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Roland Barthes:um semiólogo nômade

ROLAND BARTHES: UM SEMIÓLOGO NÔMADE

Roland Barthes: one nomad semiologist

Francisco Verardi Bocca1

Resumo
O presente artigo tem por encargo descrever, de maneira panorâmica, o percurso intelectual trilhado por
Roland Barthes no que diz respeito às suas pesquisas na área de fundamentação e de análises semiológicas
empreendidas sobre fatos culturais. Veremos, e por isso o chamamos nômade, como, tendo partido de uma
adesão ao estruturalismo científico de cunho saussuriano percorreu-o aos seus limites até desembocar em
sua renúncia, assumindo a análise hermenêutica como alternativa de compreensão da cultura. Para efeito de
análise e ilustração, serão enfocadas algumas obras pontuais consideradas de relevância apresentadas em
ordem cronológica, iniciando com Mitologias e encerrando com Aula, dando destaque para e intermediária
Sistema da moda, entre outras. Esperamos com isso dar conta da construção de um roteiro confiável de sua
produção intelectual.
Palavras-chave: Filosofia; Linguagem; Semiologia; Hermenêutica; Perspectivismo.

Abstract
The present article intends to describe, in a panoramic view, the intelectual trajectory of Roland Barthes in
respect to his researches in the area of foundation and semiological analyses of cultural facts. We will see,
and because of this we call him nomad, how, starting from an adhesion to the scientifical structuralism of
saussurian character, he came to its limits until he renounced it, assuming the hermeneutical analysis as an
alternative to culture comprehension. In respect to analysis and illustration, some punctual works of relevance
will be focused in a chronological order, starting with Mythologies and ending with Class, and emphasizing
the intermediate The fashion system, among others. We hope to build a trustable guide to his intelectual
production.
Keywords: Philosophy; Language; Semiology; Hermeneutics; Perspectivism.

1
Prof. Dr. História da Filosofia Contemporânea – PUCPR
E-mail: francisco.bocca@pucpr.br

Revista de Filosofia, Curitiba, v. 15 n.17, p. 11-27, jul./dez. 2003. 11


Francisco Verardi Bocca

Introdução Esclareçamos agora que partimos da


apresentação de Mounin com o objetivo de evi-
denciar que, para Barthes, o que teria motivado
O propósito desse artigo é o de apresen-
Saussure a listar sistemas simbólicos tão díspares
tar, evidentemente da forma restrita que este espa-
como os códigos militares, ritos e formas de po-
ço admite, a evolução do conceito de semiologia,
lidez, teria sido a comparação possível de todos
bem como da prática semiológica, de Roland Bar-
estes sistemas com a linguagem natural, pois a
thes, tendo como suporte teórico, digamos, sua
idéia básica de Saussure é que as diferentes insti-
filosofia da linguagem, apresentando-a de forma
tuições sociais como os ritos, modas, etiquetas e
seqüencial em algumas obras que melhor eviden-
a própria linguagem natural, compartilham da
ciam sua evolução. Quanto à imputação de uma
mesma natureza: são sistemas semiológicos. A
natureza nômade para seu percurso intelectual fi-
idéia é, portanto, que deve ser possível propor
cará, cremos, esclarecida ao término da leitura do
objetos de estudos comparáveis, quanto a serem
artigo.
semiológicos, à linguagem natural, sendo que esta
Para dar início à tal apresentação assumi-
seria o principal destes sistemas, independente-
mos estrategicamente o debate que tem sua ex-
mente de visarem uma comunicação estrita ou
pressão bem definida no primeiro capítulo de In-
tão somente uma significação.
troducion à la sémiologie de Georges Mounin,
Assim, Roland Barthes, em obras como
que apresenta uma bifurcação conceitual que nos
Mitologias de 1957 e mais tarde em Elementos de
parece de grande interesse para os estudos de di-
semiologia de 1964 e ainda em Sistema da moda
ferentes sistemas simbólicos sejam lingüísticos ou
de l967, desenvolve a análise referente aos siste-
extralingüísticos. São os conceitos de comunica-
mas não lingüísticos que priorizam a “farta signifi-
ção e de significação, que inclusive serviram de
cação” como os mitos, a literatura, a propaganda e
divisor de águas entre os semiólogos franceses pós-
a moda.
saussurianos. Dada sua importância, passemos à
Nos Elementos, Barthes (1964) fornece-
sua consideração.
nos uma visão geral do campo de estudo da semi-
Diz Mounin (1968), segundo sua interpre-
ologia e dos instrumentos por meio dos quais pode-
tação, que no Curso de lingüística geral, de Saus-
se realizar a pesquisa semiológica. Por intermédio
sure, é esboçada a proposta de uma ciência geral
desta mesma obra sabemos que em seus primór-
de todos os sistemas de signos, incluindo os extra-
dios franceses a semiologia tinha uma dupla tare-
lingüísticos, pelos quais os indivíduos comunicam-
fa: de um lado propor uma teoria geral da pesqui-
se. Seriam estes as escrituras, o alfabeto de surdo-
sa semiológica e de outro elaborar semiologias
mudos, os signos militares, entre outros, que vi-
particulares, aplicadas a objetos e domínios como
sam a uma comunicação. No entanto, Mounin
a moda, vestuário, propaganda etc. Os Elementos
(1968) adverte que as referências estendidas por
realizam primeira tarefa, ficando para Mitologias,
Saussure aos ritos simbólicos, formas de polidez,
Sistema da Moda e outros a elaboração de semio-
costumes, modas, culinária, sempre despertaram
logias particulares.
muitas reservas, pois, nestes domínios, estariam
Assumindo uma motivação saussuriana,
contidos os germens de uma ruptura dentro do
Barthes propõe-se manejar os conceitos lingüís-
desenvolvimento de uma semiologia originalmen-
ticos na construção de uma semiologia buscan-
te esboçada por Saussure, uma vez que os últimos
do inserir-se nesta tradição. Assim é que se vale
sistemas listados apenas significam sem visar ou
de conceitos que já estavam definidos na ciên-
atingir uma comunicação, pelo menos no sentido
cia lingüística, como foram elaborados por Saus-
lingüístico. Daí a distinção entre sistemas que co-
sure. Foi nesse clima que os Elementos propuse-
municam e os que apenas significam.
ram e organizaram um vocabulário que respal-
Ao analisarmos a bifurcação veremos que
dou sua pesquisa naquele momento, o que fez
tal preocupação para Barthes é irrelevante, pois
desta obra um compêndio de conceituações im-
considera que para comunicar basta significar. No
portantes na construção da perspectiva semio-
interior desse ponto vista a significação recobre a
lógica por ele elaborada.
comunicação, instaurando assim um ponto de vis-
Sua perspectiva semiológica teve assim
ta de comunidade entre os diferentes sistemas sim-
por objetivo qualquer sistema de signos, seja qual
bólicos, o que relativiza a própria bifurcação.

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for sua substância, seus limites, imagens, gestos, toma a linguagem natural por tema, seria futura-
inscrições, desde que constituam sistemas simbó- mente uma parte da ciência geral dos signos quan-
licos. Com isso recusa a restritividade da semiolo- do esta viesse a se constituir. Uma vez tendo ad-
gia da comunicação em favor da abrangência da mitido a possibilidade de uma ciência que demons-
semiologia da significação. Isto fica evidente em tre com seu exemplo o caráter sistêmico dos de-
Mitologias na qual instrumentalizou os conceitos mais fatos simbólicos, Barthes adotou sem proble-
lingüísticos que poderiam fornecer-lhe uma nova mas a supremacia da semiologia sobre a lingüísti-
perspectiva com relação aos fenômenos culturais ca. Posição da qual se desvencilhou mais tarde
e abraçou a possibilidade de estudar as atividades (1957).
humanas como uma série de linguagens. Quanto a essa obra, trata-se sem dúvida
Nessa obra, recorreu, ainda que de manei- de um trabalho militante, engajado, onde recorreu
ra mais tímida, se comparada com Sistema da moda, aos procedimentos de análise legados pela lingüís-
à técnica de análise estrutural proveniente da lin- tica. Apesar do recurso à lingüística, não podemos
güística saussuriana. Nela, seu objetivo confesso foi dizer que tenha tratado explicitamente o mito con-
o de desmascarar a má fé imiscuída nos mitos con- temporâneo, ou a fala mítica, como o chamou,
temporâneos, que devem ser pelo semiólogo expos- como a linguagem natural, pois reconhece nessa
tos em seu sistema. A análise presente nesta obra, ocasião que o mito depende de uma semiologia,
mais que semiológica, busca ser semioclasta, visa ciência esta extensiva à própria lingüística.
desmascarar a ideologia burguesa dos anos cinqüen- O que queremos esclarecer com a insis-
ta pela via da desconstrução de seus mitos. tência em apontar para a supremacia da semiologia
Ocupou-se Barthes de sistemas simbólicos sobre a lingüística é que, nestas circunstâncias a
como a publicidade, a fotografia, vestuário de moda, linguagem natural funciona como inspiração de sis-
entre outros, manifestando interesse de ordem pes- temas ordenadores das diferentes linguagens. Por
soal por sistemas cuja construção não foi presidida enquanto, estabeleçamos que desde já cabe à semi-
pela intenção primeira de comunicar uma mensa- ologia, segundo Barthes, explicar as leis que regem
gem determinada, mas que, contudo, significam. os signos dos diferentes sistemas simbólicos. Claro
No entanto, não o fez de forma homogênea em está que inclusive os mitos contemporâneos pas-
toda sua carreira e nosso propósito aqui é, de iní- sam a ser um tema da vasta ciência semiológica,
cio, o de demonstrar que trilhou de início os passos com o que fazer semiologia dos mitos é estudar sua
do estruturalismo, como proposta de alcançar pelo significação enquanto sistema simbólico.
sentido os códigos implícitos nos sistemas simbóli- Por influência da indicação de Saussure,
cos, para, por fim, desembocar em uma hermenêu- no conceito barthesiano de mito, encontramos o
tica, isto é, em uma interpretação dos fatos simbóli- mesmo esquema presente no signo lingüístico. No
cos sem os recursos estruturalistas. entanto nem por isto pode-se dizer que a signifi-
Deve ficar claro também que Barthes, em cação do mito se reduz à do signo lingüístico. Antes
cada fase, teve uma concepção própria de semio- se trata de um sistema com características bem
logia, isto é, inspirado em Saussure, formulou teo- particulares. Comecemos por defini-lo.
rias semiológicas com as quais orientou sua pes- O uso do termo mito designa para Bar-
quisa. A verificação e o acompanhamento destas thes uma falsa evidência, isto é, ele é pensado ini-
concepções compõem o interesse desse artigo, cialmente em seu sentido literal, de mentira, de
onde suas fases, bem como suas obras de maior falsa realidade, como alegoria, como forma figura-
importância e contribuição para nosso propósito da, por fim como representação de algo para dar
serão visitadas. Passemos a elas. idéia de outro, constituindo, portanto, uma lingua-
gem. Essa perspectiva permite defini-lo inclusive
como uma fala. Assim sendo deve haver condi-
Mitologias: primeiras práticas ções especiais para a elaboração de um mito, isto
semiológicas é, de uma mensagem falada, já que nesses termos
ele nada mais é do que um modo de significação,
em duas palavras, uma forma.
A fase de Mitologias foi propriamente Na perspectiva que vem sendo definido,
aquela em que Barthes reconheceu como legítima o mito é para Barthes uma forma de operação e
a proposta saussuriana de que a lingüística, que

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não uma substância. Logo qualquer conteúdo ou


QUADRO 1 - Título
substância pode ser transformado em mito. Acres-
1- significante 2 – significado
cente-se que, para ele, não há mitos eternos, já
3 – signo
que é a história que transforma o real em mito.
Isto quer dizer que para ele, “é a história que co-
SENTIDO II- SIGNIFICADO
manda a vida e a morte da linguagem mítica” (BAR-
I – SIGNIFICANTE CONCEITO
THES, 1957, p.132). Nesses termos é que nos faz
FORMA
entender que o suporte do mito é a história, a
experiência vivida, podendo ser, digamos, qual-
quer uma, desde que permita ser utilizada para
III – SIGNO
uma nova significação.
MITO
Com isso ele quer dizer que a fala mítica
“é formada por uma matéria já trabalhada em vista Fonte: Mitologias, p.137.
de uma comunicação apropriada” (BARTHES, 1957,
p.132). No entanto lembremos, não se trata de uma
matéria qualquer nem indiferente. Sua matéria deve Em termos descritivos, o esquema acima
ser, e o é, em algum aspecto imperativa, impõe quer dizer que o signo que era terceiro termo do
uma significação. Esse ponto de vista permite-nos primeiro sistema passa a atuar como significante
concluir que a significação mítica deve postular (primeiro termo do segundo sistema ou segunda
uma relação entre dois termos, um significante e ordem) no produto final que passa assim a relaci-
um significado, que apesar de serem matérias de onar-se com novo significado (segundo termo da
diferentes ordens, e por isto não constituem uma segunda ordem), compondo o mito ou signo da
igualdade, devem pressupor ao menos uma certa segunda ordem.
equivalência. Segundo o esquema, como vimos, o que
O que foi anunciado no parágrafo anteri- passa a ser significante no mito (segundo sistema)
or fica melhor explicado quando entendemos que, era signo no primeiro sistema. Este, que já era
por não ser a significação mítica imotivada, ela dotado de uma história, na segunda participação
não relaciona arbitrariamente os seus termos, an- revela, participa e contribui com apenas parte dela.
tes relaciona-os por algo de comum que se impõe, Nesses termos é que se pode dizer que o segundo
isto é, a preexistência significativa de um termo sistema afasta ou deforma toda riqueza do signo
deve conter ou fornecer um elemento ao menos do primeiro sistema.
que sirva ao interesse da nova composição, isto é, Em termos mais explícitos, no mito, que
do signo mítico. A essa altura, carecemos de uma não é definido como um objeto ou idéia, mas um
exposição mais esquemática do conceito e do es- modo de significação, o significante é tomado ou
quema de funcionamento do mito, passemos a como termo final do sistema de onde saiu ou como
ele. O mito é constituído, reiteremos, a partir de termo inicial do sistema mítico onde adentrou.
uma matriz que, diferentemente da língua, já é uma Quanto ao significado no mito, este recebe de
cadeia semiológica particular, que já era semioló- Barthes em acréscimo o nome de conceito. Por
gica antes de passar a fazer parte do mito, de com- sua vez, o terceiro termo completando o sistema é
pô-lo, o que alça o mito à condição de sistema a própria significação mítica.
simbólico de segunda ordem. Nos termos em que está sendo definido,
Assim, quer seja a linguagem natural, quer o conceito de mito exige mais esclarecimentos.
as imagens ou objetos em geral que sirvam de base Digamos que de maneira geral o mito é tomado
ao mito, o que interessa destes é apenas a função por uma “palavra”, uma “comunicação” e constitui
significante que possam exercer, isto é, a função uma mensagem. O que incomodou Barthes, nessa
de significante que ocupam no mito. Tal função é constatação, foi o fato de ser ele a deformação de
ocupada pelo que foi designado por Barthes como um sentido histórico a serviço de uma ideologia.
“linguagem-objeto”. Para ampliar sua compreen- Assim é que podemos entender como uma com-
são apresentemos seu esquema como formalizado posição do tipo de uma estrela vermelha, por exem-
por Barthes (1957), para em seguida comentá-lo, plo, precisa abdicar consideravelmente de sua con-
conforme esquema abaixo:. dição geral de signo para compor uma pretendida

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Roland Barthes:um semiólogo nômade

mensagem, digamos sumariamente de “guia da luta gente, o que resulta numa roupa branca porque
operária”, sua significação mítica. livre da sujeira.
Na mesma obra, a título de dar consistên- Com esses recursos são atribuídos aos
cia à exposição do esquema semiológico do mito, pós-detergentes características de “seletivos, em-
Barthes comenta uma manchete de jornal toman- purram e conduzem a sujeira através da trama do
do-a como uma construção mítica e explicitando tecido, desempenhando uma função de policial e
sua estrutura. A manchete compunha-se dos se- não de militar” (BARTHES, 1957, p.29). Por essa
guintes dizeres: “Preços começam a ceder. Legu- ação liberam a dona de casa consumidora do pro-
mes: primeira baixa”. Para Barthes, essa manche- duto de uma ação mais laboriosa e cansativa. Ao
te corresponde a uma mitificação na medida em apontar para esse processo Barthes mostra a ação
que pode ser compreendida como um significante e a intenção desejada pela publicidade que está
que mantendo sua forma tem seu sentido pleno embutida.
esvaziado e reaproveitado apenas parcialmente, isto Ainda na linha da revelação dos meca-
é, em sua porção que permite compor, segundo nismos da publicidade, Barthes apontou a utiliza-
sua análise, um significado ou conceito de gover- ção das noções de profundidade e de espumoso.
nabilidade. Assim, o produto da mitificação ou sua Nesta, Barthes aponta o recurso à espuma produ-
significação final pode ser compreendida, segun- zida pelo detergente como elemento e fator de
do relata Barthes, como uma baixa de preços pro- um tipo especial de limpeza desejado pela publi-
vocada pelo governo, por atuação e mérito deste. cidade. O elemento espuma, utilizado para obter
O que, parece-nos agora evidente, não é tal resultado, apresenta um significado que, segun-
senão parte de um dos sentidos possíveis do signi- do Barthes, é de conhecimento e domínio de to-
ficante mítico (a manchete), a parte que convinha dos, isto é, num primeiro momento a espuma é
à ideologia do jornal que a publicou ou do jorna- historicamente associada ao luxo, podendo ser tam-
lista que a elaborou. Seu desvelamento corresponde bém associada a uma imagem de proliferação far-
assim ao trabalho do mitólogo. Para exemplificar- ta, evidenciando a abundância de elementos pre-
mos e ampliar ainda mais a compreensão do que sente numa porção mínima do sabão utilizado, o
está sendo chamado de “palavra mítica”, recorre- que permite supor um produto poderoso e conco-
remos a um dos principais exemplos dado por mitantemente delicado, já que espiritualizado pela
Barthes (1957) em Mitologias. Trata-se da análise espuma.
da publicidade do sabão em pó Omo. Nessa aná- Ora, a construção do mito ocorre, na con-
lise Barthes aponta para a penetração que o deter- cepção de Barthes, na medida em que o publicitá-
gente, pela via da publicidade maciça, exerceu na rio, tomando a forma e o sentido descritos da es-
vida cotidiana dos franceses. Assim, é a estratégia puma como significante associado ao estado de
e a armação montada pela publicidade que Bar- espiritualidade que tradicionalmente a acompanha
thes visa esclarecer. como seu significado, utiliza-a como elemento sig-
Para isso parte de uma comparação das nificante de um novo sistema, por isso chamado
soluções de cloreto de sódio (cândida) com o de- de segunda ordem. Barthes (1952, p.32) aponta
tergente em pó Omo. Diz ele que os primeiros para a construção do mito, ou sistema de segunda
“foram sempre considerados como uma espécie ordem, mostrando como a espuma que “pode ser
de fogo líquido cuja ação deve ser controlada, sem o signo de uma certa espiritualidade na medida
o que o próprio objeto pode ser queimado” (BAR- em que considera o espírito capaz de tirar tudo do
THES, 1957, p.29), produzindo assim, continua ele nada”, passa a ser no mito (ou na publicidade)
na mesma página, “uma modificação violenta, abra- significante de uma nova mensagem, agora visan-
siva da matéria: tais produtos matam a sujeira”. A do esconder a ação abrasiva do produto comerci-
comparação, continua ele, tem o propósito de des- alizado.
tacar que de fato “ao contrário, os pós são ele- O sentido da primeira significação é, como
mentos separadores: o seu papel consiste em li- ele diz, “esvaziado” e tomado como forma, como
bertar, expulsar a sujeira sem provocar “morte””. significante, para na nova composição ser associa-
As cenas da propaganda mostram a sujeira (repre- do a um novo conceito. Nesse caso, o consumidor
sentada por um pequeno inimigo débil e negro) é predisposto a imaginar uma relação saudável e
fugindo e assim evitando o contato com o deter- eficiente entre o detergente e o tecido que o rece-

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beu. Dessa forma o publicitário consegue escon- deforma no significante mítico não a sua forma,
der a verdadeira atuação de qualquer detergente mas o seu sentido.
que é a de ser abrasivo, “sob a imagem deliciosa A essa altura uma questão se impõe. Dessa
de uma substância simultaneamente profunda e riqueza do signo de base e de seu conseqüente
aérea, que pode reger a ordem molecular do teci- esvaziamento o que restará e por quê? Em outras
do, sem a atacar” (BARTHES, 1957, p.30). Isso quer palavras, o que justificaria a permanência desta e
dizer que o mito, repitamos, toma como signifi- não de outra parte do sentido manipulado que
cante (e esvazia-o) o que já era (em outra cadeia permanecerá à disposição do criador de mitos para
semiológica) signo. Assume assim o papel de me- alimentar a pretendida significação de segunda
talinguagem, já que o mito associa o signo esvazi- ordem? Responderemos que a escolha se dá pela
ado (agora tomado como significante) com um conveniência. Algo é emprestado visando a uma
novo significado ou conceito, obtendo dessa ope- conveniência.
ração o que chamou de significação mítica. A rela- Daremos continuidade à nossa argumen-
ção entre as duas partes é que constitui a significa- tação por via de uma outra questão que decorre
ção, o terceiro termo. do esquema de significação do mito. Diz Barthes
Nesses termos, é-nos adequado concluir que o conceito obtido no sistema mítico é, por
pela existência de um sistema simbólico constituí- assim dizer, “constituído por associações moles,
do desempenhando o papel de linguagem objeto ilimitadas. É preciso insistir sobre este caráter aberto
para a metalinguagem que é o mito. Deve ficar do conceito (mítico); não é absolutamente uma
claro que esse sistema que serve de linguagem essência abstrata, purificada, mas sim uma con-
objeto para o mito não é unicamente constituído densação informal, instável, nebulosa, cuja unida-
de palavras, mas também de gestos, fotos, dese- de e coerência provém sobretudo de sua função”
nhos etc., desde que possam percorrer os dois sis- (1957, p.141). Essa observação refere-se diretamen-
temas semiológicos, isto é, ocupar lugares e fun- te aos modos de reenvio, de relacionar a forma e
ções diferentes em ambos os sistemas, seja o de o conceito mítico. Deve-se dizer mais uma vez que
primeira ou de segunda ordem. aqui ressalta a motivação que preside esse siste-
Os parágrafos anteriores também tiveram ma. Digamos que, ao contrário da linguagem na-
por meta mostrar o quanto Barthes relaciona o sig- tural, que é arbitrária e imotivada como já vimos, a
no lingüístico com os signos dos demais sistemas mítica “não é nunca completamente arbitrária, é
simbólicos, ainda que não esteja, pelo menos de sempre em parte motivada, contém sempre uma
maneira explícita, pleiteando absoluta similarida- analogia” (BARTHES, 1957, p.147). Sua significa-
de. Queremos deixar claro que o que está sendo ção precisa sempre de uma analogia tanto na for-
tomado por linguagem objeto independentemen- ma quanto no sentido.
te de ser constituído de palavras, gestos, fotos, entre Por seu turno na significação mítica, nada
outros segue sempre um esquema lingüístico, isto se apresenta completamente arbitrário, reconhece
é, está sempre descrito e compreendido segundo Barthes. O mito é em grande parte motivado, o
uma conformação “similar” ao signo lingüístico, significante é motivado pelo conceito que repre-
analogamente. Isso nos faz concluir que Barthes senta. Essa motivação, que pode ser analógica, é
julgou a teoria saussuriana dos signos lingüísticos assim sustentada apesar de o conceito mítico ter à
como suficientemente geral para explicar com os sua disposição uma massa de significantes possí-
seus esquemas o funcionamento dos signos pró- veis que exemplifiquem a mesma coisa. Isto quer
prios dos demais sistemas simbólicos. dizer que a motivação pode ser exercida dentre
Retomando, digamos que o mito aparece várias possibilidades sem que por isso venha a ser
como um construto em benefício de uma intenção considerada arbitrária. Por exemplo, o conceito de
ideológica. Sua ocultação intencional, nos alerta “imperialidade francesa” obtido na capa da revista
Barthes, tem por objetivo naturalizar o signo, dar- Paris-Match citada em Mitologias, poderia bem ser
lhe a aparência de naturalidade, como se a ima- atingido, como sugere Barthes 91957, P.148), pela
gem (de uma propaganda) provocasse desintenci- imagem de “um professor francês branco dando
onalmente o conceito. Assim podemos dizer que a aulas a jovens negros atentos”. Ou ainda outros.
função do mito é deformar e não fazer desapare- Fica claro que apesar de o conceito míti-
cer o sistema de base, já que o conceito mítico co poder realizar-se em inúmeros significantes e

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Roland Barthes:um semiólogo nômade

de ele próprio não guardar nenhuma essência, Com isso, Barthes descreve claramente as
podendo constituir-se, alterar-se ou desfazer-se, a condições que permitem ou possibilitam a produ-
motivação é necessária à própria duplicidade do ção de signos de segunda ordem ou sistema míti-
mito; este joga com a analogia do sentido e da co fartamente veiculado nos meios de comunica-
forma. Barthes afirma que: “não existe mito sem ção e também uma proposta de focalização do
forma motivada” (1957, p.147). mito a encargo do semiólogo que chamou de aná-
Por exemplo, sugere Barthes, um conjunto lise semiológica. Quanto à primeira descrição, nada
de objetos desordenados pode oferecer à inter- temos a acrescentar, já quanto à segunda, cumpre-
pretação a desordem, pode conferir uma significa- nos verificar em que medida coaduna-se com a
ção ao absurdo, isto é, fazer do absurdo um mito. proposta semiológica saussuriana. Verificação que
Ele faz-nos ver que a analogia entre o conceito e o faremos no próximo tópico.
sentido míticos é sempre apenas parcial, assim
como também a forma do significante mítico pode
conservar apenas alguns traços analógicos. Essa O realce da lingüística
afirmação ficará melhor explicitada quando anali-
sarmos em capítulo futuro alguns sonhos e sinto-
Numa leitura de Elementos, publicação
mas obsessivos em que essa formulação se evi-
cronologicamente posterior a Mitologias, depara-
dencia. Mas o que nos interessa em particular é
mos com o argumento de Barthes quanto à neces-
que a motivação do mito proporciona sempre uma
sidade de generalizar o método lingüístico, de apli-
escolha entre várias possíveis.
cá-lo para além dos estudos habituais concernen-
Fica assim evidente que o esquema do
tes à lingüística.
mito evidencia sua função. Mais uma vez diremos
De início, sempre tomando Saussure por
que é a de promover deformações, isto é, em sua
base, Barthes efetiva a extensão da lingüística re-
terminologia, “transformar um sentido em forma”
lativamente aos diferentes sistemas simbólicos. Com
(BARTHES, 1957, p.152). Já quanto ao seu aspecto
isso, começam a aparecer as divergências em re-
de natural-mascarado deturpando a realidade, Bar-
lação a Saussure, pois este pensava e várias vezes
thes declara que na condição de semiólogo quer
o disse, ser a lingüística uma parte da ciência geral
“recuperar o abuso ideológico que na minha opi-
dos signos. Apesar disso, Barthes rebate, argumen-
nião nele se dissimula” (BARTHES, 1957, p.7). Para
tando que em nossa vida social contemporânea
isso, Barthes procurou captar significações de se-
não há outro sistema de signos com a mesma am-
gunda ordem já que o mito contemporâneo é um
plitude que a linguagem natural. Também acres-
modo de promover significações, associações de
centa que a linguagem natural funciona como in-
um significante a um significado sobrecarregado
térprete dos demais sistemas simbólicos e que a
de ideologias.
palavra pode ser tomada como substituta de toda
Somente a análise semiológica do mito
e qualquer ordem significante, com o que, qual-
permite descobrir o “código” dessa linguagem. Por
quer empresa semiológica deve levá-la em consi-
oposição à linguagem mítica, Barthes oferece-nos
deração.
uma focalização analítica desmistificadora do mito,
Um destaque dessa monta dado à lingua-
que busque uma melhor compreensão das signifi-
gem natural leva-nos a concluir que em sua con-
cações míticas desmascarando-as, com o que se
cepção todos os sistemas simbólicos, de maneira
passa da situação de leitor ou consumidor do mito
geral, não são suficientemente autônomos para
à de mitólogo. Para isto, faz-se necessário focali-
constituírem-se sem o apoio da linguagem natu-
zar no mito “o significante pleno, no qual distingo
ral, isto é, para ele todo sistema simbólico só se
claramente o sentido da forma, e portanto, a de-
torna semiológico quando filtrado pela linguagem
formação que um provoca no outro” (BARTHES,
natural e nunca o inverso. Confirmando esse posi-
1957, p.149). Assim procedendo destrói interpre-
cionamento, Benveniste diz-nos que “toda semi-
tando-a, a significação do mito, recebendo-a como
ologia de um sistema não lingüístico deve pedir
uma impostura, para usar sua terminologia. Segun-
emprestada a interpretação da língua, não pode
do Barthes “este tipo de focalização é a do mitólo-
existir senão pela e na semiologia da língua; ins-
go que decifra o mito e compreende uma defor-
trumento de análise” (BENVENISTE, l974, p. 63).
mação” (1957, p.149).
Aqui a linguagem natural é tomada como uma or-

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ganização semiológica por excelência, dando a dela depender seu exercício, apesar do semiólogo
idéia de que é a fórmula exemplar de modelagem não necessariamente ocupar-se de substâncias lin-
semiológica. güísticas. O encontro com a linguagem natural é
Com isso, o que fica claro em sua obra considerado desde agora inevitável, pois, como
seguinte, que é Sistema da moda, é que de uma vimos, esta assume a responsabilidade pelo esta-
fotografia, por exemplo, só pode ser feita semio- tuto sistêmico dos fatos não lingüísticos. Por conta
logia se explicada com o recurso da linguagem disso, a semiologia passa a ser a análise do discur-
natural. Percebe-se que o sustentáculo de sua prá- so escrito, no caso de Sistema da moda, sob o
tica semiológica passa a ser a relação que se esta- qual fatos simbólicos significam, isto é, recebem
belece entre o lingüístico e o não lingüístico. Su- significação.
pondo esta inter-relação é que Barthes fará semio- Com isso, “a matéria da semiologia será
logia da moda, no caso, do figurino de moda. o mito, a narrativa, o artigo de imprensa, os obje-
Foi observando fatos culturais como o tos de nossa civilização desde que sejam falados...”
cinema, publicidade, história em quadrinhos, fo- por meio da imprensa, do prospecto, da legenda.
tografia de imprensa, entre outras manifestações (BARTHES, l964, p.13). O saber semiológico passa
culturais, que Barthes constatou o que identificou a ser um tipo de cópia do saber lingüístico, a re-
como uma dependência desses gêneros em rela- boque deste. Nesse sentido é que, para Barthes, a
ção à linguagem natural. Percebeu que as imagens lingüística é que passa a ser a ciência geral dos
não podem dispensar a escritura, que nessa ótica signos e a semiologia uma parte dela, a que cuida-
é realçada à condição de fundamento das imagens. ria das unidades simbólicas do discurso. Mais tar-
O que equivale a dizer que uma substância visual de, apenas adiantando, Barthes irá decretar, fa-
confirma sua significação quando, digamos, repe- zendo juz ao seu nomadismo, o divórcio entre sua
tida lingüisticamente. Mais tarde, veremos, no pró- semiologia e a lingüística.
logo de Sistema da moda, a linguagem natural ser Com os argumentos até aqui apresenta-
identificada e definida não apenas como modelo dos, Barthes justificou sua primeira posição de
de significação, mas inclusive e principalmente, desacordo em relação a Saussure. Inclusive sua
como seu fundamento. observação quanto à dificuldade de um sistema
É importante que destaquemos tais con- de imagens ou objetos ter seus significantes exis-
cepções, pois marca a evolução de seu conceito tindo totalmente fora do alcance da linguagem
de semiologia, bem como seu procedimento como natural retira destes sistemas sua condição de au-
semiólogo, distinguindo-o do Barthes que conhe- tonomia, isto é, de terem do interior de seus pró-
cemos em Mitologias. Diz ele em 1964, nos Ele- prios sistemas a produção de seus significados ou
mentos que, apesar de todos os avanços em todas conceitos. Ao contrário, Barthes diz que um con-
as áreas da cultura, permanecemos uma civiliza- junto de objetos só alcança o estatuto pleno de
ção da escrita. Essa idéia o penetrou com tal força sistema quando repassado pela mediação da lin-
que acabou por influenciar sua própria concepção guagem natural e quando identificado com ela
de semiologia e do objeto de análise, que assim enquanto sistema. Por fim diz ele que “a lingüísti-
perde sua autonomia diante da linguagem natural. ca não é uma parte, mesmo privilegiada, da ciên-
Por conta disso a semiologia estaria fadada a “ab- cia geral dos signos mas a semiologia é que é
sorver-se numa translingüística”, declara Barthes uma parte da lingüística, ou seja, a parte que en-
já na introdução dos Elementos, pois só reconhe- carrega-se das grandes unidades significantes do
ceu o estatuto de sistêmico aos diferentes conjun- discurso” (l964, p.13).
tos de objetos ou fatos humanos, quando esses Ao estender dessa forma a lingüística saus-
“pela mediação da linguagem natural tivessem seus suriana aos demais sistemas simbólicos, Barthes
significantes denominados sob a forma de nomen- estava, parece-nos, querendo encontrar tão somen-
claturas e também tivessem seus significados de- te as condições para que pudesse pensar diferen-
nominados sob a forma de usos ou razões” (BAR- tes sistemas simbólicos sob o rigor de um pensa-
THES, l964, p.12). mento científico. Estava, portanto respondendo ao
Nos termos em que foi recolocada por desafio de pensar uma ciência rigorosa dos fatos
Barthes, a semiologia ou ciência geral dos signos humanos. Consideremos como motivador dessa
passa a ser uma parte da lingüística no sentido de iniciativa o fato de que o método lingüístico apre-

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sentava-se, ou era considerado na época, como empresa não se ocupa nem mesmo do vestuário,
rigoroso e científico, provavelmente devido aos nem mesmo da linguagem natural, mas da tradu-
avanços que apresentava em relação às demais ção que a linguagem natural faz do vestuário.
ciências humanas. Assim, o pretenso estruturalis- Ocupou-se assim de publicações de
mo de Barthes na década de sessenta do século moda, em especial de revistas como “Elle” e “Jar-
vinte seria como uma forma de analisar artefatos din des Modes” entre outras como “Vogue” e “Echo
culturais com os métodos e, principalmente, com de la Mode”. Nessas análises percebe-se claramen-
a terminologia lingüística, o que constitui uma ten- te a circunstância em que é realizada a reversão
tativa, como já dissemos, de abordagem de caráter do postulado saussuriano, pois se presencia clara-
sistemático e rigoroso dos fatos culturais. mente o semiológico como um transbordamento
Quanto aos fatos culturais analisados, a do lingüístico, o que faz da linguagem natural, não
moda ocupou lugar de destaque por sua impor- somente o modelo da significação, mas também o
tância no contexto da época. Com respeito a isso seu fundamento, pois é a linguagem natural que
discorreremos mais detidamente no próximo tó- vai permitir a reflexão sobre o sentido da moda.
pico, sobre o plano de análise elaborado e utili- Observa Barthes (1967, p.262) o fato de
zado por Barthes (1967) em Sistema da moda. que a multiplicação e enraizamento do hábito de
Assim, teremos a oportunidade de conhecer mais leitura das publicações de moda nas sociedades
profundamente uma análise semiológica particu- européias contemporâneas modificou o fenôme-
lar e de melhor analisar seu posicionamento, nesse no da moda, transformou-o em fenômeno cultural
caso, relativamente à concepção saussuriana de provido de uma estrutura original. O trabalho da
semiologia. linguagem natural é o de interferir nessa estrutura
“simples”, multiplicando-a em “mil espécies signi-
ficantes”, constituindo o sentido em sua plenitude.
A moda como semiologia particular Para Barthes, a ação das palavras su-
perestima as possibilidades semânticas do ves-
tuário real, principalmente do vestuário foto-
Após 1964 quando publicou Elementos,
grafado, que é comentado em forma de legen-
Barthes deu aos seus estudos um novo rumo, pro-
das. Assim é que ocorre uma atuação no intui-
curou realizar o que chamou de crítica ou desmis-
to de produzir significados, uma vez que o ves-
tificação sistemática das ideologias que motivam
tuário real não oferece sentidos senão em ní-
as produções culturais. O que nos permite identi-
veis rudimentares, como exemplifica Barthes:
ficar essa fase como um avanço relativamente às
“tecidos leves em relação a tecidos pesados”
análises, como dissemos acima, empreendidas em
(l967, p.261). O enunciado encontrado nas pu-
Mitologias. O ganho sistemático referido fez de
blicações constitui um sistema de significações
Sistema da Moda uma obra declarada por ele de
composto de um significante, que é ele pró-
cunho e inspiração estruturalista.
prio e de um significado, que é a moda. Juntos
Sua investigação nessa obra concentrou-
compõem uma unidade de significação.
se, por opção metodológica, na descrição verbal
Ora, Barthes toma assim o vestuário es-
apresentada em publicações de moda. Nessas cir-
crito como exemplo sistemático de signos e de
cunstâncias é que o vestuário foi determinado como
regras da moda. Para ele o vestuário escrito é uma
campo de pesquisa semiológica. A empresa con-
língua em estado puro, já que nunca corresponde
sistiu em analisar “estruturalmente” o vestuário
a uma execução individual das regras da moda,
feminino a partir das publicações de moda. Com o
pois “a língua da moda não emana da “massa de
que já considera o vestuário real, as roupas en-
falantes”, mas de um grupo de decisão, que ela-
quanto tais, como um sistema de signos impoten-
bora voluntariamente o código” (l964, p.28). As-
te para constituir sozinho a sua significação.
sim, tomando por significante do código vestuário
Pelas razões já expostas, aplica a análise
todo enunciado que a publicação de moda dedica
a um certo número de enunciados verbais respon-
ao vestuário, Barthes procura neles descobrir uma
sabilizados pela significação do vestuário, pois
forma constante e diz: “do contrário, não se sabe-
nessa ótica o vestuário real só vai adquirir sua sig-
rá nunca como o sentido vestimentário (que é a
nificação plena quando traduzido em vestuário
moda) será produzido” (l967, p.57).
descrito. O que na verdade percebe-se é que sua

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A análise sobre os enunciados seguiu duas vestigações pertinentes, pois, ao termos presenci-
exigências metódicas sugeridas por Barthes: pri- ado o trabalho de Barthes desde Mitologias, vimos
meiramente “dividir o enunciado em espaços tão que nela considerou a primeira ordem do sistema
reduzidos quanto possível, como se todo enuncia- mítico como de natureza lingüística, isto é, tomou
do de moda fosse uma cadeia na qual importa os diferentes sistemas simbólicos que servem ao
localizar os elos”, em seguida “comparar entre si mito como compartilhando e apresentando “com-
estes fragmentos de espaço, de maneira a deter- portamentos” e “esquemas” do signo lingüístico.
minar segundo que oposições eles produzem sen- Nessa concepção, a linguagem-objeto que serve
tidos diferentes” (l967, p.57). ao mito estaria sendo compreendida e definida pela
Depois de termos apresentado as indica- teoria lingüística do signo e não por uma teoria do
ções do procedimento de Barthes, passaremos a signo em geral.
apresentar, a título de exemplo, a análise (um frag- A prática barthesiana parece-nos estar
mento dela) que realizou sobre o corpus estudado assim “mesclando”, sob a mesma teoria dos sig-
nas publicações de moda. Nessa Barthes elabora nos, aqueles que são naturalmente imotivados (os
uma classificação de sessenta gêneros relativos às lingüísticos) e os motivados (por exemplo, os mi-
espécies levantadas no inventário das publicações. tos contemporâneos). Muito provavelmente por
Citaremos apenas alguns para não sobrecarregar ocasião dessa mescla, vê-se que já em Elementos
a exposição e também por julgarmos suficiente para Barthes anuncia e posteriormente em Sistema da
os comentários posteriores. moda adota a consideração de que a teoria do
signo lingüístico aplica-se à análise semiológica de
GÊNEROS ESPÉCIES diferentes sistemas desde que estes estejam repas-
sados pela linguagem natural. Com isso e por isso,
ACESSÓRIOS (bolsa, luvas, bolsinho etc..) passa a realizar em Sistema da moda, como vi-
LIGADURA (fivelas, gancho, alfinete etc..) mos, análises dos discursos proferidos na descri-
COLAR (corrente, cordão etc..) ção lingüística de sistemas simbólicos em geral.
CALÇADOS (botas, polainas, chinelos etc..) Parece procedente inserir aqui uma crítica
MOTIVO (xadrez, mesclado, florido etc..) feita por Giles Gaston Granger (1950) no capítulo
VESTIDO (tubinho, uniforme etc..) V da obra Linguagem e epistemologia, onde consi-
MATERIAL (couro, tecidos, palha etc..) dera abusiva a aplicação da noção de língua a pro-
pósito de qualquer sistema simbólico, de qualquer
Nesses termos, a tarefa do semiólogo é fato cultural, pois em verdade, considera que tais
dupla, isto é, deve em primeiro lugar assumir a fatos possam existir enquanto sistema, mas alerta
lógica da pesquisa que é inventariar e classificar. que seus signos nem por isso podem sempre ser
Contudo, a etapa posterior, que seria a de elaborar chamados saussurianos. Isso pelo fato de o valor
modelos, não foi realizada por Barthes, questão dos signos extralingüísticos não ser neles só negati-
que será mais adiante explicitada. vo ou opositivo, como no signo lingüístico.
Em resumo, em Sistema da moda a descri- Reconhece Granger que, muitas vezes, as
ção lingüística é que vai explicitar a significação dos propriedades de uma língua são atribuídas sem
diferentes sistemas simbólicos. Claro que também problemas a sistemas onde não se aplicam sem
aqui, pelo que foi apresentado, diverge da noção problemas, isso pelo simples fato de diferentes sis-
saussuriana de sistema, da combinatória autônoma e temas serem tomados como linguagens, em fun-
abstrata concebida por Saussure. Tais observações ção do que se está, por equívoco ou precipitação,
serão melhor explicitadas no próximo tópico. emprestando a diferentes sistemas a forma de uma
língua. Trata-se justamente do alerta que procura-
mos fazer relativamente à particular concepção e
Uma reflexão sobre o que foi dito prática semiológica de Barthes.
Por isso, a crítica de Granger parece-nos
pertinente, pois realça a impropriedade de se to-
Comecemos investigando qual a perti- mar a linguagem natural como protótipo de siste-
nência da dedução da natureza dos signos extra- mas simbólicos em geral, ainda que estejamos au-
lingüísticos a partir do signo lingüístico que Bar- torizados a tomá-la como sistema simbólico por
thes opera em Sistema da Moda. Trata-se de in-

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Roland Barthes:um semiólogo nômade

excelência, justamente em virtude de sua comple- Barthes, se não houvesse o propósito de garantir
xidade estrutural, já apontada por Saussure e não o rigor, ou seja, a isomorfia dos conceitos trans-
por apresentar traços elementares e fundamentais postos de um sistema para outro. Felizmente, Bar-
que compreendam toda ordem simbólica. thes refere-se ao par língua/fala, como sendo um
Ainda nessa crítica, deixemos claro que instrumento ou uma categoria, que se pensaria ser
Barthes não está fazendo uma descrição da estru- suficientemente geral para permitir e viabilizar a
tura do “costume-signo”, mas, sim, do “costume- preparação da pesquisa semiológica em diferen-
discurso”. Essa troca de papéis pode levar à con- tes campos. Com essa correção, Barthes nos faz
fusão ou identificação do sistema simbólico da ver que a reunião desses conceitos não garante
moda, longe de ser um sistema estruturado como necessariamente sua subsistência no decurso da
a linguagem natural, com o seu reflexo lingüístico. pesquisa. De fato, Barthes mostra-nos que nem
Contudo, devemos reconhecer que esta transfigu- mesmo a semiologia deve ou deverá sempre se-
ração, desde que consciente e explícita, pode as- guir estritamente o mesmo modelo, com o que
sumir uma certa importância para a descrição e reconhece que um possível “desvio” ou uma pos-
explicação de diferentes fatos simbólicos. sível “adaptação” das prescrições saussurianas, não
Após termos criticado a intenção de Bar- corresponderia a um abandono da construção da
thes de extrair da ciência lingüística um instrumental ciência semiológica, nem mesmo motivo para al-
suficientemente válido para o exercício da pesqui- terar-lhe o nome.
sa semiológica, reconheçamos que o recurso aos Segundo estas últimas argumentações que
esquemas lingüísticos teve por objetivo permitir aparecem claramente já nos primeiros capítulos dos
análises bem mais sistemáticas. Ainda a propósito Elementos conceitos como língua/fala, significan-
do recurso que Barthes fez aos esquemas lingüís- te/significado, seriam, digamos agora, apenas prin-
ticos vale verificar os impasses e as justificativas cípios de classificação que permitiriam a introdu-
de sua proposta de estruturação semiológica a partir ção de uma ordem inicial na massa diversificada
do binômio língua/fala. Nossa intenção nesse caso dos fatos culturais, podendo tais princípios orde-
fica sendo a de saber se a utilização que fez dos nadores permanecerem sempre provisórios ou
conceitos lingüísticos como língua/fala (ao consi- substituíveis. Assim, ao postular a existência de
derar o vestuário descrito, por exemplo, como uma uma categoria geral língua e fala extensiva a todos
língua em estado puro), não passa de uma orna- os sistemas de significação ele o faz reconhecen-
mentação de sua prática de escrita sobre moda, do que “na falta de algo melhor, conservaremos
publicidade e outras coisas. aqui os termos língua e fala, mesmo que não se
O binômio lingüístico foi utilizado, desta- aplicarem a comunicações cuja substância não seja
quemos, como se reproduzisse uma possível estru- verbal” (BARTHES, l964, p.28). Identificamos nes-
tura binária do sistema que descreve. Tal conceito sa citação uma nítida declaração de independên-
reconhecidamente presente na linguagem natural, cia intelectual, conceitual e metodológica, por conta
é apontado por Barthes como igualmente presente do que Barthes manteve sempre a marca de quem
na moda, na alimentação, enfim, nos diferentes “sis- estava iniciando, criando propriamente uma ativi-
temas” que a linguagem natural descreve. Assim dade intelectual.
podemos criticar Barthes, por ter chamado o vestu- Continuando nessa linha de raciocínio,
ário descrito de uma língua em estado puro, justa- Barthes diz ainda: “vimos que a separação entre
mente quando nos parece uma impropriedade. Sa- língua e fala constitui o essencial da análise lin-
bemos que um sistema, como o que se referiu, que güística; seria vão, pois, propor logo de saída esta
seja elaborado a partir de um grupo de decisão ja- separação para sistema de objetos, imagens ou
mais poderia ser assimilado à noção saussuriana de comportamentos que ainda não foram estudados
sistema. A “língua” do vestuário descrito é justa- sob um ponto de vista semântico. Podemos, so-
mente, como descrita, marcada pelo aspecto da mente para alguns dos sistemas propostos, prever
motivação e de um tipo de convencionalismo, ca- que certas classes de fatos pertencerão à categoria
racterísticas que negam todo o princípio de autono- língua e outros à categoria fala, dizendo logo que,
mia do sistema, proposto por Saussure. nesta passagem semiológica, a distinção saussuri-
Contudo, utilizações conceituais desse ana está exposta a modificações, as quais cumpri-
tipo pareceriam reduções ingênuas da parte de rá precisamente observar” (l964, p.28).

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Por enquanto, com vistas nas justificati- dos anos e das obras, encontramos um Barthes
vas acima apresentadas, parece ficar claro que que considera sistemas simbólicos sob nova ótica.
Barthes não estava e nem nunca esteve incorren- Trata-se de manter a noção de que fatos simbóli-
do em uma precipitação ou ingenuidade, antes cos possam ainda constituir sistemas, mas que pro-
esteve sempre consciente das dificuldades teóri- duzem sentidos intermináveis.
cas de postular uma prática semiológica onde con- Essa é uma abordagem seminal para sua
ceitos são por hora utilizados e não construídos. nova concepção de semiologia, pois além de ate-
No entanto, não por ignorar as incompatibilida- nuar a noção de sistema, altera sua expectativa em
des, mas por acreditar nas possibilidades, mante- relação aos sistemas extralingüísticos. Claro que
ve, por algum tempo, o “sonho” de poder analisar alterando igualmente sua concepção de ciência e
estruturalmente fatos sociais. Análise que, respal- de rigor, o que procuraremos demonstrar apresen-
dada na “cientificidade” do método adotado, esta- tando conceitos como código, sistema, estrutura,
ria, por assim dizer, conferida de autenticidade, metalinguagem e hermenêutica, que sofreram mo-
podendo com segurança explicitar códigos, os que dificações em seu novo percurso de
respaldariam as ideologias da sociedade burguesa semiólogo-hermeneuta. Certamente Barthes avan-
de sua época, da qual sempre foi crítico ferrenho. çou em seu percurso consciente e determinado a
Por fim, lembremos que tratamos nesse não mais fazer ciência como um dia pretendeu,
tópico do uso que Barthes fez da noção saussuria- contudo sabendo que conduzia a investigação dos
na de língua. Para concluir, lembremos que o “so- signos até onde esta pudesse estender-se. Comece-
nho” a que nos referimos, mantido até Sistema da mos por reconhecer que foi por conta de tais mu-
moda, acabou por ser deixado de lado por Bar- danças que sua semiologia deixou de ser um ramo
thes, recusando o estruturalismo e distanciando-se da lingüística, pois o fato cultural semiológico, nes-
da lingüística e de seus conceitos. A fase sas circunstâncias, deixou progressivamente de ser
pós-estruturalista de Barthes merece de nossa par- pensado como sistêmico, ao menos em termos de
te especial atenção por constituir uma nova pers- uma isomorfia com a língua saussuriana.
pectiva semiológica, por isso lhe dedicaremos o Rompe com a submissão à lingüística, uma
tópico a seguir. vez que deixa de privilegiar a linguagem natural
relativamente a outros fatos simbólicos, como se a
estivesse destituindo do alto posto que ocupou na
O pós-estruturalismo de Barthes hierarquia dos sistemas simbólicos. É certo que
estamos diante do nascedouro de uma nova con-
Até aqui, presenciamos um Barthes com cepção de semiologia. Se antes a idéia de uma
pretensões estruturalista, desejoso de instituir uma ciência abrangente desempenhava um papel im-
semiologia de cunho científico com métodos e portante para sua tendência estruturalista, depois
resultados rigorosos. Foi com essa perspectiva que de S/Z, quando passou a ser visto como
pretendeu extrair sentidos, desmontar significações, pós-estruturalista, a noção de rigor científico foi
atingir códigos que organizam fatos simbólicos, substituída pela de “interpretação possível”, ou
explicando seu funcionamento. Supôs até então ainda, de um “amplo questionamento”. Passou
que a explicitação dos códigos pudesse conferir Barthes a praticar um amplo questionamento com
autenticidade a uma análise, ficando claro que tal o objetivo de produzir análises reveladoras do fun-
concepção de ciência e de rigor sempre corres- cionamento dos fatos simbólicos, fazendo destes
pondeu à concepção saussuriana de ciência. o que podemos livremente chamar de leituras in-
Nessa prática incorreu até optar por uma teressantes.
hermenêutica ou interpretação dos fatos, abando- Sua nova postura foi mais radical no que
nando a idéia de promover uma análise científica diz respeito ao rompimento com o passado do que
sobre o funcionamento dos sistemas simbólicos parece à primeira vista. O fato simbólico passou a
em geral, ou seja, rejeitando a idéia saussuriana de ser visto como uma precária arquitetura de figu-
uma ciência estrutural dos signos. Por ocasião dessa ras sem ordem, ou, para sermos menos contun-
nova postura, isto é, de uma fase onde as frontei- dentes, de uma ordem fluida, isto é, um conjunto
ras entre estruturalismo e semiologia começam a fértil e interminável de ângulos e lugares. Passou a
ganhar novo aspecto, que é crescente ao longo recusar para os fatos simbólicos analisados qual-

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quer redução a fronteiras bem definidas e delimi- Dessa obra tentaremos retirar e expor a
tadas; recusa a existência de uma causa eficiente, noção de hermenêutica, por isso extrairemos, em
de um sistema subjacente presidindo-os. A partir forma de citações, não propriamente exemplos da
de S/Z, ou ainda nesta obra, deixou de realizar a análise que elabora da obra de Balzac, mas as jus-
quebra do texto em busca de códigos, inauguran- tificativas teóricas de seu novo ponto de vista. Nessa
do como dissemos sua fase pós-estruturalista, com obra, a própria análise é uma leitura e sua opera-
a renúncia ao código, onde os diferentes aspectos ção já é toda a pesquisa do sentido, onde será
do sentido passaram a ser explicados necessário meios para reconhecer este sentido. Para
aplicando-lhes a hermenêutica, a interpretação isso, consideramos que é necessário definir, se-
como recurso. gundo Barthes, a própria operação de leitura, o
Com o que foi dito até agora, relativo ao que faremos recorrendo a uma citação: “Ler, com
pós-estruturalismo de Barthes e de sua identifica- efeito, representa um trabalho de linguagem. Ler é
ção da semiologia com a hermenêutica, cremos encontrar sentidos e encontrar sentidos é
ser imprescindível procedermos a uma análise das denominá-los; mas estes sentidos denominados são
obras que nos apresentam o novo Barthes, sua levados a outros nomes; os nomes se atraem,
nova concepção, como prometido acima, dos con- reunem-se e seu agrupamento leva-nos a mais uma
ceitos propostos como código, estrutura, sistema vez se fazer designar...” (BARTHES, l970, p.l7).
simbólico e análise semiológica. Trata-se das obras Com isso, não podemos considerar, se-
S/Z, Fragmentos de um discurso amoroso e Aula. gundo Barthes, o ato de ler como o de simples-
Nestas, o abandono do estruturalismo de inspira- mente colocar o leitor diante de um texto, pois o
ção saussuriano, bem como do desígnio de cienti- leitor, colocado diante dele, já é ele próprio “outro
ficidade prognosticado pelo estruturalismo lingüís- texto”, outros e infinitos códigos, novos códigos e
tico ficam bem representados. Nestas recolhere- discursos. Essa multiplicidade ou pluralidade, se-
mos brevemente as caracterizações desejadas para gundo a qual o leitor é concebido, permite a Bar-
a exemplificação de sua nova concepção semioló- thes atingir múltiplas possibilidades, isto é, o leitor
gica. é enquadrado dentro de uma prática de leitura onde
Uma vez percorridas as obras menciona- o conceito de verdade é dela suprimido, pois tan-
das, poderemos, de forma mais segura, concluir to a leitura como a releitura podem e, neste caso,
pela identificação já anunciada da semiologia com têm por finalidade “multiplicar os significados, e
a hermenêutica. Isto será de grande valia para com- não chegar a um significado final qualquer deter-
preendermos sua concepção semiológica mais minado” (BARTHES, l970, p.17).
madura. Feito isso, estaremos aptos a compreen- Quanto ao texto, Barthes reconhece igual-
der a própria ruptura ocorrida no interior das mente seu “plural”, ou seja, o texto é tido como
práticas semiológicas de Barthes. Passemos a elas. uma galáxia de significantes e não uma estrutura
de significados. Entendemos que o texto de leitura
é idealmente plural, não tem propriamente come-
A hermenêutica como nova fase da ço e além de tudo é reversível, diz Barthes, “a ele
semiologia se tem acesso por diversas portas, nenhuma
das quais pode ser com segurança declarada
principal” (Barthes, l970, p.11). Do ponto de vista
Trataremos aqui inicialmente de uma aná-
metodológico, o plural do texto acarreta uma
lise textual da obra Sarracine de Balzac, levada a
importante conseqüência: “nada de construção
cabo por Barthes em S/Z, onde o S representa o
do texto, tudo significa constantemente e por di-
escultor Sarracine e Z o personagem Zambinella.
versas vezes, mas sem delegação a um grande
O próprio título, no que tem de pouco esclarece-
conjunto final, a uma estrutura derradeira” (Bar-
dor sobre o conteúdo da obra, já é um convite a
thes, l970, p.18). O leitor, em sua concepção,
que se invista em diversas interpretações possíveis
traça ao longo do texto zonas de leituras a fim de
em sua leitura. A obra total constitui um exame
nelas observar a migração dos sentidos e o aflorar
semiológico de um texto clássico. Trata-se de um
dos códigos.
tipo de metodologia aberta de leitura de texto que
Como se vê, já nessa obra Barthes não
chamaremos de “plural”, o que procuraremos ex-
mais pretendeu manifestar estruturas, mas produ-
plicar nos parágrafos seguintes.

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zir, na medida do possível, uma “estruturação” que ção de sintomas, mas sim fazer ouvir o que há de
só podemos agora conceber como um trançar de inatual na sua voz, quer dizer, de intratável” (BA-
códigos envolvidos circunstancialmente na leitura RHTES, l977, p.l). Assim, Barthes substituiu a “des-
do texto. Advirtamos que o que aqui ainda está crição do discurso amoroso” por uma simulação
sendo chamado de código nada mais pode ser do que representou um “pôr em cena uma enuncia-
que algo sem contorno fixo e definido, algo que ção e não uma análise”. Para isso adotou o que
desperta interesse justamente por não poder ser chamou, na obra, de figuras ou frações de discur-
assumido por alguém, a não ser pelo leitor que os sos captados intuitivamente. A escolha, a defini-
elabora a partir de sua relação com o texto. ção ou o destaque dessas figuras ou fragmentos
Nessa perspectiva acaba por romper defi- do discurso estão apoiados no que se pode cha-
nitivamente com o modelo lingüístico de análise, mar de feeling, um guia que é o sentimento amo-
uma vez que, como vimos, prioriza o comentário roso de cada um.
relativo às variações dos elementos do texto, dei- Por exemplo, nessa obra destaca e apre-
xando de buscar suas relações constantes. Essa re- senta uma figura que chamou angústia, sobre a
novação trouxe consigo mudanças na terminologia qual não elaborou uma definição, mas um argu-
e no instrumental conceitual empregado, mas ver- mento no sentido de ter sido simplesmente expos-
dadeiramente o que caracteriza a mencionada rup- to ou inventado. Barthes justifica-a a pretexto de
tura é a recusa da busca de um significado ou sen- preenchê-lo e destacá-lo. Vejamos como opera:
tido determinado em uma estrutura subjacente. “Angústia: O sujeito apaixonado, do sabor de uma
No que diz respeito à recusa da busca de ou outra contingência, se deixa levar pelo medo
uma estrutura subjacente, a leitura que empreen- de algum perigo, de uma mágoa, de um abando-
de deixa de ser o resultado de uma postura meto- no, de uma reviravolta, sentimento que ele expri-
dológica visando a um questionamento do senti- me sob o nome de angústia.” (BARTHES, l977,
do intrínseco, produzido nas relações recíprocas p.22). Ora, esse tema (da figura angústia) existe,
entre os elementos de uma estrutura subjacente. A porque em algum lugar alguém o sente e excla-
análise semiológica passa a ser o saber que o lei- ma-o.
tor ativo pode obter a partir de seu relacionamen- Para demonstrar o caráter aleatório do que
to com o texto, que, nestas circunstâncias, Barthes chamou de figura, Barthes define seu arranjo da
o chamou de “implícito e irrecuperável”. O legado seguinte maneira: “as figuras surgem na cabeça do
maior de S/Z foi, nesse sentido, a compreensão apaixonado sem nenhuma ordem, porque depen-
de que o significado de uma obra nunca é preen- dem cada vez de um acaso, nenhuma lógica os
chido pelo próprio texto, antes pelos que o lêem. liga nem determina sua contigüidade” (BARTHES,
A reformulação em sua concepção semi- l977, p.4). Por fim reconhece que para compor as
ológica que é o que nos interessa, faz-se também diferentes figuras, nomeá-las e escolher fragmen-
presente em Fragmentos de um discurso amoroso. tos, recolheu trechos de diversas origens como
Ocupou-se Barthes do discurso amoroso alegan- leituras regulares, ocasionais, conversas com ami-
do indiferença e abandono que o mundo contem- gos e das suas próprias vivências.
porâneo lhe impôs. Ele foi, no argumento de Bar- O discurso amoroso, como Barthes o con-
thes, deixado de lado pela ciência, pelas artes e cebeu nessa obra, está longe de ser considerado
precisa por isso de uma afirmação. Essa obra não um aglomerado de sintomas que requeira uma in-
contém uma metalinguagem, não é propriamente vestigação em busca de sua causa eficiente ou
uma análise sobre o discurso amoroso, antes é um motivadora. Trata-se, arriscaremos dizer, de um
discurso, digamos sucintamente, apresentado por lugar cujos contornos são imprecisos e, por conta
uma pessoa fundamental que é o “eu”, o que enun- disso, extensivo ao âmbito da parole e dotado de
cia o discurso, o sentimento. uma langue (se houver) muito tênue e de apreen-
Ao ter reconhecido no prólogo de Frag- são escorregadia. O discurso amoroso é, nesse
mentos que o discurso amoroso tem sido excluído enfoque, a-taxiológico e injustificável relativamente
de áreas como as artes e a ciência, Barthes pro- a um ponto fixo que lhe sirva de referência.
pôs, não lhe estender estas áreas, mas dar-lhe uma O aspecto que fica bastante claro na lei-
afirmação, adotando o princípio de que “não é tura de Fragmentos é o desinteresse de Barthes
preciso reduzir o enamorado a uma simples cole- em deter ou reter o significado, mas antes em

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Roland Barthes:um semiólogo nômade

fundá-lo, isto é, não existe nele a preocupação Conclusão


de explicar possíveis sentidos gerados a partir
de uma rede abstrata de elementos opositivos, Uma conclusão sempre suscita uma re-
mas apenas de engendrá-los e inaugurá-los re- trospectiva relativamente àquilo que se quer con-
lativamente à riqueza que o texto literário, en- cluir. Assim, lembremos que a semiologia barthe-
quanto material significante, apresenta. A pro- siana nasceu de seu inconformismo diante, diga-
dução de sentidos ou significados, aqui assume mos, da má-fé presente nos mitos contemporâne-
ares de subjetividade. Não se trata, pelo que vem os, descritos em Mitologias, contra os quais Bar-
sendo dito, de uma metalinguagem, mas de uma thes colocou seus préstimos de semiólogo, enten-
linguagem primeira, ou melhor, uma linguagem dido naquela ocasião, por ele, como mitoclasta ou
adjunta que cria o sentido, pois diante do texto semioclasta.
o leitor é também escritor, ou ainda, reescritor Definida por Saussure como a ciência
do texto. geral dos signos, estava a semiologia ligada intrin-
A, podemos agora chamar, análi- secamente à lingüística. Tal concepção, aceita ini-
se-comentário, longe de empregar uma linguagem cialmente por Barthes, conduziu-o ao norteamen-
que incide sobre um fato simbólico visando cons- to de suas pesquisas relativas aos fatos simbólicos
truir (abstrair-lhe) um modelo que o represente é, pela via do estruturalismo. Motivação que alimen-
antes, vista aqui como uma extensão da própria tou em Elementos de semiologia e Sistema da moda.
atividade criadora inicial, como uma prática que Sua postura inicial, em legitimar-se como
visa, ao tomar um fato, incrementar-lhe os senti- saussuriano, logo se mostrou vacilante. Acrescen-
dos, ampliar suas possibilidades significativas, ex- temos agora que na célebre exposição oral, sua
plorar sua potencialidade simbólica. Quando con- aula inaugural da cadeira de semiologia literária
cebemos aqui o movimento de produção de senti- do Colégio de França, pronunciada em 1977, três
dos, como advindo da própria atividade semioló- anos antes de sua morte, posteriormente publica-
gica, acabamos (por influência de Barthes) de apre- da com o título de Leçon, Barthes reconheceu ter
ciar seu movimento de recusa de toda e qualquer relacionado sua pesquisa, desde o início, ao nasci-
pretensão à objetividade, à obtenção de um senti- mento e desenvolvimento da semiologia estrutu-
do obtido por abstração. ralista. Reconhece também que sua tendência a
Reitere-se que a recusa da semiologia deslocar seus conceitos básicos (da semiologia)
como metalinguagem, já presente nessa obra, é a retirou-lhe a condição de representante da ciência
rejeição de considerá-la como uma linguagem ex- saussuriana. Nessa mesma ocasião, definiu a semi-
terior à linguagem que supostamente descreve. Ao ologia que se propunha a lecionar como uma ati-
assim conceber, retira a possibilidade de uma ca- vidade que, longe de negar o signo, “nega que
racterização científica para a atividade semiológi- seja possível atribuir-lhe caracteres positivos, fixos,
ca, como, reiteremos, uma atividade distanciada a-históricos, a-corpóreos, em suma, científicos”
que oferece uma descrição de sistemas simbólicos (BARTHES, l977, p.37).
por meio de modelos abstratos. Em outras palavras, Barthes define a se-
Muito provavelmente estamos agora em miologia negando-lhe a condição de chave de lei-
condições bastante satisfatórias para compreender tura dos fatos simbólicos, isto é, de instrumento
o que foi dito acima da prática semiológica de que permitiria a apreensão laboriosa destes.
Barthes, como sendo uma “leitura interessante”, Nega-lhe agora a possibilidade ou tarefa de abs-
uma “interpretação possível”, ou ainda, um “am- tratamente construir sobre os fatos simbólicos sis-
plo questionamento”. Uma leitura que antes de temas de regras que os tornem inteligíveis por esta
tudo deixa de ser metalinguagem passando a ser via. Diz ele que, quanto aos fatos humanos, a se-
uma linguagem produtora de sentidos, o que para miologia deve buscar “soerguê-los em certos pon-
Barthes pode representar um “ganho” do herme- tos e em certos momentos” (BARTHES, l977, p.39).
neuta, que faz uma leitura valorizante do vivido, Tratar os fatos humanos dessa maneira constitui
sobre o semiólogo estruturalista. Registre-se que a uma prática longínqua do abstracionismo científi-
recusa da metalinguagem em benefício da lingua- co proposto por Saussure.
gem produtora de sentidos guarda o ponto de in- Ora, a conseqüência dessa concepção é
flexão principal da carreira de Barthes. que a semiologia não pode ser ela própria meta-

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Francisco Verardi Bocca

linguagem, pelos motivos já expostos anteriormente quisa das formas ou modelos explicativos dos fa-
e particularmente porque a atividade semiológica tos humanos, passando a reconhecer e privilegiar
remete-se a signos com o auxílio de signos, o que a historicidade da investigação que, na nova pers-
torna inadequado conceber a exterioridade de uma pectiva, coloca-se permanentemente em marcha.
linguagem em relação à outra. Nosso autor afirma com sua atitude a possibilida-
Por fim, podemos dizer que não há mais de de que, por atos de “invenção”, significados
em sua perspectiva a busca de estruturas abstratas sejam permanentemente elaborados.
a serem reconhecidas, que não há mais busca de Apresenta Barthes uma nova visão de um
um sentido proveniente de um sistema autônomo. mundo que contém apenas um grau muito tênue
Há sim a busca de um sentido que, sem ser con- de organização. Tênue, no sentido de que tem cri-
vencional, sem se apoiar em códigos explícitos, é ado “a cada vez” os objetos de que carece e os
definido subjetivamente, circunstancialmente e his- mecanismos ou formas de organizá-los. Queremos
toricamente. Em função disso, podemos dizer que dizer que tal perspectiva insere-se no que Umber-
ocorre igualmente uma relativização da distinção to Eco chamou de Obra aberta, isto é, de uma
saussuriana de língua/fala. obra que elabora seu código (que não a precede),
Assim, a semiologia de Barthes,$eixa de que o funda a partir de si mesmo, que oferece a
postular o papel de uma ciência autônoma, como chave de sua própria leitura. A perspectiva de Bar-
queria Saussure. Antes, deve ela ser auxiliar das thes passa a ser a de uma atividade que, longe de
demais disciplinas. O semiólogo seria, respaldado visar a descobrir estruturas, visa a construir ad in-
por uma nova filosofia da linguagem, muito mais finitum novas realidades, novos simbolismos onde
um artista do que um cientista que compreende a sua pesquisa, homologamente ao processo de pro-
evidência do signo que lhe salta aos olhos. dução, já é atividade produtora de formas e de
Por conta de sua concepção atual de se- significados.
miologia, Barthes, radicalizando, recusa-lhe inclu- Por fim, cremos ter apresentado o per-
sive a denominação de hermenêutica e justifica curso evolutivo das concepções e práticas semio-
em Leçon, dizendo que “ela pinta mais que pers- lógicas de Barthes, justificando o nomadismo que
cruta” (BARTHES, l977, p.40). Dissemos tratar-se lhe atribuímos no título desse artigo.
da recusa de uma caracterização da semiologia
como hermenêutica, quando esta é ainda definida
como procedimento de estudo, de sondagem, de Referências
indagação ou investigação que vise a produzir
deciframentos e apresentar resultados sistemáticos. BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, l957.
Quer com isso recusar uma identificação de sua
semiologia com todo e qualquer método que pos- _______ Elementos de semiologia. São Paulo: Cul-
sa ser considerado heurístico, isto é, um método trix, l964.
para o descobrimento de verdades. _______ O Sistema da moda. São Paulo: Edusp,
Com isso, Barthes quer atribuir à sua se- l967.
miologia apenas o caráter de uma leitura valori-
zante do vivido. Assim, apenas na medida em que _______ S/Z. Paris: Seuil, l970.
a hermenêutica possa ser abstraída de qualquer _______ Fragmentos de um discurso amoroso. São
resquício de sistematicidade, disciplina e rigor, pode Paulo: Francisco Alves, l977.
ser identificada com sua semiologia. Esta recusa
implica, como dissemos, abandonar a pretensão _______ Aula. São Paulo: Cultrix, l977.
estruturalista que visa a descobrir estruturas (no
_______ A câmara clara. São Paulo: Nova Fron-
caso de um estruturalismo ontológico) ou mesmo
teira, l980.
construí-las (no caso de um estruturalismo meto-
dológico). BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II.
Agindo assim, Barthes, como vimos, subs- São Paulo: Pontes, l974.
tituiu o pólo da permanência pelo pólo do devir, o
que não caracterizou uma simples e ingênua ne- DE SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. São
gação do estruturalismo. Apenas abandona a pes- Paulo: Cultrix, l915.

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Roland Barthes:um semiólogo nômade

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