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Função negocial e função social do contrato:


subsídios para um estudo comparativo

Eduardo NUNES DE SOUZA


Doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Pesquisador sênior do Instituto de Direito Civil.
Advogado.

ÁREA DO DIREITO: Civil; Teoria geral; Contratos

RESUMO: Este artigo propõe-se a analisar a ABSTRACT: This article proposes to analyze the
relação entre função negocial e função social do relation between contractual function and social
contrato, buscando delimitar tais conceitos, function of the contract, seeking to delimitate
evidenciar sua circunstancial aproximação no those concepts and to point out their
direito civil brasileiro atual e ressaltar sua circumstantial approximation in contemporary
relevância para o controle valorativo dos atos Brazilian Civil Law, as well as their relevance for
jurídicos. the axiological control of juridical acts.

PALAVRAS-CHAVE: Função negocial – Causa KEYWORDS: Contractual function – Cause –


contratual – Função social – Funcionalização – Social function of the contract – Functionalization
Abuso do direito – Merecimento de tutela. – Abuse of rights – Juridical merit.

SUMÁRIO: 1. Introdução; – 2. Função, funcionalização e função social: uma acidentada sobreposição; – 3.


Causa ou função negocial e suas múltiplas aplicações; – 4. Função social do contrato e sua circunstancial
aproximação com a causa; – 5. Conclusão; – 6. Referências

Le véritable voyage de découverte


ne consiste pas à chercher
de nouveaux paysages,
mais à avoir de nouveaux yeux.
– MARCEL PROUST
1. INTRODUÇÃO*

Existem, como se sabe, ao menos duas formas fundamentais de se


analisar determinado conceito no âmbito das ciências sociais: por seu aspecto estrutural
(vale dizer, pela descrição dos elementos componentes do objeto de estudo) ou por seu
perfil funcional (isto é, indagando-se, para além do retrato estático da estrutura, qual
finalidade ou interesse configura a dinâmica eficácia da noção sob análise).1 Na
primeira hipótese, afirma-se usualmente que o interesse do cientista repousa na pergunta

*
Agradeço à Profª. Maria Celina Bodin de Moraes por pavimentar o então árido caminho da causa
contratual (dentre tantos outros) e por formular as perguntas que orientaram este estudo. Agradeço, ainda,
ao meu aluno Rodrigo da Guia Silva pela revisão atenta dos originais e pela profícua reflexão conjunta.
1
BOBBIO, Norberto. Em direção a uma teoria funcionalista do direito. Da estrutura à função: novos
estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 53.
2

“o quê é?”, ao passo que, no segundo caso, confere-se maior importância ao


questionamento “para que serve?”.2
A importância metodológica na distinção entre estrutura e função reside
nas potencialidades que se abrem ao hermeneuta – particularmente no âmbito jurídico –
para a identificação da verdadeira natureza de seu objeto de estudo, a partir da adoção
de uma perspectiva funcional. Na análise funcional dos institutos jurídicos, é a função –
vale dizer, o conjunto dos efeitos produzidos, dos interesses promovidos pelo instituto –
que permitirá a atribuição de um nomen iuris e a consequente identificação de sua
disciplina jurídica.3 Mas não apenas isso: uma análise baseada no perfil funcional
permite ao intérprete emitir um juízo valorativo muito mais completo sobre os atos
jurídicos, indagando se seu exercício não é abusivo e se é merecedor da tutela do
ordenamento – indo, portanto, além do simples juízo de licitude proporcionado pelo
prisma estrutural.
O termo “função”, no entanto, comporta conteúdos diversificados. Na
linguagem coloquial, pode significar a atividade característica de certo órgão ou
aparelho, uma obrigação a ser cumprida, um cargo, uma profissão, a utilidade ou
serventia de uma coisa, uma reunião social, uma solenidade, uma festa ou, até mesmo,
um espetáculo teatral ou circense, conforme os bons dicionários. E, mesmo na melhor
técnica jurídica, o vocábulo destina-se a designar noções apenas parcialmente
coincidentes. Cumpre, assim, antes de se partir para um exame mais detido da função
negocial e da função social (objetos do presente estudo), realizar algumas distinções
terminológicas, essenciais para a compreensão dos temas que serão abordados.

2. FUNÇÃO, FUNCIONALIZAÇÃO E FUNÇÃO SOCIAL: UMA ACIDENTADA SOBREPOSIÇÃO

Estrutura e função associam-se, na ciência do direito, a dois momentos


históricos distintos na evolução do positivismo jurídico. Pretendido por Hans Kelsen
uma ciência pura, despida de influências valorativas ou ideológicas, o positivismo

2
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
642. No mesmo sentido: BOBBIO, Norberto. Em direção a uma teoria funcionalista do direito, cit., p. 53.
3
Afirma Pietro PERLINGIERI: “Estruturas idênticas se distinguem pela diversidade de sua função,
funções idênticas se realizam mediante estruturas diversas. [...] Na individuação da natureza dos institutos
concorrem estrutura e função, mas é esta última, como síntese dos efeitos essenciais e característicos,
produzidos ainda que de forma diferida, a tipificar a fattispecie” (O direito civil..., cit., p. 118).
3

clássico lançou seus alicerces em análise estritamente estrutural4 – daí ser chamado,
justamente, de positivismo formalista. Nem poderia ser diferente: investigar a função
de certo instituto jurídico corresponde justamente a identificar os interesses envolvidos
em sua tutela jurídica;5 o positivismo kelseniano, ao revés, ambicionava a mais absoluta
desvinculação a juízos de valor.6 A juridicidade do ato, nessa concepção, representava
apenas sua conformidade estrutural a um sistema jurídico; buscava-se, assim, dissociar
o ato jurídico da promoção de quaisquer valores ou interesses a ele relacionados.7
A transição do Estado liberal para o Estado do bem-estar social
provocaria substancial mudança nessa postura metodológica. Com efeito, ao Estado
liberal clássico cabia tão somente restringir a autonomia privada nas raras hipóteses em
que esta violasse a ordem pública ou os bons costumes; já no âmbito do Welfare State,
por outro lado, a previsão de certos direitos sociais, exigíveis pelo indivíduo em face do
Poder Público, tornou necessária a intervenção do Estado nas atividades dos
particulares, gerando fissuras na dogmática jurídica. Assim, a consideração
predominantemente estrutural ou funcional dos institutos jurídicos revela-se
intimamente vinculada à postura mais ou menos intervencionista do Poder Público nos
atos de autonomia privada – a surtir consequências imediatas sobre temas como a causa
e a função social do contrato, objetos centrais do presente estudo.
A necessidade de garantir direitos sociais mínimos ocasionou, no que
tange à técnica legislativa, a edição de leis especiais protetoras de minorias sociais,8
processo que se acelerou conforme a Constituição determinou a prevalente e precedente

4
A Teoria Pura do Direito, idealizada por Hans KELSEN, rejeitava a noção de que o Direito seria
essencialmente moral, não por negar importância à legitimidade moral da norma jurídica, mas justamente
por acreditar que semelhante aproximação, no campo teórico, conduziria a uma permanente legitimação
acrítica da ordem estatal (Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 78).
5
Sobre a importância dos interesses para a análise dos institutos e situações jurídicas, afirma Pietro
PERLINGIERI tratar-se da “perspectiva mais natural para rever criticamente a excessiva consideração
reservada ao perfil estrutural – que, frequentemente, é o critério classificatório preferido nas análises – e
para recuperar a tipologia histórico-social na ‘construção jurídica’” (O direito civil..., cit., p. 118).
6
Sublinha Norberto BOBBIO que, para KELSEN, a análise funcional e estrutural estavam
declaradamente separadas e, mais do que isso, que essa separação é a base teórica sobre a qual o autor
fundava a exclusão da primeira em favor da segunda. A análise funcional seria, assim, confiada aos
sociólogos e, talvez, aos filósofos (Em direção a uma teoria funcionalista do direito, cit., pp. 53-54).
7
“Com efeito, a ciência jurídica não tem de legitimar o direito, não tem por forma alguma de justificar –
quer através de uma Moral absoluta, quer através de uma Moral relativa – a ordem normativa que lhe
compete – tão somente – conhecer e descrever” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, cit., p. 78).
8
Segundo Gustavo TEPEDINO, com essa nova técnica legislativa, na qual a simples previsão de novos
institutos de direito privado cedeu lugar à criação de leis específicas, busca-se regulamentar
exaustivamente diversas matérias, congregando no mesmo diploma tanto normas de direito civil quanto
normas administrativas, processuais, hermenêuticas e mesmo penais. Faz-se alusão, nesse contexto, a uma
era dos estatutos (O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição. Problemas de direito
civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 4).
4

tutela da pessoa humana nas relações jurídicas. No que concerne à interpretação e


aplicação do direito, a análise exclusivamente estrutural dos institutos (vinculada a um
controle externo e excepcional da autonomia privada) foi paulatinamente precedida pela
análise funcional (compromissada com a promoção dos valores e interesses que o
constituinte e, em sua esteira, o legislador ordinário começavam a aportar para o interior
do ordenamento jurídico). Quanto mais a autonomia privada deixava de representar o
único e bastante fundamento axiológico dos negócios jurídicos – exigindo-se o respeito
ao interesse social paralelamente à regulamentação de interesses particulares –, mais se
somou à função repressiva-prescritiva do Direito uma nova, de cunho promocional.9
Em momento avançado do processo acima descrito, observou-se o
fenômeno da assim denominada funcionalização dos institutos jurídicos. Trata-se, em
síntese, de postura hermenêutica que reconhece que todo instituto jurídico deve ser
analisado prioritariamente à luz de sua função (vale dizer, tomando-se em conta seus
efeitos e os interesses por eles tangenciados), e que esta função deve ser compatível
com os valores que justificam sua tutela jurídica pelo ordenamento.10
Registra-se, desse modo, o salto qualitativo realizado pelo direito civil-
constitucional – que, partindo da adoção da análise funcional dos institutos (a qual já
poderia, por si mesma, ser denominada a “funcionalização” do direito civil),11 foi muito
além ao sustentar que a própria existência desses institutos só se justifica em função da

9
Analisa Norberto BOBBIO: “Nas constituições liberais clássicas, a principal função do Estado parece
ser a de tutelar (ou garantir). Nas constituições pós-liberais, ao lado da função de tutela ou garantia,
aparece, cada vez com maior frequência, a função de promover” (A função promocional do direito. Da
estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 13). Conforme observa
Gustavo TEPEDINO, a atuação legislativa deixa de ser genérica e neutra, passando a definir diretrizes
políticas, ao mesmo tempo em que incentiva, por exemplo, com subsídios fiscais os comportamentos que
melhor atendem a tais diretrizes (O Código Civil..., cit., p. 5).
10
A análise funcional, registre-se, não exclui a estrutural, ponto de partida natural do raciocínio do
intérprete. A função, porém, pode condicionar a estrutura, gozando, nesse sentido, não de exclusividade
ou de anterioridade, mas de prioridade valorativa (a respeito, v. Carlos Nelson KONDER. Contratos
conexos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 32). Com efeito, uma análise exclusivamente funcional não
seria desejável – nem, vale dizer, factível –, vez que, do mesmo modo que uma aplicação meramente
formal do Direito abre margem à arbitrariedade, uma visão exclusivamente funcional também geraria
insegurança e poria “em risco de desmoronamento todo o ordenamento jurídico” (ROCHA FURTADO,
Gabriel. Por um novo método hermenêutico?. Estudo monográfico apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da UERJ. Rio de Janeiro, 2011, p. 8. Originais gentilmente cedidos pelo autor).
11
Este primeiro sentido de “funcionalização”, nem sempre individualizado, é empregado, dentre outros,
por Carlos Nelson KONDER, segundo o qual, em um viés mais concreto e técnico, a funcionalização
“significa que no exame de um fato jurídico deve-se privilegiar o perfil funcional – os efeitos buscados, o
fim almejado – em detrimento do perfil meramente estrutural, pois aquele é o mais adequado para
individuar os interesses que as partes buscam realizar e tutelar” (Contratos conexos, cit., p. 32).
5

promoção dos princípios constitucionais.12 Com efeito, não faria sentido atentar aos
interesses consignados, por exemplo, em um negócio jurídico, se tais interesses não
pudessem ser valorados à luz de algum parâmetro – e este parâmetro há de residir na
tábua axiológica da Constituição, que passa a figurar como fundamento de validade, não
apenas formal, mas também material de todos os institutos de direito civil.13
A conveniente polissemia do termo “função” serviu, portanto, para
insculpir na noção de “funcionalização” não apenas a necessidade de uma análise
funcional (ou seja, não meramente estrutural), como também a afirmação de que todos
os atos, normas e situações jurídicas somente têm sua existência justificada em função
dos valores que orientam nosso ordenamento. Tais valores, em um ordenamento de base
personalista e solidarista como o brasileiro, necessariamente referir-se-ão à dignidade
humana e à solidariedade social.14 Não, porém, caso se tratasse de hipotético sistema
jurídico que privilegiasse unicamente a vontade individual, ou apenas o interesse da
coletividade. Em síntese, partindo-se de uma análise funcional, o parâmetro pelo qual
cada instituto jurídico pode ser valorado (funcionalizado) dependerá do ordenamento
em concreto.
Em nossa ordem jurídica, porém, tamanha relevância foi conferida ao
princípio da função social, e tão transformadora foi a adoção dessa postura solidarista
pelo constituinte de 1988 que, no confronto entre a função (leia-se, a síntese de
interesses) de cada instituto jurídico e os valores do ordenamento, o interesse social

12
A transição da análise simplesmente funcional de qualquer instituto para uma análise funcionalizada
aos valores do ordenamento pode ser observada, por exemplo, na teoria dos bens. Boa parte das
classificações dos bens no Código Civil leva em conta critérios funcionais (especialmente aquelas
relativas aos bens reciprocamente considerados). Uma análise ulterior poderia indagar, porém, se
determinado bem encontra-se destinado à promoção de valores juridicamente relevantes (assim, por
exemplo, se certo bem é essencial à dignidade de seu titular ao ponto de caracterizar um bem de família).
13
Esta noção qualificada de “funcionalização” tem sido associada, em estudos recentes, diretamente ao
caráter unitário do ordenamento: “a unidade do ordenamento é catalisadora da funcionalização de todo o
Direito à concretização dos valores constitucionais, visto que um sistema coeso mais facilmente caminha
em um mesmo sentido” (ROCHA FURTADO, Gabriel. Por um novo método hermenêutico?, cit., p. 10).
14
Note-se que, embora o binômio personalismo-solidarismo seja amplamente difundido como a diretriz
adotada pela Constituição de 1988, a relação entre esses valores não é pacífica. Com efeito, pode-se
entender a solidariedade, ora como contraponto à dignidade (tratando-se, portanto, de dois valores com o
mesmo grau de importância), ora como seu corolário (subordinado, portanto, à cláusula geral de tutela da
pessoa humana). A sutil alteração hierárquica entre esses valores revela importante postura ideológica do
intérprete. Em defesa da segunda concepção, enfatiza Maria Celina BODIN DE MORAES que, na
perspectiva solidarista, “a cooperação, a igualdade substancial e a justiça social se tornam valores
hierarquicamente superiores, subordinados tão somente ao valor precípuo do ordenamento, que está
contido na cláusula de tutela da dignidade da pessoa humana” (O princípio da solidariedade. Na medida
da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 264).
6

tornou-se o mais destacado parâmetro de aferição do merecimento de tutela15 dos atos


jurídicos. De fato, passou-se a afirmar que toda situação jurídica é dotada de relevância
social,16 entendimento que se revelou imprescindível para a efetiva transformação do
direito civil, setor tradicionalmente avesso à incidência (sobretudo, à incidência direta)
dos princípios constitucionais.
Mais uma vez, a polissemia do termo “função” contribuiu para que se
associasse à ideia de funcionalização um novo elemento: não apenas se deve realizar
uma análise funcional (mais que estrutural) dos institutos, e não apenas tal análise deve
verificar-se em função dos valores constitucionais, como, dentre esses valores, é
possível afirmar que a função social tornou-se o de maior destaque (na prática, muitas
vezes o único nomeadamente levado em consideração). A ênfase na superação do
individualismo em prol do solidarismo constitucional mostrava-se tão necessária que
mais de uma vez se equiparou diretamente o perfil funcional das situações jurídicas
subjetivas à sua relevância social.17 A sobreposição dessas três noções (não obrigatória
quanto à natureza dos termos, mas de enorme relevância para a mudança paradigmática
então pretendida) já tem sido notada por alguns autores, mas este parece ser o momento
adequado para explicitá-la e, em certa medida, desconstruí-la.
De fato, se for possível representar, simbolicamente, o esforço
hermenêutico em prol da funcionalização dos institutos jurídicos como o esforço de se
elevar um pêndulo, contra a força da gravidade, ao ponto mais alto de sua trajetória,
pode-se afirmar que, neste momento de retorno do pêndulo em direção ao ponto de
equilíbrio, cumpre diferenciar aqueles conceitos que, em um primeiro estágio, exigiram
a tácita equiparação da doutrina. Semelhante diferenciação somente poderia ser
realizada pelo observador de hoje, em posição privilegiada, que conta com mais de duas
décadas de difusão e sedimentação da metodologia civil-constitucional na doutrina

15
Sobre o escalonamento do juízo valorativo sobre os negócios jurídicos em três níveis distintos –
licitude, não abusividade e merecimento de tutela em sentido estrito –, seja consentido remeter a NUNES
DE SOUZA, Eduardo. Abuso do direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela.
Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 50. Rio de Janeiro: Padma, abr.-jun./2012.
16
Alude TEPEDINO à “socialização dos direitos subjetivos”, que vincula a proteção dos interesses
privados ao atendimento de interesses sociais, a serem promovidos na atividade econômica (Notas sobre a
função social dos contratos. Temas de direito civil, t. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 151).
17
A respeito do aludido perfil funcional, afirma Pietro PERLINGIERI tratar-se de “um aspecto
particularmente importante para a qualificação da situação, isto é, para a determinação da sua função no
âmbito das relações sócio-jurídicas. O ordenamento vigente conforma a função de cada situação subjetiva
em sentido social. O fenômeno pode ser mais ou menos relevante; por vezes, o é a ponto de transfigurar a
situação subjetiva. Existem situações que ‘são’ funções sociais, outras que ‘têm’ função social” (O direito
civil na legalidade constitucional, cit., pp. 670-671).
7

pátria (período que coincide, aproximadamente, com o tempo de vigência da própria


ordem constitucional de 1988). Uma vez demonstrada a necessidade da funcionalização
dos institutos de direito privado, tornou-se possível analisar, doravante de forma
autônoma, os limites e as possibilidades de dois alicerces desse processo: a função e a
função social.

3. CAUSA OU FUNÇÃO NEGOCIAL E SUAS MÚLTIPLAS APLICAÇÕES

O fenômeno da funcionalização estende-se tanto aos direitos e demais


situações jurídicas subjetivas, quanto aos negócios jurídicos e, de modo geral, a todos os
institutos de direito civil.18 Seu estudo ganha especial relevância em sede negocial, uma
vez que a análise funcional do direito se comunica diretamente, como visto
anteriormente, com uma intervenção mais ampla do Estado na autonomia privada. No
âmbito da teoria geral dos negócios jurídicos, o elemento mais tradicional a permitir a
análise do negócio sob seu perfil funcional tem consistido, em vários ordenamentos da
família romano-germânica, na causa. A sinonímia entre causa e função jurídica do
negócio é afirmada pela mais autorizada doutrina19 e resulta evidente da evolução
conceitual do próprio conceito, que se passa a expor.
A discussão atinente à causa dos negócios no direito civil surgiu na
França do século XIX, por força de expressa disposição do Code Napoléon, que incluiu
a “causa lícita na obrigação” no rol de condições essenciais para a validade de
determinado negócio jurídico.20 Preocupou-se o Código de 1804 – amplamente
inspirado nas lições do Traité de Droit Civil de Pothier, que, por sua vez, limitou-se a
reproduzir, na matéria, as ideias de seu antecessor, Jean Domat21 – com um problema
que, no direito brasileiro, encontra-se plenamente resolvido pela noção de objeto

18
P. todos, v. TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos, cit., p. 150.
19
V., por todos, Salvatore PUGLIATTI, segundo o qual: “[...] la causa del negozio è la sua funzione
giuridica fissata dalla sintesi dei suoi effetti (giuridici) essenziali” (Precisazioni in tema di causa del
negozio giuridico. Diritto civile: metodo-teoria-pratica. Milano: Giuffrè, 1951, p. 119).
20
“Article 1.108. Quatre conditions sont essentielles pour la validité d'une convention: le consentement
de la partie qui s'oblige; sa capacité de contracter; un objet certain qui forme la matière de
l'engagement; une cause licite dans l'obligation”.
21
O histórico é traçado por PLANIOL, Marcel. Traité élémentaire de droit civil, tome II. Paris: LGDJ,
1907, p. 342.
8

ilícito.22 Com isso, porém, introduziria o legislador francês no âmbito doutrinário um


debate infindável.
Poucos conceitos se revelam tão tormentosos para a doutrina quanto a
causa dos contratos. De fato, o número de qualificações pessimistas23 atribuídas à causa
pelos autores que a ela se dedicaram ao longo das décadas é superado apenas pelo
número de definições completamente distintas que os mesmos autores formularam na
tentativa de caracterizá-la. Sem prejuízo das dificuldades geradas por essa dissonância
de definições, o esforço dogmático na defesa da causa como aspecto relevante do
negócio jurídico sublinha a uníssona percepção da doutrina causalista quanto à
necessidade de se identificar uma função, um quid não estrutural, a qualificar e conferir
certa unidade lógica e axiológica ao negócio.
As primeiras definições de causa filiam-se à corrente, de matriz francesa,
que se poderia denominar atomista – na medida em que nenhuma delas permitiu
delimitar um conceito unitário de causa do negócio jurídico. Na verdade, em sua
primeira formulação de relevo, a causa representava um aglomerado de definições que
variavam de um negócio para outro (v.g., conforme o contrato fosse sinalagmático,
gratuito ou real). Como as obrigações podem originar-se de títulos com naturezas muito
diversas, também eram várias as definições de causa, sem que fosse possível delas
extrair uma ratio geral de identificação. Tais inconsistências já eram conhecidas por
Clóvis Beviláqua, que, na esteira das severas críticas desferidas à doutrina causalista
francesa, não incluiu no Código Civil de 1916 qualquer referência à causa.24
A expressa disposição do Código Napoleão exigiria, porém, o
desenvolvimento da doutrina da causa na França. Após a malograda tentativa de
explicar o tema de modo fragmentado, desenvolveu a doutrina francesa nova
formulação, eminentemente subjetivista, que associava a causa às motivações seguidas

22
Tal preocupação resulta ainda mais evidente do art. 1.131 do Code: “L'obligation sans cause, ou sur
une fausse cause, ou sur une cause illicite, ne peut avoir aucun effet”. A respeito, já PLANIOL apontava
a desnecessidade da causa para lidar com qualquer dessas hipóteses (Traité..., tome II, cit., p. 345).
23
Salvatore PUGLIATTI, por exemplo, afirma tratar-se da mais exuberante fonte de equívocos de toda a
teoria do negócio jurídico (Precisazioni in tema di causa del negozio giuridico, cit., p. 105).
24
Afirma Clóvis BEVILÁQUA a respeito da causa: “É ociosa essa cláusula e somente própria para gerar
confusões, em um assunto, jurídica e psicologicamente, claro. [...] E assim pensaram os autores do
Código Civil argentino, do Código suíço das obrigações, do alemão, e ainda do Código Civil português,
que não contemplaram essa condição da causa para a validade dos contratos” (Direito das obrigações.
Rio de Janeiro: Rio, 1977, pp. 159-160).
9

pelos contratantes.25 Se semelhante conceito de causa teve o mérito de levar em conta os


elementos do caso concreto para a determinação do fim buscado pelas partes,
permaneceu, por outro lado, atrelado às suas vontades individuais. Segundo essa
perspectiva, a causa passou a resumir-se a elementos do negócio que se aproximavam,
ora do motivo determinante expresso,26 ora do próprio objeto do contrato,27 ora de
recônditos motivos psicológicos.
Paralelamente à doutrina desenvolvida pelos franceses, também a
doutrina italiana passou a dedicar-se ao estudo do tema, por força de disposição do
Codice civile de 1942 – que alude à causa, desta vez, como um “requisito do contrato”,
sempre com o objetivo de verificar a validade negocial. O Código italiano, porém,
divergiu do francês ao dispor em momentos separados (respectivamente, os arts. 1.34328
e 1.34529) sobre a causa ilícita e o motivo ilícito, diferenciando, desse modo, causa e
motivo. Isso acarretou, o desenvolvimento de teorias que se poderiam agrupar sob a
alcunha de corrente unitária da causa, que substituiu as considerações sobre motivos
psicológicos, ou outros aspectos subjetivos da finalidade negocial, pela busca de uma
unidade funcional do contrato – inerente ao próprio negócio, e não mais às partes
individualmente consideradas.
A importância dessa mudança de perspectiva foi notável. De fato, os
motivos subjetivos levados em consideração pela doutrina francesa, por não se
encontrarem insculpidos no próprio conteúdo negocial, não se sujeitam a um controle
valorativo – são, por assim dizer, extrajurídicos, de tal modo que não é possível emitir

25
Cf. JOSSERAND, Louis. Les mobiles dans les actes juridiques du droit privé. Paris: Dalloz, 1928, p.
212.
26
O motivo só surte efeitos sobre a declaração de vontade quando expresso como razão determinante (art.
140 do Código Civil). Antônio JUNQUEIRA DE AZEVEDO ressalta a distinção tanto entre a causa e o
motivo (entendendo que uma causa reputada ilícita corresponde, na verdade, a um motivo determinante
ilícito) quanto entre a causa e o fato jurídico que dá origem a certa obrigação (como, por exemplo, na
expressão causa obligationis). A respeito, v. Negócio jurídico. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 153.
27
A causa não se confunde com o objeto, pois se este pode ser identificado independentemente do destino
atribuído pelas partes, a causa “desempenha um papel coordenador de toda a operação econômica,
exprime a tensão da vontade sobre um bem” (KONDER, Carlos Nelson. Causa do contrato..., cit., p. 44).
No mesmo sentido: FERRI, Giovanni Battista. Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico. Milano:
Giuffrè, 1968, p. 370; BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Campinas: Servanda, 2008, p.
263; AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 428.
28
“Art. 1.343. Causa illecita. La causa è illecita quando è contraria a norme imperative, all'ordine
pubblico o al buon costume (prel. 1, 1418, 1972)”.
29
“Art. 1.345. Motivo illecito. Il contratto è illecito quando le parti si sono determinate a concluderlo
esclusivamente per un motivo illecito comune ad entrambe (788, 14182)”.
10

um juízo de merecimento de tutela sobre eles.30 Uma das mais relevantes utilidades da
causa para o direito civil, por outro lado, reside justamente em possibilitar semelhante
juízo valorativo sobre os atos de autonomia privada, tendo sido este o mérito de todas as
teorias unitárias da causa, em suas diversas manifestações.
Dentre as teorias italianas sobre a causa, muito difundida foi a definição
de Emilio Betti, que encontrou na causa a função econômico-social do negócio jurídico,
síntese de seus elementos essenciais, como totalidade e unidade funcional.31 Muitos
autores consideram ser esta a definição de causa adotada pelo codificador brasileiro de
2002, uma vez que lançou mão da expressão “fim econômico ou social” ao elencar
parâmetros para a aferição do abuso do direito no art. 187 do Código Civil.32 Se a
função econômico-social do negócio, porém, constitui importante elemento para a
identificação do exercício disfuncional dos direitos, não parece, todavia, ser esta a
melhor definição da função negocial que deve orientar a análise do abuso do direito.33
Com efeito, se a formulação bettiana teve o mérito de trazer para o
conceito de causa a possibilidade de controle de merecimento de tutela do negócio
jurídico com base no critério do interesse econômico-social, trata-se de definição
criticável, ao menos, em duas frentes. De um lado, afirma-se que a fórmula “função
econômico-social”, ao enfatizar os interesses coletivos no controle valorativo dos
negócios, descuida dos interesses individuais, também relevantes para esse controle.34
De outra parte, alega-se que a definição de Betti faz equiparar a causa ao tipo

30
Entende Emilio BETTI que os motivos “não comportam uma valoração social positiva, enquanto não
passarem a fazer parte do conteúdo do negócio” (Teoria geral do negócio jurídico, cit., p. 258).
31
Merece destaque a definição formulada por Emilio BETTI: “[...] a causa ou razão do negócio se
identifica com a função econômico-social de todo o negócio, considerado despojado da tutela jurídica, na
síntese dos seus elementos essenciais, como totalidade e unidade funcional, em que se manifesta a
autonomia privada” (Teoria geral do negócio jurídico, cit., pp. 263-264).
32
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
33
Com efeito, embora o interesse social esteja incluído no âmbito da função negocial, o controle de
abusividade do exercício de situações jurídicas subjetivas deve levar em conta também a
disfuncionalidade em face dos interesses individuais dos contratantes ou de terceiros que transbordam a
formulação “função econômico-social”. Melhor considerar, assim, que o abuso do direito, embora tome
como um de seus indicadores mais relevantes a função econômico-social do negócio (assim como a boa-
fé objetiva e os bons costumes), baseia-se em uma noção mais ampla de função, reputada a síntese de
todos os interesses (individuais ou coletivos) tangenciados pelo negócio ou situação jurídica. A respeito,
v. NUNES DE SOUZA, Eduardo. Abuso do direito..., cit., pp. 68-74.
34
Sobre as críticas à causa bettiana, v. KONDER, Carlos Nelson. Causa do contrato..., cit., p. 47.
11

negocial,35 ignorando eventuais efeitos essenciais do negócio concreto, fundamentais


para a análise funcional a que se presta a figura da causa.
De fato, a aproximação entre essa definição de causa e o conjunto dos
elementos essenciais típicos do negócio (concepção que remonta aos vetustos
essentialia negotii já conhecidos pelo direito romano)36 é admitida pelo próprio Emilio
Betti.37 Conquanto atraente, sobretudo para fins de qualificação do negócio jurídico a
partir da causa, tal sobreposição entre causa e tipo contraria a concepção contemporânea
segundo a qual os efeitos concretamente produzidos pelo negócio podem (e devem)
condicionar a determinação da estrutura em abstrato.38 Realmente, embora seja inegável
que os esquemas negociais legalmente previstos (os chamados tipos) sejam o ponto de
partida tomado pelo intérprete para o procedimento de qualificação (entendido como a
identificação da disciplina aplicável ao contrato), não podem constituir seu ponto de
chegada – que deve consistir na avaliação da produção de efeitos, em concreto, do
negócio.
Em outras palavras, embora se saiba que o intérprete, inevitavelmente,
recorrerá ao modelo negocial abstrato para fins de qualificação contratual, afirmar que o
tipo basta para a sua qualificação equivaleria a reduzir o processo a uma análise
estrutural. Os elementos essenciais de cada tipo não passam, justamente, da estrutura do
negócio. O grande diferencial de uma análise a partir da causa reside, justamente, na
possibilidade de superar os modelos rígidos da estrutura para afastar ou atrair certos
efeitos jurídicos mais consentâneos com a função negocial de cada contrato em

35
Pietro PERLINGIERI critica as teorias objetivas ou unitárias da causa justamente por ocasionarem essa
aproximação: “tali ricostruzioni, nelle loro manifestazioni più diffuse, conducono alla identificazione
della causa con il tipo contrattuale, cioè con l’astratto schema regolamentare che racchiude l’operazione
posta in essere dai privati” (Manuale di diritto civile. Napoli: ESI, 1997, p. 369).
36
Sobre a teoria dos essentialia negotii, v., por todos, RÁO, Vicente. Ato jurídico. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 1981, p. 97.
37
Merece transcrição o trecho em que Emilio BETTI defende essa aproximação: “a noção da causa, como
característica do tipo do negócio, é paralela à teoria dos essentialia e dos naturalia negotii. [...] um
negócio concretamente realizado, seja ele qual for, só é negócio jurídico, qualificável como negócio de
um determinado tipo (ex., venda, locação, mandato), na medida, precisamente, em que cumpre a função
econômico-social que caracteriza o mesmo tipo. Mas esta função característica do tipo que se considera, e
que o direito protege, não é outra coisa senão a causa. [...] Por conseguinte, ao mesmo tempo que é
uniforme e constante em todos os negócios concretos que pertençam ao mesmo tipo, a causa é diferente
para cada tipo de negócio e serve para distinguir um tipo do outro tipo” (Teoria geral do negócio jurídico,
cit., pp. 268-269).
38
A atenção ao caso concreto mostra-se imprescindível porque, conforme critica Pietro PERLINGIERI,
“un modello di organizzazione di interessi che non costituisce una concreta regolamentazione dei
medesimi non può essere oggetto di un giudizio di liceità e di meritevolezza” (Manuale..., cit., p. 370).
12

concreto39 – eis porque se afirma que apenas a causa permite um adequado


procedimento de qualificação.40
Ademais, se causa e tipo correspondessem ao mesmo conceito, o que se
poderia dizer dos contratos atípicos? Tratar-se-ia de negócios abstratos, cuja causa seria
juridicamente irrelevante41 – e, portanto, alheios ao controle de merecimento de
tutela?42 Mais ainda: se não fosse possível encontrar uma disciplina jurídica para os
negócios não previstos pelo legislador – por meio do procedimento de qualificação,
permitido apenas pela análise da causa contratual –, isto equivaleria a negar, ao fim e ao
cabo, juridicidade aos contratos atípicos.43 O erro está em reduzir-se o regulamento
contratual (vale dizer, os termos previstos pelas partes) aos elementos essenciais de um
tipo legal. De fato, tais elementos podem integrar a causa contratual (dita causa
abstrata, por corresponder ao regramento convencionalmente estipulado na gênese do
contrato). A causa abstrata, porém, sintetiza todos os interesses perseguidos pelas partes
com o contrato. Todavia, tais interesses podem coincidir com elementos essenciais,
naturais ou acidentais de certo tipo, mas podem também, eventualmente, transbordar os

39
Lembra Pablo RENTERÍA que a qualificação causal supre as deficiências da estrutural, como na
distinção entre a compra e venda de coisa futura e a empreitada de lavor; embora estruturalmente
idênticas, a empreitada tem por objetivo a entrega de coisa feita sob medida para atender ao plano do
dono da obra, o que não ocorre na compra e venda (Considerações acerca do atual debate sobre o
princípio da função social do contrato. In BODIN DE MORAES, Maria Celina (coord.). Princípios do
direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 307).
40
Para exemplos práticos de qualificação contratual a partir da causa concreta, v., dentre outros: BODIN
DE MORAES, Maria Celina. O procedimento de qualificação dos contratos e a dupla configuração do
mútuo no direito civil brasileiro. Revista Forense, vol. 309. Rio de Janeiro: Forense, mar/1990;
TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade civil nos contratos de turismo. Temas de direito civil, t. 1. 4.
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; TEPEDINO, Gustavo. Questões controvertidas sobre o contrato de
corretagem. Temas de direito civil, t. 1. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; KONDER, Carlos Nelson.
Qualificação e coligação contratual. Revista Forense, vol. 406. Rio de Janeiro: Forense, nov-dez/2009.
41
Ressalta Maria Celina BODIN DE MORAES que a principal crítica à causa como síntese dos efeitos
essenciais diz respeito aos negócios abstratos, que produzem efeitos apesar de supostamente desprovidos
de causa. Refuta a autora: “os negócios abstratos não são negócios sem causa. A abstração significa
apenas que a causa pode ser irrelevante ou relevar somente sucessivamente (isto é, após a celebração do
negócio), sem com isso impedir a eficácia do negócio” (A causa dos contratos, cit., pp. 304-305).
42
Emilio BETTI buscava resolver o impasse alegando que os negócios atípicos contam, ao menos, com
uma “tipicidade social”: “para o lugar da rígida tipicidade legislativa, baseada num número limitado de
denominações, entra uma outra tipicidade, que [...] é muito mais elástica na configuração dos tipos, e, na
medida em que se realiza, remetendo para as valorações econômicas ou éticas da consciência social,
poderia chamar-se-lhe tipicidade social” (Teoria geral do negócio jurídico, cit., p. 281). Dissociando as
noções de causalidade e tipicidade, Maria Celina BODIN DE MORAES alude à necessidade de que o
negócio jurídico seja causal para que se possa avaliar seu merecimento de tutela: “O ordenamento civil
brasileiro não dá qualquer guarida a negócios abstratos, [...] exigindo, ao contrário, que os negócios
jurídicos sejam causais, cumpridores de uma função social” (A causa dos contratos, cit., p. 316).
43
Afirma-se, nesse sentido, que uma das finalidades do estudo da causa consiste em “dar juridicidade aos
negócios, em especial a contratos atípicos, mistos e coligados” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. A
causa dos contratos. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2010, p. 303).
13

elementos do tipo, congregar elementos de mais de um tipo, ou ainda não


corresponderem a tipo nenhum.
A qualificação lida, assim, com três fatores diferentes. Por simples
intuição, o raciocínio do intérprete provavelmente buscará prontamente a comparação
do negócio em exame com um tipo (abstrato esquema previsto pelo legislador e
expresso por certos elementos ditos “essenciais” à caracterização da fattispecie).44 A
qualificação, porém, não pode contentar-se com a subsunção estrutural a um tipo; deve,
em vez disso, partir do específico regulamento convencionado pelas partes, que sintetiza
os efeitos que elas consideram “essenciais” aos seus interesses. Esse regulamento
convencional pode ou não aproveitar-se da disciplina legal do tipo, sendo denominado
causa abstrata. Finalmente, sempre em na perspectiva funcional, sabe-se que os efeitos
concretamente produzidos pelo negócio podem contrariar o regulamento de interesses
inicialmente previsto pelas partes, mudando a qualificação do contrato (fala-se, então,
em causa concreta).45 Em síntese, o contrato nasce com uma qualificação apreensível a
partir de sua causa abstrata, mas a eficácia concretamente produzida pela atividade
contratual, sujeita a inúmeras vicissitudes, pode alterar essa qualificação, atraindo total
ou parcialmente uma disciplina originalmente alheia ao ato jurídico.
A questão engloba ainda uma segunda discussão – a saber: se a causa
constitui um elemento constitutivo do próprio negócio jurídico. A doutrina nacional
costumava admiti-lo, afirmando por vezes que os elementos essenciais dos negócios se
resumiam à vontade e à causa,46 sem embargo de um forte movimento anticausalista.47

44
Nas palavras de Emilio BETTI, “só em relação ao tipo do negócio pode ter sentido a valoração dos seus
elementos constitutivos como essenciais, naturais e acidentais. Essenciais são, precisamente, os elementos
necessários para constituir um negócio daquele determinado tipo que se considera, isto é, aqueles sem os
quais um negócio daquele tipo não poderia existir” (Teoria geral do negócio jurídico, cit., p. 268).
45
Maria Celina BODIN DE MORAES demonstra a complementariedade entre função negocial abstrata e
concreta: da primeira “se extrai o conteúdo mínimo do negócio, aqueles efeitos mínimos essenciais sem
os quais não se pode, em concreto – ainda que assim se tenha idealizado –, ter aquele tipo, mas talvez um
outro, ou mesmo nenhum. [...] Já a função concreta diz respeito ao efetivo regulamento de interesses
criado pelas partes, e não se pode, a priori, estabelecer, naquele particular negócio, quais efeitos são
essenciais e quais não o são. Para a qualificação do concreto negócio será necessário examinar cada
particularidade do regulamento contratual, porque uma cláusula aparentemente acessória pode ser, em
concreto, o elemento individualizador da função daquele contrato” (A causa dos contratos, cit., p. 304).
46
P. ex., RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Campinas: Bookseller, 2005, p. 320; SAN
TIAGO DANTAS, F.C.. Programa de direito civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 214.
47
Registre-se a resposta, célebre por sua excentricidade, de PONTES DE MIRANDA ao movimento
anticausalista: “Se fôssemos guiar-nos pela nota de Clóvis Beviláqua, todos os negócios jurídicos, em que
a causa não foi consignada, seriam abstratos. Nem o povo do imperativo categórico, os juristas alemães,
chegaram a tais extremos. [...] Algo de equivalente ao grito do professor de obstetrícia que dirigisse às
internadas: ‘Todos os recém-nascidos nasçam sem pernas’. Mas não nascem em milhões” (Tratado de
direito privado, t. 3. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 100).
14

O Código Civil de 2002, na esteira do diploma anterior, e contrariamente aos modelos


francês e italiano, não previu a causa como elemento do negócio, restringindo-se à
declaração de vontade, ao objeto e à forma.48 Boa parte da doutrina contemporânea,
porém, admite a causa como elemento do negócio jurídico, entendendo ser esta a
melhor solução para garantir que todos os atos de autonomia privada patrimonial se
sujeitem a um controle de merecimento de tutela.
Em um aparente paradoxo, porém, é exatamente porque a causa permite
um controle valorativo (funcional) sobre os contratos que ela não deveria ser
considerada um elemento (estrutural) deles.49 O estudo da causa deve corresponder,
antes de tudo, a uma postura metodológica do intérprete, no sentido de analisar, por uma
perspectiva funcional, a estrutura negocial (composta de elementos essenciais, naturais e
acidentais). Todas as figuras relacionadas a essa postura funcional, dinâmica e atenta ao
controle valorativo do direito se encaixam mal nas classificações criadas sob a ótica
estrutural. Assim, por exemplo, os atos abusivos não se enquadram perfeitamente na
classificação que divide os atos jurídicos entre lícitos e ilícitos, justamente porque esta
classificação parte de uma perspectiva estrutural, ao passo que a abusividade só pode ser
detectada pelo prisma funcional.50 Analogamente, a causa, por sua própria natureza
funcional, é incompatível com a classificação dos elementos (estruturais) do negócio.
Por essas razões – e apenas por elas – a opção do legislador ao não inserir
a causa dentre os elementos do negócio jurídico parece ter sido a mais adequada; 51 isto
não deve significar, porém, um arrefecimento do causalismo, mas, ao contrário, seu

48
“Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível,
determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei”.
49
Assim reconhece Antônio JUNQUEIRA DE AZEVEDO: “Diz-se também, especialmente nos países
causalistas, que a causa, entendida, pois, como ‘função’, é ‘elemento constitutivo’ do negócio. Ora, isso
envolve a insuperável contradição de colocar a função como fazendo parte do negócio, quando jamais a
função de um pode ser, ao mesmo tempo, elemento constitutivo dele” (Negócio jurídico, cit., pp. 153-
154). No mesmo sentido, Francisco AMARAL (Direito civil: introdução, cit., p. 425). Contrariamente,
nos ordenamentos em que a causa é referida por lei como elemento, afirma-se que ela seria um elemento
sui generis, já que representaria fator de coesão de todos os outros elementos (v., exemplificativamente,
FERRI, Giovanni Battista. Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, cit., p. 372).
50
Tem-se buscado superar esta dificuldade, bem como aquela criada pelo art. 187 do CC (que reputa o
ato abusivo um “ato ilícito”), reunindo ilícito e abuso como espécies do gênero “atos antijurídicos” (v.
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina et al. Código
Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 342).
51
Nesse sentido: “talvez não tenha andado mal o Código ao não incluir a causa no elenco de requisitos de
validade do negócio jurídico (art. 104). Afinal, a causa não é um elemento essencial do negócio como são
os demais requisitos. A causa é um requisito de outra ordem, é um quid que ilumina o contrato na sua
dimensão de valor e de regulamento de interesses. Daí que o melhor seja prevê-la isoladamente tal como
uma cláusula geral, o que evitaria, de passagem, as confusões suscitadas naqueles ordenamentos em que a
causa aparece junto com os demais requisitos” (RENTERÍA, Pablo. Considerações..., cit., pp. 300-301).
15

fortalecimento. A análise funcional mostra-se um imperativo inafastável para a


promoção dos valores e princípios orientadores do ordenamento. Nesse sentido, mesmo
os autores que entendem ser a causa um elemento do contrato fazem-no com vistas a
aferir o merecimento de tutela do ato negocial a partir da função. O enfoque, como se
nota, repousa muito mais sobre a qualificação que sobre o controle valorativo.
A superação das críticas à definição bettiana de causa pode ser
encontrada no pensamento de Salvatore Pugliatti, para quem a causa representaria a
função jurídica do negócio, isto é, a síntese de seus efeitos essenciais.52 A preocupação
com a juridicização da causa, caracterizada por aspectos essencialmente do âmbito do
Direito (a saber, os efeitos jurídicos), revela-se evidente na definição – que teve, porém,
como seu maior mérito a consideração das características do caso concreto para a
identificação da causa negocial. De fato, ao atentar para os efeitos produzidos pelo
negócio, o autor deslocou a discussão da causa do campo (estático) dos elementos
típicos para o aspecto (dinâmico) da eficácia concreta, permitindo um controle muito
mais eficiente do merecimento de tutela do ato.
Em feliz representação, Pugliatti afirma que a causa apresenta,
normalmente, uma “força centrípeta”,53 vale dizer, representa um núcleo que tende a
atrair para si todos os elementos que compõem o negócio jurídico – aí incluídos não
apenas os elementos caracterizadores do tipo, como também aspectos acessórios quanto
ao tipo, mas relevantes para as partes. Tem-se, como na formulação bettiana, uma figura
que cria para o negócio uma síntese funcional própria, resultante do somatório de todos
os interesses essenciais ao contrato (e, por isso mesmo, independente deles), porém,
desta vez, atenta ao escopo prático efetivamente realizado pelas partes.
Nessa direção, deve-se visualizar na causa o fator que sintetiza a
globalidade do regulamento de interesses previsto pelas partes para o negócio, a

52
No original, “sintesi degli effetti giuridici, sintesi degli effetti pratici a cui tende il soggetto”
(PUGLIATTI, Salvatore. Precisazioni in tema di causa del negozio giuridico, cit., p. 111).
53
Veja-se a transcrição completa do trecho, no original: “La causa è elemento – ci sia consentita
l’immagine – che normalmente, rimanendo occulta e in quiescenza, esprime una considerevole forza
coesiva ed attrattiva rispetto agli elementi constituendi la compagine strutturale del negozio, ed anche
una forza centripeta rispetto a determinazioni accessorie del contenuto di esso. Ma quando, in virtù di
forze esterne, è costretta ad abbandonare il suo normale stato di quiete ed a manifestarsi, ha la forza di
distruggere l’intera compagine negoziale, o, sviluppando in forza centrifuga la primitiva forza centripeta,
di escludere almeno dal contenuto del negozio taluni effetti che sono con essa incompatibili”
(PUGLIATTI, Salvatore. Precisazioni in tema di causa del negozio giuridico, cit., p. 114).
16

permitir sua valoração à luz dos princípios do ordenamento.54 É nesse sentido que Pietro
Perlingieri, formulando sua própria conceituação de causa, afirma ser esta a função
econômico-individual do negócio, a indicar o valor e o alcance que as partes conferiram
à operação econômica.55 A vantagem na formulação “econômico-individual” está em se
ressaltar que a causa resulta da objetivação, no negócio, das finalidades subjetivas
perseguidas pelas partes;56 não significa, porém, que a causa não atraia para a síntese
funcional do contrato também interesses sociais – muito menos, que não deva ser
valorativamente apreciada à luz de tais interesses.57
O problema da causa dificilmente será pacificado na doutrina. Não
bastasse tratar-se de mecanismo de controle sobre a autonomia privada (tema que
sempre suscita vivas discussões e os mais diversos posicionamentos doutrinários), a
figura da causa ainda tem sido utilizada, ao menos, para dois propósitos bastante
distintos no âmbito do direito civil: i) a qualificação dos negócios jurídicos, de modo a
permitir a identificação da disciplina jurídica aplicável a cada contrato;58 e ii) o controle
valorativo desses mesmos negócios, servindo de base tanto para a verificação de
exercício disfuncional (abusivo) de posições contratuais quanto para a aferição do
merecimento de tutela à luz da promoção da função social e de outros princípios de
grande relevância (a justificar seu tratamento jurídico diferenciado).59
Como se sabe, toda conceituação científica volta-se para um interesse ou
finalidade perseguidos pelo observador. Assim também ocorre com a causa: à primeira

54
Referindo-se ao ordenamento italiano, observa G.B. FERRI que a causa é o elemento que relaciona os
sujeitos à operação econômica, a ressaltar “la necessità di valutare l’operazione negoziale, alla luce di
come le parti l’hanno configurata e di quello che le parti, con esso, si ripromettevano di raggiungere”
(Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, cit., pp. 372-373).
55
No original, leciona Pietro PERLINGIERI representar a causa “la funzione economico-individuale,
indicando com tale espressione il valore e la portata che all’operazione nella sua globalità le parti stesse
hanno dato, cioè il valore individuale che uma determinata operazione negoziale, considerata nel sua
concreto atteggiarsi, assume per le parti” (Manuale di diritto civile, cit., p. 370).
56
Afirma Giovanni Battista FERRI que o interesse na realização de um negócio deve ser avaliado pelo
ordenamento como interesse individual justamente porque a normativa negocial e a respectiva
experiência econômica são individuais (Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, cit., pp. 373-374).
57
V. KONDER, Carlos Nelson. Causa do contrato..., cit., p. 51.
58
Afirma Maria Celina BODIN DE MORAES que a qualificação contratual (vale dizer, a identificação
de elementos essenciais a certo contrato) é mais uma função da causa negocial. “A causa releva, por
exemplo, quando se tem de saber a que negócio jurídico pertence o efeito que se analisa. Somente ao se
estabelecer o nexo de causalidade entre o efeito e o negócio é que se pode determinar, com pertinência, a
disciplina a ele aplicável” (A causa dos contratos, cit., p. 293).
59
Esta dupla aplicação pode ser percebida a partir das consequências do descumprimento da função social
do contrato. Anota Carlos Nelson KONDER: “A consequência da proteção aos interesses da coletividade
pode ser não apenas a privação de efeitos dos negócios que afrontam tais interesses, mas também a
conservação ou o tratamento jurídico diferenciado de um contrato que tenha grande repercussão no
atendimento de um interesse socialmente relevante” (Causa do contrato..., cit., p. 68).
17

vista, sua definição parece depender da necessidade específica do intérprete, seja no


sentido de qualificar o contrato, seja no sentido de valorá-lo. Nesse diapasão, o conceito
pugliattiano de causa mostra-se mais adequado para a primeira tarefa (na medida em
que enfatiza os efeitos produzidos e os aspectos característicos do contrato em
concreto), ao passo que a causa bettiana, ou a formulação “econômico-individual”
proposta por Perlingieri, acenam em direção à segunda (concentrando-se na natureza
funcional da causa, a identificar os interesses subjacentes ao negócio). E, com efeito,
não é raro encontrar autores que, conscientes dessa pluralidade de aplicações,
congregam duas ou mais formulações para definir a mesma figura.60
Em outras palavras, a causa contratual tem sido associada a mais de uma
definição no âmbito do estudo dos negócios jurídicos porque não constitui,
propriamente, um objeto desse estudo, mas sim, em última instância, um instrumento
útil a ele. Investigar a causa equivale a buscar tudo aquilo que vai além de um simples
retrato estático do ato (a estrutura: partes, objeto, forma); faz-se referência, portanto, ao
prisma dinâmico, funcional, por meio do qual o intérprete passa a observar o negócio.
Apenas nessa perspectiva, em aparente paronímia dogmática, poder-se-ia
dizer que o termo causa atende a, pelo menos, dois conceitos distintos, funcionando
como chave de acesso, tanto à síntese dos interesses tangenciados pelo negócio, quanto
à sua mínima unidade de efeitos – afinal, são estes os fatores que se revelam quando se
analisa dinamicamente um ato de autonomia privada. Contudo, no âmbito (anterior) de
uma epistemologia da hermenêutica jurídica (da qual a causa, agora sim, constitui
objeto de estudo), a suposta dicotomia conceitual se dissolve: aqui, a causa pode ser
compreendida simplesmente como a representação dinâmica do negócio jurídico, em
superação da visão exclusivamente estruturalista.61
Ao estudioso do tema resta um único (mas expressivo) alento: pode-se
afirmar, com alguma segurança, que os autores contemporâneos que se dedicaram à
causa começam a divergir justamente no ponto a partir do qual a fascinante riqueza
teórica da matéria supera as consequências práticas da própria divergência. Vale dizer:
existe certo consenso doutrinário quanto à relevância da causa para a operacionalização
da análise funcional dos negócios jurídicos (e, de fato, esta constitui a mais importante

60
Alude-se mesmo ao “conceito polivalente de causa” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. A causa
dos contratos, cit., pp. 299 e ss.).
61
Reitera-se, com isso, o entendimento segundo o qual a causa não constituiria um elemento do negócio
jurídico: em uma perspectiva estrutural sequer se indagaria da causa, associada à perspectiva funcional.
18

conclusão a ser extraída do tema). Os posicionamentos divergem a partir deste ponto,


como decorrência de adaptações dos conceitos formulados por cada autor aos seus
próprios pressupostos teóricos. E, se seu estudo se mostra imprescindível para um
emprego mais técnico e preciso da causa de acordo com as múltiplas necessidades do
intérprete, a simples existência de tais divergências não obsta a aplicação prática da
função negocial – ao contrário, enriquece-a.
Considerando-se a causa ou função negocial a síntese correspectiva de
todos os interesses abrangidos pelo contrato (analisado em uma perspectiva funcional,
mais ampla que a estrutura prevista pelas partes ou pelo tipo negocial), não seria
irrazoável afirmar que também interesses socialmente relevantes se encontram incluídos
no âmbito da causa.62 Com efeito, se todos os negócios de autonomia patrimonial são
dotados de uma função social (vale dizer, atingem interesses e valores socialmente
relevantes, havendo mesmo autores que vinculam inclusive a autonomia existencial ao
interesse social),63 pode-se concluir que essa função social também está contida na
função negocial.64

4. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E SUA CIRCUNSTANCIAL APROXIMAÇÃO COM A

CAUSA

Poucos princípios representam de modo tão emblemático a reformulação


do direito civil à luz do solidarismo constitucional quanto o princípio da função social.65
Reconhecer sua incidência sobre todo o ordenamento significa afirmar, no âmbito do

62
Nesse sentido, reconhece Pietro PERLINGIERI que o perfil funcional congrega interesses individuais e
coletivos: “é ao mesmo tempo normativa, econômica, social, política e por vezes psicológica” (Perfis do
direito civil: introdução ao direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 96).
63
Pietro PERLINGIERI, p. ex., referindo-se ao ordenamento italiano, define a autonomia privada como
“a atuação não somente de direitos subjetivos mas também de deveres de solidariedade e, por vezes, de
específicas obrigações legais de contratar [...]. Solidariedade não somente econômica mas [...] também
social e familiar [...]. Tome-se, como exemplo, o vasto campo dos atos de disposição do próprio corpo e
especialmente os transplantes” (Perfis do direito civil, cit., p. 19. Grifou-se). No entanto, as explicações
mais razoáveis para uma suposta função social nas situações existenciais sugerem que essa função social
não seria outra que a tutela da própria dignidade dos respectivos titulares – não distando da premissa, já
enunciada por JHERING, segundo a qual a defesa da liberdade de cada indivíduo equivale à defesa da
liberdade de todos. Como se percebe, tal explicação em nada contribui para a atual carência de critérios
objetivos de valoração do exercício da autonomia existencial. A respeito, cf. Eduardo NUNES DE
SOUZA. Abuso do direito..., cit., p. 88.
64
Cf. NUNES DE SOUZA, Eduardo. Abuso do direito..., cit., p. 73, onde se expõe o tema mais
detidamente.
65
Judith MARTINS-COSTA, por exemplo, considera que a função social “constitui, em termos gerais, a
expressão da socialidade no Direito Privado” (Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos.
Revista Direito GV, vol. 1, n. 1, maio/2005, p. 41).
19

direito civil, que nenhum instituto, situação jurídica ou ato de autonomia patrimonial
pode ser reconhecido pelo sistema se não respeitar e buscar promover interesses
socialmente relevantes. Sustenta-se, nesse sentido, que a função social não representa
uma simples norma de ordem pública, como as que limitavam externamente o exercício
da autonomia privada no Estado liberal, mas que conforma internamente todas as
situações jurídicas subjetivas patrimoniais.
A mudança de perspectiva é sensível: o interesse social passa a integrar o
próprio conceito da situação jurídica subjetiva patrimonial, de modo que a liberdade de
contratar ou o direito de propriedade já nascem contendo em sua definição o respeito à
função social e o compromisso com sua promoção. Na perspectiva que interessa ao
presente estudo, pode-se compreender que o interesse social integra a função de cada
situação jurídica subjetiva patrimonial desde a sua gênese – no caso dos negócios
jurídicos, portanto, ele integra a sua causa, compreendida justamente como a mínima
unidade de efeitos que sintetiza todos os interesses tangenciados pelo ato.
Nesse cenário, caberia indagar: no âmbito dos contratos, estaria a função
social reduzida a um aspecto da causa negocial? Com efeito, por sua própria definição,
função social e função negocial representam, necessariamente, noções distintas: a
segunda engloba, não apenas os interesses da coletividade, como também interesses
individuais (das próprias partes, ou de terceiros). No entanto, se o interesse social se
encontra insculpido no núcleo funcional do negócio a que se denomina causa contratual,
haveria vantagem em seu tratamento como figura autônoma?
A resposta é afirmativa, por força de uma singela distinção: embora
ambas se destinem, fundamentalmente, ao controle dos atos de autonomia privada
patrimonial, e embora a função social, de fato, represente parte constitutiva da causa do
contrato, nem todos os efeitos da função social se esgotam no controle axiológico
proporcionado pela causa ou função negocial. Em outras palavras, a função social
permite a realização de um juízo valorativo (diga-se, de uma análise funcional) também
na medida em que compõe a causa contratual, mas não somente.
A análise funcional permite a realização de, ao menos, duas espécies
diferentes de juízo valorativo sobre os atos de autonomia privada: um de natureza
negativa, outro de natureza positiva.66 De um lado, tem-se o juízo de abusividade (ou,

66
Vale notar que, paralelamente a estas duas formas de controle funcional, existe, ao menos, uma terceira
espécie de controle, anterior a elas, de índole negativa e baseada em análise estrutural: o juízo de licitude.
20

de modo mais técnico, de disfucionalidade), que identifica se o exercício de


determinada situação jurídica subjetiva se dá de acordo com a sua função; trata-se de
juízo eminentemente negativo, vale dizer, que reprime exercícios disfuncionais por
meio de sanções negativas (a abstenção do exercício, a responsabilidade civil na
hipótese de dano, etc.). Nos contratos, a abusividade será sempre identificada diante da
contrariedade do exercício da posição contratual por uma das partes à causa ou função
negocial; semelhante descompasso pode ser evidenciado, em grande parte das vezes,
pelos parâmetros da boa-fé objetiva e da função social.
De outra parte, tem-se um segundo juízo valorativo, igualmente de índole
funcional, porém de natureza positiva, que poderia ser denominado juízo de
merecimento de tutela. A rigor, todo juízo valorativo sobre certo ato jurídico diz
respeito ao seu merecimento, ou não, de tutela jurídica; o merecimento de tutela a que
se alude aqui (denominado meritevolezza pela doutrina italiana) é mais específico
justamente por sua forma de atuação: trata-se de um mecanismo promocional, vale
dizer, não repressivo, que lança mão de sanções positivas67 (incentivos e benesses
juridicamente conferidas) ao exercício de certa situação jurídica que busque promover
os valores tutelados pelo ordenamento. Quase onipresente na consideração da
observância deste “dever promocional” está a aferição do cumprimento da função
social.
Em uma palavra, não basta que o ato seja (estruturalmente) lícito; seu
exercício deve ser, também, não abusivo (sob pena de poder ser reprimido) e, ainda,
merecedor de tutela (sob pena de receber menor proteção do que outros interesses que
se revelem mais consentâneos com os valores do ordenamento).68 Como se pode notar,
no que tange ao controle valorativo das relações contratuais, a função social será levada
em conta tanto para a identificação da abusividade (no que será avaliada no âmbito
maior da causa) quanto para a aferição do merecimento de tutela. Justamente por essa
segunda aplicação, não faria sentido reduzir a função social dos contratos à sua causa.69

67
Registra BOBBIO a passagem de um controle passivo (voltado a desincentivar ações reprováveis) para
outro ativo (direcionado a favorecer ações desejadas); este último prevê sanções positivas, a cujos
destinatários se passam a conferir direitos, e não deveres (A função promocional do direito, cit., p. 19).
68
De fato, segundo Pietro PERLINGIERI, se os valores constitucionais impõem plena concretização, não
se pode limitar a valoração do ato ao mero juízo (negativo) de licitude: “não basta, portanto,
negativamente, a não invasão de um limite de tutela, mas é necessário, positivamente, que o fato possa ser
representado como realização prática da ordem jurídica de valores” (O direito civil..., cit., p. 650).
69
Como observa Judith MARTINS-COSTA, se a função social do contrato se limitasse ao controle
negativo dos negócios jurídicos, o art. 421 seria “virtualmente inútil”, remetendo a hipóteses que, ou já
21

Reconhecer um papel à função social que seja externo à causa do negócio


não contraria, vale ressaltar, a concepção segundo a qual a função social determina
internamente as situações jurídicas subjetivas patrimoniais. Com efeito, não se pode
conceber tais situações sem o respeito à função social, que compõe sua função (no caso
dos contratos, sua causa). Não significa, entretanto, que a função social não exista
também externamente à situação jurídica. Neste caso, não se tratará de “limite externo”
(como na antiquada visão do direito civil tradicional): o limite se dá internamente, mas a
função social também funcionará como parâmetro de aferição do merecimento de
tutela, a exigir que a situação jurídica promova valores socialmente relevantes. A função
social atua, assim, em duas frentes: internamente, a um só tempo qualifica a situação
jurídica subjetiva e limita (negativamente) seu exercício, na medida em que constitui
um dos aspectos reunidos em sua função; e, externamente, serve de parâmetro
valorativo do merecimento de tutela em seu aspecto promocional (positivo).70
Ressaltada a necessidade de estudo autônomo da função social em
relação à causa, cabe tecer algumas considerações acerca de seu conteúdo. De fato,
embora todos os atos e situações jurídicas de natureza patrimonial apresentem uma
função social, a maior parte dos estudos sobre o tema se dedica às duas modalidades
encontradas expressamente no Código Civil brasileiro, a saber, a função social da
propriedade (art. 1.228, §1º) e a função social do contrato (art. 421).71 Contudo, pondo-
se de lado o fato de ambas representarem interesses socialmente relevantes, e ao
contrário do que se poderia supor, função social da propriedade e função social do
contrato guardam pouca proximidade em seu conteúdo.
A discussão acerca da função social da propriedade não é recente.
Mencionada há décadas na doutrina nacional e estrangeira como imperativo para a

estariam abarcadas pelo art. 187, ou constituiriam hipóteses de interpretação favorável ao aderente e de
integração segundo a boa-fé, ou se resumiriam a casos já regulados em leis como o CDC ou o Estatuto da
Terra. “Tudo isso leva à convicção da necessidade de encontrar a voz própria e específica ao art. 421”
(Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos, cit., pp. 49-50).
70
Em sentido contrário, alguns autores entendem que seria impossível à função social operar como
parâmetro de avaliação e, ao mesmo tempo, compor o objeto dessa avaliação. A respeito, v. Giovanni
Battista FERRI: “Far riferimento al concetto di funzione importa infatti che non soltanto esista una
relazioni tra situazioni, ma che questa relazione si ponga tra una situazione valutante ed una situazione
valutata; [...] quanto alla causa, elemento del negozio giuridico, si attribuisce la natura di funzione
economico-sociale, [...] si finisce per confondere insieme elementi del negozio e criteri di valutazione
dell’ordinamento stesso” (Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, cit., p. 364).
71
A Constituição Federal, vale registrar, menciona ainda a função social da empresa (art. 173, §1º, I).
22

releitura daquele que antes fora considerado o mais absoluto dos direitos,72 prevista
expressamente já na Constituição de 1967, a função social da propriedade foi albergada
pela Constituição de 1988 em diversos dispositivos, sendo, posteriormente, consagrada
também pelo Código Civil de 2002. Mais do que consolidar o princípio no ordenamento
brasileiro, tais disposições normativas contribuíram para delinear, mesmo que de modo
bastante aberto (como, aliás, deve acontecer em matéria de princípios), o conteúdo da
função social da propriedade.
Nesse sentido, dispõe a Constituição da República, em seu art. 5º, XXIII,
que “a propriedade atenderá a sua função social”. Afirmou também o constituinte, no
art. 170, que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios: [...] III - função social da
propriedade”. O §2º do art. 182, por sua vez, explicita: “a propriedade urbana cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no plano diretor”.
A Lei Maior ainda dispõe que “compete à União desapropriar por
interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo
sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com
cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do
segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei” (art. 184) e que “a
lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o
cumprimento dos requisitos relativos a sua função social” (art. 185, parágrafo único).
Finalmente, no que tange à propriedade rural, submete o art. 186 da Constituição o
cumprimento da função social ao atendimento simultâneo dos seguintes requisitos:
aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das normas sobre relações de
trabalho; e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Dispõe, por sua vez, o Código Civil, no §1º de seu art. 1.228: “O direito
de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e
sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei
72
Conforme a página clássica de Salvatore PUGLIATTI: “La proprietà oggi non è proprietà
(esclusivamente) individuale, ma è pur sempre proprietà dell’individuo; è, sotto ogni aspetto, proprietà
privata, ma atteggiata ed orientata in modo da consentire la più idonea tutela dell’interesse pubblico”
(La proprietà nel nuovo diritto. Milano: Giuffrè, 1964, p. 107). Sobre essa mudança de perspectiva, v.
também BARASSI, Lodovico. La proprietà nel nuovo diritto. Milano: Giuffrè, 1943, p. 79.
23

especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio


histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.
Como se percebe, o constituinte e, na sua esteira, o legislador ordinário
foram particularmente analíticos ao esclarecerem qual é o escopo da função social da
propriedade, determinando parâmetros para identificar seu cumprimento tanto em
relação à propriedade urbana quanto em relação à propriedade rural. Além disso, a
função social da propriedade apresenta diversas aplicações, tais como a verificação do
caráter improdutivo de certo imóvel, que pode suscitar desapropriação pelo Poder
Público. Embora aberto a um sem-número de novos desenvolvimentos, o emprego da
função social para a determinação do grau de merecimento de tutela da propriedade teve
diretrizes bastante nítidas determinadas pelo direito positivo e já aplicadas pela
jurisprudência.
O exato oposto ocorreu com a função social do contrato.73 Trata-se de
inovação do legislador de 2002, não havendo notícia de menção expressa à função
social do contrato antes do Código Civil atual.74 Também a doutrina anterior ao Código,
se conhecia da função social do contrato, fazia-o com a mesma vagueza com que
reconhece, em geral, que as situações jurídicas devem cumprir sua função social. O
Código Civil de 2002, por sua vez, previu, no art. 421, apenas que “a liberdade de
contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
Atenta às evidentes potencialidades que semelhante dispositivo apresenta
à civilística brasileira, a doutrina imediatamente se pôs a estudar e desenvolver a função
social do contrato. Superada, em um primeiro momento, certa resistência de parte de
alguns autores em aceitar a função social do contrato como figura autônoma (i.e.,
independente de outros institutos de promoção da justiça contratual, tais como a lesão, a
revisão por onerosidade excessiva, a simulação como causa de nulidade, etc.),75 passou-
se a considerar que a função social do contrato seria responsável pelo fenômeno que

73
Assim entende, por exemplo, Pablo RENTERÍA: “Lamenta-se, ao invés de festejar, que o novo Código
Civil tenha se contentado em enunciar a cláusula geral da função social, sem trazer luzes sobre a sua
efetividade, tal como fizera a Constituição da República a respeito da função social da propriedade”
(Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato, cit., p. 283).
74
Humberto THEODORO JÚNIOR alude à “novidade do tema trazido a debate pelo art. 421”, razão à
qual atribui o fato de ainda não terem sido satisfatoriamente traçadas as bases conceituais da função social
do contrato (O contrato e sua função social. Rio de janeiro: Forense, 2003, p. 42).
75
Representante desta corrente, Humberto THEODORO JÚNIOR sustenta que o campo de atuação da
função social do contrato restringir-se-ia aos vícios do negócio jurídico, aos casos de nulidade e às
hipóteses de revisão contratual. “Seria pela prudente submissão do caso concreto às noções legais com
que o Código tipificou as hipóteses de intervenção judicial no contrato que se daria a sua grande
adequação às exigências sociais acobertadas pela lei civil” (O contrato e sua função social, cit., p. 106).
24

recebeu a curiosa alcunha de “relativização da relatividade dos pactos” – vale dizer, a


mitigação do princípio segundo o qual o contrato só produziria efeitos inter partes. Isso
levou à admissão da chamada “tutela externa” do crédito, em face de terceiros que
pudessem incentivar o inadimplemento ou prejudicar, de qualquer modo, o curso da
relação contratual. Defender a função social do contrato equivaleria a dizer, nessa
formulação, que os negócios são socialmente relevantes e devem ser protegidos.76
Conquanto reconhecida por autorizada doutrina, a vinculação da função
social do contrato à possibilidade de tutela externa do crédito oculta, em si, certa
contradição. Com efeito, se a função social surgiu como mecanismo de arrefecimento
do caráter absoluto dos direitos subjetivos, forma de inserir o interesse social em um
âmbito no qual, anteriormente, apenas o interesse das partes era respeitado, não faria
sentido usar o argumento da função social do contrato para fortalecer o vínculo
contratual, protegendo uma ou ambas as partes da interferência externa de terceiros.77
Não se pretende dizer, com isso, que os contratantes não devem, em certa medida e em
determinadas situações, receber esse tipo de proteção – apenas se tem entendido que
essa tutela é conferida, não pela função social do contrato, mas pelo simples controle de
abusividade da conduta do terceiro que, por exemplo, incentiva o inadimplemento (fala-
se, nessa hipótese, em “terceiro cúmplice”).78 E esse abuso será mais facilmente
identificado pelo prisma da boa-fé objetiva do que, propriamente, da função social do
contrato.79
Qual seria, então, o conteúdo especificamente vinculado à função social
dos contratos? Não se nega a importância da função social do contrato para a

76
Por todos, v. Teresa NEGREIROS, para quem o princípio da função social exigiria “que os contratantes
e os terceiros colaborem entre si, respeitando as situações jurídicas anteriormente constituídas, ainda que
as mesmas não sejam providas de eficácia real, mas desde que a sua prévia existência seja conhecida
pelas pessoas implicadas” (Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 209).
77
Pondera Gustavo TEPEDINO que esta posição acaba por reduzir a função social a um reforço de
posições contratuais, desconsiderando que o principal papel do princípio deveria ser o de impor deveres
aos contratantes, e não o de tutelar seus interesses individuais – já suficientemente protegidos (Notas
sobre a função social dos contratos. Temas de direito civil, t. 3, cit., p. 148). No mesmo sentido, v.
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo e BIANCHINI, Luiza Lourenço. Breves considerações
sobre a responsabilidade civil do terceiro que viola o contrato (tutela externa do crédito). In TEPEDINO,
Gustavo e FACHIN, Luiz Edson (orgs.). Diálogos sobre direito civil, vol. III. Rio de Janeiro: Renovar,
2012, p. 470.
78
A respeito, v. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 255.
79
Nesse sentido, afirmam Carlos Edison do Rêgo MONTEIRO FILHO e Luiza Lourenço BIANCHINI
que o fundamento da tutela externa do crédito reside na boa-fé objetiva, que impõe o dever de atuar de
forma leal, honesta e transparente: “Os terceiros também estão adstritos a essa obrigação e, ao celebrarem
com o devedor contrato incompatível com um previamente existente, podem estar a violar a boa-fé
objetiva, de modo a ensejar a sua responsabilidade civil” (Breves considerações..., cit., p. 470).
25

identificação de eventual abusividade na fixação do conteúdo negocial, afigurando-se


evidente a participação do princípio nesta espécie de controle valorativo – negativo –
dos contratos.80 Quanto à sua aplicação como mecanismo positivo (ou promocional) de
controle, por outro lado, tem-se igualmente afirmado que a função social do contrato
“impõe aos contratantes a obrigação de perseguir, ao lado de seus interesses privados,
interesses extracontratuais socialmente relevantes, assim considerados pelo legislador
constitucional, sob pena de não merecimento de tutela do exercício da liberdade de
contratar”.81
Trata-se de projeto ambicioso, de difícil implementação. Com efeito, a
função social adaptou-se com menor dificuldade no âmbito dos direitos reais –
nomeadamente o direito de propriedade –, que, oponíveis erga omnes, contrapõem seu
titular ao sujeito passivo universal – a própria coletividade. Isso justifica, igualmente, a
legitimidade ampla para a alegação do descumprimento da função social da propriedade
– toda a sociedade representa, de certo modo, a contraparte do proprietário,
considerando-se o domínio em uma perspectiva relacional. A função social, assim,
torna-se mais facilmente implementável no setor do direito civil há muito caracterizado
pela contraposição do interesse social ao individual (embora o interesse social tenha se
tornado, pelo prisma funcional, um limite interno ao próprio direito, e não mais externo
ou excepcional).
A função social do contrato, por sua vez, exige maior desenvolvimento
doutrinário e jurisprudencial para ser efetivamente aplicada em seu aspecto
promocional. Com efeito, como pressupor que as partes em um contrato devam celebrá-
lo perseguindo interesses socialmente relevantes, além de seus próprios interesses?
Como tornar essa diretriz – inegável decorrência do princípio constitucional da
solidariedade – eficaz, na prática, em sede de relações obrigacionais?82 Mais ainda:

80
Exemplifica Gustavo TEPEDINO: “A função social, assim, definirá a estrutura dos poderes dos
contratantes no caso concreto, e será relevante para se verificar a legitimidade de certas cláusulas
contratuais que, embora lícitas, atinjam diretamente interesses externos à estrutura contratual – cláusulas
de sigilo, de exclusividade e de não concorrência, dentre outras” (Notas sobre a função..., cit., p. 153).
81
TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos, cit., p. 153.
82
Com efeito, adverte Pablo RENTERÍA que não faz sentido esperar que a função social do contrato leve
o contratante a negociar com um sentimento prioritariamente altruístico. Assim, “o que se pode entender é
que a própria razão que justifica que essa pessoa possa exercer os seus direitos em seu benefício é uma
razão do ordenamento. Com efeito, há um interesse social a ser atendido quando se tutela o interesse
individual de cada pessoa, assim como há quando se tutela a satisfação de interesses difusos ou coletivos
que estejam eventualmente envolvidos na realização daquele contrato. Na realidade, não raro a tutela de
um interesse coletivo se confunde com a de um interesse individual; por exemplo, o interesse coletivo em
promover o acesso à habitação se revela na tutela individual do inquilino” (Considerações..., cit., p. 305).
26

considerando-se que a função social do contrato importe a promoção de valores como o


meio-ambiente, o trabalho, o consumidor, a livre-concorrência etc., quem estaria
legitimado a alegar seu descumprimento? Poderia uma das partes contratantes exigir
judicialmente da outra parte que promova a função social do contrato? Das duas, uma:
ou a inobservância da função social do contrato decorre do estrito cumprimento do
próprio negócio (com o qual ambas as partes anuíram, não lhes cabendo alegar,
aproveitando-se de sua própria torpeza, o desmerecimento de tutela do contrato), ou
essa inobservância de todo extrapola o conteúdo contratual (e, neste caso, quem se
avocaria a legitimidade para, interferindo em um ato de autonomia privada, exigir a
promoção de interesses socialmente relevantes?).83
A impossibilidade de se obterem respostas conclusivas a tais questões
tem obstado uma aplicação positiva, promocional, da função social do contrato pelos
tribunais brasileiros. Pondo-se de lado as decisões que invocam o princípio de forma
vaga, condenando-o à superutilização de que sofrem, igualmente, outras cláusulas gerais
em nosso sistema, os julgados que aplicam adequadamente a função social do contrato
fazem-no como parâmetro para um controle valorativo negativo (vale dizer, de
abusividade) dos negócios jurídicos. Diante desse cenário, alguns autores têm
reconhecido que o conteúdo da função social do contrato no direito brasileiro atual se
restringe à adoção, pelo legislador pátrio, do causalismo e da análise funcional dos
contratos – papel não menos relevante, frise-se, que eventual função promocional que
ainda se possa, futuramente, extrair do princípio.84
No mesmo sentido, boa parte da doutrina tem sustentado que os negócios
típicos – aqueles cuja causa já foi previamente considerada pelo legislador – gozam de
uma presunção de legitimidade em nosso ordenamento: seu merecimento de tutela já foi

83
Adverte Pablo RENTERÍA que se devem tomar com cuidado as propostas segundo as quais seria
possível, “em nome da função social, imputar às partes deveres positivos que teriam por escopo assegurar
que o contrato esteja a efetivar interesses sociais relevantes (meio ambiente, geração de empregos etc.).
Além do mais, mostrar-se-ia difícil efetuar o controle quanto à observância desses deveres positivos.
Quando muito, é o Estado que estaria obrigado a prever em seus contratos administrativos esses deveres
promocionais, o que reduziria significativamente a pretendida eficácia do princípio da função social”
(Considerações..., cit., pp. 305-306).
84
Segundo Maria Celina BODIN DE MORAES: “Nesta linha de raciocínio, teria o legislador
exteriorizado, através dos termos da cláusula geral do art. 421, o princípio da ‘causalidade negocial’ –
embora nós, talvez, continuemos a dizer, simplesmente, que determinado negócio não cumpre a sua
função social” (A causa dos contratos, cit., p. 316). Também reconhecendo a aproximação entre causa e
função social, Pablo RENTERÍA afirma que: “a noção de causa do contrato contribui para que se tenha
um método mais técnico e operacional para efetivar a funcionalização da relação contratual, trazendo
conteúdo dogmático àquilo que a função social do contrato poderia apresentar de volúvel”
(Considerações..., cit., p. 313).
27

avaliado pela ordem jurídica, de modo que tais negócios já seriam, presumidamente,
cumpridores de sua função social. Assim, para os negócios típicos (afinal, a grande
maioria), cumpriria indagar apenas de sua licitude e de sua não abusividade, pois a
própria previsão típica já permitiria presumir a promoção valores socialmente
relevantes.85
Em síntese, o exame de qualquer matéria sob o prisma funcional há de
reconhecer que os atos humanos apenas produzem uma eficácia jurídica específica
quando puderem ser reputados merecedores de tutela; se os contratos típicos já contam
com uma eficácia mínima prevista em lei, isso ocorre porque o legislador já examinou
sua causa e já ponderou que, em geral, tais contratos cumprem sua função social. No
caso dos contratos atípicos, tem-se o ônus adicional de demonstrar sua compatibilidade
com os valores do ordenamento para que se lhes possa reconhecer eficácia jurídica. Se
os contratos típicos, em sua eficácia concreta, perderem sua qualificação, exigirão a
mesma demonstração de legitimidade, como se fossem atípicos desde sua celebração.
Trata-se, como se percebe, de circunstancial aproximação entre causa e
função social do contrato, a ser superada por posterior desenvolvimento doutrinário e
jurisprudencial que consiga identificar efeitos autônomos (de índole positiva) a esta
última, dentro dos parâmetros traçados pela Constituição, na medida adequada de
condicionamento e legitimação da autonomia patrimonial pela solidariedade.

5. CONCLUSÃO

O problema da causa no direito civil tornou-se complexo por duas


ordens de fatores. Primeiramente, porque se lhe atribuíram aplicações muito diversas: a
causa deve servir para a qualificação do contrato, para o controle de seu merecimento de
tutela, para o reconhecimento de sua própria juridicidade. Em segundo lugar, porque
muito se procurou entrever em um conceito que já é, por natureza, complexo. A causa
constitui uma realidade objetiva nos contratos – todo contrato é celebrado com
determinada função, que decorre da soma, por assim dizer, de todos os interesses
envolvidos. E, se em nossa ordem jurídica, todo ato de autonomia privada patrimonial

85
Cf., por todos, Maria Celina BODIN DE MORAES: “Em resumo, para que os negócios atípicos sejam
reconhecidos e adquiram valor perante o ordenamento, exige-se que realizem interesses considerados
merecedores de tutela jurídica, sendo insuficiente, embora necessário, que não contrariem as normas
inderrogáveis, os bons costumes e a ordem pública” (A causa dos contratos, cit., p. 302).
28

deve ter seu merecimento de tutela reconhecido, então em nenhum contrato a causa será
juridicamente irrelevante.
A utilidade da função negocial reside, assim, na implementação da
análise funcional dos contratos, viabilizando o controle de seu merecimento de tutela, e
na qualificação negocial à luz do caso concreto, permitindo a atração da disciplina
jurídica mais consentânea com os efeitos (realmente) essenciais do contrato.
Analogamente, a importância da função social do contrato repousa em dois pontos
fundamentais. De um lado, propor parâmetros para o controle da abusividade no
exercício da liberdade de contratar: será abusivo o contrato que violar, de alguma forma,
algum interesse socialmente relevante. De outro, indicar se um negócio pode ser
considerado merecedor de tutela, vale dizer, se ele promove valores juridicamente
protegidos – conceito que, no campo da autonomia contratual, não foi, até o momento,
desenvolvido além da presunção de merecimento de tutela dos negócios típicos.
Diante da improbabilidade de uma solução definitiva para as incontáveis
controvérsias doutrinárias sobre a matéria (talvez tão variadas quanto a própria
liberdade de contratar), o presente escrito buscou registrar elementos para o
desenvolvimento do estudo da causa e da função social, indicando alguns dos
numerosos pontos de discussão suscitados pelos dois temas: a dúvida quanto ao
enquadramento da causa como elemento do negócio jurídico, a caracterização do juízo
de abusividade e do juízo de merecimento de tutela como duas instâncias escalonadas
de controle valorativo dos negócios jurídicos, a identificação das inúmeras acepções do
termo “funcionalização”, a circunstancial aproximação entre causa e função social do
contrato quanto à sua aplicação prática no direito brasileiro contemporâneo.
Pretendeu-se, assim, contribuir para um debate doutrinário profícuo e
para o consequente desenvolvimento de usos técnicos da função social para o controle
de merecimento de tutela dos negócios jurídicos. A doutrina deve tecer classificações
sempre que elas acarretarem diferenças na disciplina jurídica; deve construir abstrações
sempre que elas contribuírem para a unidade e a sistematicidade do ordenamento.
Entrever na funcionalização do contrato mais problemas teóricos do que práticos
denuncia injustificável desvio de perspectiva: no momento atual, árduo não deve mais
ser o contorno teórico de uma análise funcional do Direito, mas sim o esforço em prol
do desenvolvimento de instrumentos concretos de aplicação.

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