)
11 - Curso: Sete e sete são catorze: a  arte de contar histórias e a aprendizagem humana |
Professora: Regina Machado (USP/SP)
12- Curso: A linguagem das histórias em quadrinhos | Professor: Bruno Fernandes Alves (UFRPE/PE)
13 - Curso: Reflexão e produção de materiais inclusivos para o ensino de artes visuais |
Professora: Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva (Udesc/SC)
14 - Curso: Professor/mediador: diálogo entre o museu e a escola | Professora: Christina Rizzi (USP/SP)
15 - Curso: Gravuras com linóleo e carimbos gravados | Professora: Beatriz Melo (Gráfica Lenta/PE)
16 - Curso: Audiovisual e educação | Professora: Amanda Mansur (UFPE/PE)
17 - Curso: Gestão cultural | Professor: Célio Pontes (UFRPE/PE)
18 - Curso: Arte/Educação intercultural: diferenças, identidades e poder |
Coordenação: Professora: Renata Pimentel (UFRPE/PE)
- Subtemática: Diferença cultural no contexto dos estudos culturais – a novela gráfica como
objeto de análise | Professora: Rosângela Tenório de Carvalho (UFPE/PE)
- Subtemática: Africanidades | Professora: Maria José dos Santos (UFRPE/PE)
- Subtemática: Identidade indígena | Professor: Sandro Guimarães de Salles (UFPE/PE)
- Subtemática: Gênero e educação | Professora: Karina Valença (UFPE/PE)
- Subtemática: Arte/Educação intercultural: diferenças, identidades e poder | Professora:
Renata Pimentel (UFRPE/PE)
19 - Curso: Afrocontação: linguagem, memória e imaginários fortalecendo a construção das
identidades de gênero, raça e etnia | Professora: Graça Elenice Braga (UFRPE/PE)
20 - Curso: Histórias da arte/educação brasileira | Professora: Rejane Coutinho (UNESP/SP)
21 - Curso: e-Arte/Educação crítica | Professora: Fernanda Pereira da Cunha (UFG/GO)

25 a 29.07.16
OUTRAS ATIVIDADES | CCSA | UFPE
09:00h às Livraria
17:00h - Venda de livros, cds e dvds

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