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ISSN 1414-7378
Antropolítica Niterói n. 16 p. 1-253 1. sem. 2004
F E R N A N D O A C O S T A *
OS ILEGALISMOS PRIVILEGIADOS
*
Professor do Departamen-
to de Criminologia da Uni-
versidade de Ottawa, Ontá-
rio, K1N 6N5.
66
poderia logicamente atribuir-lhe com base nos próprios enunciados que cons-
tituem sua armadura discursiva. Ora, se é verdade que essa afirmação tem
amplo apoio empírico no domínio dos ilegalismos populares,5 parece-
me que ela adquire uma importância e um interesse crescentes quando
a situamos no domínio daquilo que chamo de ilegalismos privilegiados.
É isso que tentarei mostrar nas páginas seguintes, utilizando sumaria-
mente, num primeiro momento, duas diferentes maneiras – propostas
na literatura criminológica – de abordar a questão da exclusão, parcial
ou total, de certas formas de ilegalismo do campo da intervenção pe-
nal. Essas primeiras observações me permitirão explicitar o quadro teó-
rico em que situo minha proposta.
Em segundo lugar, vou propor os elementos essenciais de definição do
que entendo por ilegalismos privilegiados e tentar, mediante um exer-
cício de contextualização, confrontar esses elementos com um certo
número de conhecimentos, muito desiguais, que existem atualmente
sobre o tema. Com essas proposições, que constituem o núcleo deste
artigo, procuro reunir sob um mesmo abrigo conceitual um certo nú-
mero de resultados de pesquisas produzidos seja no interior, seja à
margem, ou até mesmo totalmente fora do campo de investigação da
criminologia e da sociologia jurídica.
Em terceiro lugar, vou examinar brevemente os principais fatores que
intervêm no processo de construção social, política e jurídica da impu-
nidade penal relativa dos ilegalismos aqui tratados. À guisa de conclu-
são, apresentarei alguns argumentos que buscam indicar os sérios pro-
blemas (práticos, jurídicos e éticos) apresentados por qualquer projeto
de criminalização6 das condutas que se destacam nos contextos exami-
nados na segunda parte deste texto.
Sem haver merecido uma atenção constante da parte dos autores das
áreas de criminologia e sociologia jurídica, a questão da impunidade
em matéria penal foi abordada de maneiras diversas na literatura cien-
tífica dessas disciplinas. Limitando-se às contribuições que datam das
quatro últimas décadas, é possível identificar duas grandes teses pelas
quais tentou-se apreender seus traços essenciais.
A primeira, muito em voga nos anos 60/70, via a impunidade penal
como um atributo de classe, uma condição permanentemente associa-
da ao lugar ocupado pelo infrator na hierarquia social. Em outras pala-
Q UADRO 1
A DMINISTRAÇÃO PÚBLICA
S AÚDE PÚBLICA
D IMENSÃO IDEOLÓGICA
D IMENSÃO MATERIAL
D IMENSÃO JURÍDICA
C ONCLUSÃO
Se há uma finalidade que, mais que qualquer outra, orientou meus
propósitos neste artigo foi a de provar a importância e a necessidade,
para as ciências sociais, de investir (ou reinvestir, conforme o caso) nos
domínios que resumidamente aponto. E sugiro que a relativa urgência
de fazê-lo se justifica, entre outros, pelo fato de que a chama que ani-
mou as tentativas inovadoras de investigação nessa matéria, desde o
fim dos anos 70, parece ter se apagado ao longo dos últimos anos. Por
outro lado, também me empenhei em demonstrar que as questões aqui
apreciadas se mostram suficientemente importantes, no plano teórico,
para justificar que se reflita sobre elas com uma finalidade totalmente
diferente daquela de simplesmente denunciar a realidade que elas cir-
cunscrevem. Com efeito, o tom moralizante de denúncia que marcou,
e continua marcando, alguns trabalhos engajados nessa vertente con-
tribuiu para escamotear o fato de que por trás da realidade de exclusão
de um conflito do campo da intervenção penal se tece uma trama com-
plexa de relações (de colaboração, de confronto) entre diferentes siste-
mas normativos. Ou, em outras palavras, que esse objeto realmente
não levanta importantes questões teóricas senão na medida em que é
construído e problematizado tendo em conta a sua positividade. Talvez
nos contentemos com demasiada freqüência em conceber o penal, seu
discurso e as práticas institucionais que ele constitui como um objeto
estanque. Sem que seja necessário, ao contrário, colocar em questão
sua especificidade, parece cada vez mais evidente que se ganha ao ins-
crever esse objeto particular dentro de uma problemática mais ampla
ABSTRACT
The resolution of conflicts in modern societies can be seen as a complex
network of interactions between various relatively autonomous official con-
trol systems. The place occupied by the criminal law as well as its role within
this network are largely determined by the nature of its relations with the
other control systems. Based on these theoretical premises, this article pro-
poses a discussion on “privileged illegalities”, concept which is used to ex-
plain how similar empirical facts are differently classified by the legal do-
main, according to the contexts they are related. The principal characteris-
tic of these illegalities lies in the fact that they have a broad range of forms
of control (civil, administrative proceedings and, above all, amicable ar-
rangements). Consequences are specially relevant when some of these facts
are criminalized, and others are not.
Keywords: “privileged illegalities”; societal reaction theory; critical theory;
sociology of (penal) law; criminology.
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N OTA S
1
Devemos a Michel Foucault (FOUCAULT, 1975) a introdução do termo illégalisme, nos textos criminológicos
e da sociologia jurídica. Contrariamente a uma crença bem difundida, não se trata de um neologismo de
autoria do filósofo francês, mas de um termo que caiu em desuso após ter sido utilizado com uma certa
freqüência em textos anarquistas (da vertente individualista, particularmente), do início do século, na Fran-
ça, para designar diferentes formas de violação da lei, sobretudo penal, com o objetivo expresso de contestar
a ordem imposta pelo Estado. É num sentido que não coincide exatamente com esse, mas que lhe é próximo,
que Foucault utilizará – tudo indica – pela primeira vez esse termo em seu curso do Collège de France, do ano
1972-1973, sobre a sociedade punitiva (FOUCAULT, 1989). Já em Surveiller et punir as coisas são bem menos
claras. Tem-se ali a impressão – sobretudo quando se pensa na famosa distinção entre illégalismes de biens e
illégalismes des droits – que o termo designa diferentes formas de transgressões, sem nomes próprios, que concor-
rem todas a um estado permanente de desobediência generalizada. Em outras palavras, illégalisme (que Foucault
separa claramente do crime) é a ilegalidade sem nome, que não tem um só e único nome pelo simples fato de
que pode ter vários, tantas são as ordens normativas que ela pode transgredir. Se essa interpretação, da qual
sou o único responsável, está correta, é relativamente fácil concluir que a utilidade do emprego desse termo
se justificaria não pelo sentido que ele propõe (que não é nada transparente), mas, justamente, pela
multiplicidade de sentidos que ele possibilita. É para este uso que emprego aqui esse termo. O que explica, ao
mesmo tempo, por que não tenho outra escolha do que a de traduzi-lo por “ilegalismo”, em vez de “ilegali-
dade”, como consta na tradução brasileira de Surveiller et punir (FOUCAULT, 1977). E aos puristas que
eventualmente objetassem o emprego de uma palavra não acolhida pelos dicionários da língua portuguesa
(que, aliás, na sua forma original tampouco foi aceita pelos dicionários franceses) eu lembraria apenas que
pelo menos duas outras línguas neolatinas já adotaram o termo: o espanhol (ilegalismo) e o italiano (illegalismo).
2
Na literatura de expressão francesa, o termo “sistema penal” é empregado em dois sentidos: um estrito,
outro amplo. No primeiro, ele designa a soma (mais do que o conjunto) das instituições que têm por missão
o que se convencionou chamar de “aplicação da lei penal” (essencialmente, a polícia, o poder judiciário e as
instituições carcerárias). No sentido amplo – que é o que adoto neste artigo –, ele inclui, além dessa aparelha-
gem, o processo jurídico-político de produção da lei penal.
3
Ver, em particular, Lascoumes (1983, 1984, 1986).
4
Ver Lascoumes (1984, p. 233-238). Note-se, porém, que emprego esse termo num sentido que não coincide
exatamente com aquele que lhe atribui Lascoumes.
5
Não me parece de todo necessário que se discuta aqui o fato óbvio de que um número inimaginável de
conflitos que se produzem freqüentemente na esfera pública – e para os quais reservamos, tanto na lingua-
gem popular, quanto jurídica e mesmo sociológica, o epíteto de “crime” – escapam ao controle penal, por
razões aliás muito diversas: os “culpados” não puderam ser identificados, as agências de controle ignoraram
o fato, os atores da situação de conflito chegaram a um acordo entre eles etc. Refiro-me aqui, é claro, a esse
universo mágico, ou no mínimo virtual, que os pioneiros da criminologia, na segunda metade do século XIX,