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rava duzentos anos em 1989, no mesmo ano a mônios nacionais. Com relação à perspectiva
república verde-amarela completava cem anos. antropológica de estudos de museus e práticas
Na perspectiva da história, é dessa época o de colecionamento, devemos registrar que a
trabalho, por exemplo, de José Murilo de tendência auto-reflexiva da antropologia tam-
Carvalho, A formação das almas, evidenciando bém contribuiu para o foco nessa área. Do
em minúcias o processo de elaboração dos projeto editorial organizado por George Stocking
símbolos nacionais: a bandeira, o hino, as Jr sobre a história da antropologia foi lançado
alegorias, os monumentos (Carvalho, 1990). Por em 1985 um número especial sobre museus e
essa ocasião passava-se em revista a história práticas de colecionamento na antropologia. O
da formação das nações modernas. O histo- livro Objects and others. Essays on museums
riador Éric Hobsbawm publicou a Era dos and material culture, terceiro volume da série,
impérios, tematizando o período que se abriu trouxe artigos sobre a estreita relação da antro-
em 1870, quando, na Europa, tiveram lugar as pologia com os museus, desde o nascimento da
grandes transformações que desencadearam disciplina. Vale destacar o artigo de Ira Jacknis
novas relações entre os indivíduos. A partir de focalizando o trabalho de Franz Boas como
então, todos deviam fidelidade a um ente curador de exposições em museus etnográficos;
abstrato e distante: o Estado-nação. Outro o artigo de Richard Handler, que se tornou
trabalho do historiador inglês desse período foi clássico nos estudos do patrimônio sobre o
processo de construção do patrimônio em
A invenção das tradições, no qual propunha
Québec, e, por fim, o artigo de James Clifford
pesquisar sobre pequenas invenções necessárias
sobre a prática de colecionamento dos objetos
à consolidação dos Estados nacionais, como
“dos outros” nos grandes museus e os problemas
alegorias e trajes típicos. O ensaio sobre a
advindos desses deslocamentos dos objetos com
invenção do traje típico dos escoceses e de toda
relação a seus contextos de origem.1
a tradição envolvida inspirou pesquisas de
Tomar os museus e as coleções de museus
historiadores e antropólogos sobre o papel das
em uma perspectiva antropológica, procurando
identidades regionais e locais na construção dos
perceber esses lugares de memória como
símbolos nacionais (Hobsbawm, 1984). elementos importantes do sagrado nacional,
Outros trabalhos de antropologia, embora consistiu no meu objetivo na dissertação de
não se dedicassem exatamente ao tema do mestrado apresentada ao PPGAS-Museu
patrimônio nacional, voltaram-se para o estudo Nacional em 1990, com o título Sangue,
da criação de muitos outros símbolos necessários nobreza e política no templo dos imortais:
à formação dos novos cidadãos. Cabe registrar um estudo antropológico da Coleção Miguel
o trabalho do antropólogo Ruben Geoge Oliven Calmon no Museu Histórico Nacional e
sobre a invenção do gaúcho, em certa parte publicada em livro em 1996 sob o título A
inspirado no ensaio de Hobsbawm. Oliven utiliza fabricação do imortal. Nesse trabalho, tomei
a perspectiva antropológica para desvendar a o Museu Histórico Nacional em seus primeiros
maneira pela qual a tradição gaúcha foi criada anos, que coincidem com o período em que
com festas, datas e trajes típicos. A antropóloga esteve à frente da instituição seu fundador e
Maria Eunice Maciel, do mesmo departamento principal idealizador, o escritor Gustavo Barroso
de Oliven, segue trilha semelhante. (1922-1959). Como estratégia metodológica
Uma outra linha de investigação que se para entender o significado da memória nacional
inaugurou no período dos anos 80 e 90 foi o que ali era construída, focalizei o processo de
estudo dos museus e das práticas de colecio-
namento de objetos museológicos. Também em 1. Os títulos dos artigos são respectivamente: JACKNIS,
parte inspirados na voga dos estudos sobre a Ira. Franz Boas and exhibits: On the limitation of the
museum method of anthropology; HANDLER, Richard. On
formação dos Estados-nações e seus símbolos, having a culture: nationalism and the preservations of
esses estudos congregaram historiadores e Québec’s Patrimoine; CLIFFORD, James. Objects and selves
– An afterword. In: STOCKING, Jr., George W. Objects and
antropólogos. Os museus e suas coleções eram others. Essays on museums and material culture. London:
entendidos como partes expressivas dos patri- University of Wisconsin Press, 1985.
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doação e incorporação de uma grande coleção acreditavam na eficácia dessas instituições como
de um político influente da Primeira República, produtoras de símbolos e narrativas. Falar de
Miguel Calmon. Utilizando como principal refe- um lugar de fora e situar-se ao mesmo tempo
rência o Ensaio sobre a dádiva de Marcel dentro da instituição com seus problemas e suas
Mauss e suas reflexões sobre reciprocidade, vicissitudes não me parece uma tarefa simples.
pude perceber o museu como um lugar de trocas Na minha experiência particular, muito me
simbólicas e rituais entre os agentes sociais que, auxiliou o fato de eu não atuar em cargo de
nesses movimentos, construíam uma versão da direção e, de certo modo, permanecer protegida
história do Brasil e fabricavam personagens na Divisão de Estudos e Pesquisas, setor que
históricos. A experiência de trabalhar com uma ocupava certo lugar de retaguarda na instituição.
perspectiva antropológica para entender a lógica Mas o olhar antropológico relativizador, eu
de funcionamento de uma instituição produtora diria mesmo, dessacralizador, criou por vezes
de memória foi muito rentável. Sob essa pers- certos embaraços. Quando trabalhamos com
pectiva, foi possível fazer uma leitura do museu discursos fundadores e com figuras carismáticas
e de suas coleções até certo ponto original. de pais fundadores, em quaisquer que sejam os
Nesse trabalho, dialoguei com a perspectiva de campos, a polêmica é inevitável. Esquadrinhar
José Reginaldo Gonçalves, analisando, assim o pensamento de Gustavo Barroso, figura emi-
como ele, a construção discursiva de um funda- nente no museu, a partir do qual tudo ou quase
dor de uma instituição voltada para o patrimônio tudo ali foi gerado, representava tocar no emble-
nacional. ma de alguns e algumas colegas de trabalho.
No meu caso específico, de maneira diversa Esse intelectual abriu um campo novo no Brasil
de Gonçalves, o objeto era um museu. Focalizar ao tecer com colaboradores as bases para uma
a criação e os primeiros anos de funcionamento escola de museologia no país. A minha sorte,
dessa instituição foi uma estratégia deliberada neste caso, é que, como toda figura emblemática,
de eleger para a análise os nativos do passado. não havia unanimidade sobre sua contribuição.
Isto por dois motivos. O primeiro relacionado a E o fato também de Gustavo Barroso ter adotado
uma certa tendência dos estudos do período, que na política atitudes conservadoras, com passa-
consistia em fazer um inventário do campo do gem pelo movimento integralista, tornava-o
patrimônio com base no discurso dos funda- antipático para certos segmentos. A conclusão
dores. O segundo motivo deveu-se ao fato de da pesquisa trouxe elementos capazes de des-
que na época eu era funcionária do Museu cortinar alguns dos pressupostos que orientaram
Histórico Nacional, o que dificultava uma pro- a formação de um acervo considerado repre-
posta de estudar a instituição em uma abordagem sentativo de uma certa versão da história do
sincrônica. A familiaridade com colegas museó- Brasil. Todos entenderam que eu falava de um
logos e historiadores não ensejava uma pesquisa museu do passado, que não mais existia e, desse
das práticas de colecionamento na contempo- modo, minha pesquisa foi vista como uma contri-
raneidade. A perspectiva antropológica voltada buição sobre a história do museu e o pensamento
para uma leitura do passado pareceu-me mais de seu fundador. Em se tratando de uma
adequada como estratégia de entrada no campo. dissertação de mestrado foi recebida com muito
Estudar a instituição com a qual eu mantinha respeito, e até admiração, por meus colegas.
um vínculo empregatício colocava-me de certo Na ocasião, o historiador Ulpiano T. Bezerra
modo em um lugar diferente dos meus colegas, de Menezes, do Departamento de História da
pois produzia um distanciamento e uma relati- Universidade de São Paulo, estava à frente do
vização de suas práticas e projetos. Olhar o Museu Paulista da USP e propunha que os
museu como um lugar de produção da memória museus tematizassem suas próprias histórias e
e indagar sobre a modalidade de memória que analisassem seus acervos. Ulpiano chegou a
ali vinha sendo elaborada, com que fins e realizar uma exposição no Museu Paulista sobre
objetivos, poderia parecer um tema até certo a construção do próprio museu e as estratégias
ponto ameaçador para aqueles que faziam da de definição e incorporação de seu monumental
prática museológica e histórica o seu ofício, que acervo ao longo da história. Essa vertente de
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anos 90. Até então, este era um tema quase tetônico é bem diferente de refletir sobre os
que circunscrito a instituições estatais como os mecanismos que levaram uma sociedade a
museus e o Iphan. Nessas agências, formaram- valorizar aqueles objetos e não outros, ou de
se ao longo dos anos pesquisadores e profissio- estudar sobre as escolhas dos quadros a serem
nais que se dedicaram a refletir sobre questões restaurados e daqueles fadados à destruição, ou
da memória e do patrimônio, mas quase sempre ainda observar criticamente que a restauração
com uma perspectiva interessada de intervenção de um bairro ou de um complexo arquitetônico
e construção do campo propriamente dito. com base em determinados padrões estéticos
Muitos dos pesquisadores que se dedicaram a não é suficiente para restaurar a “autenticidade
escrever dissertações e teses tiveram passagem, original” desses espaços.
como eu, nessas instituições. Foi o diálogo com Desse modo, alguns pesquisadores que,
linhas de pesquisa nas universidades que permi- como eu, originalmente desenvolveram seus
tiu, por outro lado, arejar o debate interno dos interesses de pesquisa em museus ou agências
órgãos voltados para a atuação no campo do de patrimônio perceberam a dificuldade em
patrimônio. Essa relação entre universidades e conciliar esses dois lugares ou práticas profis-
agências estatais tem sido uma constante no sionais. No meu caso, tomei a decisão de traba-
meio daqueles que escrevem sobre o assunto. lhar na universidade, prestando concurso no final
José Reginaldo Gonçalves, por exemplo, foi dos anos 90 para a Universidade Federal do
chamado inúmeras vezes para falar no Iphan Estado do Rio de Janeiro, onde ingressei em uma
sobre os “pais fundadores” do instituto e as pós-graduação em memória social que ali havia
principais políticas formuladas para a área no sido criada por um grupo de historiadores. A
passado. No meu caso, participo ativamente de perspectiva interdisciplinar do curso me atraiu.
simpósios, mesas-redondas e publicações do Além do mais, eu não via, na ocasião, um inte-
Museu Histórico Nacional e de outros museus. resse em estudos de memória e patrimônio nos
Recentemente, em julho deste ano, fui convidada Departamentos de Antropologia das univer-
para presidir uma mesa em reunião da Asso- sidades no Rio de Janeiro. Desse modo, a Unirio
ciação Internacional dos Museus Históricos, no me pareceu uma boa opção. Cabe observar que
Museu Paulista, em São Paulo. Esses inter- o Centro de Ciências Humanas dessa univer-
câmbios entre o pesquisador e as agências que sidade reúne algumas faculdades singulares no
configuraram o campo etnográfico de suas panorama das universidades no Rio de Janeiro,
pesquisas são extremamente interessantes, mas a saber, de Museologia, de Biblioteconomia e
muitas vezes provocam confusões e mal-enten- de Arquivologia, além de contar com uma
didos. A perspectiva acadêmica, reflexiva, tem Faculdade de História. Atuar nessas faculdades
uma especificidade com relação ao trabalho de teve para mim um certo sabor de ser uma antro-
atuação em uma área que, independentemente póloga fora do lugar, ou seja, de não contribuir
das relativizações que se possam fazer, funciona diretamente para a formação de antropólogos
como instância canonizadora, formando ícones ou cientistas sociais, que é, em geral, parte
e símbolos da memória nacional. O diálogo, importante do trabalho dos antropólogos nas
portanto, tem limites e muitas vezes é difícil universidades. Mas esse trabalho abriu também
precisá-los. Faz parte do jogo das agências do para mim uma perspectiva de exercitar o olhar
patrimônio a consagração por meio de ações de antropológico na qualificação do profissional que
tombamentos de bens móveis e imóveis, listas atua em áreas de gestão da memória e patri-
de edificações a serem preservadas ou de obje- mônio.
tos a serem recolhidos. As políticas de memória Particularmente no curso de pós-graduação
são o resultado de dinâmicas deliberadas de tem sido possível propor um trabalho reflexivo
lembranças e esquecimentos. Valorizar objetos, para alunos que são também profissionais da
entronizar personagens no panteão de uma área. Esse procedimento tem servido como
construção discursiva da história, restaurar um elemento propulsor de levantamento de questões
quadro, um prédio ou um bairro seguindo a opção que certamente vêm fazendo com que os
de uma determinada época ou padrão arqui- profissionais enxerguem a inserção nas insti-
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tuições em que atuam sob novos ângulos. e teses e alimentando debates, simpósios e
Trabalhar com museólogos, historiadores, mesas-redondas em todo o país. De tema mar-
arquivistas, bibliotecários, sociólogos, que são ginal ou menor nos estudos antropológicos, os
também técnicos de instituições como o Arquivo estudos de memória, patrimônio e cultura mate-
Nacional, a Biblioteca Nacional, o Museu do rial vêm ganhando visibilidade e inserindo-se no
Índio, o Museu Nacional, o Museu da Imagem movimento contemporâneo de uma antropologia
e do Som, fazê-los dialogar entre si nos cursos, voltada para pensar a sociedade do observador
tem sido uma experiência enriquecedora. Ao ou, para usar a expressão de Marisa Peirano,
mesmo tempo, permite uma certa liberdade para de uma antropologia na qual a construção da
levar adiante minhas próprias pesquisas, sem alteridade é próxima, senão mínima. Este é um
obrigatoriamente ter de me dedicar a atividades campo sem dúvida de interseção entre antropó-
que outrora me envolviam quando funcionária logos e “outros”, dos mais variados lugares e
do Museu Histórico Nacional ou em minha tendências. Campo que se movimenta na con-
passagem pelo Iphan e pela Coordenação de fluência entre a academia e as agências de
Folclore e Cultura Popular do MinC, tais como governo, instituições, ONGs e movimentos
realização de exposições museológicas e pare- sociais, entre pesquisas reflexivas e paixões
ceres técnicos. desenfreadas que fazem do patrimônio uma
Outros grupos de pesquisa sobre patrimônio, “causa” e uma “bandeira de luta”. Esses dois
memória, museus e práticas de colecionamento campos interpenetram-se e os limites dessas
foram sendo criados nos anos 90. No IFCS/ interferências mútuas são construídos caso a
UFRJ, meu colega José Reginaldo Gonçalves caso.
vem trabalhando há alguns anos com essa
temática, especialmente orientando alunos da
pós-graduação em Antropologia. Em Goiânia, 3 O campo da intervenção: a política do
na Universidade Católica de Goiás, foi criado, patrimônio intangível e a convocação de
por iniciativa do antropólogo Manuel Ferreira antropólogos
Lima Filho, um mestrado profissionalizante em Se, de um lado, temos um movimento
Gestão do Patrimônio Cultural. Esse mestrado crescente nas universidades, novos debates
conta desde o início com a colaboração de Roque nacionais e internacionais vêm colocando o tema
de Barros Laraia e é voltado para a profissio- do patrimônio na ordem do dia das políticas
nalização de gestores de cultura naquela locali- públicas no Brasil e no exterior. Particularmente
dade. Além disso, podemos registrar alguns os antropólogos vêm sendo convocados diante
pólos importantes liderados por antropólogos. É de mudanças significativas nas formulações de
o caso da Universidade Federal do Maranhão, políticas do patrimônio, principalmente com o
com Alexandre Corrêa, da Universidade Federal fomento ao chamado patrimônio intangível. Não
do Pará, com Jane Maria Beltrão; do Museu é por acaso que hoje, pela primeira vez na histó-
Goeldi, com Priscila Faulhaber; da Universidade ria do Iphan, um antropólogo ocupa a presidência
Federal do Rio Grande do Norte, com Julie
da instituição. Vale a pena discorrer sobre alguns
Caviganc, e da Universidade Federal do Rio
aspectos dessa conjuntura que afeta diretamente
Grande do Sul, com Ruben Georges Oliven e
Maria Eunice Maciel. Recentemente, o mes-
trado profissionalizante em Bens Culturais e 3. No site do referido mestrado são assim definidos seus
Projetos Sociais criado no CPDOC veio engros- objetivos: “O Mestrado Profissionalizante em Bens Cultu-
rais e Projetos Sociais pretende qualificar profissionalmen-
sar a fileira dos cursos voltados para o tema do te aqueles que, tendo concluído o curso de graduação, atuem
patrimônio, atuando de forma interdisciplinar e ou queiram atuar no planejamento, elaboração, desenvolvi-
mento, gestão, assessoramento, difusão, acompanhamento
direcionado para um público amplo de profis- ou avaliação de atividades e propostas voltadas para bens
sionais da área da cultura.3 culturais – como acervos, patrimônio, centros de memória
Esse trabalho nas universidades, principal- e de cultura, exposições e eventos – ou para projetos sociais
– em especial aqueles que tomam a cultura como via privi-
mente nos programas de pós-graduação, vem legiada para o desenvolvimento da cidadania e para a redu-
gerando um número crescente de dissertações ção da exclusão social”.
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tados ou produtos de técnicas de construção ou que tinha longa experiência com pesquisa em
de conhecimentos ancestrais, mas que, pelo folclore e cultura popular. Das instituições do
contrário, se valoriza o processo do fazer. Desse Ministério da Cultura, era esta uma das que
modo, se um prédio é considerado importante congregava maior número de antropólogos.
para a cultura japonesa, de tempos em tempos Concomitantemente, por ocasião dos festejos
promove-se ritualmente uma desconstrução dos quinhentos anos do Descobrimento do Brasil,
desse prédio e sua reconstrução. A proteção o Ministério da Cultura propôs a Antonio
mais adequada, segundo essa concepção, Augusto Arantes a criação de uma metodologia
baseia-se na valorização do processo e não no de inventário das manifestações culturais na
resultado final. Por outro lado, o documento da região do sul da Bahia, onde havia um projeto
Unesco chamava a atenção para a importância de criação de um “Museu Aberto do Desco-
de proteger, no caso das “culturas tradicionais”, brimento”. Gestores do patrimônio interessados
os “mestres” considerados “patrimônios vivos” na nova política do patrimônio intangível articu-
de conhecimentos muitas vezes não documen- laram-se no projeto de criação de um programa
tados por meio da escrita. Dizia o texto: “Em de ação voltado para o patrimônio intangível no
sociedades tradicionais, quando morre um Brasil e, em 4 de agosto de 2000, foi promulgado
ancião toda uma biblioteca se queima e se perde o Decreto n. 3551, instituindo “o Registro de
para sempre”. Bens Culturais de Natureza Imaterial que consti-
Era evidente o surgimento de um dado novo tuem patrimônio cultural brasileiro e criando o
no campo do patrimônio. Se, nos primeiros anos Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”.
de constituição dos patrimônios nacionais, A proposta do registro significou essen-
predominava uma retórica que lastimava a perda cialmente a criação de um selo distintivo oficial
de um mundo constituído de prédios e edifi- para os chamados “bens culturais de natureza
cações que davam lugar a novos ícones das imaterial”. Evidentemente que, como todo o
modernas sociedades urbano-industriais, se processo de patrimonialização, essa proposta
nesses anos era preciso salvar algo que teste- inclui a idéia de seleção, de construção de um
munhasse momentos da longa trajetória de acervo digno de ser memorializado em oposição
construção da civilização ocidental, no final dos a um outro conjunto de bens culturais que devem
anos 90, discutia-se um outro sentido para uma ser relegados ao esquecimento. A dinâmica
mesma retórica da perda. Lastimava-se agora patrimonial implica práticas de colecionamento
o desaparecimento daqueles que constituíam os e a prática do registro pode ser comparada à do
“outros” do mundo civilizado, “outros” que tombamento, na qual são necessários critérios
expressavam culturas exóticas que teriam que possibilitem escolhas daquilo que deverá ser
sobrevivido a diversas fases do capitalismo, mas preservado.
que, com a globalização, estariam irremedia- Para o registro dos bens culturais de natu-
velmente fadados à dissolução. reza imaterial, foram criados quatro livros: o
As propostas salvacionistas da Unesco Livro do Registro dos Saberes (para o registro
tiveram boa repercussão no Brasil entre gestores de conhecimentos e modos de fazer); o Livro
do patrimônio, entre eles os segmentos da das Celebrações (para as festas, os rituais e os
vertente culturalista do Iphan e também de folguedos); o Livro das Formas de Expressão
outras agências do Ministério da Cultura. (para a inscrição de manifestações literárias,
Reuniões foram realizadas, entre elas uma em musicais, plásticas, cênicas e lúdicas) e o Livro
Fortaleza que congregou técnicos de várias dos Lugares (destinado à inscrição de espaços
agências governamentais, quando foi proposta onde se concentram e reproduzem práticas
a formulação de uma política voltada para o culturais coletivas).
patrimônio intangível. Uma das instituições que Prevê-se, então, que alguns “bens culturais”
aderiu de imediato foi a então Coordenação de devam ser registrados nesses livros e que, como
Folclore e Cultura Popular, ligada à Funarte, manifestações culturais vivas, eles sejam
instituição herdeira da Campanha de Defesa do acompanhados pelos agentes do patrimônio e
Folclore Brasileiro, atuante desde os anos 50, e tenham suas transformações documentadas.
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Nas palavras da atual diretora do Depar- alguns técnicos das agências governamentais,
tamento do Patrimônio do Iphan, a arquiteta entre eles os técnicos do Centro Nacional de
Marcia Sant’Anna, Folcore e Cultura Popular (CNFCP), sob a coor-
denação da antropóloga Letícia Vianna. Essa
o registro corresponde à identificação e à experiência merece ser registrada pois vem
produção de conhecimento sobre o bem cultural abrindo um importante mercado de trabalho para
de natureza imaterial e equivale a documentar, antropólogos. No caso do projeto do CNFCP,
pelos meios técnicos mais adequados, o há uma equipe fixa e diversos consultores
passado e o presente dessas manifestações em relacionados a temas específicos que foram
suas diferentes versões, tornando tais infor-
selecionados para serem inventariados:
mações amplamente acessíveis ao público. O
objetivo é manter o registro da memória desses
as diferentes celebrações relacionadas ao
bens culturais e de sua trajetória no tempo,
complexo cultural do boi, os diferentes modos
porque só assim se pode “preservá-los”. Como
de fazer relacionados ao artesanato em barro;
processos culturais dinâmicos, as referidas
as diferentes formas de expressão e modos de
manifestações implicam uma concepção de
fazer relacionados à musicalidade das violas e
preservação diversa daquela prática ocidental,
percussões; os diferentes modos de fazer
não podendo ser fundada em seus conceitos
relacionados aos sistemas culinários a partir
de permanência e autenticidade. Os bens
dos elementos mandioca e feijão. (Vianna, 2004)
culturais de natureza imaterial são dotados de
uma dinâmica de desenvolvimento e transfor-
mação que não cabe nesses conceitos, sendo A maior parte dos envolvidos nessas
mais importante, nesses casos, registro e pesquisas são antropólogos ou estudantes de
documentação do que intervenção, restauração antropologia em fase de mestrado ou doutorado
e conservação. (Sant’Anna, 2003) recrutados em cursos de pós-graduação, que
estão envolvidos com teses sobre temas corre-
Paralelamente ao instrumento do registro, latos. O objetivo das pesquisas é duplo: tecer
o Iphan criou, em parte com as contribuições um inventário dessas manifestações culturais,
do projeto piloto desenvolvido por Antonio escolhidas em parte por retratar certa tradição
Augusto Arantes no sul da Bahia, uma meto- de estudos da instituição, e preparar dossiês para
dologia de inventário que gerou uma proposta possíveis registros dentro do Programa Nacional
de Inventário Nacional de Referências Culturais de Patrimônio Imaterial.
(INRC), instrumento para subsidiar as ações de Concomitantemente aos inventários, o mote
registro e realizar um recenseamento amplo das dos “registros” de manifestações culturais que
manifestações culturais no país. Ana Gita de passariam a ser distinguidas com um selo do
Oliveira, antropóloga e técnica do Iphan, chama Ministério da Cultura vem desencadeando ampla
a atenção para o fato de que, a partir de 1995, mobilização de profissionais da cultura e agentes
sociais em organismos estatais, ONGs e insti-
o Iphan começou a sistematizar os diversos tuições culturais. Com o início da gestão de
modelos de inventários existentes até então e, Gilberto Gil no Ministério da Cultura, houve um
pela primeira vez, arriscar a difícil tarefa de incentivo muito grande para que o Programa do
organizar um inventário que fosse adequado à Patrimônio Imaterial entrasse em vigor, inclusive
natureza do patrimônio imaterial [...]. Entre os com editais de concursos de financiamentos com
anos de 1997 e 2000, tendo como fonte de apoio da Petrobras para pesquisas nessa área.
inspiração as experiências realizadas na Fun-
Pode-se falar em uma verdadeira corrida de
dação Pró-Memória e no desenvolvimento de
três experiências de inventários de referências
pesquisadores, principalmente de antropólogos,
culturais, no Serro/MG, em Diamantina/MG e que se sentiram estimulados a organizar dossiês
na cidade de Goiás/GO, se começou a estruturar de pesquisas sobre as manifestações culturais
um modelo de Inventário [...]. (Oliveira, 2004) relacionadas aos grupos de seus interesses de
pesquisa.
A metodologia de inventário sistematizada Para que uma manifestação cultural con-
pelo Iphan começou a ser posta em prática por corra ao registro, é necessário um amplo dossiê
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com pesquisas consistentes, descrições deta- responsável pela decisão final de tombamentos
lhadas e justificativas sobre as razões dos pedidos e registros, o que significa dar um selo oficial de
de registro. Evidentemente que, para essa reconhecimento a uma manifestação cultural se
atividade específica, os antropólogos reúnem os o país é feito de muitas manifestações culturais,
atributos necessários. O que vem ocorrendo é todas igualmente significativas para os grupos
que antropólogos com maiores informações e que a produzem e que por ela são produzidos?
condições materiais de realizar tais dossiês É papel dos antropólogos hierarquizar as
levam vantagem em uma certa concorrência culturas? Os antropólogos nos Conselhos de
para definir que bens culturais serão registrados Patrimônio ou nas agências governamentais
e receberão o título de “patrimônios culturais do podem selecionar algumas manifestações cultu-
Brasil”. Os primeiros casos de “registros de bens rais em detrimento de outras? Como patri-
culturais” exemplificam esse processo. monializar as diferenças sem trair o próprio
O caso do primeiro bem cultural indígena conceito de diferença? Como criar coleções de
registrado no Livro dos Saberes do patrimônio manifestações culturais dignas de representar
imaterial é emblemático. Trata-se do registro da a nação brasileira, sabendo que, no mesmo
arte kusiwa – pintura corporal e arte gráfica movimento, estamos também praticando o
wajãpi, ou seja, de índios habitantes do Amapá descolecionamento, ou seja, criando coleções de
e estudados pela antropóloga Dominique Gallois, manifestações culturais “indignas” de repre-
do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo sentar a nação brasileira? Cabe ao antropólogo
da USP. Apoiada pelo Museu do Índio, por esse papel de certificador das culturas? Quais
ocasião da elaboração de uma exposição dessa os significados para o trabalho antropológico
etnia no museu, Dominique Gallois organizou um quando atuamos como mediadores entre culturas
vasto dossiê, resultado de mais de quinze anos específicas e singulares e agências do governo
de pesquisa, e o encaminhou, junto com o diretor federal que retiram delas fragmentos para
do Museu do Índio, o também antropólogo José metaforizar uma outra totalidade, a nação –
Carlos Levinho, ao Iphan, solicitando o registro totalidade que vem sendo construída por agentes
do kusiwa como patrimônio cultural do Brasil, especialmente treinados do aparelho de Estado?
dentro do Programa Nacional do Patrimônio Como integrar o aparelho de Estado, sem perder
Imaterial. Em um certo sentido, pode-se dizer de vista a premissa básica e fundante de toda a
que, por uma série de motivos, entre eles a antropologia, que é trabalhar com a diferença e
agilidade e o trabalho anterior acumulado, buscar traduzi-la sem hierarquizações e etno-
Dominique Gallois chegou na frente no pedido centrismos? Como lidar com nossos próprios
de registro para a arte gráfica do grupo que valores, gostos, idiossincrasias, quando temos
estuda e, em 20 de dezembro de 2002, o kusiwa diante de nós o poder de certificá-los em detri-
foi registrado como patrimônio cultural do Brasil. mento de outros? Por outro lado, como deixar
Evidentemente que injunções políticas também de aproveitar oportunidades de certificar cultu-
concorreram para que esse bem cultural rece- ras que são nossos próprios objetos de estudo,
besse o selo de patrimônio oficial pelo governo uma vez que sabemos que elas podem ser boas
federal. Na ocasião, o presidente Fernando estratégias para a auto-afirmação e a construção
Henrique Cardoso encerrava sua gestão e era da auto-estima desses grupos? Como fazer isso
interessante que o governo mostrasse resultados sem estimular a guerra das culturas em um
e a então gestão do Iphan tornasse visível a planeta onde a noção de diversidade cultural vem
política que naquele governo começara a adotar. ganhando o significado do multiculturalismo, ou
Com senso de oportunidade e uma pesquisa seja, de culturas fechadas como mônadas ou
consolidada sobre os waiãpi, o Museu do Índio, totalidades que, em muitos casos, perdem quais-
as lideranças indígenas waiãpi e a antropóloga quer referências ao objetivo do entendimento
Dominique Gallois emplacaram o registro da humano? Ainda refletindo sobre o caso do
bela arte gráfica waiãpi. Entretanto, como grafismo waiãpi e sem tirar o mérito e a beleza
assinalou Luiz Fernando Duarte, na época inte- dessa arte gráfica, como proceder diante de
grante do Conselho do Patrimônio, órgão todas as demais artes gráficas das etnias
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SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 37-52
indígenas no Brasil, uma vez que todas elas heritage. Particularly in this field, the anthropologists have
produzem artes gráficas igualmente belas e hardly assumed to establish criterions and develop
methodologies capable to enlarge the heritage process of
culturalmente significativas? Não estaríamos cultural diversities. This article aims to scrutinize the
também correndo o risco de engessar as mani- different positions of anthropologists investigating
festações culturais, congelando-as com base na heritage and then to discuss the tensions and/or
imagem cristalizada no registro? articulations among the diverse sets of reflexive and/or
practical procedures.
Key-words: heritage; anthropology; social memory.
Conclusão
Estas são algumas questões sobre as quais
os antropólogos do patrimônio devem refletir nos Referências
próximos anos. Não são questões de fácil
ABREU, Regina. A fabricação do imortal – memória,
resposta. É preciso ter em mente que, se hoje
história e estratégias de consagração no Brasil. Rio
abre-se um mercado extraordinário para a de Janeiro: Ed. Rocco/Lapa, 1996.
antropologia com as novas demandas do campo
_____. História de uma coleção: Miguel Calmon e o
do patrimônio, não devemos nele nos inserir sem
Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Pau-
crítica e atitude reflexiva. Afinal, o que nota- lista. História e Cultura Material. Jan./dez. 1994, SP,
bilizou a disciplina durante praticamente um USP.
século de atividades foi exatamente um certo _____. Síndrome de museus. Encontros e Estudos
olhar ao mesmo tempo complacente e relati- 2, Funarte, MinC, 1996.
vizador diante das criações humanas. Para- ANDERSON, Benedict. Imagined communities.
fraseando Lévi-Strauss em um texto clássico Norfolk: Thetford Press, 1987.
sobre a diversidade das culturas, eu ainda ARANTES, A. A. Produzindo o passado. São Paulo:
partilharia do ponto de vista de que a diversidade Brasiliense, 1984.
da culturas humanas está diante de nós e atrás CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas.
de nós e uma das exigências que deveríamos O imaginário da República no Brasil. São Paulo:
fazer valer a esse respeito é que o registro da Companhia das Letras, 1990.
contribuição de cada uma seja apenas mais uma CHAGAS, M. Há uma gota de sangue em cada
lembrança da generosidade das outras para esse museu: a ótica museológica de Mário de Andrade.
grande acervo da contribuição humana à Cadernos de Sociomuseologia, n. 13, Lisboa, ULHT,
plasticidade da vida do planeta (Lévi Strauss, 1999.
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Abstract: The number of anthropologists investigating Costa Noroeste. In: ABREU, Regina; CHAGAS,
the field of cultural heritage is growing. These researchers Mário. Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: Ed.
have contributed to accurate analysis about questions of
DPA, 2003
values and their attributes in the social context. It is
supposed that cultural goods as cultural heritage have a CHUVA, Márcia. Os arquitetos do patrimônio.
strong symbolic content, capable to express and/or [Mimeo.]
represent nations, regions, ethnies and social groups. On FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em
the other side, the fact that the field of heritage became a
processo. Trajetória da política federal de preser-
field of intervention brings often different interests and
demands to the reflexive perspective of anthropologists. vação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Minc-
W e can scrutinize current trends and tendencies between Iphan, 1997.
the anthropologists who research, reflect and work with GONÇALVES, José Reginaldo. Autenticidade,
heritage and the anthropologists who see themselves as memória e ideologias nacionais. Estudos Históricos,
active agents of heritage. In the recent years, the tensions n. 2, 1988.
and/or interactions between reflexive activities and
practical activities have won new features in both national _____. O jogo da autenticidade: nação e patrimônio
and international contexts, especially with the implemen- cultural no Brasil. In: Ideólogos do patrimônio
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