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Dêni s de Moraes (org.

Por uma
outra
comunicação
Mídia, mundialização
cultural e poder

2? EDIÇÃO

Globalização comunicacional
e!"transformação cultural
JESUS MARTÍN-BARBERO

â
E D I T O R A R E C O R D
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2004
Globalização comunicacional
e transformação cultural
JESÚ.S MARTÍN-BARBERO

Há uma profunda mudança de perspectiva: julgava-se que o mundo


moderno estava unificado enquanto a sociedade tradicional estava
fragmentada. Hoje, ao contrário, a modernização parece levar-nos
do homogêneo para o heterogêneo no pensamento e no culto, na
vida familiar e sexual, na alimentação ou no vestir-se.

ALAIN TOURAINE

1. Globalização comunicacional

O globo deixou de ser uma figura astronômica para adquirir ple-


namente u m a significação histórica, afirma o sociólogo brasileiro
Octavio Ianni. Esta significação, no entanto, ainda é profunda-
mente ambígua e até m e s m o contraditória. C o m o entender as
mudanças que a globalização produz e m nossas sociedades s e m
sermos enredados pela ideologia mercantilista que orienta e legi-
tima seu curso atual ou pelo fatalismo tecnológico que legitima
o desarraigamento acelerado de nossas culturas? Identificada por
58 Globalização comunicacional e transformação cultural

alguns com a única grande utopia possível, a de um só mundo


compartilhado, e por outros c o m o mais aterrorizante dos pesa-
delos, o da substituição dos homens por técnicas e máquinas, a
globalização pesa tanto ou mais no plano dos imaginários coti-
dianos das pessoas do que sobre os processos macrossociais. C o -
meçamos, sem dúvida, a compreender algumas dimensões da
globalização e são justamente aquelas que dizem respeito às trans-
formações nos modelos e nos m o d o s da comunicação.
Entender essas transformações exige, em primeiro lugar, u m a
mudança nas categorias com que pensamos o espaço, pois, ao
transformar o sentido do lugar no mundo, as tecnologias da in-
formação e da comunicação — satélites, informática, televisão
— estão fazendo c o m que u m m u n d o tão intercomunicado se
torne indubitavelmente cada dia mais opaco. Opacidade que re-
mete, de u m lado, ao fato de que a única dimensão realmente
mundial até agora é o mercado, que, mais do que unir, busca
unificar (Milton Santos). E atualmente o que está unificado e m
nível mundial não é u m a vontade de liberdade, m a s sim de do-
mínio, não é o desejo de cooperação, mas o de competitividade.
Por outro lado, a opacidade remete à densidade e compreensão
informativa que introduzem a virtualidade e a velocidade em u m
espaço-mundo feito de redes e fluxos e não de elementos materiais.
U m m u n d o assim configurado debilita radicalmente as frontei-
ras do nacional e do local, ao m e s m o tempo que converte esses
territórios e m pontos de acesso e transmissão, de ativação e trans-
formação do sentido do comunicar.
E não resta dúvida de que não é possível habitar no m u n d o
sem algum tipo de ancoragem territorial, de inserção no local, já
que é no lugar, no território, que se desenrola a corporeidade da
vida cotidiana e a temporalidade — a história — da ação coleti-
va, base da heterogeneidade humana e da reciprocidade, caracte-
Por uma outra comunicação 59

rísticas fundadoras da comunicação humana, pois, mesmo atra-


vessado pelas redes do global, o lugar segue feito do tecido das
proximidades e das solidariedades. Isso exige que se esclareça que
o sentido do local não é unívoco. U m é aquele que resulta da frag-
mentação produzida pela deslocalização que o global acarreta, e
outro é a revalorização do local como âmbito onde se resiste (e
se complementa) a globalização, sua auto-revalorização como
direito à autogestão e à memória própria, ambos ligados à capa-
cidade de construir relatos e imagens de identidade. O que não
se deve confundir de m o d o algum c o m a regressão aos parti-
cularismos e aos fundamentalismos racistas e xenófobos, que,
embora motivados e m parte pela m e s m a globalização, acabam
sendo a forma mais extrema da negação do outro, de todos os
outros. O novo sentido que o local começa a ter nada tem de in-
compatível com o uso das tecnologias comunicacionais e das re-
áes informáticas. Hoje essas redes não são unicamente o espaço
no qual circulam o capital, as finanças, mas também u m "lugar
de encontro" de multidões de minorias e comunidades margina-
lizadas ou de coletividades de pesquisa e trabalho educativo ou
artístico. Nas grandes cidades, o uso das redes eletrônicas tem
permitido a criação de grupos que, virtuais e m sua origem, aca-
b a m territorializando-se, passando da conexão ao encontro e do
encontro à ação.
Precisamos então diferenciar as lógicas unificantes da globa-
lização econômica daquelas que mundializam a cultura. A
mundialização cultural não opera a partir de fora sobre esferas
dotadas de autonomia, como seriam o nacional e o local. "Seria
impróprio falar de u m a 'cultura-mundo', cujo nível hierárquico
estaria situado acima das culturas nacionais ou locais. O proces-
so de mundialização é u m fenômeno social total que para existir
deve localizar-se, enraizar-se nas práticas cotidianas dos homens"
60 Globalização comunicacional e transformação cultural

(R. Ortiz). Não se pode, portanto, confundir mundialização com


padronização dos diferentes âmbitos da vida, que foi o que a re-
volução industrial produziu. Agora estamos diante de uni outro
tipo de processo que se expressa na cultura da modernidade-mun-
do, que é "uma nova maneira de estar no m u n d o " Dela falam as
profundas mudanças produzidas no m u n d o da vida: no traba-
lho, no casal, na roupa, na comida, no lazer. O u nos novos m o -
dos de inserção no (e de percepção de) tempo e espaço, c o m tudo
o que implicam de descentralização concentradora de poder e de
u m desenraizamento que leva à hibridação das culturas. É o que
acontece quando os meios de comunicação e as tecnologias de
informação se convertem e m produtores e veículos da mundiali-
zação de imaginários ligados a músicas e imagens que represen-
tam estilos e valores desterritorializados, aos quais correspondem
também novas figuras da memória.
Porém, esses fenômenos de globalização comunicativa não
podem ser pensados c o m o meros processos de homogeneização.
O que está e m jogo hoje é u m a profunda mudança no sentido
da diversidade. Até pouco tempo atrás a diversidade cultural foi
pensada c o m o uma heterogeneidade radical entre culturas, cada
u m a enraizada em ü m território específico, dotadas de u m cen-
tro e de fronteiras nítidas. Qualquer relação com outra cultura
se dava c o m o estranha/estrangeira e contaminante, perturbação
e ameaça, e m si mesma, para a identidade própria. O processo
de globalização que agora vivemos, no entanto, é ao m e s m o tem-
po u m movimento de potencialização da diferença e de exposi-
ção constante de cada cultura às outras, de minha identidade
àquela do outro. Isso implica u m permanente exercício de reconhe-
cimento daquilo que constitui a diferença dos outros c o m o enri-
quecimento potencial da nossa cultura, e u m a exigência de respeito
àquilo que, no outro, e m sua diferença, há de intransferível, não
Por uma outra comunicação 61

transigível e inclusive incomunicável. Misturar o plano coletiv


das culturas com aquele dos indivíduos, que se m o v e m e m pla-
nos claramente diversos, permite sem dúvida constatar que aquilo
que acontece e m u m produz efeitos no outro: o reconhecimento
das diferenças culturais tradicionais — étnicas e raciais — tanto
quanto o das modernas — de gênero ou dos homossexuais —
passa sem dúvida pelo plano dos direitos e das leis, porém eles só
se realizam no reconhecimento cotidiano dos direitos e no res-
peito dos indivíduos que encarnam essas culturas.
A mundialização da cultura reconfigura também o sentido
da cidadania: "De tanto crescer para fora, as metrópoles adqui-
rem características de muitos lugares. A cidade passa a ser u m
caleidoscópio de padrões, valores culturais, línguas e dialetos,
religiões e seitas, etnias e raças. Distintos modos de ser passam a
concentrar-se e a conviver no m e s m o lugar, convertidos e m sín-
tese do m u n d o " (O. Ianni). A o m e s m o tempo, vemos surgir a fi-
gura de u m a cidadania mundial (W. Kymilcka), inaugurando
novos modos de representação e participação social e política,
pois também as fronteiras que constrangiam o campo da políti-
ca è dos direitos humanos hoje não são apenas pouco nítidas,
mas móveis, carregando de sentido político os direitos das etnias,
das raças, dos gêneros. O que não deve ser lido na ótica otimista
do desaparecimento das fronteiras e do surgimento (enfim!) de
u m a comunidade universal, tampouco na ótica catastrófica de
u m a sociedade na qual a "liberação das diferenças" acarretaria a
morte do tecido societário, das formas elementares da convivên-
cia social. C o m o assinalou J. Keane, existe u m a esfera pública in-
ternacional que mobiliza formas de cidadania mundial, como
mostram as organizações internacionais de defesa dos direitos
humanos e as O N G s que, a partir de cada país, fazem a mediação
entre o transnacional e o local. N o esforço para entender a com-
62 Globalização comunicacional e transformação cultural

plexidade das imbricações entre fronteiras e identidades, memó-


rias amplas e imaginários do presente, adquire todo o sentido a
imagem/metáfora do palimpsesto: esse texto em que um passado
apagado emerge tenaz, embora nebuloso, nas entrelinhas que escre-
vem o presente.
Tudo isso nos conduz aos desafios enfrentados, na gestação
de u m a cultura mundializada, pelas aprendizagens à convivên-
cia com os novos campos de experiência desenvolvidos pelas
tecnologias da globalização ou, ao contrário, com o aprofun-
damento da divisão e a exclusão social que estas tecnologias já
estão produzindo. O mais grave dos desafios que a comunica-
ção propõe hoje à educação é que, enquanto os filhos das clas-
ses mais altas conseguem interagir com o novo ecossistema
informacional e comunicativo a partir da própria casa, os filhos
das classes populares — cujas escolas não têm, e m sua imensa
maioria, mínima interação c o m o ambiente informático, sendo
que para eles a escola é o espaço decisivo de acesso às novas
formas de conhecimento — acabam excluídos do novo espaço
laborai e profissional que a cultura tecnológica configura. Daí
a importância estratégica que assume u m a escola capaz, hoje,
de u m uso criativo e crítico dos meios audiovisuais e das tecno-
logias informáticas.

2. A comunicação como questão de cultura

Na América Latina, o que acontece nos/pelos meios de comuni-


cação não pode ser compreendido à margem da heterogeneidade,
das mestiçagens e das descontinuidades culturais que medeiam
a significação dos discursos de massa. O que os processos e práti-
cas da comunicação coletiva p õ e m e m jogo não são unicamente
Por uma outra comunicação 63

os deslocamentos do capital e as inovações tecnológicas, mas


sim profundas transformações na cultura cotidiana das maio-
rias: nos m o d o s de se estar junto e tecer laços sociais, nas identi-
dades que plasmam tais mudanças e nos discursos que socialmente
os expressam e legitimam. Mudanças que remetem à "persistên-
cia de extratos profundos da memória e da mentalidade coleti-
va, trazidos à superfície pelas bruscas alterações do tecido
tradicional que a própria aceleração modernizadora acarreta"
(G. Marramao).
É por isso que, nos últimos anos, os pesquisadores sociais
começaram a pensar que os êxitos e fracassos de nossos povos
na luta para se defenderem e para se renovarem culturalmente
estão estrategicamente ligados às dinâmicas e aos bloqueios na
comunicação: seja associando os processos de modernização dos
países à revolução das tecnologias comunicativas por sua inci-
dência sobre a reconversão industrial, a renovação educacional,
a nova cultura organizacional ou a descentralização política; seja
fazendo da comunicação de massas u m sinônimo daquilo que
nos engana e manipula, nos desfigura c o m o países e nos destrói
culturalmente c o m o povos. A comunicação é percebida, e m todo
caso, c o m o o cenário cotidiano do reconhecimento social, da
constituição e expressão dos imaginários a partir dos quais as
pessoas representam aquilo que temem ou que têm direito de
esperar, seus medos e suas esperanças. O s meios de comunica-
ção começaram assim a fazer parte decisiva dos novos m o d o s
c o m o nos percebemos latino-americanos (J. Martín-Barbero,
1987). O que significa que neles não apenas se reproduz ideolo-
gia, mas t a m b é m se faz e refaz a cultura das maiorias, não so-
mente se comercializam formatos, mas recriam-se as narrativas
nas quais se entrelaça o imaginário mercantil c o m a memória
coletiva.
64 Globalização comunicacional e transformação cultural

Ainda são muitos os preconceitos que nos impedem de per-


guntar quanto do viver cotidiano das pessoas, expulso do âmbi-
to da educação e da cultura com maiúsculas, encontrou expressão
na indústria comunicativa e cultural. U m a expressão interessada
e deformada, com certeza, mas capaz de proporcionar ao c o m u m
das pessoas uma experiência moderna de identidade e reconhe-
cimento social. Assumir a complexidade dessa experiência exige
que pensemos as contradições que a atravessam: o duplo movi-
mento que articula, no funcionamento dos meios, as demandas
sociais e as dinâmicas culturais às lógicas de mercado. E vice-ver-
sa, aquele que vincula o êxito do processo globalizador à interação
obtida por seu discurso com os códigos perceptivos de cada povo,
ou melhor, à capacidade de apropriar-se das possibilidades ofe-
recidas pelas novas tecnologias.
A comunicação midiática aparece, portanto, c o m o parte das
desterritorializações e relocalizações que acarretam as migrações
sociais e as fragmentações culturais da vida urbana; do campo
de tensões entre tradição e inovação, entre a grande arte e as cul-
turas do povo; do espaço e m que se redefine o alcance do públi-
co e o sentido da democracia. Perspectiva na qual devem ser
colocados e compreendidos processos que nos desafiam diaria-
mente, como:
a) Os modos de sobrevivência das culturas tradicionais:
estamos diante de u m a profunda reconfiguração das culturas
— camponesas, indígenas, negras — , que responde não somente
à evolução dos dispositivos de dominação, mas t a m b é m à in-
tensificação de sua comunicação e interação com as outras cul-
turas de cada país e do mundo. N o interior das comunidades,
esses processos de comunicação são percebidos ao m e s m o tem-
po c o m o outra forma de ameaça à sobrevivência de suas cultu-
ras e c o m o u m a possibilidade de romper a exclusão, c o m o
Por uma outra comunicação 65

experiência de interação que, se comporta risco, também abre


novas figuras de futuro, pois há nessas comunidades m e n o s
complacência nostálgica para c o m as tradições e maior consciên-
cia da indispensável reelaboração simbólica que exige a cons-
trução do futuro (Garcia Canclini). Assim o demonstram a
diversificação e o desenvolvimento da produção artesanal e m
aberta interação c o m o desenho moderno e m e s m o c o m certas
lógicas das indústrias culturais, a existência crescente de emis-
soras de rádio e televisão programadas e administradas pelas
próprias comunidades e até a presença do movimento zapatista
proclamando via Internet a utopia dos indígenas mexicanos do
Chiapas.
b) As aceleradas transformações das culturas urbanas: reno-
vando os m o d o s de se estar junto — grupos juvenis, comunida-
des pentecostais, guetos sexuais — , desde aqueles c o m o os
habitantes de cidade respondem aos selvagens processos de ur-
banização que, ao m e s m o tempo que arrasam c o m a memória
da cidade, empatam com a modernidade dos tráficos e com a frag-
mentação das linguagens da informação. Vivemos e m cidades
desbordadas não apenas pelo crescimento dos fluxos informáticos,
m a s também por estes outros fluxos que a pauperização e a emi-
gração dos camponeses seguem produzindo, criando o grande pa-
radoxo de que, enquanto o urbano desborda a cidade, permeando
cada vez mais o m u n d o rural, nossas cidades vivem u m processo
de desurbanização, de ruralização da cidade, devolvendo vigência
a velhas formas de sobrevivência que inserem nas aprendizagens
e apropriações da modernidade urbana saberes, sentires e relatos
fortemente camponeses.
c) Os novos modos de se estar junto: as gerações dos mais
jovens vêem-se hoje convertidas e m indígenas de culturas den-
samente mestiças nos modos de falar e de vestir, na música que
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fazem e ouvem e nas grupalidades que conformam, incluindo


aquelas proporcionadas pela Internet. É no m u n d o dos jovens
urbanos que se fazem visíveis algumas das mudanças mais pro-
fundas e desconcertantes de nossas sociedades contemporâneas:
os pais já não constituem o padrão dos comportamentos, a es-
cola não é o único lugar legitimado do saber e tampouco o li-
vro é o eixo que articula a cultura. Os jovens vivem hoje a
emergência das novas sensibilidades, dotadas de u m a especial
empatia c o m a cultura tecnológica, que vai da informação absor-
vida pelo adolescente e m sua relação c o m a televisão à facili-
dade para entrar e mover-se na complexidade das redes informáticas.
Diante da distância e da prevenção com que grande parte dos
adultos sente e resiste a essa nova cultura — que desvaloriza e
torna obsoletos muitos de seus saberes e destrezas — , os jovens
experimentam u m a empatia cognitiva feita de u m a grande faci-
lidade na relação com as tecnologias audiovisuais e informáticas
e de u m a cumplicidade expressiva: com seus relatos e imagens,
suas sonoridades, fragmentações e velocidades, nos quais eles
encontram seu idioma e seu ritmo. Pois diante das culturas le-
tradas, ligadas à língua e ao território, as eletrônicas, audiovi-
suais, musicais ultrapassam essa adstrição, produzindo novas
comunidades que respondem a novos m o d o s de perceber e de
narrar a identidade. Estamos diante de novas identidades, de
temporalidades menos largas, mais precárias, mas também mais
flexíveis, capazes de amalgamar e de conviver c o m ingredientes
de universos culturais muito diversos. " E m nossos bairros po-
pulares temos camadas inteiras de jovens cujas cabeças dão aco-
lhida à magia e ao curandeirismo, às culpas cristãs c o m sua
intolerância piedosa, assim c o m o ao messianismo e aos
dogmas estreitos e hirtos, a utópicos sonhos de igualdade e li-
berdade, indiscutíveis e legítimos, como a sensações de vazio, à
Por uma outra comunicação 67

ausência de ideologias totalizadoras, a fragmentações da vida,


à tirania da imagem fugaz e ao som musical c o m o única lin-
guagem de fundo" (F. Cruz Kronfly).
d) As relações entre o sistema educativo e o ambiente edu-
cativo difuso e descentralizado e m que estamos imersos. Os
meios de comunicação e as tecnologias de informação signi-
ficam para a escola sobretudo u m desafio cultural, que deixa
visível a brecha cada dia maior entre a cultura a partir da qual
os professores ensinam e aquela outra a partir da qual os alu-
nos aprendem. Pois os meios de comunicação não somente
descentralizam as formas de transmissão e circulação do sa-
ber, m a s constituem u m âmbito decisivo de socialização, de
dispositivos de identificação/projeção de pautas de compor-
tamento, estilos de vida e padrões de gosto. É somente atra-
vés da assunção da tecnicidade midiática como dimensão
estratégica da cultura que a escola poderá inserir-se nos pro-
cessos de mudança que nossa sociedade atravessa. Para isso, a
escola deve interagir com os campos de experiência nos quais
se processam hoje as mudanças: hibridações da ciência com a
arte, das literaturas escritas e audiovisuais, reorganização dos
saberes a partir dos fluxos e redes pelos quais se move não
somente a informação, mas o trabalho e a criatividade, o in-
tercâmbio e disponibilização de projetos, pesquisas e experi-
mentações estéticas. E, portanto, interagir com as mudanças
no campo/mercado profissional, ou seja, com as novas figu-
ras e modalidades que o ambiente informacional possibilita,
c o m os discursos e relatos que os meios de comunicação de
massa mobilizam e c o m as novas formas de participação cidadã
que eles abrem, especialmente na vida local. Comunicação e edu-
cação reduzidas ao uso instrumental dos meios na escola,ficade
fora aquilo que seria estratégico pensar- a inserção da educação
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nos complexos processos de comunicação da sociedade atual


— o ecossistema comunicativo que constitui o ambiente circun-
dante.

3. A cultura como questão de comunicação

As relações da cultura com a comunicação têm sido freqüen-


temente reduzidas ao m e r o uso instrumental, divulgador e
doutrinador. Essa relação desconhece a natureza comunicativa
da cultura, isto é, a função constitutiva que a comunicação desem-
penha na estrutura do processo cultural, pois as culturas vivem
enquanto se comunicam umas com as outras e esse comunicar-
se comporta u m denso e arriscado intercâmbio de símbolos e sen-
tidos. Diante do discurso que vê as culturas tradicionais apenas
como algo a ser conservado, cuja autenticidade se encontraria
somente no passado e para o qual qualquer intercâmbio aparece
como contaminação, é e m n o m e daquilo que e m tais culturas tem
direito ao futuro que se faz necessário afirmar: não é possível ser
fiel a uma cultura sem transformá-la, sem assumir os conflitos que
toda comunicação profunda envolve.
O desconhecimento do sentido antropológico dessa reação
levou à proposta de comunicação puramente conteudista da cul-
tura-tema para divulgação nos meios de comunicação, e a u m a
política meramente difusionista da comunicação como simples
instrumento de propagação cultural. Existem, entretanto, outros
modelos de comunicação que, tanto a partir da pesquisa quanto
da experiência dos movimentos culturais, convergem para o re-
conhecimento da competência comunicativa das comunidades e
para a natureza negociada, transacional, da comunicação. Nessa
perspectiva, a comunicação da cultura depende menos da quantidade
Por uma outra comunicação 69

de informação circulante do que da capacidade de apropriação


que ela mobiliza, isto é, da ativação da competência cultural das
comunidades. Comunicação significará então colocação e m co-
m u m da experiência criativa, reconhecimento das diferenças e
abertura para o outro. O comunicador deixa, portanto, de figurar
c o m o intermediário — aquele que se instala na divisão social e,
e m vez de trabalhar para abolir as barreiras que reforçam a ex-
clusão, defende o-seu ofício: u m a comunicação na qual os emis-
sores-criadores continuem sendo u m a pequena elite e as maiorias
continuem sendo meros receptores e espectadores resignados —
para assumir o papel de mediador, aquele que torna explícita a
relação entre diferença cultural e desigualdade social, entre dife-
rença e ocasião de domínio e a partir daí trabalha para fazer pos-
sível u m a comunicação que diminua o espaço das exclusões ao
aumentar mais o número de emissores e criadores do que o dos
meros consumidores.
Essa reconflguração do comunicador c o m o mediador volta-
se basicamente para o entendimento da comunicação c o m o a
colocação em comum de sentidos da vida e da sociedade. O que
implica dar prioridade ao trabalho de ativação, nas pessoas e nos
grupos, de sua capacidade de narrar/construir sua identidade, pois
a relação da narração com a identidade não é meramente expres-
siva, mas constitutiva (P. Ricoeur): a identidade individual ou
coletiva não é algo dado, mas e m permanente construção, e se
constrói narrando-se, tornando-se relato capaz de interpelar os
demais e deixar-se interpelar pelos relatos dos outros (E. Levinas).
Tudo isso implica u m a "ética do discurso" que torne possível a
valorização das diferentes "falas", das diversas competências co-
municativas, sem cair no populismo e no paternalismo de "tudo
vale se vem de baixo" Pois o que a verdadeira comunicação põe
e m jogo não é a enganosa demagogia com a qual se conservam
70 Globalização comunicacional e transformação cultural

as pessoas em sua ignorância ou provincianismo, mas a palavra


que mobiliza as diferentes formas e capacidades de apropriar-se
do m u n d o e de dar-lhe sentido.
Finalmente, os processos de crescente violência, intolerân-
cia e falta de solidariedade que nossos países atravessam fazem
da comunicação u m espaço fundamental do reconhecimento dos
outros (Ch. Taylor). Pois todo sujeito ou ator social se constrói
na relação que possibilita a reciprocidade: não há afirmação du-
radoura do que é próprio sem reconhecimento simultâneo do
diferente. A o trabalhar no reconhecimento das demandas das
maiorias, tanto quanto nos direitos das minorias, no valor da
cultura erudita, c o m o naquele das populares e também da cul-
tura de massas, a nova tarefa do comunicador é menos a de
manejador de técnicas e mais aquela de mediador que põe e m
comunicação as diversas sociedades que conformam cada país
e nossos países entre si. E isso implica trabalhar especialmente
contra a crescente falta de solidariedade que é conseqüência das
políticas neoliberais e mercantilistas que, ao levar à privatização
os serviços públicos básicos, c o m o a saúde, a educação ou as
pensões por velhice, estão rompendo o elo da coesão consti-
tutiva entre gerações e arrastando as maiorias à desmoraliza-
ção e à desesperança, enquanto as minorias acomodadas se
encolhem e m sua privacidade cercada, dissolvendo pela raiz o
tecido coletivo e desvalorizando a experiência do coletivo,
identificada com o âmbito da insegurança, da agressividade e
do anonimato.
Apesar da fascinação tecnológica e do relativismo axiológico
que os manuais de pós-modernismo pregam, comunicar foi e
continuará sendo algo muito mais difícil e amplo que informar,
pois comunicar é tornar possível que homens reconheçam outros
homens e m u m duplo sentido: reconheçam seu direito a viver e
Por uma outra comunicação 71

a pensar diferente, e reconheçam a si mesmos nessa diferenç


ou seja, que estejam dispostos a lutar a todo momento pela de-
fesa dos direitos dos outros, já que nesses mesmos direitos estão
contidos os próprios.

4. A diferença e a solidariedade na sociedade


globalizada

É impossível desconhecer hoje em dia que nas sociedades lat


no-americanas os meios de comunicação, ao possibilitarem o
acesso a outras visões do m u n d o e a outros costumes,
contribuíram para moderar os sectarismos políticos e religio-
sos, relaxar as disposições repressivas e desarmar as tendên-
cias autoritárias. Porém, os novos ventos de fanatismo e a
propagação do fundamentalismo nada teriam a ver com os
meios de comunicação? Não há neles — na massa de seus dis-
cursos e de suas imagens — u m a forte cumplicidade com
esquematismos e maniqueísmos, com exaltações da força e da
violência que alimentam, secreta e lentamente, velhas e novas
modalidades de intolerância e integrismo? Cenário expressivo
como nenhum outro, isso sim, das contradições desta época,
os meios de comunicação nos expõem cotidianamente à di-
versidade dos gostos e das razões, à diferença, mas também à
indiferença, à crescente integração do heterogêneo das raças,
das etnias, dos povos e dos sexos no "sistema de diferenças"
com o qual, segundo J. Baudrillard, o Ocidente conjura e neu-
traliza os outros. C o m o se somente submetidos ao "esquema
estrutural das diferenças" que o Ocidente propõe nos fosse pos-
sível estabelecer relações com as outras culturas. Os meios de
comunicação constituem u m dos dispositivos mais eficazes
72 Globalização comunicacional e transformação cultural

desse "esquema", e isso através dos procedimentos mais opos-


tos. Aquele que busca nas outras culturas aquilo que mais se
parece com a nossa e para tanto silencia ou adelgaça os traços
mais conflitivamente heterogêneos e desafiantes. E para isso
não haverá outro remédio senão estilizar e banalizar, isto é,
simplificar o outro, ou melhor, descomplexizá-lo, torná-lo
assimilável sem necessidade de decifrá-lo. Não é c o m imagens
baratas e esquemáticas dos indígenas, dos negros, dos primi-
tivos que a imensa maioria dos discursos midiáticos, e espe-
cialmente da televisão, nos aproxima dos outros? E de forma
parecida funciona o mecanismo de distanciamento: exotiza-
se o outro, folcloriza-se o outro e m u m movimento de afir-
mação da heterogeneidade que, ao m e s m o tempo que o torna
"interessante", o exclui de nosso universo negando-lhe a capa-
cidade de interpelar-nos e questionar-nos (Muniz Sodré).
Mais que oposto, complementar da globalização, o m u n d o
vive u m processo expansivo de fragmentação e m todos os ní-
veis e e m todos os planos, desde o desmoronamento das na-
ções até a proliferação das seitas, desde a revalorização do local
à decomposição do social. Impõe-se então a pergunta: o cres-
cimento da consciência da diversidade não estaria desembocan-
do e m u m a relativização de qualquer certeza e na negação de
qualquer tipo de comunidade e m e s m o de sociabilidade? O
desenraizamento que tal fragmentação supõe ou produz — no
âmbito dos territórios ou dos valores — não estaria na base dos
novos integrismos e fundamentalismos? O elogio da diversida-
de fala ao m e s m o tempo de u m a sensibilidade nova e m relação
ao plural e m nossa sociedade, de u m a nova percepção da rela-
tividade e precariedade das ideologias e dos projetos de libera-
ção, m a s fala também da vertigem do ecletismo que, da estética
Por uma outra comunicação 73

à política, faz com que tudo valha igualmente, confusão em re-


lação à qual os mercadores realizam seus negócios, fazendo-nos
crer, por exemplo, que a diversidade e m televisão eqüivale à
quantidade de canais, de forma que essa quantidade acabe com
a qualidade e não ofereça mais que o simulacro oco da plura-
lidade.
Diante do enganoso pluralismo de muitos pós-modernos,
que confundem diversidade com fragmentação, e do funda-
mentalismo dos nacionalistas étnicos, que transformam iden-
tidade e m intolerância, comunicação plural significa, na América
Latina, o desafio de assumir a heterogeneidade c o m o u m valor
articulável à construção de u m novo tecido coletivo, de novas
formas de solidariedade, pois, enquanto nos países centrais o
elogio da diferença tende a significar dissolução da sociabilida-
de, na América Latina, como afirma N . Lechner, "a hete-
rogeneidade só produzirá dinâmica social ligada a alguma noção
de comunidade" N ã o certamente a u m a idéia de comunidade
"resgatada" de algum passado idealizado, mas àquela que assu-
m e as ambíguas formas e modalidades do presente: das comu-
nidades de bairro que se unem para dar à própria vida u m pouco
de dignidade humana ao m e s m o tempo que resgatam, c o m suas
formas tradicionais de comunicação — narrativas e musicais —
, as senhas de-sua identidade, até as novas comunidades que,
através das rádios e canais comunitários de televisão, conectam
as aldeias e os bairros urbanos na busca de u m a informação e
de u m a comunicação que responda a suas demandas de justiça
social e de reconhecimento político e cultural. E o que começa
a se fazer visível nas emissoras comunitárias é o novo sentido
que adquirem as relações entre cultura e política quando os
movimentos sociais de bairro ou locais encontram, e m u m es-
74 Globalização comunicacional e transformação cultural

paço público como aquele que uma rádio abre, a possibilidade


não de serem representados, m a s de serem reconhecidos: de fazer
ouvir a própria voz, de poder dizer-se c o m suas linguagens e
relatos.
Vista a partir da comunicação, a solidariedade desemboca na
construção de u m a ética que se encarrega do valor da diferença
articulando a universalidade h u m a n a dos direitos à particulari-
dade de seus m o d o s de percepção e expressão. Estamos nos refe-
rindo a u m a ética da comunicação que, na linha traçada por J.
Habermas e G. Vattimo, tem muito menos de certezas e abso-
lutização de valores que de possibilidades de encontro e de luta
contra a exclusão social, política e cultural, das quais são objeto,
e m nossos países, tanto as maiorias pobres quanto as minorias
étnicas ou sexuais. N a experiência de desenraizamento que tan-
tas de nossas gentes vivem, a meio caminho entre o universo cam-
ponês e u m m u n d o urbano cuja racionalidade econômica e
informativa dissolve seus saberes e sua moral, desvaloriza sua m e -
mória e seus rituais, a solidariedade que passa pela comunicação
nos revela u m duplo campo de direitos a impulsionar: o direito
à participação, enquanto capacidade das comunidades e dos ci-
dadãos de intervenção nas decisões que afetam seu viver, capaci-
dade que se mostra hoje estreitamente ligada a u m a informação
veraz e na qual o interesse c o m u m predomine sobre o mercantil;
o direito à expressão nos meios de massa e nos comunitários de
todas aquelas culturas e sensibilidades majoritárias ou minori-
tárias através das quais passa a ampla e rica diversidade de que
são feitos os nossos países.
Outro plano de solidariedade que passa pela comunicação é
aquele que permite fazer frente a u m a globalização que se cons-
trói a expensas da integração de nossos povos. N a América Latina,
Por uma outra comunicação 75

embora estreitamente unida pela língua e por amplas e densas


tradições, a integração econômica c o m que nossos países bus-
c a m inserir-se competitivamente no novo mercado mundial está
fraturando a solidariedade regional, especialmente através das
modalidades de inserção excludente dos grupos regionais (TLC,
Mercosul) nos macrogrupos do Norte, do Pacífico e da Europa.
As exigências de competitividade entre os grupos estão prevale-
cendo, sobre as de cooperação e complementaridade regional, o
que, por sua vez, se traduz e m u m a aceleração dos processos de
concentração do investimento, de redução do gasto social e de-
terioração da esfera pública. Pois a "sociedade de mercado" é co-
locada c o m o requisito de entrada na "sociedade da informação",
de m o d o que a racionalidade da modernização neoliberal subs-
titui os projetos de emancipação social pelas lógicas de u m a
competitividade cujas regras já não são colocadas pelo Estado,
m a s pelo mercado, convertido e m princípio organizador da so-
ciedade e m seu conjunto. As contradições latino-americanas que
atravessam e sustentam sua integração globalizada desembocam
assim de forma decisiva na pergunta a respeito do peso que as
indústrias da informação e da comunicação audiovisuais têm
nestes processos, já que estas indústrias trabalham no terreno
estratégico das imagens que estes povos fazem de si mesmos e com
as quais se fazem reconhecer pelos demais. Pois a identidade cul-
tural de nossos povos só poderá continuar a ser narrada e
construída nos novos relatos e gêneros audiovisuais se as indús-
trias comunicacionais forem controladas por políticas culturais
de integração latino-americana capazes de assumir o que os meios
de massa têm de (e fazem c o m ) cultura cotidiana da gente, e ca-
pazes t a m b é m de envolver explicitamente o sistema educativo na
transformação das relações da escola c o m os campos de expe-
76 Globalização comunicacional e transformação cultural

riência que configuram as novas sensibilidades, as novas lingu


gens e as escrituras informáticas.
N o início dos anos 90, o Grupo de Consulta da Unesco so-
bre o Espaço Audiovisual Latino-Americano, na Cidade do M é -
xico, traduziu tais preocupações e m perguntas: "Queremos ou
não preservar e fortalecer os recursos humanos, tecnológicos e
culturais do espaço audiovisual latino-americano que estamos
gerando há u m século? Desejamos sustentar e incrementar a ca-
pacidade produtiva de nossas próprias imagens ou aceitamos
nos converter coletivamente e m meros transmissores de ima-
gens alheias? Pretendemos nos ver nestes espelhos socioculturais
que constituem nossas telas ou renunciamos a construir nossa
identidade, à possibilidade de sermos coletivos e reconhecíveis?"
E posto que, e m u m a economia cada dia mais globalizada, o
âmbito de referência das políticas culturais ultrapassa o nacio-
nal, é preciso que nossos países se decidam a ajustar e intercam-
biar suas próprias produções, impulsionando ao m e s m o tempo
a exportação do nosso e a importação daquilo que, produzido
e m qualquer lugar do mundo, possa fortalecer e enriquecer a
identidade e a pluralidade de nossos povos. M a s tais perguntas
p o d e m ser atualizadas: " C o m o assumir a nova relação entre
cultura e comunicação no global sem que a experiência que hoje
temos da diversidade cultural desemboque na fratura do social
e n u m ceticismo radical acerca das possibilidades de convivên-
cia no local? C o m o dar conta das profundas mudanças que so-
frem as culturas cotidianas e as sensibilidades das pessoas de
m o d o que os processos de comunicação sejam capazes de tra-
duzir os novos "idiomas" e linguagens de valores e solidarieda-
des que se quer impulsionar? O que tem sido feito no campo da
comunicação para fazer frente à fragmentação e à exclusão so-
Por uma outra comunicação 77

ciai que a orientação mercantil da globalização está produzin-


do e m nossas sociedades?

5. Transformações do mapa cultural: pensando


a partir da Colômbia

Para manter e fomentar a identidade e as formas de comunicação


autônomas, as comunidades deveriam abordar as tecnologias de
comunicação de massas (...) Porém, uma vez mais, os movimentos
sociais e as forças de mudança política passaram por cima do po-
tencial destes meios e o que conseguiram foi desconectar a televi-
são ou utilizá-la de forma puramente doutrinária. Não se tentou
vincular a vida, a experiência, a cultura do povo com o mundo
das imagens e sons.

MANUEL CASTELLS

Até pouco tempo atrás, pensar a cultura era pensar um mapa cla-
ro, sem rugas: a antropologia encarregava-se das culturas primi-
tivas e a sociologia, das modernas. O que implicava duas idéias
opostas de cultura: para os antropólogos, tudo é cultura, pois no
m a g m a primordial e m que habitam os primitivos o machado é
tão cultura quanto o mito, a maloca é tão cultura quanto as rela-
ções de parentesco, o repertório das plantas medicinais ou aque-
le das danças rituais; já para os sociólogos, cultura é somente u m
tipo especial de atividades e objetos, de produtos e práticas, to-
dos pertencentes ao cânone das artes e das letras. Porém, na
modernidade tardia e m que agora habitamos, esta idéia dupla
de cultura se vê confrontada por u m duplo movimento que tor-
na tal separação nebulosa. D e u m lado, a cultura se especializa
cada dia mais, pois o mercado segmenta sempre mais a cultura
78 Globalização comunicacional e transformação cultural

em função de públicos mais e mais diversificados, até organizar


se — observa J. J. Brunner (1995) — e m u m sistema de máqui-
nas produtoras de bens simbólicos que são transmitidos a seus
públicos consumidores: é o que faz a escola com seus alunos, a
televisão com suas audiências, a igreja c o m seus fiéis, a imprensa
com seus leitores. Porém, ao mesmo tempo, a cultura vive outro
movimento radicalmente oposto: trata-se de u m movimento de
antropologização através do qual toda a vida social se torna, se
converte em cultura. C o m o se a infatigável máquina da racionali-
zação modernizadora, que só sabe separar e especializar, estivesse
girando e m círculo, a cultura escapa a qualquer comparti-
mentalização, irrigando a vida por inteiro. Hoje é sujeito/objeto
de cultura tanto a arte quanto a saúde, tanto o trabalho como a
violência, e também existe cultura política e cultura do narcotrá-
fico, cultura organizacional e cultura urbana, juvenil, de gênero,
profissional, audiovisual, científica, tecnológica etc.
Atenção, pois o que assistimos é u m movimento na cultura
que, ao chocar-se com u m a das dinâmicas-chave da moderniza-
ção — a separação e a especialização — , reintroduz na sociedade
u m anacronismo que remete não somente a coisas fora do tempo
que desajustam a hegemonia da "seta do tempo", na qual se baseia
o progresso, mas também à força que hoje adquire essa formação
residual da cultura que, segundo R. Williams (1980), se diferen-
cia das formações arcaicas por ser aquilo que, do passado, se
mostra todavia vivo, irrigando o presente do processo cultural
e m sua dupla possibilidade: a de recuperação pela cultura domi-
nante, m a s também a de sua capacidade de potencializar a resis-
tência e a impugnação. W Benjamin (1982) não falava de outra
coisa quando, em seus Fragmentos sobre filosofia da história, rei-
vindicava a possibilidade de "redimir o passado", isto é, de resga-
tar essa parte do passado "não realizado" que, distanciando-se
Por uma outra comunicação 79

diante da chantagem do presente, possibilita sua crítica e a in


guração de futuros distintos daqueles a que nos condena o peso
irredutível do presente.
A lição a extrair desses movimentos contraditórios na cultu-
ra e na sociedade deste fim de século e de milênio, eu pude
encontrá-la condensada e m u m a experiência colombiana: aquela
vivida pela cidade de Bogotá nos últimos anos. Partamos de u m a
constatação decisiva: o que constitui a força e a eficácia da cidade
globalizada não é o poder das tecnologias e m si mesmas, mas sua
capacidade de acelerar — de ampliar e aprofundar — tendências
estruturais de nossa sociedade. C o m o afirma F. Colombo (1983,
p. 47), "há u m evidente desnível de vitalidade entre o território
real e aquele proposto pela mídia. A possibilidade de desequi-
líbrios não deriva, sem dúvida, do excesso de vitalidade da mídia,
m a s provém antes da débil, confusa e estanque relação entre os
cidadãos do território real" É o desequilíbrio gerado por u m tipo
de urbanização irracional que é compensado de algum m o d o pela
eficácia comunicacional das redes eletrônicas'. E m cidades cada
dia mais extensas e desarticuladas, nas quais o desenraizamento
e o crescimento da marginalização se fazem acompanhar por u m a
perda acelerada da memória urbana, o rádio, a televisão e a rede
informática acabam conformando u m dispositivo de comuni-
cação capaz de oferecer formas de contraditar o isolamento dos
indivíduos, possibilitando a criação de vínculos culturais aos di-
versos agrupamentos e m que se fragmenta a sociedade. N o en-
tanto, dessa compensação até o disfarce culturalista dos
problemas sociais por trás das tensões e virtualidades geradas n o
âmbito comunicacional há u m a grande distância. Qualquer subs-
tituição do político pelo tecnológico, além de legitimar a
onipresença mediadora do mercado, encontra seu desmentido
mais completo no fosso insuperável que separa a leveza do mun-
80 Globalização comunicacional e transformação cultural

do da informação — a virtualidade de seus circuitos e redes, de


seus dispositivos de processamento e armazenamento, de sua
interatividade e velocidade — da espessura e peso do mundo da
incomunicação, os quais representam/produzem as implacáveis
e mescladas violências através das quais alguns atores — lumpens,
delinqüentes, narcotraficantes, guerrilhas — ultrapassam e des-
baratam as barreiras levantadas por outros atores e m seu esfor-
ço renovado para continuar demarcando a cidade e marcando a
exclusão, para isolar-se e proteger-se em conjuntos habitacionais
ou financeiros cercados e armados com policiais, cães e circuitos
eletrônicos de vigilância.
Nos últimos anos, Bogotá foi não apenas u m a das cidades
mais violentas do planeta, mas também o cenário de u m a das
experiências de gestão urbana mais inovadoras. Partindo de u m a
campanha eleitoral sem partido e inteiramente centrada e m sua
própria capacidade de convocação, a administração do ex-reitor
da Universidade Nacional, Antanas Mockus, pôs e m marcha u m
rico e complexo processo de luta contra as violências urbanas e
de reinvenção da política cultural. Dois fios atravessam e dina-
mizam de ponta a ponta esta experiência: u m a política cultural
que assume c o m o objeto promover e regular não as culturas
especializadas, mas a cultura cotidiana das maiorias, e o objetivo
estratégico de potencializar ao máximo a competência comuni-
cativa dos indivíduos e dos grupos como forma de resolver os
conflitos no âmbito da cidadania e dar expressão a novas formas
de inconformismo que substituam a violência física.
A essa nova idéia de política cultural chegou-se a partir da
diferenciação de contextos c o m o repertórios regulados de pos-
sibilidades de linguagem e de ação: "Entendemos que a repro-
dução cultural tinha sua própria lógica: talvez não fosse tão
potente quanto a reprodução econômica, porém também não
Por uma outra comunicação 81

era uma sua súdita elementar. Existe claramente um sistema de


limites culturalmente definidos, cuja aprendizagem e transmis-
são de u m a geração a outra é implícita; esse é o contexto da
família e da escola. N o entanto, o que acontece c o m os contex-
tos que têm a ver c o m os desconhecidos? Lá, na regulação de
comportamentos que não envolvem a reprodução cultural es-
pecializada (família, escola, igreja), estaria o lugar da cultura
cidadã, que é aquela na qual o que está e m jogo não é a cons-
ciência moral do indivíduo, nem tampouco a sanção jurídica de
u m a lei, mas a necessidade que temos do reconhecimento dos
demais" (A. Mockus, 1998, p. 18).
A esta primeira diferenciação de contextos, Antanas vai acres-
centar u m a outra, talvez não muito ortodoxa, mas politicamente
decisiva, entre o legal — constituído por normas especializadas
de ordem jurídica — , o moral — pertencente ao m u n d o indivi-
dual da satisfação interior e das culpas — e o cultural — auto-
regulação incorporada e m hábitos que acarretam direitos, deveres
e prazeres, cuja sanção é coletivo-comunitária. A idéia de fundo
é que o cultural (nós) medeia e estabelece u m continuum entre o
moral (indivíduo) e o jurídico (os outros), como demonstram
os comportamentos que, sendo ilegais ou imorais, são, todavia,
culturalmente aceitos pela comunidade. Fortalecer a cultura cida-
dã eqüivale então a aumentar a capacidade de regular os compor-
tamentos dos outros através do aumento da própria capacidade
expressiva e dos meios para entender o que o outro trata de di-
zer. Antanas chama isso de "aumento da capacidade de gerar es-
paço público reconhecido" (A. Mockus, 1998, p. 6). Armada
inicialmente com esta bagagem conceituai, a Prefeitura de Bogo-
tá contratou u m a pesquisa complexa sobre contextos de
cidadania, sentido de justiça, relações c o m o espaço público etc;
dedicou à sua campanha "Formar cidade" u m a soma enorme, 1 %
82 Globalização comunicacional e transformação cultural

da inversão prevista do Distrito Capital; e empreendeu sua luta


e m duas frentes — a interação entre estranhos e entre comuni-
dades marginalizadas — sobre cinco programas estratégicos: o
respeito às normas de trânsito (mímicos nas faixas de pedestres),
dissuasão do porte de armas (em troca de bens simbólicos), proi-
bição do uso indiscriminado de pólvora e m festejos populares, a
"lei zanahoria" (fixação do horário de u m a da madrugada para
o fechamento de estabelecimentos públicos que vendem bebidas
alcoólicas, c o m sugestão de coquetéis sem álcool) e a "vacinação
contra a violência", u m ritual público de agressão simbólica, es-
pecialmente entre vizinhos, familiares e contra os maus-tratos às
crianças.
O outro âmbito decisivo de políticas da administração
Mockus foi a política cultural encomendada ao Instituto Distrital
de Cultura, o qual, e m vez de continuar dedicando-se ao fomento
das artes, passou a encarregar-se da articulação dos vários e
muito diversos programas culturais do plano diretor da cam-
panha "Formar, cidade" na qual se inseriam tanto a cultura ci-
dadã quanto aquelas das instituições especializadas e m cultura
e das associações comunitárias dos bairros. O s estudiosos das
políticas culturais na América Latina (agrupados e m u m a co-
missão da C L A C S O ) passaram anos convencidos de que não
poderia existir u m a política cultural orientada para a cultura
cotidiana, já que esta não era n e m regulável, n e m subvencio-
nável. Só se poderia falar de política cultural e m sentido próprio
quando se tratava de culturas especializadas e institucionaliza-
das, como o teatro, a dança, as bibliotecas, os museus, o cinema
ou a música. Pois bem, o que as prefeituras de M o c k u s e
Bromberg possibilitaram — e isso deve ficar claro: não tanto
pelo que fizeram, mas pelo que as pessoas fizeram com as pos-
sibilidades abertas por eles — , através das propostas de "For-
Por uma outra comunicação 83

mar cidade", representou um desafio colossal para nossas con-


cepções acadêmicas das políticas culturais. O eixo da política
cultural foi a chamada "cultura cidadã", isto é, aquela que rege a
convivência social desde as relações com o motorista do ônibus
até o respeito aos sinais de trânsito, desde a resolução pacífica
de conflitos entre vizinhos até as regras de jogo cidadão entre
os grupos de jovens e no meio destes, desde a relação com o es-
paço público das calçadas, dos parques, das praças até o polê-
mico controle do horário noturno de fechamento dos bares. Foi
portanto a partir de políticas de geração e reconhecimento do
espaço público que se desenvolveram as políticas voltadas para
as culturas especializadas, e não ao contrário. E esta diretriz
permeou tanto o trabalho das instituições, através de seus agen-
tes, quanto aquele dos criadores ou dos profissionais de arte, que
inseriram seu trabalho no projeto "Formar cidade"
A ruptura e a rearticulação introduzidas soaram como blas-
fêmia para muitos, mas ela expressa, para u m país como a Co-
lômbia, a vontade das rupturas/propostas de que necessitamos
para transformar o medo e a agressividade e m criatividade, e é o
que pude constatar pessoalmente durante a avaliação das tarefas
e programas do Instituto Distrital de Cultura. A focalização da
cultura cidadã levou muitos artistas e outros trabalhadores cul-
turais a repensar seus próprios trabalhos à luz do seu ser cida-
dão. Desde a queda do muro de Berlim e do desaparecimento do
m u n d o socialista, muitos artistas de esquerda encontravam-se
mergulhados e m u m a profunda desmoralização e foram desper-
tados pelo chamado do "Formar cidade", onde reencontraram u m
sentido para seu "compromisso social", pois o trabalho nos bair-
ros converteu-se e m possibilidade concreta de recriar, através das
práticas estéticas, expressivas, o sentido de pertinência das comu-
nidades, a reescritura e a percepção de suas identidades.
84 Globalização comunicacional e transformação cultural

Redescobrindo-se como vizinhos, descobriam também novas for-


mas expressivas tanto nas narrativas orais dos velhos como nas
oralidades jovens do rock e do rap. U m exemplo precioso dessa
articulação entre políticas culturais cidadãs e especializadas é o
significado que veio adquirindo o espaço público e os novos usos
a que se prestou para a montagem de infra-estruturas culturais
móveis de uso coletivo. Devolver o espaço público às pessoas
começou a significar não somente o respeito de normas, mas sua
abertura para que as comunidades desenvolvam sua cultura e
para que cidadão signifique, ao m e s m o tempo, pertencimento,
participação e criação.
A o expor, diante dos diretores do programa e dos coordena-
dores de área das diversas localidades e m que se subdivide Bo-
gotá, o desafio teórico e poético que a complexa experiência
supunha para m i m , surgiu uma acalorada discussão. Alguns ar-
tistas expressaram seus temores acerca do perigo que a inserção
de seu trabalho cultural no programa de cultura cidadã implica-
va, pois, ao subsumir sua especificidade e m u m programa da
Administração Distrital, corria-se o risco de avalizar a política
oficial e suas autoridades. E m outras palavras, vários artistas se
perguntavam se o fato de viver tal experiência de bairro não po-
deria ser tomado c o m o u m aval à política da prefeitura. S e m
dúvida, foi justamente esse debate entre artistas sobre os riscos
que seus trabalhos corriam o que acabou de convencer-me da
importância estratégica da nova concepção de política cultural
que abria seu campo e m Bogotá. O que se fez visível ali foi o
desajuste profundo entre a nova política cultural e a política tal e
qual a entendemos, ou seja, seu enquadramento c o m o conser-
vadora ou liberal, de esquerda ou de direita. O que estávamos
descobrindo é que a política de verdade saíra de seus marcos,
desbordando suas instituições formais e seus atores tradicionais.
Por uma outra comunicação 85

Estávamos diante de uma recriação da política que deslocava os


artistas, c o m o havia tempos deslocara os politiqueiros: a que con-
siste n o exercer-se c o m o cidadão. E a partir disso a cidade emer-
gia c o m o espaço comunicacional que impõe conflitos e atores,
corpos e pulsões à cidade virtual.

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