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MARÇO /ABRIL /MAIO /JUNHO Nº 1014
Cais José
Estelita em
Recife
março / abril / maio / junho março / abril / maio / junho
Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014 Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014
RESISTÊNCIAS RESISTÊNCIAS
Público Micropolíticas:
A colaboração entre o psicana- Mas há também algo que sempre
lista, ativista e pensador fran- foge, que teima em fugir; nem
cês Guattari e a psicanalista e tudo está dominado. E, nisso,
crítica cultural brasileira Rolnik interessamo-nos pelas alianças
abordou as mobilizações e novas com o menor, com aquilo que
esboço de encontros
alianças de grupos políticos escapa e com o que faz escapar:
heterogêneos no Brasil no ano ao reativo, ao reacionário, às
de 1982. Para isso, fizeram uma capturas restritivamente identitá-
articulação com as experiências rias da norma. Notamos também
políticas do ano de 1968, em seu transformações nas táticas de
em curso
impacto global. O Seminário resistência a essas políticas de
Público Micropolíticas coloca produção e sujeição, na invenção
essas cartografias em constelação, e reivindicação de outros modos
fazendo-as ressoar às experiên- de vida, na inadequação às formas
cias abertas em junho de 2013, estabelecidas, nas atividades
que marcam uma reconfigura- políticas que não buscam tomar o
ção fundamental nas paisagens poder. Seria a chamada micropolí-
políticas do país. Situamo-nos tica, ainda pertinente para pensar
no intempestivo do presente, e outras dimensões para a atividade
Por Acácio Augusto, isso não é apenas uma questão de política? Se há um esgotamento de
Amilcar Packer e tempo histórico, mas, sobretudo, práticas de resistências históricas
de duração, intensidades e afetos. e uma reconfiguração das tecnolo-
Max Jorge Hinderer Cruz gias de governo e controle, como
O período entre 1982 e 2015 continuar pensando em uma outra
constitui um território ou há vida? Ou será que estamos apenas
apenas o desgaste do tempo? frente a uma pausa, a um simples
Quais transformações, mutações e cansaço que antecede uma revigo-
deslocamentos se produziram no rada retomada das violências do
capitalismo e na resistência a ele capitalismo financeiro?
nessas três décadas?
RESISTÊNCIAS RESISTÊNCIAS
Micropolíticas
Não sabemos exatamente o que
é micropolítica, mas sabemos
que não se trata de uma relação
de escala em oposição ao macro.
Não é um objeto ou conteúdo, não
é algo que se possui, que se usa
Recife, Istambul,
São Paulo:
ou se consome. Talvez seja algo
do sempre a fazer, da ordem do
performativo, da incorporação,
particularmente na sua modula-
ção ativa. Por isso, desconfiamos
saber o que ela não é, ou melhor,
sentimos onde ela não está, deixou
lutas em comum
de estar. E, com isso, intuímos
que a micropolítica não é “algo”,
mas talvez seja um “como”, uma
prática; não um movimento, mas
algo que se move, que move. Mas,
também, e para além e aquém
de conclusões e, sobretudo, do
fetiche pelos conceitos, dispomo-
nos vulneráveis e somos afetados
pelos movimentos de transfor-
mação das subjetividades sempre
em curso e, nisso, deixamo-nos Por Ana Lira, Zeyno Pekünlü
levar pelos fluxos que escolhemos.
Como diz Rolnik, “a micropolítica e Augusto Aneas
(em si) não resolve nada!”.
Sociedades
de controle Cultura? Territórios Ocupação da
prefeitura do
Recife, 2012.
Nosso meio foi iniciar pelo ma- Durante a vigília criativa que O espaço amplo da cidade, essa Fotografia: Ana Lira
peamento do próprio, das forças manteve o Parque Augusta aberto forma específica de esquadri-
das chamadas sociedades de no início de 2015, perguntamos, nhamento da vida moderna do
controle, que hoje se encontram
tão instaladas por toda parte,
quanto estão plenamente operan-
junto à Rolnik e Guattari, se
“cultura” não seria um conceito
planejamento, vem se moldando
ao favorecimento da circulação Ana Lira / Direitos Urbanos nasceu da coalizão de diferentes gru-
pos afetados pelas mudanças ocorridas no Recife nas
duas últimas décadas. O primeiro grupo foi formado
A parte histórica – o centro e o Recife antigo – está
sendo disputada por interesses da construção civil.
A primeira grande luta se refere às “torres gêmeas”,
ZP Ainda que tenhamos
Direitos
reacionário. Resposta provisória, capitalista de bens, produtos e ganhado alguns processos e
tes. Câmeras nos registram nos não por isso menos pertinente: pessoas, arregimentadas para o por artistas e cineastas que abordavam os efeitos da que, como as de Istambul, têm uma ordem de demoli- feito as autoridades demolirem
ônibus, nas ruas, em nossas casas; sim. Há um Ministério da Cultura, crescimento irrestrito do lucro especulação imobiliária através de filmes, ilustrações ção. A diferença é que não as removerão, pois muitos alguns prédios, a situação mu-
pelo celular, sabe-se onde estamos,
e, nas mídias sociais, produz-se
o que desejamos. Somos parte do
há uma cultura dos ministérios.
Há um mercado da cultura, uma
privado. E se é preciso lutar pelo
fim da segregação econômica, Urbanos, e fotografia. O segundo foi formado por pessoas afe-
tadas por um projeto de lei que tentava punir bares e
restaurantes que pusessem mesas nas calçadas. O ter-
políticos vivem lá. dou recentemente. Mesmo com
ordem judicial, as construtoras
Recife
cultura de mercado e um mercado social, racial e de gênero da cidade, não cessam as obras. Então, o
controle do fluxo de informações cultural. Todos à venda? Talvez é também fundamental construir ceiro foi um grupo que tentava impedir a demolição de Zeyno Pekunlu Em 2012, o que fazer quando você está certo, a justiça diz que você está certo, no
e secreções, da produção desti- não, e seguimos atentos e interes- outras cidades onde isso valha Escola primária na prédios importantes para a memória de Recife. Grupos município de Istambul proibiu entanto nada muda? Recentemente, em uma pequena zona rural, os
vila Zapatista de
nada exclusivamente para o con- sados mais nas criações coletivas a pena, lugares para onde ir e Oventic, ao Sul do
de diversos outros segmentos também vieram integrar bares de colocarem mesas na fazendeiros destruíram as máquinas de escavação que estavam lá para
sumo como única atividade possí- e na coletivização das criações de onde vir; lugares onde ficar; estado de Chiapas, essa plataforma, mas essas três vias foram as princi- calçada e de venderem álcool nos construir uma mina. Eles afirmam que haviam ganhado na justiça, mas
vel, numa crescente depreciação no México, pais. Direitos Urbanos nasceu quando estes grupos se mercados após as 22h. Isso causou que continuavam escavando naquela região. Então, o que fazer? Parar
do que na representatividade. lugares para onde voltar. Criar em 3 de agosto
do que antes era o trabalho como Existirá uma cultura de resistên- espaços, reivindicar territórios, de 2004. encontraram em uma audiência pública, em 2012. uma grande reação e as pessoas as construções à força? O que acontece quando leis não são mais leis?
atividade temporal, contínua e de cia? Uma resistência à cultura? traçar cartografias para além da começaram a beber nas ruas
Foto: Mr. Theklan.
transformação. Integramos e com- Na constelação das referências casa-trabalho-banco-lojas, e dos (https:https:// cantando saúde Tayyip (o nome do
pletamos os circuitos mundiais do não há qualquer retorno seguro percursos pré-estabelecidos entre www.flickr.com/ então primeiro ministro, agora presidente turco). Entretanto, a proibição O caso Estelita é a segunda parte do problema que teve
photos/theklan/
capital financeirizado com o nosso possível, muito menos ao “sujeito” estes e suas restritivas relações. 5312620093/
de colocar mesas nas calçadas continua até hoje. Acredito que isso pode as torres gêmeas como o capítulo 1. Eles querem con-
corpo e nosso desejo, que entre- como instância individual dotada Interromper alguns fluxos e libe- in/photostream/ ser entendido como uma das ações para minimizar a interação pública nas tinuar com o projeto de gentrificação construindo 12
gamos voluntariamente. Talvez já de deveres, de poder e de saber. O rar outros por demais represados. ruas, uma outra forma de perder o “público”, como o conhecemos. torres de 40 andares em uma área chamada Cais José
estejamos além do controle, pois capitalismo é a cultura do sujeito. Estelita (101,7 mil m2). Essa é uma área estratégica para
outros sistemas estão instalados eles, pois conecta os centros de poder mencionados.
e, por isso, devemos ficar atentos Fluxos Refluxos Entre Recife tem 478 anos e, se não tomarmos cuidado, a
às novas cartografias e produzir cidade celebrará seus 500 anos como uma cidade com- Porém, é uma área muito importante para nós. Os dois
outras. Ficar espertos, menos As ruas se tornaram globalmente Mas as ruas são também o lugar No meio, há sempre um começo e referências pletamente tomada pela especulação imobiliária. sistemas de transporte principais (metrô e ônibus) estão
preocupados com o futuro das palcos para afazeres políticos. do exercício da hegemonia polí- um imprevisível e, algum dia ou nas redondezas. Há pelo menos três comunidades ao
revoluções e mais abertos ao devir Movimento Antiglobalização. tica da violência. Desapropriações, noite, o incontornável fim (sim, Ailton Krenak: https://www.you- Nossa primeira grande perda foi a praia. Há 20 anos, o redor. Uma delas (Brasília Teimosa) está localizada em
revolucionário nas pessoas, às Derrubada de regimes autoritá- reintegrações de posse, execuções uma vida é finita!). Por isso, im- tube.com/watch?v=k7C4G1jVBMs governo do estado construiu o porto de Suape na costa uma área com uma piscina natural na praia, e é uma das
potencialidades de outros modos rios. Reivindicação pela descrimi- sumárias cometidas pelas polícias porta aqui o “entre” onde as coisas sul de Pernambuco, em uma cidade chamada Ipojuca. A mais valorizadas agora. O Estelita também é importante,
de vida. Não cabe temer ou esperar, nalização das drogas e pela libera- à luz do dia e na escuridão da acontecem, território no qual a Vulcões no mundo: http://www. construção bloqueou um importante rio e o local em que ZP O governo de Istambul insiste pois está localizado em uma parte histórica da cidade e é
mas buscar novas armas! ção do cultivo de algumas plantas noite, geralmente o assassinato Política, que submete os meios às volcanodiscovery.com/pt/erup- tubarões costumavam se alimentar. Por consequência, em construir uma terceira ponte o lugar que abriga uma das linhas de trem mais antigas
relegadas ao ilícito. Transporte de jovens negros de baixa renda, finalidades, tem sua centralidade ting_volcanoes.html os peixes migraram para a costa do Recife e desde então no Bósforo e um terceiro aero- do Brasil, além de um grupo de prédios históricos.
público, isto é, gratuito e de qua- mas não só. Violações de direi- deslocada e, pouco a pouco, quem competimos com a Austrália em número de ataques. porto na floresta, ao norte da
lidade. Saúde pública. Educação tos civis, humanos; violações de sabe, desaparece. No caso do preciado, Paul B. Desprivatizar o cidade. Quando a construção da No ano passado, as empresas de construção tenta-
pública. Contra o racismo, contra mulheres e também de homens. seminário, até hoje, esse “entre” nome próprio, 2014. Disponível em: ponte teve início, vimos porcos ram destruir parte dos galpões históricos. Um grupo
o sexismo; pela liberdade de per- Desaparecidos por todos os lados. de quase um ano é uma série de http://www.revistaforum.com.br/ selvagens nadando no Bósforo procurando um novo lar. Esses são al- entrou na área e, por 45 dias, cerca de 100 pessoas
formatividade sexual. Marcha das E, mesmo assim, as ruas também percursos e desvios que vêm se blog/2014/06/beatriz-preciado- guns exemplos de que o desenvolvimento urbano não pode ser discutido ocuparam Estelita – 21 dias dentro e o resto do tempo
vadias. Pela demarcação e defesa vêm servindo para a legitimação fazendo segundo os encontros; desprivatizar-o-nome-proprio- sem teorias ecológicas. Mesmo as cidades têm sua ecologia e a transfor- fora da área, embaixo de um viaduto próximo. Foi um
dos territórios indígenas. Contra pública desses sistemas históricos, o encontro de corpos, o embate desfazer-ficcao-individualista/ mação urbana tem um grande impacto nisso. processo difícil para todos. Naquele momento, um
as manipulações genéticas feitas estatais, totalitários, militarizados, das falas, as qualidades da escuta. segundo grupo surgiu do assentamento e decidiram
em laboratório para garantir o genocidas. A experiência livre e pública de deleuze, Gilles. Post-Scriptum chamar de Movimento Ocupe Estelita.
controle da produção alimentar leituras, ora com mais de trinta sobre as sociedades de con- O porto era uma espécie de “ponta do iceberg”. Há 20
e o cartel de corporações. Pela pessoas, ora com menos de cinco, trole. “Conversações 1972-1990”. anos não éramos capazes de perceber as implicações por Para esclarecer:
reforma agrária. Pelo direito à vem atiçando o pensamento en- RJ: Editora 34, 1992, p. 219-226. trás das políticas públicas praticadas até então. Não era
moradia, nas cidades e no campo. quanto prática de transformação e Disponível em: claro para nós, naquela época, a filosofia da “cidade como 1. Direitos Urbanos é um grupo e uma plataforma no
Pela produção de outras cidades. vontade de convivência. https://drive.google.com/file/ uma empresa”, que Carlos Vainer mencionou no seminá- Facebook com 30.000 pessoas que discutem os ZP Em Istambul há diferentes
Pelo fim da polícia militar. Pelo d/0B94-EYHuPJaY2IyYWE4N- rio O Direito à Cidade, na 31ª Bienal de São Paulo − uma direitos à cidade. Estelita é a discussão principal, bairros engajados na resistência ur-
fim das polícias. Pelo uso público DYtYzkyNi00NTU5LTk0O- empresa que vende a localização como um privilégio. mas estamos também em outras lutas na cidade bana e também há muitas conexões
do espaço como algo em constru- GItYmY2YzA5NjM1Zjg1/view ligadas aos mesmos problemas. entre as lutas de outras cidades.
ção. Pelo fim das fronteiras. Por Não sei se todos vocês tiveram a oportunidade de Recentemente, um fórum urbano
mais parques. Por outras formas O Seminário Público guattari, Félix e rolnik, Suley. assistir ao vídeo Recife, Cidade Roubada, no qual o mensal foi criado e pretende reunir
de vida e modos de existência. Por Micropolíticas é parte das “Micropolítica: cartografias do arquiteto Cristiano Borba menciona que os salá- grande parte destas lutas. No entanto, temos questionado se há solidariedade
estar sem precisar ser. atividades do Programa de Ações desejo”. RJ: Editora Vozes. rios mais altos pagos atualmente em Recife vêm de suficiente entre os movimentos urbanos. Como podemos expandir a rede a
Culturais Autônomas ( P.A.C.A.) 12. ed., 2013. profissionais que trabalham em negócios localizados fim de empoderar outros movimentos? Pensamos especialmente que as lutas
e se reúne todas as terças-feiras perto das frentes d'água. O parque tecnológico Porto dos migrantes, movimentos LGBT e feministas devem ter conexões mais
entre 20h e 22hs na Casa do Povo. Digital, o porto de Suape e o polo médico e jurídico sólidas. Por exemplo, na Turquia as mulheres se sentem desconfortáveis
Informações: https://seminario- são negócios aos quais pessoas geralmente ligadas à em locais públicos e semipúblicos. Sequestros, estupros e assassinatos são
micropoliticas.wordpress.com/ : justiça, política, medicina e economia se associam. muito comuns e nós nunca estamos confortáveis quando sozinhas com um
Email: mcrpltcs@gmail.com motorista. Transporte, urbanismo e feminismo podem ser facilmente ligados.
A situação acima, que agora sabemos ter sido total- Pedir por transporte 24 horas faria com que as mulheres se sentissem mais
mente planejada segundo uma política de especulação seguras à noite, por exemplo. No caso da revolta do Parque Gezi, um dos
imobiliária, resultou em uma grande mudança do slogans de que eu mais gostei veio do movimento LGBT: “não queremos
panorama de Recife na última década. A praia de Boa guetos, queremos a cidade inteira”. Para as pessoas LGBT, há pontos seguros
Viagem é agora conhecida como a “praia da sombra” na cidade, mas, fora dessas zonas, elas se sentem inseguras. Então, enquanto
porque não se pode mais ficar ao sol após as 14h por pensarmos localmente sobre nossas lutas, encontraremos maneiras de ligá
causa das sombras projetadas pelos prédios. -las a outros movimentos.
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RESISTÊNCIAS RESISTÊNCIAS
Müştereklerimiz
é organizado por diferentes grupos, unidos em de pedestrianização da Praça Taksim 3 e as ações para ciando o quão irregulares eram aquelas regras. A mais conservadora e reacionária e são pautados pelo
um coletivo que se utiliza de ações/interven- defender o parque Gezi4 mostram que a luta urbana polícia estava o tempo todo sendo forçada a trabalhar desejo de que as ações públicas operem na prática
ções para se posicionar perante o processo de não é distinta das lutas contra a precarização do em situações difíceis e anunciaram a possibilidade de cotidiana da cidade.
2.
gentrificação.
RESISTÊNCIAS RESISTÊNCIAS
RESISTÊNCIAS RESISTÊNCIAS
AMM Havia um “espírito do AM A série acabou porque o dire- AM Para De 0 às 24 horas, o jornal
clandestinidade
tempo” que levava esses seus tra- tor, o dono do jornal, foi à oficina foi muito mais eficaz do que seria
balhos e obras de outros artistas e me encontrou lá, com vários o próprio MAM. Em 1973, o clima
a acontecerem. A ideia era de operários se ocupando com meu político estava muito tenso e a
uma existência social parasitária, trabalho. Ele não tinha sido avi- direção do Museu tomou a posição
marginal, que nem por isso era sado antes, o filho é que tinha au- de censurar algumas obras que
apartada de um pensamento sobre torizado, que tinha me permitido participariam da minha exposi-
o sistema e o comum. Dentro trabalhar lá, de maneira completa- ção. Eu, inconformado, procurei
desse ambiente, qual o sentido de mente informal. Quando viu, man- deixar o trabalho que seria um
clandestinidade que você emprega dou suspender tudo. Eu estava bode vivo no foyer, fazendo uma
no seu trabalho? fazendo o flan Poema Classificado associação entre bode e body
AM Eu me lembro, pelos anos (1975). Esse foi o último trabalho (corpo) e trazendo a lembrança da
1960, Helio Oiticica, Nelson Motta e o fim da série de Flans. Fiquei performance O corpo é a obra, em
e eu recebemos um livrinho vindo esses anos no ambiente do jornal que me apresentei nu no Museu
de Londres com maneiras de sub- e, em retrospecto, posso dizer durante o Salão de Arte Moderna
verter os sistemas. Era uma coisa que todos esses trabalhos tinham de 1970. Essa ideia também foi ve-
Por Ana Maria Maia* marginal, contra o sistema político seu sentido marcado pelo grande tada e eu achei que o melhor seria
lá na Inglaterra. Eles ensinavam perigo de se estar “dentro do fogo”, publicar os projetos junto a alguns
como fazer uma ficha para usar de não estar fora, de fazer a crítica outros textos, como um de Décio
o telefone público ou burlar o bi- de dentro do sistema empresarial, Pignatari, maravilhoso, sobre as
lhete de ônibus. Essa cartilha reu- político. Mesmo antes de o diretor Clandestinas. Procurei O Jornal
Irônica e posterior, a assinatura do nia tudo o que era contra o sistema descobrir, eu enfrentei censura e negociei para que aceitassem
artista, lado a lado com o crédito e o status quo, táticas para uma lá dentro. Só podia sair do jornal essa proposta e me dessem um
do fundador do jornal, é a revela- guerrilha cotidiana. Isso transfor- mostrando tudo o que eu tinha encarte de seis páginas inteiras,
ção do seu feito. Antonio Manuel mou muita gente, foi muito forte. feito no dia. nada menos que isso. O editor,
infiltrou-se no parque gráfico Quando eu criei as Clandestinas, Washington Novaes, bancou a
do jornal O Dia e, entre outras queria também, de alguma forma, AMM Na exposição De 0 às 24 ideia em retaliação à demissão de
intervenções, produziu uma série reagir ao sistema político, ao sis- horas, você declarou o jornal Reinaldo Jardim daquele jornal,
de dez capas em que, a partir da tema estético, de botar o trabalho como lugar para exposição de três dias antes. Foi minha sorte.
matriz original, inseriu novas fotos nas ruas, fora das instituições arte. Depois de ter sua mostra Chamei a iniciativa de Exposição
e manchetes de teor ora ficcional e oficiais ou chapas brancas. Fazia no Museu de Arte Moderna do de Antonio Manuel: de 0 às 24
absurdo, ora dedicado a repercutir isso “pegando carona” no jornal e, Rio de Janeiro cancelada, levou horas. Era uma mostra minha para
questões da arte dos seus contem- de alguma maneira, deturpando as propostas de trabalhos para estar nas bancas e, dessa maneira,
porâneos. A distribuição de alguns seu conteúdo real. Eu ia pra grá- as páginas de O Jornal. Tendo romper com sistemas oficiais da
exemplares dessa versão do jornal fica do jornal e intervinha sobre a em vista esta experiência, que arte daquele período. O título su-
nas bancas do Rio de Janeiro com- página de capa, abria espaços na prolongamentos ou antagonismos geria a duração de um dia apenas.
pletou o ciclo do trabalho e sugeriu diagramação, atribuía outras man- você identifica entre o museu e a Era uma obra descartável, embora
que, embora tomando uma escala chetes e fotos, às vezes também mídia de massa, ou o circuito da pudesse ser guardada. A mostra
diminuta diante das proporções sobrepunha às chamadas de texto. arte e esfera pública? Que lugares no jornal cumpre a função de dis-
reais da mídia de massa, aquele in- Era como se estivesse criando intermediários você procurou seminar um ruído de informação
tervalo quixotesco entre a arte e o um jornal clandestino dentro do construir para o seu trabalho a de forma relâmpago, com tiragem
mundo poderia ser um lugar perti- próprio jornal O Dia. E, finalmente, partir de então? Onde você acha muito grande, de 60 mil exempla-
nente para o artista. Mimetizar-se eu levava essa outra versão do que o trabalho de arte se torna res. Nesse sentido, assemelha-se a
nas redes de informação a ponto de jornal para as bancas, no mesmo eficaz? ações de guerrilha.
desaparecer ou, no mínimo, perder dia em que o seu original já havia
o controle, talvez pudesse ser uma circulado, criando assim uma AMM Tendo em vista o espaço
estratégia para o seu trabalho. duplicidade, uma falácia que era disputado com outras pautas do
difícil de distinguir da realidade, jornal e até mesmo o seu caráter
O mesmo artista que, em 1970, visto que parte do conteúdo do pontual dentro de tiragens às AM Nos anos 1970, o anonimato AMM Dos anos 1980 para cá, o
após aparecer nu no Salão de Arte jornal era mantido. vezes enormes, como você pensa foi necessário devido à censura. seu trabalho adentrou o terreno
Moderna para a performance O esta escala da atuação do artista Na Bahia, depois de ter um traba- da instalação e também assumiu
Essa entrevista faz parte do Cada um desses casos traz consigo Ana Maria Maia O que represen- AM Primeiro surgiram os Flans,
corpo é a obra, inspirou a máxima AMM Você era, de algum modo, no real? lho meu fotografado dentro de um elementos desconstrutivos. Que
projeto Arte-veículo, uma pesquisa a necessidade de se recuperar evi- tava o jornal nos anos 70? Qual era que começaram em 1967 e foram
de Mário Pedrosa sobre “arte também clandestino na gráfica do AM O artista interfere na reali- Antonio Manuel, aparelho – que eram os aparta- sentidos podem-se empregar para
em processo sobre intervenções dências de um momento histórico o seu valor social? apropriações de matrizes gráficas Frutos do espaço,
como exercício experimental de jornal. Isso amplia o sentido do dade com seu trabalho, com sua mentos nos quais os estudantes essas mudanças?
artísticas na mídia de massa brasi- que lhe atribuiu significados con- Antonio Manuel Hoje em dia o dos jornais sobre as quais fazia 1980. Cortesia do
liberdade”, experimentou também trabalho para o espectro do real, criatividade, com a sua atuação. artista. Fotografia: se juntavam para contestar o AM Eu queria abstrair toda esta
leira. Entre o advento da televisão, textuais e específicos, e também, jornal vive sua decadência, tem intervenções em pintura. Depois,
certa “clandestinidade” para para a atividade artística radical Mário Pedrosa chamava isso de Romulo Fialdini regime –, percebi que tinha que carga de imagens massificadas e
que chega ao Brasil em 1950 – no para isso, reexaminar categorias seu sentido social esvaziado, seu vieram os desenhos sobre páginas
investigar brechas nos discursos diante das relações de trabalho “atividade-criatividade”. Quando voltar para o Rio imediatamente. violentas que nos bombardeiam
mesmo ímpeto de cosmopoliti- que mudaram bastante ao longo conteúdo é carente de aprofunda- de jornal (Sem título, 1967), e logo
hegemônicos. Como esfera pública no sistema capitalista. Como sua viu O corpo é a obra, ele disse que Vim de ônibus e não podia ser todos os dias, queria desaparecer
zação que resultaria na abertura desses cinquenta anos, como o mento; mas nos anos 1970 tinha a reimpressão desse conteúdo
de encontros e confrontos, e entrada no jornal foi negociada e eu estaria fazendo um “exercício reconhecido. Estava com medo com elas ou mesmo anulá-las. No
da Bienal de São Paulo, no ano circuito, o público, o agendamento uma comunicação imediata e sobre papel Fabriano, um suporte
talvez por isso como laboratório quando precisou parar? experimental de liberdade”. Essa, de ser preso, por isso escrevi trabalho Até que a imagem desa-
seguinte –, e a popularização da e o valor social da mídia. Em tem- grande representatividade e uma mais resistente para desenho
político, estético e discursivo, a na verdade, foi a nossa guerri- um texto narrando a situação pareça (2013), um dos que seriam
internet, que dá acesso a uma pos de desmonte dos principais importância político-social muito e pintura. Assim, eu comecei a
imprensa motivou uma série de lha, minha e da minha geração. e botei numa caixa de fósforos apresentados na Bienal de Veneza
discussão sobre “mídia tática” no veículos da imprensa, e de uma grande − era um veículo poderoso. ir ao jornal e participar de sua
intervenções de Antonio Manuel, Logo depois, vi um cartaz que que vim segurando ao longo de daquele ano, monto um pequeno
país, no fim dos anos 1990, são ressignificação ainda inconclusa Hegel dizia que o jornal é a oração dinâmica de impressão. Ia de
desde o final dos anos 1960. Na dizia: “arte é a última esperança”. todo o trajeto. Se me pegassem, laboratório de revelação foto-
inúmeros os casos de ocupação das suas dinâmicas e papéis, acar- matutina do homem. O jornal da- madrugada buscar os Flans, ou
entrevista que segue, o artista re- Eu me perguntei: esperança de eu largaria aquela caixa discre- gráfica em que deixo um líquido
dos espaços de jornais, revistas, retada principalmente pela hori- quela época cumpria essa função então tentar imprimir o jornal em
cupera o percurso de negociações quê? Eu não entendo isso. Arte é tamente, com a intenção de que gotejar sobre algumas fotografias
emissoras de rádio e TV pelos ar- zontalidade de fluxos e polissemia de agendar o leitor logo de manhã outro papel. Essa já era a minha
envolvidas em cada uma dessas uma maneira de luta, de atuação. alguém a descobrisse. Esta caixa apropriadas de jornais. Essa é a
tistas, para fins de deturpação de de filtros que trouxeram a internet sobre um conteúdo político, social, maneira de estar dentro desse
iniciativas e o contexto histórico Não tinha esperança. A arte está de fósforos era quase uma Urna minha forma de dizer que esses
suas linguagens e problematiza- e as mídias sociais, o apanhado estético... Era um veículo com- veículo, de conhecê-lo por dentro.
que lhes impele – e a toda uma viva. Arte é vida, arte é energia. A Quente (1968) − caixas hermetica- relatos não servem, que devem
ção das narrativas que constroem de Arte-veículo se apresenta como pleto, que circulava pela cidade, O resultado de alguns trabalhos
geração de artistas – a assumir utopia é importante, mas às vezes mente fechadas que depositei no ser jogados fora, pelo menos para
para o status quo. tentativa de prospectar relações que tinha um poder de comunica- iniciais contou com uma certa
direcionamentos contraculturais ela nos leva longe demais. A escala Aterro do Flamengo [no evento mim. É o contrário de revelar, é
cabíveis, hoje, entre os artistas e ção com um público amplo, tinha liberdade para deformar essa rea-
e antimercadológicos. de um veículo de massa é enorme. Apocalipopótese] e que precisavam “desrevelação”. Se, nesse traba-
Das colunas de Flávio de Carvalho, os veículos de comunicação públi- um conteúdo, uma manchete, uma lidade, substituindo imagens, anu-
Apostei sim no seu potencial para ser quebradas para se descobrir o lho, o caminho rumo à abstração
no Diário de São Paulo, à reforma cos. Prospectar, por hora organi- diagramação e ruídos gráficos que lando textos, tornando meu ponto
ampliar o público do trabalho de seu conteúdo. Em várias coloquei ganhou teor de apagamento, na
gráfica do Jornal do Brasil, por zando um arquivo, uma memória me interessavam. de vista talvez mais direto através
arte. No entanto, mesmo sabendo recortes de jornais correntes, com intervenção Frutos do Espaço
Amílcar de Castro e Reynaldo e alguns relatos. do meu desenho e do modo como
que talvez não me comunicasse situações políticas dramáticas. (1980), que montei no jardim
Jardim; da arte-classificada da AMM A relação com a mídia é eu podia valorizar ou ocultar
com todos, acho que se eu me Não sei se a desaparição, mas a da Catacumba da Lagoa, no Rio,
Equipe Bruscky Santiago às fundamental para o seu trabalho, alguns textos e imagens. Daí, até
comunicasse com dois, ou com um, impossibilidade ou a dificuldade tornou-se um conteúdo em aberto,
Inserções em Jornais de Cildo tanto em intervenções em que chegar à série Clandestinas (1973)
já estava muito bom. de aparição estão presentes no que respeita a natureza, os ima-
Meireles; da vídeo-dança, de você usa páginas impressas como ou no jornal De 0 às 24 Horas
meu trabalho dessa época por mo- ginários pessoais dos visitantes e
Analívia Cordeiro, ao quadro de en- suporte para interferências em (1973), as coisas foram se apro-
AMM Como podemos pensar táti- tivos contingenciais. Na instalação a memória daquele lugar, que era
trevistas de Glauber Rocha, dentro desenho e em parcerias criativas fundando, também, a ponto de
cas de desaparição a partir do seu Fantasma (1994), que é posterior, uma favela. Inseri no lugar escul-
do Programa Abertura, tão inspi- que adentram os parques gráficos virarem uma interferência direta
trabalho? Vale a pena considerar a abordei a perda de identidade turas feitas em ferro vazado, com
rador para produtoras, como TV dos jornais e pegam carona em no processo editorial do veículo,
desaparição ou a diluição no social involuntária de uma testemunha a forma das colunas diagramadas
Tudo, Olhar Eletrônico e TV Viva; sua linguagem e nos seus meca- com a criação de manchetes, fotos
como categorias para a arte? da chacina de Vigário Geral, que dos jornais. Embora tenha criado
da atuação anárquica de Geraldo nismos de circulação. Quais as e pequenos textos. Isso acontecia
apareceu em uma fotografia no a metáfora de uma estrutura de
Anhaia de Mello, na rádio e na principais etapas e estratégias dentro do próprio jornal, na ofi-
Jornal do Brasil, com o rosto narração e visibilidade, como a
TV, aos semanários de Lenora de dessa pesquisa? cina de impressão ou na redação,
coberto por um pano branco, en- que acontece na grande imprensa,
Barros e Luiz Baravelli; dos fakes, envolvendo os operários.
quanto dava entrevista para toda a presença do trabalho no local era
de Yuri Firmeza, como “artista
a imprensa. Inseri a imagem do transparente e totalmente passível
invasor”, à invasão real da militân-
fantasma rodeado por microfones de interferências do entorno.
cia de coletivos, como Frente 3 de
nesse labirinto feito de pedaços de
Fevereiro e Contrafilé, na cober-
carvão suspensos, nessa cosmogo-
tura esportiva e de vida urbana.
nia em que há poesia, mas também
choque, energia produtiva, mas Ana Maria Maia é curadora e professora de
história da arte. Faz doutorado na ECA-USP
também risco de ser manchado e está desenvolvendo o projeto Arte-veículo
por aquela matéria porosa e preta. com a Bolsa Funarte de Estímulo à Crítica.
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RESISTÊNCIAS RESISTÊNCIAS
1ª Corrida
de carroças
do centro do
Recife*
Por Jonathas Não é surpresa que a cidade não Foi preciso organizar uma corrida Tem carroça que anda no maior É preciso entender que a trans- E é quando a bosta risca o chão, * A 1a Corrida de carroças do centro do Recife
aconteceu em 5 de agosto de 2012. Sob o
é de quem a vive. Não é surpresa para reunir um grupo de 50 pau na cidade com um monte formação política passa por uma a pata risca o chão, o pé grosso
de Andrade que os homens que fazem a cidade, carroceiros fazendo a presença de menino em cima, um prazer consciência do corpo, que a classe sai correndo pelo chão, que a
pretexto de gravar o filme O Levante!, reuniu
as autorizações necessárias para a realização
que comem, que habitam, que deles na cidade ser indiscutivel- danado de sair correndo pela se entende como classe forte cidade assiste estupefata mas feliz da corrida.
andam, que vivem, não são os mente existente. Foi preciso fazer cidade, ouvir o barulho da pata do quando passa por uma catarse porque entende que o sublime vem
Este texto faz parte do filme O Levante! (2014).
mesmos que regem a cidade, que uma corrida pra entender que cavalo bater nos prédios e voltar, coletiva, por uma experiência dela própria e não de torres de
fazem as leis que decidem o futuro ferradura derrapa no asfalto; que ecoando, multiplicando no meio de desejo, de transe que rasgue 40 andares que vêm de qualquer
dessa cidade. Essa é uma cidade cavalo tropeça na curva; que uma dos carros, pois tem um campo a cidade inteira, que festeje a lugar. E que a danada da revolução
que passa por cima do seu passado, roda bate na outra e a carroça vira; danado pra correr no meio do dissidência desse corpo coletivo que ninguém sabe fazer e que o
que tratora suas vocações, que pra ver égua chegando pra correr esquecimento da cidade sobre a através de um rasgo pela cidade. tempo todo a gente se refere passa
esmaga sua tradição, que cria leis grávida; pra ver animal maltra- própria cidade. pelo desejo e a safadeza que essa
que invisibilizam seus habitantes, tado chegar com homem-bicho cidade sabe extrair de dentro si
que estão por toda parte e que maltratado; pra entender que própria e de sua própria sabedoria.
fazem a alma dessa cidade. muita dessa pobreza é liberdade
dentro da própria opressão.
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ENSAIO ENSAIO
Edifício
Recife
Bárbara Wagner
e Benjamin de Burca
SAINT LOUIS LEONTINA RODRIGUES PRIMAVERA COLONIAL MORADA DA FONTE PORTAL DO NASCENTE MARIA GRAÇA E
MARIA JÚLIA
Em Recife, no Nordeste do Brasil, De acordo com a Lei 14.239: Até os anos 1980, a autoria dessas Saint Louis significa ‘sou liberto’. Eu acho que é, como é que se diz, Olhando pra forma dela, assim, em Quando um pintor pinta um Ela era amarela, botaram essa cor
a ideia de cidade como síntese obras – sobretudo esculturas – está Quem fez isso foi um artista único, dois homens, um casal de homens, cima de uma pedra de mármore, quadro, ele bota a alma dele pra pegar a tonalidade do prédio. Ela parece duas letras, o ‘G’ e
das artes toma a forma de uma lei Art. 1o: A área ‘non aedificandi’ de ligada ao prestígio de uma geração que usou a imagem de uma pessoa um homem e uma mulher. Um é eu creio que seja um diamante. ali. Já esta escultura não repre- Na minha opinião é um portal, o ‘J’ de Graça e Júlia. É meio
municipal no início dos anos 1960, todo edifício com área superior a de artistas de tradição modernista. que ele amava muito. Já fiz uma maior, outra menor. Dá pra ver por Mais que isso eu não sei informar. senta nada. Perto daqui tem um meio atrasado, de outro tempo. abstrato, só observando bem pra
fazendo obrigatória a instalação 1.000 m2 que vier a ser construído A partir dos anos 1990, o interesse foto e postei no Facebook: ‘Esta causa da parte de cima, das cabe- Cada prédio tem suas esculturas quadrado de cimento com uma Gosto mais de coisas do tempo saber mesmo. Não sou muito fã de
de obras de arte tridimensionais no Recife deverá conter obra de privado influencia mudanças na arte mostra em si a nossa pró- ças, dos seios dela, dos pescoços, culturais diferentes, em vários mulher dentro, presa, como se de hoje, mais modernas. Prefiro arte não, não faz meu tipo. Gosto
na entrada de grandes edificações. arte de reconhecido valor artístico, lei a fim de acelerar a conclusão de pria face.’ Porque ela observa as da altura. Acho bonita. Ela está estilos, modelos diferentes. Ela quisesse sair daquele aperto. Ela as figuras, mas não como aquela de pesquisar na internet sobre
compatível com o projeto arquite- projetos imobiliários, e construto- pessoas que observam ela. Bonito, feia agora porque precisa de uma dá identidade ao prédio, chama a significa algo. Arte não é feita só ali do outro lado da rua, que é arqueologia, história antiga das
tônico aprovado. ras passam a assumir elas mesmas não? As pessoas tiram foto, abra- pintura. Todo prédio grande tem atenção das pessoas. O nome do pra quem tem condição finan- muito feia - parece uma Tartaruga pirâmides, das sete maravilhas
a execução dessas peças. çam, fazem até coisas que não se que ter uma, porque a lei exige. prédio é Primavera Colonial. Só o ceira, mas pra aquelas pessoas que Ninja. Onde moro tem mais do mundo. Imagine as pirâmides
Art. 2o: A obra de arte não poderá deve pronunciar. É divertido. Pra São obras de arte que eles fazem, arquiteto que fez sabe informar o gostam e têm inteligência. Uma casas, não tem prédios e a turma do Egito… deve dar uma sensação
ser executada com material de Geralmente posicionadas ao lado mim ela é moderna e contemporâ- não sei quem. Até hoje ninguém significado dela. vez eu vi um quadro que tinha só enfeita a rua na época do diferente estar num lugar que tem
fácil perecibilidade. das cabines de segurança nos nea ao mesmo tempo; moderna do me falou nada sobre ela. um monte de negros trabalhando Carnaval e do Natal. história. Bate a curiosidade de
prédios residenciais, essas obras pescoço pra baixo e contemporâ- – CARLOS com enxada. Isso fala muito sobre saber o que tem por baixo da terra.
§ 1o: A obra de arte deverá ser são diariamente observadas e nea do pescoço pra cima. Pode ver – GERALDO o Brasil. Mas uma caixa com um – MAURÍCIO Já isso aqui é muito banal.
original, não se constituindo em muitas vezes conservadas pelos que o nariz e a boca não aparecem. buraco de um lado e de outro?
reprodução ou réplica. porteiros que guardam a entrada – HENRIQUE
desses edifícios. – ALEXANDRE – IRAN
§ 2o: Somente poderão executar
os serviços os artistas plásticos
pernambucanos ou radicados na
Região Metropolitana do Recife.
Ela não explica muito bem o que Isso aí é uma folha. Não acho que Não sei quem fez ou o que é isso. Essa é Isabel, a princesa que Aqui do lado tem um homem cor- Umas cabeças assim, umas saindo
é. Até hoje não entendi o que ela seja uma obra de arte, é muito Talvez seja uma obra de arte. É assinou a lei Áurea pra acabar rendo, todo na resina. Essa daqui por cima das outras, não sei dizer
quer dizer. Mesmo as pessoas simples. Quando a arte é bonita eu bem feita, bem trabalhada, bem com a escravidão no Brasil. Eu tem uma curva que parece a perna o que é. O jardim eu sempre lim-
daqui não dizem o que é. Acho acho bonita, mas essa é horrível. imaginada. Você sabe, existem conheço a história. Você sabia de uma mulher. Acho razoável. pei, mas dela eu nem chego perto.
interessante o modelo dela, parece Não sou do ramo, mas você olha essas esculturas na forma de uma que ela tem dez nomes? Vou te Tem um ‘P’ e ‘E’ escrito ali, pode Acho estranho, nunca tinha visto
uma flor. O cara que cuida dela assim e vê a coisa mais feia do pessoa e às vezes o pessoal exa- dizer, tenho aqui anotados no ser o nome do escultor. Pra estu- nada assim antes. Não entendo
acha ela estranha. Quando ele está mundo. Tanto é que um dia eu gera, inventa poses, essas coisas. meu caderno: Dona Maria Isabel diosos pode ser uma obra de arte, nada disso. Quando não estou aqui,
limpando ela, ele sempre comenta. pintei e só depois soube que nem Eu não gosto. Acho essa muito Cristina Leopoldina Augusta já pra mim é só uma estrutura. Se estou na igreja. Lá, a gente tem
podia ter pintado, era pra deixar mais criativa. Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga fosse lá em casa botava um sapão somente um Deus pra adorar.
– EVANDRO enferrujando mesmo. de Bragança e Bourbon. O ‘Maria’ bem grande no meio do meu
– VALFREDO do começo fui eu quem botei pra jardim. Eu gosto de sapo. Essa é – CLAURINDO
– OLIVEIRA ficar mais classudo. Imagine como uma coisa do passado, né? Passado,
seria hoje sem ela… Ainda tem passado mesmo.
tanta discriminação aos negros
por aqui… – JOÃO
– AMAZONAS
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ENTREVISTA ENTREVISTA
Conversa
com
Odmar Braga* Presença
Marrana no
Sertão
A conversa a seguir aconteceu
na casa do poeta e dramaturgo “A história NV Você poderia falar um pouco
sobre a presença dos judeus
Jerônimo de Albuquerque con-
quistou o Maranhão dos franceses,
NV Eles se autonomeavam
judeus ou seguiam uma tradição “O sertão é a
judaica reprodução de uma
Odmar Braga, no município de sefaraditas2 no sertão do Brasil? mas passou antes pelo sertão, onde ocultamente?
Paulista, em Pernambuco, na qual Como essa cultura permaneceu na ele, meio tupi, não tinha dificul- OB Ocultamente. Sabiam-se
o autor nos contou a história da região? dade de se relacionar. E assim, judeus, mas se diziam judeus
chegada dos judeus marranos1 no
Brasil – a passagem dessa tradição não passa OB A cultura sertaneja é gado. É
cuidar de cabrito. O sertão é um
foram ficando os Albuquerque no
Sertão. Ora, Dona Brites que fica
cristãos-novos.
cultura muito árabe,
de uma onde o judeu que
ao longo dos anos, os conflitos grande rebanho de cabritos. E em Olinda comandando e adminis- NV Pois havia uma perseguição
e resistências, na memória, nos assim são os homens, um rebanho trando a capitania de Pernambuco muito forte?
costumes e na poesia ladina. de cabritos. O sol começa a nascer no lugar de seu marido Duarte OB Sim. Imagine isso séculos
Marranos
em 1509, quando já existia Vila tari a ordem do fim do canibalismo. Sinagoga Kadosh Zur Israel, co-
Velha e Itamaracá. Com a chegada Essa mulher tinha sangue no olho. nhecida como a Primeira Sinagoga
de Duarte Coelho Pereira, casado Eu espero que vocês compreen- das Américas. Como ela entra ME REKODRO
com Ana Brites de Albuquerque, dam que, depois de tudo isso, nessa história? A la presiosa Margalit Matitiahu,
seu cunhado, Gerônimo de manter a memória judaica foi para OB Você acredita que foi kerida poeta ermana de mi Sefarad.
Albuquerque, vem como capitão- mim um grande feito. Porque nós a primeira?
Nossa Voz Você acha necessá- Nós não podemos fugir dos nossos Então, quando se resgata histori- NV Que mudanças seriam essas? mor da capitania de Pernambuco. não deveríamos deixar de existir. ¡Ah!… Sangre, Sangre
rio repensar o termo “cultura padrões. Ou seja, um grupo que camente um judaísmo de cente- OB Eu rezo tradicionalmente e Desembarcam no canal de Santa Tinha tudo para dar errado, mas NV É o que eles contam. de mi sangre de Espanya
judaica”? chega ao Nordeste brasileiro para nas de anos, onde essas pessoas judaicamente. Um dia eu disse: Cruz e colocam um marco que deu certo. OB Não foi. A primeira sinagoga ke Sefarad en mi alma kanta,
Odmar Braga Eu vejo a cultura sobreviver tem de se adequar a foram cerceadas da possibilidade “eu sou a geração do presente, por- está lá até hoje e fundam Igaraçu, aconteceu em Olinda, no Alto da Ke en mis versos palpitan
judaica como um caleidoscópio. essa realidade chamada sertão. de vivê-lo como era oficialmente que eu sou a geração do deserto”, a canoa grande. Ali houve uma A família da minha esposa é Ribeira. Era na casa de uma se- i a mi korasón estremerse.
Não vejo a necessidade de repen- A gente tem de compreender que esperado, passaram a fazê-lo a sua eu não estou na terra Santa, mas batalha ferrenha contra os índios dividida, por exemplo: por parte nhora chamada Ana Roes. E a se-
sar este termo. Hoje, antes de mais não se pode exigir dessas pessoas própria maneira. Foram obri- também não estou no Egito. Olhe, e eles ocuparam o espaço. Dois de mãe, são do sertão do Ceará, gunda foi no Engenho Camaragibe, Me rekodro,
nada, se faz necessário preservar a tradução do judaísmo igual à gados a ter a criatividade de um eu sou aquele que está entre dois anos depois, eles descem de barco do Olho d’ água da bica da cidade de sua propriedade, ainda no Si mi ermana me rekodro
a cultura judaica por todos os de uma outra região, como se o judaísmo próprio, de uma crença mundos, o de meus ancestrais e e ocupam Olinda. Quem era de Tabuleiro do Norte. A famí- século xvi. Isso ocasionou a visita de las konsejas de los avuelos,
meios. Acima de tudo, a educação, judaísmo nunca tivesse mudado. mais crua, mais próxima de Deus. do futuro de meus filhos e netos. Duarte Coelho Pereira, e quem lia Oliveira da Costa, que veio do bispo inquisidor, Bartolomeu Son kinyentos de los anyos i me rekodro
a integração e aceitação do outro Certa vez, eu disse a um rabino: Não aquela ditada pelo judaísmo Como fico eu diante desse con- era Dona Brites Albuquerque? dos Açores, só se casa entre si. Furtado de Mendonça, que man- de los refranes, de las kantikas,
como ele é, independentemente “A história judaica não passa de oficial ou pela vontade rabínica. texto, no qual não posso esquecer Quem era Jerônimo? Eles eram os Por parte de pai, os Bezerra são dou prender muita gente, dentre De las kansiones la más antíka
de qual origem judaica se tenha uma sucessão de naufrágios.” Porque não havia rabino no cargo de onde vim, quem me ensinou, Albuquerque, nobres mouros que de uma cidade chamada Acari, eles, dona Ana Roes. Atualmente, i de el golor de los pasteles.
e como se expressa essa cultura. Uma sucessão de naufrágios que da tradição marrana − quem quem me pôs no colo, numa rede se casaram com mulheres judias. próxima à Caicó, sertão do Seridó, está destruída, mas uma parte
Independentemente das diversas culmina com o pior de todos os manda são as mulheres. As mu- de balanço e me contou a história, O castelo dos Albuquerque existe no Rio Grande do Norte. Esta é a continua em pé, chamada er- Me rekodro,
melodias, temos a harmonia de naufrágios, a Shoah, o Holocausto. lheres são as detentoras de toda e rezava junto comigo, e dizia as até hoje na Espanha. região onde se iniciou a ocupação mida da Feitoria de Fernando de Si mi ermana me rekodro
um único canto. Algo inominável, jamais imagi- a cultura. Do repassar, porque, bênçãos? Era a maneira que ela do Seridó. Os Bezerra têm uma Noronha, que fica no alto do cabo del karinyo de muestros padres,
nado na história da humanidade, afinal de contas, quem ensina essa sabia, como a avó a ensinou. E Dona Brites casa-se com Eduardo genealogia de dezoito gerações. Já de Santo Agostinho. Essa ausência Son kinyentos de los anyos i me rekodro
NV É como pensar que comuni- um crime em série de magnitude cultura a seus filhos devem ser as assim nós conseguimos com as Coelho Pereira. Eles vieram da são milhares. A mãe dela ensi- de memória é muito triste. de la guadra de muestra erensia,
dade judaica, enquanto tal é plural, genocida, onde todos os esforços − avós, as esposas, as tias. pontas das unhas nos sustentar Índia, onde haviam conquistado nou-a a acender a vela do Shabbat, De la tradision de los Hahamim
mas sua cultura é uma só, no final trabalho, inteligência, criatividade Ora, se não fossem as mulheres, durante os séculos. Poderia eu espaço à base da espada e da ou seja, não é necessário um Porém, havia uma outra anterior ke disheron de la fidelidá de haShem
das contas. humana − são empregados para nós não existiríamos. Se elas, dar as costas à tradição de meus pólvora, claro. Ganharam como rabino para que as famílias apren- àquela, próxima ao palácio do go- i del luzero de la Torah.
OB É. Afinal de contas, para se destruição do próprio ser humano. no curso dos séculos, foram as antepassados? presente a posse de uma terra aqui. dam a separar as panelas do leite verno, chamada Maguén Abraham.
rezar certas rezas, como a Amidá, É o anti-humanismo na sua escala responsáveis no nosso mundo pela Conquistam Olinda. Jerônimo e da carne, para acenderem a vela Depois, foi fundada a Kahal Me rekodro,
são necessários dez homens. Mas, mais brutal e mais hedionda. manutenção dessa cultura, por NV Mas isso é pedido pelos de Albuquerque, capitão-mor, do Shabat; isso sempre aconteceu. Kadosh Zur Israel e as pessoas que Si mi ermana, me rekodro
cada homem reza por si só apenas. “Ora, na associação desses nau- que não querer aceitar essa tradi- rabinos? tinha 42 mulheres, entre negras e eram Maguén Abraham foram de la notche de los tiempos,
Ou seja, não importa a origem do frágios”, eu poderia perguntar ao ção que foi repassada pelas nossas OB Os rabinos representam a índias. Porém, ele vivia em pecado, para lá. Todos aqueles que fun- Son kinyentos de los anyos i me rekodro
judeu, ele é judeu. Então, se você rabino: “como pode se esperar que mulheres? chamada “tradição rabínica”, porque tinha um harém. Ele era daram aquela sinagoga nasceram de la lágrima ke kemó,
reunir judeus de diferentes partes erguendo o Titanic do fundo do independentemente da linha de mouro, não era? Segundo a Rainha em Olinda. As pessoas circuncisa- De tinieblas sin la Luz
do mundo, independentemente se mar, ele continue com a orquestra NV Mas as mulheres podem ser orientação, seja ela ortodoxa ou de Portugal, esse homem não ram-se antes mesmo de terem um i de la sangre ke yoró.
um come falafel ou tabule, e o ou- no passadiço do convés, tocando rabinas? não, reformista, masortí, conser- podia mais viver em pecado − ele rabino. Ninguém veio da Holanda;
tro gefilte fish, eu fico com lulinha para alegrar as pessoas que na- OB Essa é a diferença. Para nós, vadora... Aliás, sabe o que quer tinha de arrumar uma esposa e ora, quem fundou tudo aquilo fo- Me rekodro,
frita com cerveja na beira da praia. quele momento estavam lá?”, isso a questão não é ser ou não ser dizer Rabino? Rosh Bnei Israel, ou casar na igreja. Então, chegou ram as próprias pessoas de Olinda. Si mi ermana, me rekodro
você não vai encontrar. Você vai rabino. A questão é saber rezar. seja, Cabeça dos filhos de Israel. uma prima e ele prometeu se Somente após doze anos chega um del sufrimiento de los siglos,
encontrar uma mudança completa Portanto, é manter a cultura e a E isso é uma forma de poder, e o casar com ela, desde que suas duas rabino, Isaac Aboab da Fonseca, Son kinyentos de los anyos i me rekodro
do aspecto de um barco naufra- tradição. No nosso caso – daque- poder religioso é, de certa forma, irmãs mais novas se casassem marrano de origem, nascido em ke fuímos dezraygardos de Espanya,
gado. Você não vai encontrar a les que foram oriundos de um um poder político. com seus dois filhos mais velhos. Castro D’Aire, Portugal, onde fora Ke tenemos la fuerza de muestro espiritu,
orquestra, nem os passageiros e processo de Inquisição – quem Ficou tudo em família. Ele casou batizado de maneira católica, em Ke djudios solamente somos
muito menos a elegância de um manteve toda a tradição judaica Então, ele vai dizer: “olha, a na Igreja da Sé, e uma das primi- pia batismal, sob o nome de Simão i mos yamamos de mozotros.
palácio flutuante. foram as mulheres. maneira como vocês têm de fazer nhas mais novas se casou com o da Fonseca, cuja família posterior-
agora é apenas a nossa maneira, Jerônimo Filho e a outra com seu mente mudou-se para Amsterdã. ¡Ah!… Sangre, Sangre
NV A presença da mulher na ma- não mais como os seus antepas- irmão, ambos filhos de uma índia A história, às vezes, é distorcida. de mi sangre de Espanya
nutenção da tradição é mais forte sados”. É justo? Em nome de Caeté chamada Maria do Espírito ke Sefarad en mi alma kanta,
no judaísmo marrano? apenas uma expressão cultural, de Santo, filha do Cacique Arco- Ke en mis versos palpitan
OB Presença mais forte, não. Ele só um ângulo, você irá esquecer os Verde. O filho mais velho herdou i a mi korason estremerse.
existe por causa das mulheres. As outros ângulos? Você vai acultu- o trono do pai, capitão-mor da 2 Sefarad significa Espanha em hebraico, por
isso, Sefaradi ou Sefaradita é o termo que se
nossas rezas, as nossas bênçãos... rar-se de si mesmo para assimilar capitania de Pernambuco, e seu refere aos judeus da Península Ibérica. Odmar Braga
foram as mulheres que sustenta- um outro modo de ser? É negar-se irmão o título de capitão.
Vaqueiro do sertão fundamental da
ram. De repente, chega um rabino tocando Buzo – liturgia judaica, a si mesmo.
e diz que tem de mudar tudo. instrumento feito cuja origem
Agora, vocês vão mudar a maneira com chifre de boi se perdeu no
utilizado para sertão, apesar de
de agir. É um conflito interior. diversos tipos de continuar fazendo
toques, dentre parte do repertório
eles o Tekiá, toque dos vaqueiros.
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Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014 Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014
ENTREVISTA ERRÂNCIAS
Poesia
ladina e
resistência
“Hoje, a história é versão. NV Você poderia falar um pouco
sobre a sua poesia escrita em
O que é que ocorre? Essa língua de
pertencimento, essa extraterrito-
A poesia escrita em ladino é
uma barricada. É um ponto de
Diário de
Portugal. Muitos foram embora mais de sefaraditas que falavam se pode dizer sefaradi, que é a
para a Turquia e outra parte foi
convertida.
ladino foram direto para as câ-
maras de gás. Quando ali se mata,
Península Ibérica, e não se lem-
brar dessa territorialidade linguís- Capítulo X
se extermina não só parte de um tica, que é uma extraterritoriali-
Não creio que exista essa catego- NV Quando estivemos lá, ha- Turquia, Grécia, Marrocos, povo, mas um idioma... dade? É onde reside a memória.
Chaim
ria histórica de “judeu holandês”; via um grupo muito grande de Tunísia, Argélia... foram parar, Essa é a questão. Pelo menos, eu Em Olinda recomecei o meu traba- O marido dela chegou do trabalho Continuei a ir à casa dos meus Descobri mais tarde que as pes-
afinal, eram todos judeus mar- estudantes de ensino fundamen- acredite, até na Bulgária. Claro Assim, o ladino só se preservou tenho que deixar um legado. lho na rua. Entrei em uma lan- (ele era mascate, klientelstchik) e amigos Kutner todos os dias soas que vieram conversar comigo
ranos de origem hispano-por- tal, e a Tânia Kaufman, diretora que nesses lugares o ladino passa em virtude de poucas pessoas que chonete para tomar um café e vi ficamos conversando até o jantar; depois do trabalho e, um dia, a eram amigos da família da moça
tuguesa. Em Olinda, ao lado da do Arquivo Histórico Judaico de a ter características diferentes. estavam a salvo da sandice nazista. Isso é o credo dos judeus mar- um senhor judeu sentado em uma voltei à pensão só para dormir. senhora Kutner me disse: “De que e principalmente do irmão dela.
igreja Conceição dos Militares, Pernambuco ( onde se encontra a Na Itália também. O que é que E criaram-se elementos para pro- ranos. Sabe quantos no Brasil mesa de canto. Ele estava lendo De manhã recomecei a trabalhar adianta você viajar tanto se não Eles queriam saber como eu era
Novodvorski
está enterrado Jacob Zakuto, filho Sinagoga Kahal Kadosh Zur Israel), acontece? Uma saudade que se pagação, divulgação e preservação conhecem esse credo? Alguns um jornal em iídiche, me aproxi- na rua e todo fim de tarde ia até está havendo nenhum resultado e se valia a pena tanto empenho.
do médico marrano português nos falou sobre a importância de nega a morrer. É um sentimento daquele conhecimento que pouco gatos pingados. Porque isso não mei e me apresentei. Seu nome era a casa deles, jogávamos cartas e positivo? Você até ficou doente Eu nem desconfiava, até que um
Manoel Álvares de Távora, o qual se passar essa história. de pertencimento, a língua. ainda restava. No mundo hoje é divulgado. Isso é uma reza que Shimen Massur. Perguntei se no conversávamos. Eu pedia conse- nessas tentativas de se reunir com dia a senhora Kutner adoeceu e o
adotou o nome de seu bisavô, o OB A versão dela. Se a sinagoga foi não existem mais que duzentas eu hoje tive de colocar, porque, de Recife existia alguma pensão para lhos, falávamos da minha situação os seus irmãos e irmãs, e continua médico proibiu que ela recebesse
renomado astrônomo e historia- fundada por judeus marranos no NV Sim. A língua não tem terri- mil pessoas que conhecem, leem, modo geral, eu morro, meus filhos pessoas judias. Ele me deu o ende- e de como a enfermidade tinha sozinho… você é um rapaz tão visitas, assim fiquei sabendo que
dor Abraão Zacuto. O filho mais século xvii, nascidos em Olinda, tório. É a forma como você pensa, escrevem e falam, como se diz se esquecem e isso desaparece. reço de uma cujo proprietário se atrapalhado meus planos de via- jeitoso; será que não chegou a hora não poderia entrar na casa. Todas
novo, Isaac Zacuto, conseguiu por que não devolver aquele pa- entende e se apresenta ao outro. Meldar, que significa: ler, escrever Pelo menos, é um registro. chamava Weber. Fui até lá e con- gem para encontrar meus irmãos. de parar as suas viagens e pensar as tardes eu ia até a porta da
fugir, e os jesuítas enforcaram trimônio a quem é de direito? Por OB Então, em virtude disso, e avlar em ladino. segui um quarto e as refeições que em casar e ter uma família? Em casa para perguntar se ela estava
Jacob Zacuto. Não acha isso muito alguns dizem “não, o termo é
Ensaio visual eram servidas no local. Depois Todos os dias eu ia até a Praça vez de ficar aqui conosco todas melhor e depois ia para a pensão.
que não há ali judeus marranos
irônico, ter um judeu enterrado contando a sua história? Por que judeu espanhol.” Outro diz “ah, Guga Szabzon de resolver a hospedagem, fui Maciel Pinheiro onde me encon- as noites, não quer conhecer uma Quando ela melhorou, perguntou
ao lado de uma igreja católica em a versão contada tem de ser uma Espanyolít”. Espanyolít e o termo Odmar Braga (Recife, 1952) é poeta e procurar a comunidade judaica − trava com alguns judeus e eles moça que nossos amigos rece- por que eu não tinha aparecido
dramaturgo de Pernambuco. Membro
cuja frente ele fora enforcado? versão “oficial”? Por quê? A quem judeu espanhol são a mesma coisa, efetivo da União Brasileira de Escritores
eu ainda guardava o endereço da perceberam que eu estava doente. beram? Uma irmã que chegou mais, e o marido dela contou que
Dois judeus foram enforcados em interessam as ideias? Devemos é ladino. Só que o ladino se pres- UBE/Pernambuco e da Academia de Letras família Kutner. Então um deles, que se chamava da Europa? Ela é muito linda e todos os dias eu procurava saber
frente a essa igreja, pelos jesuítas. sempre perguntar a quem inte- tava àquilo que era escrito pelos e Artes da cidade de Paulista/PE. É coorde- Yankel Lederman, disse que me a família muito fina, o que você da sua saúde. Ela estranhou, pois
nador e membro da Casa do Poeta Brasileiro
Isso é citado? Não. Por que não ci- ressam as ideias. Acredito que rabinos. Miguel de Cervantes, por em Recife/PE. Dentre seus livros publicados,
Dirigi-me até a casa deles e bati levaria ao hospital logo cedo para acha da minha ideia?” A senhora não sabia da gravidade da sua
tam que em Itamaracá havia uma foi Bertold Brecht que disse que, exemplo, era marrano e escrevia destacamos Viduy (2014) e Rekodro de à porta, a senhora Kutner abriu que o médico me receitasse algo. Kutner continuou: “Nós gostamos enfermidade e pediu ao marido
Chaim Novodvorski nasceu em
sinagoga? Onde ficou a sinagoga quando grita o dominador, rever- em judeu espanhol. mis rekodros (2010), ambos poemários em e perguntou o que eu desejava. No dia seguinte fui com ele ao muito do seu comportamento, permissão para que eu fosse
djudeo-espanyol. Knishin, pequena cidade perto
de Itamaracá? Porque é do mesmo bera também a voz do dominado. Respondi que eu já estivera ali hospital e o médico me receitou gentil e decente, e seria do nosso visitá-la porque se tratava de uma
de Bialistok, na Polônia, em
tempo daquela. Por que não dizem Agora nós temos duas Espanhas: há algum tempo, que meu nome quinino. Eu comprei o remédio, agrado que você conhecesse essa pessoa muito solitária. No dia
1903. Deixou sua terra natal num
que em Nossa Senhora das Neves, NV Sim, por isso é tão importante uma cujo idioma está preservado, era Chaim e que naquela ocasião paguei cinco mil réis, comecei moça, quem sabe vocês acabam seguinte, quando cheguei à porta,
contexto de dificuldades financei-
atual João Pessoa, na parte antiga, realizar o trabalho de mostrar é do século xv-xvi e a que ficou estava viajando de navio para a tomar e logo senti melhoras. se casando e estabelecendo a sua me deixaram entrar. A senhora
ras e riscos sociais que afetavam
havia também uma sinagoga? estas outras versões. territorialmente conhecida como Belém no Pará a fim de encontrar Quando estava terminando o re- vida aqui”. Então eu respondi: Kutner então perguntou sobre
grande parte da população judaica
OB Hoje, a história é versão. “Espanha”, que é uma colcha de trabalho em um navio petroleiro e médio, repeti a receita e a malária “Como eu posso pensar em casar, minha saúde, e eu disse que estava
na região. Aportou na Argentina
NV Porque eles estão respon- Quem detém as versões, e quem retalhos, assim como a cultura chegar à América para encontrar sumiu; graças a Deus estava recu- se tenho apenas um único terno, curado. Quando ficou curada, ela
em 1922, dada a impossibilidade
dendo às instituições oficiais, tem o poder de mídia, de tanto judaica. O catalão não se sente meus irmãos. Imediatamente ela perando a minha saúde outra vez. não tenho nem outro para trocar? voltou a conversar sobre casa-
de obter visto para os Estados
talvez... repeti-las, torna-se algo próximo madrilhenho, nem aragonês, não se lembrou de mim, me mandou Perdi todos os meus pertences e mento, preocupada com o meu
Unidos. Em suas memórias, narra
OB Você leu 1984, de George à verdade, embora não seja. Essa é é? Nem sevilhano. entrar e começou a perguntar por preciso trabalhar bastante para futuro. Eu respondi: “Qual é a
situações da vida de imigrante,
Orwell? Quem controla o presente a questão. que eu ainda não tinha viajado comprar aos poucos todas estas moça que irá se interessar? Não
percorrendo o Brasil até o norte,
controla o passado. Quem controla para a América. Contei a ela tudo coisas, porque nada possuo”. possuo nada e o meu trabalho não
em busca de reunir-se aos irmãos
o passado controla o futuro. o que tinha acontecido. Ela achou Continuei: “Consegui adquirir é adequado, imagine, alguém que
na “América”. Após contrair ma-
que eu estava muito magro e pá- novamente uma boa saúde e tenho anda com uma caixa da sorte pela
lária em Belém, voltou ao Recife
lido por causa da malária que con- esperança de ter mais força, ainda rua, tirando bilhetes como um
para se tratar, e lá se estabele-
traí na viagem. Tinha se passado estou muito magro e pálido; como katrinstcik (homem do realejo)!”.
ceu. Formou família, tornou-se
um ano desde que estivera com vou ter coragem de me apresentar A senhora Kutner disse: “Não tem
comerciante, foi ator, tesoureiro
eles − já estávamos no ano de 1929. diante da moça e de sua família”? a menor importância, você é uma
de escola, enfim, membro ativo e
Terminei com estas palavras e não pessoa honesta e de respeito, não
dedicado da comunidade judaica
ouvi mais seus comentários sobre tem nada de patife ou vagabundo,
local. Mudou-se com a família
o assunto “casamento”. Continuei eu o considero como um filho
para São Paulo em 1954.
a visitar a casa deles todas as mais velho”.
noites e, nesse meio tempo, apa-
O trecho que se segue é parte do
reciam visitas e eles me apresen-
diário manuscrito em iídiche, nos
tavam e assim eu tinha chance
anos 1960, que está sendo prepa-
de conhecer mais e mais pessoas.
rado pela família para publicação
Conversavam comigo e eu contava
integral.
o que tinha passado por causa da
vontade de me juntar aos meus
Lilian Starobinas
irmãos na América, e como não
estava conseguindo chegar até lá
e realizar esse sonho, tinha até
contraído malária no Amazonas.
março / abril / maio / junho março / abril / maio / junho
Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014 Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014
ERRÂNCIAS ERRÂNCIAS
Eu me senti tão querido, e Acordando, saí para trabalhar Eu adquiria as mercadorias e entre- Eu e minha esposa, cujo nome é
continuei a ir à casa deles todas como todos os dias. No fim da gava em domicílio e minha esposa Marta (Machlia nos documen-
as noites, até que encontrei um tarde caminhei até a casa dos atendia os clientes. Ainda não tos), continuamos com o nosso
jovem sentado à mesa e conversa- meus amigos Kutner, e a senhora podíamos ter um vendedor e pagar trabalho pesado, economizávamos
mos bastante. A senhora Kutner me perguntou se eu tinha ido um salário. Mais adiante, quando até em ingressos para cinema,
olhava e sorria e eu não entendia na noite anterior visitar a moça. sentimos que já não era possível co- pois nesta despesa teríamos que
a razão do seu contentamento. Contei o que tinha acontecido e brir esta função, contratamos uma gastar também com as passagens
Na noite seguinte estávamos ela riu muito, depois me pergun- pessoa para nos ajudar. Ele então do bonde. Achávamos melhor
tomando chá e, junto a nós, estava tou se eu havia gostado da moça, começou a fazer as entregas e eu só gastar em um quilo de carne para
uma sobrinha deles que per- e eu disse que sim, mas que era ajudava quando era necessário. o almoço no dia seguinte, para
guntou: “Tia, você já disse para ainda muito cedo, precisávamos nós e nossa filha chamada Bethi
o Chaim?”A tia respondeu: “Eu nos conhecer melhor. Todas as Ainda assim, não perdi a minha comermos, e economizar algum
tenho tempo para isso, que pressa noites durante alguns meses eu fui vontade de viajar para encontrar dinheiro. Nessa época começou
é essa? Antes vamos tomar o chá à casa da moça, conversávamos, e meus irmãos na América. Entendo a funcionar uma cooperativa
com pão de ló, então terei força contei toda a minha história, de que quem ler este diário poderá se judaica, que no início concedia
e coragem para falar com ele”. como eu tinha viajado, e do meu perguntar por que os meus irmãos empréstimos de duzentos mil
Comecei a entender aos poucos sonho de encontrar meus irmãos não podiam me ajudar, enquanto réis para pagar vinte mil réis a
que o assunto era comigo, e ela na América. Depois de todo esse eu sofria e passava por tudo aquilo cada semana. Fiz o empréstimo e
explicou que o jovem que tinha tempo, confessei que gostava mantendo a ideia fixa de encon- investi em carvão para vender na
conversado comigo na noite muito dela e queria assumir o trá-los. Acontece que eles não me minha loja, pensei até em vender
anterior era o irmão da moça que namoro e marcar o noivado. Ela conheciam, pois eu só tinha 8 anos e entregar para os judeus em
ela queria me apresentar e que já então me disse que não devíamos quando partiram para a América. domicílio, mas minha esposa não
havia combinado uma visita na ter pressa, quem sabe eu já era Achava que eles poderiam pensar achou boa a ideia, disse que eu
casa da família dela na terça-feira comprometido, podia ser que que eu era muito jovem e não ficaria com o apelido de “judeu do
ao anoitecer. O senhor e a senhora eu já tivesse esposa e filhos em saberia ganhar o meu sustento, carvão”, e sempre me chamariam
Kutner iriam comigo, e foi assim algum lugar, pois havia viajado que estava em países da América assim, então desisti. Graças a Deus
que aconteceu. tanto... Então respondi: “Vamos do Sul, e talvez não tivesse von- consegui pagar os compromissos
nos conhecer melhor, poderei dar tade de trabalhar, que seria um assumidos.
Na terça-feira combinada, na a você alguns endereços dos meus preguiçoso ou um vagabundo. Eu
hora de sairmos, apareceu uma parentes na Europa, da cidade não era nem uma coisa nem outra, Nesse tempo, apareceu um dos
visita para a senhora Kutner e ela onde eu nasci e cresci e também simplesmente não tinha sorte, meus fregueses não judeus que
disse ao marido que não podia de amigos de Buenos Aires.” tudo que eu tentava fazer nunca comprava madeira e outras
ir conosco, mas que ele deveria Assim, o irmão dela escreveu para dava certo, e eu não queria que mercadorias para fazer consertos
me acompanhar – e eu ainda fiz os endereços que eu dei e verificou eles soubessem disso. na casa dele, e me disse: “Chaim,
uma brincadeira: “Shimen, você as informações sobre a minha compre a minha loja de artigos
parece um casamenteiro, só falta pessoa. O tempo foi passando e eu Quando conheci minha esposa e alimentícios, uma mercearia, fica
colocar no bolso do paletó um continuei com o meu trabalho e o me casei, ela me ajudou a traba- bem perto daqui, na outra rua.”
lenço vermelho”– e assim saímos namoro, aguardando as respostas lhar e acabou minha má sorte, Fiquei parado, sem ação, pen-
os dois para fazer a visita. Fomos das cartas enviadas. Não demorou pois juntos superamos e consegui- sando: “como posso comprar a
muito bem recebidos, fui apre- muito até chegarem respostas mos, com o nosso esforço, traba- loja dele se não tenho dinheiro?”
sentado à jovem num ambiente
agradável e conversamos algumas
horas; todos participaram da
positivas. Ficamos noivos no dia 14
de setembro de 1929. Meu futuro
cunhado me contou mais tarde
Capítulo Xi lho e economia, chegar a melhores
resultados, subir na vida e nos
tornar independentes.
E disse isso a ele, que me respon-
deu: “Venderei para você sem
dinheiro, pode me pagar com
conversa: a moça, a cunhada, o que as respostas foram muito boas mercadorias que estou precisando
irmão, eu e o Shimen. Na hora da e que responderam: “Se vocês O irmão da minha namorada Ele me mostrou onde eu poderia Escrevi então aos meus irmãos e vamos descontando aos poucos.” Trabalhamos assim durante seis Empreguei um rapaz para nos
despedida, o irmão dela falou: “Se perguntam sobre o rapaz que trabalhava com clientela, quer comprar as mercadorias e logo que estávamos muito bem com Respondi que ia pensar no assunto meses até que apareceu um senhor ajudar. Quando organizei tudo, fui
for agradável para você, pode vir conviveu conosco podem estar dizer, vendia a prestação em comecei a trabalhar, apesar de o nosso trabalho, graças ao bom e lhe daria uma resposta, entrei interessado em comprar a loja. até o centro da cidade (a nossa loja
nos visitar sempre.” Eu agradeci sossegados e realizar o casamento. domicílio (klientelstchik), e me a localização da loja não ser boa Deus. Quando passamos por tem- em casa e contei à minha esposa. Respondi que podíamos conversar, ficava no bairro da Torre, perto do
o convite e na noite seguinte fui Ele é uma pessoa muito boa, levou para ver como se trabalhava para comércio e dificultar o ne- pos difíceis, as pessoas falavam Conversamos sobre a possibili- que era uma possibilidade e quem bairro da Madalena), visitei todas
sozinho visitá-los novamente. Bati honesta e educada.” com isso, a fim de que eu também gócio. O lucro das minhas vendas mal, inventavam tudo o que que- dade de fazer o negócio, e juntos sabe faríamos negócio. Cheguei à as famílias judias e me ofereci para
à porta bem de leve, com cuidado, trabalhasse nesse ramo. Ele me não cobria as despesas, e fui então riam, mas nós sabíamos que isso resolvemos adquirir a mercearia. conclusão de que era conveniente entregar as compras em domicílio.
e ninguém ouviu, porque todos levou a algumas firmas, garantiu o procurar outro local de maior não era verdade, só que era im- Estudamos um jeito de adminis- vender-lhe a mercearia porque Comecei a vender-lhes tudo que
estavam na sala, e não abriram meu crédito, comprou as mercado- movimento. Encontrei uma loja possível calar as bocas maldosas, trar as duas lojas e como iríamos teria um bom lucro. Resolvi vender, uma dona de casa precisava: açúcar,
a porta. Esperei um pouco e fui rias e eu comecei a trabalhar por fechada, perguntei à vizinha sobre ficávamos quietos e Deus nos aju- trabalhar. Chegamos à seguinte fizemos o balanço e ele me pagou. café, azeite, batatas, cebolas, sabão
embora para minha pensão, tirei o conta própria. Fiz bons negócios, o dono. Ela me deu o endereço e dou. As bocas más emudeceram conclusão: ela continuaria na Com o lucro, investi na minha e outros artigos. Levava comigo
paletó, sentei na cama, e os meus consegui muitos clientes, aluguei acabei alugando a casa, porque e mudaram de opinião, dizendo loja antiga e eu na nova, só que primeira loja, aumentei o espaço, uma lista de tudo o que havia na
pensamentos eram tristes. Pensei uma sala e casei no dia 1º de ja- além da loja também havia uma que eu era um bom comerciante, contrataria um funcionário para fiz um telhado num espaço aberto loja e outra dos nomes e endereços
comigo: “Chaim onde você está se neiro de 1930. Eu e minha esposa moradia e foi ótimo porque eu esforçado e trabalhador, e até que eu pudesse ficar nas duas lojas atrás, passei as mercadorias que para quem eu vendia, anotava o
metendo? Que pouca sorte! Onde começamos uma vida nova. O não precisaria pagar dois aluguéis. vinham me pedir conselhos sobre e fazer as compras para ambas; estavam na frente para lá, fiz que as senhoras encomendavam
já se viu?” De repente tive uma dinheiro que entrava dos clientes Entramos em um acordo e o dono negócios e oportunidades. Assim, dessa maneira, eu poderia ajudar a algumas prateleiras, coloquei tudo e a quantidade de cada produto.
ideia: quem sabe as pessoas não era entregue à minha esposa que do imóvel ainda reduziu o preço vocês ficaram sabendo por que minha esposa quando ela preci- o que havia trazido da mercearia Quando chegava em casa à noite,
ouviram? Coloquei de novo o pa- guardava até o dia do pagamento do aluguel. meus irmãos não me ajudaram sasse. Compramos a mercearia e e recomecei a trabalhar junto com minha esposa me ajudava a separar
letó, o chapéu e voltei até lá; desta da mercadoria, porém, aconteceu quando eu mais precisava, não por o trabalho ficou ainda mais difícil minha esposa. os produtos conforme os pedidos;
vez bati mais forte à porta, e ela a Revolução de Outubro de 1930 Mudei com a minha família, pois culpa deles, mas porque eu queria e duro; porém, estávamos muito de manhã cedo eu colocava as
se abriu. Entrei, me sentei na sala e tive uma reviravolta nos meus já tínhamos uma filha de dois anos. provar que era capaz de me virar satisfeitos e achávamos que valia a caixas de mantimentos na carroça
com a moça, e conversamos sobre negócios, perdi muito dinheiro − Abri as duas portas que davam sozinho na vida. pena para o nosso futuro. e o meu empregado fazia a entrega
vários assuntos durante algumas isso me desanimou de trabalhar para a rua e recomecei a minha aos fregueses.
horas, depois me despedi e fui vendendo à prestação. Continuei atividade de comerciante. Junto
para a pensão dormir, sonhar... mais um tempo, até o ano de 1932, com minha esposa vendíamos bas- O esquema deu certo: um dia eu
e resolvi mudar para alguma coisa tante, a nova localização era exce- ia coletar as encomendas e no
mais estável. lente e o dinheiro que entrava era outro meu funcionário entregava,
suficiente para cobrir as despesas no dia seguinte eu ia receber o
Durante este tempo, havia um ra- e cumprir com os compromissos. dinheiro e já recebia novos pedi-
paz que morava na casa de uma tia dos. Trabalhávamos dia e noite,
da minha esposa e que pretendia Embora a loja fosse boa, não ficávamos muito cansados, mas
abrir uma loja de artigos em geral. sobrava dinheiro para comprar satisfeitos, sabíamos que com o
Ele havia alugado um local porque novas mercadorias e ampliar a tempo teríamos ótimos resultados
o cunhado dele ia ajudá-lo, porém, loja; os fregueses solicitavam e iríamos longe, e assim trabalha-
este se arrependeu e não cumpriu outros artigos, cimento, tijolos, cal mos até o ano de 1938.
o prometido. e diversas tintas, tudo referente a
construção e pintura. Aos poucos Conseguimos comprar a casa com
A tia da minha esposa, sabendo consegui colocar as mercadorias a loja e ficamos livres do aluguel
que eu estava procurando algo as- que eles pediam e comprei tam- no fim daquele ano. Nessa mesma
sim, prometeu falar comigo sobre bém um cavalo com uma carroça época, conheci uma pessoa que
o assunto; então fui conversar com para fazer a entrega das compras. trabalhava numa loja de auto-
esse rapaz e fiquei com a loja. móveis usados, contei-lhe que
gostaria de ter uma loja desse tipo,
ofereci 25% de participação nos
lucros e investimento para mon-
tagem da loja e assim seríamos
sócios. Ele aceitou e começamos a
trabalhar juntos.
março / abril / maio / junho março / abril / maio / junho
Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014 Ano LXVIII Nossa Voz nº 1014
Perguntas para
dial: o ____________________ é um Patrimônio Mundial
instituído pela unesco.
Jacó Guinsburg
Válido até 09/07
Casa do Povo Neste ano, o Nossa Voz foi con- Assim, faz-se necessário pensar A cidade também é construída Projeto editorial Benjamin Seroussi e
Mariana Lorenzi
templado pelo 11º Programa Rede novas estratégias para retomar os pelos afetos e pela memória, seja Editora Isabella Rjeille
Nacional Funarte Artes Visuais, discursos e as direções da cidade coletiva ou pessoal. A publicação
20 de Maratona de filmes o que possibilitou a continuidade onde se vive. Estes são alguns de parte do diário do imigrante
Correspondentes Cristiana
Tejo (Recife) e Armando
junho “Frente à Euforia” do projeto iniciado em 2014, com dos tópicos abordados por Ana judeu polonês Chaim Novodvorski, Queiroz (Belém)
Projeto gráfico Estúdio Margem
o relançamento do jornal no seu Lira, Zeyno Pekünlü e Augusto que narra sua vinda à “América” Gráfica Performance
A programação de filmes que inte- formato atual e a ampliação de Aneas, membros ativos de grupos em busca de seus irmãos, nos anos Revisão Gilda Morassutti
Tiragem 3.000
gra a exposição “Frente à Euforia”, seus recursos de pesquisa, colabo- de resistência urbana que, para 1920, desenha um outro mapa do
busca, através de filmes de ficção, radores e público. Cada uma das essa edição, conversaram a partir centro da cidade de Recife – o Colaboradores
documentários e videoarte, traçar três edições que serão publicadas de suas experiências com Direitos mesmo que foi percorrido pelos Acácio Augusto, Amilcar Packer, Ana Lira,
Ana Maria Maia, Antonio Manuel, Augusto
uma reflexão crítica acerca das ao longo de 2015 contará com um Urbanos (Recife), Müs˛tereklerimiz carroceiros de Jonathas e é amea- Aneas, Barbara Wagner e Benjamin de
atuais situações sociais e políticas correspondente em Recife, Belém (Istambul) e Organismo Parque çado pela especulação imobiliária. Burca, Chaim Novodvorski, Cristiana Tejo,
vividas no Brasil e na Colômbia. e Porto Alegre, respectivamente, Augusta (São Paulo). A história de Chaim é muito seme- Guga Szabon, Jacó Guinsburg, Jonathas de
Andrade, Max Jorge Hinderer Cruz, Odmar
Serão exibidos os filmes Oiga vea!, resgatando um intercâmbio que o lhante à de muitos imigrantes que Braga, Zeyno Pekünlü.
de Carlos Mayolo e Luis Ospina, jornal mantinha com estas cidades, Poderíamos pensar na clandesti- vieram ao Brasil naquela época.
Trilogia Nefandus, de Carlos quando funcionou de 1947 até o nidade também como uma forma O trabalho como “vendedor a Comitê editorial Alexandre Lindenberg,
Ana Druwe, Benjamin Seroussi, Bong Kooh,
Motta, Verdade 12.528, de Paula seu fechamento pela censura logo de resistência, seja na circulação prestações”, por exemplo, era uma Celso Curi, Chico Daviña, Jairo Degenszajn,
Sachetta e Peu Robes, entre outros. após o Golpe Militar, em 1964. As transversal de trabalhos de arte prática comum entre estrangeiros Kuk Jae Shin, Lilian Starobinas, Marcos
pautas têm como horizonte o con- em tempos de censura promovi- recém-chegados, pois se tornou a Ajzenberg, Mariana Lorenzi, Michelle
Gonçalves, Mila Zacharias, Nina Knutson,
A partir das 17hrs. texto sócio-político das cidades dos pela ditadura militar, narrada única maneira de trabalhar sem Valeria Piccoli.
onde o jornal circula, sua história por Antonio Manuel, em entre- precisar compreender a língua
e questões atuais. As edições de vista a Ana Maria Maia, seja nas nacional, usando a mímica. Os Instituições parceiras Casa de Onze
Janelas (Belém), Espaço Fonte (Recife),
Oficina Cultural 2015, realizadas em parceria com maneiras como os judeus marra- encadeamentos de eventos que Oficina Cultural Oswald de Andrade,
Oswald de Andrade espaços e colaboradores diferen- nos mantiveram sua cultura em constroem a história pessoal de Pinacoteca do Estado de São Paulo.
tes, buscam construir um solo tempos de inquisição, contadas Chaim foram relidos nas ilustra-
Agradecimentos Ana Dupas, Anita Freitas,
comum entre variados contextos, por Odmar Braga. A clandestini- ções da artista Guga Szabzon, cuja
11 de maio Meus sentimentos descentralizando as narrativas e dade se faz valer como estratégia, avó, também imigrante judia e po-
Cecilia Starobinas, Charles Esche, Cris
Lacerda, Estudio Campo, Fernando Peres,
a 25 Artista: Daniel Lie
justapondo os discursos. interrompendo o fluxo de um sis- lonesa, nunca aprendeu português Gabriel Mascaro, Galeria Luisa Strina, Galit
Eilat, Guilherme Dable, Lilian Starobinas,
tema, criando rachaduras e frestas. e sempre se comunicou com seus
de julho Cristiana Tejo é a interlocutora netos através de gestos. A cama
Luiza Proença, Nuria Enguita Mayo, Nurit
Sharett, Oren Sagiv, Pablo Lafuente, Priscila
“Meus sentimentos” é uma insta-
convidada para esta edição de nº A presença de um carroceiro em de gato, retratada nas ilustrações, Gonzaga, Raquel Rolnik, Silvan Kälin, Tânia
lação pensada para a área externa Kaufman e Traplev
1.014, elaborada a partir de ques- meio a uma cidade que se ergue passa, então, de uma forma sim-
da Oficina Cultural Oswald de
tões tidas como relevantes para ao céu em edifícios de 40 andares ples, organizada a partir de um Nossa Voz é uma publicação da Casa do Povo.
Andrade. A obra, composta por
o atual − e complexo − momento surge também como um “rasgo” emaranhado de linhas nas mãos O jornal existiu próximo à instituição, de
frutas suspensas sobre o centro 1947 a 1964, quando foi fechado pela ditadura
político brasileiro, com foco em na imagem da cidade-empreen- de uma criança, a um complexo
de um círculo composto por 12 co- militar devido ao seu posicionamento
duas cidades: São Paulo e Recife. dimento. Assim, a 1ª Corrida de desenho nos dedos da avó. político. Em 2014, foi relançado pela Casa do
roas de flores, tem como principal
Trata-se de colocar em perspec- Carroças do Centro de Recife, pro- Povo, tendo seus eixos editoriais repensados
reflexão o tempo da vida. As flores a partir do contexto contemporâneo, em
tiva diferentes abordagens sobre posta e organizada por Jonathas Assim, essa edição do Nossa Voz
(em nossa sociedade associa- diálogo com as suas premissas históricas
temas familiares às duas cidades: de Andrade, em 2012, reuniu um foi construída a partir de uma judaicas progressistas. O comitê editorial
das a momentos de nascimento,
especulação imobiliária, crise grupo de 50 carroceiros para escuta sensível do contexto local, se reúne regularmente para discutir a
celebração e morte) e as frutas (a cidade, a memória e as práticas artísticas em
financeira, hídrica e administra- marcar a presença massiva desse partindo do Bom Retiro até o Cais
decorrência das flores) serão aqui consonância com a situação política atual.
tiva, multiplicidade das histórias grupo, atestando sua vívida exis- José Estelita e o Recife Antigo e Para saber mais sobre o Nossa Voz e a Casa
expostas ao efeito do tempo, pelo
em jogo, clandestinidade como tência em uma cidade que tenta voltando a São Paulo, sobrepondo do Povo: www.casadopovo.org.br, facebook.
período de quase três meses. com/casadopovoxxi.
estratégia, memória e o lugar da apagá-la de seu cenário. histórias, criando diálogos, e
arte nisso tudo. refazendo, em um espaço gráfico e A publicação é quadrimestral e tem
25 de maio a 4 de julho
A série fotográfica Edifício Recife bidimensional, um lugar de encon- distribuição gratuita nas instituições
parceiras e em algumas bancas do bairro do
Nossa Voz é um jornal quadri- faz um contraponto entre os pro- tro, debate e memória. Bom Retiro em São Paulo.
Chamando ela mestral, que renova suas sessões cessos de urbanização predatória
e seus autores a cada edição e que da cidade e a ideia de uma “arte Isabella Rjeille jornalnossavoz.wordpress.com
Para ver as edições antigas
Artistas: Sheila Ribeiro, Tiago transita por vários assuntos – das pública” feita para figurar na maio de 2015 (1947-1964) acesse
Lima e João Meirelles artes visuais ao urbanismo, de entrada de condomínios de classe
situações de resistência a novas média. Nesse trabalho, Bárbara www.memoria.bn.br
Através de editoriais de moda, formas de ativismo. São Paulo e Wagner e Benjamin de Burca
para o que poderia vir a ser a Recife vivem momentos muito registraram esculturas que acom-
Moda e os corpos possíveis de hoje, particulares, de semelhanças e panham um empreendimento
a instalação apresenta imagens bruscas diferenças – ambas dia- imobiliário, em cumprimento à
de multiplicidade de corpos re- riamente afetadas por gestões que Lei 14.239, que obriga cada edifí-
criando as cidades de São Paulo e têm como baliza os interesses do cio com área superior a 1.000 m2 a
Salvador, em seu presente-futuro: capital. Ao mesmo tempo em que manter uma escultura de “re-
cruzado, criativo, esperançoso. é feito um movimento em favor do conhecidos artistas plásticos
apagamento da memória coletiva, pernambucanos”. As fotografias
“Chamando ela” perpassa o grafite da diminuição de espaços “públi- possuem títulos não menos pecu-
dentro da cadeia alimentar do cos”, do menosprezo às questões liares (Triunfo Colonial, Primavera
novo business, a arquitetura bruta- ligadas ao meio ambiente, bem Colonial, Princesa Isabel etc.), sele-
lista, a cultura nordestina trendy, a como o isolamento de diferentes cionando da história do Brasil mo-
presença indígena contemporânea. grupos sociais em guetos cada vez mentos simbólicos que sugerem
mais afastados, ondas de desa- um imaginário da classe que ali
provação e revolta se levantam e iria viver. As imagens são acom-
Pinacoteca grupos se organizam na tentativa panhadas por breves leituras dos
de transformar o quadro imposto porteiros do prédio, que convivem
pelos poderes público e privado. com elas diariamente, e que são
11 de abril Sean Scully 1974-2015 responsáveis por sua conservação.
a 28 Primeira grande retrospectiva do
Esta série faz um comentário à
tentativa do Estado e do mercado
de junho artista irlandês no Brasil, com 46
imobiliário de estimular o setor
trabalhos produzidos entre 1974
“cultural” para validar suas ações.
e 2014. A pintura de Sean Scully
é abstrata, composta por formas
geométricas precisas, com linhas
mais demarcadas e claras. A expo-
sição traz um amplo recorte que
permite observar as variações do
seu processo criativo, incluindo
Apoio cultural:
aquarelas e pasteis menos conhe-
cidas do grande público.
13 de Mulheres artistas: as
junho a pioneiras (1880-1930) Apoio:
07 de
A exposição visa mostrar a
setembro inserção da mulher no sistema
Produção:
artístico brasileiro, enfatizando
os processos de formação a que
tiveram acesso e sua afirmação
como artistas profissionais. Correalização:
Contrariando os discursos de
época, que procuravam restringi-
las ao ambiente doméstico,
ao reduzi-las à condição de
“naturalmente amadoras”, diversas Realização:
pintoras e escultoras realizaram
obras de importância histórica.