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Vinícius Carvalho da Silva

Teologia
e
Ciência

2014
Fundação Mokiti Okada 1
Vinícius Carvalho da Silva

Teologia e Ciência

1ª Edição
São Paulo
Fundação Mokiti Okada
2014

2
FACULDADE MESSIÂNICA

DIRETOR : Rogério Hetmanek


COORDENAÇÃO ACADÊMICA: Andréa Gomes Santiago Tomita
COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA: Carlos Gaspari

CONSELHO EDITORIAL

Andréa Gomes Santiago Tomita, Faculdade Messiânica


Deborah Vogelsanger Guimarães, Faculdade Messiânica
Francisco Benjamin de Souza Netto, Universidade Estadual de Campinas
Geraldo José de Paiva, Universidade de São Paulo
José Renato de Araújo Sousa, Universidade Federal do Piauí
Paulo Roberto Pedroso Rocha, Faculdade Messiânica
Rita Laura Avelino Cavalcante, Universidade Federal de São João del-Rei
Márcio Gimenes de Paula, Universidade de Brasília

EDIÇÃO E PROJETO GRÁFICO

EDIÇÃO: Fernanda Kerry dos Santos Bulhões


PROJETO GRÁFICO: Flávio Tonnetti e criação FMO
Revisão: Rogerio Lucas de Carvalho

NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

COORDENAÇÃO DE NÚCLEO: Deborah Vogelsanger Guimarães


DESENHO INSTRUCIONAL: Ana Carolina Bazzo
Célio Braga
DESENVOLVEDORES: Fabiano da Silva Fernandes
Flávio Azevedo Marques
Carlos Gaspari
Rodrigo Cardoso

____________________________________________________________

FICHA CATALOGRÁFICA

SILVA, Vinícius Carvalho da. Teologia e Ciência. São Paulo: Fundação Mokiti Okada,
2014. 108pp.

ISBN 978-85-8355-045-7

__________________________________________________

3
SUMÁRIO

Aula 1. Teologia e sua relação com a ciência


Aula 2. Como ciência e religião se relacionam?
Aula 3. Fundamentação da teologia natural
Aula 4. Cosmologia e teologia da criação
Aula 5. O que é ciência e qual sua relação com a teologia
Aula 6. Teologia e ciência moderna: a busca
pelo sagrado na filosofia natural.
Aula 7. Teologia e física moderna
Aula 8. Filosofia da ciência e a presença de
valores religiosos na prática científica
Aula 9. Teologia e ciência do futuro

4
APRESENTAÇÃO

Prezado (a)aluno (a), você tem em mãos um material que busca dialogar com o
que você dispõe à sua frente e dentro de si mesmo(a): um universo complexo,
rico, misterioso e belo! Como Einstein disse, a experiência do mistério e da
beleza é a mais elevada que um ser humano pode ter. Este mundo magnífico é
objeto de estudo, admiração, contemplação e intervenção tanto da ciência
quanto da teologia. A ciência busca compreender a realidade, entender a
natureza e seus fenômenos, explicar ou representar as regularidades que
mantêm o todo ordenado. A teologia, ao buscar compreender o mundo como
expressão de Deus, visa a entendê-lo em seus fundamentos, naquilo que é
essencial. Ciência e Teologia não somente podem tratar do mesmo objeto,
como dialogar entre si. Qual será a natureza desse diálogo? Será tal diálogo
fixado por questões fundamentais inalteráveis ou evoluirá à medida que os
processos históricos se desdobram? O que a ciência tem a dizer acerca das
questões metafísicas fundamentais, como a origem do mundo e da vida, e
como as respostas que oferece podem se articular com aquelas da Teologia?
Quais as relações históricas, epistêmicas e sociais entre ciência e religião?
Como conciliar a epistemologia da crença teísta e a epistemologia do
conhecimento científico? Neste material, buscamos problematizar e
contextualizar criticamente tais questões, possibilitando, talvez, que estas e
tantas outras perguntas possam receber algum tratamento. Nossa intenção é
introduzi-lo (a) no universo da interface ciência-teologia, fomentando sua
reflexão e produção nesta área.

Nesta apostila, você encontrará as seguintes Aulas:


Aula 1. Teologia e sua relação com a ciência
Aula 2. Como ciência e religião se relacionam?
Aula 3. Fundamentação da teologia natural
Aula 4. Cosmologia e teologia da criação
Aula 5. O que é ciência e qual sua relação com a teologia
Aula 6. Teologia e ciência moderna: a busca pelo sagrado na filosofia natural
Aula 7. Teologia e física moderna

5
Aula 8. Filosofia da ciência e a presença de valores religiosos na prática
científica
Aula 9. Teologia e ciência do futuro

Estas nove Aulas e as atividades do curso se complementam, contribuindo


para que você conheça este campo de pesquisa fascinante, que é a relação
entre ciência, teologia e religião. Aos estudiosos da teologia messiânica, é
fundamental entender as relações entre ciência e teologia, compreender as
origens do empreendimento científico e vislumbrar a ciência do futuro, até para
que seja possível engendrar aquelas questões teológicas fundamentais para o
futuro da ciência.

Seja bem-vindo (a) ao curso Teologia e Ciência e bons estudos!

Meu nome é Vinícius Carvalho da Silva, sou doutorando em Filosofia da


Ciência e Teoria do Conhecimento pelo PPGFIL-UERJ, e Mestre em Filosofia
da Ciência pela mesma Instituição. Fui bolsista CAPES, CNPq e UERJ. Sou
graduado em Filosofia pela UERJ e colaborador da Faculdade Messiânica, de
São Paulo, lecionando e pesquisando em projetos ligados à pós-graduação,
graduação e extensão. Sou membro do Hands-on-CERN, projeto de educação
em física de partículas promovido pelo European Organization for Nuclear
Research (CERN) no Departamento de Física Nuclear e Altas Energias da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DFNAE-UERJ), e do ECTS, grupo
de pesquisa em História da Ciência e Epistemologia, com foco na interface
Ciência-Tecnologia-Sociedade, que se reúne no Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas e na UERJ. Sou pesquisador em Filosofia da Física, com foco nos
problemas filosóficos e lógicos da mecânica quântica e da relatividade, e das
relações entre ciência e religião, bem como pesquisador da teologia em geral,
e particularmente da teologia messiânica.

6
AULA 1- TEOLOGIA E SUA RELAÇÃO COM A CIÊNCIA

A investigação teológica se fundamenta em um pressuposto irredutível: a


existência objetiva de Deus como realidade fundamental e causal do mundo.
Deus é! A natureza de Deus, seu poder de criação, suas propriedades e
atributos, e o modo como interage com a coisa criada são objetos da Teologia1.
Nesse sentido, portanto, como afirma Libânio, a Teologia se ocupa de
problemas universais, sendo ela mesma universal, uma vez que não somente
as questões que levanta como também as respostas que oferece buscam a
compreensão do todo, e não das partes:

A teologia, porém, mantém viva a pergunta pelo todo do ser humano, do


mundo, da história. Existe para responder às perguntas da origem, do
destino e sentido último da vida para além da morte em nome de uma
revelação de Deus2.

Teologia é um termo grego, sendo a junção de θεóς, theos3,“divino,


divindade” e λóγος, logos, “palavra”, “discurso racional”, “o verbo”. Sua
ocorrência é, portanto, muito anterior à fé cristã e aos estudos filosóficos dos
doutores da Igreja que buscavam constituir um saber acerca de Deus. De
acordo com Christoph Böttigheimer, a teologia pode ser entendida tanto como
a palavra sobre Deus quanto como a palavra de Deus. Nesse último sentido, a
teologia era, na Antiguidade grega, a proclamação do divino por meio da

1
Jaime Florez I.,em A Teologia como Logos hermenêuticos do Theos: Aproximação desde suas
regras epistemológicas, sustenta que não há consenso por parte da comunidade científica
acerca da definição de teologia. Para o autor, tentar definir teologia já é um fazer teológico. Em
linhas gerais, todavia, concorda-se que a teologia como narrativa do divino teve início entre os
gregos antigos, e entre filósofos como Platão e Aristóteles tornou-se uma atividade de
investigação crítica e reflexão filosófica. FLOREZ I., Jaime. A Teologia como Logos
hermenêuticos do Theos: Aproximação desde suas regras epistemológicas.Theol.
Xave., Bogotá, v.58, n.165, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.org.co>. Acesso
em: 25 jun. 2014.
2
LIBÂNIO, João Batista. O lugar da Teologia na sociedade e na universidade do século XXI. In:
NEUTZLING, Inácio (Org.). A Teologia na universidade contemporânea. São Leopoldo: Ed.
daUnisinos, 2004. p.25.
3
De acordo com Valcicléia Pereira da Costa, em O Daimon de Sócrates: conselho divino ou
reflexão?, “A manifestação do divino na literatura grega é expressa basicamente pelos termos:
theoí e daímones. Apesar dos dois termos denominarem o divino, eles são distintos, pois
enquanto o theós pode manifestar-se enquanto divindade individual, o daímon é uma
manifestação genérica do divino, não sendo registrado, na cultura grega, nenhum culto
específico a ele”. COSTA, Valcicléia Pereira da.O Daimon de Sócrates: conselho divino ou
reflexão? Cadernos de Atas da ANPOF, n. 1, p. 101, 2001.

7
narrativa mítica e da arte religiosa. Desse modo, os teólogos eram os oráculos,
os pregadores dos cultos e os poetas e homens de letras, como Homero e
Hesíodo. Homero, p.ex., na Odisseia e na Ilíada, canta a vida de deuses e
semideuses, proclamando as minúcias da relação entre o humano e o
sagrado4. De acordo com Pierre Hadot, podemos destacar, na Antiguidade, a
existência de uma física teológica. A ligação íntima entre physiologia,o
“discurso sobre a natureza”,e theologia,o “discurso sobre o divino”, ou “sobre
os deuses”, está presente nas narrativas poéticas antigas, pois estas
buscavam contar uma genealogia dos deuses, explicando os fenômenos
naturais como expressões do divino5.
Como logos sobre Deus, tentativa de explicação racional, sistemática e
científica do divino, Böttigheimer defende que a teologia teve sua origem não
entre oráculos e poetas, mas entre os filósofos do século IVa.C. Os filósofos
pré-socráticos almejavam compreender racionalmente a realidade última, o
princípio organizador do mundo. Assim, eles empreenderam uma “nova
teologia”, de acordo com a qual Deus não é mais o objeto da fé, da crença
mítica, mas da investigação racional. Ele já não é um ser antropomórfico, pleno
de afetos, paixões, interagindo com o mundo de modo arbitrário e passional,
mas o princípio ordenador que fundamenta a realidade e que pode ser
entendido pela razão
Podemos inferir que os pré-socráticos, em alguma medida, fizeram uma
teologia. Todavia, não de modo explícito e intencional. O primeiro filósofo a
valer-se do termo como investigação crítica filosófica sobre Deus foi Platão
(República, Il, 379a)6. Platão propõe que o conhecimento do divino é fruto da
atividade intelectual, e não da fé mítica, tampouco da narrativa poética, e
sustenta que o eidos de Bem é a realidade última (República, 517-c)7:

Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a


custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é

4
BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental: A racionalidade da questão de
Deus e da revelação. Tradução Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2014.p. 18.
5
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de natureza. São Paulo:
Loyola, 2006.
6
REALE, G. História da Filosofia Antiga. Tradução Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo
Perine. São Paulo: Loyola,1995. v. 5, p. 252.
7
Para uma análise mais minuciosa de tal questão, ver também: República, 506a-e, 508a-e,
509c, 518c, 532c.

8
para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível,
foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é
ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para
se ser sensato na vida particular e pública8.

O uso do conceito de teologia como teoria de Deus ou estudo filosófico,


crítico, do divino, foi amplamente utilizado por Aristóteles. Para Böttigheimer, a
teologia de Aristóteles é a parte de sua filosofia que “trata do ente em seu ser;
ela indaga as origens do ser como ente e é a primeira filosofia”9, que,
posteriormente, seria chamada de metafísica. A teologia em Aristóteles,
portanto, seria uma reflexão filosófica da questão do divino enquanto realidade
última, fundamental, “aquela ciência que investiga o ser como tal e no todo”10.
Os textos aristotélicos acerca do Ser enquanto tal, de suas origens e
propriedades, constituiria a teologia de Aristóteles. Entretanto, conhecemos tais
textos como componentes de sua “metafísica”, nome que, todavia, não foi dado
pelo próprio Aristóteles11, conforme Russel12: “A teologia de Aristóteles é
interessante e se acha estreitamente ligada ao resto de sua metafísica;
‘teologia’, com efeito, é um dos nomes com que nos referimos à metafísica”. No
mesmo texto, Russel completa que “o livro que conhecemos por esse nome
não foi assim chamado por ele”13.
Em sua História da Filosofia Ocidental,Russel nos lembra de que, na
metafísica de Aristóteles, há três espécies de substâncias: (I) as sensíveis e
perecíveis, (II) as sensíveis e imperecíveis, e (III) aquelas que não são nem
sensíveis e nem perecíveis. Na primeira classe, entre as coisas que podem ser
percebidas pelos sentidos e corrompidas pela ação do tempo, temos vegetais,
animais, minerais terrestres etc. Na segunda classe, encontram-se entes que
não passam por nenhuma mudança qualitativa14 e que podem ser percebidos

8
PLATÃO. A República. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.p. 319.
9
BÖTTIGHEIMER, Cristhoph. Op. cit. p. 21.
10
Idem. p. 22.
11
Uma das hipóteses mais aceitas é que o termo “metafísica” tenha sido cunhado por
Andrônico de Rodes. Este, ao catalogar a obra aristotélica, resolveu chamar de
metàtàphysiká(do grego, µετα, metà, que significa “além de”; e Φυσις, physis, “natureza/física”)
as obras posteriores àquelas catalogadas como sendo tratados de física.
12
Bertrand Russel (1872-1970), filósofo britânico, Nobel de literatura de 1950.
13
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Tradução Breno Silveira. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1969. p. 194.
14
Mas são passiveis de movimento; ou seja, podem se deslocar pelo espaço.

9
pelos sentidos: os corpos celestes. A terceira classe, todavia, é composta por
entes imperecíveis e eternos, seres que são, para todo o sempre, tal e qual
Deus e a alma racional que anima o homem15. Desse modo, a teologia nasce e
se desenvolve como filosofia do divino, ou discurso crítico, filosófico, acerca de
Deus, até que, com o advento do cristianismo, é paulatinamente adotada por
este, e, aos poucos, torna-se uma ciência autônoma em relação à filosofia.

TEOLOGIA COMO CIÊNCIA

A definição aristotélica

Podemos responder afirmativamente à questão “É a teologia uma ciência?” a


partir do pensamento aristotélico. Aristóteles buscou, em sua filosofia, destacar
que não podemos falar de uma ciência, mas de ciências. Tal pluralismo ocorre
não somente porque existem diversas ciências, mas porque existem grupos de
ciências, cada qual, contendo ciências particulares:

Se tomarmos o termo ‘ciência’ numa acepção ampla, afirma Aristóteles,


é possível distinguir três tipos de ciências: as produtivas, as práticas e
as teóricas. As ciências produtivas incluem a engenharia e a arquitetura,
e disciplinas como a retórica e a dramaturgia, cujos produtos são menos
concretos. As ciências práticas são aquelas que guiam os
comportamentos, destacando-se entre elas a política e a ética. As
ciências teóricas são aquelas que não possuem um objetivo produtivo
nem prático, mas que procuram a verdade pela verdade16.

Desse modo, temos três grupos de ciências: (I) ciências produtivas,(II)


ciências práticas e (III) ciências teóricas17. Podemos considerar que as ciências

15
RUSSEL, Bertrand. Op. cit. p. 194.
16
KENNY, Anthony. História Concisa da Filosofia Ocidental. Tradução Desidério Murcho,
Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral. Temas e Debates,
1999. Disponível em: <http://criticanarede.com/log_fundacao.html>. Acesso em: 3 jul. 2014.
17
Em Segundos Analíticos, 71a 1, no Órganon, Aristóteles sustenta que existem várias
ciências. Em 71b 20, sustenta que o raciocínio científico é aquele que, na posse do mesmo,
“sabemos”; ou seja, a ciência nos leva ao saber. Ainda acerca do conhecimento científico,
Aristóteles discorre em Ética a Nicômaco, Livro VI, 3-8, 1140-b. Tal passagem pode ser
consultada em ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção
Os Pensadores).

10
teóricas são as mais elevadas, porque se ocupam fundamentalmente da
verdade, não possuindo nenhum objetivo prático ou utilitário. Se a natureza da
ciência teórica, portanto, é a compreensão da verdade, quais serão seus
objetos? Ou seja, quais ciências pertencerão a tal grupo? De acordo com
Anthony Kenny:

[...] a ciência teórica é tripartida. Aristóteles nomeia as suas três


divisões: ‘física, matemática, teologia’; mas nesta classificação só a
matemática é aquilo que parece ser. O termo ‘física’ designa a filosofia
natural ou o estudo da natureza (physis); inclui, além das disciplinas que
hoje integraríamos no campo da física, a química, a biologia e a
psicologia humana e animal. A ‘teologia’ é, para Aristóteles, o estudo de
entidades superiores e acima do ser humano, ou seja, os céus
estrelados, bem como todas as divindades que poderão habitá-los18.

Assim, Aristóteles afirma que física, matemática e teologia, portanto, não


somente são ciências, como são as mais elevadas dentre as ciências. Kenny
enfatiza que a teologia trata dos entes superiores e das divindades de um
modo geral. Todavia, julgamos que é necessário enfatizar que, a nosso ver, a
teologia de Aristóteles trata do divino enquanto tal, de um deus único, primeiro,
causa do mundo, que, como enfatiza Russel, é um ser vivo, “pensamento puro
pensando o pensamento puro”19, eterno e sumamente bom. Dessa maneira, o
fundamento do ser enquanto ser é Deus, primeiro motor, motor imóvel, o ser
que imprime movimento a todas as coisas: “O princípio, isto é, o primeiro entre
os entes, é não-suscetível de movimento, em si mesmo e por concomitância,
promove o movimento primeiro e eterno, que é único”20.
Concluímos, portanto, que, tendo Aristóteles como referência, não somente
a teologia é ciência, como é a ciência que trata do fundamento último de toda
realidade.

18
KENNY, Anthony. Op. cit.
19
RUSSEL, Bertrand. Op. cit. p. 194.
20
ARISTÓTELES. Metafísica.Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 15, n. 1, p. 201-221,
jan./jun. 2005. 1073a 23.

11
Outra perspectiva de teologia como ciência

É a teologia uma ciência? Ora, não podemos responder a tal questão sem
antes demarcarmos bem o que entendemos por teologia e ciência. Por
teologia, para a simplificação de nossos propósitos, entendemos o “estudo
crítico, sistemático e rigoroso do divino”, a “investigação acerca de Deus”. Com
isso, não esperamos alcançar uma definição satisfatória de “teologia”, que
exclua tantas outras definições possíveis, mas apenas estabelecer um ponto
de partida para nossa análise.
E ciência? O que será? Antes de tudo, é preciso enfatizar que negamos a
possibilidade de uma única resposta, completa e definitiva. Situando tal
questão numa perspectiva pluralista, entenderemos que muitas respostas são
possíveis. Algumas contraditórias, umas complementares, “estas”
aparentemente mais razoáveis que “aquelas”.
O filósofo Karl Popper sustentou haver ao menos três grandes modos de se
conceber a natureza científica: (I) ciência como busca pela compreensão da
essência do mundo e, portanto, como “descrição verdadeira do mundo”; (II)
ciência como instrumento de representação do mundo; e (III) ciência como
produção de conjecturas genuínas sobre o mundo21.
A nosso ver, em (I), a ciência se fundamenta em dois pressupostos
metafísicos: (1) o mundo físico é uma realidade objetiva. O que é
ontologicamente fundamental “é o que é”, independente de ser conhecido,
percebido ou manejado, e (2) a razão humana pode compreender, explicar e
descrever essa realidade tal como ela é. Em (II), a ciência não se compromete
em descrever a verdadeira estrutura e o real funcionamento do mundo. Uma
teoria científica é uma ferramenta, um instrumento com o qual elaboramos uma
imagem do mundo. Essa imagem é fecunda quando concorda com os fatos da
experiência e nos permite fazer previsões de eventos físicos e desenvolver
técnicas e tecnologias eficientes. Em (III), a ciência se desenvolve como se
fosse uma descrição verdadeira do mundo. Sabe, todavia, que tudo o que pode

21
POPPER, Karl. Três concepções acerca do entendimento humano. Tradução Pablo Rubén
Mariconda e Paulo de Almeida. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).p.
127-151.

12
fazer é elaborar conjecturas audazes, “suposições” sobre a realidade, que
nunca saberemos, com absoluta certeza, se são verdadeiras ou não.
O físico, filósofo e historiador da ciência, Tomas S. Kuhn, em seu clássico A
Estrutura das Revoluções Científicas, parece indicar que estas duas tendências
estão sempre presentes na ciência: (I) tentar compreender e explicar o mundo
tal como é e (II) elaborar uma “imagem” do mundo a partir da qual podemos
entender os fatos observados. De acordo com Kuhn, sem (I), ninguém se pode
dizer um cientista22. O físico-filósofo Max Planck tratou de tal problema. O que
é uma representação científica do mundo? Uma construção livre do espírito?
Ou uma representação fiel, ou melhor, uma descrição autêntica de uma
realidade que existe independente de nós? Como realista, Planck defendeu
que o objetivo de toda pesquisa científica é a “construção de um sistema
descritivo do Universo”. Tal descrição deve ser estável, “independente das
mutações que afetam as gerações e os povos”. A ciência, portanto, não pode
ser uma coleção de múltiplas concepções particulares acerca do universo, mas
a explicação da natureza do próprio universo, embora uma apreensão última
não seja possível.
Poderíamos citar muitas concepções de ciência contrárias à posição de
Planck. O próprio Planck defende que sua proposta é radicalmente oposta ao
positivismo de Ernest Mach, de acordo com o qual não podemos falar de uma
“realidade em si”, mas somente de nossas sensações. As ciências, portanto, se
limitam em elaborar um sistema de proposições que descrevem logicamente
nossas sensações. Outro físico-filósofo, o francês Pierre Duhem, sustentou, em
A Teoria Física: seu objeto e sua estrutura, que a ciência não fornece uma

22
De acordo com Kuhn, a ciência se divide em “ciência ordinária” e “ciência extraordinária”. A
ciência ordinária é aquela produzida no “interior” de um determinado paradigma – de uma
cosmovisão científica. De caráter conservador, a ciência ordinária busca adequar os fatos
observados, por meio de teorias, ao paradigma estabelecido. Pode ser que, para tanto, seja
necessário fazer com que a natureza seja adequada ao paradigma, e não o contrário. Por
vezes, surgem fatos anômalos, que instauram crises nos paradigmas, promovendo a
necessidade de sua revisão. Nesses momentos, inicia-se a fase de ciência extraordinária, com
profundas revisões filosóficas e epistemológicas dos paradigmas, dos pressupostos
metafísicos dos mesmos e dos fundamentos da ciência em questão, culminando em
revoluções científicas. Para saber mais: KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas.
Tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2001.

13
explicação da verdadeira realidade do mundo, mas concebe uma imagem
econômica e classificatória deste23.
Seria possível, mas contraproducente, permanecer destacando
indefinidamente múltiplas concepções de ciência oferecidas nas mais diversas
épocas da história do pensamento. Contudo, voltemos à nossa questão central:
“É a Teologia uma Ciência?” Para responder a tal questão, assumimos como
pressuposto que a teologia é o “estudo crítico, sistemático e rigoroso do divino”
ou, ainda, a “investigação acerca de Deus”. Em relação à ciência, para
avançarmos, deveremos ter a mesma atitude. Para os nossos propósitos,
entendemos por ciência um “sistema metódico de investigação e explicação da
realidade ordenada, que existe independente de nós”. Dessa forma, podemos
responder afirmativamente à questão posta inicialmente, considerando que a
teologia é uma ciência na medida em que busca compreender e explicar, de
modo sistemático, metódico e rigoroso, o fundamento último da realidade, que
é o objeto da ciência. A coerência de tal atitude depende que assumamos
aquele pressuposto irredutível com o qual inauguramos nossos estudos: Deus
é!
O conhecimento da existência de Deus, portanto, não seria o resultado da
teologia, mas seu fundamento. Por isso, não chegamos à existência de Deus
por dedução, indução, tampouco por abdução,24 mas por assunção. Entretanto,

23
DUHEM, Pierre. A Teoria Física: Seu objeto e sua estrutura. Tradução Rogério Soares da
Costa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014. p. 65.
24
A dedução é uma operação formal de natureza exata, na qual a conclusão é dada de modo
necessário a partir do cálculo das premissas em questão. Por exemplo: se Todo S é P e R é S,
então podemos deduzir que R é P. A indução é o procedimento lógico a partir do qual, da
observação das regularidades constantes em fatos particulares se formula uma lei ou princípio
de caráter universal. Popper (1980, p. 3), ao criticar o “método” indutivo, lembra-nos de que
geralmente concebe-se a operação indutiva como uma inferência que passa de enunciados
singulares aos enunciados universais. POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São
Paulo: Abril Cultural, 1980.(Coleção Os Pensadores). p. 3. Já a abdução opera na elaboração
de hipóteses explicativas para classes de fatos. Por exemplo. Temos um problema Y qualquer.
Por hipótese, a melhor maneira de explicar Y é assumindo que X. Logo, se há Y, então há
grande probabilidade que X. Charles SandersPeirce (1989), em Conferências sobre
Pragmatismo, afirma: “Abdução é o processo para formar hipóteses explicativas. [...] Dedução
prova que algo deve ser; Indução mostra que algo atualmente é operatório; Abdução faz uma
mera sugestão de que algo pode ser.”PEIRCE, Charles Sanders. Escritos Coligidos. São
Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores). p. 14. Poderíamos defender que
chegamos à hipótese da existência de Deus por abdução. Parece-nos que Newton (1990)
procedeu dessa forma, no Escólio Geral do Livro III, Do Sistema do Mundo, dos Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural, ao defender que a ordem e a beleza que observamos no
mundo poderiam proceder, somente, de um Deus Supremo. Ver: NEWTON, Isaac. Principia:
Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Tradução Trieste Ricci. São Paulo: Nova Stella /
EDUSP, 1990.

14
isso não torna a teologia menos científica ou crítica. A assunção da existência
de Deus para o teólogo não seria muito diferente da assunção da existência da
realidade objetiva de partículas elementares para o atomista. Ambos são
pressupostos metafísicos, ou, na linguagem de Karl-Otto Apel, pressupostos
transcendentais25. É a partir do pressuposto da realidade objetiva de Deus,
realidade fundamental que pode ser investigada, compreendida e comunicada,
que a teologia pode constituir-se cientificamente. Mas será a teologia uma
ciência dentre tantas? Ou, ao afirmarmos que teologia é ciência, temos de ter
em mente, de modo claro, o que estamos entendendo por ciência?
Vimos que podemos pensar a teologia como ciência. No entanto, por seu
objeto de estudo, trata-se de uma ciência especial e que reclama autonomia. A
definição aristotélica, podemos estar certos, não satisfaz o escrutínio crítico de
nossa era. Seria extremamente difícil, e muito pouco razoável, sustentar que a
teologia, tal como a concebemos em nossos dias, é uma ciência teórica no
sentido proposto por Aristóteles, sendo a física e a matemática as outras duas
componentes de tal grupo. Ou reconhecemos que (I) a teologia possui seu
espaço próprio enquanto ciência, ou que (II) a teologia é disciplina autônoma,
que entre teologia e ciência pode haver relações, mas que teologia e ciência
são áreas distintas, e que a teologia é um campo de estudos independente da
ciência.
Parece-nos mais razoável defender a autonomia e a especificidade da
teologia como campo de estudos específicos enquanto esforço intelectual em
investigar criticamente o objeto supremo da fé religiosa: o divino enquanto tal, o
sagrado. Sendo assim, até podemos defender que a teologia seja uma ciência,
desde que entendamos ciência em uma conotação suficientemente ampla,
para não incorrermos no equívoco de pensar que teologia é ciência no mesmo
sentido que a física, a química, a biologia ou a astronomia. Tais áreas
participam do esforço por compreender o mundo físico por meio de abordagens
teóricas e experimentais. Já a teologia não possui o mundo físico, os
fenômenos naturais como os seus principais objetos de estudo, embora não os

25
Os termos “pressupostos transcendentais” e “pressupostos metafísicos”, tal como são
utilizados aqui, possuem o mesmo significado. O termo transcendental, portanto, não possui
sentido kantiano. Transcendental, então, é aquilo que se encontra além do que podemos
provar empírica e teoricamente. Logo, é algo que deve ser assumido a priori, um pressuposto,
um fundamento.

15
ignore ou os tenha em vista secundariamente. Tampouco, podemos dizer que,
por exemplo, física e teologia compartilham métodos, práticas e procedimentos.
Seja como for, a teologia dialoga com as ciências. Teorias científicas podem
influir em teologias, e o contrário é igualmente verdadeiro. Qual a natureza
desse diálogo? Como teologia e ciência se relacionam? A relação entre
teologia e ciência nos parece a expressão e o desdobramento de uma relação
ainda mais fundamental: entre Religião e Ciência.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

17
AULA 2- COMO CIÊNCIA E RELIGIÃO SE RELACIONAM?

OBJETIVOS

Nesta Aula, objetivamos explicar como Ciência e Religião podem se relacionar,


positiva e negativamente, de acordo com o entendimento contemporâneo de
filósofos da religião, teólogos, religiosos e cientistas.

INTRODUÇÃO
O físico e teólogo Eduardo R. Cruz, em Cientistas como Teólogos e Teólogos
como Cientistas, lembra que Ian Babour26 concebeu quatro possibilidades de
relacionamento entre religião e ciência: (1) Conflito, (2) Independência, (3)
Diálogo e (4) Integração27. O “conflito” povoa o imaginário popular e a
comunicação não especializada. É o entendimento de senso comum. A
“independência” seria a posição da maior parte dos cientistas e, dentre as
religiões, da Igreja Católica de Roma. O “diálogo” é muito presente entre
cientistas e teólogos, que concebem que as duas atividades podem oferecer
algo, uma à outra, enriquecendo-se mutuamente. A “integração” é muito
comum em novos movimentos religiosos e misticismos. Seus entusiastas, por
exemplo, podem crer que a mecânica quântica, por exemplo, é uma nova
forma de espiritualidade, comprovando a existência de Deus e de fenômenos
espirituais28.

26
Ver BARBOUR, I. G. Quando a ciência encontra a religião. Inimigas, estranhas ou parceiras?
São Paulo: Cultrix, 2004.
27
PASSOS, João Décio; SOARES, Afonso Maria Ligorio (Org.). Teologia e Ciência: Diálogos
acadêmicos em busca do saber. São Paulo: Educ/Paulinas, 2008.p. 176.
28
Muito misticismo infundado vem sendo produzido em torno de reflexões apressadas e nada
críticas acerca da mecânica quântica (MQ) e de outras áreas da física. Todavia, algumas
interpretações teístas sérias da MQ também foram propostas. Em stricto sensu, a mecânica
quântica é um conjunto de equações, cálculos e princípios, ou seja, um sistema lógico de
proposições acerca da natureza da matéria em escalas subatômicas. A rigor, não existe “a”
mecânica quântica, mas diversas abordagens, modelos, teorias quânticas. “O que elas nos
dizem?”, “O que elas comprovam?”. Cremos que sejam as perguntas erradas. Mais adequado
seria perguntar “Como podemos interpretá-las?”, “O que podemos deduzir delas?”, ou ainda
“Qual imagem de mundo elas podem nos oferecer?”. Existem, no mínimo, algumas dezenas de
interpretações da mecânica quântica, e apenas algumas propõem a existência de um
observador universal, ou de uma “constante de observação universal”, que podemos chamar,
por analogia, de Deus. Como exemplos de tais abordagens, podemos citar as interpretações
de James H. Jeans e Erwin Schrödinger. Ver SCHRÖDINGER, Erwin. Mi concepción del

18
COMPREENDENDO MODELOS DE RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA
E RELIGIÃO
O biólogo molecular Denis Alexander29, em Modelos para relacionar Ciência e
Religião30,sustenta uma interessante tese: religião e ciência são sistemas
complexos e dinâmicos em constante transição. Sendo assim, nenhum modelo
que busque explicar, de modo isolado, a relação entre tais sistemas será
plenamente bem-sucedido. Muitos modelos diferentes podem contribuir para o
entendimento de tão complexa relação. Ainda assim, concebendo-os como
ferramentas úteis para nos ajudar na compreensão de tal problema, Alexander
apresenta quatro modelos de relação, que julga sejam os principais: (1) modelo
do conflito, (2) modelo “MNI”, (3) modelo de fusão e (4) modelo complementar.

Relação conflituosa
Os defensores do modelo do conflito sustentam que ciência (C) e religião (R)
são atividades opostas: Se x é C, então não é R; se é R, então não é C.
Conflito pressupõe não somente indiferença, mas certo grau de hostilidade. Um
partidário de tal modelo é o biólogo Richard Dawkins:

A religião fundamentalista está determinada a arruinar a educação


científica de inúmeros milhares de mentes jovens, inocentes e bem-
intencionadas. A religião não fundamentalista, ‘sensata’, pode não estar
fazendo isso. Mas está tornando o mundo seguro para o
fundamentalismo ao ensinar as crianças, desde muito cedo, que a fé
inquestionável é uma virtude31.

Dawkins, portanto, não é somente contra a religião fundamentalista, que


considera fonte de ruína moral e grave impedimento à educação científica,

mundo. Barcelona: Tusquets, 1988; e ainda JEANS, J. H. O Universo Mysterioso. Tradução J.


de Sampaio Ferraz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944.
29
Diretor do Faraday Institute for Science and Religion no St Edmund’s College da University of
Cambridge.
30
ALEXANDER, Denis. Modelos para relacionar Ciência e Religião. Tradução Guilherme V.R.
de Carvalho. Faraday Papers. Cambridge: Faraday Institute for Science and Religion, 2007. p.
1.Disponível em: <https://www.faraday.st-edmunds.cam.ac.uk>. Acesso em: 10 jul. 2014.
31
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Tradução Fernanda Ravagnani. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 294.

19
como também a religião “sensata”, porque, mesmo não propagando o ódio e a
intolerância, esta inibiria o desenvolvimento do senso crítico nos jovens,
gerando preconceitos e afastando-os da ciência.
O conflito entre ciência e religião, geralmente, decorre das divergências
evidentes entre as explicações que ambas oferecem para os mesmos
fenômenos32. Isso fica claro quando analisamos duas questões específicas: a
origem do universo e a origem da vida. Físicos e cosmólogos concebem que o
universo surgiu há bilhões de anos, e que sua origem, expansão e
desenvolvimento são determinados rigorosamente por leis naturais que podem
ser expressas por meio de teorias e testadas por experimentos. Já a religião
(ênfase no cristianismo e nas tradições ocidentais), interpretando literalmente a
letra bíblica, concluiria que o universo foi criado pelo verbo divino há alguns
milhares de anos, e que a fé é a base de tal convicção, uma vez que a palavra
de Deus é a Verdade33. O físico Carl von Weizsäcker, em A importância da
ciência, lembra que, para aqueles cientificistas que sustentam que a ciência é a
nova religião da humanidade, ou seja, que tomou o lugar que a religião
ocupava no imaginário humano, as narrativas religiosas da criação são apenas
um mito, e o mito “é algo oposto à razão”34.
Com relação ao problema da vida, enquanto os religiosos defenderiam que o
homem e todos os demais animais foram criados por Deus em sua forma
perfeita, logo definitiva, a maioria dos biólogos está convencida da correção da
teoria da evolução de Darwin, de acordo com a qual todos os seres vivos estão
em constante evolução, a fim de se adaptarem ao meio em que vivem,
garantindo, assim, a sobrevivência de sua espécie. O debate entre criacionistas
e evolucionistas, em muitas ocasiões, alcançou elevado grau de hostilidade,
gerando ataques pesados e pouco razoáveis de ambos os lados. Ao próprio
Darwin, tão acirrado conflito parecia estranho e dispensável: “[...] não me

32
Em nível mais fundamental, podemos dizer que, para o homem de ciência, o conflito é
gerado pelo simples fato de a religião discorrer acerca da natureza. Esta não seria a seara da
religião. Desse modo, sempre que esta busca explicar fenômenos naturais extrapola seus
limites e fere os domínios próprios à ciência.
33
Mais à frente, quando estudarmos o pensamento de Galileu, veremos como esse pensador
buscou superar esse nível de conflito por meio da “tese dos dois livros” e de um “princípio de
adequação”.
34
WEIZSÄCKER, Carl von. La importância de la ciencia. Tradução Juan Carlos García Borrón.
Barcelona: Labor, 1972.p. 25.

20
parece haver qualquer incompatibilidade entre a aceitação da teoria
evolucionista e a crença em Deus”35.
A ideia de “relação conflituosa” pode ser facilmente acusada de ser ingênua
ou precipitada. Aquele que a defende parece ignorar que apenas poucos
segmentos religiosos ultraconservadores insistem em ler as escrituras
sagradas de modo literal. A posição oficial contemporânea, p.ex., a do
Vaticano, é negar o conflito entre ciência e religião, entendendo a natureza
alegórica do livro do Gênesis e de quaisquer outras passagens bíblicas acerca
de fenômenos naturais36.

Relação de independência
Outra abordagem seria defender que ciência e religião são independentes ou
não-interferentes37. Alexander destaca38 que Stephen Jay Gould defendeu a
não-interferência entre ciência e religião, uma vez que seriam campos de
atividade muito diferentes. Como seus objetos, práticas e pressupostos são tão
distintos, não pode haver conflito entre ambas. A ciência lidaria com fatos e a
religião com valores. Todavia, a distinção entre fatos e valores é questionável.
Aceitar a distinção e mesmo uma dicotomia seria aceitar que valores éticos,
sociais, políticos e religiosos não desempenham nenhum valor na formação
dos conhecimentos científicos. Os estudiosos dos science studies, como Peter
Galison39, entretanto, argumentam que não podemos descontextualizar a
ciência, pensando-a como empreendimento isolado e independente de
aspectos sociais, culturais, políticos e institucionais. Determinados valores,
portanto, estão sempre presentes e influenciam a prática científica em algum
grau, mesmo que sutil.
O filósofo Hugh Lacey nos lembra, em Aspectos cognitivos e sociais das
práticas científicas40,que não há consenso entre os estudiosos acerca da

35
DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Tradução André Campos Mesquita. São Paulo:
Escala, 2009. p. 462.
36
Ver: JAMMER, Max. Einstein e Religião: Física e Teologia. Rio de Janeiro: Contraponto,
2000.p. 188-189.
37
MNI: “Magistérios Não-Interferentes”.
38
Idem. n. 5.
39
GALISON, Peter. Culturas Etéreas e Culturas Materiais. In: GIL, Fernando (Org.). A Ciência
tal qual se faz. Lisboa: Edições José Sá da Costa. 1999. p. 395.
40
LACEY, Hugh. Aspectos cognitivos e sociais das práticas científicas. ScientiaStudia, São
Paulo, v.6, n. 1, 2008. p. 85.

21
independência entre valores epistêmicos e sociais na produção das teorias
científicas. Muitos admitem, no entanto, que valores sociais desempenham um
papel na formulação do conhecimento científico. Lacey defende que valores
sociais fazem parte da atividade científica, não contribuem na escolha das
teorias, mas estão presentes na adoção das estratégias, das metodologias e
na aplicação do conhecimento: “[...] não desejo manter os valores (não-
cognitivos) fora da ciência. Os valores já se encontram na ciência”41.
Independência não pressupõe hostilidade, mas autonomia. Os cientistas que
adotam tal perspectiva não negam a existência de Deus, mas consideram que
admiti-la não é um pressuposto necessário para a atividade científica. Uma
teoria científica, todavia, não carece de qualquer menção a aspectos que não
sejam estritamente físicos. Dentre seus adeptos. podemos destacar o
cosmólogo Stephen Hawking. Hawking e Mlodinow consideram que, de acordo
com a teoria-M,42 a origem do universo decorre fisicamente das leis da
natureza; logo, “não requer a intervenção de nenhum ser sobrenatural ou
Deus”43. O físico brasileiro Marcelo Gleiser sustenta que a separação entre
ciência e religião é necessária para que a linguagem da ciência seja
preservada como universal e objetiva: “O discurso científico é, e deve ser, livre
de qualquer conotação teológica”44. O modelo de independência, portanto,
preserva os campos de atuação próprios de cada atividade. Ser, a um só
tempo, religioso e homem de ciência é uma possibilidade que compete a cada
um efetivar ou não. Religião e ciência não conflitam, mas também não se
reforçam.

41
LACEY, Hugh.Existe uma distinção relevante entre valores cognitivos e
sociais?ScientiaStudia, São Paulo, v.1, n. 2, 2003. p. 146. Ainda acerca da relação entre fato e
valor, ver: MARICONDA, Pablo Rubens. O controle da natureza e as origens da dicotomia
entre fato e valor.ScientiæZudia, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 453-472, 2006.
42
A teoria-M é um conjunto de teorias de cordas que busca unificar a mecânica quântica e a
relatividade geral por meio de um modelo em que as quatro grandes forças estão unificadas:
força forte, força fraca, força eletromagnética e força gravitacional. Em uma teoria de cordas,
em seu nível elementar, a matéria não é composta por partículas, mas por cordas. As
partículas são geradas pela vibração de tais cordas. Na teoria-M, o espaço-tempo possui 10 ou
11 dimensões e podem existir outros universos. Para saber mais, ver ABDALLA, Elcio. Teoria
quântica da gravitação: Cordas e Teoria-M.Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 27, n. 1, p.
147-155, 2005.
43
HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard. O Grande Projeto: Novas respostas para as
questões definitivas da vida. Tradução Mônica César Santos Friaça. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011.p. 10.
44
GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo: Dos mitos de criação ao Big-Bang. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.p. 193.

22
A despeito da aparente plausibilidade de tal modelo, um estudo acurado em
história da ciência nos revelará a função que valores religiosos
desempenharam nas ciências e valores científicos, nas religiões. Denis
Alexander demonstra como o modelo da independência pode não resistir a tais
investigações históricas: “O tráfego constante de ideias entre a ciência e a
religião ao longo de séculos, e ainda hoje, é um ponto contra a tese de que
elas existem em domínios separados”45.

Fusão
Os modelos de fusão fortes propõem que não existem distinções entre religião
e ciência quanto ao conteúdo que informam. O conhecimento científico pode
provar as verdades reveladas, e as verdades reveladas podem guiar a
atividade científica. Modelos fracos, ou moderados, enfatizam que tais
distinções podem ser sutis, e não muito claras. Tais modelos podem ser
propostos tanto por cientistas e filósofos da ciência quanto por religiosos.
Quando homens de ciência sustentam tal modelo, suas concepções podem
ser, ao menos, de três naturezas: (I) A ciência é uma forma de experiência do
sagrado, ou seja, de religiosidade46; (II) A teoria x comprova a existência de
Deus; e (III) A ciência confirma a verdade revelada pela religião P. Os
religiosos, quando adotam tal perspectiva, na maior parte dos casos, assumem
as concepções (I) e (III), interpretando o conhecimento científico de modo
conveniente para a defesa de sua fé. Muitos criacionistas, por exemplo, tentam
sustentar que sua crença é apoiada por teorias geológicas, biológicas etc.
Einstein é um exemplo de cientista que adotou a concepção de que a ciência
é movida por uma profunda religiosidade. Sendo assim, a ciência se alimenta
de um sentimento religioso e o alimenta também. De acordo com Max Jammer,
o cientista alemão produziu não somente física e filosofia da ciência, como
também filosofia da religião e mesmo teologia de um modo não sistemático.

45
ALEXANDER, Denis. Op. cit. p. 3.
46
Podemos pensar que tal item faz parte do modelo de interação, e não de fusão. Aqui, nós o
situamos como um modelo de fusão com base no seguinte argumento: se por meio da ciência
temos a experiência do Sagrado, então, para nós, a experiência científica será de natureza
religiosa. Desse modo, há distinção entre ciência e religião institucionalizada, mas não entre
experiência científica e experiência religiosa.

23
Jammer enfatiza que Einstein concebe uma profunda relação entre a
experiência religiosa e a experiência científica:

Segundo a máxima de Einstein47, a religião não apenas é


compatível com a ciência, como também é promovida por esta,
assim como promove a ciência ao estimular e apoiar a
pesquisa científica, como ocorreu nos casos de Kepler e
Newton 48.

Não nos aprofundaremos no estudo das concepções de Einstein neste


momento, pois isso será tema de uma Aula posterior. Por enquanto, basta que
tenhamos em mente que Einstein concebia a religiosidade como algo
fundamental para o espírito científico49.
O modo como a mecânica quântica foi interpretada por muitos cientistas é
um exemplo de fusão. Físicos como Erwin Schrödinger, James Jeans, Arthur
Eddington e Eugene Wigner, e mais recentemente Paul Davies, John
Polkinghorne e AmitiGoswami, sustentam que a mecânica quântica nos conduz
a uma comprovação da existência de Deus. Muitas interpretações são
logicamente consistentes, devem ser consideradas sérias e tornaram-se
“clássicas”, como as de Jeans e Schrödinger, por exemplo. Outras, todavia,
podem parecer menos consistentes e mais voltadas para o público leigo do que
para a comunidade científica; logo, devemos manter uma postura crítica em
relação a propostas desse tipo, evitando um misticismo superficial50. O próprio
Polkinghorne nos adverte dos perigos da “moda quântica”51, que busca

47
“A ciência sem religião é manca, a religião sem ciência é cega”.
48
JAMMER, Max. Einstein e Religião: Física e Teologia.Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.p.
123.
49
EINSTEIN, Albert. Como eu vejo o mundo. Tradução H. P. de Andrade. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981.p. 23.
50
Para saber mais acerca do fenômeno do misticismo quântico, ver: PESSOA JR. O fenômeno
cultural do misticismo quântico In: FREIRE JR, O.; PESSOA JR, O.; BROMBERG, J. L.
(Org.).Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais [online]. Campina Grande:
EDUEPB; São Paulo: Livraria da Física, 2011. Disponível em:
<http://books.scielo.org/id/xwhf5>. Acesso em: 18 jun. 2014.
51
O físico MichioKakulembra que na história da física tal movimento de mistificação de teorias
científicas não é novo. Em 1877, em Londres, o médium Henry Slade foi acusado de fraude.
Alguns renomados homens de ciência (como o professor de física e astronomia da
Universidade de Leipzig, Johann Zollner) saíram em sua defesa, buscando interpretar os
fenômenos mediúnicos como “manipulações de objetos na quarta dimensão”. KAKU, Michio.
Hiperespaço. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

24
explicar, de modo acrítico, diversos fenômenos chamados de espirituais por
meio da física contemporânea52.
Uma opção aos modelos de fusão seria trabalhar com a ideia de interação
positiva. Um modelo de interação forte seria aquele que sustenta que ciência e
religião influem uma sobre a outra. Tal influência pode se dar no nível
institucional, político, social e também epistêmico. Um modelo fraco ou
moderado poderia assumir as interações social, política e institucional em
algum grau e manter uma reserva quanto às influências epistêmicas. O termo
“fusão” sugere que A e B, a partir de um tempo T, passam a designar a mesma
coisa. A interação preserva a autonomia de A e B embora destaque que AB e
BA ocorram. Isto é, ciência que se alimenta de religiosidade, e religião que não
dispensa o espírito científico.

Complementaridade
De acordo com Dennis Alexander, o modelo de complementaridade sustenta
que ciência e religião tratam da mesma realidade a partir de abordagens
diferentes, mas não rivais. A ideia de complementaridade deriva do princípio
introduzido por Niels Bohr na interpretação de Copenhagen da mecânica
quântica. Bohr e seus colaboradores evidenciaram a natureza dual da matéria:
corpuscular e ondulatória. Richard Feynman explica que na mecânica quântica
“não há distinção entre uma onda e uma partícula”53. Contudo, embora um
quantum, tal como um fóton ou um elétron, possa ser descrito tanto como
partícula quanto como onda, um determinado arranjo experimental x revelará
ou seu estado pontual, ou seu estado ondulatório. Bohr enfatiza que as
informações obtidas por meio de arranjos experimentais diferentes, acerca do
mesmo objeto, constituem parte de um único sistema embora não possam ser
tomadas ao mesmo tempo por meio de uma única abordagem54.
No modelo de complementaridade, ciência e religião comunicam
informações acerca do mesmo sistema. Contudo, não comunicam as mesmas

52
POLKINGHORNE, John. Teoria quântica. Tradução Iuri Abreu. Porto Alegre: L&PM, 2012.p.
109.
53
FEYNMAN, Richard. Física em 12 lições. Tradução Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Ediouro,
2005.p. 64.
54
BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957. Tradução Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.p. 33.

25
informações. Uma abordagem religiosa revelará um aspecto da realidade que
permanece inacessível para a ciência tanto quanto a abordagem científica
revelará um aspecto inacessível para a religião. Ambas são complementares,
porque são partes do mesmo todo, ainda que não possam ser obtidas por um
único “arranjo experimental” e expressas pelo mesmo sistema de proposições.
Um argumento favorável a tal modelo seria que este preserva a autonomia
de ambas as áreas sem cindir a realidade: embora diferentes, ciência e religião
investigam um objeto comum. Sendo assim, ele preserva a ciência de
implicações teológicas e religiosas que descaracterizariam sua prática, bem
como elimina a possibilidade de a religião deixar-se guiar por conhecimentos
científicos que, mesmo aceitos em uma época, podem revelar-se ultrapassados
posteriormente.
Contra a complementaridade, pesa a acusação de que ele pode reforçar
uma ideia marcante de outro modelo, o MNI, de acordo com o qual, enquanto a
ciência trata de fatos, a religião se ateria aos valores. Tal distinção, como já
vimos, é no mínimo problemática. Esse modelo também parece ignorar que
motivações religiosas, ao longo da história da ciência, exerceram forte
influência na atividade epistêmica de diversos homens de ciência e que
conhecimentos científicos também são absorvidos por tradições religiosas.

SÍNTESE
De um modo geral, é prudente pensar que as relações entre ciência e religião
não podem ser plenamente expressas por nenhum modelo particular. Talvez,
somente uma atitude crítica, complexa e pluralista, que leve em conta as
contribuições de vários modelos, possa, enfim, ser útil para esclarecer um
pouco das “ligações” entre tais atividades. O modelo mais dogmático, contudo,
parece ser o “modelo de conflito”, pois ignora profundas relações históricas,
institucionais e epistêmicas entre ciência e religião apesar de historicamente
casos de conflito terem ocorrido de modo lamentável.

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RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Tradução Breno Silveira.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
SCHRÖDINGER, E. Mi concepción del mundo. Barcelona: Tusquets, 1988.
WEIZSÄCKER, Carl von. La importância de la ciencia. Tradução Juan Carlos
García Borrón. Barcelona: Labor, 1972.

28
AULA3- FUNDAMENTAÇÃO DA TEOLOGIA NATURAL

OBJETIVO

O objetivo desta Aula é apresentar a teologia natural como campo de


investigação científica da Teologia, explicando suas origens, métodos e
problemas históricos, e propondo uma abordagem dos desdobramentos
contemporâneos de tal disciplina.

INTRODUÇÃO

Se existe uma deidade criadora do universo, tudo o que nele há é obra sua.
Pensemos em um arquiteto A cujo trabalho possui S características peculiares,
que são suas, e somente suas. Se conhecêssemos tal arquiteto, saberíamos
que sua próxima obra possuiria, provavelmente, todas ou ao menos algumas
propriedades de S. Pelo autor, conheceríamos a obra. Imagine, porém, que
chegamos a uma cidade X e observamos um belo edifício E, mas não sabemos
quem é seu autor. Analisando a obra, verificamos que possui S características.
Ora, concluiríamos que tal obra “deve” ser de autoria de A. Defendemos que
supor que o autor é A é a melhor hipótese para explicar porque o edifício
possui aquelas propriedades de S. Assim raciocinando, ao invés de
conhecermos a obra por conhecermos o autor, conheceríamos o autor pela
observação, pela experiência da obra.

O QUE É TEOLOGIA NATURAL?

A Teologia Natural, de acordo com Richard Swinburne, parte da observação da


natureza, do universo, de seu ordenamento nomológico, isto é, de suas
regularidades físicas, químicas, biológicas, da existência de seres vivos
complexos em evolução, e chega à existência de Deus: “A produção de
argumentos para mostrar isso [que Deus criou o universo ordenado, onde

29
emergiu a vida] é chamada ‘teologia natural’”55. A revelação, portanto, não
provê o material da teologia natural:

Na busca de um sentido geral e aplicável a todos os períodos da história da


filosofia, pode-se considerá-la [a teologia natural] como um esforço teórico de
conhecer a Deus sem recorrer à revelação, mas tão só a alguma forma de
recurso racional válido56.

Conforme Sagan, a teologia natural é entendida como “um conhecimento


teológico que pode ser estabelecido apenas e tão somente pela razão e pela
experimentação”57. Todavia, qual será sua origem? Pierre Hadot nos lembra de
que já em Fílon de Alexandria58 (10 a.C.– 50 d.C.) aparece a tese da
identificação da natureza como obra de Deus. Para Hadot, no pensamento de
Fílon, “physis é sinônimo de aletheia”, havendo, portanto, uma profunda ligação
entre “Natureza” e “Verdade”, de tal modo que podemos concluir: compreender
a Natureza seria um caminho para se chegar a Deus59. Fílon destacou, porém,
que os antigos comentadores judeus da Bíblia hebraica60, os physikoi, haviam
estabelecido relações entre fenômenos naturais e passagens bíblicas,
indicando a possibilidade de uma exegese alegórica das escrituras, o que
evitaria conflitos pontuais entre a verdade revelada e o conhecimento physico.

Por sua vez,Böttigheimer enfatiza que o termo “teologia natural”, com um


sentido próximo daquele que compreendemos hoje, existia mesmo antes de
55
SWINBURNE, Richard. A existência de Deus. Princípios, Natal, v.15, n.23, jan./jun. 2008.p.
271.
56
PICH, Roberto Hofmeister. Teologia Natural: debates na filosofia moderna. In: CRUZ,
Eduardo R. da (Org.). Teologia e ciências naturais: teologia da criação, ciência e tecnologia em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 76.
57
SAGAN, Carl. Variedades da experiência científica: uma visão pessoal da busca por Deus.
Tradução Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.p. 167.
58
De acordo com Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento, em Fílon de Alexandria e a tradição
filosófica: “Fílon de Alexandria, filósofo judeu do século I, surge como o primeiro pensador a
tentar conciliar o conteúdo bíblico à tradição filosófica ocidental”. Ver: NASCIMENTO, Dax
Fonseca. Μετανόια, São João del-Rei, n. 5, p.55-80, jul. 2003.
59
HADOT, Pierre. O véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de natureza. São Paulo:
Loyola, 2006. p. 65.
60
A Torá (do hebraico, A Lei) é o conjunto dos cinco primeiros livros que compõem o Antigo
Testamento (do livro do Gênesis ao Deuteronômio). Tais livros, na tradição judaica, são
atribuídos a Moisés e constituem o núcleo da religiosidade hebraica.

30
Fílon, com o estoico Marcus Terentius Varro (116-27 a. C.). Varro discorreu
acerca de uma tripartição da teologia: Theologia mythica, Theologia civilis e
Theologia naturalis61. A Theologia mythica é a narrativa acerca dos deuses.
São os poetas que a empreendem, tendo lugar no teatro. A Theologia civilis é o
culto aos deuses, que se dá na esfera pública, na pólis. Trata-se da religião
estatal, regulada pelo legislador, podendo ser compreendida também como
teologia política. E aTheologianaturalis,também chamada de physica(em
Hadot, aparece o termo “física teológica”), é praticada pelos filósofos e busca
compreender o cosmos. Böttigheimer enfatiza que, já na era cristã, muitos
padres e escritores da Igreja adotaram tal divisão tripla, dentre os quais o
grande filósofo da Patrística, Agostinho62.

Apesar de suas origens na antiguidade pagã, foi entre os pensadores


cristãos que a teologia natural se consolidou. Na tradição da filosofia medieval,
buscou-se elaborar provas racionais para a existência de Deus. Em um
primeiro momento, diversos padres da Igreja desenvolveram argumentos nesse
sentido, dentre os quais Gregório de Nissa e Agostinho. Posteriormente, outros
pensadores desenvolveram argumentos mais sofisticados, como Anselmo,
Tomás de Aquino e Duns Escoto63. Essa tradição desenvolveu-se por séculos.
Swinburne defende que, a partir do século XIX, por conta das severas críticas
derivadas dos trabalhos de Hume, Kant e Darwin, a teologia natural
enfraqueceu, tendo sido retomada em outras bases posteriormente, fundada
em reações a tais críticas64.

PROVAS OU ARGUMENTOS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Os teólogos naturais buscaram desenvolver provas lógicas da existência de


Deus, de modo que tal existência fosse um objeto da razão, e não somente da
fé. De maneira geral, tais provas podem ser classificadas em três classes:
“argumentos ontológicos”, “argumentos cosmológicos” e “argumentos

61
BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental: A racionalidade da questão
de Deus e da revelação. Tradução Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 23.
62
Idem. p.24.
63
SWINBURNE, Richard. Op. cit. p. 274.
64
Ibidem.

31
teleológicos”65. Grosso modo, esses argumentos são dedutivos66, mas podem
ser indutivos, e é possível sustentar que sejam até abdutivos. Calma! Vamos
ver como tais argumentos são e isso ficará mais claro.

Os argumentos ontológicos, desde Anselmo de Cantuária (Proslogion II-


IV)67, buscam deduzir Deus como ens realissimum, o ser mais real, não
partindo de fatos empíricos, mas de considerações lógicas68. Uma forma
simplificada e atual do argumento de Anselmo seria: A1: Deus é o Ser mais
perfeito que pode ser concebido. A2: É possível conceber um Ser perfeito que
não existe. A3: É possível conceber um Ser perfeito que existe! C1: Posto que
a existência seja uma perfeição, um ser existente é mais perfeito que um ser
inexistente (ou meramente imaginário, ou simplesmente possível). C2: Disso,
segue-se que o Ser mais perfeito que pode ser concebido deve existir
necessariamente(onde A = axiomas e C = conclusões).

Os argumentos cosmológicos têm sua origem em Aristóteles, na teoria do


primeiro motor, que constam de sua Metafísica69. O argumento aristotélico é
reelaborado por Tomás de Aquino em “suas cinco vias”. Argumentos

65
PICH, Roberto Hofmeister. Op. cit. p. 79.
66
De acordo com Kant, a teologia natural possui caráter dedutivo (logo, seus argumentos
também): “A teologia natural deduz os atributos e a existência de um autor do mundo a partir
da constituição, da ordem e da unidade que se encontram neste mundo, no qual é necessário
admitir uma dupla espécie de causalidade, assim como a regra de uma e de outra, ou seja, a
natureza e a liberdade. Assim, ascende deste mundo até à inteligência suprema como ao
princípio de toda a ordem e perfeição, seja na natureza, seja no domínio moral. No primeiro
caso denomina-se teologia física, no último teologia moral“. Ver KANT, Immanuel. Crítica da
Razão Pura. Tradução Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian,
2001. A 632 B 660.
67
Proslogion II-IV.
68
Ver: RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Tradução Breno Silveira. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1968. p.258.
69
De acordo com Aristóteles (2005), em sua Metafísica [1073a 23]: “O princípio, isto é, o
primeiro entre os entes, é não-suscetível de movimento, em si mesmo e por concomitância, e
promove o movimento primeiro e eterno, que é único. Dado que, necessariamente, aquilo que
é movido é movido por algo;dado que o primeiro motor é, em si mesmo, não-suscetível de
movimento; dado que o movimento eterno é promovido por algo eterno, e um movimento único,
por algo único; dado que, além da locomoção simples do Todo, a qual dizemos que a primeira
essência não-suscetível de movimento promove, vemos que há outras locomoções eternas, a
dos planetas (de fato, o corpo que se move em círculo é eterno e sem repouso; provou-se isso
nas discussões sobre a natureza), necessariamente, também cada uma dessas locomoções é
movida por uma essência eterna que, em si mesma, é não suscetível de movimento.”Ver:
ARISTÓTELES. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 15, n. 1,jan./jun. 2005.p. 213. Tal
argumento aristotélico aparece nas cinco vias tomistas, a saber: 1. Primeiro motor; 2. Causa
eficiente; 3. Ser necessário e Ser contingente; 4. Graus de perfeição; e 5. Ordenamento
teleológico. Para saber mais, ver: AQUINO, Tomás de. Suma de Teología. Madri: Biblioteca de
autores cristianos, 2001. p. 110-113. c.2 a.3.

32
cosmológicos partem de verdades evidentes acerca do mundo para, então,
deduzir a existência de Deus como fundamento deste. Uma forma bastante
simplificada do argumento cosmológico seria: A1: Se algo existe, então um Ser
que o causou tem de existir. C1: O mundo existe. C2: Disso, segue-se que
existe um Ser que é causa do mundo.

O argumento teleológico, ou físico-teológico, como o chama Kant, é o


famoso argumento do desígnio. Tais argumentos partem da constatação de
ordem e beleza no universo70. Tal ordem só poderia ser explicada pela
existência de um ordenador. Se o universo é tão ordenado que possa ser
entendido como um projeto, tem de existir um projetista. Tal argumento, por
exemplo, se encontra no Livro III, Parte I da Óptica71, de Isaac Newton, um
tratado acerca da natureza da luz e de sua reflexão. Newton, diante do perfeito
funcionamento da mecânica natural, conclui que a natureza é ordenada por leis
universais72. Newton, então, levanta uma questão fundamental: como se
origina “toda aquela ordem e beleza que vemos no mundo?”73. Da mecânica
celeste à anatomia humana, tudo nos revela que a natureza é plena de ordem
e beleza. Será isso o resultado do acaso cego ou será um projeto?
Newtonsustenta que não seria razoável concluir que o mundo surgiu por acaso,
pois como o acaso poderia produzir uma ordem tão complexa? Newtonsustenta
que, da observação e da experimentação da natureza, chegamos à conclusão
de que esta é ordenada, e que tal ordem pode ser explicada somente
admitindo a existência de um princípio supremo de ordenamento da realidade:
um “Ser incorpóreo, vivente, inteligente, onipresente”74, que imprimiu ordem a
todas as coisas. Uma forma simples e atual do argumento físico-teleológico
seria uma operação de abdução: (a) Existe o mundo. (b) O mundo é ordenado.
(c) Hipótese: Deus existe. (d) c explica a e b. (e) É muito provável que c.

70
A quinta via, elaborada por Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, parte da constatação
da ordem no mundo para, então, assumir que tal ordem necessita de uma causa e que tal
causa é Deus. Referências: ver final da nota 16.
71
NEWTON, Isaac. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
72
O filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz também apresentou um argumento da
existência de Deus, tendo como base a observação da ordem e beleza reinantes no mundo.
Para saber mais: NEWTON, Isaac; LEIBNIZ,Gottfried.Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983.
E ainda: LEIBNIZ, Gottfried. Os PensadoresII. São Paulo: Abril, 1980.
73
NEWTON, Isaac. Op. cit. p. 279.
74
Idem. p. 280.

33
O filósofo Immanuel Kant dirigiu duras críticas a quaisquer tentativas de se
provar a existência de Deus por meio de argumentos como os que
apresentamos até aqui. Kant entende que aqueles que sustentam que Deus,
por ser perfeito, tem de existir, se equivocam por pensar que “existência” é um
predicado, quando não é. Um objeto x imaginário tem os mesmos predicados
que um objeto x que se encontra, de fato, sob minha mesa. Se existência não é
um predicado, então não podemos atribuir existência a Deus por ser Ele o
sujeito de todos os predicados. Para Kant, os argumentos cosmológico e físico-
teológico podem ser reduzidos ao argumento ontológico:

[...] a prova físico-teológica tem por fundamento a cosmológica e esta, por sua
vez, a prova ontológica da existência de um único ser originário como Ser
Supremo; e, como além destas três vias nenhuma outra se abre à razão
especulativa, a prova ontológica, extraída de simples conceitos puros da
razão, é a única possível75.

Como Kant reduz todos os argumentos ao argumento ontológico, e pretende


ter demonstrado que este falha em seu objetivo, logo, pensa ter estabelecido
que tais provas não sejam bem-sucedidas. Desse modo, o pensador de
Königsberg defende que a única teologia de razão possível não está baseada
em operações intelectuais, mas em imperativos morais76.

NOVAS VERSÕES DOS ARGUMENTOS DE TEOLOGIA


NATURAL

O argumento teleológico de Richard Swinburne77

75
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução Manuela Pinto dos Santos. Lisboa:
Fundação CalousteGulbenkian, 2001.A 630 B 658.
76
RUSSEL, Bertrand. Op. cit.p. 259.
77
SWINBURNE, Richard. Op. cit.

34
O filósofo Richard Swinburne (1934 –) dedicou-se à formulação de um
argumento teleológico indutivo. Dessa forma, poderia estar imune às críticas
kantianas. Ora, de acordo com Kant, o argumento físico-teleológico pode ser
reduzido ao argumento ontológico, que, por sua vez, é dedutivo. Já o
argumento de Swinburne, sendo indutivo, partiria da existência (i) do mundo e
(ii) de regularidades naturais observadas por experimentação até assumir a
existência de Deus como a hipótese.

Swinburne busca elaborar seu argumento a partir da observação de três


fenômenos. F1: O mundo existe. F2: O mundo é ordenado (tal ordenação é
fantasticamente sofisticada). F3: Este universo ordenado gerou estruturas
orgânicas complexas. O filósofo, então, se pergunta se a ciência ou o senso
comum são capazes de explicar a origem do universo e das leis naturais.
Responde negativamente. A ciência pode explicar quais leis fundamentais
existem, mas não porque elas existem. Uma hipótese, assim, para a existência
do universo e de sua ordem seria D: Existe um Ser plenamente livre capaz de
criar o mundo. O filósofo, por isso, chega ao seguinte argumento: observa-se F
(F1, F2, F3). A hipótese D explica F. Logo, é muito provável que D.

A prova ontológica de Gödel78

Kurt Gödel (1906-1978) é considerado um dos mais brilhantes lógicos do


século passado, com importantes trabalhos em matemática pura e física
teórica, sobretudo em física relativística. Gödel buscou formular um argumento
ontológico publicado postumamente (a partir da versão produzida por Dana
Scott). O matemático esboçou também a elaboração de um argumento da
duração postmortem do self, ou seja, da continuação da vida após a morte
física em outro mundo79. O argumento é baseado no princípio da razão

78
Autor do famoso “teorema da incompletude”, de acordo com o qual há teorias consistentes
que expressam a aritmética elementar, nas quais existem sentenças (ao menos uma), que,
embora sejam verdadeiras, não podem ser demonstradas. Para saber mais ver: NETTO, F. O.
S. Os teoremas de Gödel. Cadernos do IME – Série Matemática, Rio de Janeiro: IME, v. 23,
2011.
79
BRANQUINHO, João (Dir.); MURCHO, Desidério; GOMES; Nelson. Enciclopédia de Termos
lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 69-74.

35
suficiente de Leibiniz80, de acordo com o qual tudo o que existe possui uma
razão. Para cada entidade X, se X existe, então há uma razão R de X. Gödel
argumentou que a vida humana não possuiria sentido e careceria de razão
caso todas as possibilidades humanas não pudessem ser desenvolvidas.
Como a vida humana na Terra é curta demais para o desenvolvimento de tais
possibilidades, logo o mundo em que vivemos não pode ser o único em que
viveremos. A vida se desenvolve em muitos tempos e muitos mundos tanto
quantos forem necessários para que as possibilidades humanas se realizem.

Uma versão bastante simplificada do argumento de Gödel seria: Ax.1. Uma


propriedade ou sua negação é positiva, mas não ambas (princípio aristotélico
de não-contradição). Th.1. Uma propriedade positiva existe necessariamente
em algum caso particular (para cada propriedade positiva, há ao menos um ser
que existe e que a possui). Ax.2. Ser semelhante a Deus é uma propriedade
positiva P porque é o conjunto de todas as propriedades positivas. Th.2.
Segue-se de Th.1. e Ax.2. que um ser que é semelhante a Deus tem de existir
necessariamente; logo, Deus existe81.

Os argumentos lógicos de fundamentação da mecânica


quântica de Erwin Schrödinger e James H. Jeans82

80
Para saber mais acerca de tal princípio, ver HIRATA, Celi. Leibniz e Hobbes: Causalidade e
Princípio da Razão Suficiente. 2012. Tese (Doutorado)-Universidade de São Paulo, São Paulo,
2012. p. 62,80,150,152,154,210 e 219.
81
Recentemente, os cientistas CristophBenzmüller, da Universidade de Berlin, e Bruno
Woltzenlogel, da Universidade de Tecnologia de Viena, publicaram um artigo no qual
formalizaram logicamente o argumento ontológico de Gödel (a versão publicada é bem mais
complexa do que aquela apresentada aqui). Os cientistas o experimentaram por meio de testes
computacionais. Os autores alegam, e por ora não houve refutação, que demonstraram a
consistência lógica do argumento gödeliano. Então, comprovaram a existência de
Deus?Afirmar isso seria ingênuo, apressado e até leviano. Tudo o que se demonstrou foi que o
argumento de Gödel não é logicamente inconsistente. Evidentemente, também seria apressado
negar que o tema pode e deve ser mais bem estudado pela teologia natural em busca de
possíveis contribuições, nem que sejam de formalização lógica, para tal área de investigação.
Ver: BENZMÜLLER, Cristoph; WOLTZENLOGEL, Bruno. Formalization, Mechanization and
Automation of Gödel’s Proof of God’s Existence.arXiv:1308.4526v4 [cs.LO]. Disponível em:
<http://www.logic.at/staff/bruno/Papers/2013-GodProofAbstract.pdf>. Acesso em: 10 set. 2013.
82
É possível afirmar que o tipo de interpretação idealista e de argumento ontológico de
Schrödinger e Jeans já se encontra no pensamento do Bispo Berkeley: “Um dos argumentos
centrais empregados por Berkeley a fim de fornecer a seu sistema imaterialista solidez lógica,
profundidade metafísica, e eventualmente um importante meio de refutar quaisquer acusações
de solipsismo é que a existência das coisas sensíveis é baseada em última instância nelas
serem continuamente percebidas (concebidas) por Deus, ou – em outras palavras – nelas

36
Erwin Schrödinger, formulador da mecânica ondulatória, uma das bases da
mecânica quântica, assumiu que esta lidava com entes físicos que se
comportavam como ondas. Posteriormente, desenvolveu uma interpretação
idealista da mecânica quântica, de acordo com a qual aqueles entes físicos
quânticos eram concepções em uma mente eterna transcendental. Schrödinger
argumenta que ou interpretamos que a mecânica quântica pressupõe a
existência de tal observador eterno transcendental, ou não poderemos
entender porque o mundo permanece existindo continuamente. Tudo depende
da assunção da premissa de que os eventos de observação dos sistemas
físicos promovem a passagem de tais sistemas de uma realidade potencial
para uma realidade atualizada, ou seja, efetiva. Se são os eventos de
observação que promovem a “atualização” da realidade, a passagem da
possibilidade matemática à realidade física, o que ocorre em nível global com o
universo, uma vez que este não está sendo observado em sua totalidade?
Ora,quando não fosse observado, o universo não seria. Mas o universo é!
Logo, está sendo observado. Entretanto, não são nossas mensurações que
observam o universo em sua globalidade. Portanto, há um observador
universal, ou evento universal de observação – se soa menos antropomórfico –
, por meio do qual o universo não é somente uma insolúvel trama de universos
potenciais, mas o universo físico83.

O físico-filósofo britânico James Jeans elaborou uma interpretação da


mecânica quântica em termos muitos semelhantes à de Schrödinger. De
acordo com James: (A1) na mecânica quântica, podemos falar que x é real
somente quando observamos x. (A2) Ora, ou bem o universo é globalmente
observado, ou oscila entre o ser e o não-ser(a rigor, ou o universo é
globalmente observado, ou não podemos falar que seja real; o que é absurdo).
(C1) O universo é real. (C2) De C1, segue-se que o universo é globalmente
observado – isto é, que existe uma constante de observação universal, um
evento universal de observação84.

existirem na mente de Deus”. Ver: BRADATAN, Costica. Princípios, Natal, v.16, n.26, jul./dez.
2009. p. 263.
83
Para saber mais, ver SCHRÖDINGER, E.Mi concépcion del Mundo.Barcelona: Tusquets,
1988.
84
Para saber mais, ver JEANS, James. L’universo misterioso. Milão: Treves, 1932.

37
SÍNTESE

A teologia natural compartilha métodos, instrumentos e abordagens com a


ciência, sobretudo com as ciências naturais. Os argumentos de teologia natural
podem ser dedutivos, indutivos e abdutivos85. A teologia natural, bem como as
ciências naturais, se fundamenta no conhecimento teórico, na observação do
mundo e de seus fenômenos, na busca pelo entendimento de suas
regularidades e na experiência. Ao longo de sua história, diversas provas
ontológicas, cosmológicas e teleológicas (físico-teológicas) foram elaboradas.

Apesar das críticas de Kant, novas versões dos argumentos de teologia


natural foram desenvolvidas tanto na modernidade como nos dias atuais. As
próprias objeções kantianas foram atacadas e problematizadas diversas vezes.
Por exemplo, Alvin Plantinga, na atualidade, buscou demonstrar que nenhuma
reprovação conclusiva dos argumentos ontológico, cosmológico e teleológico
foi apresentada86. No momento, esse campo de investigação está novamente
em evidência a partir do desenvolvimento de novos argumentos ou novas
versões de argumentos da existência de Deus.

REFERÊNCIAS

ANSELMO, Santo. Proslogion seu Alloquium de Dei existentia. Tradução José


Rosa. Covilhã: LusoSofia Press, 2008. p. 12-14.
AQUINO, Tomás de. Suma de Teología. Madri: Biblioteca de Autores
Cristianos, 2001.
ARISTÓTELES. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 15, n. 1, p. 201-221,
jan./jun. 2005.
BENZMÜLLER, Cristoph; WOLTZENLOGEL, Bruno.Formalization,
Mechanization and Automation of Gödel’s Proof of God’s
Existence.arXiv:1308.4526v4 [cs.LO]. Disponível em:
85
Ver Aula1, n.17.
86
Idem. n.2, p.80.

38
<http://www.logic.at/staff/bruno/Papers/2013-GodProofAbstract.pdf>. Acesso
em: 10 set. 2013.
BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental: A racionalidade
da questão de Deus e da revelação. Tradução Markus A. Hediger. Petrópolis:
Vozes, 2014.
BRADATAN, Costica. Princípios, Natal, v.16, n.26, p. 257-284, jul./dez. 2009.
BRANQUINHO, João (Dir.); MURCHO, Desidério; GOMES; Nelson.
Enciclopédia de Termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins fontes, 2006.
EINSTEIN, Albert. Como eu vejo o mundo. Tradução H. P. de Andrade. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de natureza.
São Paulo: Loyola, 2006.
HIRATA, Celi. Leibniz e Hobbes: Causalidade e Princípio da Razão
Suficiente.2012. Tese (Doutorado)-Universidade de São Paulo, São Paulo,
2012.
JEANS, James. L’universo misterioso. Milão: Treves, 1932.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução Manuela Pinto dos Santos.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
LEIBNIZ, Gottfried. Os PensadoresII. São Paulo: Abril, 1980.
NASCIMENTO, Dax Fonseca. Fílon de Alexandria e a tradição
filosófica.Μετανόια, São João del-Rei, n. 5, p.55-80, jul. 2003.
NETTO, F. O. S. Os teoremas de Gödel. Cadernos do IME – Série Matemática,
Rio de Janeiro: IME, 2011.v. 23.
NEWTON, Isaac. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
NEWTON, Isaac; LEIBNIZ, Gottfried. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983.
PICH, Roberto Hofmeister. Teologia Natural: debates na filosofia moderna.In:
CRUZ, Eduardo R. da.Teologia e ciências naturais: teologia da criação, ciência
e tecnologia em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2011.p. 76-101.
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Tradução Breno Silveira.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
SAGAN, Carl. Variedades da experiência científica: uma visão pessoal da
busca por Deus. Tradução Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
SCHRÖDINGER, E.Mi concépcion del Mundo. Barcelona: Tusquets, 1988.

39
SWINBURNE, Richard. A existência de Deus. Princípios, Natal, v.15, n.23,
jan./jun. 2008.

40
AULA 4- COSMOLOGIA E TEOLOGIA DA CRIAÇÃO

OBJETIVO

O objetivo desta Aula é apresentar um quadro geral da história da cosmologia,


de seus problemas centrais e da relação entre a cosmologia, a religião e a
teologia, levantando e explorando a seguinte questão: cosmologia e teologia da
criação são compatíveis?

INTRODUÇÃO

A cosmologia é a ciência que investiga a origem, a estrutura e a dinâmica do


universo87. A cosmologia moderna surgiu como área da física no início do
século XX. Em 1915, Einstein publicou sua Teoria da Relatividade Geral
(TRG)88, de acordo com a qual o espaço-tempo é um
continuumquadridimensional não-euclidiano, isto é: o universo de Einstein é
curvo ou possui curvaturas locais. Tais curvaturas são os campos
gravitacionais que as concentrações de massa-energia criam em sua
vizinhança89. Em 1917, um novo trabalho de Einstein foi publicado90,
defendendo a possibilidade de estudarmos o universo como um “objeto”

87
Os filósofos pré-socráticos, por vezes, são chamados de os primeiros cosmólogos, pois
buscavam compreender racionalmente a origem do universo. De acordo com José Plínio
Baptista e Laércio Ferracioli, muitos historiadores da ciência, como Paul Tannery, consideram
que tais filósofos inauguraram a ciência ocidental, pois, além da reflexão racional, os pré-
socráticos elaboravam sua filosofia com base em observações empíricas. BAPTISTA, José
Plínio; FERRACIOLI, Laércio. Sobre as causas naturais que formam a base empírica do
fenômeno dos turbilhões nas cosmogonias: dos Pré-Socráticos a René Descartes. Revista
Brasileira de Ensino de Física, São Paulo, v.26, n.1, 2004. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11172004000100014>. Acesso em: 29 jul. 2014.
88
Ver: EINSTEIN, Albert. A teoria da Relatividade Especial e Geral. Tradução Carlos Almeida
Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
89
Idem. p. 56 A interação gravitacional decorre da geometria do espaço-tempo. Ver: NOVELLO,
Mário. DoBig Bang ao Universo Eterno. Rio de Janeiro: J, Zahar, 2010. p. 47.
90
EINSTEIN, Albert. Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade Geral.In: O
Princípio da Relatividade. 3. ed. Tradução Mário José Saraiva. Porto: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1983. p. 225-241.

41
geométrico único, passível de ser abordado em sua totalidade. Nascia, então, a
cosmologia enquanto ciência91.

Em 1920, Alexander Friedmann demonstrou como derivar um modelo de


universo dinâmico, em evolução, a partir das equações da Teoria da
Relatividade Geral. No modelo de Friedmann, o universo, que hoje se encontra
em expansão, apresentou uma singularidade inicial com todo o espaço-tempo
compactado em um raio zero com densidade de energia infinita92.

Einstein percebera que as equações relativísticas implicavam um universo


dinâmico, mas introduziu,em sua teoria um termo, a constante cosmológicaɅ,
com a função de neutralizar a expansão, revelando uma imagem estática,
eterna e imutável do universo. Mas porque teria agido de tal forma? Para o
físico, filósofo e historiador da ciência, Max Jammer, somente fatores religiosos
e filosóficos influenciariam Einstein93:

Se tivesse havido tais ingredientes extrafísicos na construção


einsteiniana da Teoria da Relatividade, eles não poderiam ter sido
sociológicos ou políticos – como afirmou Feuer, por exemplo – mas

91
Esta é a posição defendida por Marcelo Byrro Ribeiro e Antonio Augusto Passos Videira em:
RIBEIRO, Marcelo; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Cosmologia, uma ciência especial?
Algumas considerações sobre as relações entre cosmologia moderna, filosofia e teologia. In:
CRUZ, Eduardo R. da (Org.).Teologia e Ciências Naturais. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 162-
195. João E. Steiner, por sua vez, considera que existem a cosmologia científica e cosmologias
tradicionais não-científicas. A cosmologia científica teria nascido com a física contemporânea,
enquanto as cosmologias tradicionais existem em diversas culturas há milhares de anos.
Outros autores, todavia, sustentam que tais narrativas tradicionais são cosmogonias,
especulações acerca da origem do universo, e não-cosmologias. Ver: STEINER, João E. A
origem do Universo. Revista de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Estud.
av., São Paulo, v.20, n.58, set./dez. 2006. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142006000300022>. Acesso em: 29 jul. 2014.
92
NOVELLO, Mario. Op. cit. p. 35-49.
93
Peter Galison parece oferecer interpretação totalmente contrária acerca das motivações de
Einstein e dos cientistas em geral. Galison minimiza a importância de motivações metafísicas e
religiosas e defende que os cientistas são influenciados, sobretudo, pelo trabalho cotidiano em
seus laboratórios, interesses, pressões e ambiente institucional, bem como por fatores políticos
e sociais. Ver: GALISON, P. Os relógios de Einstein e os mapas de Poincaré. Lisboa: Gradiva,
2005. p. 231.

42
somente filosóficos ou religiosos, talvez, no sentido da definição
einsteiniana desse termo.94

Sua religiosidade filosófico-espinosista, de acordo com Jammer, pode ter


sido importante para Einstein na elaboração da constante cosmológica Ʌ, uma
hipótese ad hoc: “Houve quem sugerisse que ele tivesse cometido esse erro
crasso por ter sido influenciado por Espinosa, que havia declarado em sua
Ética que Deus é imutável”95.

MODELOS COSMOLÓGICOS

A cosmologia, ao enfrentar questões, tais como “Qual a origem do universo?”


ou “Porque existe algo ao invés do nada?”96, não pode nos oferecer descrições
inequívocas e verdades absolutas, primeiro, porque talvez nenhuma ciência o
faça, e segundo, pela natureza mesma dos problemas sondados. Logo, o
pluralismo teórico é inevitável e diversos modelos cosmológicos concorrem
pelo título de teoria mais aceitável, de “imagem” mais promissora.Desse modo,
existem muitas cosmologias, ou seja, muitas respostas diferentes acerca da
origem, do passado, da estrutura e do desenvolvimento do universo.

Além dos modelos de Einstein e Friedmann que mencionamos, podemos


citar os modelos de Gödel, o estado estacionário de Jeans, Hoyle e Bondi, os
modelos de Lamaitrê eGamov, os modelos cosmológicos quânticos e os
modelos de multiversos. Podemos, grosso modo, separar os modelos em dois

94
JAMMER, M. Einstein e a religião: Física e Teologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.
p.33.Jammer não se compromete com a correção de tais hipóteses, mas não as ignora. Em
Einstein e a Religião: Física e Teologia, ele levanta e discute tais possibilidades.
95
Espinosa (1957, p. 38), na Ética, corolário 2 da proposição 20, parte I, sustenta que “Deus é
imutável”, ou seja, que o universo é imutável; logo, não poderia ser dinâmico. Ver:SPINOZA,
Baruch. Ética. Tradução Lívio Xavier. São Paulo: Atena, 1957. p. 38.
96
Para o físico filósofo Ludwig Boltzmann (2005), tais questões pertencem ao domínio da
filosofia: “Qual é a definição de filosofia que se me impõe com uma força irresistível? Eu senti
como um pesadelo opressor a sensação de que seria um enigma insolúvel a questão de como
é possível que eu exista, a questão de como é possível que exista um mundo e a questão
sobre o porquê desse mundo ser exatamente como é e não de alguma outra maneira. A
ciência que conseguisse resolver esse enigma parecer-me-ia a maior, a verdadeira rainha das
ciências, e eu a chamei de filosofia” Ver: BOLTZMANN, Ludwig. Escritos Populares.
TraduçãoAntonio Augusto Passos Videira. São Leopoldo, RS: Ed. daUnisinos, 2005. p. 25.

43
grandes grupos97: (I) modelos de universos singulares, com passado finito e
origem a partir de uma singularidade; e (II) modelos de universos eternos com
passado infinito. Os modelos de universos eternos podem ser (a) constantes e
(b) cíclicos. Os universos eternos constantes iniciaram no passado infinito uma
lenta expansão que perdura até nossos dias e, ao que tudo indica, prosseguirá
até o futuro infinito. Os universos cíclicos alternam fases de expansão e
retração. Em tais modelos, o big bang não seria a origem de tudo, mas uma
mudança de fase. O início da fase de expansão, assim como um big crunch
futuro poderia ser o início da fase de retração.

O FIAT LUX E O BIG BANG

Lembramos que no modelo cosmológico de Friedmann o universo encontra-se


em expansão e que seu estado inicial foi uma singularidade. Além disso, a
física relativística amalgamou tempo e espaço como constituintes da mesma
realidade física, o espaço-tempo. Ora, se o universo se expande, então, cada
instante T do passado corresponde a um espaço E, cuja área total, o próprio
universo, deve ser menor do que a atual, e, assim, subsequentemente. Se
retrocedermos o suficiente na história cósmica, então chegaremos à
singularidade, quando todo o espaço-tempo, bem como sua massa-energia
estavam comprimidos infinitamente. O físico e sacerdote católico George
Lemaître, independente de Friedmann, sustentou que, em um tempo passado
finito (aproximadamente de 13 a 16 bilhões de anos), o universo surgiu de um
átomo primordial, ficando conhecido como o pioneiro da teoria do big bang98.

A quebra dessa singularidade foi seguida de uma expansão abrupta do


espaço-tempo. Ao primeiríssimo instante desse evento, damos o nome de big
bang. Apesar do nome, não se trata, portanto, de uma grande explosão, porque
não havia o que explodir, nem onde explodir. O big bang é a

97
NOVELLO, Mario. Op. cit. p. 78-87.
98
“Uma conclusão imediata que emerge da constatação da existência da expansão é que o
universo deve ter estado ‘concentrado’ no passado, tendo, por motivos não esclarecidos, se
iniciado um processo de expansão em determinada época. Este é o átomo primordial sugerido
por Lemaître”.RIBEIRO, Marcelo; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Op. cit. p. 176.

44
passagemhipotética do universo inobservável ao universo observável – da
realidade singular à realidade espaço-temporal.

A ideia de um “início de todas as coisas”, de um evento específico por meio


do qual o que é veio a ser, pode reforçar a crença religiosa em um “momento
da criação” e oferecer respaldo científico e argumento racional à teologia da
creatio ex nihilo, a criação do mundo a partir do nada. Sendo assim, a teoria do
big bang foi muito bem aceita por alguns segmentos teológicos e cultos
religiosos. Em 1951, em discurso na Pontifícia Academia de Ciências, o papa
Pio XII buscou conciliar teologia e cosmologia por meio de uma exegese
alegórica do livro do Gênesis. O big bang,portanto, poderia ser a narrativa
científica ou a descrição natural da creatio ex nihilo por meio do Fiat Lux: “[...]
[a] obra da onipotência criadora,cujo poder, acionado pelo poderoso Fiat
pronunciado há bilhões de anos pelo Espírito Criador, espalhou-se por todo o
Universo”99. E ainda:

Na verdade, parece que a ciência de hoje, retrocedendo há milhões de


séculos, conseguiu ser uma testemunha daquele Fiat lux criador, a
partir do qual, de repente, irromperam a matéria e um mar de luz e
radiação, enquanto as partículas elementares e as moléculas de
elementos químicos se combinaram em milhões de galáxias100.

De fato, podemos estabelecer analogias interessantes entre certas


implicações de modelos cosmológicos singulares e teologias da criação. Por
exemplo, Santo Agostinho teceu considerações teológicas que se revelaram,
do ponto de vista físico, muito corretas e plenamente concordantes com a

99
PIO XII apud JAMMER, Max.Op. cit. p. 188.Para outra abordagem de conciliação entre o big
bang e as Escrituras, ver a edição doL'Osservatore Romano, do Vaticano, de 14 de maio de
2008, na qual o padre e astrônomo José Gabriel Funes concebe que a teoria do big bang é o
melhor modelo cosmológico de que dispomos e que entre este e a Bíblia não há nenhuma
contradição. Disponível em:
<http://www.vatican.va/news_services/or/or_quo/interviste/2008/112q08a1.html>. Acesso em:
???
100
PIO XII. Discorsi e Radiomessaggidi Sua Santità Pio XII. XIII, Tredicesimo anno di
Pontificato, 2 marzo 1951 - 1° marzo 1952.p. 393-406. Nossa tradução. Original disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/index_po.htm>.

45
cosmologia do big bang. Agostinho sustentou que o mundo não pode ter sido
criado no céu, pois este ainda não existia. Defendeu que não é sensato
perguntar o que Deus fazia antes da criação, pois, antes, é uma relação
temporal que indica passado, e o tempo ainda não existia. Ou seja, consonante
com modelos cosmológicos singulares, Agostinho concebe que a criação do
universo é a criação tanto do tempo quanto do espaço101.

Apesar das aproximações interessantes entre cosmologia e teologia que o


big bang nos oferece, e embora seja a teoria cosmológica hegemônica, ele não
está livre de severas críticas e modelos concorrentes. Além disso, a teoria, a
rigor, não explica a origem do universo, mas seu passado mais remoto que
ainda é cognoscível: o momento logo após a quebra da singularidade. Porque
houve a passagem do estado singular para uma fase de expansão é uma
questão que permanece em aberto. O cosmólogo brasileiro Mário Novello
chega mesmo a defender que a aceitação do big bang é algo irracional, uma
vez que implica o fim da ciência, já que nenhuma teoria, nem a relatividade
nem a mecânica quântica podem elaborar uma física da singularidade que
explique como desta surgiu o universo observável102.

COSMOLOGIAS CÍCLICAS E RELIGIÕES ORIENTAIS

A cosmologia do big bang, a rigor, não é contraditória com a possibilidade de


fases não-singulares do universo, anteriores ao início da expansão atual103.
Como vimos, a própria singularidade pode ser uma transição entre fases de
retração e expansão. Teríamos, então, um cenário cíclico. O físico Gabriele
Venezianoressalta que, de acordo com determinadas teorias das cordas, o

101
Para saber mais, ver AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1973.Livro
XI.
102
NOVELLO, Mario. Op. cit., p. 50-51.
103
“In principle, the big bang picture does not exclude the possibility of having a preexisting
period before the bang”. Ou seja: “Em princípio, o modelo do big bang não exclui a
possibilidade de períodos preexistentes ao início da expansão”.XUE, Bing Kan. Nonsingular
Bouncing Cosmology. 2013. Tese (Doutorado)-Princeton University, Princeton, 2013. p. 3.

46
universo não teve origem no big bang, sendo ele o desdobramento de outros
“cosmos anteriores”104.

A ideia de universo cíclico possui uma longa história, tendo sido registrada
tanto no Ocidente quanto no Oriente. Os estoicos, como Zeno, concebiam que
o mundo evoluiu a partir de um fogo primordial, estado ao qual voltará um dia.
Mas não será o fim. Esse ciclo se repete por todo o sempre105. Sêneca pensara
que a natureza intercala eras de criação e destruição, com intervalos entre as
mesmas, quando Zeus está concentrado em si mesmo. O universo, portanto,
evolui em uma sucessão infinita de diástoles e sístoles, fases de expansão e
retração106. Um diálogo mais profundo pode ser estabelecido entre modelos
cosmológicos cíclicos e teologias orientais. Nas escrituras messiânicas, Meishu
Sama afirma que “O homem vive num ilimitado e misterioso, mas ordenado
Universo, que evolui e reevolui em ciclos”107. Devemos, contudo, empreender
maiores esforços, a fim de investigarmos as reais implicações cosmológicas de
tal tese.

No hinduísmo, há uma trilogia de deuses supremos: Brahma,Vishnu e


Shiva.Brahma seria a força de criação, o processo criativo que desenvolve o
universo.Vishnu seria a força destrutiva, tão sagrada e necessária quanto a
força criativa, mas oposta a esta. E Shiva seria responsável, quando chegada a
era específica de cada ciclo cósmico, por destruir o universo. Isso somente é
possível, porque Brahma, nesta era, encontra-se adormecido. Após despertar,
Brahma recria o universo e fica desperto por um dia. O dia de Brahma
equivaleria a4.320.000.000 anos108 (quatro bilhões e trezentos e vinte milhões

104
Ver VENEZIANO, Gabriele. O enigma envolvendo o início do tempo. Scientific American,
São Paulo: Duetto, n.21,edição especial, 2006. p. 70-79.
105
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Tradução Breno Silveira. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1968. p.295.
106
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de natureza. Tradução
Mariana Sérvulo. São Paulo: Loyola, 2006. p. 63.
107
OKADA, Mokiti. Os Novos Tempos. São Paulo: FMO, 2006. (Coletânea). p. 9.
108
Salmo 90, 4: “Pois mil anos, aos teus olhos, são como o dia de ontem que se foi”. O físico
Gerald Schroeder buscou demonstrar como é possível conceber que um dia de Deus seja
equivalente a bilhões de anos terrestres. De acordo com Schroeder, as equações relativísticas
implicam a possibilidade de dilatação temporal. O mesmo evento, experimentado por
observadores em velocidades diferentes ou em campos gravitacionais muito diversos, pode
representar para o observador A alguns minutos e para o observador B alguns milhões de anos
(JAMMER, Max. Op. cit.p.151). Para uma leitura leve sobre dilatações, distorções e viagens
temporais, ver DAVIES, Paul. Como construir uma máquina do tempo.Scientific American, São
Paulo: Duetto, n.21, edição especial, 2006. p. 18-23.

47
de anos) para o calendário hindu. Em suma: sempre que Brahma vai dormir, há
a destruição do universo, e sempre que acorda, tudo é recriado. Quando se
completarem 100 anos de Brahma (311.040.000.000.000 – trezentos e onze
trilhões e quarenta bilhões de anos),Ele,todos os deuses e o universo (mundo
físico) serão desintegrados, ou dissolvidos, retornando ao nível de elementos
primordiais.

COSMOLOGIA E TEOLOGIA COMO COMPLEMENTARES

Tão evidente quanto o fato de que Cosmologia e Teologia da Criação não são
a mesma coisa é a certeza de que não são atividades conflitantes ou
indiferentes. Antes disso, podem dialogar muito, estabelecendo interações
construtivas para ambas as áreas. Da mesma forma que cosmologias reforçam
ou esclarecem teologias, pensamos, como Jammer, que, se analisarmos
meticulosamente a história da ciência, nós veremos que valores religiosos
influenciam o processo de elaboração de teorias, e de interpretação de
observações, no caso de muitos cientistas.

Ribeiro e Videira defendem que cosmologia e teologia “são complementares


porque ambas nos fornecem diferentes perspectivas da mesma realidade
experimentada”109. Ou seja, as duas atividades buscam construir narrativas
racionais sobre a origem da mesma realidade: não um ou alguns fenômenos
particulares, mas a totalidade daquilo que é, o universo.

Os autores enfatizam que podemos conceber a ciência como uma descrição


de x tal como x realmente é, ou como uma representação de x, algo que nos
indique como x pode ser. Optar pela tese da representação é considerar, como
Kant, Boltzmann, Planck e outros, que não podemos conhecer a natureza tal
como ela é em sua essência; que não podemos conhecer a realidade em si.
Tudo o que podemos fazer é construir representações, imagens e modelos
racionais que ofereçam explicações logicamente consistentes para os
fenômenos observados, sejam simples e coerentes e nos permitam prever
eventos futuros de modo concordante com a experiência. Ao assumir que a
cosmologia possui tal caráter, compreenderemos que nenhum modelo

109
RIBEIRO, Marcelo; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Op. cit. p. 176.

48
cosmológico poderá arrogar-se único e definitivo. O pluralismo teórico garantirá
que sempre será possível estabelecer diálogos entre cosmologias e teologias
em busca de uma visão cada vez mais unificada, simples e fecunda.

De acordo com o físico e teólogo William R. Stoeger, Deus pode ser não
somente o sujeito da creatio ex nihilo, mas também o autor da creatio
continua110.Ele sustenta o universo em existência, ininterruptamente. Neste
mesmo momento, Deus permanece criando a tudo e a todos. Desse modo, a
teologia da criação é compatível tanto com modelos cosmológicos singulares
quanto com modelos de universos eternos. John Polkinghorne, físico e
sacerdote anglicano, também defende essa tese111. Afirmar que Deus é o
Criador não se limita a conceber que em algum momento passado ele tenha
criado o universo, mas é também pensar que Ele mantém a existência do
cosmos momento a momento, eternamente.

Em nossa interpretação do argumento ontológico de Anselmo, dizer que


Deus é o Ser mais perfeito que pode ser pensado implica concebê-lo como Ser
ilimitado, completamente livre, sujeito não somente daquilo que é, mas de tudo
quanto poderia ser – sujeito do mundo que está aí, e de todos os mundos
possíveis; autor do processo de criação descrito pela cosmologia C ou por n
cosmologias possíveis. É uma questão de simplicidade e consistência lógica.
Se pudéssemos conceber um mundo X possível incriado pelo Deus que
concebemos, tal Deus não seria o Ser mais perfeito que pode ser concebido.
Poderíamos pensar em um Ser que criou todos os mundos criados por aquele
mais o mundo X que ele não criou. Esse Ser, sim, mereceria ser chamado de
Deus.

Sendo assim, a proposta de Stoeger, de que uma teologia da criação crítica


deve ser compatível com qualquer que seja a cosmologia, faz todo o sentido.
Por isso, a pergunta pelo “como” passa por uma transvaloração. Nenhuma
cosmologia pode ser incompatível com o Fiat Lux, ex nihilo ou continuo, porque
Deus, posto que seja perfeito e ilimitado, poderia criar todos os mundos
possíveis por meio de todos os modos possíveis. Tanto faz se houve um único
110
STOEGER, William R. Deus, a Física e o Big Bang. In: HARRISON, Peter (Org.). Ciência e
Religião. Tradução Eduardo R. Cruz. São Paulo: Ideias e Letras, 2014. p. 233.
111
POLKINGHORNE, John. EmScience and Creationapud JAMMER, Max.Op. cit. p. 191.

49
modo possível, ou 100, ou n modos – um Deus perfeito é capaz de todos.
Talvez isso implique que uma teologia da criação crítica, não-dogmática e
complementar à ciência abarque qualquer explicação do “como Deus criou o
universo”, porque seu problema fundamental transcende tal questão e vai além
da natureza mesma da ciência: por que Deus criou? Será tal coisa
cognoscível?

SÍNTESE

Vimos que existem diversas teorias cosmológicas. Seja qual for o modelo
cosmológico considerado o mais promissor, a abordagem complementar
parece a mais sensata neste caso específico. As descobertas, ou
representações da cosmologia, as narrativas religiosas e o discurso teológico
podem ser compatíveis.A realidade é suficientemente ampla para que
abordagens diferentes sejam igualmente possíveis e para que, entre estas,
interações construtivas possam ser estabelecidas.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, José Plínio; FERRACIOLI, Laércio. Sobre as causas naturais que


formam a base empírica do fenômeno dos turbilhões nas cosmogonias: dos
Pré-Socráticos a René Descartes. Revista Brasileira de Ensino de Física, São
Paulo,v.26, n.1, 2004. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1806-
11172004000100014>. Acesso em: 29 jul. 2014.
BOLTZMANN, Ludwig. Escritos Populares. Tradução Antonio Augusto Passos
Videira. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2005.
DAVIES, Paul.Como construir uma máquina do tempo.Scientific American,São
Paulo: Duetto, n. 21, edição especial, p. 18-23, 2006.
EINSTEIN, Albert. Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da
Relatividade Geral. In:EINSTEIN, Albert; LORENTZ, Hendrik; WEYL, Hermann;
MINKOWSKI, Hermann. O Princípio da Relatividade. 2.ed. Lisboa: Fundação
CalousteGulbenkian, 1978; p. 225-241.

50
EINSTEIN, Albert. A teoria da Relatividade Especial e Geral. Tradução Carlos
Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
GALISON, P. Os relógios de Einstein e os mapas de Poincaré. Lisboa: Gradiva,
2005.
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de
natureza.Tradução Mariana Sérvulo. São Paulo: Loyola, 2006. p. 63. Disponível
em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142006000300022>. Acesso em: 29
jul. 2014.
JAMMER, M. Einstein e a religião: Física e Teologia. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2011.
NOVELLO, Mário. Do Big Bang ao Universo Eterno. Rio de Janeiro: J. Zahar,
2010.
OKADA, Mokiti. Os Novos Tempos. São Paulo: FMO, 2006. (Coletânea).
PIO XII. Discorsi e Radiomessaggidi Sua Santità Pio XII. XIII, Tredicesimo
anno di Pontificato, 2 marzo 1951 – 1° marzo 1952, p. 393-406. Tradução
nossa. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/index_po.htm>.Acesso em: 15 maio
2014.
RIBEIRO, Marcelo; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Cosmologia, uma
ciência especial? Algumas considerações sobre as relações entre cosmologia
moderna, filosofia e teologia.In: CRUZ, Eduardo R. (Org.).Teologia e Ciências
Naturais. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 162-195.
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Tradução Breno Silveira.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução Lívio Xavier. São Paulo: Atena, 1957.
STEINER, João E. A origem do Universo.Revista de Estudos Avançados, São
Paulo: USP, v.20, n.58, set./dez. 2006.
STOEGER, William R.Deus, a Física e o Big Bang.In: HARRISON, Peter
(Org.).Ciência e Religião. Tradução Eduardo R. Cruz. São Paulo: Ideias e
Letras, 2014. p. 221-240.
VENEZIANO, Gabriele. O enigma envolvendo o início do tempo. Scientific
American,São Paulo: Duetto, n. 21, Edição Especial, p. 70-79, 2006.

51
XUE, BingKan. Nonsingular Bouncing Cosmology. 2013. Tese (Doutorado)-
Princeton University, Princeton, 2013.

52
AULA 5- O QUE É CIÊNCIA E QUAL SUA RELAÇÃO COM A
TEOLOGIA

OBJETIVO
O objetivo desta Aula é retomar e sintetizar as noções, definições e
características da ciência abordadas ao longo da primeira parte do curso,
oferecendo a possibilidade de compreendermos implicações religiosas e
teológicas da natureza científica.

INTRODUÇÃO

A NATUREZA EPISTÊMICA DA CIÊNCIA

Em nossa primeira Aula, vimos como o pluralismo é fundamental para nossa


compreensão da ciência. Assim como não existe uma unidade que possa ser
chamada de “a ciência”112, também não há uma única definição de ciência113.
Vimos que, de acordo com Popper, a natureza científica pode ser concebida,
ao menos, de três modos: (I) ciência como “descrição verdadeira do mundo”,
(II) ciência como instrumento de representação do mundo e (III) ciência como
produção de conjecturas genuínas sobre o mundo114.
Max Planck considerava tal questão fundamental: o que é uma teoria
científica? Uma representação, uma imagem, um modelo construído pela livre
atividade do entendimento? Ou será uma descrição objetiva da realidade em
si? Planck considerava a ciência como uma tentativa de descrever a realidade
tal como ela é. Todavia, tal apreensão não é possível. Tudo que a ciência pode

112
Posição defendida por Peter Galison em GALISON, Peter. The Disunity of
Science.Standford: Stanford University Press, 1996.
113
De acordo com Ernest Cassirer: “Quando perguntamos a Mach e a Planck, a Boltzmann ou
a Ostwald, a Poincaré ou a Duhem, o que é uma teoria física e o que é que ela pode fazer, nós
obtemos deles, não apenas respostas diferentes, mas também respostas contraditórias”.
CASSIRER, Ernest. Das ErkentnnisProblem in der PhilosophieundWisenschaft der neurenZeit.
1957b, p. 91 apudVIDEIRA, Antonio Augusto Passos. A inevitabilidade da Filosofia na Ciência
Natural do século 19: O caso da física teórica. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2013.
114
POPPER, Karl. Três concepções acerca do entendimento humano. In: POPPER, Karl.Os
Pensadores. Tradução Pablo Rubén Mariconda e Paulo de Almeida. São Paulo: Abril Cultural,
1980. p. 127-151.

53
fazer é buscar esse nível de entendimento, refinando paulatinamente nossa
compreensão do real. Sendo assim, a ciência se desenvolve porque sua meta
é inatingível. A ciência busca o Absoluto, pode dele se aproximar, mas não
consegue jamais apreendê-lo.
Já outros cientistas e filósofos renunciam totalmente tal perspectiva: tudo o
que a ciência pode fazer é elaborar modelos que funcionem e que sejam
logicamente consistentes e ofereçam uma explicação simples para os
fenômenos observados115. Tomas S. Kuhn defende que a ciência está sempre
em busca de explicar o mundo. Ou seja, a ciência é realista. Para tanto, ela
elabora imagens da natureza sustentadas por paradigmas científicos. Os
paradigmas prosperam durante os períodos de ciência ordinária e são postos à
prova quando surgem fortes crises que questionam seus fundamentos. É o
cenário da ciência extraordinária, quando os cientistas mais se voltam para a
epistemologia e a análise filosófica dos fundamentos de sua atividade. Um
paradigma tenta resistir ao máximo, mas à medida que a crise avança,
paradigmas opcionais são propostos e podem assumir o lugar daquele. A
ciência, portanto, longe de apresentar uma evolução contínua e linear, evolui
por meio da alternância de concepções de mundo contrastantes116.
A concepção de Kuhn nos faz lembrar do darwinismo teórico proposto por
Boltzmann. Para o físico-filósofo, toda teoria científica é uma representação da
natureza. Muitas representações do mesmo fenômeno são possíveis. Desse
modo, há uma competição entre as representações. As representações mais
consistentes, simples, fecundas, acabam suplantando as concorrentes. Essa é
a mola propulsora da evolução da ciência117.
A ciência busca o saber, o entendimento, seja explicando, descrevendo ou
representando. Na Aula 1 deste curso, compreendemos por ciência um
“sistema metódico de investigação e explicação da realidade ordenada, que
existe independente de nós”. É uma perspectiva realista e nomológica. Pode
ser limitada, mas em meio a tamanho pluralismo, qual não seria?

115
DUHEM, Pierre. A Teoria Física: seu objeto e sua estrutura. Tradução Rogério Soares da
Costa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014. p. 47.
116
KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz Vianna Boeira e
Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2001.
117
VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. A inevitabilidade da Filosofia na Ciência Natural do
século 19: O caso da física teórica. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2013. p. 47-55.

54
OS LIMITES DA CIÊNCIA

Algumas perguntas fundamentais devem ser postas: quais os limites da


ciência? É possível que a ciência produza uma representação total e definitiva
da realidade ou que conquiste uma compreensão completa e definitiva? É
possível uma teoria total?

Como vimos, Planck defende que, por mais que a ciência progrida, nunca
poderá apreender o Absoluto. Pierre Auger sustenta que a ciência é um
empreendimento dinâmico, em constante evolução; logo, sempre incompleto e
que nunca chegará a uma compreensão definitiva e total da realidade118.
Steven Weinberg apresenta uma concepção totalmente contrária: a ciência
está progredindo constantemente e, no futuro, poderá desenvolver uma teoria
total, uma compreensão definitiva da realidade119.

Para conquistarmos uma teoria total, teríamos, dentre inúmeros desafios,


que unificar a mecânica quântica, que trata do universo em suas menores
escalas, e a relatividade geral, que representa sistemas macroespaciais,
campos gravitacionais e corpos em altíssimas velocidades. Stephen Hawking e
Leonard Mlodinownão acreditam que uma única teoria alcance as respostas
finais, propondo um realismo polimodal, de acordo com o qual diversos
modelos científicos podem ser combinados, superpostos, em busca da grande
teoria120.

Mas a possibilidade de uma compreensão definitiva do universo talvez seja


limitada por razões mais profundas. Será o entendimento humano capaz de
uma compreensão total? A totalidade da natureza não será demasiado
complexa para que seja definitivamente conquistada? Essas duas questões

118
AUGER, Pierre. Os métodos e limites do conhecimento científico. In: BORN, Max;
HEISENBERG, Werner, SCHRÖDINGER, Erwin; AUGER, Pierre. Problemas da
FísicaModerna.Tradução Gita. K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva: 2006. p. 91-121.
119
WEINBERG, Steven. Os limites da explicação científica. Tradução José Marcos Macedo.
Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/textos.htm>. Acesso em: 5 jun. 2013. Para mais,
ver WEINBERG, Steven. Dreams of a final Theory.New York: Vintage Books, 1994. Também,
pode ser útil a leitura de ROSENFELD, Rogério. Sonhos de uma teoria final. São Paulo: Jornal
Unesp,abr. 2001. p. 2. Disponível em: <http://www.unesp.br>. Acesso em: 23 jun. 2014.
120
HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard. O Grande Projeto. Tradução Mônica Gagliotti
Fortunato Friaça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 65-89.

55
podem nos levar ao seguinte paradoxo: “Para que o entendimento humano
compreendesse definitivamente o universo, este deveria ser um sistema mais
simples. Mas se este fosse mais simples, o entendimento também o seria, ou
mesmo não teria se formado; logo, não o compreenderíamos”. Será o caso?
Ou poderemos compreender o mundo em seus mínimos detalhes?

A questão da possibilidade de uma “teoria de tudo” possui implicações


teológicas. Entre os evangélicos britânicos do século XIX, era muito forte a
ideia de que a Queda de Adão marca também a degradação do entendimento
humano. A partir de então, o homem tornou-se precário e limitado, tendo
perdido a sabedoria com a qual fora criado. Sob tal perspectiva, uma teoria
científica definitiva não passa de uma ilusão121. Já outras teologias concebem
que o ser humano possui a partícula divina, o próprio “Deus Vivo” em seu
interior. Nesse sentido, apesar de precários e errantes, possuímos o potencial
divino para atingirmos a plena sabedoria. Em tese, portanto, seria possível que
um dia, mesmo que num futuro longínquo, o conhecimento final fosse obtido?

PRESSUPOSTOS METAFÍSICOS

A ciência não pode prover os fundamentos de sua própria atividade. Toda


teoria exige certo número de pressupostos filosóficos fundamentais. Tais
pressupostos são a priori,ou seja, antecedem e determinam qualquer
experiência e conjectura teórica. Gerald Holton chama tais pressupostos de
thematas122. Objetividade, causalidade e determinismo, simplicidade, beleza e
mesmo o atomismo seriam exemplos. Nesse sentido, a metafísica é inevitável.
Nesta ocasião, vamos ressaltar um pressuposto metafísico que possui fortes
implicações (e também raízes) teológicas: o ordenamento nomológico da

121
TOPHAN, Jonathan R.A teologia natural e as ciências. In: HARISSON, Peter (Org.). Ciência
e Religião. São Paulo: Ideias e Letras, 2014. p. 96.
122
HOLTON, Gerald. The Scientific Imagination: Cases Studies. Cambridge: Cambridge
University Press, 1978. p. viii-x. John Polkinghorne ressalta que a escolha entre teorias ou
interpretações de teorias não depende somente de medições físicas, mas de critérios
metafísicos, a saber: escopo (ou simplicidade lógica), economia e elegância.
POLKINGHORNE, John. Teoria Quântica. Tradução Iuri Abreu. Porto Alegre: L&PM, 2012. p.
104-105.

56
realidade, isto é, a convicção de que existem leis da natureza que determinam
o mundo exatamente como é.

O ideal de ordem é um pressuposto metafísico fundamental para todo o


trabalho científico. Uma condição de possibilidade da teoria científica, e não
uma consequência desta. Nas palavras de Einstein:

A pesquisa científica baseia-se no pressuposto [grifo nosso] que todos


os acontecimentos, inclusive os atos da humanidade, são determinados
pelas leis da natureza. [...] em última instância, a crença na existência
de leis gerais fundamentais também se apoia numa espécie de fé123.

A metafísica, portanto, é constitutiva da ciência. Desse modo, o ideal de


ordem, fruto da especulação livre e elemento constituinte estrutural da ciência,
não somente preexiste a qualquer experiência, como é o elemento filosófico
que lhe dá sentido. O ideal metafísico de ordem prescreve que, se
experimentarmos, obteremos regularidades, e caso a realidade não fosse
ordenada, a experimentação obteria apenas fatos isolados desconexos124.

A ORIGEM DA CIÊNCIA

A ciência teve origem na Grécia antiga, quando os primeiros filósofos pré-


socráticos buscaram uma compreensão racional da realidade. Unindo esforços
teóricos e observação cuidadosa da natureza, esses pensadores sustentaram
que a complexa e rica diversidade de fenômenos físicos poderia ser unificada
por meio de causas naturais únicas e simples:

123
EINSTEIN. Carta a P. Wrigth, 24 jan. 1936. Arquivo Einstein, filme 52-337.
124
Nas palavras de Max Born, em Einstein’sTheoryofRelativity, a física não observa coisas,
mas regularidades, relações. BORN, M. Einstein's Theory of Relativity.New York: Courier Dover
Publications, 1965. p. 332.

57
‘Um dos maiores legados da história da humanidade é a construção do
que se pode chamar de cosmovisão científica: um olhar sobre a
Natureza, ou seja, sobre a Physis, tal qual era entendida pelos gregos.
A origem do processo dessa cosmovisão, lento e fascinante,
corresponde à origem e ao florescimento da Filosofia e da Física na
Grécia antiga’. [...] esse período clássico da filosofia grega caracteriza-
se, em linhas gerais, pela presença do ideal de Cosmos e pela
convicção de que a ordenação da variedade infinita das coisas e
eventos possa (e deva) ser alcançada racionalmente. Portanto, para os
pensadores gregos, a compreensão da Natureza passa
necessariamente pela busca de um tipo de ordem [...]125.

O que há entre a filosofia grega antiga e a ciência moderna? Continuidade?


Ruptura? Muitos defendem que a ciência moderna é um fato absolutamente
novo, uma espécie de ruptura para com a filosofia que dominava o imaginário
intelectual da época. Mas podemos conceber que a ciência moderna seja um
novo desdobramento da filosofia e, portanto, que filósofos e cientistas são elos
da mesma corrente:

As conquistas dos tempos modernos, de Newton e de seus sucessores,


apareceram-me como continuação imediata da obra em que tinham
trabalhado matemáticos e filósofos gregos; o desenvolvimento completo
da ciência parecia-me um todo único, e não me passou pela cabeça a
ideia de considerar a ciência e a técnica como um mundo radicalmente
diferente do da filosofia de Pitágoras ou de Euclides126.

Mesmo as teorias científicas mais atuais, como a mecânica quântica, de


acordo com físicos e filósofos como Erwin Schrödinger, podem ter suas raízes
fincadas no solo da Antiguidade:

125
CARUSO, Francisco; OGURI, Victor.Física moderna:origens clássicas e fundamentos
quânticos. Rio de Janeiro: Campus, 2006. p. 1-12.
126
HEISENBERG, Werner. A imagem da natureza na física moderna. Lisboa: Livros do Brasil,
1962.p. 57.

58
[...] a teoria quântica remonta há 24 séculos, a Leucipo e Demócrito.
Eles inventaram a primeira descontinuidade – átomos isolados
implantados no espaço vazio. [...]o atomismo dos filósofos
gregoscertamente não é uma conjectura sem fundamento, mas sim o
resultado de uma observação cuidadosa127.

Werner Heisenberg destacou que toda a história da ciência é marcada


principalmente por duas filosofias: o atomismo de Leucipo e Demócrito, e a
matematização pitagórica da natureza – incluindo a geometrização da física
deduzida do Timeu de Platão. Atomismo e matematização são, para o autor, as
duas fontes da ciência128.

Chamamos de ciência moderna o empreendimento filosófico de investigação


da natureza com forte ênfase na união entre teoria e observação que remonta
ao início do século XVI. As teorias são sistemas lógicos de proposições,
sustentadas em raciocínios (p.ex.: hipotéticos, dedutivos e indutivos). A
observação empírica programada dos fenômenos naturais, por sua vez, se
desdobra como experimentação técnica, meticulosa, auxiliada por instrumentos
e laboratórios. As teorias devem explicar os fatos observados e os resultados
experimentais. Devem ir além e prever fatos novos. Desse modo, a partir da
teoria é que os experimentos são planejados e os resultados, interpretados.

127
SCHRÖDINGER, Erwin. A Natureza e os Gregos, seguido deCiência e humanismo. Lisboa:
Edições 70, 1996. p. 134.
128
“O grande rio da ciência, que atravessa a nossa época, brota de duas fontes situadas no
terreno da antiga filosofia, e, embora mais tarde muitos outros afluentes tenham desaguado
neste rio, contribuindo para engrossar o seu fecundo caudal, a sua origem é, não obstante,
sempre claramente reconhecível”. HEISENBERG, Werner. A imagem da natureza na física
moderna. Lisboa: Livros do Brasil, 1962, p. 62. Em Problemas filosóficos da ciência nuclear,
Heisenberg trata novamente do assunto e cita explicitamente quais são as duas fontes: “A
ciência moderna tem seguido algumas tendências da filosofia natural grega, pois tem
reconsiderado uma série de problemas com que a filosofia havia se debatido em seus inícios
[...]. Existem, especificamente, duas ideias da antiga filosofia grega que na atualidade ainda
determinam o curso da ciência e que são, por essa razão, de especial interesse para nós: a
convicção de que a matéria consiste de pequenas unidades indivisíveis, os átomos, e a crença
na força das estruturas matemáticas”. HEISENBERG, Werner. Philosophic problems of nuclear
science.New York: Philosophical Library, 1952. p. 53.

59
Geralmente, diz-se que Galileu foi o fundador da ciência moderna,
justamente porque foi o pioneiro desse tipo de investigação com base na
interdependência entre teoria e observação. Ora, sem dúvida, Galileu foi um
dos mais brilhantes filósofos naturais de todos os tempos, e a ênfase que deu a
tal abordagem foi sem igual. Bernard Cohen enfatiza que “a descoberta de um
método que combinava a dedução lógica, a análise matemática e a
experiência”129 constitui a contribuição original e revolucionária de Galileu.
Todavia, é possível sustentar outra concepção de história da ciência, de acordo
com a qual essa característica da ciência natural não surgiu abruptamente,
mas foi o resultado de um longo e lento desenvolvimento. Mesmo na
Antiguidade e no Medievo, podemos identificar filósofos que combinaram, com
as devidas limitações da época, raciocínio lógico e observação dos fatos130.
Entretanto, não vamos demorar na análise desse período, pois a próxima Aula
o abordará diretamente.

O VALOR DA CIÊNCIA

Mas, afinal, porque fazemos ciência? Ou, perguntando de outro modo, qual o
valor da ciência? Muitas respostas são possíveis para questões como essa.
Muitos dirão que o valor da ciência está em produzir utilidades práticas,
fomentar técnicas e tecnologias, gerar o progresso material, desenvolver a
indústria, criar as condições para a prosperidade concreta dos povos. São
respostas úteis, mas limitadas. Claro que uma das funções da ciência é a
criação das estruturas materiais necessárias para o desenvolvimento humano.
É impossível pensar a ciência sem relacioná-la a ambientes e motivações
institucionais, políticas, econômicas e sociais.

129
COHEN, Bernard I. O nascimento de uma nova física. Tradução Maria Alice Gomes da
Costa. Lisboa: Gradiva, 1988. p. 131.
130
Como dito anteriormente, Schrödinger lembra que a teoria atomista foi fruto de uma
interpretação racional dos fatos cuidadosamente observados. Russel nos lembra de que o
escolástico franciscano Roger Bacon (1214-1294) tinha a experimentação em “alta conta”.
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Segundo. Tradução Brenno Silveira.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. p. 181.

60
Queremos, contudo, apresentar outra abordagem para tal questão. Uma
abordagem que não nega o valor prático da ciência, mas que o engloba e que
o tem como um meio, e não como um fim. Nessa perspectiva, o valor da
ciência, poderíamos dizer, é filosófico, e sua motivação, metafísica e, mesmo,
religiosa. De acordo com Schrödinger, a grande importância e “missão” da
ciência é participar da busca filosófica por responder a uma questão metafísica
fundamental:

[...] pretendia dizer que considero a ciência como uma parte integrante
do nosso esforço para responder à grande questão filosófica que abarca
todas as outras, a questão que Plotino expressou de forma breve:
‘quem somos nós?’ E mais do que isso, considero que esta é não só
uma das tarefas da ciência, mas a tarefa da ciência, a única que
efetivamente tem importância131.

Como sustentou o matemático e filósofo francês Henri Poincaré, o valor da


ciência está na busca incessante pela verdade. Mesmo que ela nos escape,
que a real natureza das coisas não possa ser conhecida, a ciência é
fundamental porque busca o que é verdadeiro e não porque produz o prático é
fugaz132. A compreensão de Poincaré parece coadunar com aquela que
Heisenberg expressaria posteriormente:

Em todo caso, o valor de uma realização científica não é medido


segundo o objeto, isto é, não é medido segundo a significação humana
do material a ordenar, e, com maior razão, não segundo uma ‘utilidade
prática’ qualquer, mas apenas segundo a beleza e a força frutífera das
estruturas expostas133.

131
SCHRÖDINGER, Erwin. Op. cit.p. 132.
132
POINCARÉ, Henri. The Value of Science. New York: The Science Press, 1907. p. 11.Para
uma leitura em português, ver: POINCARÉ, Henri. O Valor da Ciência. 1. ed. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1995.
133
HEISENBERG, Werner. A ordenação da realidade: 1942.Tradução Marco Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 130.

61
Ciência e Religião possuem muito mais em comum do que o senso comum
pode imaginar. Ambas buscam a verdade, são guiadas pelas grandes questões
metafísicas, aspiram à sabedoria e se encantam com a beleza e o mistério do
mundo. Evidente que são atividades distintas e autônomas, mas é
desnecessário que sejam contrárias ou contraditórias. Podem, ao invés disso,
se combinar de modo sublime, interagir e oferecer material e motivação uma à
outra.

SÍNTESE

Ao longo desta Aula, buscamos analisar a natureza da prática científica, suas


origens, seus limites, seu valor e suas motivações. Podemos notar que, em
todos esses níveis, implicações religiosas e teológicas podem ser detectadas.
Se assumirmos, com Planck, que a ciência busca a apreensão do Absoluto, ou
com Einstein, que ela se baseia no pressuposto metafísico de ordenamento
nomológico da realidade (o que seria um ato de fé), com Poincaré, que seu
valor se encontra na busca pela verdade, então teremos de reconhecer uma
íntima relação entre a experiência científica e a experiência religiosa.

REFERÊNCIAS

BORN, Max; AUGER, Pierre; SCHRÖDINGER, Erwin; HEISENBERG,


Werner.Problemas da Física Moderna. TraduçãoGita K. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2006. p.91-121.
BORN, M. Einstein's Theory of Relativity.New York: Courier Dover Publications,
1965.
CARUSO, Francisco; OGURI, Victor. Física moderna:origens clássicas e
fundamentos quânticos. Rio de Janeiro: Campus, 2006.
COHEN, Bernard I. O nascimento de uma nova física. Tradução Maria Alice
Gomes da Costa. Lisboa: Gradiva, 1988.
DUHEM, Pierre. A Teoria Física: Seu objeto e sua estrutura. Tradução Rogério
Soares da Costa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.

62
EINSTEIN, Albert. Carta a P. Wrigth, 24 jan. 1936.Arquivo Einstein, filme 52-
337.
GALISON, Peter. The Disunity of Science. Standford: Stanford University
Press, 1996.
HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard.O Grande Projeto.
TraduçãoMônica Gagliotti Fortunato Friaça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011.
HEISENBERG, Werner. Philosophic problems of nuclear science.New York:
Philosophical Library, 1952.
HEISENBERG, Werner. A imagem da natureza na física moderna. Lisboa:
Livros do Brasil, 1962.
HEISENBERG, Werner. A ordenação da realidade:1942.Tradução Marco
Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
HOLTON, Gerald. The Scientific Imagination: Cases Studies. Cambridge:
Cambridge University Press, 1978.
KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz Vianna
Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1987.
PLANCK, Max. Autobiografia científica e outros ensaios. Tradução Estela dos
Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
POINCARÉ, Henri. The Valueof Science.New York: The Science Press, 1907.
POINCARÉ, Henri. O Valor da Ciência. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto,
1995.
POLKINGHORNE, John. Teoria Quântica. Tradução Iuri Abreu. Porto Alegre:
L&PM, 2012.
POPPER, Karl. Três concepções acerca do entendimento humano. Tradução
Pablo Rubén Mariconda e Paulo de Almeida. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
(ColeçãoOs Pensadores).
ROSENFELD, Rogério. Sonhos de uma teoria final. São Paulo,Jornal
Unesp,abr. 2001, p. 2. Disponível em: <http://www.unesp.br>. Acesso em: 20
maio 2014.
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Segundo. Tradução
Brenno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
SCHRÖDINGER, A Natureza e os Gregos: seguido de ciência e humanismo.
Lisboa: Edições 70, 1996.

63
TOPHAN, Jonathan R.A teologia natural e as ciências.In:HARISSON, Peter
(Org.). Ciência e Religião. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.p. 83-107.
VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. A inevitabilidade da Filosofia na Ciência
Natural do século 19: O caso da física teórica. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2013.
WEINBERG, Steven. Os limites da explicação científica. Tradução José Marcos
Macedo. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/textos.htm>. Acesso em:
5 jun. 2013.
WEINBERG, Steven. Dreams of a final Theory.New York: Vintage Books, 1994.

64
AULA 6- TEOLOGIA E CIÊNCIA MODERNA: A BUSCA PELO
SAGRADO NA FILOSOFIA NATURAL

OBJETIVO

O objetivo desta Aula é explorar as relações entre ciência, religião e teologia


presentes ao longo dos séculos XVI e XVII, com ênfase na filosofia natural de
Galileu e Newton.

INTRODUÇÃO

Como vimos na última Aula,a chamada Revolução Científica ocorreu ao longo


dos séculos XVI e XVII134. Foi desenvolvida a partir da noção epistêmica de
que o conhecimento seguro deveria ser obtido por meio de uma intensa
colaboração entre a razão e a experiência. Tal campo de atividades era
conhecido por Filosofia Natural. A participação da religião foi fundamental na
origem da ciência em dois níveis: (I) institucional e (II) metafísico. O nível
institucional se revela no fomento e no apoio da Igreja ao desenvolvimento de
pesquisas e na criação de universidades. No nível metafísico, o sentimento
religioso, a pressuposição da existência de Deus e a fé na racionalidade do
mundo foram, para muitos filósofos naturais, a fonte de motivação para suas
pesquisas. A maioria absoluta dos pioneiros da ciência moderna eram
religiosos sinceros e encaravam a atividade científica como um tipo de
experiência movida pelo sentimento religioso, justamente porque o objeto da
filosofia natural era a Natura, obra de Deus135. A existência de Deus era um
pressuposto metafísico da ciência nascente. Deus era concebido como causa
primeira do mundo. Cabia ao filósofo natural compreender as causas
secundárias por meio das quais Deus ordenou os fenômenos naturais.

134
HENRY, John. A religião e a Revolução Científica. In: HARISSON, Peter (Org.). Ciência e
Religião. São Paulo: Ideias e Letras, 2014. p. 59.
135
Idem. p. 60.

65
A teologia natural foi fundamental na emergência e consolidação da fase
moderna da ciência136. Os filósofos naturais eram, de um modo geral, teólogos
seculares. Pensadores como Galileu, Bacon, Descartes, Leibniz e Newton são
exemplos disso. Para Funkenstein, nessa época, ciência, filosofia natural e
teologia constituíam algo como uma atividade única137. Muitos desenvolveram
argumentos físico-teleológicos, concebendo Deus como a causa da ordem
natural. A relação entre a teologia natural e a ciência não era somente
epistêmica, como também política e institucional. Os filósofos naturais
precisavam justificar a importância da pesquisa científica e legitimar a ciência
como mais uma força de combate ao perigo do ateísmo138. Para tanto,
buscavam demonstrar que a ciência pode ser útil na compreensão racional das
verdades religiosas. Muitos filósofos naturais produziram interessantes e
importantes reflexões teológicas. Na impossibilidade de estudar um maior
número de casos, vamos nos concentrar em dois nomes emblemáticos: Galileu
e Newton.

Galileu

A teologia secular de Galileu Galilei

Galileu (1564-1642), convencionalmente, é chamado de pioneiro da ciência


moderna. Como qualquer estudioso da natureza naquele momento histórico,
ele dedicava-se à Philosophiæ Naturalis, o tipo de investigação da natureza
que hoje chamamos de ciência natural139. Galileu, como a ampla maioria dos

136
TOPHAN, Jonathan R. Op. cit. p. 83-107.
137 FUNKENSTEIN, Amos. Theology and the Scientific Imagination from the Middle Ages to the
Seventeenth Century. Princeton: Princeton University Press, 1986. p. 1-3.
138
TOPHAN, Jonathan R. Op. cit.
139
A criação do termo “cientista” para se referir àquele que se dedica à filosofia natural ocorreu
em 24 de junho de 1833 em reunião da Associação Britânica para o Avanço da Ciência.
Whewell teria cunhado o termo porque o título de filósofo lhe parecia demasiado sério. Se
aquele que faz arte é chamado de artista, então aquele que faz ciência poderia ser chamado
de cientista. MIGUEL, Leonardo,R. William Whewell: as motivações e os objetivos de um
filósofo da ciência. In: VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (Org.). Perspectivas contemporâneas
em Filosofia da Ciência. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.p.13-44.

66
filósofos naturais da época, era um religioso sincero e pensava que sua
atividade científica era perfeitamente compatível com sua confissão de fé.

O filósofo natural de Pisa concebia a natureza como a obra de um Deus


matemático:

A filosofia está escrita neste imenso livro que continuamente está aberto
diante de nossos olhos (estou falando do universo), mas que não se
pode entender se primeiro não se aprende a entender sua língua e
conhecer os caracteres em que está escrito. Ele está escrito em
linguagem matemática e seus caracteres são círculos, triângulos e
outras figuras geométricas, meios sem os quais é impossível entender
humanamente suas palavras: sem tais meios, vagamos inutilmente por
um escuro labirinto140.

A natureza era compreendida por Galileu como um livro escrito pelo Criador.
Mas não era o único.

Tese dos dois livros

Podemos encontrar registros da tal tese muito antes de Galileu. Em Dante


Alighieri (1265-1321), ela aparece na concepção de que há dois livros, a Bíblia
e a Natureza, que podem ser decifrados somente por meio de uma exegese
alegórica141. Galileu defenderá que a leitura da Scrittura é obra dos teólogos,
mas a leitura da Natura cabe aos filósofos naturais.

140
GALILEI, Galileu. Il saggiatoreapud REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia. São
Paulo: Paulinas, 1990, v. 2, p. 281.
141
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de natureza. Tradução
Mariana Sérvulo. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 101.

67
Em 1615, Galileu escreveu a famosa carta à Cristina de Lorena, grã-
duquesa de Toscana. Sua intenção era sustentar que entre o texto bíblico e o
sistema copernicano astronômico não havia a menor contradição. Ambos eram
perfeitamente compatíveis. Tanto a Bíblia quanto a Natureza são verdadeiras.
São dois livros, mas o mesmo Autor. Deus criou a Natura e a Scrittura. Ambas
são obras do Verbo divino. Como compreender, então, o conflito entre aquilo
que a Bíblia revela e o que a filosofia natural explica? Qualquer contradição é
mera aparência, ocasionada pelo erro, ou do teólogo, que não interpretou
corretamente a Scrittura, ou do filósofo natural, que falhou em investigar a
Natura142.

Por que devemos interpretar a Bíblia? Por que a “Palavra de Deus” não é
simplesmente clara e direta, sendo necessária uma exegese?

[...] apenas pelo que diz respeito ao acomodar-se à capacidade de


povos rudes e incultos, a Escritura não se absteve do obscurecimento
de seus próprios dogmas, atribuindo até ao próprio Deus condições
muitíssimos longínquas e contrárias à sua essência143.

Deus comunica aos homens uma verdade que é sempre compatível no nível
de entendimento que a humanidade possui naquele momento histórico.
Ademais, a Scrittura se destina a salvar e guiar espiritualmente a humanidade.
Se, para tanto, for necessário conduzi-lo por meio de um discurso simbólico,
por entre metáforas e alegorias, o Senhor o fará. Sendo assim, as Escrituras,
quando falam da natureza, estão adequadas ao entendimento de cada época e
cultura144. A tese dos dois livros e o princípio de adequação (entre a Palavra de

142
GALILEI, Galileu. Ciência e Fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano
com a Bíblia.São Paulo: Ed. da UNESP, 2009. p. 19.
143
GALILEI, Galileu. Op. cit. p. 20.
144
A verdade, de acordo com Meishu Sama, é eterna, perfeita e imutável, reflexo da perfeição,
eternidade e imutabilidade de Deus. Todavia, sua manifestação no mundo é dinâmica, sendo
passível de evolução, como vemos no texto Religião é Milagre, no qual Meishu Sama afirma
que o Deus Supremo, após manifestar-se na Terra sob diversas formas, revela-se enfim como
Messiah. Por que não fazê-lo antes? Porque o tempo ainda não era próprio, não havia
amadurecido, ou seja, porque o nível de entendimento humano não era adequado para
compreender esta forma de Deus. Meishu Sama, em Doutrina da Igreja Messiânica, afirma
que, para cada época, Deus envia ao mundo um mensageiro e as religiões necessárias, cada

68
Deus e o entendimento histórico) são ideias fundamentais da teologia secular
de Galileu.

Isaac Newton

O Supremo Deus na Philosophiæ Naturalis de Newton

O inglês Isaac Newton (1642-1727) é, talvez, considerado o mais importante


filósofo natural dos primeiros três séculos de ciência moderna embora tais
definições sejam sempre imprecisas. A obra científica mais notável de Newton,
na qual expõe sua teoria da gravitação universal, Philosophiæ
Naturalis Principia Mathematica, Princípios Matemáticos da Filosofia
145
Natural ,revela que ele também foi, além de filósofo natural, um teólogo
secular. A obra divide-se em três livros. O primeiro apresenta os princípios
gerais da dinâmica dos corpos em movimento. Nesse tomo, encontram-se as
chamadas leis do movimento. O segundo livro aborda diversos tópicos de
física, como teoria ondulatória e mecânica dos fluídos. E no terceiro, Newton
aplica aqueles princípios apresentados no primeiro livro à estrutura global do
universo146.

Newton compreende o universo como um sistema profundamente


ordenado. No Principia, o cientista britânico elabora um argumento teleológico,
sustentando que a existência de Deus explica tamanha ordem e beleza que o
mundo expressa. Em um sentido forte, poderíamos dizer que a grande obra de
Newton, além de ser um tratado de física, também o é de teologia natural. No
mínimo, a teologia natural é um elemento fundamental do Philosophiæ
Naturalis Principia Mathematica. Sendo assim, o Principia, mesmo não sendo
um tratado de teologia, é uma obra de física que assume a existência de Deus

qual com sua missão. Os ensinamentos religiosos devem se adequar à época, isto é, ao nível
de compreensão de cada momento histórico.
145
NEWTON, Isaac. Principia: Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Tradução Trieste
Ricci. São Paulo: Nova Stella / EDUSP, 1990.
146
COHEN, Bernard I. O nascimento de uma nova física. Tradução Maria Alice Gomes da
Costa. Lisboa: Gradiva, 1988. p. 190.

69
como condição sine qua non para a compreensão do funcionamento do
universo. Uma obra na qual proposições de física e argumentos de teologia
natural estão intimamente conectados.

Ao analisarmos trechos do Livro III, Parte I, da Óptica, de Newton,


compreendemos a importância do conceito de Deus Supremo em seu
pensamento. Na obra, Newtontrata da natureza da luz e dos fenômenos óticos.
O pensador concebe a natureza como um sistema ordenado, regido por leis
universais. Desse modo, uma questão fundamental se impõe: qual a origem de
“toda aquela ordem e beleza que vemos no mundo?”147. Será fruto do mero
acaso? Newton defende que não seria racional concluir que o mundo se
originou por acaso148. Para Newton, se analisamos a natureza de modo crítico
e meticuloso, concluímos a existência de Deus como o Ser Supremo que
imprimiu ordem ao mundo: um “Ser incorpóreo, vivente, inteligente,
onipresente”, que criou todas as coisas de modo harmônico, belo e
ordenado149.

Trata-se de um argumento teleológico. Geralmente, tais argumentos são


considerados como indutivos. Ora, pela indução, talvez, no máximo, possamos
chegar à universalização da ordem. De n casos particulares de sistemas
ordenados, concluímos que o próprio universo o seja. Mas isso em nada
implica que a causa de tal ordem é a existência de Deus. Como se passa da
universalização da ordem para a assunção de Deus como sua causa? Por
abdução, considerando que tal hipótese explica, com simplicidade lógica, a
ordem manifesta. De D explica P, não extraímos certeza acerca da existência
de Deus, mas concluímos que há uma probabilidade elevada que tal seja o
caso. A cada nova evidência, cada novo fato ou conjunto de fatos cuja hipótese
D é a melhor explicação, a probabilidade que D seja o caso se eleva. É
evidente que Newton não poderia compreender as coisas dessa forma, uma
vez que a abdução seria realmente desenvolvida por Peirce séculos depois.

147
NEWTON, Isaac. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 279.
148
Ibidem.
149
Idem. p. 280.

70
A existência de Deus realmente é um pressuposto metafísico fundamental
na obra científica de Newton150. A partir dela, o filósofo natural sustenta que a
matéria é composta por corpúsculos indestrutíveis e eternos. Ora, se tais
corpúsculos foram criados e unidos por Deus, nada poderia degradá-los ou
separá-los. Newton sustenta ainda que o espaço é infinito e a matéria é finita.
Desse modo, Deus poderia criar matéria livremente, o suficiente para
preencher todo o espaço ou produzir muitos outros mundos espalhados na
vastidão do universo151. Se não o fez, é porque o mundo tal como está é o
melhor possível. O Deus concebido por Newton não é antropomórfico. Deus é
incorpóreo, não tendo necessidade de órgãos sensoriais. Expressões
antropomórficas, como a “visão de Deus” ou “A vontade de Deus”, não revelam
como Deus é, mas apenas o nosso modo precário e limitado de compreendê-
lo.

Em Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, no Livro III, De mundi


systemate, “Sobre o sistema do Mundo”, no Escólio Geral, Newton mais uma
vez concebe Deus como causa de toda ordem e beleza que vemos no
universo: “Este magnífico sistema do sol, planetas e cometas poderia somente
proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso”. Newton
não fala simplesmente de Deus, mas de “Deus Supremo”, “um Ser eterno,
infinito, absolutamente perfeito”; e, tal como Aristóteles, defende que é um ser
vivo, uma vez que é o mais perfeito152.

A filosofia natural de Newton possui alguns pressupostos metafísicos, tais


como a concepção de que Deus Supremo é o princípio organizador do mundo
e a natureza absoluta do espaço e do tempo. Isaac Newton buscou defender a
importância da ciência para a compreensão de Deus. As conquistas da filosofia
natural seriam, portanto, muito importantes para a teologia. A natureza é a
marca de seu Criador. “E dessa forma muito do que concerne a Deus, no que
diz respeito ao discurso sobre ele a partir das aparências das coisas,
certamente pertence à filosofia natural”153. Assim, há certo aspecto da criação

150
Para saber mais, ver BURTT, Edwin Arthur. As bases metafísicas da ciência moderna.
Brasília: Universidade de Brasília, 1983.
151
NEWTON, Isaac. Op. cit. n. 14. p. 269-297.
152
Idem.p. 256.
153
Idem. p. 258.

71
que cabe ao filósofo natural, e não ao religioso ou ao teólogo, explicar. Para
Newton, a ciência também revela Deus. Na medida em que a ciência pode nos
re-ligar ao Deus Supremo, então, em certo aspecto, seria também ela uma
religião ou, ao menos, não nos impulsionaria à experiência religiosa sincera?

SÍNTESE

Galileu e Newton foram filósofos naturais e teólogos seculares. Não que


fossem duas atividades claramente distintas. Pelo contrário, podemos até dizer
que, por terem sido homens de ciência naquele momento histórico,
inevitavelmente estavam envolvidos com questões teológicas. Os casos de
ambos representam o quão íntima e complexa foi a relação inicial entre filosofia
natural e teologia154. Certamente que nos primórdios da ciência houve casos de
conflito (como o julgamento de Galileu) entre teses teológicas, concepções
religiosas e teorias científicas, mas a historiografia contemporânea compreende
que tais casos devem ser analisados particularmente, que são muito
complexos, envolvem uma grande quantidade de variáveis e não representam
de um modo geral as relações entre ciência e religião. Para muitos, o “conflito”,
em sua acepção forte, é apenas um mito, uma invenção do século XIX155. A
interação positiva caracterizou muito mais essa fase. Como já frisamos, a maior
parte dos cientistas durante os séculos XVI e XVII foram guiados por visões e
valores religiosos, se envolveram muito com a teologia natural e foram eles,
mesmos, teólogos seculares.

154
GOLDFARB, José Luiz; GOLDFARB, Ana Maria A. Para além dos conflitos e da harmonia
entre ciência e religião: Os casos de Galileu e de Isaac Newton. In: SOARES, Afonso Maria L.;
PASSOS, João D. (Org.).Teologia e Ciência: diálogos acadêmicos.São Paulo: Paulinas, 2008.
p. 45-61.
155
HARRISON, Peter. Ciência e Religião. Tradução Eduardo R. Cruz. São Paulo: Ideias e
Letras, 2014. p.17.

72
REFERÊNCIAS

BURTT, Edwin Arthur. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília:


Universidade de Brasília, 1983.
COHEN, Bernard I. O nascimento de uma nova física. Tradução Maria Alice
Gomes da Costa. Lisboa: Gradiva, 1988.
FUNKENSTEIN, Amos. Theology and the Scientific Imagination from the Middle
Ages to the Seventeenth Century. Princeton: Princeton University Press, 1986.
GALILEI, Galileu. Il saggiatore. In: REALE, G.; ANTISERI, D. História da
filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990.v. 2. p. 248-290.
GALILEI, Galileu. Ciência e Fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema
copernicano com a Bíblia.São Paulo: Ed. da UNESP, 2009.
GOLDFARB, José Luiz; GOLDFARB, Ana Maria A. Para além dos conflitos e
da harmonia entre ciência e religião: Os casos de Galileu e de Isaac
Newton.In:SOARES, Afonso Maria L.; PASSOS, João D. (Org.).Teologia e
Ciência: diálogos acadêmicos.São Paulo: Paulinas, 2008. p. 43-61.
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis: Ensaio sobre a história da ideia de
natureza.Tradução Mariana Sérvulo. São Paulo: Loyola, 2006.
HARRISON, Peter. Ciência e Religião. Tradução Eduardo R. Cruz. São Paulo:
Ideias e Letras, 2014.
HENRY, John. A religião e a Revolução Científica.In:HARISSON, Peter (Org.).
Ciência e Religião. São Paulo: Ideias e Letras, 2014. p. 59-82.
KOYRÉ, A. Estudos Galilaicos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986.
MIGUEL, Leonardo,R. William Whewell: as motivações e os objetivos de um
filósofo da ciência.In:VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (Org.).Perspectivas
contemporâneas em Filosofia da Ciência. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012. p. 13-
44.
NEWTON, Isaac. Principia: Princípios Matemáticos da Filosofia Natural.
Tradução Trieste Ricci. São Paulo: Nova Stella; EDUSP, 1990.
NEWTON, Isaac. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
TOPHAN, Jonathan R.A teologia natural e as ciências.In: HARISSON, Peter
(Org.). Ciência e Religião. São Paulo: Ideias e Letras, 2014. p.83-107.

73
AULA 7- TEOLOGIA E FÍSICA MODERNA

OBJETIVO

Nesta Aula, buscamos compreender como a discussão acerca da relação entre


ciência e religião, das fontes religiosas da ciência e de suas questões
teológicas está presente na física contemporânea. Como por limitações claras
não será possível estudar os diversos casos de autores, situações, debates e
questões nas quais tal discussão aparece, vamos restringir bastante nosso
objeto de estudo. Com isso, perderemos em amplitude, mas esperamos ganhar
em profundidade.

INTRODUÇÃO

O que chamamos de física moderna começa, grosso modo, na passagem do


século XIX para o século XX, com pensadores como Boltzmann, Helmholtz,
Mach, Ostwald, Hertz, Maxwell e Poincaré, e a partir dos anos 1900 se
consolida por intermédio de nomes como Planck, Louis de Broglie, Einstein,
Lorentz, Bohr, Heisenberg e tantos outros. Paulatinamente, esses pensadores
foram se distanciando da imagem clássica do mundo físico e contribuindo,
cada qual a seu modo e em maior ou menor grau, para a elaboração dos
fundamentos de uma nova física. Nem todos estavam cientes ou desejosos
disso, mas foi o que aconteceu. Muitos desses cientistas refletiram
profundamente acerca da relação entre ciência e religião. Não podemos
estudar todos os casos nesta oportunidade. Sendo assim, nosso estudo de
caso focará na figura emblemática de Max Planck.

Planck e a busca pelo Absoluto

74
O físico e filósofo alemão Max Planck (1858-1947) é considerado o pioneiro da
mecânica quântica156. A escolha por Planck, sendo assim, carrega uma
simbologia muito grande. O cientista alemão inaugura o século e uma nova
física elaborando uma teoria quântica. Terá sido Planck, efetivamente, o último
dos clássicos e o primeiro moderno? Não podemos falar exatamente nesses
termos se encaramos o surgimento da nova física como uma complexa
transição, científica e cultural, que abarcou todos aqueles nomes elencados
anteriormente. Seja como for, Planck é um pioneiro e um caso muito
interessante de se estudar.

Planck concebia a ciência como uma das mais elevadas atividades


humanas. E mesmo dentre estas, a ciência se destaca, pois objetiva a
compreensão daquilo que permanece e que está além do particular; a ciência
se volta para o universal e o eterno em detrimento do relativo: “Sempre
considerei a busca do absoluto a mais nobre tarefa da ciência”157. Esse
absoluto se revela, sobretudo, na constância, invariabilidade e universalidade
das leis naturais. “O absoluto pareceu estar mais profundamente arraigado na
essência das leis naturais do que se pensava”158.

Em certo sentido, podemos conjecturar que as leis naturais159 são aqueles


“entes” que se encontram mais próximos de uma ideia abstrata de Absoluto, ou
Deus, na medida em que são onipotentes e onipresentes. São onipotentes
156
A mecânica quântica trata dos menores constituintes da matéria, as partículas subatômicas.
É a física das menores escalas espaciais: “‘Mecânica quântica’ é a descrição do
comportamento da matéria em todos os seus detalhes e, em particular, dos acontecimentos em
uma escala atômica”. FEYNMAN, Richard. Física em 12 lições. Tradução Ivo Korytowski. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 128. Planck é considerado o pioneiro da mecânica quântica por
ter oferecido uma solução descontínua, ou discreta (quantizável, quantum, do latim,
quantidade), para o problema da radiação de corpo negro em 1900. Para saber mais,
recomendamos uma leitura simples: A catástrofe ultravioleta em POLKINGHORNE, John.
Teoria quântica. Tradução Iuri Abreu. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 18-20. Recomendamos
também OMNÈS, Roland. Filosofia da Ciência Contemporânea. Tradução Roberto Leal
Ferreira. São Paulo: Ed. da Unesp, 1996. p. 166. A descrição de Stephen Hawking da solução
de Planck para a radiação de corpo negro também é muito famosa. Ver HAWKING, Stephen.
Uma nova história do tempo. Tradução Vera de Paula de Assis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
p. 93.
157
PLANCK, Max. Autobiografia científica e outros ensaios. Tradução Estela dos Santos Abreu.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 37.
158
Idem. p. 39.
159
De acordo com alguns autores, a expressão “lei natural” caiu em desuso nos últimos cem
anos. Hoje, fala-se, sobretudo, de leis físicas, ou leis científicas, o que está mais de acordo
com a imagem da ciência como representação do real, e não como explicação. Para saber
mais, ver SERRA, Isabel. As leis da natureza no ensino secundário. Revista da Educação, v.
17, n. 1, p. 107-121, 2010.

75
posto que se impõem a todos os eventos físicos de uma determinada classe, e
onipresentes porque isso é o caso qualquer que seja o rincão do universo.
Evidente que não é usual falar de leis naturais nesses termos, mas é o que
afirmamos quando dizemos que sejam universais: que se aplicam em todos os
momentos do tempo e em todas as coordenadas do espaço – para uma lei
natural, não existe direção espaço-temporal privilegiada160.

Planck enfatizou diversas vezes que concebia que o objetivo da ciência era
tentar superar o relativo embora “não exista conhecimento direto do
absoluto”161 e este se encontre, sempre, para além de nossa compreensão.

Ciência e Metafísica: os pressupostos metafísicos


fundamentais da atividade científica

Planck, como os grandes nomes da ciência, não foi somente um cientista


brilhante, como também um filósofo notável, capaz de refletir criticamente
acerca dos fundamentos de sua própria atividade. De acordo com ele, a
presença da metafísica é inevitável162 para a ciência. Talvez mais do que isso –

160
Em todo lugar, deve ser entendido em “todo lugar que”. Isto é, a lei de refração da luz deve
ser considerada em todo lugar que houver o fenômeno de refração. Em tese, a lei de
gravitação relativística deveria se aplicar em todo lugar que houvesse concentração de massa-
energia. Entretanto, não há uma teoria da gravitação quântica, uma teoria da gravitação para
entes quânticos, embora muitas tentativas venham sendo empreendidas nesse sentido. Isso
quer dizer que a relatividade e a mecânica quântica não se equivalem quando aplicadas às
menores escalas espaciais. Unificá-las é o grande objetivo de boa parte da comunidade
científica atual. Para saber mais sobre teorias de gravitação quântica, ver ABDALLA, Elcio.
Teoria quântica da gravitação: Cordas e Teoria-M.Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 27,
n. 1, p. 147-155, 2005. Para uma abordagem alternativa, ver SMOLIN, Lee. Átomos de Espaço
e de Tempo. In: Paradoxos do Tempo,Scientific American Brasil, São Paulo: Duetto, n. 21,
edição especial, s/d, Para saber mais sobre as tentativas de unificação da relatividade com
mecânica quântica, pode se consultar o clássico SALAM, Abdul; HEISENBERG, Werner;
DIRAC, Paul M. A unificação das forças fundamentais: o grande desafio da física
contemporânea. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993. Para uma abordagem contrária ao ideal de
unificação, ver GLEISER, Marcelo. A criação imperfeita. Rio de Janeiro: Record, 2010.
161
PLANCK, Max. Op. cit. p. 82.
162
Para saber mais acerca da relação entre ciência e metafísica, ver VIDEIRA, Antonio
Augusto Passos. A inevitabilidade da Filosofia na Ciência Natural do século 19: O caso da
física teórica. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2013. Recomendamos também KUHLMANN, Meinard. O que é
Real?Scientific American Brasil, São Paulo: Duetto, n. 51, edição especial, s/d.

76
a metafísica é fundamental, pois oferece à ciência pressupostos que são
condições sine qua non da mesma:

O fundamento e a condição prévia de toda ciência [grifos nossos]


verdadeira e fecunda é a hipótese – indemonstrável em lógica pura,
mas que a lógica também nunca poderá refutar – de que existe um
mundo exterior independente de nós e que podemos conhecer
diretamente por nossos sentidos particulares163.

Como vimos, Planck assume que a ciência de um modo geral está


fundamentada em um pressuposto que não é de natureza lógica, pois não
pode ser provado, tampouco refutado logicamente. Chamamos esse
pressuposto de “princípio de objetivação da realidade”, ou simplesmente de
realismo, de acordo com o qual a realidade existe independente de nós.
Podemos também afirmar que Planck assume tal pressuposto em duas
variações: (I) ontológica e (II) epistemológica. Com (I), afirma-se a existência
objetiva do mundo físico, e com (II), a possibilidade de conhecimento objetivo
deste. Cabe, então, perguntar, o que há no mundo físico, enquanto algo que
nos transcende e que está aí, independente de nós, que torna possível que
esse real possa ser conhecido?164 Ora, se o mundo físico fosse desordenado,
se os fenômenos naturais ocorressem ao acaso, aleatoriamente, sem nenhuma
espécie de fio condutor, sem qualquer padrão, de tal modo que os fatos do
mundo parecessem arbitrários, sem regularidades, a natureza seria
plenamente imprevisível e nenhuma ciência seria possível:

De um lado toda a atividade científica, mesmo que tenha por objeto o


que há de mais elevado no espírito humano, baseia-se num postulado

163
PLANCK, Max. Op. cit. p. 151.
164
Poderíamos apresentar tal questão de muitas formas diferentes. Por exemplo: o que há em
nosso entendimento, ou na relação entre sujeito e objeto, o mundo físico objetivo e o sujeito do
conhecimento, que torna possível conhecer o que quer que seja?

77
indispensável: acima de todo acaso, de arbítrio, existe uma ordem
regida por leis165.

Os pressupostos metafísicos fundamentais da ciência, de acordo com


Planck, poderiam constituir algo como um realismo nomológico, pois defendem
que:

1. O mundo físico existe de modo objetivo.

2. Este mundo é ordenado por leis.

3. Este mundo pode ser conhecido.

Ciência e religião

Planck compreendia uma profunda similitude e mesmo ligação entre as


experiências religiosa, estética e científica166. A perplexidade do religioso
autêntico, ao experimentar o sagrado, o enlevo, o sentimento do sublime e da
graça, e do artista, ao contemplar ou criar beleza, o espanto e a admiração do
homem de ciência diante do universo sem fim e suas leis, convergiu, ou ao
menos nos impulsionaria, numa única direção167. Desse modo, referindo-se a

165
PLANCK, Max. Op. cit. p. 101.
166
Para o físico brasileiro Marcelo Gleiser, o ideal de unificação possui raízes e fortes
implicações religiosas e estéticas: “a crença numa teoria física que propõe uma unificação do
mundo material – um código oculto da Natureza – é a versão científica da crença religiosa na
unidade de todas as coisas. Podemos chamá-la de ‘ciência monoteísta’. Alguns dos maiores
cientistas de todos os tempos, Kepler, Newton, Faraday, Einstein, Heisenberg e Schrödinger,
dentre outros, dedicaram décadas de suas vidas buscando por esse código misterioso, que, se
encontrado, revelaria os grandes mistérios da existência. [...] Ecoando os ensinamentos de
Pitágoras e Platão, essa noção expressa um julgamento estético de que teorias com um alto
grau de simetria matemática são mais belas e que, como escreveu o poeta John Keats em
1819, ‘beleza é verdade’’’. Gleiser defende a necessidade de abdicarmos do ideal de
unificação, notável em toda a história do pensamento racional e marcante na ciência
contemporânea. Para saber mais: GLEISER, Marcelo. A criação imperfeita. Rio de Janeiro:
Record, 2010. p. 2-3.
167
O físico francês Pierre Duhem também concebeu que a “emoção estética” é um dos
principais móveis da ciência: “Junto com a ordem reinante, vem também a beleza. Por
conseguinte, a teoria não se torna somente um conjunto de leis físicas que ela apresenta de

78
homens como Copérnico, Kepler e Newton, Planck destaca que tais valores
estavam presentes em seu trabalho: “O que lhes dava coragem era a fé na
conformidade de suas concepções do Universo com a realidade, e essa fé se
apoiava em bases estéticas ou religiosas”168. Sendo assim, a ciência também
possui um teor confessional. Para Planck, aquele que faz ciência
necessariamente assumiu determinados pressupostos metafísicos que não
podem ser provados ou refutados pela lógica pura; logo, alicerça seu
conhecimento em um tipo de crença: “Para todos esses homens [como Kepler
e Newton], a devoção à ciência era, consciente ou inconscientemente, uma
questão de fé, uma fé serena numa ordem racional do Universo”169.

Essa fé, que poderíamos chamar de realista nomológica, é o que une ciência
e religião. “Ambas dizem que existe uma ordem racional que independe do
homem”170. De certa forma, portanto, o pressuposto metafísico de ordenamento
do real é fundamento tanto da ciência quanto da religião:

Ciência e religião não formam uma antítese. Precisam completar-se em


todo homem que pensa seriamente. Não é por acaso que os maiores
gênios de todos os tempos foram também religiosos embora não
gostassem de se expor publicamente171.

O religioso apreende Deus de modo direto; podemos dizer, experimenta


Deus na própria vida. O cientista chega a Deus pelo estudo da natureza, “parte
dessa ideia inicial na pesquisa indutiva [o estudo da realidade ordenada]” para
que, passo a passo, se aproxime do “objetivo supremo e eternamente
inacessível de sua busca: a ordem do mundo imposta por Deus”172. Eis

forma mais fácil para o manejo, mais cômoda e mais útil, mas ela se torna também mais bela”.
Para Duhem, uma teoria científica é como “uma obra de arte”. DUHEM, Pierre. A Teoria Física:
Seu objeto e sua estrutura. Tradução Rogério Soares da Costa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.
p. 51.
168
PLANK, Max. Op. cit. p. 87.
169
Idem. p. 57.
170
Idem. p. 233.
171
Idem. p. 169.
172
Idem.p. 234.

79
questões de importância radical: qual a causa da ordem do mundo? Porque o
mundo é ordenado? Como explicar o ordenamento da realidade? Para
responder a tais questões, Planckconsidera que ciência e religião estão
assentadas sob o mesmo fundamento, a assunção da existência de Deus
como princípio organizador do mundo: “Religião e ciência natural requerem, em
suas atividades, a crença em Deus. Mas para a primeira, ela é o ponto de
partida, enquanto para a segunda, é o objetivo de todos os processos de
pensamento”173.

Se buscarmos extrair, rigorosamente, o sentido da citação precedente, não


será exagerado defender que Planck não somente negou enfaticamente o
modelo do conflito174, como propôs, ou uma interação forte, ou mesmo a fusão,
em certo nível, entre a ciência e a religião. A tese de fusão ou interação forte
parece clara quando Planck afirma:

Não há contradição entre religião e ciência da natureza. Ao contrário, há


uma concordância total nos pontos decisivos. Religião e ciência não se
excluem como creem ou temem muitos de nossos contemporâneos;
elas se completam e se condicionam mutuamente.

A tese de Planck é forte: ciência e religião concordam totalmente naquilo


que é decisivo; ou, em outras palavras, compartilham um núcleo, ou possuem
um alicerce metafísico comum. A saber:

1. O pressuposto da existência de Deus.

2. O pressuposto de que Deus impõe ordem ao mundo físico objetivo que


pode ser conhecido.

SÍNTESE
173
Ibidem.
174
Ver Aula 2, Modelos de relação entre ciência e religião.

80
Podemos pensar que Planck foi tão importante para a filosofia da ciência, ao
refletir acerca das relações entre física e metafísica, quanto o foi para a física,
ao inaugurar a teoria dos quanta. E porque não afirmar que sua importância se
estende à filosofia da religião e à teologia ao tratar das relações entre ciência e
religião?

Ao assumir que ciência e religião partem dos mesmos pressupostos (os


pontos 1 e 2 já vistos), Planck defende que ambas estão de pleno acordo
quanto ao que realmente importa. Logo, nós podemos deduzir o que não
importa? Para Planck, parece não importar (não ser importante) os aparentes
conflitos entre narrativas religiosas e científicas: se um modelo cosmológico é
mais apropriado que outro, se a vida surgiu abruptamente ou se evoluiu por
seleção natural, se somos plenamente determinados pelas leis da física ou se
dispomos de livre-arbítrio. E porque tais conflitos parecem não importar embora
as questões da origem do universo e da vida e da liberdade sejam
fundamentais? Justamente porque parecem superficiais. Se Deus impõe ordem
ao mundo, essa ordem pode se manifestar de múltiplas formas. O autêntico
homem de ciência, assim como o religioso esclarecido, não permitirá que sua
visão seja dogmática, fechada e definitiva. Pluralista e desbravador, ele
buscará sempre pelo absoluto, mas jamais se ludibriará, pensando tê-lo
conquistado.

REFERÊNCIAS

ABDALLA, Elcio. Teoria quântica da gravitação: Cordas e Teoria-M.Revista


Brasileira de Ensino de Física, v. 27, n. 1, 2005.
DUHEM, Pierre. A Teoria Física: Seu objeto e sua estrutura. Tradução Rogério
Soares da Costa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.
FEYNMAN, Richard. Física em 12 lições. Tradução Ivo Korytowski. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2005.
GLEISER, Marcelo. A criação imperfeita. Rio de Janeiro: Record, 2010.
HAWKING, Stephen. Uma nova história do tempo. Tradução Vera de Paula de
Assis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
81
KUHLMANN, Meinard. O que é Real?Scientific American Brasil, São Paulo:
Duetto,n. 51, edição especial, s/d.
OMNÈS, Roland. Filosofia da Ciência Contemporânea. Tradução Roberto Leal
Ferreira. São Paulo: Ed. daUnesp, 1996.
PLANCK, Max. Autobiografia científica e outros ensaios. Tradução Estela dos
Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
POLKINGHORNE, John. Teoria quântica. Tradução Iuri Abreu. Porto Alegre:
L&PM, 2012.
SALAM, Abdul; HEISENBERG, Werner; DIRAC, Paul M. A unificação das
forças fundamentais: o grande desafio da física contemporânea. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1993.
SERRA, Isabel. As leis da natureza no ensino secundário.Revista da
Educação, v. 17, n. 1, 2010.
SMOLIN, Lee. Átomos de Espaço e de Tempo.In:Paradoxos do Tempo.
Scientific American Brasil, São Paulo: Duetto, n. 21, edição rspecial, s/d.
VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. A inevitabilidade da Filosofia na Ciência
Natural do século 19: O caso da física teórica.Ijuí: Ed. da Unijuí, 2013.

82
AULA 8- FILOSOFIA DA CIÊNCIA E A PRESENÇA DE VALORES
RELIGIOSOS NA PRÁTICA CIENTÍFICA

OBJETIVO

O objetivo desta Aula é apresentar ao estudante um quadro da filofia da ciência


e de suas principais questões e desafios, e abordar a relação entre ciência,
teologia e religião nesse âmbito de estudos.

INTRODUÇÃO

A filosofia da ciência surgiu em meados do século XIX e teve o matemático


britânico William Whewell como pioneiro, o mesmo que cunhou o termo
cientista, que viria, paulatinamente, a substituir a designação de filósofo
natural. Em Whewell, a filosofia da ciência já começa a ser a análise lógica,
metodológica e epistemológica da pesquisa científica, que caracterizaria a
filosofia da ciência do século seguinte, mas também era algo mais: o estudo
dos aspectos morais e psicológicos dos cientistas, o estudo do ethos científico
e um discurso de legitimação e autonomia da ciência175.

De acordo com John Losee, não é nada fácil distinguir entre ciência e
filosofia da ciência, não havendo uma separação nítida entre ambas. Losee
defende que podemos compreender a filosofia da ciência de muitas maneiras e
salienta quatro: (I) como a atividade de produzir concepções de mundo
consistentes e fundamentadas em teorias científicas, de extrair concepções de
mundo por meio de interpretações das teorias; (II) como uma exposição das
pressuposições filosóficas (metafísicas, ontológicas, epistemológicas e lógicas)
dos cientistas; (III) como uma investigação analítica dos conceitos, enunciados
e teorias das ciências; e (IV) como uma ciência da ciência, um pensar acerca

175
MIGUEL, Leonardo,R.William Whewell: as motivações e os objetivos de um filósofo da
ciência. In: VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (Org.). Perspectivas contemporâneas em
Filosofia da Ciência. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012. p. 13-15.

83
da ciência, a análise do método científico, ou, ainda, uma criteriologia de
segunda ordem. Porque segunda ordem? Em um nível 0, teríamos os fatos
puros – os eventos naturais. Em um nível 1, teríamos a Ciência, a investigação
de tais fatos. Em um segundo nível (e ao que parece último, mais elevado ou
fundamental? Ou apenas mais “recuado”?), teríamos a Filosofia da Ciência
como estudo dos procedimentos e da lógica da pesquisa científica176.

Em suma, a filosofia da ciência, praticada por físicos, lógicos, filósofos e


demais homens de ciência é a investigação filosófica acerca dos fundamentos,
dos métodos, das práticas e procedimentos, dos limites, do desenvolvimento
histórico, das instituições, do sistema lógico, da semântica e dos pressupostos
filosóficos da ciência. Não existem unidade e consenso na filosofia da ciência,
aliás, como em qualquer campo do saber. Como sustenta Paul Feyerabend, a
ciência é plural porque trata de uma realidade que é abundante e admite
muitas abordagens177.

ESTRUTURA LÓGICO-MATEMÁTICA DA TEORIA CIENTÍFICA

Já sabemos que é extremamente difícil definir o que é ciência e o que é a


teoria científica. Todavia, apesar da dificuldade, vamos conceber a teoria
científica como um sistema de proposições que busca coordenar logicamente
as leis naturais178 e estabelecer relações formais entre enunciados
matemáticos e fatos naturais179. “Em geral uma teoria se apresenta sob a forma

176
LOOSE, John. Introdução histórica à Filosofia da Ciência. Tradução Boris Cimbleris. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da USP, 1979. p. 12. Na referida obra, Losee adota a
perspectiva IV.
177
FEYERABEND, P. K. La conquista de la abundancia. Traducción Radamés Molina y César
Mora. Barcelona: Paidós, 2001.
178
Extraídas, por indução, dedução ou abdução, da observação do mundo físico.
179
Entre um enunciado matemático e a natureza física fundamental, há uma relação de
identidade, de equivalência, de analogia, de representação, de simbolismo ou de que tipo? Em
filosofia da ciência e filosofia da matemática, podemos dizer que tal questão permanece em
aberto. Para saber mais, recomendamos LIVIO, Mario. Por que a Matemática
funciona?Scientific American Brasil, São Paulo: Duetto, Ano 10, n. 112, p. 76-79, s/d.

84
de uma série de proposições articuladas”180. Nesse sentido, a estrutura da
teoria científica é lógico-matemática: “Qualquer fronteira clara entre a
Matemática e a Ciência não passará, talvez, de fronteira terminológica”181.
Como Einsteinenfatizou, a teoria científica busca compreender os fatos
experimentais, a realidade física, “mas o princípio fundamentalmente criador
está na Matemática”182. Lorentz, Einstein eMinkowski concebiam “uma
harmonia preestabelecida entre a matemática pura e a física”183. Entretanto,
outros cientistas, como Mach, concebiam a matemática “apenas” como um
ótimo instrumento de economia do pensamento, compactando e sintetizando o
conhecimento natural. Já Gustav Magnus combatia o uso da matemática na
ciência, apregoando uma física plenamente prática, experimental:

Magnus, o primeiro físico alemão a organizar um laboratório


universitário bem equipado, desconfiava da Matemática por permitir aos
físicos, recorrendo apenas à razão, tentar descobrir as regularidades
que supostamente existiam na natureza184.

Ora, é altamente desejável que as proposições fundamentais de uma teoria


possuam forte conteúdo empírico. No entanto, em sentido estrito, isso não é
possível. Como vimos, toda teoria possui pressupostos que não podem ser
extraídos da experiência e que pela lógica pura não podem ser considerados
nem verdadeiros nem falsos. São condições de possibilidade da teoria. As
proposições secundárias é que devem estar submetidas logicamente a tais
pressupostos fundamentais. O ponto de partida da teoria, irredutível, deve ser
uma hipótese que transcende a própria ciência: “Uma teoria é um ‘sistema de

180
PLANCK, Max. Autobiografia científica e outros ensaios. Tradução Estela dos Santos Abreu.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 90.
181
LAMBERT, Karel; BRITTAN, Gordon G, Jr. Introdução à Filosofia da Ciência.Tradução
Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 38.
182
EINSTEIN, A. Como eu vejo o mundo. Tradução H. P. de Andrade. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981. p. 150-151.
183
A grande questão é: “em que consiste este preestabelecimento?” Para saber mais, ver:
LORENTZ, Hendrik, A.; EINSTEIN, Albert; MINKOWSKI, Hermann. O princípio da relatividade.
Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2001. v. 1, p. 114.
184
VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. A Inevitabilidade da Filosofia na Ciência Natural do
século 19. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2013.p. 195-196.

85
pensamento’ que baseia-se logicamente em um pequeno número de
suposições fundamentais”185. Por isso, a teoria científica possui, ipso facto,
uma natureza hipotética186. Nas palavras de Einstein: “Toda teoria é
especulativa”187.

A importância da livre invenção do espírito por meio de hipóteses também foi


destacada por Henri Poincaré188. A elaboração de hipóteses não é somente
inevitável, como também desejável189. Evidentemente, a concordância com os
fatos observados e a capacidade de prever fatos novos nos guia na escolha
das melhores hipóteses. Desse maneira, embora a ciência pressuponha a
profunda relação e colaboração entre a elaboração de teorias e a prática
experimental, de certo modo, a teoria sempre antecipa a experiência. A
experiência pura não é possível.

QUAL A NATUREZA DOS ENUNCIADOS CIENTÍFICOS? COMO


DISTINGUIR CIÊNCIA E PSEUDOCIÊNCIA?

A questão da demarcação entre ciência autêntica e falsas ciências, ou não-


ciências, perturbou muitos estudiosos da área. Será possível estabelecer
critérios claros, seguros e inequívocos que nos permitam definir o que é
ciência?190 Por limitações inerentes ao tempo de curso e à extensão do
material, vamos nos restringir a apresentar os critérios de verificabilidade e de
falseabilidade.

185
EINSTEIN, Albert. A Teoria da Relatividade Especial e Geral. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012. p. 101-102.
186
Tomamos o termo hipótese em seu sentido mais amplo: do grego hypodebaixo e thesistese.
A hipótese, portanto, é o que sustenta, que está na base, o princípio de sustentação,
fundamento, “ponto de partida” – aquilo que se autojustifica ou se autoimpõe para justificar a
teoria sustentada.
187
EINSTEIN, Albert. Sobre a teoria geral da gravitação.São Paulo: Duetto, 2010. (Prêmios
Nobel na Scientific American), p.21. Ver Adendo1.
188
POINCARÉ,Henri. A Ciência e a Hipótese. 2. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1984.
189
Ver BOTTAZZINI, Umberto. O papel da hipótese na ciência. Scientific American Brasil, São
Paulo: Duetto, s/d. (Gênios da Ciência n. 12: A vanguarda matemática e os limites da razão). p.
9-19.
190
Para saber acerca do critério operacional, recomendamos LOSEE, John. Op. cit. p. 190-194.

86
Verificação

Influenciados pelo positivismo de Ernst Mach, o qual considerava que somente


aquilo que pudesse ser observado poderia ser dito real, cientistas como Moritz
Schilick, Rudolf Carnap e Otto Neurath nutriram uma posição neopositivista e
formaram o chamado Círculo de Viena. Reichenbach e Hempel, seguindo a
mesma linha, participaram do chamado empirismo lógico. O neopositivismo
buscava expurgar a metafísica da ciência. As proposições metafísicas foram
consideradas non sense, sem sentido empírico. Tal fato muito deve à influência
do Tractatus Logico-Philosophicus,de Ludwig Wittgenstein, no qual tal noção
fica patente191.

Os positivistas pensavam que a linguagem da ciência deveria ser


empiricista, sem noções que remetessem a pressupostos metafísicos.
Desenvolveram, então, o critério de verificação. Um enunciado empiricamente
significativo é aquele que pode ser verificado fisicamente. Não aquele que foi
verificado, mas que goza da possibilidade de sê-lo192.

Um problema para o critério de verificabilidade é a possível existência de


teorias científicas que se apoiem inteiramente no formalismo matemático, não
admitindo nenhuma abordagem experimental, não porque uma verificação
experimental hoje não seja possível, mas porque, de acordo com a própria
teoria, nunca será. Para citar um único exemplo, no capítulo em que tratamos
das relações entre Teologia da Criação e Cosmologia, vimos que podemos
definir que a singularidade inicial possui determinadas propriedades quaisquer,
p. ex.S(a¹x, a²x, a³x), mas que nunca poderemos verificá-las
empiricamente.Estarão os cosmólogos defensores de modelos singulares
dispostos a conceder que, no fundo, o que fazem não é ciência?

Outra dificuldade que se impõe ao neopositivismo é a inevitabilidade da


metafísica. Inevitabilidade tal que, de acordo com Karl-Otto Apel, o próprio
positivismo lógico possuiria pressupostos metafísicos. De acordo com Apel, a

191
WITTGENSTEIN, Ludwig. TractatusLogico-Philosophicus. Tradução José Artur Giannotti.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. p. 129. 6.53-54.
192
SCHILICK, Moritiz; CARNAP, Rudolf. Sentido e Verificação. Tradução Luiz João Barauna e
Pablo Rubens Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção Os Pensadores). p. 88.

87
Logic of Science neopositivista estava assentada em pressupostos
transcendentais, tais como: (i) a pressuposição da validade da lógica formal e
(ii) a pressuposição de que a ciência deve se ocupar somente dos fatos
assume que existem fatos empíricos objetivos, o que, por mais evidente que
pareça ser, em última instância, se analisado rigorosamente, não pode ser nem
provado nem refutado, sendo, portanto, uma suposição metafísica
fundamental.

Falseabilidade

Outro critério tradicional de demarcação foi elaborado por Karl Popper. “De
acordo com Popper, o método empírico correto consiste em expor
constantemente uma interpretação à possibilidade de ser falsificada”193. Um
enunciado é autenticamente científico quando é falsificável. Não quando é
falsificado, mas quando pode ser falsificado. Ou seja, quando um teste é
possível, quando as condições para o teste não são inexequíveis: “Todo teste
genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar
uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa”194.

Popper empreendeu uma severa crítica ao critério neopositivista de


verificação. As teorias nunca são empiricamente verificáveis. Não se pode
verificar um enunciado universal. Tudo o que se pode fazer é verificar fatos
singulares. Para Popper, a passagem indutiva de uma coleção de fatos
singulares à formulação de uma lei universal é logicamente inconsistente.
Sendo assim, Popper sugere o abandono do critério proposto por Schilick e
outros:

[...] certamente admitirei um sistema como empírico ou científico


somente se ele for suscetível de ser testado pela experiência. Estas
considerações sugerem que se deve considerar como critério de

193
LOSEE, John. Op. cit. p. 201.
194
POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Brasília: Ed. da UnB. 1980. p. 4.

88
demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um
sistema195.

O critério de falseabilidade recebeu duras críticas de Thomas S. Kuhn196, de


acordo com o qual Popper ignorou como a ciência realmente é praticada,
salientando que trabalhar nas teorias que foram reprovadas nos testes,
buscando aperfeiçoá-las, fazendo os reparos devidos, preparando-as para
novos testes nos quais possam ser bem-sucedidas, é justamente o que os
cientistas fazem197. A falseabilidade não demarca o que é ciência e o que é
pseudociência. Ela pode guiar um cientista dentro de um paradigma expondo o
que deve ser aprimorado em determinada teoria198.

Enfim, a questão da demarcação é de grande importância não somente


epistêmica, como também social, cultural, política e econômica. Quem faz
ciência? Quem fala pela e da ciência e é ouvido? Em quais projetos devemos
investir? Quais são estratégicos? Que institutos fundar ou financiar? Quais são
as pesquisas prioritárias? Se, além disso, pensamos como Poincaré, Planck,
Einstein e tantos outros que a ciência é a busca por compreensão da
verdade199, então traçar uma distinção entre ciência e pseudociência se revela
uma questão filosófica capital.

Os Science Studies

195
POPPER, Karl. A lógica da investigação científica. Tradução Pablo Rubén Mariconda e
Paulo de Almeida. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).p. 14.
196
Para saber mais acerca do debate Popper-Kuhn e da posição de Lakato acerca do mesmo,
ver LAKATO, Imre. História da Ciência e suas Reconstruções Racionais. Lisboa: Edições 70,
1998. p. 11-20.
197
KUHN, Thomas. S. Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa. In: LAKATOS, I.;
MUSGRAVE, A. (Org.). A Crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix,
EDUSP, 1979.p. 5-32.
198
VILLANI, Alberto. Filosofia da Ciência e Ensino de Ciência: Uma analogia.Ciência&
Educação, v.7, n.2, p.169-181, 2001.
199
Uma questão desconcertante se impõe: o que é a verdade? É possível elaborar um conceito
científico de verdade que transcenda o pluralismo? Para explorar tal questão, sugerimos a
leitura do artigo de nossa autoria “Os limites da explicação científica e nossas concepções de
mundo”,publicado pela Saberes em Ação, Ano 2, v. 3. Disponível em:
<http://www.faculdademessianica.edu.br/saberes/index.php/saberes/issue/view/11/showToc>.

89
Em reação à filosofia da ciência prescritiva e convencional praticada ao longo
do século XX, um campo de investigação da interface ciência-tecnologia-
política-sociedade, chamado de sciencestudies, surgiu como alternativa aos
estudos da ciência. Nomes como Bruno Latour, Andrew Pickering e Timothy
Lenoir defenderam a necessidade de estudar a real prática científica,
compreendendo-a como parte da cultura, uma prática experimental,
institucional, influenciada por aspectos sociais, econômicos e culturais.
Enquanto a filosofia da ciência tradicional buscaria dizer como a ciência deve
ser ou qual a ciência ideal, os science studies tencionariam responder como a
ciência de fato é.

Peter Galison, físico e historiador da ciência, é um dos principais nomes dos


science studies. Galison defende que compreender como a ciência é produzida
exige estudarmos onde ela é feita e quando é feita; ou seja, o cotidiano dos
laboratórios e demais espaços de produção científica. André Luís de Oliveira
Mendonçaesclarece que essa área de investigação da ciência busca entender
como a ciência “realmente é praticada”, sendo uma atividade que considera
imprescindível a análise dos aspectos políticos, históricos, sociais,
institucionais e epistêmicos da ciência200. As características fundamentais da
concepção de ciência dos science studies são: o foco na prática experimental
e, consequentemente, a assunção do laboratório como o lugar da ciência201.

Os sciencestudies,por pensarem a ciência como parte da cultura,


influenciada por aspectos extraepistêmicos, ao que parece, podem nos
oferecer a abertura para a compreensão da relevância da teologia e da religião
na prática científica, seja por que devemos ter em conta a influência de valores
teológico-religiosos na forma de pensar, de agir e de trabalhar daquele que
pratica ciência, ou porque precisamos atentar para o fato de que alguns
ambientes institucionais apresentam imbricações entre ciência e religião. Uma

200
MENDONÇA, André. Filosofia da Ciência e Science Studies: A guerra pela paz. In:
VIDEIRA, Antonio Augusto Passos (Org.). Perspectivas Contemporâneas em Filosofia da
Ciência. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.p. 165-184.
201
Antonio Augusto Passos Videiranos chama a atenção para o fato de que na segunda metade
do século XX “generalizou-se o pensamento” de que a ciência seria motivada por outros
interesses, e não somente aqueles “relacionados com o conhecimento da natureza e com o
bem-estar da humanidade”. VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Historiografia e História da
Ciência.Escritos: Revista da Casa de Rui Barbosa, Ano 1, n.1, 2007. p. 117. Sendo assim, os
aspectos extraepistêmicos da ciência devem ser levados em conta.

90
vez que muitas universidades, observatórios e laboratórios científicos
pertencem a instituições religiosas, cabe perguntar se determinados valores
religiosos, nesses casos, estão presentes no cotidiano do profissional de
ciência, se estes se fazem sentir de alguma forma, se exercem alguma
influência, pressão ou motivação. Não em tese, mas na prática, universidades,
institutos de pesquisa e laboratórios são religiosamente neutros?

A PRESENÇA DE ASPECTOS E VALORES RELIGIOSOS NA


CIÊNCIA COMO OBJETO DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA

Sem dúvida, uma importante questão em filosofia da ciência é saber quais


fatores influenciam a prática científica. Roberto de Andrade Martins nos lembra
de que, na atualidade, a maior parte dos filósofos e historiadores da ciência
concorda que “o raciocínio científico é influenciado por fatores sociais, morais,
espirituais e culturais”202. Sendo assim, podemos conceber que conhecimentos
teológicos e sentimentos religiosos fazem parte do mundo científico na medida
em que exercem influência na prática científica de muitos estudiosos. Podemos
perguntar, por exemplo, em qual grau, consciente ou inconsciente, a busca por
unificação na física não possui traços religiosos monoteístas, bem como o
pressuposto de ordenamento da realidade, como já enfatizamos.

Holton defendeu que o trabalho científico final – publicado ou não – se


relaciona com os demais aspectos, como o contexto histórico, o meio social e
cultural203. A religião é parte profunda e considerável da cultura. Se o trabalho
científico deve ser entendido em sua relação com a cultura, então certa troca
de influências entre religião e ciência é inevitável. Ao investigarmos a ciência,
ignorarmos a possível presença e implicação de ideias teológicas e ideais
religiosos seria um preconceito injustificável, uma posição ingênua e
insustentável de acordo com a filosofia e a história da ciência que praticamos
hoje.
202
MARTINS, Roberto A. Hipóteses e interpretação experimental: a conjetura de Poincaré e a
descoberta da hiperfosforescência por Becquerel e Thompson.Ciência&Educação, v. 10, n. 3,
p. 501-516, 2004.p. 502.
203
HOLTON, Gerald. The Scientific Imagination: Cases Studies. Cambridge: Cambridge
University Press, 1978. p. viii.

91
SÍNTESE

Como vimos, a filosofia da ciência é o estudo crítico, analítico, podemos dizer,


científico da própria ciência. Os filósofos da ciência podem ser filósofos ou
cientistas de quaisquer áreas. Muitos dos maiores nomes desse campo no
século XX foram físicos, matemáticos, químicos etc. Acreditamos que a filosofia
da ciência deve ser plural e complexa, e buscar uma abordagem que se
aproxime da tradicional, não abdicando de pensar como a ciência deve ser,
qual ciência queremos, enfim, buscando um ideal de ciência. Para tanto, afim
de que tal atividade não perca o contato com a vida prática e para que o ideal
de ciência seja sensato, ele deve ser erguido a partir da ciência factual. A
filosofia da ciência deve buscar compreender a ciência como ela é,
investigando a prática cotidiana, real, institucional, da ciência. Por meio dessa
abordagem, a filosofia da ciência não pode prescindir de ter a relação entre
ciência, teologia e religião como objeto de estudo que merece grande atenção.

Adendo 1: Ciência e Hipótese

A despeito das posições de Planck e Einstein, não há consenso em relação ao


caráter hipotético da teoria científica. É possível, ainda, reverberar as palavras
de Newton, de acordo com o qual na filosofia natural não se deve inventar
hipóteses, mas partir de evidências empíricas seguras204. Todavia, apesar do
aparente “veto newtoniano”, vimos como a física de Newton estava assentada
em pressupostos metafísicos fundamentais e como se valeu de hipóteses. O
que Newton realmente entendia por hipótese? Não é uma tarefa simples
responder a tal questão. Raquel Anna Sapunaru lembra que, “segundo o
epistemólogo (Landau), Newton não deixou claro o que quis dizer com ‘não
invento hipóteses’ e o que seria ‘deduzir’ ou ‘induzir’ leis de fenômenos
naturais”. Sapunaru também enfatiza que o próprio Newton reservou às
hipóteses uma importante função em sua filosofia natural. Citando Newton:

204
Para ler a concepção de Newton quanto ao uso de hipóteses na filosofia natural, ver
NEWTON, Isaac. The Principia: Mathematical Principles of Natural Philosophy.Tradução I.B.
Cohen e A. Whitman. Berkeley: University of California Press, 1999. p. 943.

92
Pois o melhor e mais seguro método de filosofar parece consistir,
primeiramente, em investigar com diligência as propriedades das coisas
e estabelecer essas propriedades através de experimentos, e, depois,
em proceder a hipóteses para a explicação das coisas em si205.

Adendo 2: Consistência e simplicidade lógica

Muitos estudiosos se colocaram as perguntas: “Entre duas hipóteses,


interpretações ou teorias igualmente condizentes com os fatos, qual escolher?
Quais critérios adotar?” É uma questão tradicional e recorrente em filosofia da
ciência, com raízes no princípio de economia de Ernest Mach. Na realidade,
séculos antes de Mach, o medieval Guilherme de Ockham levantou o
problema. Para Ockham, devemos optar pela tese mais econômica, ou mais
simples, com menor número de hipóteses e pressuposições adicionais. O
trecho a seguir, de Einstein, demonstra como o critério filosófico de
simplicidade esteve presente na construção da física relativística:

Contudo, à medida que aumenta a profundidade do nosso


conhecimento, temos de desistir desta vantagem [a proximidade das
teorias com o campo da experiência] na busca por simplicidade lógica e
uniformidade nos fundamentos da teoria física. É preciso admitir que a
relatividade geral foi além das teorias físicas anteriores no abandono da
‘proximidade da experiência’ de conceitos fundamentais a fim de obter
simplicidade lógica. [...] Na teoria generalizada, deduzir de suas
premissas conclusões que possam ser confrontadas com dados
empíricos é tão difícil que até agora não se obteve nenhum resultado. A
favor dessa teoria estão, a esta altura, sua simplicidade lógica e sua

205
Ver SAPUNARU, Raquel A. A Construção lógica do “Estilo Newtoniano”. Ciênc. educ.
[online], Bauru, v.14, n.1, p. 55-66, 2008. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1516-
73132008000100004>. Acesso em: 26 maio 2014.

93
‘rigidez’. Rigidez significa aqui que a teoria é verdadeira ou falsa, mas
não modificável206.

Adendo 3: Ciência e interpretação

Não é possível compreender a ciência sem conceber seus pressupostos,


implicações, compromissos e influências filosóficas, como afirma Dahmen207:

[...]todo cientista, consciente ou inconscientemente, nutre posturas


filosóficas [grifo nosso]. Podemos ir até mais longe e dizer que todo
cientista necessita de uma filosofia se quiser deixar de ser apenas um
descobridor e acumulador de fatos para ser um gerador de ideias.
Einstein e Gödel não apenas nutriam posturas filosóficas como fizeram
de maneira consciente, propugnando a importância do filosofar para as
ciências e buscando no questionar filosófico, inspiração para seus
trabalhos.

Na questão da interpretação das teorias científicas, a imbricação entre filosofia


e ciência é evidente:

Dado que a ciência diz respeito ao mundo exterior, as teorias científicas


hão de envolver não apenas interpretações matemáticas, mas também
interpretações factuais [...]. Cada teoria científica, em nossos tempos,
merecedora desse nome, inclui um formalismo de cunho matemático.
[...] Apenas uns poucos estudiosos sustentam a concepção mágica de

206
EINSTEIN, Albert. Op. cit. p. 22.
207
DAHMEN, Sílvio R. O Cientista Filósofo.Filosofia Ciência & Vida, 2006. Disponível em:
<http://www.if.ufrgs.br/~dahmen/cientfilo.pdf>. Acesso em: 4jan. 2013.

94
que um formalismo matemático traz consigo a sua própria
208
interpretação .

Toda teoria deve ser interpretada. Sem interpretação, uma teoria é um conjunto
de proposições logicamente coordenadas. Quando interpretada, de tal conjunto
se extrai uma imagem da natureza, um modelo, uma representação, uma
concepção de mundo.

REFERÊNCIAS

BOTTAZZINI, Umberto. O papel da hipótese na ciência.Scientific American


Brasil,São Paulo: Duetto, s/d.(Gênios da Ciência n. 12: A vanguarda
matemática e os limites da razão).
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Hegenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: EPU/EDUSP, 1976. v. 2.
DAHMEN, Sílvio R. O Cientista Filósofo.Filosofia Ciência & Vida, 2006.
Disponível em: <http://www.if.ufrgs.br/~dahmen/cientfilo.pdf>. Acesso em: 4jan.
2013.
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Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
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(Prêmios Nobel na Scientific American).
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FEYERABEND, P. K. La conquista de la abundancia. Traducción Radamés
Molina y César Mora. Barcelona: Paidós, 2001.
HOLTON, Gerald. The Scientific Imagination: Cases Studies. Cambridge:
Cambridge University Press, 1978.

208
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Octanny S. da Mota. São Paulo: EPU/EDUSP, 1976. v. 2, p. 13-17.

95
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LAKATO, I.;MUSGRAVE, A. (Org.). A Crítica e o desenvolvimento do
conhecimento. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1979.p. 5-32.
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Edições 70, 1998.
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Poincaré e a descoberta da hiperfosforescência por Becquerel e
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Mariconda e Paulo de Almeida. São Paulo: Abril Cultural, 1980a. (Coleção Os
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<http://dx.doi.org/10.1590/S1516-73132008000100004>.Acesso em:11 maio
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WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução José Artur
Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

97
AULA 9-TEOLOGIA E CIÊNCIA DO FUTURO

OBJETIVO

O objetivo desta Aula é explorar os novos avanços científicos e as inovações


da alta tecnologia em áreas como ciência da computação, robótica e
neurociência, buscando salientar a emergência de questões teológicas a partir
da pesquisa em tais campos.

INTRODUÇÃO

Como vimos em Aulas anteriores, a discussão acerca das possibilidades de


uma teoria física total está em aberto. Participam do debate nomes como
Steven Weinberg209, Pierre Auger210 e Stephen Hawking211, entre outros. A
obtenção de uma teoria que unifique a mecânica quântica e a relatividade,
portanto, as quatro forças fundamentais, não seria o fim da história. Poderia
ser, quiçá, seu começo. Utilizar tal teoria para compreender os mais complexos
e variados fenômenos físicos, explorar os rincões do universo, gerar, a partir da
ciência pura, aplicações que solucionassem nossos mais cruéis problemas. Eis
alguns poucos dos inumeráveis desafios que permaneceriam abertos à nossa
frente. Além disso, questões filosóficas e teológicas fundamentais
permaneceriam reverberando. Como a ciência do futuro e a teologia do futuro
se relacionariam em um cenário de hiperdesenvolvimento científico?

Tanto na ciência quanto na ficção científica de qualidade, a questão de uma


civilização científica que alcançou um progresso fantástico é recorrente. Em
Nova Atlântida, o filósofo natural Francis Bacon narra uma civilização científica
ideal, que compreendeu a natureza a tal ponto que a controla totalmente. A
base do estado e da vida pública é a Casa de Salomão, onde os homens de
ciência buscam a compreensão e a dominação da natureza. Como

209
Ver Aula 5.
210
Idem.
211
Idem.

98
consequência do conhecimento científico, a sociedade é capaz de fantásticas
inovações tecnológicas.

A civilização científica descrita por Bacon não é, ao menos necessariamente,


antirreligiosa, uma vez que o próprio filósofo natural era religioso. Bacon revela
ser um homem de fé e, de modo algum, lhe parece contraditório ser um homem
de ciência e de fé. Antes disso, a razão reforça a fé. O conhecimento científico
possui um objetivo religioso, pois, ao compreender a natureza, a criatura se
aproxima de seu Criador. Já a civilização científica descrita por Aldous Huxley
em Admirável Mundo Novo212, que também controlaria a natureza, inclusive a
humana, por meio da genética, seria uma sociedade que superou a ética
religiosa, pautando-se por princípios sumamente “racionais”. Seja como for o
futuro da humanidade e a ciência do futuro, o desenvolvimento de inovações
tecnológicas e de novas ciências, como a engenharia genética, a biologia
molecular, a física nuclear, a robótica, as ciências da computação e a
inteligência artificial, abrem novos campos de possibilidades para a
humanidade e levantam reflexões éticas, filosóficas e teológicas sérias. Ao
pensarmos na ciência do futuro, percebemos que outras questões
complementares surgem: qual o futuro da religião? E qual a religião do futuro?

CIBERNÉTICA
A conexão da humanidade em uma rede mundial de computadores,
compartilhando informações, criando sociedades virtuais, as redes sociais, e
proporcionando a milhares de pessoas, ou a milhões, uma dupla vida, entre o
mundo material carnal e o mundo digital cibernético, é algo que já marca a
civilização do presente e, ao que tudo indica, marcará muito mais as gerações
futuras. Essa nova forma de estar no mundo pode modificar bastante o modo
como nos relacionamos com o sagrado. Para Eduardo R. Cruz: “De fato o
advento da web e o desenvolvimento da robótica tem levantado todo um novo

212
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Tradução Vidal de Oliveira; Lino Vallandro. Porto
Alegre: Globo, 1977.

99
espectro de questões teológicas e filosóficas, muitas delas apontadas pela
ficção científica”213.

Não é provável que em um futuro próximo a ciber-religião substitua a


religião, sua presença física, seu corpo institucional. Talvez, isso nunca venha
a acontecer. Mas, de todo modo, o crescimento dessa ciber-religião vem
ocorrendo, e tal expansão permanecerá ao que tudo indica. Se a “cultura
virtual” veio para ficar, e a religiosidade é um fenômeno cultural basilar, então
podemos esperar que o fenômeno religioso virtual torne-se parte constitutiva da
civilização futura.

Mas, antes de tudo, é preciso perguntar: “Como definir a ciber-religião?”


Aguiar nos lembra de que os estudiosos do tema consideram-no muito amplo e
complexo, de modo que carecemos de uma única e precisa definição214. De um
modo geral, a ciber-religião pode ser tanto a presença de uma religião
tradicional, “física”, na “rede”, quanto a existência de religiões exclusivamente
virtuais, cujo único espaço oficial é o próprio ciberespaço. Nesse último caso,
um site, jogo ou rede social, por exemplo, não são apenas instrumentos
institucionais úteis, mas a seara mesma de uma nova percepção de si e do
mundo – em alguns casos radicais, pode haver uma transvaloração total: é
como se o ciberespaço fosse a realidade propriamente dita, proporcionando-
nos novas experiências do sagrado e perspectivas de salvação.

Os nomes que figuram no léxico da interface teologia-ciência incluem termos


como “ciberespiritualidade”, “tecnognose” e “tecnorreligiosidade”. Na
“ciberespiritualidade”, o mundo virtual pode ser compreendido como um novo
espaço de transcendência e experiência do sagrado215, com muitos mundos e
níveis de realidades interconectados formando uma hiperestrutura ontológica –
uma nova criação! Nessa perspectiva, o ciberespaço é mítico e místico: nele, a
informação pura supera o mundo da matéria, a experiência do corpo físico

213
CRUZ, Eduardo R. Cientistas como teólogos e teólogos como cientistas.In PASSOS, João
Décio; SOARES, Afonso Maria Ligorio (Org.). Teologia e Ciência: Diálogos acadêmicos em
busca do saber. São Paulo: Educ/Paulinas, 2008.p. 188.
214
AGUIAR, Carlos Eduardo S. A Sacralidade digital: a mística tecnológica e a presença do
sagrado na rede. 2010. Dissertação (Mestrado)-Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
p. 229.
215
Ibidem.

100
carnal é suplantada por um novo modo de ser cibernético216. Como cientistas,
avatares, hackers ou simples usuários, podemos criar, cocriar, manter, destruir,
superar ou expandir níveis de realidade. A busca teológica pelas questões
fundamentais pode encontrar no ciberespaço o “espaço” próprio para o debate
e a pesquisa; por outro lado, por mais contraditório, ou mesmo fugaz que
pareça, nas sociedades futuras, o ciberespaço pode se tornar o “lugar” mesmo
da experiência religiosa.

IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS DA CIÊNCIA DO FUTURO

Alcançando a grande unificação da física, ou desenvolvendo abordagens


científicas opcionais, criando uma civilização científica com um
desenvolvimento tecnológico muito superior ao atual, novas perspectivas
teológicas se abrirão. Nesse sentido, assumimos que, embora a teologia trate
do absoluto, do universal e do eterno, enquanto empreendimento humano, ela
encontra-se limitada ao tempo histórico, ao contexto cultural do espaço
geográfico, dialogando de modo dinâmico com sua época e se transformando
no tempo. Uma nova civilização fomentará novas abordagens teológicas, que
ecoem os problemas de seu momento. Podemos imaginar que a questão da
criação da vida será intensamente discutida: “Nas próximas centenas de anos,
a engenharia genética humana poderá substituir a evolução biológica,
reprojetando a raça humana e levantando questões éticas totalmente novas”217.

Embora Hawking se atenha à Ética, não é difícil entender que seu


prognóstico toca em importante tema teológico: o poder da criação. Como
interpretar, teologicamente, a ação criadora humana, que, tal como defendera
Bacon, é capaz de interferir, modificar e “reprojetar” a natureza e a própria
vida? Será falta grave humana, pecado, na linguagem religiosa cristã, soberba,
transgressão às leis naturais? Ou será próprio da condição humana, de sua

216
Ver FELINTO, Erick. A religião das máquinas: Ensaio sobre o imaginário da cibercultura.
Porto Alegre: Sulina, 2005.
217
HAWKING, Stephen. O Universo numa casca de noz. Tradução Ivo Korytowski. São
Paulo:Arx, 2001. p. 170.

101
dignidade, de sua natureza, assemelhar-se ao Criador manifestando o poder
humano de criação? Quais serão os limites de tal poder?

Mensurando a possível extensão do futuro

MikioKaku lembra que nossa civilização ainda pode estar vivendo seus
primeiros momentos de vida218. Para tanto, apresenta-nos a classificação de
civilizações do astrônomo soviético Nikolai Kardashev. De acordo com
Kardashev, podemos pensar em civilizações tipo 0, I, II e III. As civilizações tipo
0 são aquelas que estão apenas no início da exploração energética,
dependendo de combustíveis fósseis e outras matrizes energéticas em estado
embrionário. Nossa civilização atual é desse tipo. Sendo assim, somos uma
civilização “infantil”, em seus primórdios. Uma civilização tipo I é capaz de
utilizar toda a potência energética de seu planeta – realmente, estamos longe
disso. Uma civilização II pode usar toda a potência energética de sua estrela e
civilizações do tipo III explorariam toda a energia de uma galáxia. Não
queremos aqui nos comprometer com a correção, nem mesmo com a
coerência da classificação proposta. Todavia, ela nos serve para mostrar que,
a partir de determinados pontos de vista, nossa civilização, que parece tão
desenvolvida e majestosa, é, sob o escrutínio de outras abordagens, uma
protocivilização, algo que está, em sentido radical, sem seus instantes iniciais.

A abordagem de Kaku condiz com a narrativa proposta pelo cientista


computacional brasileiro Silvio Meira219. Meira lembra que, se assumirmos que
a humanidade perdurará por 1 milhão de anos (o que Meira considera que
seria um imenso caso de sucesso), isso significaria que a história “nem
começou”. Pensemos que a cultura humana possui 10.000 anos. Se vivermos
1 milhão de anos, então esses dez mil anos de cultura representam 1% da

218
KAKU, Michio. Hiperespaço. Tradução Maria Luiza X. de A Borges. Rio de Janeiro: Rocco,
2000. p. 300.
219
MEIRA, Silvio. Entrevista de Silvio Meira à Roberto D’Avila. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=zS_m9Kpgl_M>.Acesso em: 20 jun. 2014.

102
história. Se tomarmos o início da filosofia, aproximadamente 2.500 anos atrás,
como um marco no qual se encontram as raízes da ciência ocidental, então
teremos de admitir que a “humanidade científica” representa 0,2% da história.
Se nosso marco (arbitrário, como os demais, logo, tomado somente a título de
exemplo) for o desenvolvimento da nova física, e elegermos simbolicamente o
ano de 1900, então a nossa civilização representa 0,01% de tudo o que
viveremos em 1 milhão de anos. Mas por que 1 milhão de anos? E se 1 milhão
for só o começo?

A visão de que ainda estamos no alvorecer da civilização traz implicações


filosóficas e teológicas profundas. Ora, se mesmo em nossos momentos
iniciais fomos capazes de “tanto”, geramos energia nuclear, enviamos sondas
ao espaço, observamos com o Hubble as galáxias mais distantes, e com
nossos aceleradores de partículas, as ínfimas estruturas da matéria, e “tudo”
isso ocorreu em 1%, 0,1% ou 0,01% do que viveremos (depende do marco
arbitrário que assumirmos), o que não faremos no futuro? As fronteiras da
experiência humana poderão se alargar imensamente, o lugar da humanidade
no cosmos pode ser modificado e conceitos como “vida”, “morte” e
“consciência” poderão ser completamente ampliados ou mesmo repensados?

Com o desenvolvimento de novas ciências e tecnologias, problemas


teológicos até então inimagináveis poderão ser postos. Por exemplo, as
implicações teológicas da ciência do futuro podem ser flagrantes em
determinadas discussões de ciência da computação. Será possível fazer
upload da consciência para um sistema informacional após a falência do corpo
físico? Se for o caso, não deveríamos admitir que a pessoa permanecesse
viva? Sua vida, agora, não se daria em outro nível, sem as limitações do
corpo? Se, além disso, fosse feito um download dessa consciência para um
sistema robótico, isso não seria sua rematerialização? E se ao invés de um
sistema robótico, fosse um sistema orgânico, como um clone do próprio
indivíduo? Devemos lembrar que os obstáculos atuais à clonagem são muito
mais éticos do que científicos e técnicos; logo, em sentido lógico, a
possibilidade aventada é perfeitamente plausível.

103
O que estou propondo são experiências de pensamento,
Gedankenexperiment, sem a variável da moralidade, a não ser se correlata a
argumentos teológicos. Se (e entender este se, a natureza hipotética da
condicionalidade é fundamental), se tais cenários viessem a se confirmar, e
são logicamente consistentes e, parece, fisicamente possíveis, moralmente
bons ou não, qual conteúdo teológico extrairíamos deles? Que interpretação
teológica faríamos de uma consciência preservada digitalmente após a
degradação orgânica do corpo que um dia a abrigou? Talvez, tal questão
possua um erro de princípio: seu sentido depende de assumirmos, como
pressuposto, que a consciência pode ser tratada como informação e que toda
informação pode ser preservada e reconstituída. O problema é que hoje
sabemos muito menos acerca da natureza da consciência quanto
desejaríamos.

Ora, tais perguntas podem parecer ficção científica pura e simplesmente.


Todavia, devemos lembrar que boa parte da ficção científica de qualidade, por
exemplo, com Verne, Wells, Huxley, Philip Dick e Asimov, muitas vezes
antecipou a ciência. Segundo, é preciso compreender que tais possibilidades
vêm sendo debatidas, de modo sério, por muitos nomes da ciência atual, como
é o caso do cientista brasileiro Miguel Nicolelis. O neurocientista defende que é
razoável imaginar que em futuro tangível a humanidade controlará, pelo
pensamento puro, por meio da interface cérebro-computador, esforços
robóticos de exploração do universo tanto nas microdimensões nanofísicas
quanto nas macrodimensões astronômicas220. Nicolelis especula: “Poderíamos,
talvez um dia, num futuro remoto, experimentar o que é ser parte de uma rede
consciente de cérebros, uma rede verdadeira de cérebros a pensar
coletivamente?” Seria uma “fusão de mentes”.

Nicolelis vai além e imagina que nossas memórias possam um dia ser
transferidas para um meio digital – onde permaneceriam “ativas”, existindo
objetivamente. Biologicamente, não estaríamos vivos se nossos “eus” fossem
identificados aos corpos que um dia tivéramos. Mas em sentido existencial

220
NICOLELIS, Miguel. Mente fora do corpo. Scientific American Brasil, São Paulo: Duetto, Ano
10, n. 111, p. 32-37, 2011. Para saber mais: NICOLELIS, Miguel. Muito além do nosso eu. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.

104
mais profundo, em tese, ainda seríamos capazes do cogito: “Penso, logo
existo”?221 Em que medida tal possibilidade traz nova luz para o insondável
problema da morte? Como esse ramo potencial da ciência do futuro pode se
efetivar como o futuro da ciência e contribuir para novas concepções filosóficas
e teológicas acerca de questões fundamentais: o que é a vida? Quais seus
limites e possibilidades? O que é a morte?

CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO, ROBÓTICA E INTELIGÊNCIA


ARTIFICIAL

“Deus” das máquinas e a produção de almas em laboratórios?

A área de IA, “Inteligência Artificial”, é um campo de investigação de fronteira,


povoado por engenheiros, físicos, filósofos da mente, lógicos, matemáticos e
neurocientistas. A IA teve início a partir dos trabalhos de Alan Turing,
matemático britânico. De acordo com Turing, a pergunta fundamental não é
“Uma máquina pode pensar?”, mas “Nós podemos criar máquinas que, quando
interrogadas por humanos, não poderiam ser distinguidas de um ser
humano?”222. O critério de Turing para a inteligência é este: X é inteligente se,
ao questionarmos (exaustivamente) X, este responde tal qual um ser inteligente
responderia – sem distinção verificável. Hoje, ainda não fomos capazes de
construir tal máquina.

221
A existência dos nossos pensamentos assegura que existimos como seres pensantes. Esta
é a mais célebre máxima cartesiana: Cogito ergo sum, “Penso, logo existo”. Para saber mais,
ver DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
222
TURING, Alan. Computing Machinery and Intelligence.Oxford: Oxford Journals.Mind 49,
1950. p. 433-460. Disponível em: <http://www.csee.umbc.edu/courses/471/papers/turing.pdf>.
Acesso em: 11 maio 2014.Recentemente, Christof Koch e Giulio Tonomi propuseram uma
abordagem neurobiológica de tal questão, buscando responder: “Como saberíamos se uma
máquina adquiriu essa qualidade aparentemente indescritível, a consciência?” Para saber
mais, ver KOCH, Christof; TONOMI, Giulio. Como reconhecer a consciência? Quando saber se
criamos um computador sensível?Scientific American Brasil, São Paulo: Duetto, Ano 10, n.
110, p. 66-69, 2011.

105
A questão fundamental dos esforços atuais em IA é: “É possível criar
máquinas, robôs, computadores, inteligentes?” (que pressupõe a questão
filosófica: “O que é inteligência?”) e pode implicar e produzir diversas questões
filosóficas e teológicas: “Um ser inteligente é um ser consciente?”223, “Seres
conscientes possuem livre-arbítrio?” e “A consciência é um fenômeno físico
produzido por processos eletroquímicos neurológicos ou existe algo além,
como o espírito e a alma?”

Questões relativas à Criação também podem ser exploradas: “Que ser é


capaz de criar (não reproduzir, mas criar) outro ser inteligente?” Se criássemos
uma civilização de vidas robóticas autoconscientes, é provável que, uma vez
inteligentes, estas se perguntassem por suas origens, e, com o tempo, em
busca de respostas, desenvolvessem mitos da criação, que poderiam evoluir
para religiões e teologias da criação? Esse tipo de abordagem pode nos
oferecer material para repensarmos nossa relação com o sagrado ou vermos
nossas teologias da criação sob outra perspectiva? Pode parecer que esses
problemas são meras especulações de ficção científica, mas a IA é um dos
mais promissores campos de investigação científica da atualidade, e pensar
acerca das questões filosóficas e teológicas envolvidas, além de inevitável,
seja, quiçá, necessário. Todavia, devemos ser prudentes. Mais uma vez, é
preciso lembrar que não sabemos exatamente o que significa consciência;
logo, não podemos estar certos de como poderíamos criar computadores
conscientes.

SÍNTESE

Nos últimos 2.500 anos, a humanidade experimentou avanços significativos.


Quando olhamos para esse passado, consideramo-lo remoto, demasiado

223
Rafael de Oliveira Vaz destaca que “O estudo da IA surge de uma metáfora que os
pesquisadores chamam de metáfora computacional: a relação entre mente e cérebro se
assemelha à interação entre hardware e software”. VAZ, Rafael O. Sentimentos
Fabricados.Ciência e Vida, Filosofia Especial, São Paulo: Escala, Ano I, n. 3, p. 38-45, s/d.
Para um estudo mais detalhado da questão, recomendamos VAZ, Rafael O. Causação,
Identidade e Superveniência na Filosofia da Mente Contemporânea. 2006. Dissertação
(Mestrado)-Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível
em: <www.maxwell.vrac.puc-rio.br/9108/9108_1.PDF>. Acesso em: 12 maio 2014.

106
distante. No entanto, é a imensidão do futuro que nos espanta. Claro que, em
termos estritamente lógicos, um futuro próspero e longo não está assegurado.
Afinal, além da hostilidade do próprio meio, nossa espécie se destaca,
inclusive, pela capacidade da autoextinção. Por isso, se imaginarmos que
seremos capazes de contornar as crises que virão, e deslumbrarmos o futuro
que se abre “diante” de nós, ou uma rica, complexa e variada gama de futuros
emaranhados, superpostos, potenciais, “esperando” que nós os efetivemos,
então poderemos sonhar não com 2.500 anos, mas com 2 milhões, e muito
mais, e além, de história. Perto do que poderemos viver o que já vivemos
enquanto espécie e civilização, não passará de uma ínfima parte. Se essa
ínfima parte ensejou as grandes questões teológicas com as quais nos
debatemos até aqui, o que o futuro não nos reservará? As possibilidades são
infinitas.

Da mesma forma, ao que tudo indica, por mais complexas e frutíferas que
tenham sido as relações entre ciência, religião e teologia, o futuro de tais
relações parece ser muito promissor. As grandes questões persistirão ou nos
propiciarão outras. A única certeza que temos é que a estrada nos parece
inesgotavelmente longa e encantadora. Caminhemos!

107
REFERÊNCIAS

AGUIAR, Carlos Eduardo Souza. A Sacralidade digital: a mística tecnológica e


a presença do sagrado na rede.2010. Dissertação (Mestrado)-Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2010.
BACON, Francis. Seleção de textos e tradução José Aluysio Reis de Andrade.
São Paulo: Nova Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores).
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cientistas.In:PASSOS, João Décio; SOARES, Afonso Maria Ligorio (Org.).
Teologia e Ciência: Diálogos acadêmicos em busca do saber. São Paulo:
Educ/Paulinas, 2008.p. 175-203.
DESCARTES, R. Discurso do Método. Tradução Enrico Corvisieri. Créditos da
digitalização Membros do grupo de discussão Acrópolis. Disponível
em:<http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/discurso.pdf>.Acesso em: 19 fev. 2012.
DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FELINTO, Erick. A religião das máquinas: Ensaio sobre o imaginário da
cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2005.
HAWKING, Stephen. O Universo numa casca de noz. Tradução Ivo Korytowski.
São Paulo: Arx, 2001.
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Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1977.
KAKU, Michio. Hiperespaço. Tradução Maria Luiza X. de A Borges. Rio de
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KOCH, Christof; TONOMI, Giulio. Como reconhecer a consciência? Quando
saber se criamos um computador sensível?Scientific American Brasil, São
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MEIRA, SIlvio. Entrevista de Silvio Meira a Roberto D’Avila.Disponível
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NICOLELIS, Miguel. Mente fora do corpo. Scientific American Brasil, São
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VAZ, Rafael O. Causação, Identidade e Superveniência na Filosofia da Mente
Contemporânea. 2006. Dissertação (Mestrado)-Pontifícia Universidade Católica
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