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Robert Louis Stevenson

O ladrão de cadáveres

Tradução
Andréa Rocha
O ladrão de cadáveres
Todas as noites do ano, nós quatro nos sen-
távamos juntos na pequena sala de estar do
George, uma estalagem em Debenham: o
agente funerário, o proprietário, Fettes e eu.
Às vezes havia outras pessoas, mas, não im-
portava o quanto ventasse, chovesse, nevasse
ou geasse, nós quatro sempre estávamos lá,
cada um instalado em sua poltrona. Fettes
era um velho bêbado escocês, homem de in-
egável instrução e também de algumas
posses, já que vivia na ociosidade. Chegara a
Debenham anos antes, ainda jovem, e
acabou adotado como cidadão do lugar
meramente por ter ficado por lá. Sua capa de
chamalote azul era uma antiguidade local,
assim como a agulha na torre da igreja. Seu
lugar na sala de estar do George, sua ausên-
cia da igreja e seus antigos e vergonhosos ví-
cios de beberrão eram todos bastante con-
hecidos em Debenham. Era de opiniões
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vagamente radicais e de certo ceticismo fugi-


dio, que vez por outra declarava e enfatizava
com batidas vacilantes na mesa. Fettes to-
mava rum – invariavelmente cinco copos por
noite – e, na maior parte do tempo de nossos
encontros noturnos no George, sentava-se,
copo na mão direita, numa embriaguez mel-
ancólica. Nós o chamávamos de Doutor, pois
a ele eram atribuídos alguns conhecimentos
especiais de medicina, e porque sabia-se que,
em caso de necessidade, seria capaz de tratar
uma fratura ou aliviar uma luxação. Além
desses insignificantes pormenores, não tín-
hamos informação sobre seu caráter ou
sobre seus antecedentes.
Numa noite escura de inverno − já pas-
sava das nove horas quando o dono do
George juntou-se a nós −, havia no estabele-
cimento um homem adoentado, um grande
proprietário da região que sofrera um ataque
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apoplético quando se dirigia ao Parlamento;


e por esse motivo o ainda mais ilustre
médico do já tão ilustre cavalheiro recebera
uma mensagem telegrafada para que com-
parecesse junto a seu leito. Aquela era a
primeira vez que tal coisa acontecia em
Debenham, já que a ferrovia fora inaugurada
havia pouco tempo. Assim sendo, ficamos to-
dos de certo modo abalados com o ocorrido.
“Ele veio”, disse o proprietário, depois de
terminar de encher e acender o cachimbo.
“Ele?”, indaguei. “Quem?… não está se
referindo ao médico, não é?”
“O próprio”, respondeu nosso anfitrião.
“Qual o nome dele?”
“Dr. Macfarlane.”
Fettes estava no final do terceiro copo –
estupidamente bêbado, ora cabeceando, ora
olhando atordoado à sua volta –, porém
pareceu despertar diante da última palavra
pronunciada e então repetiu duas vezes o
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nome “Macfarlane”, bem calmo na primeira,


mas com uma emoção repentina na segunda.
“Isso mesmo”, disse o proprietário, “esse
é o nome dele, Dr. Wolfe Macfarlane.”
Fettes ficou imediatamente sóbrio. Seus
olhos se arregalaram, a voz tornou-se clara,
alta e firme, e o linguajar bastante enérgico e
sério. Todos ficamos sobressaltados com a
transformação, como se um homem tivesse
ressuscitado dos mortos.
“Peço desculpas”, disse ele, “acho que não
estava prestando muita atenção na conversa.
Quem é esse Wolfe Macfarlane?” E então,
quando ouviu o que disse o proprietário, de-
clarou: “Não pode ser, não é possível, mas
mesmo assim gostaria muito de ficar cara a
cara com ele”.
“O senhor o conhece, doutor?”, indagou o
agente funerário com a voz entrecortada.
“Deus me livre”, foi a resposta. “E no ent-
anto o nome não é nada comum, é
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improvável que existam dois. Diga-me”,


falou, dirigindo-se ao dono do George, “ele é
velho?”
“Bem”, começou o anfitrião, “não é um
homem jovem, com certeza, e tem cabelos
brancos, mas parece mais jovem que o
senhor.”
“Acontece que ele é mais velho; uns bons
anos mais velho. Mas”, prosseguiu, batendo
na mesa, “é rum isso que os senhores veem
no meu rosto, rum e pecado. Esse homem
talvez tenha a consciência tranquila e boa di-
gestão. Consciência! Quem sou eu para falar
nisso? Os senhores seriam capazes de
apostar que fui um bom e velho cristão, de-
cente, não é mesmo? Mas não, não eu; nunca
questionei nada. Voltaire teria questionado,
caso estivesse em meu lugar; mas minha
mente”, e nesse instante deu um sonoro pi-
parote em sua cabeça calva, “minha mente
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estava funcionando muito bem, e eu vi e não


tirei as devidas conclusões.”
“Se o senhor conhece esse médico”,
arrisquei-me a dizer depois de uma pausa
um tanto incômoda, “devo concluir que não
compartilha da opinião favorável do nosso
anfitrião.”
Fettes não deu atenção ao que eu disse.
“É isto”, afirmou com repentina determ-
inação. “Preciso ficar cara a cara com esse
homem.”
Houve outra pausa, e em seguida uma
porta foi fechada um tanto bruscamente no
andar de cima, e passos foram ouvidos na
escada.
“É o médico”, gritou o dono do George.
“Apresse-se e conseguirá alcançá-lo.”
Dois passos apenas separavam a pequena
sala de estar da entrada da velha estalagem;
a ampla escadaria de carvalho terminava
quase na rua; entre a soleira e os últimos
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degraus havia espaço apenas para um tapete


turco e mais nada; contudo, todas as noites
aquela pequena passagem era fortemente
iluminada, não apenas pelo lustre no alto da
escada e pela luz intensa sob o letreiro como
também pelo brilho quente que vinha da
janela do bar. Era assim que o George se
anunciava para os que passavam pela rua
fria. Fettes caminhou com determinação até
o local, e nós, que aguardávamos atrás dele,
observamos o encontro dos dois homens,
cara a cara, como um deles expressara. O Dr.
Macfarlane era ágil e vigoroso. Os cabelos
brancos realçavam sua fisionomia pálida e
serena, embora enérgica. Estava ricamente
vestido com a mais sofisticada das casimiras
e o mais alvo dos linhos, e ostentava uma
bela corrente de ouro para o relógio, além de
abotoaduras e óculos do mesmo precioso
material. Usava uma gravata larga de nó,
branca com bolinhas lilases, e carregava nos
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braços um confortável casacão de pele. Sua


aparência, que exalava riqueza e respeitabil-
idade, indicava que os anos haviam sido ca-
maradas com ele; era um contraste e tanto
olhar para o nosso beberrão da sala de estar
– calvo, sujo, espinhento e embrulhado em
sua velha capa de chamalote –
confrontando-o ao pé da escada.
“Macfarlane”, disse ele num tom de voz
um tanto elevado que o fez soar mais como
um arauto do que como um amigo.
O ilustre médico parou de repente no
quarto degrau, como se a familiaridade da
abordagem o surpreendesse e de alguma
maneira ferisse sua dignidade.
“Toddy Macfarlane”, repetiu Fettes.
O cavalheiro de Londres quase perdeu o
equilíbrio. Pelo mais breve dos segundos, en-
carou o homem diante de si, deu uma espi-
ada para trás como se temesse algo e então
exclamou num sussurro sobressaltado:
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“Fettes! É você!”
“Ora”, disse o outro, “eu mesmo. Também
achou que eu estivesse morto? Não pense
que é assim tão fácil nos livrar dos nossos
conhecidos.”
“Shhh, quieto!”, exclamou o médico.
“Fique quieto! Jamais poderia imaginar
encontrá-lo aqui; vejo que você está muito
debilitado. Confesso que a princípio mal o
reconheci; mas estou exultante com a opor-
tunidade. Por ora fiquemos apenas no como-
vai-e-até-logo, porque minha carruagem me
aguarda, e não posso perder o trem; mas vo-
cê tem de… deixe-me ver… sim, precisa me
dar seu endereço, e pode estar certo de que
logo, logo lhe mandarei notícias. Precisamos
fazer alguma coisa por você, Fettes. Receio
que esteja em apuros, mas vamos cuidar
disso, em nome dos velhos tempos, como
costumávamos cantar durante os jantares.”
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“Dinheiro!”, gritou Fettes; “dinheiro


vindo de você! O dinheiro que recebi de você
está lá onde deixei, jogado na chuva.”
Até aquele momento, o Dr. Macfarlane
conseguira manter certa superioridade e se-
gurança, mas a energia incomum daquela
recusa devolveu-o a sua confusão inicial.
Uma expressão pavorosa e ameaçadora ia
e vinha em sua quase venerável fisionomia.
“Meu caro companheiro”, disse ele, “como
você preferir; a última coisa que desejo é
ofendê-lo. Não ousaria me intrometer de
maneira nenhuma. Ainda assim, deixarei
com você meu endereço…”
“Não quero seu endereço… Não quero
saber qual é o teto que o abriga”, inter-
rompeu o outro. “Ouvi seu nome; temi que
pudesse ser você; queria saber, afinal, se ex-
istia um Deus; agora sei que não há nenhum.
Desapareça daqui!”
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Fettes ainda continuava parado bem no


centro do tapete, entre a escada e o vão da
porta; e o ilustre médico londrino seria
forçado a desviar para o lado a fim de es-
capar. Era evidente que hesitava ao consider-
ar essa humilhação. Por mais pálido que est-
ivesse, era possível notar o brilho ameaçador
através de seus óculos; mas enquanto per-
manecia parado sem se decidir, percebeu
que o cocheiro de sua carruagem observava
do lado de fora aquela cena inusitada e, ao
mesmo tempo, notou nosso pequeno grupo
na sala de estar, amontoado num canto do
bar. A presença de tantas testemunhas fez
com que ele decidisse escapar
imediatamente. Encurvou-se um pouco, pas-
sou raspando pelo lambri, fez um movi-
mento rápido como uma serpente e pôs-se a
caminho da porta. Mas sua aflição ainda não
havia chegado ao fim, porque no momento
em que ele passava Fettes segurou-o pelo
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braço, e as seguintes palavras saíram num


sussurro, embora dolorosamente
compreensíveis.
“Você voltou a vê-lo?”
O ilustre e próspero médico londrino
soltou um gemido agudo e sufocado; empur-
rou seu inquisidor para longe e, com as mãos
sobre a cabeça, fugiu porta afora como um
ladrão desmascarado. Antes que houvesse
ocorrido a algum de nós fazer qualquer mo-
vimento, a carruagem já sacolejava ruid-
osamente em direção à estação. A cena ter-
minara como um sonho, mas o sonho deix-
ara provas e vestígios de sua passagem. No
dia seguinte, o criado encontrou os delicados
óculos dourados esmagados na soleira, e
naquela mesma noite ficáramos todos sem
fôlego junto à janela do bar, na companhia
de um Fettes sóbrio, pálido e com um olhar
determinado.
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“Deus nos proteja, Mr. Fettes!”, disse o


proprietário, o primeiro a recobrar a calma
costumeira. “O que diabos aconteceu? As
coisas que os senhores disseram foram muito
estranhas.”
Fettes voltou-se para nós; olhou no rosto
de cada um. “Vejam se conseguem manter a
boca fechada”, disse. “Esse homem, Macfar-
lane, é perigoso ficar no caminho dele;
aqueles que já o fizeram se arrependeram
tarde demais.”
E então, sem terminar seu terceiro copo e
muito menos esperar pelos outros dois, ele
nos disse adeus e foi embora, passando sob a
lâmpada do hotel em direção à noite escura.
Nós três voltamos a nossos lugares na sala
de estar, junto ao fogo alto e vermelho da
lareira, à luz de quatro velas bem luminosas;
e enquanto recapitulávamos o que se pas-
sara, o calafrio inicial de surpresa logo se
transformou num arroubo de curiosidade.
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Ficamos ali até muito tarde; foi o encontro


mais duradouro no velho George do qual já
tive notícia. Antes de nos separarmos, cada
homem tinha uma teoria e estava determ-
inado a prová-la; e nenhum de nós tinha
compromisso mais urgente neste mundo do
que rastrear o passado do nosso compan-
heiro desprezado e descobrir o segredo que
ele dividia com o ilustre médico londrino.
Não que esteja me vangloriando, mas
acredito que entre os meus amigos do Ge-
orge fui o mais habilidoso ao apresentar uma
história, e talvez não exista agora nenhum
outro homem vivo que possa narrar-lhes os
acontecimentos abomináveis e monstruosos
que se seguem.
Na juventude, Fettes estudou medicina
em Edimburgo. Ele possuía uma espécie de
talento, um talento para apreender rápido o
que ouvia e logo o absorver. Não se dedicava
muito aos estudos em casa; mas era cortês,
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atencioso e inteligente na presença dos


mestres. Não demorou e o distinguiram
como um rapaz que ouvia com atenção e pos-
suía boa memória; além disso, por mais es-
tranho que isto me possa ter soado quando
ouvi pela primeira vez, naquele tempo ele era
um homem bem-apessoado e satisfeito com
sua aparência. Havia, naquela época, certo
professor de anatomia que lecionava fora da
universidade, e a quem me refiro aqui apen-
as pela letra K. Mais tarde, seu nome tornou-
se bastante conhecido. O dono desse nome
movia-se furtivamente e andava disfarçado
pelas ruas de Edimburgo, enquanto a mul-
tidão que aplaudiu a execução de Burke
clamava aos gritos pelo sangue de seu
empregador. Mas Mr. K estava então no auge
da fama, desfrutava de uma popularidade
que se devia em parte a seu próprio talento e
habilidade social, em parte à incompetência
de seu rival, o professor universitário. Os
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alunos, pelo menos, depositavam muita con-


fiança nele, e o próprio Fettes acreditou, as-
sim como outras pessoas acreditaram, que
havia estabelecido os alicerces de um futuro
de sucesso quando conquistou a preferência
desse homem que se tornara meteorica-
mente famoso. Mr. K era um bon-vivant, as-
sim como um professor talentoso; apreciava
uma alusão perspicaz tanto quanto uma
cuidadosa preparação. Em ambas as
aptidões Fettes desfrutava e merecia sua
atenção e, no segundo ano de curso, passou a
ocupar a posição informal de monitor, ou
subassistente da turma.
Nessa função, a responsabilidade da sala
cirúrgica recaía particularmente em seus
ombros. Ele respondia pela limpeza do local
e pelo comportamento dos demais alunos, e
era parte de suas atribuições receber e dis-
tribuir os diversos cadáveres. Foi exatamente
em virtude dessa questão – naquele tempo
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muito delicada – que ele fora inicialmente


alojado por Mr. K no mesmo beco e por fim
no mesmo prédio onde se encontravam as
salas de dissecação. Ali, depois de uma noite
de prazeres turbulentos, a mão ainda
trêmula, a visão ainda turva e confusa, ele
era arrancado da cama nas horas escuras que
antecediam o amanhecer de inverno por dois
fornecedores clandestinos, imundos e deses-
perados, encarregados de abastecer a mesa.
Ele abria a porta para esses homens, desde
então mal-afamados em todo o território.
Ajudava-os com seu trágico fardo, pagava-
lhes o sórdido preço e depois, quando os dois
já haviam partido, permanecia sozinho com
aquelas desamparadas relíquias de humanid-
ade. De tal cenário ele se retirava a fim de
tentar conseguir mais uma ou duas horas de
sono e no intuito de se recuperar dos abusos
da noite e de se revigorar para os trabalhos
do dia.
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Poucos rapazes teriam sido mais insensí-


veis às impressões de uma vida assim pas-
sada entre os emblemas da mortalidade. Sua
mente era fechada às considerações mais
corriqueiras. Ele era incapaz de se interessar
pelo destino e pela sorte do outro, escravo
que era de seus próprios desejos e de suas
desprezíveis ambições. Frio, superficial e
egoísta ao extremo, tinha aquele tanto de
prudência − erroneamente chamada de mor-
alidade − que mantém o homem longe da
embriaguez inconveniente ou do roubo
passível de punição. Além disso, cobiçava
certo grau de consideração de seus mestres e
alunos e não nutria nenhum desejo de falhar
diante do olhar dos outros. Dessa forma,
conquistar alguma distinção nos estudos
tornou-se seu prazer, e dia após dia pro-
curava mostrar serviço executando de
maneira impecável tarefas que lhe
rendessem boa imagem aos olhos do patrão,
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Mr. K. Por um dia de trabalho, tratava de in-


denizar a si mesmo com noites de prazeres
escandalosos e infames; e quando, afinal, at-
ingia um equilíbrio, o órgão a que chamava
de sua consciência declarava-se satisfeito.
O fornecimento de cadáveres era uma
preocupação permanente para ele, tanto
como para seu patrão. Naquela sala grande e
movimentada, a matéria-prima dos ana-
tomistas estava quase sempre em falta; e as-
sim a tarefa que se fazia necessária era não
apenas desagradável em si, mas poderia ter
perigosas consequências para todos os en-
volvidos. A política de Mr. K era não fazer
nenhuma pergunta ao lidar com os fornece-
dores. “Eles trazem os corpos e nós pagamos
o preço, quid pro quo”,{1} era o que cos-
tumava afirmar, demorando-se na aliteração.
E depois, em tom profano, dizia a seus ajud-
antes: “Para o bem de sua consciência, não
façam perguntas”. Não se supunha que os
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cadáveres resultassem de crimes de assas-


sinato. Se essa ideia tivesse sido expressa a
ele em palavras, teria recuado com horror;
mas a frivolidade de seu discurso diante de
assunto tão grave era, em si, uma ofensa à
boa conduta e um estímulo aos homens com
quem ele negociava. Fettes, por exemplo,
com muita frequência se perguntara a re-
speito do estranho frescor de certos corpos.
Muitas e muitas vezes ficara impressionado
com a aparência desprezível e abominável
dos bandidos que vinham até ele antes de o
dia raiar; e, ao pôr os pensamentos em or-
dem, ele talvez tenha atribuído um signific-
ado imoral e categórico demais aos consel-
hos descuidados do patrão. Em poucas pa-
lavras, entendia que seu trabalho tinha três
ramificações: receber o que lhe era trazido,
pagar o preço e fazer vista grossa a qualquer
evidência de crime.
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Numa manhã de novembro a política do


silêncio foi duramente posta à prova. Ele
permanecera acordado a noite toda com uma
torturante dor de dente − caminhava de um
lado a outro do quarto como uma fera en-
jaulada ou atirava-se furiosamente sobre a
cama − e tinha acabado de mergulhar
naquele sono profundo e desconfortável que
com tanta frequência segue-se a uma noite
de dor, quando foi acordado pela terceira ou
quarta repetição irritada do sinal combinado.
Havia um luar tênue porém brilhante; fazia
um frio mortal, ventava e geava; a cidade
ainda não despertara, mas um alvoroço in-
definido já prenunciava os ruídos e a agit-
ação do dia. Os demônios carniceiros haviam
chegado mais tarde que de costume e pare-
ciam mais ansiosos para ir embora. Fettes,
caindo de sono, iluminou o caminho deles
até o andar de cima. Suas vozes irlandesas
resmungonas penetravam a cabeça dele
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como num sonho; enquanto esvaziavam o


saco de sua triste mercadoria, Fettes cochil-
ava com o ombro apoiado na parede. Foi
preciso um grande esforço para despertar,
procurar o dinheiro e entregar aos homens.
Enquanto fazia isso, seu olhar recaiu no
rosto do cadáver. Teve um sobressalto; deu
dois passos em direção ao corpo e ergueu a
vela.
“Deus todo-poderoso!”, gritou. “É Jane
Galbraith!”
Os homens nada disseram e foram aos
poucos caminhando em direção à porta.
“Eu a conheço, ouçam o que eu digo”,
continuou ele. “Ainda ontem ela estava viva e
saudável. Não é possível que esteja morta;
não é possível que tenham conseguido esse
corpo por meios lícitos.”
“Não há dúvida de que o senhor está com-
pletamente enganado”, disse um dos
homens.
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No entanto, o outro encarou Fettes com


uma expressão sombria e exigiu o dinheiro
sem demora.
Impossível não interpretar aquilo como
uma ameaça ou menosprezar o perigo. O
coração do rapaz pareceu fraquejar. Balbu-
ciou algumas desculpas, contou o dinheiro e
assistiu à partida dos deploráveis visitantes.
Os dois mal haviam saído, e Fettes já se
apressava em confirmar a desconfiança. Por
uma dúzia de sinais incontestáveis ele identi-
ficou a garota a quem dirigira gracejos um
dia antes. Horrorizado, notou marcas no
corpo que podiam muito bem indicar o uso
de violência. Tomado de pânico, refugiou-se
em seu quarto. Ali, refletiu demoradamente
sobre a descoberta que havia feito; consider-
ou com seriedade o sentido das instruções de
Mr. K e o risco que correria se interferisse
num assunto tão sério. E afinal, em estado de
dolorosa perplexidade, decidiu esperar pelo
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conselho de seu superior imediato, o assist-


ente da turma.
Este era um jovem médico, Wolfe Macfar-
lane, o favorito dos alunos irresponsáveis;
inteligente, libertino e inescrupuloso em úl-
timo grau. Tinha viajado e estudado no ex-
terior. Era uma pessoa de bons modos e um
pouco petulante. Uma autoridade em teatro,
hábil no gelo e nos campos, com os patins ou
com o taco de golfe; trajava-se com uma
elegância audaciosa e, para coroar sua glória,
era dono de um cabriolé e de um vigoroso
cavalo trotador. Com Fettes, ele desfrutava
de certa intimidade; de fato, suas respectivas
atribuições os obrigavam a compartilhar al-
gumas atividades; e quando faltavam
cadáveres, os dois iam para longe, em
direção ao campo, no cabriolé de Macfarlane.
Juntos visitavam e profanavam algum
cemitério isolado e antes do amanhecer já
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estavam de volta, diante da porta da sala de


dissecação, com o produto do roubo.
Naquela manhã em particular, Macfar-
lane chegou um pouco mais cedo que de cos-
tume. Fettes ouviu-o e foi ao encontro dele
na escada; contou sua história e mostrou-lhe
o motivo de sua apreensão. Macfarlane ex-
aminou as marcas no corpo.
“Sim”, concordou, “isso não está me
cheirando nada bem.”
“E então? O que devo fazer?”, perguntou
Fettes.
“Fazer?”, repetiu o outro. “Você quer fazer
alguma coisa? Eu diria que o melhor é deixar
este assunto morrer.”
“Alguém mais pode perceber”, objetou
Fettes. “Ela era tão conhecida quanto Castle
Rock.”
“Vamos torcer para que isso não acon-
teça”, disse Macfarlane. “Se por acaso
alguém identificá-la, bem, você não a
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identificou, certo? E ponto final. Isso já vem


acontecendo há muito tempo. Agite essa
lama, e acabará por envolver K na mais
tenebrosa enrascada; você mesmo ficará em
sérios apuros. Assim como eu, se decidir se
meter nisso. Pergunto-me como qualquer
um de nós ficaria, ou que diabos iríamos
dizer a nosso favor, na condição de
testemunhas em qualquer tribunal re-
speitável. Para mim, sabe, uma coisa é certa:
a bem dizer, todos os nossos cadáveres são
de pessoas assassinadas.”
“Macfarlane!”, gritou Fettes.
“Ora, essa não!”, zombou o outro. “Até
parece que você nunca suspeitou disso!”
“Suspeitar é uma coisa…”
“E provar é outra. Sim, eu sei; e lamento,
assim como você, que isto tenha vindo parar
aqui”, disse ele, batendo de leve no cadáver
com a bengala. “O melhor que tenho a fazer
agora é não reconhecê-la, e”, acrescentou
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com frieza, “não a reconheço. Você pode


fazer isso, se preferir. Não pretendo impor
nada, mas acredito que um homem experi-
ente agiria como eu; e digo mais: imagino
que seja isso o que K espera de nós. A per-
gunta é: por que ele nos escolheu como as-
sistentes? Eu lhe respondo: porque não es-
tava em busca de velhas mexeriqueiras.”
Esse era o tom, entre todos os outros,
capaz de afetar a mente de um rapaz como
Fettes. Ele concordou em fazer como Macfar-
lane. O corpo da desafortunada garota foi
devidamente dissecado, e ninguém fez nen-
hum comentário ou pareceu reconhecê-la.
Certa tarde, quando já havia encerrado
sua jornada, Fettes dirigiu-se a uma taberna
popular e encontrou Macfarlane na compan-
hia de um desconhecido. Era um homem
muito pequeno e pálido, de frios olhos
castanhos e cabelos escuros. Seus traços sug-
eriam uma intelectualidade e um
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refinamento que seus modos desmentiam, já


que de perto ele se revelava grosseiro, vulgar
e estúpido. Exercia, entretanto, um controle
impressionante sobre Macfarlane; dava or-
dens como um paxá; exaltava-se diante do
menor questionamento ou atraso e
comentava com arrogância a subserviência
com a qual era obedecido. Pessoa das mais
agressivas, encantou-se com Fettes de imedi-
ato, insistiu que aceitasse bebidas e honrou-o
com confidências inusitadas sobre seu pas-
sado. Se ao menos um décimo do que confes-
sara fosse verdade, ele era um abominável
trapaceiro; e em sua vaidade, o rapaz
deleitou-se com a atenção de homem tão
experiente.
“Sou mesmo um sujeito muito mau”, o
desconhecido comentou. “Mas Macfarlane é
o tal: Toddy Macfarlane, é como o chamo.
Toddy, peça mais um copo para seu amigo.”
Ou então: “Toddy, levante-se daí e vá fechar
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aquela porta. Toddy me odeia”, continuou.


“Ah, sim, Toddy, você me odeia.”
“Não me chame por esse maldito nome”,
resmungou Macfarlane.
“Escute só como ele fala! Você já viu esses
rapazes que brincam de lançar facas? Pois
ele adoraria fazer isso no meu corpo todo”,
comentou o estranho.
“Nós, médicos, temos maneiras melhores
do que essa”, disse Fettes. “Quando
deixamos de gostar de um amigo querido,
nós o dissecamos.”
Macfarlane ergueu um olhar surpreso,
como se uma piada daquelas jamais tivesse
lhe ocorrido.
A tarde passou. Gray, era esse o nome do
desconhecido, convidou Fettes a juntar-se a
eles no jantar, pediu que preparassem um
banquete tão suntuoso que mobilizou toda a
taberna e, ao terminar a refeição, mandou
Macfarlane pagar a conta. Já era tarde
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quando se separaram; o tal Gray estava im-


prestável de tão bêbado. Macfarlane, sóbrio
de raiva, ruminava o dinheiro que havia sido
forçado a desperdiçar e os desaforos que fora
obrigado a engolir. Fettes, com inúmeras be-
bidas ecoando na cabeça, voltou para casa
cambaleante e com a mente em total estado
de dormência. No dia seguinte, Macfarlane
não compareceu à aula, e Fettes riu consigo
mesmo enquanto o imaginava ainda
escoltando o intolerável Gray de taberna em
taberna. Assim que soou a hora de encerra-
mento das atividades, saiu em busca dos
companheiros da última noite. Não con-
seguiu, entretanto, encontrá-los em lugar
nenhum, voltou cedo a seus aposentos, foi
para cama e dormiu o sono dos justos.
Às quatro horas da manhã, o inconfun-
dível sinal o acordou. Quando desceu até a
porta, teve um sobressalto ao encontrar Mac-
farlane em seu cabriolé, e em seu cabriolé
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um daqueles embrulhos longos e horripil-


antes com os quais já estava familiarizado.
“O que é isso?”, exclamou. “Você saiu soz-
inho? Como conseguiu?”
Mas Macfarlane mandou-o calar a boca
com rispidez e o intimou a ocupar-se do tra-
balho. Quando já haviam levado o corpo para
o andar de cima e o acomodado sobre a
mesa, Macfarlane fez menção de ir embora.
Em seguida deteve-se, parecendo hesitar; e
afinal falou: “É melhor que olhe para o
rosto”, disse num certo tom de ameaça. “É
melhor que olhe”, repetiu, enquanto Fettes
apenas o encarava tentando entender.
“Mas onde, e como, e quando você encon-
trou este aí?”, gritou o outro.
“Olhe para o rosto”, foi a única resposta.
Fettes ficou atordoado; estranhas dúvidas
o assaltaram. Desviou o olhar do jovem
médico para o corpo, e então de volta para o
médico. Afinal, num impulso repentino, fez o
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que o outro havia ordenado. Era como se já


esperasse a visão com a qual seus olhos de-
pararam, mas ainda assim o choque foi bru-
tal. Ver, imóvel na rigidez da morte, e nu em
contato com a aspereza do saco de aniagem,
o homem a quem ele deixara bem-vestido,
saciado e cheio de pecado na porta de uma
taberna, despertou, até no descuidado
Fettes, alguns terrores da consciência. Con-
statar que duas pessoas conhecidas tinham
ido parar nas mesas geladas da sala de dis-
secação era como um cras tibi{2} que ecoasse
em sua alma. Entretanto, esses foram apenas
pensamentos secundários. Sua primeira pre-
ocupação dizia respeito a Wolfe. Despre-
parado para tão importante desafio, Fettes
não sabia como encarar o companheiro. Não
se atreveu a deixar que seus olhares se
cruzassem e não conseguiu comandar nem
as palavras nem a voz para expressá-las.
37/69

Foi o próprio Macfarlane quem tomou a


iniciativa. Aproximou-se de Fettes com
calma, por trás, e gentil mas com firmeza
pousou a mão em seu ombro.
“O Richardson”, disse, “pode ficar com a
cabeça.”
Richardson era um aluno que havia muito
tempo andava ansioso para dissecar aquela
parte do corpo humano. Como Fettes não re-
spondesse, o assassino recomeçou: “Agora,
falando de negócios, você precisa me pagar;
sua contabilidade, você bem sabe, deve estar
registrada”.
Fettes afinal encontrou uma voz, um mero
fantasma de sua própria: “Pagar a você!”,
gritou. “Pagar pelo quê?”
“Ora, sim, é claro que deve me pagar, sem
dúvida e por todas as razões possíveis, você
deve”, devolveu o outro. “Eu não me atrever-
ia a entregá-lo a troco de nada, você não se
atreveria a receber por nada; isso
38/69

comprometeria a nós dois. Este é mais um


caso como o de Jane Galbraith. Quanto mais
erradas estiverem as coisas, mais temos de
agir como se tudo estivesse bem. Onde é
mesmo que o velho K guarda o dinheiro?”
“Ali”, respondeu Fettes com voz rouca,
apontando um pequeno armário num canto.
“Então me dê a chave”, disse o outro
calmamente, com a mão estendida.
Houve um instante de hesitação, e depois
a sorte foi lançada. Macfarlane não con-
seguiu reprimir um estremecimento nervoso
− um sinal insignificante de um imenso alí-
vio −, ao sentir a chave entre os dedos. Abriu
o armário, tirou caneta, tinta e o livro de an-
otações, guardado num compartimento, e,
do valor disponível numa gaveta, separou a
soma adequada à ocasião.
“Agora veja”, disse, “aqui está o paga-
mento − primeira prova de sua boa-fé:
primeira providência para garantir sua
39/69

segurança. Agora você deve arrematá-la com


uma segunda providência. Registre o paga-
mento em seu livro, e assim, de sua parte, es-
tará apto a desafiar o diabo.”
Os segundos que se seguiram foram para
Fettes de extrema agonia mental; contudo,
ao avaliar seus temores, o mais imediato
deles triunfou. Qualquer dificuldade futura
parecia quase bemvinda se naquele mo-
mento ele pudesse evitar um desentendi-
mento com Macfarlane. Pousou a vela que
vinha carregando durante todo o tempo e
com letra firme registrou a data, a natureza e
o valor da transação.
“E agora”, disse Macfarlane, “nada mais
justo do que você embolsar o lucro. Já recebi
minha parte. A propósito, quando um
homem experiente se encontra numa maré
de sorte, fica com alguns xelins a mais no
bolso – tenho até vergonha de mencionar
isto, mas nesse caso há uma regra de
40/69

conduta. Nada de pagar a despesa dos out-


ros, nada de comprar livros caros para as
aulas, nada de saldar dívidas antigas; peça
emprestado, não empreste.”
“Macfarlane”, começou Fettes, ainda meio
rouco, “pus uma corda no meu pescoço para
atendê-lo.”
“Para me atender?”, gritou Wolfe. “Ora,
faça-me o favor! Você fez, a meu ver, apenas
o que tinha de fazer em defesa própria.
Suponhamos que eu venha a estar numa
situação difícil… Como ficaria você? Este se-
gundo probleminha aqui claramente emana
do primeiro. Mr. Gray é a continuação da
senhorita Galbraith. Você não pode começar
e depois parar. Se você começa, deve
prosseguir começando; essa é a verdade. Os
maus não têm descanso.”
Uma escuridão pavorosa e uma sensação
de ter sido traído pelo destino invadiu a alma
do infeliz aluno.
41/69

“Meu Deus!”, gritou, “mas o que foi que


eu fiz? E quando foi que eu comecei? Para
ser escolhido como assistente do professor…
sejamos razoáveis, que mal pode haver
nisso? O Service almejava a posição; o Ser-
vice poderia tê-la conseguido. Estaria ele
onde eu estou agora?”
“Meu caro companheiro”, disse Macfar-
lane, “como é ingênuo! Que mal lhe aconte-
ceu? Que mal pode lhe acontecer se mantiver
a boca fechada? Ora, homem, então não sabe
o que é esta vida? Existem dois grupos: os
leões e os cordeiros. Se está entre os cordeir-
os, acabará em cima dessas mesas como
Gray ou Jane Galbraith; se é um leão, viverá
e montará um cavalo como eu, como K,
como todo mundo com alguma sabedoria ou
coragem. No princípio você se apavora. Mas
olhe para K! Meu caro companheiro, você é
inteligente, você tem garra. Gosto de você,
assim como K também gosta. Você nasceu
42/69

para liderar a caçada; e vou lhe dizer, pela


minha honra e pela minha experiência de
vida, daqui a três dias você rirá de todos
esses espantalhos como um colegial que as-
siste à encenação de uma farsa.”
Dizendo isso, Macfarlane retirou-se e,
antes que o dia clareasse, saiu secretamente
pelo beco em seu cabriolé. Fettes viu-se en-
tão abandonado à companhia de seus arre-
pendimentos. Deuse conta do enorme perigo
que corria. Foi capaz de enxergar com um in-
exprimível desânimo que não havia limites
para a sua fraqueza e que, de concessão em
concessão, havia decaído de árbitro do des-
tino de Macfarlane para seu cúmplice remu-
nerado e impotente. Teria dado o mundo
para haver demonstrado mais coragem na
hora, mas não lhe ocorrera que ainda estava
em tempo de ser corajoso. O segredo de Jane
Galbraith e o maldito livro-caixa calaram sua
boca.
43/69

As horas se passaram; os alunos


começaram a chegar; os membros do infeliz
Gray foram distribuídos para um e outro e
recebidos sem comentários. Richardson foi
agraciado com a cabeça, e antes de soar a
hora da liberdade, Fettes estremeceu exult-
ante ao perceber o quão longe eles já haviam
avançado em direção à segurança.
Por dois dias, continuou a observar, com
uma alegria crescente, o pavoroso processo
de dissimulação.
No terceiro dia, Macfarlane reapareceu.
Tinha estado doente, disse; mas logo com-
pensou o tempo perdido com a energia que
exibiu ao orientar os alunos. A Richardson,
em especial, ofereceu o mais valioso auxílio e
conselhos, e este, ao ser encorajado pelos
elogios do monitor, deu tudo de si, ardeu em
ambiciosas esperanças e viu a medalha de
melhor da turma em suas mãos.
44/69

Antes do fim da semana, cumpria-se a


profecia de Macfarlane. Fettes sobrevivera
aos temores e esquecera sua degradação.
Passou a vangloriar-se de sua coragem e a
organizar a história de tal forma na cabeça
que era capaz de relembrar aqueles aconteci-
mentos com um orgulho doentio. Seu cúm-
plice, ele viu muito pouco. Os dois se encon-
traram, é claro, nas atividades das aulas; re-
ceberam juntos as ordens de Mr. K. Em al-
guns momentos trocaram uma ou duas pa-
lavras a sós, e Macfarlane mostrou-se do
princípio ao fim especialmente gentil e bem-
humorado. Estava claro, porém, que evitava
qualquer referência ao segredo que com-
partilhavam; e mesmo quando Fettes lhe
sussurrou que se aliara aos leões e abandon-
ara os cordeiros, ele apenas sorriu e fez um
sinal para que se calasse.
Surgiu afinal uma oportunidade que de
novo lançou a dupla numa parceria mais
45/69

estreita. Mr. K encontrava-se mais uma vez


desprovido de cadáveres; os alunos estavam
ansiosos, e fazia parte das exigências do pro-
fessor manter um bom suprimento. Naquela
ocasião, soube-se de um enterro no cemitério
rural de Glencorse. A passagem do tempo
pouco mudou o lugar em questão. Tanto
naquela época como agora, situava-se numa
encruzilhada, afastado de qualquer habit-
ação humana e encravado a quase dois met-
ros de profundidade na espessa folhagem de
seis cedros. Os balidos das ovelhas nas
montanhas vizinhas, os riachos de ambos os
lados – um deles cantando ruidoso entre os
seixos, o outro gotejando furtivamente de
lago em lago –, a agitação do vento em anti-
gos castanheiros em flor e, uma vez a cada
sete dias, a voz do sino e os velhos cantos
entoados pelo precentor eram os únicos sons
a perturbar o silêncio em torno da igreja rur-
al. O Homem da Ressurreição – para usar
46/69

uma alcunha da época – não se deixava in-


timidar por qualquer um dos ritos sagrados
das devoções habituais. Fazia parte de seu
negócio desprezar e profanar as volutas e
trombetas das velhas tumbas, as trilhas aber-
tas pela passagem dos devotos e dos enluta-
dos, assim como as oferendas e as inscrições
de sentimentos consternados. Nas áreas
rurais, onde o amor é na maior parte das
vezes tenaz e onde laços de sangue ou de
companheirismo unem toda a sociedade de
uma paróquia, o ladrão de cadáveres, longe
de sentir-se repelido em nome de um re-
speito que seria natural, era atraído pela fa-
cilidade e pela segurança da tarefa. Aos cor-
pos deitados à terra na feliz esperança de um
despertar bem diferente, destinava-se aquela
ressurreição precipitada, à luz do lampião,
assombrada pelo terror, a ressurreição da pá
e da picareta. O caixão era arrebentado, a
mortalha rasgada, e os melancólicos
47/69

despojos envoltos em aniagem; e depois de


serem chacoalhados durante horas por cam-
inhos pouco frequentados, onde a claridade
da lua não alcançava, eram por fim expostos
às maiores indignidades diante de um grupo
de garotos boquiabertos.
Como dois abutres capazes de investir
com violência contra um cordeiro agoniz-
ante, Fettes e Macfarlane se veriam livres di-
ante de uma sepultura naquele verde e calmo
local de descanso. A esposa de um
fazendeiro, uma mulher que vivera por ses-
senta anos e era conhecida apenas pela deli-
ciosa manteiga que sabia preparar e pela
conversa piedosa, seria desenterrada de sua
sepultura à meia-noite e levada, morta e nua,
para aquela cidade distante a qual sempre
honrara com seu traje domingueiro; o lugar
ao lado de sua família ficaria vazio até o dia
do Juízo Final; seus inocentes e quase
48/69

veneráveis membros seriam expostos à úl-


tima curiosidade do anatomista.
Certo dia, no final da tarde, a dupla pôs-se
a caminho. Estavam bem encobertos em
mantos e munidos de uma tremenda garrafa.
Chovia sem cessar − uma chuva fria, densa e
abundante. De tempos em tempos sopravam
algumas rajadas de vento, mas as lâminas da
água que caía tratavam de neutralizá-las.
Com garrafa e tudo, foi uma triste e silen-
ciosa viagem até Penicuik, onde passariam a
noite. Pararam uma vez a fim de esconder os
apetrechos num denso matagal, não muito
longe do cemitério, e outra no Fisher’s Tryst,
para brindar diante do fogo da cozinha e al-
ternar tragos de uísque com um copo de
cerveja. Quando a viagem chegou ao fim, o
cabriolé foi devidamente abrigado, o cavalo
alimentado e desatrelado, e os dois jovens
médicos se sentaram numa sala privativa
para o melhor jantar e o melhor vinho que a
49/69

casa podia oferecer. As luzes, o fogo, a chuva


batendo contra a janela e o trabalho frio e
impróprio que os aguardava fizeram com
que desfrutassem da refeição com ainda
mais entusiasmo. A cada copo a cordialidade
entre os dois aumentava. Logo Macfarlane
entregou ao companheiro um punhado de
moedas de ouro.
“Uma cortesia”, disse. “Entre amigos
esses pequenos acertos devem circular com a
rapidez de um acendedor de cachimbos.”
Fettes embolsou o dinheiro e aplaudiu es-
trondosamente a máxima do companheiro.
“Você é um filósofo”, exclamou, “eu era um
imbecil até nos conhecermos. Você e K, aqui
entre nós, diacho, vocês vão fazer de mim
um homem.”
“É claro que faremos”, aplaudiu Macfar-
lane. “Um homem? Posso lhe garantir que
foi necessário um homem para me dar
suporte naquela manhã. Existem alguns
50/69

quarentões covardes, grandalhões e briguen-


tos que teriam ficado enjoados só de olhar
para a maldita coisa. Mas você não; você
manteve a calma. Eu o observei.”
“Bem, e por que não?”, vangloriou-se
Fettes. “Aquilo não era da minha conta. De
um lado, não havia nada a ganhar a não ser
confusão e, de outro, fui merecedor da sua
gratidão, compreende?”, observou ele, e
bateu no bolso fazendo tilintar as moedas de
ouro.
Macfarlane sentiu certa apreensão diante
daquelas palavras desagradáveis. E talvez
tenha até se arrependido de haver orientado
seu jovem companheiro com tanto sucesso.
Porém lhe faltou tempo para se opor, pois o
outro prosseguiu ruidosamente naquele or-
gulhoso rompante.
“O melhor a fazer é não ter medo. Agora,
e apenas aqui entre nós, não quero ir para a
forca, isso está fora de questão; mas,
51/69

Macfarlane, nasci desprezando toda hipo-


crisia. Inferno, Deus, Diabo, certo, errado,
pecado, crime, toda essa velha galeria de
curiosidades pode assustar garotos, mas ho-
mens experientes, como eu e você, a de-
sprezam. Um brinde à memória de Gray!”
Já estava ficando tarde. O cabriolé, como
havia sido determinado, foi trazido à porta
com ambas as lanternas, de luz muito bril-
hante, acesas, e assim os rapazes pagaram a
conta e seguiram seu caminho. Anunciaram
que se dirigiam para os lados de Peebles e to-
maram esse sentido até não mais enxergar-
em as últimas casas da cidade; depois
apagaram as lanternas, deram meia-volta e
seguiram por uma estrada secundária em
direção a Glencorse. Não havia nenhum
outro som além do som dos passos deles
mesmos e do incessante e estridente cair da
chuva. Estava escuro como breu; aqui e ali
pontos brancos, como um portão ou a pedra
52/69

de um muro, os guiavam por um pequeno


trecho através da noite; mas na maior parte
do tempo foi passo a passo, e quase tateando,
que avançaram cautelosamente em meio
àquela escuridão retumbante até o solene e
ermo destino. Nas ruas alagadas que atraves-
savam a região do cemitério, a última luz
fraca e trêmula extinguiu-se, e foi necessário
acender um fósforo para iluminar outra vez
uma das lanternas do cabriolé. Assim, sob
árvores que não cessavam de pingar e cerca-
dos por sombras enormes em permanente
agitação, os dois alcançaram o cenário de sua
profana tarefa.
Ambos tinham experiência naquele tipo
de coisa e eram habilidosos no manejo das
pás; e nem bem haviam dedicado vinte
minutos à tarefa quando foram premiados
com um surdo tinido na tampa do caixão. No
mesmo instante, Macfarlane machucou a
mão numa pedra e arremessou-a com
53/69

displicência por sobre a cabeça. A sepultura,


na qual eles agora se encontravam afundados
quase até a altura dos ombros, localizava-se
junto ao final do platô do cemitério; e a lan-
terna do cabriolé, para melhor iluminar o
trabalho, havia sido apoiada numa árvore,
bem junto a uma íngreme ribanceira que ia
dar no riacho. O acaso demonstrou boa pon-
taria com a pedra. Então ouviu-se o barulho
de vidro quebrando; a noite desabou sobre
eles; sons alternadamente abafados e es-
tridentes anunciaram a trajetória da lanterna
barranco abaixo e seus choques ocasionais
com as árvores. Algumas pedras, desalojadas
pela lanterna na descida, repicavam atrás
dela em direção às profundezas do vale es-
treito; e então o silêncio, como a noite, reas-
sumiu o comando; e de nada adiantava eles
apurarem os ouvidos ao máximo, porque
nada podia ser ouvido além da chuva, ora
marchando com o vento, ora caindo
54/69

perseverante sobre quilômetros de campo


aberto.
Como já estavam quase no fim da aborre-
cida tarefa, julgaram mais sensato completá-
la no escuro. O caixão foi desenterrado e ar-
rombado; o corpo guardado no saco enchar-
cado e depois carregado pelos dois até o cab-
riolé; um deles subiu na carruagem para
evitar que o cadáver escorregasse, e o outro,
puxando o cavalo pela boca, tateou por mur-
os e bosques até alcançar uma rua mais
larga, próxima ao Fisher’s Tryst. Havia ali
uma luminosidade fraca e difusa, celebrada
pelos dois como a luz do dia; graças a ela,
conseguiram fazer o cavalo alcançar uma boa
marcha e saíram sacolejando quase alegre-
mente em direção à cidade.
Durante a tarefa os dois haviam ficado en-
charcados até os ossos, e agora, toda vez que
o cabriolé pulava ao passar pelos profundos
sulcos do caminho, a coisa, que permanecia
55/69

escorada entre eles, ora caía sobre um, ora


sobre outro. A cada repetição daquele hor-
rível contato, cada um a repelia instintiva-
mente com mais impetuosidade; e o pro-
cesso, por mais natural que fosse numa situ-
ação como aquela, começou a dar nos nervos
dos companheiros. Macfarlane comentou
algo jocoso sobre a mulher do fazendeiro,
mas a maledicência soou falsa em seus lábios
e se perdeu no silêncio de Fettes. Aquele es-
tranho fardo continuava a bater de um lado
para o outro; algumas vezes a cabeça re-
pousava tranquila no ombro deles, outras a
aniagem ensopada aplicava golpes gelados
em seus rostos. Um frio arrepiante começou
a se apoderar da alma de Fettes. Ele espiou a
trouxa, e ela lhe pareceu um pouco maior.
Por todo o campo, de perto e de longe, a pas-
sagem deles foi acompanhada por uivos lan-
cinantes dos cachorros das fazendas; e as-
sim, foi crescendo cada vez mais na mente de
56/69

Fettes a impressão de que algum milagre


medonho havia acontecido, de que alguma
transformação inominável se passara no
cadáver e que era por medo de sua carga
profana que os cachorros uivavam.
“Pelo amor de Deus”, disse Fettes,
fazendo um grande esforço para falar, “pelo
amor de Deus, vamos acender alguma luz.”
Aparentemente Macfarlane fora afetado
da mesma maneira; já que, embora nada
tenha dito em resposta, parou o cavalo, pas-
sou as rédeas ao companheiro, desceu e pôs-
se a acender a lanterna que restava. Naquela
altura eles ainda estavam na encruzilhada do
caminho para Auchenclinny.
Continuava chovendo a cântaros, como se
o dilúvio tivesse voltado, e não era tarefa fá-
cil acender uma luz naquele mundo de água
e escuridão. Quando finalmente a vacilante
chama azulada foi transferida para o pavio e
começou a se expandir e a clarear,
57/69

irradiando em torno do cabriolé um amplo


círculo de luminosidade enevoada, tornou-se
possível para os dois jovens enxergar um ao
outro e também à coisa que se encontrava
entre eles. A chuva moldara o tecido gros-
seiro ao contorno do corpo que cobria; a
cabeça se distinguia do tronco com facilid-
ade, os ombros estavam claramente modela-
dos; algo ao mesmo tempo espectral e hu-
mano impedia que eles desviassem o olhar
de seu horripilante companheiro de viagem.
Por alguns instantes Macfarlane manteve-
se imóvel, com a lanterna erguida para o
alto. Um pavor terrível envolveu o corpo de
Fettes como um lençol molhado e retesou a
pele branca de seu rosto; um medo sem sen-
tido, um horror do que não podia ser, não
parava de crescer em sua mente. Mais um se-
gundo e ele teria falado, mas seu compan-
heiro se antecipou.
58/69

“Isto não é uma mulher”, Macfarlane


disse baixinho.
“Era uma mulher quando a pusemos den-
tro do saco”, sussurrou Fettes.
“Segure esta lanterna”, disse o outro.
“Preciso ver o rosto dela.”
E enquanto Fettes pegava a lanterna, seu
companheiro desamarrava o saco e puxava
para baixo a parte que cobria a cabeça. A luz
destacou com clareza as feições sombrias e
bem definidas e a pele barbeada de uma
fisionomia muito familiar, vista com fre-
quência nos sonhos de ambos os rapazes.
Um grito descontrolado soou noite adentro;
cada um pulou para um lado da estrada; a
lanterna caiu, quebrou e se apagou; e o
cavalo, aterrorizado com aquela movi-
mentação fora do comum, empinou e partiu
a galope em direção a Edimburgo, levando
com ele o único ocupante do cabriolé, o
59/69

corpo morto e havia muito dissecado de


Gray.

1 Latim: “Uma coisa pela outra”. [N. E.]


2 Do provérbio latino “Hodie mihi, cras tibi”: “Hoje
sou eu, amanhã você”. [N. E.]
© Cosac Naify, 2013

Este conto integra o livro O clube do suicídio e outras


histórias, coletânea de contos de Robert Louis Steven-
son, traduzido por Andréa Rocha e publicado na
coleção Prosa do Mundo, a coleção de clássicos da
Cosac Naify.
Concepção original da coleção Augusto Massi, Davi
Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr.

Revisão Arthur Bueno e Maria Fernanda Alvares


Projeto gráfico original da coleção Fábio Miguez
Adaptação e coordenação digital Antonio Hermida
1ª edição eletrônica, 2013

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa.

COSAC NAIFY
Rua General Jardim, 770, 2º Andar
01223-010 São Paulo SP
[55 11] 3218 1444
COSACNAIFY.COM.BR

Atendimento ao professor [55 11] 3218 1473


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