Sunteți pe pagina 1din 23

VERSÃO DIGITAL

ELABORADA POR
PACO’S AGÊNCIA
PACO’S
DIGITAL
DIGITAL
ÍNDICE
Mythos Editora
Diretor Executivo:
Helcio de Carvalho

Diretor Financeiro:
03 Dorival Vitor Lopes
A SOMBRA E A LUZ DE
Editor Executivo:
NOSSAS MÁSCARAS Alex Alprim
(alprim@gmail.com)

Revisão:
Melissa Correa
09
O CAMINHO DO VIR A SER Produtor Gráfico:
Ailton Alipio
(ailton@mythoseditora.com.br)

Colaboradores:
Ana Claudia Ferreira Cezario, Andressa Gumier, Bianca
15 Acampora, Cynthia de Freitas Melo, Daniel Nascimento
Dallavalle, Kayo Henrique de Castro Pereira, Lais Ferreira, Lélio
CAMINHOS DO MEIO Moura Lourenço, Leonardo Augusto Couto Finelli, Lucas Francis
e Silva Ong, Marcus Vinícius Santos, Paloma do Carmo Souza
Severo e Paulo Mateus Elmor.

Gerente de Vendas/Livros:
Adriana Ferreira S. Costa
22
Coordenação de Consignação:
TIPOS DE PERSONALIDADE Mônica A. Silva
SEGUNDO CARL GUSTAV
JUNG Números Atrasados:
Fabiana Dionísio

Circulação:
28 Antonia B. Coelho
APROXIMANDO OS ARQUÉTIPOS Impressão:
Gráfica São Francisco

Distribuição Nacional:
Fernando Chinaglia

35 Reclamações, Sugestões,
Dúvidas:
MANDALAS faleconosco@mythoseditora.com.br

(PRODUÇÃO, PROJETO GRÁFICO,


DIAGRAMAÇÃO E PUBLICIDADE)
The Titan Co.
41 Dir. Executivo/Projetos: Alex Alprim
Dir. Planejamento: Giulliana Oliveira
FREUD E JUNG Designer Manager: Percila Souza
Designer Júnior: Pedro Faria
Designer Assistente: Jefferson Rodrigues
Coordenadoras Editoriais: Nayara Miranda e Natalia Igual.

48 Revista de Psicologia Especial é uma publicação da Mythos Editora. - Redação


e Administração: Av. São Gualter, 1296, São Paulo - SP CEP. 05455-002 -
PERSPECTIVAS E PILARES Fone: (11) 3024-7707 - Os artigos aqui publicados, quando não assinados,
seguem a licença de CREATIVE COMMONS, sendo vedada no entanto,
DA PSICOLOGIA ANALÍTICA qualquer reprodução ou uso que se faça desse material para fins de lucro ou
DE CARL JUNG financeiros; no mais, quando o artigo for assinado, seu © Copyright pertence
ao autor e é dele a total e completa responsabilidade jurídica e civil sobre
o mesmo. Fica proibida a reprodução total ou parcial de qualquer foto ou
artigo desta revista que tenha sido assinado por seus autores. A revista não
se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados.

NÚMEROS ATRASADOS: temos estoque limitado de nossas publicações. Se


deseja alguma edição anterior desta publicação, entre em contato com Fabiana
Dionísio, pelo telefone (11) 3021-7039 ou enviando uma carta para NÚMEROS
ATRASADOS: Av. São Gualter, 1296 - São Paulo - SP. PROMOÇÃO
2 ESPECIAL: na compra de cinco ou mais revistas, a taxa de correio não será
cobrada.

Distribuída pela Dinap S/A – Distribuidora Nacional de Publicações, Rua Dr. Kenkiti
Shimomoto, nº 1678, CEP 06045-390 – São Paulo – SP
Revista de Psicologia — Especial

O CAMINHO
DO VIR A

SER O processo de individuação na obra de Jung

C
arl Gustav Jung foi um médico
e psicoterapeuta nascido em
Kesswil, na Suíça, em 1875.
Foi um grande estudioso da psique
humana e dedicou toda a sua vida a
isso. Filho único, até os nove anos de
idade, de um pastor protestante e de
uma dona de casa, passou boa parte
de sua infância solitário, o que o levou
a se interessar pela vasta biblioteca
do pai. Ao entrar na adolescência, já
havia lido vários livros de pensadores
importantes. No ano de 1900 formou-se
em medicina e começou seu trabalho
em um hospital psiquiátrico. Naquele
período, passou a observar seus
pacientes psicóticos, que o levaram a
dar importância para o inconsciente.

9
Individuação — O caminho do vir a ser

Jung fez um vasto e aprofundado estudo em


diversas áreas — visando aprofundar o conheci-
mento da psique — que envolveram a alquimia,
a mitologia, a história das religiões e tudo o que
lhe fosse útil para entender a influência do in-
consciente na vida consciente. Das obras de São
Tomás de Aquino, Plotino e Platão — entre outros
— encontrou alguns conceitos sobre o indivíduo
psicológico ter uma existência a priori no incons-
ciente. Se utilizou desses estudos para entender
a importância dos sonhos no processo analítico e
percebeu que, neles, havia uma comunicação do
inconsciente para com o sonhador, que se apre-
sentava de forma simbólica e metafórica e que,
nessa comunicação, havia apontamentos impor-
tantes sobre o indivíduo. Houve um período em
que teve contato com Freud, no qual aprofunda-
ram o estudo do inconsciente e, mais tarde afas-
taram-se por divergências de pensamento.
Em toda a obra de Jung, podemos dizer que
seu foco era o processo de individuação, que para
ele seria uma necessidade natural no homem de
realizar sua totalidade. Contrária à ideia de Freud,
que entendia que nascemos tábula rasa e que a
educação recebida é a determinante para a for-
mação da personalidade, o autor entendia que o
homem não nascia como uma folha em branco,
na qual seria escrita sua vida a partir da edu-
cação recebida. Acreditava que nascíamos, de
forma latente, com predisposições arquetípicas e
tendências para sermos quem deveríamos ser. A
educação, certamente influenciaria o sujeito, mas
não determinaria quem deveria se tornar. A psi-
cologia analítica de Jung compreende que ao nas- “Individuação significa tornar-se um ser único, na
cer, o ser humano traz consigo uma predisposição medida em que por individualidade entendemos
pessoal, indicando que há uma direção específica nossa singularidade mais íntima (...)”
e individual para cada pessoa. O Si-mesmo indi-
ca a direção e cabe ao ego realizá-lo; a família é
a mola propulsora, que favorável ou não, auxilia Após o nascimento, na medida em que a
o indivíduo a buscar sua individuação. O Si-mes- criança começa a interagir com o meio, sua per-
mo, ou Self, nas palavras de Jung “não é somente sonalidade individual começa a se manifestar. Isso
o centro, mas também a circunferência total que fica evidente quando observamos irmãos, criados
abrange tanto o consciente como o inconsciente; e educados pelos mesmos pais, que apresentam
é o centro dessa totalidade, como ego é centro da claramente suas idiossincrasias. Entretanto, esse
mente consciente” (Jung, 1990, § 444) ser individual, no decorrer da educação que rece-
O termo individuação foi empregado por be, vai sendo influenciado pelas expectativas dos
Jung para descrever o processo psíquico de dife- pais. Desta forma, vai havendo uma espécie de
renciação da consciência. Disse que ao nascermos contágio psíquico que se mescla às características
trazemos em nós a semente de quem realmente originais daquela criança. A espontaneidade vai,
somos, nosso vir a ser. assim, diminuindo em função de sua necessidade
“Individuação significa tornar-se um ser de ser aceita e amada pelos pais. Aquilo que, num
único, na medida em que por individualidade primeiro momento, era natural na atitude infan-
entendemos nossa singularidade mais íntima, til vai sendo substituído por um comportamento
última e incomparável, significando também adaptativo às exigências dos educadores. Jung en-
que nos tornamos o nosso próprio Si-mesmo. fatizava que nascemos inteiros e morremos frag-
Podemos, pois, traduzir individuação como tor- mentados. Os abusos, os mimos, os cuidados e os
nar-se Si-mesmo ou o realizar-se do Si-mesmo. descuidos, as vivências em geral ficam impressas
(Jung, 2001, §266) no sujeito e emaranham-se às emoções que são

10
Individuação — O caminho do vir a ser

produzidas, para moldarem a personalidade, que Entretanto, se o conflito for grande demais pode
se desenvolve a partir da imposição de aconteci- gerar, no indivíduo, sérias perturbações. Se a vi-
mentos internos ou externos. É sabido que, pela vência entre o mundo interno e o mundo externo
necessidade de aceitação que a criança tem, sua for demasiadamente marcante, poderá imprimir,
principal tarefa durante a infância é a adaptação no desenvolvimento da personalidade, marcas
às exigências familiares. profundas que trarão prejuízos para a adapta-
A partir do nascimento, a criança depara-se ção, do sujeito, à vida e ao autoconhecimento. As
com um sistema familiar em funcionamento, re- vivências do passado, com as personagens do
pleto de regras e normas das quais passa a fazer passado, ajudam a montar a nossa história pes-
parte e é treinado para ajustar-se. Na relação soal. Entretanto, alguns eventos caracterizados
com o meio a criança desenvolve um comporta- por forte carga emocional e, muitas vezes trau-
mento coerente com as expectativas que os pais máticos, tornamse muito onerosos para serem
têm a seu respeito. A consciência é uma aquisi- sustentados pela consciência.
ção, pois nascemos totalmente inconscientes e é Durante o desenvolvimento da personalida-
através do conflito entre quem realmente somos de os conflitos vividos entre mundo interno/ex-
e a tentativa de dar conta das expectativas dos terno começam a instaurar cisões, que vão na-
pais é que a consciência começa a surgir. O con- turalmente selecionando o conteúdo que ficará
flito entre o mundo interno e o mundo externo presente na consciência, formando o ego. O con-
é uma necessidade para que a criança comece a teúdo que é inerente àquele indivíduo, mas que
desenvolver uma diferenciação entre o eu e o tu. não pôde se manter presente na consciência, por

“As vivências do passado, com as personagens do passado, ajudam a montar a nossa história pessoal.”

11
Individuação — O caminho do vir a ser

“O sujeito cria para si uma verdade defeituosa, con- ser conflitante com a adaptação ao meio, forma
taminada e bastante distorcida acerca de si próprio e a sombra e, de forma adaptativa, é construída a
de sua realidade.” persona, que funciona como uma máscara social
que serve como uma proteção contra o meio ex-
terno, garantindo uma sensação de segurança,
por evitar uma exposição.
A criança tem uma psique extremamen-
te, maleável e, desta forma, grande capacidade
para absorver as informações que lhe chegam
através das figuras educadoras. Aliado a isso,
a criança ainda não tem seu psiquismo total-
mente desenvolvido e, vive no âmbito psíqui-
co dos pais. Portanto, as perturbações vividas
na infância são decorrentes da conflitiva dos
pais e, é somente a partir da adolescência que
a psique começa a ganhar alguma autonomia.
Na adolescência começam a haver as primei-
ras tentativas de afastamento psíquico dos pais,
momento em que o jovem começa a experimen-
tar-se e a transgredir as normas impostas pelo
coletivo familiar. À medida que a personalidade
se diferencia, começa a surgir uma identidade
própria, acarretando em uma maior autonomia
do sujeito. Todo esse processo gera sofrimento.
É muitíssimo comum as pessoas buscarem
o tratamento psicológico, em grande desconforto,
presas em etapas anteriores e nas mazelas pa-
rentais. Além disso, carregam uma autoimagem
distorcida e pontos de vista neuróticos. O sujeito
cria para si uma verdade defeituosa, contaminada
e bastante distorcida acerca de si próprio e de sua
realidade. É como se enxergasse a vida como uma
imagem estática, na qual se move em torno e que
povoa seu imaginário de impossibilidades. Neste
ponto, o sujeito já se encontra bastante longe de
sua verdadeira identidade. No processo analítico,
esses pacientes costumar sonhar com roubos e
perdas de objetos que os identificam.
Cada ser humano vive um universo à parte,
abarrotado de meias-verdades, mas relaciona-se com
elas como se fossem Grandes Verdades. A experiência
da infância gera feridas, que criam crostas grossas,
carapaças defensivas que impedem o indivíduo de sa-
ber quem ele realmente é. Por não ter clareza sobre
si acaba por responsabilizar aos que o rodeiam por
suas dores e dificuldades. Quanto menos consciência
de si, maior o número de projeção dos conteúdos in-
ternos é feito nas outras pessoas. Viver uma relação
traz, às pessoas, sentimentos ambíguos. Ao mesmo
tempo em que recursos defensivos são acionados há,
no homem, uma necessidade vital de contato huma-
no, pois o outro é elemento fundamental, como um
parâmetro que o reflete e que serve de alvo para as
inevitáveis projeções. Portanto, é na relação que o in-
divíduo se confunde e também se enxerga. A relação
é um veneno e, também um antídoto.
Relações, desenvolvimento da personalidade,
distorções, conflitos, necessidades, aquisição de

12
Individuação — O caminho do vir a ser

consciência, são como engrenagens do funciona-


mento humano. Esta é uma generalização na qual
estão envolvidas todas as pessoas. Esse mecanis-
mo põe em movimento todos os seres humanos,
que contêm em si suas singularidades. Somente
é possível construir uma personalidade quando a
pessoa está em condições de se opor ao que está
estabelecido, ao que é esperado e é capaz de fazer
suas próprias escolhas, mesmo que essa atitude
implique em desaprovação pelo coletivo. O desen-
volvimento da personalidade indica: “fidelidade a
sua própria lei” (Jung, 1986, § 295).
Uma vida só é verdadeiramente vivida se
há um indivíduo consciente que a conduza, ca-
paz de fazer escolhas e de escrever sua própria
história. Tal compreensão o capacitará na busca
de saídas mais criativas e de novas atitudes, ati-
vando, assim, recursos internos para promover a
ampliação da consciência. Em potencial, todas as
pessoas podem construir uma personalidade e
viver aquilo que lhes é inato. Todo o ser humano
carrega em si uma diretriz que lhe é própria e
que está acima das convenções. E, esta é uma
realidade psíquica. É esta diretriz que traz signi-
ficado à vida e que torna o homem um indivíduo
singular. A totalidade só é possível a partir da
unidade. Jung (1986) afirma que:
“Somente pode tornar-se personalidade
quem é capaz de dizer um ‘sim’ consciente ao
poder da destinação interior que se lhe apre-
senta; quem sucumbe diante dela fica entregue
ao desenrolar cego dos acontecimentos e é ani-
quilado” (§ 308).
Assim, percebemos que a responsabilidade
sobre a construção de uma existência com sen-
tido recai, inevitavelmente, sobre cada indivíduo.
Quando há fidelidade à individualidade, a perso-
nalidade desabrocha e, com ela, o sentido colore
de nuances singulares a vida humana. Nesse es-
tágio, já não é mais necessário que outras pessoas
sejam usadas como alvo de projeções, nem que os
filhos se encarreguem de realizar o que os pais
tinham como expectativa. Cabe aqui salientar a
importância de não ser confundida a individuali-
dade com o individualismo. A individualidade im-
plica em lucidez e o individualismo em egoísmo.
Viver é uma atividade complexa, pois, como
dizia Jung, exige o homem inteiro. O amadureci-
mento da personalidade acontece no dia a dia e ao
longo de toda a vida. Entretanto, existe uma ten-
dência de os valores coletivos imporem-se sobre
os valores pessoais, por essa razão Jung adver-
tia sobre a importância de discriminarmos o que
nos é imposto para fazermos escolhas pessoais.
O processo de individuação é um caminho para
a diferenciação que gera autonomia, nos torna
conscientes de quem somos e propicia uma vi- “O amadurecimento da personalidade acontece no
vência com sentido. É uma caminhada para nossa dia a dia e ao longo de toda a vida.”

13
Individuação — O caminho do vir a ser

“A liberdade inicia-se no reconhecimento que o homem é capaz de fazer a respeito de si próprio.”

profundeza que nos põe em intimidade com quem uma vida, realmente, íntegra. A discriminação exige
realmente somos. Nessa direção podemos discri- reflexão. A reflexão produz cultura, consciência. A
minar, desenvolver uma autocrítica saudável e reflexio é o elemento alquímico que permite o ho-
conseguiremos viver em sociedade sem sermos mem transformar os fatos em experiência, dando-
arrastados pelo senso comum. -lhe condições de enxergar a si próprio e de fazer
Em seus estudos alquímicos Jung entendeu escolhas. Esta é uma condição fundamental para o
os experimentos dos alquimistas como uma prá- processo de individuação e, nesse estágio, já começa
tica concreta da transformação psíquica. O autor a haver uma separação dos padrões coletivos dan-
constatou, por parte dos alquimistas, projeções do do espaço para o surgimento de uma pessoa mais
inconsciente na tentativa de transformar o metal maleável e em condições de servir ao Si-mesmo. Ve-
vil em ouro. O processo de individuação era feito mos que, nesse processo, vários elementos psíquicos
in vitro no laboratório alquímico. A transmutação estão em jogo e precisam estar inter-relacionados:
dos elementos foi entendida simbolicamente por aquele que imagina, aquele que reflete, o que se
Jung, como a transformação interior do próprio move a partir do que é transformado em experiên-
alquimista, no sentido de que ele transformasse o cia, aquele que transforma a experiência e a ressig-
que nele havia de vil em ouro filosofal. nifica. A liberdade inicia-se no reconhecimento que
Jung refere-se à psique como autorregu- o homem é capaz de fazer a respeito de si próprio.
ladora, pois ela tende a distribuir sua energia, A partir dessa condição a personalidade é possível.
buscando equilíbrio e levando o indivíduo a tor- “Assim como uma grande personalidade atua
nar-se mais autêntico e realizado. O processo de na sociedade liberando, salvando, modificando e
individuação exige que o sujeito se diferencie do curando, da mesma forma o surgimento da própria
coletivo para que, individualmente, se experimen- personalidade tem ação curativa sobre o indiví-
te, reconheça e integre os aspectos psíquicos que duo. É como se um rio, que antes se perdesse em
ficaram polarizados e assim, possa tornar-se mais braços secundários e pantanosos, repentinamente
autêntico, vivendo com uma consciência mais am- descobrisse seu verdadeiro leito. Também se pode-
pla e adquirindo uma identidade mais verdadeira. ria comparar com uma pedra colocada sobre uma
A ideia, no processo de individuação, é de que a semente a germinar; tirada a pedra, o broto retoma
pessoa seja cada vez mais ela mesma, de maneira seu crescimento normal” (Jung, 1986, § 308).
completa e indivisível, distinguindo-se da psicolo- Este é o melhor legado que pode ser trans-
mitido às gerações posteriores: a tarefa de aqui-
gia coletiva. Há, neste sentido, um desdobramento
sição de consciência para a realização do “senti-
da personalidade, que implica estar em relação
do inato da existência” (§ 308).
com o coletivo sem aprisionar-se a ele.
Descuidado de si o homem não é capaz de * Joyce Werres é psicóloga e mestre em psicologia clínica pela
ouvir sobre seus reais anseios. É necessária uma PUCRS, analista junguiana didata e membro da AJB e da IAAP. É
concentração nos ruídos psíquicos e a convergência organizadora do livro Ensaios sobre a clínica Junguiana, coautora
dessa escuta para a consciência. Na medida em que de Puer-senex: dinâmicas relacionais, professora, coordenadora
haja uma concentração do indivíduo nele próprio, do curso de pós-graduação em psicologia clínica junguiana e
gradativamente surge a discriminação, que permite diretora de Comunicação do IJRS. Telefone: (51) 984595822 -
o alargamento da consciência e a estruturação de E-mail: joycewerres@yahoo.com.br

14
Revista de Psicologia — Especial

15
Revista de Psicologia — Especial

CAMINHOS
DO
MEIO
Onde a Psicologia Analítica e o Budismo se Encontram

Quem deseja seguir o caminho dos Ouvintes deve treinar a Perfeição da Sabedoria;

Quem deseja seguir o caminho dos Praticantes Solitários deve treinar a Perfeição da Sabedoria;

E quem deseja enveredar pelo caminho dos bodisatvas também deve treinar a Perfeição da
Sabedoria.

(Buda — Sutras da Perfeição da Sabedoria)

D
iariamente em minha prática
clínica encontro várias pessoas
que me procuram em busca
de sentido para suas vidas e, muitas
vezes, soluções para seus problemas
cotidianos. O mundo moderno encontra-
-se afastado de seus mitos e as religiões
tradicionais tem perdido o númen (po-
der, encantamento, fascínio). A razão
tem ajudado a humanidade a prosse-
guir, explicar o mundo através da ciên-
cia e assegurar uma existência mais
harmoniosa para todos. Infelizmente,
nem sempre estas últimas são efetivas.
Apesar das inúmeras conquistas da
razão, os seres humanos, principalmen-
te, os mais sensíveis, mesmo com uma
vida racionalmente boa e aprazível,
sentem-se incompletos, vazios, desani-
mados ou compulsivos. Acabo encon-
trando as pessoas nesse ponto.

16
Religião — Caminhos do meio

“A moral é valiosa como parâmetro a considerar, mas Caso fosse um xamã do mundo antigo, diria
não como lei universal (...)” que estas pessoas sofreram uma “perda da alma”,
entoaria cânticos falando de um mundo antigo e
uno, contaria histórias tribais de força e poder,
desenharia símbolos de busca de sentido. Mas eu
não sou esse xamã, ao menos não é o que consta
na porta do meu consultório. Todavia, não posso
negar que estas práticas, de um modo simbólico,
estão presentes no meu trabalho diário.
O que eu quero dizer com isso? Bom, as pes-
soas que citei acima, de uma maneira geral, per-
deram o contato com o significado maior de suas
vidas, com aquilo que os fazia se entusiasmar com
a vida, aquilo que os dava paz e tranquilidade,
aquilo que os fazia se sentirem importantes no
mundo. Ao perder esse “entendimento” (coloco en-
tre aspas porque este processo não é puramente
racional, como a palavra entendimento dá a enten-
der), o ser humano ficou sozinho, amparado ape-
nas pelas leis morais da sociedade e pela ciência.
A moral é valiosa como parâmetro a considerar,
mas não como lei universal, pois todos lembramos
que a moral vigente já validou práticas execráveis,
como, por exemplo, o racismo, a aniquilação de
judeus ou a inferiorização da mulher. Já a ciên-
cia, poderosa ciência, se esforça para explicar o
mundo aos homens, mas silencia diante de alguns
dilemas, como perante ao doente com câncer que
pergunta “por que eu?” ou, para não irmos muito
longe, em frente à menina apaixonada pelo rapaz
que ela julga o mais cafajeste de todos.
Nesse ponto, o homem antigo iria buscar
nas religiões as respostas para seus dilemas. Mas,
como disse anteriormente, elas não têm mais a
mesma força diante do homem moderno. Não é
suficiente para este, acreditar em dogmas antigos,
é preciso mais. A alma fugidia se esconde daquele
que procura sentido e significado. É nesse ponto
que encontro o Budismo.
Com a globalização da informação através
da internet, cada vez mais pessoas tem tido acesso
a textos e novas formas de conhecimento vindas
do Oriente, como o Budismo e a Meditação. Para
alguns, o “frescor” de novas ideias e possibilida-
des soa como encantador, a mística que envolve
o desconhecido representa uma possibilidade de
caminho para quem não sabe aonde ir. Para ou-
tros, a ideia de uma religião não teísta, isto é, que
não tem uma divindade central, seria mais ade-
quada a seu pensamento e forma de ver o mundo,
por colocar o homem moderno no centro do dra-
ma cósmico, trazendo os “deuses” para dentro da
alma humana. Para outros ainda, os conceitos de
desapego ou de quietude e paz através do silêncio
interior e meditação seriam possibilidades com-
pensatórias para se atingir o equilíbrio em um
mundo materialista e agitado, a chave que pode-
ria abrir um baú do tesouro da harmonia e da

17
Religião — Caminhos do meio

“Criamos expectativas acerca de fatos, situações ou pessoas, mas estas expectativas falam mais de nossas
necessidades interiores do que da realidade objetiva das coisas em questão.”

gratidão. Enfim, muitos são os motivos para que conta delas por nós mesmos (proteger-me ao
vejamos no Budismo um caminho para a solução invés de procurar proteção, acreditar em mim
para o dilema atual. ao invés de acreditar no que eu possuo, etc.)
Se examinarmos com calma vários conceitos tenderíamos a não projetar tanto estas neces-
da psicologia analítica encontraremos paralelos sidades nos outros. Para Jung2 , esta seria uma
no Budismo. Um dos que mais me é evidente, seria etapa importante do trabalho analítico, recolher
o caminho do meio1.  as projeções. Deste modo, lidaríamos de forma
Na prática clínica é comum vermos pessoas mais objetiva com os fatos e, como menos expec-
“projetarem” seus sentimentos em algo ou alguém. tativa, teríamos menos sofrimento.
O que eu quero dizer com isso? Criamos expecta- James Hillman3, em seu artigo sobre traição,
tivas acerca de fatos, situações ou pessoas, mas nos conta uma anedota em que um filho está se
estas expectativas falam mais de nossas necessi- experimentando subindo em uma escadaria e ati-
dades interiores do que da realidade objetiva das rando-se no colo do seu pai. A cada sucesso, o
coisas em questão. Diversos são os exemplos, bus- pai o estimula a ir mais longe. Depois de vários
co um carro, não pela função do mesmo, mas para sucessos, o pai afasta-se do filho no exato momen-
me sentir forte e poderoso, trabalho com afinco to em que este se lança dos degraus, deixando a
para ser promovido e, assim, atender as expec- criança cair ao solo sem proteção e com algumas
tativas de todos a minha volta, me envolvo com escoriações subsequentes. Depois de muito choro,
alguém protetor e carinhoso para dar conta da o pai pergunta ao filho o que este aprendeu com
minha carência afetiva e não pelo que a pessoa este fato. Dentre outras coisas, o principal ensi-
em si significa para mim. Infelizmente isso é mais namento seria o de não acreditar em ninguém a
comum do que parece nas páginas do Facebook. ponto de se entregar totalmente.
Através da projeção, então, o que normal- Duro ensinamento, mas o que este pai tinha
mente colhemos é a frustração, sofrimento em em mente? A expectativa de proteção deixava o
termos budistas. Se conseguíssemos (e esta é menino frágil e inocente. A traição do pai o ajudou
uma das propostas do trabalho analítico) co- a se fortalecer para as dificuldades que o mun-
nhecer as nossas necessidades profundas e dar do lhe proporcionaria. Enfim, esta é apenas uma

18
Religião — Caminhos do meio

discutível história, mas ilustra a questão da ex-


pectativa e da projeção, culminando enfim com a
tragédia e, se ficarmos atentos, como aprendizado.
Nas palavras do próprio Buda4:

Saiba que todas as coisas são assim:


Uma miragem, um castelo de nuvens,
Um sonho, uma aparição ,
Sem essência mas com qualidades
que podem ser vistas

Saiba que todas as coisas são assim:


Como a lua num céu brilhante
Em algum claro lago refletida,
Ainda que para aquele lago a lua
jamais se moveu.

Saiba que todas as coisas são assim:


Como um eco que provém
Da música, sons, e lamentos,
Embora nesse eco não haja melodia.

Saiba que todas as coisas são assim:


Como um mágico que fabrica ilusões “Força de vontade excessiva nos lembra o Ego e
De cavalos, bois, carroças e outras coisas, sua sede de poder.”
Nada é como parece.
(Buda — Samadhirajasutra)
prestar atenção, poderíamos ouvir esta voz in-
“Sempre aprendo, quando acerto, o que fazer, terior. E, a partir dessa relação, ser orientados,
quando erro, o que não mais fazer” dizia um anti- encontrar o caminho que nos falta, seguir adiante.
go amigo. Este seria um outro conceito junguiano Jung6 tira o conceito tão prevalente na mo-
que talvez valha a pena lembrar, o da atenção. dernidade do Ego como centro da psique, e o
Jung5 nos falava do termo em latim religere, deri- desloca para a periferia, colocando como “ver-
vado de religio. Para muitos, é traduzido como ‘re- dadeiro” centro, o Self, um centro organizador e
ligação’ a Deus, de onde um dia fomos unidos (ou sábio da psique. Uma forma de totalidade latente
a mãe deus uterina). Conceito interessante, mas no homem. Em termos budistas, talvez estivés-
um pouco arriscado se pensarmos na questão an-
semos falando do ‘Bodicita’1. O mais importante
terior da projeção e expectativas, a ideia de “usar”
agora não seria o ‘querer’ do Ego e sim, a religio,
o divino para me proteger ou dar-me a confiança
a consideração atenta das manifestações deste
que não tenho na vida ou na minha história. Este
sagrado na vida do homem. ‘Algo em mim quer’
conceito aproxima-se do entendimento dado pro
e não ‘eu quero’. Perceber essa força e não lutar
Freud a religião. Jung traz o conceito de religio,
que nos traria a ideia de “atenção”. Uma cuida- contra ela só é possível com uma mente quieta
dosa atenção ao extraordinário, isto é, ao fora do e pacífica, a luta neste momento só vai trazer
comum, em termos metafóricos, ao Sagrado. mais sofrimento, a aceitação e ‘obediência’ a esta
Sagrado de nós mesmos, sagrado de nossas vontade, pode trazer mais harmonia, realização
emoções, sagrado da natureza, sagrado no outro, e gratidão ao homem.
e através desta senda podemos seguir tudo o que, Quando há apego ao Eu, surge o discerni-
para nós mesmos, é extraordinariamente impor- mento entre o eu e os outros; seguem-se então
tante e valioso. Todavia, “sagrado” nos faz pensar sentimentos e aflições. (Dharmakirti — Prama-
inicialmente em Deus. Jung preferia não se ma- navartika, em Riponche4)
nifestar acerca da existência de Deus, dizia que Jung6 sempre exaltava a importância da aten-
essa era uma questão para a teologia e não para a ção ao invés da intenção. Não era uma boa verdade
psicologia. Mas, na psique do homem, era possível para ele pensar que a vontade pode conseguir tudo
observar uma instancia arquetípica que seria a na vida, o ‘querer é poder’ não seria muito produ-
“imagem de deus no homem”, a “imago dei”. Mais tivo no caminho da alma. Força de vontade exces-
tarde, ele chamou a imago dei de “Self”. E, através siva nos lembra o Ego e sua sede de poder. Para
de uma abordagem “religiosa”, isto é, através do podermos ouvir os ‘deuses’, deveríamos prestar

19
Religião — Caminhos do meio

atenção a Sua voz. Mas em termos práticos, o que a caminho da liberação. Uma vez que a dor agora
Psicologia Analítica quer dizer com “prestar aten- a preparou para o aprendizado, e seu coração
ção” e “ouvir a voz dos deuses”? está se abrindo à verdade, vou lhe mostrar esse
Talvez esses conceitos não sejam tão simples caminho. (Buda — História de Krisha Gotami).
de entender a primeira vista, mas ficam bem evi- Lembro de um paciente que eu cuidei que
dentes na vida diária. Pensemos, é muito fácil na tinha o diagnóstico de um câncer de esôfago, na-
juventude acreditar que a vida pode ser controlada quela época, já com metástases e profundamente
de acordo com nossa vontade e poder. Afinal, so- infiltrado nos tecidos do pescoço. Em linguagem
mos jovens, cheios de energia e capacidade. Mas, médica, isto significa que era de prognóstico re-
conforme a vida segue, se temos sorte de envelhe- servado, sem chances de cura. Ele era sempre
cer, a vida nos mostra ‘quem manda’. Segue a doen- muito ansioso e um pouco pesaroso sobre o que
ça, a tragédia, talvez a morte de algum familiar, a vinha lhe acontecendo. Tentava sempre me falar
falência, a depressão, a solidão, a velhice com a sua de como vinha ‘se comportando’ e não tendo mais
fragilidade, a desilusão, enfim, várias temáticas que os hábitos que o levaram, possivelmente, àquela
não escolhemos e não desejamos. Se ainda acredi- patologia. Eu também estava um pouco ansioso
tamos somente na força do Ego, somos humilha- e triste pelo destino dele e pela dor da família,
que eu acabei conhecendo. Mas, recordo do último
dos pelo que a vida tem a oferecer depois de certa
dia em que conversamos, e de que senti algo que
idade. Uma visão muito focada na materialidade
poderia ser descrito como paz. Talvez tenha sido
da vida e não conectada com a transcendência
porque o vi muito calmo e tranquilo, não tenho
fica presa à dor, não consegue ver o aprendizado
certeza, mas o fato é que ele me passava algo mui-
e crescimento contidos nestes momentos da vida.
to bom naquele dia. E, o que mais me chamou a
A cura, a paciência, a coragem, a perseverança, o
atenção, foi a sua atitude carinhosa para comigo
desapego, a bondade, a compaixão, a humildade, a
e para com a vida, seu entendimento dos ciclos da
verdadeira visão, a fé, a empatia, dificilmente sur-
vida, sua sabedoria e, o que eu poderia chamar
gem na vida se não forem cultivadas, e, como a de transcendência. Ele estava ali, mas não falava
semente, sem sabedoria e paz interior, não se vê na somente daquele dia, conseguia ver sua vida em
morte do grão o renascimento da planta. perspectiva e relativizada, com um olhar bondoso
Buda4 sabiamente nos diz: “(...) o reino em sobre si mesmo e sua família, vivia o presente, e
que estamos — samsara — é um oceano de in- não parecia ter medo do futuro. Não sei se eu co-
suportável sofrimento. Há um caminho, e ape- nheço o Bodicita ou se já vi alguém neste estado,
nas um caminho, para sair do ciclo incessan- mas aquele senhor me pareceu muito isto.
te de nascimento e morte do samsara, que é o Nas palavras de Dilgo Khyentse Riponche4:
“Uma vez que você obtém a Visão, embora as
“Uma visão muito focada na materialidade da percepções ilusórias do samsara possam sur-
vida e não conectada com a transcendência fica gir na sua mente, você será como o céu: não
presa à dor (. . .) ” fica particularmente lisonjeado quando surge
nele o arco-íris, nem particularmente desapon-
tado quando as nuvens o encobrem. Há uma
profunda sensação de contentamento. Você ri
por dentro quando vê a fachada do samsara ou
do nirvana; a Visão o manterá constantemente
maravilhado com um suave sorriso interior se
esboçando, todo o tempo.”
E, para não falar somente de momentos difí-
ceis, poderíamos pensar em tudo o que é perdido
não somente pela dor, mas também pela superfi-
cialidade. Nem sempre encontro pessoas no meu
consultório que estão passando por situações trá-
gicas, muitas delas, na verdade, estão passando
por momentos de “morte em vida”, isto é, estão
vivos, mas nada da vida os atrai ou toca. Alguns
chegam a perguntar: mas se eu tenho um bom
emprego, um bom relacionamento e nunca tive
um grande trauma em minha vida, como eu pos-
so estar deprimido? Esta é a doce ilusão da su-
perficialidade. Muitas coisas boas só são boas de
verdade se nos ‘tocam a alma’, se trazem alguma

20
Religião — Caminhos do meio

ressonância com o que temos interiormente. Ter


casa, carro, mulher e filhos, passar as férias na
praia e ter um bom plano de aposentadoria, pode
ser considerado bom e, com certeza, não parece
ter nada de mal nisso, todavia, não significa muito
para alma por si só. O que a alma procura é o sen-
tido, esta conexão com algo maior, em linguagem
‘religiosa’, nossa vocação ou missão neste mundo.
Quando não sabemos isto, nada mais acrescenta
e, inclusive coisas boas, podem não ter sabor e
acrescentar gosto a vida.
O poeta Sufi Rumi4, nos traz uma história que
talvez ajuda a ampliar o entendimento nesta ques-
tão, conta-nos que “o mestre disse que há uma coi-
sa neste mundo que nunca deve ser esquecida. Se
vocês esquecerem todo o resto, mas não se esque-
cerem dela, não haverá motivo para preocupação;
por outro lado, se forem atentos, dedicados e com-
petentes em relação a tudo mais e esquecerem
esta coisa, não terão feito de fato absolutamente
nada. É como se um rei houvesse enviado vocês
a um país para cumprirem uma tarefa especial.
Vocês vão para o tal país e executam cem ou-
tras tarefas, mas se não realizaram aquela para
a qual foram mandados é como se não tivessem
feito nada mesmo. Desse modo, o homem veio ao “Muitas coisas boas só são boas de verdade se nos
mundo para uma tarefa em particular, que é o ‘tocam a alma’, se trazem alguma ressonância
com o que temos interiormente.”
seu objetivo. Se ele não a leve a cabo, nada terá
realizado. (Rumi — Conversa à Mesa)
Esta “desatenção” que pode contribuir com
as tragédias citadas anteriormente, não neces- simplesmente, algo que toque meus sentimentos,
sariamente como causa das tragédias, mas como que provoque minhas emoções, que me faça re-
correlação. Uma pessoa atravessando a rua pensar ou até, ‘não pensar’. Em linguagem sim-
olhando o celular não necessariamente vai ser bólica, algo que faça minha alma dançar, que me
atropelada, mas aumenta em muito o seu risco de leve ao mundo dos sonhos novamente, ainda que
ser. Perceber a rua, os carros e para onde quero acordado, que me provoque algum êxtase ou me
ir pode ajudar muito a chegar aonde se quer e di- deixe entusiasmado. “Sua tarefa é descobrir o seu
minuir a chance de ser atropelado. Claro, isso não trabalho e, então, com todo o coração, dedicar-se
garante que eu chegue ou impede que eu mude de a ele” diz o Buda.
ideia, e nem me previne de sofrer um acidente no Nas palavras do próprio Jung7: “O interesse
percurso, mas, digamos, contribui bastante para principal do meu trabalho, não está relaciona-
se chegar a um lugar melhor. do com o tratamento das neuroses e, sim, com
Há o caminho da sabedoria e o caminho a abordagem do numinoso. Mas o fato é que a
da ignorância. Eles são muito distantes um do abordagem do numinoso é a verdadeira terapia
outro e levam a diferentes direções (...). Vivendo e, na medida em que alcançamos as experiên-
em meio à ignorância, pensando que são sábios cias numinosas, somos libertados da maldição da
e instruídos. Os tolos vão a esmo, daqui para lá. patologia.”
Como cegos guiados por cegos. O que existe além
* Roberto Fábio Lehmkuhl é médico pela UFSC, analista
da vida não brilha para os que são infantis, des-
junguiano pelo IJRS, membro da AJB (Associação Junguiana
cuidados, ou iludidos pela riqueza. (Katha Upa- do Brasil) e da IAAP (International Association for Analytical
nixade — Morte para Nachikektas em Riponche4) Psychology), especialista em medicina ayurvédica (Academia
Acho importante esclarecer como perceber Internacional de Ayurveda, Poona — Índia) e médico de família
este ‘sagrado’ em nossas vidas. Quando falamos e comunidade (Grupo Hospitalar Conceição). É coordenador
nestes termos, talvez a única lembrança sejam as médico do Unifácil Pleno — Unimed Porto Alegre —, trabalha
antigas religiões e seus dogmas. Mas, como dis- em consultório com psicoterapia de adolescentes e adultos e
semos, isso não nos ajuda muito mais hoje em dá palestras sobre autoconhecimento e realização pessoal e
dia. Em termos psicológicos, o sagrado não seria profissional.
algo mágico ou místico literalmente falando, mas, Telefone: (51) 32082044 - E-mail: robertofl1@hotmail.com

21
Revista de Psicologia — Especial

41
Revista de Psicologia — Especial

FREUD E JUNG
Faróis da alma nos mares do inconsciente

Ó mar salgado [...]


Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar.
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Fernando Pessoa

I
maginemos a seguinte cena: é noite,
estamos navegando em um mar
imenso e profundo, que nos pare-
ce maravilhoso e convidativo às mais
belas inspirações, mas que, ao mesmo
tempo, nos parece terrível, pois não
sabemos onde ele nos levará. Ele nos é
desconhecido, e, quiçá, cheio de perigos.
Que alívio não sentiremos ao encontrar-
mos, no meio da escuridão da noite e do
oceano, um farol! Uma luz, pequena que
seja, que poderá nos indicar algum ca-
minho, ou pelo menos, mostrar que por
aqui ou ali há um povoado, um pouco de
terra, um traço de humanidade, que nos
aliviará um pouco do medo que temos
de que esta imensidão aquática, tão fa-
bulosa aos nossos olhos, nos engula. Por
certo o farol não impedirá que o oceano
continue misterioso e gigantesco em re-
lação à nossa pequena embarcação, mas
certamente sua luz haverá de nos dar
uma certa segurança para seguirmos
nossa jornada.

42
Psicanálise — Freud e Jung

É com esse espírito de navegador que convido a Passou alguns meses estudando com Charcot, um
você, leitor, que embarque neste texto. Traçarei, nele, famoso neurologista, em Paris. Charcot estudava a
alguns caminhos e descaminhos que Freud e Jung per- histeria como resultado de processos físicos patoló-
correram, ora juntos, ora separados. Esses dois gigantes gicos, e não psíquicos. Freud, no entanto, postulava
da psicologia foram, no meu ponto de vista, verdadeiros que poderiam haver questões psicológicas por trás
faróis para a ciência ocidental na virada do século XIX da doença, e, no aprofundamento de suas pesquisas
para o século XX; e nós, seguidores entusiastas de suas (e na troca de conhecimento com outros estudiosos
descobertas, ainda estamos longe de vislumbrarmos o da histeria, como Josef Breuer), concluiu que a causa
que eles viram, tanto em extensão quanto na profundi- maior da doença histérica provinha de traumas de
dade dos mares do inconsciente. Falo em “mares” do cunho sexual (APPIGNANESI e ZARATE, 2012).
inconsciente porque o conceito de inconsciente foi jus- Enquanto isso, Carl Gustav Jung, 19 anos mais
tamente um dos grandes pontos de convergência (e de- jovem que Freud (Jung nasceu em 1875, em Kesswil,
pois de divergência) entre os dois estudiosos da psique. Suíça), crescia e direcionava sua vida para a psiquia-
Vale ressaltar ainda que, como psicóloga tria. Jung (1963, p. 133) afirma que seu “desenvolvi-
junguiana, escrevo sobretudo a partir de tex- mento interior, intelectual e espiritual, havia come-
tos de Jung, buscando informações sobre Freud çado pela escolha da psiquiatria”; e que as pesquisas
dadas pelo próprio Jung. Devo adiantar que es- de Breuer e de Freud, além dos trabalhos de Janet,
taremos longe de percorrer todas as ondas que foram fontes de estímulo e riqueza para suas próprias
embalam as idas e vindas das ideias desses ho- investigações, já que ele também se preocupava em
mens geniais. O que peço, no entanto, é que nos saber o que acontecia na personalidade do doente
deixemos embalar pelo que aqui foi possível re- mental. As afirmações de Freud sobre a existência
gistrar, sem que percamos o equilíbrio da nossa de um mundo subjetivo inconsciente, que poderia
embarcação. Iniciemos a viagem. ser investigado através dos sonhos e do método de
Sigmund Freud nasceu em 1856, em Freiburg. associação livre, foram decisivas para que Jung se
Em 1860 sua família mudou-se para Viena, e foi lá voltasse para a psicanálise.
que Freud iniciou e desenvolveu seus estudos e tra- Jung (1963) considerou o método de associação
balhos como médico neurologista. Antes de começar livre semelhante ao que ele próprio havia desenvolvi-
as atividades em seu consultório particular, ele tra- do com seus pacientes no hospital psiquiátrico de Bur-
balhou em clínica médica e psiquiátrica, recebendo ghölzli, em Zurique: o método de associação com pa-
influência da visão mecanicista da ciência daquele lavras. Este consistia em medir o tempo de resposta e a
período. Freud desejava ser um cientista, e realizou intensidade emocional que a acompanhava, a partir de
importantes trabalhos sobre o sistema nervoso até determinadas palavras-estímulo que eram dadas pelo
direcionar-se, definitivamente, para a neurologia. pesquisador. Para cada palavra-estímulo, o paciente
deveria associar a primeira palavra que lhe viesse à
mente. Com este experimento, Jung percebeu que havia
“As ideias da psicanálise viriam a ser o marco inicial um mecanismo de recalque atuando no sujeito a cada
de uma abertura para o mundo de subjetividade e
vez que a palavra indutora tocava em uma dor moral ou
inconsciência que trazemos conosco.”
conflito; ou seja: havia um complexo psíquico incons-
ciente por trás das reações do paciente. Os resultados
da pesquisa de Jung foram confirmados pela leitura de
A interpretação dos sonhos, de Freud. Este livro, se-
gundo Jung, era revolucionário para a época.
A interpretação dos sonhos, publicada em 1900,
causou, sobretudo, uma revolução cultural. As ideias
da psicanálise viriam a ser o marco inicial de uma aber-
tura para o mundo de subjetividade e inconsciência que
trazemos conosco. Aspectos humanos como fantasias,
sonhos, imaginação, linguagem mítica, emoções e tudo
o mais que diz respeito ao lado profundo e obscuro da
psique, começavam a vir à tona para serem analisados,
a partir daquele momento, com a respeitabilidade das
lentes científicas, que, apesar de ainda estarem sob a
influência do intelectualismo mecanicista, atribuiriam
um valor cada vez maior para esta nova perspectiva
(GRINBERG, 1997).
Freud e Jung foram pioneiros e entusiastas de
todo esse movimento científico- cultural proporciona-
do pela psicanálise, e travaram uma amizade intensa

43
Psicanálise — Freud e Jung

mais ou menos, acrescentando que poderia


talvez adiantar algo mais, se ele me desse al-
guns detalhes suplementares, relativos à sua
vida particular. Tal pedido provocou em Freud
um olhar estranho — cheio de desconfiança – e
disse: ‘Não posso arriscar minha autoridade! ’
Nesse momento, entretanto, ele a perdera! Esta
frase ficou gravada em minha memória. Prefi-
gurava já, para mim, o fim iminente de nossas
relações. Ele punha sua autoridade pessoal aci-
ma da verdade.
As palavras de Jung denotam o quanto ele
se preocupava em não encobrir verdades, nem
mesmo em nome de sua sincera amizade por
Freud. Mas, ao mesmo tempo, Jung (1989) reco-
nhece que não é possível afirmarmos verdades
absolutas sobre a essência da natureza psíqui-
ca, pois o que temos ao nosso alcance são ob-
servações subjetivas sobre a psique. Por mais
que nos pareça seguro de que o material psico-
lógico que se apresenta para nós seja verdadei-
ro, ele não é mais do que uma forma pessoal de
percepção: ele não é mais do uma verdade par-
ticular, subjetiva, a “nossa” verdade. É por isso
que, para Jung, o que podemos fazer de melhor
em nome da ciência é apresentarmos ou confes-
sarmos sobre a coisa observada da forma mais
verdadeira que nos for possível.
Foi justamente a importância extremada que
Freud atribuía à sua própria verdade que fez com
que a relação entre eles fosse se desgastando.
Mesmo que Jung, apoiado por suas próprias ex-
“É por isso que, para Jung, o que podemos fazer de
melhor em nome da ciência é apresentarmos ou periências, discordasse desde o princípio da ideia
confessarmos sobre a coisa observada da forma mais de Freud de que todas as neuroses são causadas
verdadeira que nos for possível.” por recalques ou traumas sexuais, ele continuou
apoiando-o até 1913. Sonu Shamdasani (2005) es-
a partir de 1906. Interesses comuns fizeram com que clarece que mesmo antes de 1913 já havia, na cor-
eles se correspondessem regularmente, mas foi apenas respondência entre eles, acusações mútuas. Es-
sas acusações tiveram seu ápice numa carta que
em 1907 que os dois se encontraram pela primeira vez.
Freud enviou para um outro colega suíço, na qual
Jung foi até Viena visitar Freud, e eles conversaram
criticava Jung abertamente. Nas trocas de corres-
durante treze horas seguidas. Jung tornou-se um im-
pondências entre os colegas que acompanhavam
portante apoiador da psicanálise, estando diretamente
o movimento psicanalítico, surgiu a questão das
vinculado a Freud até 1913. Jung, inclusive, tornou-se
diferentes visões de mundo que se avolumavam
o primeiro presidente da Associação Internacional de entre o grupo de Viena e o de Zurique. Shamda-
Psicanálise (IPA), e eles passaram a ter uma relação sani explica (2005, p. 67): “Os vienenses achavam
cada vez mais direta, inclusive analisando os sonhos que o grupo de Zurique tinha abandonado a psi-
um do outro e participando de conferências ao redor do canálise e se perdera no misticismo, em virtude
mundo (HYDE e McGUINNESS, 2012). de complexos paternos negativos”.
Em 1909, Freud e Jung foram convidados a darem Jung já havia percebido que Freud havia
conferências nos Estados Unidos. Foram de navio, pas- adotado uma postura paterna em relação a ele.
sando sete semanas juntos, e nessa viagem apareceram Na viagem para os Estados Unidos isso havia fica-
tensões importantes na relação deles. No exercício de do muito claro, tanto na questão do medo da per-
analisarem os sonhos um do outro, Freud não quis reve- da de autoridade de Freud, quanto nos conteúdos
lar alguns aspectos pessoais para Jung, temendo perder que apareceram nos sonhos de Jung, interpreta-
sua autoridade, e justamente por isso a perdeu. Vejamos dos por Freud como um desejo de Jung de matá-lo.
as palavras de Jung (1963, p. 142): Mas o fato mais marcante do complexo paternal
Freud teve um sonho. [...] Interpretei-o de Freud para Jung, no meu entender, aconteceu

44
Psicanálise — Freud e Jung

no segundo encontro que eles tiveram em Viena, a sexualidade, para Freud, havia tornado-se nu-
em 1910. Conta Jung (1963, p. 136): minosa, isto é, sagrada, sendo vivida por ele como
Tenho ainda uma viva lembrança de Freud uma verdadeira religião.
me dizendo: ‘Meu caro Jung, prometa-me nun- Jung percebia que Freud sentia-se amea-
ca abandonar a teoria sexual. É o que importa, çado por conteúdos religiosos do inconsciente,
essencialmente! Olhe, devemos fazer dela um mas Freud jamais admitiria que a atitude que
dogma, um baluarte inabalável.’ Ele me dizia estava tendo para com sua teoria fosse religio-
isso cheio de ardor, como um pai que diz ao fi- sa. A consciência de Freud foi tomada pela sua
lho: ‘Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá própria teoria sexual, e esta, na opinião de Jung
todos os domingos à Igreja! ’ Um tanto espanta- (1963, p. 137), “não era menos premente, imperio-
do, perguntei-lhe: ‘Um baluarte contra o quê? ’ sa, exigente, ameaçadora e moralmente ambiva-
Ele respondeu-me: ‘Contra a onda de lodo ne- lente” (e até temível), do que a ideia religiosa de
gro do...’ Aqui ele hesitou um momento e então um Deus que se oculta em cada um de nós. Mas
acrescentou: ‘... do ocultismo! ’ Jung mantinha essas percepções secretamente.
Jung (1963) ficou assustado com as palavras Ele via em Freud uma amargura muito grande,
baluarte e dogma, proferidas por Freud de for- e a despeito de toda a numinosidade que a teo-
ma tão incisiva, e sentiu, então, o quanto ele es- ria do trauma sexual acendia nele, ela acabava
tava apegado à sua própria teoria sexual, além restringindo-se a apenas uma parte — mesmo
de tomado por uma vontade pessoal de poder. O que de fundamental importância — do sistema
desejo de Freud de que a psicanálise se tornasse psíquico: os instintos biológicos.
algo indiscutível e inabalável contrariava o es- Ainda que Jung entendesse que a teoria da se-
pírito crítico de Jung, que considerava qualquer xualidade, quando tomada subjetivamente, poderia
verdade científica de forma relativa e hipotéti- incluir a religiosidade, sua linguagem a restringia
ca. Naquele momento, Jung sentira que o cerne significativamente, justamente por ser muito con-
da amizade deles estremecia ainda mais. Ele não creta e biológica. Ela era vista por uma perspec-
entendia porque Freud negava tão acentuada- tiva causal e apenas de fora (da consciência) para
mente os conteúdos religiosos, filosóficos ou pa- dentro (para o inconsciente pessoal do indivíduo).
rapsicológicos do inconsciente, tomando-os como E a dinâmica psíquica, para Jung, deveria ser con-
ocultismo. Para Jung, a teoria sexual tinha um siderada em todos os seus aspectos, não só a partir
conteúdo tão oculto quanto esses outros aspectos do inconsciente pessoal, mas também do que emer-
da alma humana; e ele compreendeu, então, que ge do inconsciente coletivo, ou seja: deveríamos

“O desejo de Freud de que a psicanálise se tornasse algo indiscutível e inabalável contrariava o espírito crítico
de Jung, que considerava qualquer verdade científica de forma relativa e hipotética.”

45
Psicanálise — Freud e Jung

considerar tudo o que a totalidade inconsciente


mobiliza em nós, inclusive a dimensão filogenéti-
ca e histórica da humanidade. A psique é formada,
para Jung, nos embates da consciência com a di-
mensão pessoal e com a dimensão coletiva do in-
consciente, e devemos ter cuidado com os termos
que tentam descrever a riqueza de processos que
envolvem a dinâmica psíquica.
Jung (1989, p. 323) esclarece que as divergên-
cias entre os seus pontos de vista e os de Freud
deveriam ser encarados como “diferenças entre
as ideias que se chamam Freud e Jung”. Ele pre-
tende assegurar, com este rigor linguístico, que é
impossível haver imparcialidade ou objetividade
absolutas em qualquer construção científica, e,
principalmente, em psicologia. Para Jung, não so-
mos nós que temos ou fazemos as ideias. São elas,
na verdade, que nos têm e dominam, somos seus
serviçais. O máximo de inteireza científica que
podemos alcançar é confessar nossas ideias com
sinceridade, pois elas brotam em nós de algo mui-
to maior do que a nossa subjetividade, ou de nos-
sa psique pessoal. Por isso Jung não se vê como
um opositor de Freud. Ele crê que Freud, justa-
mente por ter seguido sua verdade pessoal com
tanta dedicação, contribuiu para o florescimento
de verdades que estão profundamente enraizadas
em todos nós.
Jung afirma que inúmeros casos — e nenhu-
ma pessoa que trabalhe com saúde mental há de “Para Jung, não somos nós que temos ou fazemos
negar isso — de doenças psíquicas se encaixam as ideias.”
perfeitamente na teoria de Freud. O que ele dis-
cute é que não dá para tomar todos os casos por é extremamente dinâmico, impulsionador ativo
alguns, mesmo que estes sejam numerosos, e que e incessante do fluxo de energia vital em nós.
haverá outras formas de ver a psique, sempre No Self estariam, de forma indiferenciada, for-
conforme o tipo psicológico da pessoa e o modo ças psíquicas opostas ou complementares entre
de vida daquele que tem a visão. Ele cita, por si, como esses aspectos abordados por Freud e
exemplo, Alfred Adler, que foi um dos primeiros Adler. Jung reuniu a diversidade de impulsos e/
discípulos de Freud, mas que acabou tomando um ou forças psíquicas primordiais (arquétipos)
outro rumo para entender a doença psíquica. En- sob o conceito de energia, para não diminuir as
quanto Freud fixou-se no recalque de Eros em intensidades de valores da alma/psique a uma
nós, ou nos efeitos psíquicos acarretados pela re- terminologia reducionista e limitadora, como a
pressão do princípio de prazer, Adler dedicou-se da sexualidade. É na interrupção ou nas dificul-
aos problemas decorridos de uma fraca vontade dades de relação entre a consciência e o fluxo
de poder, ou de uma afirmação insatisfatória do energético natural que temos os diferentes graus
indivíduo perante o mundo. Já para Jung (1963, p. de patologias e/ou dissociações psíquicas.
139), eros é “uma força que se sofre passivamente, O polo oposto dos instintos biológicos estaria
e o instinto de poder [é uma] força ativa, e vice- ligado à função religiosa da psique. Esta função
-versa. O eros recorre tantas vezes ao instinto diz respeito à experiência humana em relação ao
de poder como o instinto de poder ao eros. O que espírito — ou ao sentido que damos às nossas vi-
seria um desses instintos sem o outro?” das. Jung 1989, p. 328) entendia a função religiosa
Um dos aspectos criticados por Jung em re- como a “única possibilidade de romper o círculo
lação às psicologias desses pesquisadores é que vicioso dos eventos biológicos”; e afirma que, por
elas dão uma importância exagerada ao lado causa de seu interesse e preocupação por este
patológico da psique. Jung entende que a psi- importante aspecto da totalidade psíquica, o acu-
que é fonte de saúde e criatividade, e não ape- saram de misticismo. Mas Jung parecia estar mais
nas de doenças e recalques. Para ele, há um nú- ocupado em viver sua própria totalidade psíquica
cleo psíquico central, o Self ou Si-mesmo, que do que se preocupar com as acusações sobre ele.

46
Psicanálise — Freud e Jung

Ele compreendia que assim como cada cientista escolas de psicologia: todo o analista deveria
só pode confessar as ideias que dominam sua psi- passar por uma análise didática. Essa prática foi
que pessoal, também cada pessoa é o resultado de prontamente reconhecida por Freud, e se mantém
tudo o que viveu e conseguiu (ou não) integrar de até os dias de hoje tanto na psicanálise quanto na
seus acontecimentos psicológicos anteriores. psicologia analítica (como também é chamada a
Jung não estava interessado em criar uma psicologia junguiana) (SHAMDASANI, 2005).
escola de psicologia. Ele queria entender a alma Jung tinha a esperança de que a análise
humana em todas as suas dimensões e, para — direcionada ao analista ou a qualquer pes-
isso, debruçou-se sobre uma variedade enorme soa — auxiliasse o sujeito para que ele viesse
de temas, que iam desde a dimensão biológica a tornar-se ele mesmo; isto é, que o ajudasse a
chegar a um nível de individuação onde a sua to-
instintiva do ser humano até a alquimia medie-
talidade psíquica pudesse travar uma nova forma
val, passando pela filosofia, mitologia, história
de relação tanto com o mundo da consciência — o
das religiões, gnose, literatura, artes em geral,
mundo de nossas relações cotidianas ordinárias,
entre outros. Ele via uma complexidade imensa extrovertidas — quanto com o universo incons-
na psicologia, e tentou conduzi-la para além de ciente, seja em sua dimensão pessoal (incons-
sua própria equação pessoal. Para ele, a psico- ciente freudiano), ou coletiva (onde está a poten-
logia exigiria o sacrifício do autoconhecimento, cialidade criativa essencial do ser humano). É no
e esse seu modo de pensar acabou tornando-se inconsciente coletivo que a polaridade do espíri-
uma proposta que viria a ser adotada por muitas to pode ser experimentada, pois é onde a intro-
versão e as reflexões têm seu lugar assegurado.
“O apego à novela familiar ou aos aspectos passa- Quanto menos unilateral for a visão do analista,
dos da psique pessoal podem aprisionar a energia mais possibilidades de ir além do inconsciente
psíquica (...)” pessoal terá o analisando, e mais criatividade
poderá ser liberada em sua psique. O apego à
novela familiar ou aos aspectos passados da psi-
que pessoal podem aprisionar a energia psíquica,
gerando desde neuroses leves até patologias mais
severas, como as psicoses (SHAMDASANI, 2005).
Não podemos subtrair de nós o viés subjetivo de
nossa alma, mas ele pode ser ampliado e relativi-
zado conforme nossa abertura para com o pro-
cesso de individuação.
Após a ruptura entre Freud e Jung, cada
um levou adiante suas pesquisas psicológicas.
Tanto a psicanálise quanto a psicologia analí-
tica são fontes de inspiração e formação para
centenas de analistas ao redor do mundo. E elas
também se tornaram populares, pois, aos pou-
cos, os termos psicanalíticos e analíticos foram
inserindo-se na linguagem das mais diversas
áreas, estando cada vez mais acessíveis ao co-
nhecimento de todos.
Podemos observar, portanto, que as luzes
de Freud e Jung continuam acesas. O foco de
seus faróis segue guiando aqueles que se de-
cidem pela travessia dos mares da psique in-
consciente. Mesmo que uma e/ou outra ilumine
apenas dentro de um certo alcance, elas permi-
tem que sigamos com maior segurança nossa
jornada, pois sabemos que não estamos total-
mente perdidos, ou à mercê de uma absoluta e
completa escuridão.

* Gisela Cardoso é psicóloga.


E-mail: gisedp@terra.com.br
Telefone: (54) 91811466
Facebook: www.facebook.com/dancaterapiagiramundo

47
BIBLIOGR AFIA
A SOMBRA E A LUZ DE NOSSAS MÁSCARAS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . Tipos Psicológicos. 3ª ed.Petrópolis: Vozes, [1921]
2009.
MORENO, J.L.. Psicodrama. São Paulo. Editora Cutrix. 12° edição, 2009. JUNG, E. Animus e Anima. São Paulo: Cultrix, [1931] 1995.
MORENO, Z. T.; Blomkvist, L. D.; Rutzel, T. A Realidade suplementar e a arte de curar. PAULA, L.G.P.A Lenda de Mulan: A Jornada da Mulher e do Feminino.2008. Mono-
São Paulo: Ágora, 2010.
grafia (Especialista em Abordagem Junguiana: Leitura da Realidade e Metodologia de
PERAZZO,S. Psicodrama: O forro e o avesso. São Paulo: Ágora, 2010.
Trabalho) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
MARTÍN, E. G. Psicologia do encontro: J. L Moreno. São Paulo: Ágora, 1966.
PAULA, L.G.P.O Feminino em Dom Casmurro: Uma leitura junguiana de seus persona-
BERMUDEZ, J.G.R. Introdução ao Psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes, 1985 gens. 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) — Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
O CAMINHO DO VIR A SER PENNA, E. M. D. O paradigma junguiano no contexto da metodologia qualitativa de
pesquisa. Psicologia USP. v. 16, n. 3, p. 71-94, set. 2005. Disponível em: <http://
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. O.C. vol. XVII. Petrópolis: scielo.bvs-psi.org.br/scielo.php?pid=S1678-51772005000300005&script=sci _
Vozes, 1986. arttext&tlng=pt>. Acesso em: 03 mar 2012.
_ _ _ _ , Carl Gustav. Psicologia e Alquimia. O.C. vol. XII Petrópolis, RJ: Vozes, PEREIRA, Sylvia Brinton. Caminhos para a iniciação feminina. 3ª. Edição. São Paulo:
1990.
Paulus, 1998.
_ _ _ _ , Carl Gustav. O Eu e o inconsciente. O.C. vol. VII/2 Petrópolis: Vozes, 2001.
STEIN, M. Jung: O Mapa da Alma. Tradução por Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix,
2005.
CAMINHOS DO MEIO
WHITMONT, E.C.A busca do símbolo: Conceitos básicos da psicologia analítica. São
Dalai Lama. Uma Mente Profunda – O cultivo da sabedoria na vida cotidiana. São Paulo: Cultrix, 2006.
Paulo: Ed. Martins Fontes, 2013.
HILLMAN, J.Estudos de Psicologia Arquetípica – Rio de Janeiro: Ed.Achiamé, 1991. MANDALAS
JUNG, C. G. A Prática da Psicoterapia. Vol. XVI/1. Petrópolis: Vozes, 1981.
JUNG, C. G. Cartas: 1906-1945. Petrópolis: Vozes, 2001. DAHLKE, Rüdiger. MANDALAS: formas que representam a harmonia do cosmos e a
JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Vol. XI/1. Petrópolis: Vozes, 1978. energia divina. São Paulo: Pensamento, 2007.
JUNG, C. G.Aion — Estudos sobre o simbolismo do si mesmo. Vol IX/2. Petrópolis:
HEGEL, George W. F. Curso De Estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes,
Vozes, 2008.
1996.
RIPONCHE, S. O Livro Tibetano do Viver e do Morrrer. São Paulo: Palas Athena, 2013.
JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. — Petrópolis: Vozes, 2000.
TIPOS DE PERSONALIDADE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG Páginas 347-381
LUFT, Celso Pedro. MINIDICIONÁRIO LUFT. 11ª Ed. São Paulo: Ed. Ática, 1996.
JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 7ª Edição. Editora Vozes. 2011 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS — BRASIL. Secretaria de Educação
JUNIOR, H. M. e SILVEIRA R. A Clínica das Empresas e dos Homens Sob o Olhar Fundamental. — Brasília, MEC /SEF, 1998.
Junguiano dos Tipos Psicológicos. 2010. <http://media.wix.com/ugd/100c22 _ 4e-
b636c378e6cec03a3849000e37cdad.pdf>. 28/11/2016 FREUD E JUNG
“Personalidade”. Def. 1e 2e. Dicionário Aurélio. <HTTP://dicionariodoaurelio.com>.
Web. 28/11/2016
APPIGNANESI, Richard; ZARATE, Oscar. Entendendo Freud: um guia ilustrado. São
Paulo: Leya, 2012.
APROXIMANDO OS ARQUÉTIPOS
GRINBERG, Luis Paulo. Jung: o homem criativo. São Paulo: FTD, 1997.
BYINGTON, C. Adolescência e interação do Self individual, familiar, cultural e cósmico: HYDE, Maggye; McGUINNESS, Michael. Entendendo Jung: um guia ilustrado. São
Introdução à psicologia simbólica da dinâmica familiar. Revista da Sociedade Brasi- Paulo: Leya, 2012.
leira de Psicologia Analítica. São Paulo, p. 47-117, 1988 JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.
HUMBERT, E. G. Jung: Novas buscas em psicoterapia. São Paulo: Summus, cap. 3 e _ _ _ _ _ _ . Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1963.
4, p. 105-149, 1985. SHAMDASANI, Sonu. Jung e a construção da psicologia moderna: o sonho de uma
JACOBI, J. Complexo, arquétipo e símbolo. São Paulo: Cultrix, 1990. ciência. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2005.
JAFFÉ, A. O mito do significado. São Paulo: Cultrix, 1995.
JONES, R. A. Symbolic and dialogic dimensions. In: Jung, Psychology, Postmoder-
PERSPECTIVAS E PILARES DAS PSICOLOGIA ANALÍTICA DE CARL.JUNG
nity. New York: Routledge, cap. 2, p. 27-55, 2007.
JUNG, C.G. Aspectos do Drama Contemporâneo. Vol. 10/2. 3ª ed. Petrópolis: Vozes,
JUNG, C.G. Civilização em Transição, Petrópolis: Vozes, 2000.
[1946] 2007.
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ .Memórias, sonhos e reflexões. Botafogo: Nova Frontei- _ _ _ _ , C.G. Freud e a Psicanálise, Petrópolis: Vozes, 1989.
ra, [1961] 2005. _ _ _ _ , C.G. O desenvolvimento da Personalidade, Petrópolis: Vozes, 2006
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 5ª ed. Petró- _ _ _ _ , C.G. Tipos Psicológicos. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991.
polis: Vozes, [1933/1955] 2007. _ _ _ _ . C. G, A Prática da Psicoterapia, Petrópolis: Vozes, 1999.

53

S-ar putea să vă placă și