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Quando o campo é o patrimônio: notas sobre

a participação de antropólogos nas questões


do patrimônio*
REGINA ABREU**

Resumo: É crescente o número de antropólogos que fazem pesquisas no campo do


Patrimônio. Do ponto de vista reflexivo, muitos destes pesquisadores têm contribuído
com análises acuradas sobre a questão do valor e de suas atribuições no contexto social,
uma vez que os bens culturais patrimonializados são aqueles com forte conteúdo simbólico,
capazes de expressar e/ou representar nações, regiões, etnias ou grupos sociais. Por outro
lado, o fato do campo do Patrimônio constituir-se também enquanto um campo de
intervenção social faz com que, em muitos casos, à perspectiva reflexiva dos pesquisadores
sejam adicionados outros interesses e demandas.Entre os antropólogos que estudam,
refletem e produzem sobre o Patrimônio e os antropólogos que se colocam como agentes
ativos do Patrimônio podemos mapear correntes, vertentes e tendências. Nos anos mais
recentes, tanto no contexto nacional quanto internacional, estas tensões e/ou conjugações
entre atividades reflexivas e práticas vêm ganhando novos contornos com a implementação
de uma política voltada para o inventário e registro do chamado Patrimônio Intangível.
Particularmente neste campo, os antropólogos vêm ocupando espaço expressivo e sendo
instados a formular critérios e metodologias capazes de ampliar a patrimonialização das
diferenças culturais. O artigo visa mapear as diferentes posições dos antropólogos no
campo do Patrimônio discutindo as tensões e/ou conjugações entre diversas formas de
atuação, reflexivas e/ou práticas.
Palavras-chave: patrimônio; antropologia; memória social.

1 Apresentação antropólogos em um território antes hegemo-


nicamente marcado pela atuação de arquitetos,
Na última eleição da diretoria da Associa- historiadores e, em menor escala, sociólogos.
ção Brasileira de Antropologia, aprovamos em Temos diante de nós um imenso desafio: como
assembléia a criação do Grupo de Trabalho de atuar em um campo onde os antropólogos são
Patrimônio, ligado à presidência da entidade. convocados tanto para atividades reflexivas
Essa resolução expressa não apenas o cresci- como para atividades práticas de intervenção,
mento de uma área de estudos, mas a repentina como emitir pareceres relativos a processos de
abertura de um vasto mercado de trabalho para tombamento e registros do patrimônio intangível
ou até mesmo formular políticas no interior de
* Este artigo foi originalmente apresentado como comuni- organismos estatais?
cação no seminário Quando o Campo é o Arquivo, organi-
zado pelo CPDOC/FGV nos dias 25 e 26 de novembro de Com o intuito de traçar algumas estratégias
2004. Agradeço o convite dos professores Celso Castro e e alertar para os cuidados necessários para dar
Olívia Gomes, organizadores do evento. conta dessas novas demandas, o Grupo de Tra-
** Professora adjunta de Antropologia Social da Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). E-mail:
balho de Patrimônio, coordenado por Manuel
regabreu@ism.com.br Ferreira Lima Filho, do Mestrado em Gestão do

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Patrimônio Cultural da Universidade Católica de 2 A perspectiva reflexiva


Goiás, e por mim, que atuo no Mestrado em
Memória Social da Unirio, reuniu-se informal- 2.1 Trabalhos produzidos em universidades
mente na última reunião da Anpocs, em e centros de pesquisa
Caxambu, em outubro de 2004. A reunião contou Algumas teses e pesquisas sobre o patri-
com a participação de José Reginaldo Santos mônio elaboradas por antropólogos, que datam
Gonçalves, do IFCS-UFRJ; de Maria Eunice dos anos 80, contribuíram para abrir uma nova
Maciel e de Ruben George Oliven, ambos do área de estudos. O trabalho de Antonio Augusto
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Arantes, Produzindo o passado, publicado em
Social da Universidade Federal do Rio Grande 1984, é uma referência nesse sentido. Outra
do Sul; de José Guilherme Magnani, do Depar- pesquisa importante conduzida por um antro-
tamento de Antropologia da USP; de Alexandre pólogo é a de José Reginaldo Santos Gonçalves,
Corrêa, do Departamento de Antropologia da intitulada Retórica da perda – Os discursos
Universidade Federal do Maranhão; de Julie do patrimônio cultural no Brasil, original-
Cavignac, do Departamento de Antropologia da mente tese de doutorado defendida no Depar-
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. tamento de Antropologia da Universidade de
Esse pequeno núcleo, formado por antropólogos Virginia, nos Estados Unidos, e publicada em
atuantes no campo do patrimônio, seja com teses 1996 pela Editora da UFRJ. Ambos os trabalhos
defendidas sobre o tema, seja com trabalhos de são considerados marcos da reflexão antro-
pesquisa ou incursões diversas na área, elaborou pológica sobre o patrimônio no Brasil. Um tema
uma primeira lista, com um levantamento de antes tratado por arquitetos e historiadores
antropólogos pesquisando sobre o tema ou no passava a ser focalizado sob o viés da antro-
campo do patrimônio. Chegou-se a algumas pologia. A tônica destes trabalhos consistiu em
dezenas de nomes em universidades e insti- apresentar uma visão desnaturalizada de um
tuições em todo o Brasil, entre eles antropólogos campo eivado por ideologias e paixões, sobre-
antes associados a outras áreas, como Roque tudo de cunho nacionalista. Arantes e Gonçalves
de Barros Laraia, cujos principais trabalhos esforçaram-se por propor uma outra leitura de
relacionam-se à etnologia indígena, mas que construções discursivas particularmente eficazes
recentemente se tornou professor do Mestrado na fabricação de uma memória e de uma
em Gestão do Patrimônio Cultural da Univer- identidade nacionais. Ao mostrar o quanto essas
sidade Católica de Goiás, ou Gilberto Velho e construções discursivas são datadas na história
Luiz Fernando Duarte, ambos do PPGAS-MN/ do Ocidente, e a maneira como elas foram sendo
UFRJ, que participaram do Conselho do Instituto construídas por intermédio de políticas espe-
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em cíficas no interior do aparelho de Estado, esses
diferentes períodos. O nome de maior destaque trabalhos abriram nova perspectiva no campo
é o de Antonio Augusto Arantes, doutor pela dos estudos de patrimônio. Particularmente o
Unicamp com uma tese sobre patrimônio, que trabalho de Gonçalves iniciou um diálogo
assumiu este ano a presidência do Instituto do importante com antropólogos americanos de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, linhagem interpretativista como Richard Handler
atuando duplamente como autoridade acadêmica e James Clifford e toda uma área de estudos
e formulador de políticas. antropológicos voltada para memória social,
Quais as razões do crescimento repentino museus, práticas de colecionamento e patri-
da inserção de antropólogos nessa nova área mônios. Essas pesquisas problematizaram
de trabalho e de estudos? Como os antropólogos sobretudo o tema do patrimônio nacional,
vêm atuando nesse setor? O que significa para evidenciando sua relação com o caráter
um antropólogo fazer do patrimônio o seu arbitrário das nações modernas como “comu-
campo? De que maneiras isso vem se dando? nidades imaginadas” (Benedict Anderson, 1989)
e a necessidade de construções discursivas e
alegorias capazes de expressar certa ilusão de

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homogeneidade e coesão para os Estados- de colecionamento, com o intuito de formar um


nações. mosaico “autenticamente” nacional. O tema da
A estratégia de Gonçalves foi analisar duas autenticidade é colocado em relevo. Gonçalves,
narrativas centrais na formulação de políticas utilizando-se de estratégia etnográfica e tomando
do patrimônio no Brasil, a de Rodrigo Mello os discursos de Rodrigo Mello Franco de
Franco de Andrade – um dos idealizadores e Andrade e de Aloísio Magalhães como os de
primeiro diretor do Sphan, que inspirou sua informantes selecionados, em uma pesquisa de
política de 1937 a 1979 – e a de Aloísio campo produz a relativização dessa categoria
Magalhães – que esteve à frente do Sphan/Pró- fundante das modernas ideologias ocidentais.
Memória por um curto período, de 1979 a 1983, O tema do patrimônio emerge assim como
mas que foi decisivo para sua transformação. um lugar de construção de valores e, como tal,
Ao tomar o patrimônio como um campo no extremamente plástico e variável. O bem cultural
sentido etnográfico, essas duas pesquisas “autêntico”, como representação metafórica da
evidenciaram as estratégias de construção ou totalidade nacional, é desnaturalizado e a sua
de invenção de bens considerados dignos para face ideológica e ficcional, descortinada. Gon-
representar a memória e a identidade nacionais çalves está atento para a dimensão literária e
e as justificativas retóricas que passaram a ser provisória de ideologias que procuram se firmar
introjetadas pelos agentes do patrimônio e pela como verdades calcadas em noções positivistas
sociedade brasileira. Alguns conceitos foram da ciência. Nesse sentido, apóia-se na reflexão
especialmente introduzidos, formando um de Hayden White acerca dos mecanismos de
pensamento antropológico sobre o patrimônio, produção da moderna historiografia e na fixação
como o conceito de “objetificação cultural” de da idéia presente em toda a história linear de
Richard Handler, quando esse autor sugere a que todas as nações devam obrigatoriamente
“coisificação” de culturas e tradições em moder- ter um passado. O patrimônio, em certa moda-
nos contextos nacionais, ou seja, uma certa lidade discursiva (no caso a de Rodrigo Mello
tendência em pensar as culturas como coisas, Franco de Andrade), seria a de representação
em representá-las com base em determinados ou de objetificação desse passado. Por outro
bens materiais como edificações, paisagens ou lado, o patrimônio na modalidade discursiva de
objetos museológicos cuidadosamente esco- Aloísio Magalhães estaria mais fixado na noção
lhidos e retirados de seus contextos originais para de cultura e de diversidade cultural, com ênfase
serem ressignificados em outros. O patrimônio em um tempo presente capaz de, por si só, se
seria, portanto, o lugar em que agentes estatais eternizar. A nação, em ambas construções
especialmente treinados coletariam fragmentos discursivas, é apresentada como uma entidade
de tradições culturais diversas para reuni-los em dotada de coerência e continuidade. Essa
um conjunto artificialmente criado voltado para coerência seria menos um dado ontológico do
representar a idéia de uma totalidade cultural que o efeito daquelas estratégias narrativas.
artificialmente criada expressa pela idéia de Enquanto o trabalho de Gonçalves é cen-
nação. trado no estudo de categorias de pensamento,
Outro conceito importante, desenvolvido em discursos, narrativas, o trabalho de Arantes
especialmente por James Clifford, em ensaio volta-se para os contextos sociais e intitucionais
sobre sistemas de arte e cultura, seria o conceito em que as políticas de patrimônio nacionais são
de “prática de colecionamento”, entendido como construídas. Arantes está interessado em des-
uma prática universal, presente em todas as vendar as relações sociais envolvidas nesse
sociedades humanas e relacionada à neces- processo de patrimonialização. Esses dois
sidade vital dos homens em classificar e trabalhos seminais abrem caminho para que
hierarquizar. A reflexão de Clifford é inspiradora outros antropólogos se interessem pelo tema do
para a pesquisa seminal de Gonçalves, que patrimônio. Na década de 1990, duas pesquisas
sinaliza nas construções discursivas estudadas são especialmente relevantes. A primeira de
(de Rodrigo Mello Franco de Andrade e de autoria de Silvana Rubino (Unicamp), intitulada
Aloísio Magalhães) os bens considerados dignos As fachadas da história: os antecedentes, a

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criação e os trabalhos do Serviço do Patri- mas, monumentos e comemorações, mas tam-


mônio Histórico e Artístico Nacional, 1937- bém elogios, dicionários e museus. A noção de
1968, apresentada como dissertação de “lugares de memória” construída ao longo de
mestrado ao Departamento de Filosofia e três anos – de 1978 a 1981 –, em um seminário
Ciências Humanas da Universidade Estadual de dirigido por Nora na École, foi um marco
Campinas, em janeiro de 1991. A segunda importante nos estudos que procuravam rela-
produzida por Marisa Velloso M. Santos, O cionar memória e história. No entender de Nora,
tecido do tempo: a idéia de patrimônio cul- os “lugares de memória” surgiram nas socie-
tural no Brasil (1920-1970), apresentada como dades ocidentais modernas como fragmentos de
tese de doutorado ao Departamento de Antro- uma memória em franco desaparecimento. A
pologia da Universidade de Brasília, em 1992. ação da história moderna calcada em uma
É preciso observar que, do final dos anos representação linear do tempo e em uma
80 até pelo menos a primeira metade dos anos reconstrução sempre problemática do que não
90, houve uma expressiva voga de trabalhos mais existe, teria condenado ao fim a memória
refletindo sobre o tema da nação. Talvez esse coletiva. O fato de se falar tanto em memória
surto reflexivo sobre o nacional tenha sido em seria para Nora um sintoma de que esta não
parte motivado pela grande quantidade de mais existiria, tendo sido substituída pela história.
produções de historiadores e cientistas sociais As sociedades ocidentais modernas seriam o
franceses, por ocasião das comemorações do resultado de uma mutilação sem retorno repre-
bicentenário da Revolução Francesa. É desse sentada pelo fim das coletividades-memória, que
período a publicação da coletânea de textos eram as sociedades tradicionais, por excelência
organizados em quatro grossos volumes pelo as sociedades camponesas, nas quais cada gesto
historiador francês Pierre Nora, da École des cotidiano era vivido como uma repetição religiosa
Hautes Études en Sciences Sociales, e intitulada de atos extremamente significativos para a
Lugares de memória. Em cada um desses coletividade, onde havia uma identificação carnal
volumes – três consagrados ao tema da nação do ato e do significado. Com certo tom nostálgico,
e um voltado para a república –, historiadores Nora propôs-se a discorrer sobre os estilhaços
consagrados dedicaram-se a esquadrinhar o ou fragmentos daquela que seria o último esforço
longo processo de construção do Estado-nação de construção de uma memória coletiva no
francês em todos os seus mais ínfimos detalhes, Ocidente, a memória nacional.
como o culto aos heróis, os manuais de história Estes lugares precisam ser compreendidos
da França para crianças, os guias de viagem no sentido pleno do termo, do mais material e
para formar os cidadãos franceses na noção de concreto, como os monumentos aos mortos e
pátria e território e, claro, toda a máquina estatal os Arquivos nacionais, ao mais abstrato e
que se voltou para a invenção do patrimônio intelectualmente construído, como a noção de
francês, desde os primeiros protestos de Victor linhagem, de geração, ou mesmo de região e de
Hugo em 1832, quando ameaçavam destruir os “homem-memória”. Dos lugares institucio-
prédios históricos e monumentais, e os primeiros nalmente sagrados, como Reims ou o Panteão,
projetos de Violet Le Duc, engenheiro e arquiteto aos humildes manuais de nossas infâncias
francês, que iniciou todo o processo de restau- republicanas. Das crônicas de Saint-Dennis do
ração de Paris, para que a cidade conservasse século XIII, ao Tesouro da Língua Francesa,
para sempre sua feição eloqüente de berço dos passando pelo Louvre, pela Marselhesa e a
novos ideais que passariam a reger o Ocidente. Enciclopédia Larousse. (Nora, 1984)
Nas palavras de Pierre Nora, as come- Essa voga de estudos dessacralizadores do
morações do bicentenário da Revolução Fran- ideal de nação teve talvez no campo da história
cesa incitaram o autor a tecer um inventário dos sua maior repercussão, mas circulou também
lugares onde a memória nacional na França entre antropólogos e cientistas sociais que
tomou corpo e que, pela vontade dos homens desenvolveram estudos reflexivos sobre os
ou pelo trabalho dos séculos, sobreviveram mecanismos de constituição do nacional entre
como os símbolos mais evidentes: festas, emble- nós. Afinal, se a república francesa comemo-

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rava duzentos anos em 1989, no mesmo ano a mônios nacionais. Com relação à perspectiva
república verde-amarela completava cem anos. antropológica de estudos de museus e práticas
Na perspectiva da história, é dessa época o de colecionamento, devemos registrar que a
trabalho, por exemplo, de José Murilo de tendência auto-reflexiva da antropologia tam-
Carvalho, A formação das almas, evidenciando bém contribuiu para o foco nessa área. Do
em minúcias o processo de elaboração dos projeto editorial organizado por George Stocking
símbolos nacionais: a bandeira, o hino, as Jr sobre a história da antropologia foi lançado
alegorias, os monumentos (Carvalho, 1990). Por em 1985 um número especial sobre museus e
essa ocasião passava-se em revista a história práticas de colecionamento na antropologia. O
da formação das nações modernas. O histo- livro Objects and others. Essays on museums
riador Éric Hobsbawm publicou a Era dos and material culture, terceiro volume da série,
impérios, tematizando o período que se abriu trouxe artigos sobre a estreita relação da antro-
em 1870, quando, na Europa, tiveram lugar as pologia com os museus, desde o nascimento da
grandes transformações que desencadearam disciplina. Vale destacar o artigo de Ira Jacknis
novas relações entre os indivíduos. A partir de focalizando o trabalho de Franz Boas como
então, todos deviam fidelidade a um ente curador de exposições em museus etnográficos;
abstrato e distante: o Estado-nação. Outro o artigo de Richard Handler, que se tornou
trabalho do historiador inglês desse período foi clássico nos estudos do patrimônio sobre o
processo de construção do patrimônio em
A invenção das tradições, no qual propunha
Québec, e, por fim, o artigo de James Clifford
pesquisar sobre pequenas invenções necessárias
sobre a prática de colecionamento dos objetos
à consolidação dos Estados nacionais, como
“dos outros” nos grandes museus e os problemas
alegorias e trajes típicos. O ensaio sobre a
advindos desses deslocamentos dos objetos com
invenção do traje típico dos escoceses e de toda
relação a seus contextos de origem.1
a tradição envolvida inspirou pesquisas de
Tomar os museus e as coleções de museus
historiadores e antropólogos sobre o papel das
em uma perspectiva antropológica, procurando
identidades regionais e locais na construção dos
perceber esses lugares de memória como
símbolos nacionais (Hobsbawm, 1984). elementos importantes do sagrado nacional,
Outros trabalhos de antropologia, embora consistiu no meu objetivo na dissertação de
não se dedicassem exatamente ao tema do mestrado apresentada ao PPGAS-Museu
patrimônio nacional, voltaram-se para o estudo Nacional em 1990, com o título Sangue,
da criação de muitos outros símbolos necessários nobreza e política no templo dos imortais:
à formação dos novos cidadãos. Cabe registrar um estudo antropológico da Coleção Miguel
o trabalho do antropólogo Ruben Geoge Oliven Calmon no Museu Histórico Nacional e
sobre a invenção do gaúcho, em certa parte publicada em livro em 1996 sob o título A
inspirado no ensaio de Hobsbawm. Oliven utiliza fabricação do imortal. Nesse trabalho, tomei
a perspectiva antropológica para desvendar a o Museu Histórico Nacional em seus primeiros
maneira pela qual a tradição gaúcha foi criada anos, que coincidem com o período em que
com festas, datas e trajes típicos. A antropóloga esteve à frente da instituição seu fundador e
Maria Eunice Maciel, do mesmo departamento principal idealizador, o escritor Gustavo Barroso
de Oliven, segue trilha semelhante. (1922-1959). Como estratégia metodológica
Uma outra linha de investigação que se para entender o significado da memória nacional
inaugurou no período dos anos 80 e 90 foi o que ali era construída, focalizei o processo de
estudo dos museus e das práticas de colecio-
namento de objetos museológicos. Também em 1. Os títulos dos artigos são respectivamente: JACKNIS,
parte inspirados na voga dos estudos sobre a Ira. Franz Boas and exhibits: On the limitation of the
museum method of anthropology; HANDLER, Richard. On
formação dos Estados-nações e seus símbolos, having a culture: nationalism and the preservations of
esses estudos congregaram historiadores e Québec’s Patrimoine; CLIFFORD, James. Objects and selves
– An afterword. In: STOCKING, Jr., George W. Objects and
antropólogos. Os museus e suas coleções eram others. Essays on museums and material culture. London:
entendidos como partes expressivas dos patri- University of Wisconsin Press, 1985.

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doação e incorporação de uma grande coleção acreditavam na eficácia dessas instituições como
de um político influente da Primeira República, produtoras de símbolos e narrativas. Falar de
Miguel Calmon. Utilizando como principal refe- um lugar de fora e situar-se ao mesmo tempo
rência o Ensaio sobre a dádiva de Marcel dentro da instituição com seus problemas e suas
Mauss e suas reflexões sobre reciprocidade, vicissitudes não me parece uma tarefa simples.
pude perceber o museu como um lugar de trocas Na minha experiência particular, muito me
simbólicas e rituais entre os agentes sociais que, auxiliou o fato de eu não atuar em cargo de
nesses movimentos, construíam uma versão da direção e, de certo modo, permanecer protegida
história do Brasil e fabricavam personagens na Divisão de Estudos e Pesquisas, setor que
históricos. A experiência de trabalhar com uma ocupava certo lugar de retaguarda na instituição.
perspectiva antropológica para entender a lógica Mas o olhar antropológico relativizador, eu
de funcionamento de uma instituição produtora diria mesmo, dessacralizador, criou por vezes
de memória foi muito rentável. Sob essa pers- certos embaraços. Quando trabalhamos com
pectiva, foi possível fazer uma leitura do museu discursos fundadores e com figuras carismáticas
e de suas coleções até certo ponto original. de pais fundadores, em quaisquer que sejam os
Nesse trabalho, dialoguei com a perspectiva de campos, a polêmica é inevitável. Esquadrinhar
José Reginaldo Gonçalves, analisando, assim o pensamento de Gustavo Barroso, figura emi-
como ele, a construção discursiva de um funda- nente no museu, a partir do qual tudo ou quase
dor de uma instituição voltada para o patrimônio tudo ali foi gerado, representava tocar no emble-
nacional. ma de alguns e algumas colegas de trabalho.
No meu caso específico, de maneira diversa Esse intelectual abriu um campo novo no Brasil
de Gonçalves, o objeto era um museu. Focalizar ao tecer com colaboradores as bases para uma
a criação e os primeiros anos de funcionamento escola de museologia no país. A minha sorte,
dessa instituição foi uma estratégia deliberada neste caso, é que, como toda figura emblemática,
de eleger para a análise os nativos do passado. não havia unanimidade sobre sua contribuição.
Isto por dois motivos. O primeiro relacionado a E o fato também de Gustavo Barroso ter adotado
uma certa tendência dos estudos do período, que na política atitudes conservadoras, com passa-
consistia em fazer um inventário do campo do gem pelo movimento integralista, tornava-o
patrimônio com base no discurso dos funda- antipático para certos segmentos. A conclusão
dores. O segundo motivo deveu-se ao fato de da pesquisa trouxe elementos capazes de des-
que na época eu era funcionária do Museu cortinar alguns dos pressupostos que orientaram
Histórico Nacional, o que dificultava uma pro- a formação de um acervo considerado repre-
posta de estudar a instituição em uma abordagem sentativo de uma certa versão da história do
sincrônica. A familiaridade com colegas museó- Brasil. Todos entenderam que eu falava de um
logos e historiadores não ensejava uma pesquisa museu do passado, que não mais existia e, desse
das práticas de colecionamento na contempo- modo, minha pesquisa foi vista como uma contri-
raneidade. A perspectiva antropológica voltada buição sobre a história do museu e o pensamento
para uma leitura do passado pareceu-me mais de seu fundador. Em se tratando de uma
adequada como estratégia de entrada no campo. dissertação de mestrado foi recebida com muito
Estudar a instituição com a qual eu mantinha respeito, e até admiração, por meus colegas.
um vínculo empregatício colocava-me de certo Na ocasião, o historiador Ulpiano T. Bezerra
modo em um lugar diferente dos meus colegas, de Menezes, do Departamento de História da
pois produzia um distanciamento e uma relati- Universidade de São Paulo, estava à frente do
vização de suas práticas e projetos. Olhar o Museu Paulista da USP e propunha que os
museu como um lugar de produção da memória museus tematizassem suas próprias histórias e
e indagar sobre a modalidade de memória que analisassem seus acervos. Ulpiano chegou a
ali vinha sendo elaborada, com que fins e realizar uma exposição no Museu Paulista sobre
objetivos, poderia parecer um tema até certo a construção do próprio museu e as estratégias
ponto ameaçador para aqueles que faziam da de definição e incorporação de seu monumental
prática museológica e histórica o seu ofício, que acervo ao longo da história. Essa vertente de

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estudos e exposições, de certo modo anti- em 1989 no Mestrado em Ciência Política no


sacralizadoras, causaram certo espanto entre Iuperj, intitulada História, tempo e memória:
alguns museólogos e historiadores acostumados um estudo sobre museus a partir da obser-
a ocultar os bastidores de suas instituições em vação feita no Museu Imperial e no Museu
reservas técnicas e arquivos históricos. A opção Histórico Nacional. Outro trabalho relevante
de Ulpiano foi muito debatida na época e, sobre o tema do patrimônio no período foca-
certamente, contribuiu para que meu trabalho lizado é o de Cecília Londres, apresentado como
fosse bem recebido no campo da museologia e tese de doutorado em Sociologia da Cultura na
da história. A partir de então, passei sistema- UnB e publicado em 1997 pela editora da UFRJ
ticamente a ser convidada para simpósios de sob o título Patrimônio em processo. Trajetória
museologia, notadamente de museus históricos. da política federal de preservação no Brasil.
Ulpiano convidou-me para escrever um ensaio Myrian Sepúlveda dos Santos preocupou-se em
nos Anais do Museu Paulista, em um número refletir sobre construções da história, em dife-
dedicado à história e à cultura material.2 rentes momentos, de dois museus históricos.
A revista, que só foi publicada após sua Cecília Londres, pelo contrário, não refletiu
saída da direção da instituição, em 1994, foi sobre a história, mas adotou uma perspectiva
concebida com uma abordagem reflexiva sobre “primordialmente histórica”, tomando como
os museus históricos, seus acervos e exposições. “objeto de pesquisa o processo de construção
No ensaio de abertura, o próprio Ulpiano abria do patrimônio histórico e artístico no Brasil,
os debates apresentando “um leque extrema- considerado enquanto uma prática social produ-
mente aberto de problemas” do museu histórico tiva, criadora de valor em diferentes direções”
contemporâneo, sendo os principais referentes (Fonseca, 1997, p. 19-20). Outro trabalho de
às possibilidades “de participação do museu reflexão sobre o patrimônio produzido ainda
histórico na produção do conhecimento histó- nesse período é o de Marcia Chuva, também
rico” e, “nessa perspectiva”, o funcionamento uma tese de doutorado de história apresentada
da exposição museológica (Menezes, 1994). Em na UFF. Em outro extremo do país, nesse
linhas gerais, Ulpiano adotava uma perspectiva mesmo período, na Universidade Federal de
extremamente crítica com relação aos museus Pernambuco, Alexandre Correa finalizava uma
históricos, procurando exorcizar seus fantasmas tese de doutorado em antropologia sobre o tema
como monumentos celebrativos da memória do patrimônio.
nacional. O pano de fundo dos estudos sobre A crescente produção em torno dos discur-
museus e patrimônios do ponto de vista acadê- sos fundadores do patrimônio no Brasil geraram
mico era, portanto, promissor. Antropólogos, um seminário no início da década de 90 intitulado
historiadores e cientistas sociais descobriam o Ideólogos do Patrimônio. Além disso, foram
potencial desses “lugares de memória” como organizadas algumas mesas-redondas e semi-
conformadores de visões de mundo e contri- nários nas reuniões da Associação Brasileira de
buidores de “invenções de tradições nacionais”. Antropologia para debater sobre memória,
Nesse período dos anos 80 e 90, muitos dos nação, patrimônio, museus, coleções. Nos anos
autores citados dialogaram em diferentes seguintes, surpreendemo-nos com o crescente
momentos no Grupo de Trabalho sobre Pensa- interesse na área de estudos do patrimônio. É
mento Social Brasileiro, nas reuniões da Anpocs claro que muito desse interesse se deveu ao fato
em Caxambu. Além dos trabalhos citados, o de que muitos de nós mantivemos um trabalho
tema do patrimônio foi objeto de reflexão de nas universidades e fomos aos poucos intro-
teses e pesquisas de sociólogos e cientistas duzindo linhas de pesquisa vinculadas ao tema.
políticos. É importante destacar o trabalho de
Myrian Sepúlveda dos Santos, que focalizou o
2.2 A abertura de cursos de pós-graduação
tema dos museus em dissertação apresentada
em Memória e Patrimônio
2. ABREU, Regina. História de uma coleção: Miguel Calmon
e o Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Paulista.
A emergência do tema do patrimônio como
História e Cultura Material. Jan./dez. 1994, SP, Ed. USP. objeto de reflexão nas universidades deu-se nos

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anos 90. Até então, este era um tema quase tetônico é bem diferente de refletir sobre os
que circunscrito a instituições estatais como os mecanismos que levaram uma sociedade a
museus e o Iphan. Nessas agências, formaram- valorizar aqueles objetos e não outros, ou de
se ao longo dos anos pesquisadores e profissio- estudar sobre as escolhas dos quadros a serem
nais que se dedicaram a refletir sobre questões restaurados e daqueles fadados à destruição, ou
da memória e do patrimônio, mas quase sempre ainda observar criticamente que a restauração
com uma perspectiva interessada de intervenção de um bairro ou de um complexo arquitetônico
e construção do campo propriamente dito. com base em determinados padrões estéticos
Muitos dos pesquisadores que se dedicaram a não é suficiente para restaurar a “autenticidade
escrever dissertações e teses tiveram passagem, original” desses espaços.
como eu, nessas instituições. Foi o diálogo com Desse modo, alguns pesquisadores que,
linhas de pesquisa nas universidades que permi- como eu, originalmente desenvolveram seus
tiu, por outro lado, arejar o debate interno dos interesses de pesquisa em museus ou agências
órgãos voltados para a atuação no campo do de patrimônio perceberam a dificuldade em
patrimônio. Essa relação entre universidades e conciliar esses dois lugares ou práticas profis-
agências estatais tem sido uma constante no sionais. No meu caso, tomei a decisão de traba-
meio daqueles que escrevem sobre o assunto. lhar na universidade, prestando concurso no final
José Reginaldo Gonçalves, por exemplo, foi dos anos 90 para a Universidade Federal do
chamado inúmeras vezes para falar no Iphan Estado do Rio de Janeiro, onde ingressei em uma
sobre os “pais fundadores” do instituto e as pós-graduação em memória social que ali havia
principais políticas formuladas para a área no sido criada por um grupo de historiadores. A
passado. No meu caso, participo ativamente de perspectiva interdisciplinar do curso me atraiu.
simpósios, mesas-redondas e publicações do Além do mais, eu não via, na ocasião, um inte-
Museu Histórico Nacional e de outros museus. resse em estudos de memória e patrimônio nos
Recentemente, em julho deste ano, fui convidada Departamentos de Antropologia das univer-
para presidir uma mesa em reunião da Asso- sidades no Rio de Janeiro. Desse modo, a Unirio
ciação Internacional dos Museus Históricos, no me pareceu uma boa opção. Cabe observar que
Museu Paulista, em São Paulo. Esses inter- o Centro de Ciências Humanas dessa univer-
câmbios entre o pesquisador e as agências que sidade reúne algumas faculdades singulares no
configuraram o campo etnográfico de suas panorama das universidades no Rio de Janeiro,
pesquisas são extremamente interessantes, mas a saber, de Museologia, de Biblioteconomia e
muitas vezes provocam confusões e mal-enten- de Arquivologia, além de contar com uma
didos. A perspectiva acadêmica, reflexiva, tem Faculdade de História. Atuar nessas faculdades
uma especificidade com relação ao trabalho de teve para mim um certo sabor de ser uma antro-
atuação em uma área que, independentemente póloga fora do lugar, ou seja, de não contribuir
das relativizações que se possam fazer, funciona diretamente para a formação de antropólogos
como instância canonizadora, formando ícones ou cientistas sociais, que é, em geral, parte
e símbolos da memória nacional. O diálogo, importante do trabalho dos antropólogos nas
portanto, tem limites e muitas vezes é difícil universidades. Mas esse trabalho abriu também
precisá-los. Faz parte do jogo das agências do para mim uma perspectiva de exercitar o olhar
patrimônio a consagração por meio de ações de antropológico na qualificação do profissional que
tombamentos de bens móveis e imóveis, listas atua em áreas de gestão da memória e patri-
de edificações a serem preservadas ou de obje- mônio.
tos a serem recolhidos. As políticas de memória Particularmente no curso de pós-graduação
são o resultado de dinâmicas deliberadas de tem sido possível propor um trabalho reflexivo
lembranças e esquecimentos. Valorizar objetos, para alunos que são também profissionais da
entronizar personagens no panteão de uma área. Esse procedimento tem servido como
construção discursiva da história, restaurar um elemento propulsor de levantamento de questões
quadro, um prédio ou um bairro seguindo a opção que certamente vêm fazendo com que os
de uma determinada época ou padrão arqui- profissionais enxerguem a inserção nas insti-

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tuições em que atuam sob novos ângulos. e teses e alimentando debates, simpósios e
Trabalhar com museólogos, historiadores, mesas-redondas em todo o país. De tema mar-
arquivistas, bibliotecários, sociólogos, que são ginal ou menor nos estudos antropológicos, os
também técnicos de instituições como o Arquivo estudos de memória, patrimônio e cultura mate-
Nacional, a Biblioteca Nacional, o Museu do rial vêm ganhando visibilidade e inserindo-se no
Índio, o Museu Nacional, o Museu da Imagem movimento contemporâneo de uma antropologia
e do Som, fazê-los dialogar entre si nos cursos, voltada para pensar a sociedade do observador
tem sido uma experiência enriquecedora. Ao ou, para usar a expressão de Marisa Peirano,
mesmo tempo, permite uma certa liberdade para de uma antropologia na qual a construção da
levar adiante minhas próprias pesquisas, sem alteridade é próxima, senão mínima. Este é um
obrigatoriamente ter de me dedicar a atividades campo sem dúvida de interseção entre antropó-
que outrora me envolviam quando funcionária logos e “outros”, dos mais variados lugares e
do Museu Histórico Nacional ou em minha tendências. Campo que se movimenta na con-
passagem pelo Iphan e pela Coordenação de fluência entre a academia e as agências de
Folclore e Cultura Popular do MinC, tais como governo, instituições, ONGs e movimentos
realização de exposições museológicas e pare- sociais, entre pesquisas reflexivas e paixões
ceres técnicos. desenfreadas que fazem do patrimônio uma
Outros grupos de pesquisa sobre patrimônio, “causa” e uma “bandeira de luta”. Esses dois
memória, museus e práticas de colecionamento campos interpenetram-se e os limites dessas
foram sendo criados nos anos 90. No IFCS/ interferências mútuas são construídos caso a
UFRJ, meu colega José Reginaldo Gonçalves caso.
vem trabalhando há alguns anos com essa
temática, especialmente orientando alunos da
pós-graduação em Antropologia. Em Goiânia, 3 O campo da intervenção: a política do
na Universidade Católica de Goiás, foi criado, patrimônio intangível e a convocação de
por iniciativa do antropólogo Manuel Ferreira antropólogos
Lima Filho, um mestrado profissionalizante em Se, de um lado, temos um movimento
Gestão do Patrimônio Cultural. Esse mestrado crescente nas universidades, novos debates
conta desde o início com a colaboração de Roque nacionais e internacionais vêm colocando o tema
de Barros Laraia e é voltado para a profissio- do patrimônio na ordem do dia das políticas
nalização de gestores de cultura naquela locali- públicas no Brasil e no exterior. Particularmente
dade. Além disso, podemos registrar alguns os antropólogos vêm sendo convocados diante
pólos importantes liderados por antropólogos. É de mudanças significativas nas formulações de
o caso da Universidade Federal do Maranhão, políticas do patrimônio, principalmente com o
com Alexandre Corrêa, da Universidade Federal fomento ao chamado patrimônio intangível. Não
do Pará, com Jane Maria Beltrão; do Museu é por acaso que hoje, pela primeira vez na histó-
Goeldi, com Priscila Faulhaber; da Universidade ria do Iphan, um antropólogo ocupa a presidência
Federal do Rio Grande do Norte, com Julie
da instituição. Vale a pena discorrer sobre alguns
Caviganc, e da Universidade Federal do Rio
aspectos dessa conjuntura que afeta diretamente
Grande do Sul, com Ruben Georges Oliven e
Maria Eunice Maciel. Recentemente, o mes-
trado profissionalizante em Bens Culturais e 3. No site do referido mestrado são assim definidos seus
Projetos Sociais criado no CPDOC veio engros- objetivos: “O Mestrado Profissionalizante em Bens Cultu-
rais e Projetos Sociais pretende qualificar profissionalmen-
sar a fileira dos cursos voltados para o tema do te aqueles que, tendo concluído o curso de graduação, atuem
patrimônio, atuando de forma interdisciplinar e ou queiram atuar no planejamento, elaboração, desenvolvi-
mento, gestão, assessoramento, difusão, acompanhamento
direcionado para um público amplo de profis- ou avaliação de atividades e propostas voltadas para bens
sionais da área da cultura.3 culturais – como acervos, patrimônio, centros de memória
Esse trabalho nas universidades, principal- e de cultura, exposições e eventos – ou para projetos sociais
– em especial aqueles que tomam a cultura como via privi-
mente nos programas de pós-graduação, vem legiada para o desenvolvimento da cidadania e para a redu-
gerando um número crescente de dissertações ção da exclusão social”.

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ABREU, REGINA. Quando o campo é o patrimônio: notas sobre a participação...

os antropólogos, trazendo novos desafios e de Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico


possibilidades. Nacional para Fundação Nacional Pró-Memória.
A participação dos antropólogos nas insti- Aloísio Magalhães adotava uma perspectiva
tuições de patrimônio era pequena até bem mais culturalista do patrimônio e formou um
pouco tempo atrás. No Brasil, na instituição mais grupo de colaboradores que faziam uma crítica
representativa, o Iphan, há que se ressaltar a velada ao que eles consideravam um certo
participação de Gilberto Velho no Conselho do elitismo da proposta até então hegemônica
Patrimônio, órgão renomado e de grande credi- encarnada por Rodrigo. A visão desse grupo
bilidade no setor. A política hegemônica do Iphan, era a de que a nação incluía diferentes culturas
de sua fundação até final dos anos 90, privilegiou que deveriam ter seus patrimônios representados
os tombamentos e a preservação de edificações em uma instituição voltada para esse fim. Essas
em “pedra e cal”, de conjuntos arquitetônicos e diferentes culturas eram expressas em suportes
paisagísticos, bem como a proteção a bens diversos e não apenas os arquitetônicos, que
móveis e imóveis considerados de relevo para a acabaram constituindo o grande elenco de bens
nação brasileira, seja por expressivas carac- preservados.
terísticas arquitetônicas, artísticas ou históricas. A morte prematura de Aloísio Magalhães
Tornou-se já um relato mítico para os que e o acirramento de disputas internas no órgão
contam a história da instituição mencionar as impediram que vingasse uma proposta cultu-
diferenças entre o anteprojeto de Mário de ralista do patrimônio, permanecendo a visão até
Andrade, esboçado em 1936, e a versão final então hegemônica. Entretanto, alguns esforços
do Decreto-lei no 25, que instituiu e criou a isolados continuaram a ser implementados. Um
instituição. De acordo com uma certa corrente dos momentos de destaque dessa disputa
de pesquisadores mais simpáticos à visão de consistiu na luta pelo tombamento do terreiro
Mário de Andrade, seu anteprojeto conteria uma de candomblé Casa Branca na Bahia, onde
versão mais culturalista e antropológica, privi- havia uma árvore sagrada que também deveria
legiando uma noção de patrimônio que enfa- ser preservada. Amplo debate processou-se,
tizava os aspectos mais intangíveis da cultura, envolvendo antropólogos, arquitetos e histo-
como manifestações diversas da cultura popular. riadores, que escreveram artigos para um
A proposta vencedora, protagonizada na figura número da Revista do Patrimônio. Arquitetos
de Rodrigo Mello Franco de Andrade, tenderia acostumados com tombamentos de bens móveis
a privilegiar os aspectos materiais do patrimônio. e imóveis e não exatamente um local sagrado
Evidentemente, esse relato mítico da com as características de um terreiro de
proposta vencida de Mário de Andrade, na candomblé expressaram certa perplexidade com
disputa com Rodrigo Mello Franco de Andrade, relação ao papel do Estado no caso de um tom-
serve para legitimar a visão de um grupo de bamento com aquelas características. Além do
gestores do patrimônio que manteve uma opo- mais, levantavam objeções relativas à fisca-
sição ao poder hegemônico no campo, formado lização por parte de um organismo estatal de
em grande parte por arquitetos, e que privilegiou um espaço cósmico, controlado em última
ações de preservação de cunho material pauta- instância pelos desígnios do sobrenatural. E se
das em critérios históricos e artísticos. As ações os santos decidissem que o terreiro deveria
mais contundentes do órgão, com repercussões migrar para outro local? O terreiro deveria ser
em esferas regionais e locais de preservação e destombado? Em suma, o terreiro foi tombado,
construção da memória no país, consistiram em mas a polêmica em torno do caso tornou-se um
tombamentos de grandes monumentos, exem- emblema da contenda entre duas visões de
plarmente ilustrados pelas igrejas barrocas de patrimônio.
Ouro Preto. A breve passagem do designer Durante a passagem de Fernando Collor
Aloísio Magalhães pela instituição trouxe pelo governo, a instituição, seguindo os mesmos
algumas idéias novas, com a criação do Centro desígnios de outros setores da cultura no país,
Nacional de Referências Culturais e a trans- sofreu um desmonte, com demissões de funcio-
formação, por um certo período, da instituição nários, falta de verbas e de uma política clara

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SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 37-52

para o setor. A instituição mudou de nome e coletivas ou de autoria desconhecida expressa


passou a se chamar Instituto Brasileiro do em músicas, rituais, folguedos e manifestações
Patrimônio Cultural, em um sinal evidente que a culturais diversas? Como regulamentar juridi-
tendência culturalista continuava a se insinuar camente os direitos relativos aos “conhecimentos
em oposição à vertente histórica e artística. tradicionais”, uma vez que não há legislação
Nos anos do governo de Fernando Henrique sobre direitos coletivos? Como proteger comu-
Cardoso, intelectuais e profissionais do campo nidades que atualizam antigas tradições, tendo
insistiram que a instituição deveria retomar sua em vista que o mercado expande suas fronteiras,
sigla original, com a qual ganhou credibilidade delas se apropriando? Em outras palavras,
nacional e internacional. Desse modo, a insti- quando uma empresa utiliza padrões gráficos
tuição passou a se chamar Instituto do Patrimônio de uma etnia indígena, transformando-os em
Histórico e Artístico Nacional, nome que padrões industriais de tecidos ou quaisquer
permanece até hoje. Mas, apesar de a instituição outros suportes, seria correto ignorar as popu-
manter no nome a referência ao “histórico e lações que criaram esses padrões? Na lógica
artístico nacional” e não ao “cultural”, um do capitalismo industrial, não seriam elas as
movimento novo começou a se insinuar, em inventoras dos respectivos padrões e, portanto,
grande parte em virtude de novos posicio- detentoras legítimas do direito de patente sobre
namentos de organismos internacionais. É todas e quaisquer utilizações futuras desses
importante frisar que, durante os anos que se bens? O mesmo raciocínio não poderia se aplicar
seguiram à Segunda Guerra Mundial, novos a “conhecimentos tradicionais” sobre plantas e
organismos internacionais foram criados, como ervas medicinais, performances e rituais,
a Unesco, e certos debates, como é o caso dos técnicas específicas de confecção de instru-
relativos ao tema do patrimônio, passaram a ser mentos ou equipamentos e assim por diante?
regidos também em conseqüência de reflexões Como adaptar o mecanismo das patentes
de ordem internacional. Nos anos 90, come- criadas durante a fase do capitalismo industrial
çaram a surgir com intensidade preocupações e relacionadas a invenções individuais para um
relativas ao que os documentos da Unesco direito de propriedade intelectual coletiva? As
chamavam de “culturas tradicionais”. Por um sociedades produtoras de “culturas tradicionais”
lado, levantava-se o temor do desaparecimento deveriam aderir ao mecanismo das patentes?
dessas culturas em face da mundialização das Haveria como aboli-las?
culturas que tenderiam a homogeneizar e Estes têm sido alguns temas presentes nos
ocidentalizar o planeta. Por outro lado, eram debates promovidos pela Unesco, dos quais
manifestadas preocupações de que os produ- participam representantes de diferentes Estados-
tores dessas “culturas tradicionais” viessem a nações. Em um documento produzido nos anos
ser saqueados por novas modalidades de pirataria 90, sob o título “Recomendações para a proteção
na dinâmica do capitalismo globalizado. Conhe- e salvaguarda de manifestações culturais tradi-
cimentos tradicionais necessários à manipulação cionais”, a Unesco fazia algumas propostas aos
de ervas medicinais, músicas folclóricas, danças países membros da organização. Como antídoto
tradicionais e outras manifestações dessas a problemas tão graves, propunha-se que os
culturas ter-se-iam convertido em fontes cobi- países membros adotassem algumas medidas,
çadas por um mercado cada vez mais ávido por entre elas novas políticas de patrimônio capazes
objetos raros e exóticos. de proteger as chamadas “culturas tradicionais”.
Novas questões eram levantadas: como Especificamente um desses documentos
salvar essas “culturas tradicionais”? Como propunha que os países seguissem a inspiração
munir seus produtores de mecanismos de japonesa de proteger o “conhecimento tradi-
proteção contra a apropriação de seus acervos cional”, as habilidades específicas que são
de “conhecimentos tradicionais” por parte de passadas de gerações a gerações de forma
um mercado que se globaliza? Em um mundo ritualizada e por meio de mecanismos próprios.
organizado por patentes, como regular direitos Observava-se que, no caso japonês, a proteção
sobre a propriedade intelectual de criações ao patrimônio não se faz priorizando os resul-

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ABREU, REGINA. Quando o campo é o patrimônio: notas sobre a participação...

tados ou produtos de técnicas de construção ou que tinha longa experiência com pesquisa em
de conhecimentos ancestrais, mas que, pelo folclore e cultura popular. Das instituições do
contrário, se valoriza o processo do fazer. Desse Ministério da Cultura, era esta uma das que
modo, se um prédio é considerado importante congregava maior número de antropólogos.
para a cultura japonesa, de tempos em tempos Concomitantemente, por ocasião dos festejos
promove-se ritualmente uma desconstrução dos quinhentos anos do Descobrimento do Brasil,
desse prédio e sua reconstrução. A proteção o Ministério da Cultura propôs a Antonio
mais adequada, segundo essa concepção, Augusto Arantes a criação de uma metodologia
baseia-se na valorização do processo e não no de inventário das manifestações culturais na
resultado final. Por outro lado, o documento da região do sul da Bahia, onde havia um projeto
Unesco chamava a atenção para a importância de criação de um “Museu Aberto do Desco-
de proteger, no caso das “culturas tradicionais”, brimento”. Gestores do patrimônio interessados
os “mestres” considerados “patrimônios vivos” na nova política do patrimônio intangível articu-
de conhecimentos muitas vezes não documen- laram-se no projeto de criação de um programa
tados por meio da escrita. Dizia o texto: “Em de ação voltado para o patrimônio intangível no
sociedades tradicionais, quando morre um Brasil e, em 4 de agosto de 2000, foi promulgado
ancião toda uma biblioteca se queima e se perde o Decreto n. 3551, instituindo “o Registro de
para sempre”. Bens Culturais de Natureza Imaterial que consti-
Era evidente o surgimento de um dado novo tuem patrimônio cultural brasileiro e criando o
no campo do patrimônio. Se, nos primeiros anos Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”.
de constituição dos patrimônios nacionais, A proposta do registro significou essen-
predominava uma retórica que lastimava a perda cialmente a criação de um selo distintivo oficial
de um mundo constituído de prédios e edifi- para os chamados “bens culturais de natureza
cações que davam lugar a novos ícones das imaterial”. Evidentemente que, como todo o
modernas sociedades urbano-industriais, se processo de patrimonialização, essa proposta
nesses anos era preciso salvar algo que teste- inclui a idéia de seleção, de construção de um
munhasse momentos da longa trajetória de acervo digno de ser memorializado em oposição
construção da civilização ocidental, no final dos a um outro conjunto de bens culturais que devem
anos 90, discutia-se um outro sentido para uma ser relegados ao esquecimento. A dinâmica
mesma retórica da perda. Lastimava-se agora patrimonial implica práticas de colecionamento
o desaparecimento daqueles que constituíam os e a prática do registro pode ser comparada à do
“outros” do mundo civilizado, “outros” que tombamento, na qual são necessários critérios
expressavam culturas exóticas que teriam que possibilitem escolhas daquilo que deverá ser
sobrevivido a diversas fases do capitalismo, mas preservado.
que, com a globalização, estariam irremedia- Para o registro dos bens culturais de natu-
velmente fadados à dissolução. reza imaterial, foram criados quatro livros: o
As propostas salvacionistas da Unesco Livro do Registro dos Saberes (para o registro
tiveram boa repercussão no Brasil entre gestores de conhecimentos e modos de fazer); o Livro
do patrimônio, entre eles os segmentos da das Celebrações (para as festas, os rituais e os
vertente culturalista do Iphan e também de folguedos); o Livro das Formas de Expressão
outras agências do Ministério da Cultura. (para a inscrição de manifestações literárias,
Reuniões foram realizadas, entre elas uma em musicais, plásticas, cênicas e lúdicas) e o Livro
Fortaleza que congregou técnicos de várias dos Lugares (destinado à inscrição de espaços
agências governamentais, quando foi proposta onde se concentram e reproduzem práticas
a formulação de uma política voltada para o culturais coletivas).
patrimônio intangível. Uma das instituições que Prevê-se, então, que alguns “bens culturais”
aderiu de imediato foi a então Coordenação de devam ser registrados nesses livros e que, como
Folclore e Cultura Popular, ligada à Funarte, manifestações culturais vivas, eles sejam
instituição herdeira da Campanha de Defesa do acompanhados pelos agentes do patrimônio e
Folclore Brasileiro, atuante desde os anos 50, e tenham suas transformações documentadas.

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SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 37-52

Nas palavras da atual diretora do Depar- alguns técnicos das agências governamentais,
tamento do Patrimônio do Iphan, a arquiteta entre eles os técnicos do Centro Nacional de
Marcia Sant’Anna, Folcore e Cultura Popular (CNFCP), sob a coor-
denação da antropóloga Letícia Vianna. Essa
o registro corresponde à identificação e à experiência merece ser registrada pois vem
produção de conhecimento sobre o bem cultural abrindo um importante mercado de trabalho para
de natureza imaterial e equivale a documentar, antropólogos. No caso do projeto do CNFCP,
pelos meios técnicos mais adequados, o há uma equipe fixa e diversos consultores
passado e o presente dessas manifestações em relacionados a temas específicos que foram
suas diferentes versões, tornando tais infor-
selecionados para serem inventariados:
mações amplamente acessíveis ao público. O
objetivo é manter o registro da memória desses
as diferentes celebrações relacionadas ao
bens culturais e de sua trajetória no tempo,
complexo cultural do boi, os diferentes modos
porque só assim se pode “preservá-los”. Como
de fazer relacionados ao artesanato em barro;
processos culturais dinâmicos, as referidas
as diferentes formas de expressão e modos de
manifestações implicam uma concepção de
fazer relacionados à musicalidade das violas e
preservação diversa daquela prática ocidental,
percussões; os diferentes modos de fazer
não podendo ser fundada em seus conceitos
relacionados aos sistemas culinários a partir
de permanência e autenticidade. Os bens
dos elementos mandioca e feijão. (Vianna, 2004)
culturais de natureza imaterial são dotados de
uma dinâmica de desenvolvimento e transfor-
mação que não cabe nesses conceitos, sendo A maior parte dos envolvidos nessas
mais importante, nesses casos, registro e pesquisas são antropólogos ou estudantes de
documentação do que intervenção, restauração antropologia em fase de mestrado ou doutorado
e conservação. (Sant’Anna, 2003) recrutados em cursos de pós-graduação, que
estão envolvidos com teses sobre temas corre-
Paralelamente ao instrumento do registro, latos. O objetivo das pesquisas é duplo: tecer
o Iphan criou, em parte com as contribuições um inventário dessas manifestações culturais,
do projeto piloto desenvolvido por Antonio escolhidas em parte por retratar certa tradição
Augusto Arantes no sul da Bahia, uma meto- de estudos da instituição, e preparar dossiês para
dologia de inventário que gerou uma proposta possíveis registros dentro do Programa Nacional
de Inventário Nacional de Referências Culturais de Patrimônio Imaterial.
(INRC), instrumento para subsidiar as ações de Concomitantemente aos inventários, o mote
registro e realizar um recenseamento amplo das dos “registros” de manifestações culturais que
manifestações culturais no país. Ana Gita de passariam a ser distinguidas com um selo do
Oliveira, antropóloga e técnica do Iphan, chama Ministério da Cultura vem desencadeando ampla
a atenção para o fato de que, a partir de 1995, mobilização de profissionais da cultura e agentes
sociais em organismos estatais, ONGs e insti-
o Iphan começou a sistematizar os diversos tuições culturais. Com o início da gestão de
modelos de inventários existentes até então e, Gilberto Gil no Ministério da Cultura, houve um
pela primeira vez, arriscar a difícil tarefa de incentivo muito grande para que o Programa do
organizar um inventário que fosse adequado à Patrimônio Imaterial entrasse em vigor, inclusive
natureza do patrimônio imaterial [...]. Entre os com editais de concursos de financiamentos com
anos de 1997 e 2000, tendo como fonte de apoio da Petrobras para pesquisas nessa área.
inspiração as experiências realizadas na Fun-
Pode-se falar em uma verdadeira corrida de
dação Pró-Memória e no desenvolvimento de
três experiências de inventários de referências
pesquisadores, principalmente de antropólogos,
culturais, no Serro/MG, em Diamantina/MG e que se sentiram estimulados a organizar dossiês
na cidade de Goiás/GO, se começou a estruturar de pesquisas sobre as manifestações culturais
um modelo de Inventário [...]. (Oliveira, 2004) relacionadas aos grupos de seus interesses de
pesquisa.
A metodologia de inventário sistematizada Para que uma manifestação cultural con-
pelo Iphan começou a ser posta em prática por corra ao registro, é necessário um amplo dossiê

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ABREU, REGINA. Quando o campo é o patrimônio: notas sobre a participação...

com pesquisas consistentes, descrições deta- responsável pela decisão final de tombamentos
lhadas e justificativas sobre as razões dos pedidos e registros, o que significa dar um selo oficial de
de registro. Evidentemente que, para essa reconhecimento a uma manifestação cultural se
atividade específica, os antropólogos reúnem os o país é feito de muitas manifestações culturais,
atributos necessários. O que vem ocorrendo é todas igualmente significativas para os grupos
que antropólogos com maiores informações e que a produzem e que por ela são produzidos?
condições materiais de realizar tais dossiês É papel dos antropólogos hierarquizar as
levam vantagem em uma certa concorrência culturas? Os antropólogos nos Conselhos de
para definir que bens culturais serão registrados Patrimônio ou nas agências governamentais
e receberão o título de “patrimônios culturais do podem selecionar algumas manifestações cultu-
Brasil”. Os primeiros casos de “registros de bens rais em detrimento de outras? Como patri-
culturais” exemplificam esse processo. monializar as diferenças sem trair o próprio
O caso do primeiro bem cultural indígena conceito de diferença? Como criar coleções de
registrado no Livro dos Saberes do patrimônio manifestações culturais dignas de representar
imaterial é emblemático. Trata-se do registro da a nação brasileira, sabendo que, no mesmo
arte kusiwa – pintura corporal e arte gráfica movimento, estamos também praticando o
wajãpi, ou seja, de índios habitantes do Amapá descolecionamento, ou seja, criando coleções de
e estudados pela antropóloga Dominique Gallois, manifestações culturais “indignas” de repre-
do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo sentar a nação brasileira? Cabe ao antropólogo
da USP. Apoiada pelo Museu do Índio, por esse papel de certificador das culturas? Quais
ocasião da elaboração de uma exposição dessa os significados para o trabalho antropológico
etnia no museu, Dominique Gallois organizou um quando atuamos como mediadores entre culturas
vasto dossiê, resultado de mais de quinze anos específicas e singulares e agências do governo
de pesquisa, e o encaminhou, junto com o diretor federal que retiram delas fragmentos para
do Museu do Índio, o também antropólogo José metaforizar uma outra totalidade, a nação –
Carlos Levinho, ao Iphan, solicitando o registro totalidade que vem sendo construída por agentes
do kusiwa como patrimônio cultural do Brasil, especialmente treinados do aparelho de Estado?
dentro do Programa Nacional do Patrimônio Como integrar o aparelho de Estado, sem perder
Imaterial. Em um certo sentido, pode-se dizer de vista a premissa básica e fundante de toda a
que, por uma série de motivos, entre eles a antropologia, que é trabalhar com a diferença e
agilidade e o trabalho anterior acumulado, buscar traduzi-la sem hierarquizações e etno-
Dominique Gallois chegou na frente no pedido centrismos? Como lidar com nossos próprios
de registro para a arte gráfica do grupo que valores, gostos, idiossincrasias, quando temos
estuda e, em 20 de dezembro de 2002, o kusiwa diante de nós o poder de certificá-los em detri-
foi registrado como patrimônio cultural do Brasil. mento de outros? Por outro lado, como deixar
Evidentemente que injunções políticas também de aproveitar oportunidades de certificar cultu-
concorreram para que esse bem cultural rece- ras que são nossos próprios objetos de estudo,
besse o selo de patrimônio oficial pelo governo uma vez que sabemos que elas podem ser boas
federal. Na ocasião, o presidente Fernando estratégias para a auto-afirmação e a construção
Henrique Cardoso encerrava sua gestão e era da auto-estima desses grupos? Como fazer isso
interessante que o governo mostrasse resultados sem estimular a guerra das culturas em um
e a então gestão do Iphan tornasse visível a planeta onde a noção de diversidade cultural vem
política que naquele governo começara a adotar. ganhando o significado do multiculturalismo, ou
Com senso de oportunidade e uma pesquisa seja, de culturas fechadas como mônadas ou
consolidada sobre os waiãpi, o Museu do Índio, totalidades que, em muitos casos, perdem quais-
as lideranças indígenas waiãpi e a antropóloga quer referências ao objetivo do entendimento
Dominique Gallois emplacaram o registro da humano? Ainda refletindo sobre o caso do
bela arte gráfica waiãpi. Entretanto, como grafismo waiãpi e sem tirar o mérito e a beleza
assinalou Luiz Fernando Duarte, na época inte- dessa arte gráfica, como proceder diante de
grante do Conselho do Patrimônio, órgão todas as demais artes gráficas das etnias

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SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 37-52

indígenas no Brasil, uma vez que todas elas heritage. Particularly in this field, the anthropologists have
produzem artes gráficas igualmente belas e hardly assumed to establish criterions and develop
methodologies capable to enlarge the heritage process of
culturalmente significativas? Não estaríamos cultural diversities. This article aims to scrutinize the
também correndo o risco de engessar as mani- different positions of anthropologists investigating
festações culturais, congelando-as com base na heritage and then to discuss the tensions and/or
imagem cristalizada no registro? articulations among the diverse sets of reflexive and/or
practical procedures.
Key-words: heritage; anthropology; social memory.
Conclusão
Estas são algumas questões sobre as quais
os antropólogos do patrimônio devem refletir nos Referências
próximos anos. Não são questões de fácil
ABREU, Regina. A fabricação do imortal – memória,
resposta. É preciso ter em mente que, se hoje
história e estratégias de consagração no Brasil. Rio
abre-se um mercado extraordinário para a de Janeiro: Ed. Rocco/Lapa, 1996.
antropologia com as novas demandas do campo
_____. História de uma coleção: Miguel Calmon e o
do patrimônio, não devemos nele nos inserir sem
Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Pau-
crítica e atitude reflexiva. Afinal, o que nota- lista. História e Cultura Material. Jan./dez. 1994, SP,
bilizou a disciplina durante praticamente um USP.
século de atividades foi exatamente um certo _____. Síndrome de museus. Encontros e Estudos
olhar ao mesmo tempo complacente e relati- 2, Funarte, MinC, 1996.
vizador diante das criações humanas. Para- ANDERSON, Benedict. Imagined communities.
fraseando Lévi-Strauss em um texto clássico Norfolk: Thetford Press, 1987.
sobre a diversidade das culturas, eu ainda ARANTES, A. A. Produzindo o passado. São Paulo:
partilharia do ponto de vista de que a diversidade Brasiliense, 1984.
da culturas humanas está diante de nós e atrás CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas.
de nós e uma das exigências que deveríamos O imaginário da República no Brasil. São Paulo:
fazer valer a esse respeito é que o registro da Companhia das Letras, 1990.
contribuição de cada uma seja apenas mais uma CHAGAS, M. Há uma gota de sangue em cada
lembrança da generosidade das outras para esse museu: a ótica museológica de Mário de Andrade.
grande acervo da contribuição humana à Cadernos de Sociomuseologia, n. 13, Lisboa, ULHT,
plasticidade da vida do planeta (Lévi Strauss, 1999.
1970). CLIFFORD, James. Colecionando arte e cultura.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal, 1995.
_____. Museologia e contra-história. Viagens pela
Abstract: The number of anthropologists investigating Costa Noroeste. In: ABREU, Regina; CHAGAS,
the field of cultural heritage is growing. These researchers Mário. Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: Ed.
have contributed to accurate analysis about questions of
DPA, 2003
values and their attributes in the social context. It is
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